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Organizadores

Antônio Campos
Cyl Gallindo

P A NO R A M I C A D O

CONTO
EM P ERNAMBUCO
2ª edição
Ampliada, revista e atualizada
de acordo com a nova ortografia.
Inclui índice onomástico.

Recife, 2010
3
Copyright dos textos© dos autores
Copyright da edição© 2010 Carpe Diem - Edições e Produções

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida, nem apropriada ou
estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da Editora.

Organização
Antônio Campos | Cyl Gallindo

Editoria e Coordenação Editorial


Antônio Campos | Norma Baracho Araújo

Assessoria Técnico-Administrativa (IMC)


Kamila Nascimento | Leila Teixeira | Veronika Zydowicz
Projeto gráfico
Patrícia Lima
Revisão de texto e elaboração do Índice Onomástico*
Norma Baracho Araújo
* Apresentação, Prefácio e Dados Biobibliográficos

Impressão
Gráfica Santa Marta

P195 Panorâmica do Conto em Pernambuco/ Orgs. Antônio Campos, Cyl


Gallindo. 2. ed., rev., atual. e ampl. de acordo com a nova
ortografia - Recife: Carpe Diem edições e Produções, 2010.
873p.;


Inclui índice onomástico.

ISBN 978-85-62648-10-6

1. Contos Brasileiros - Pernambuco. 2. Panorama de contos. I.
Campos, Antônio (org.), II. Gallindo, Cyl (org.) III. Título.

CDU 821.134.3 (81) – 34
CRB4/1544

Impresso no Brasil
Printed in Brazil

Carpe Diem - Edições e Produções


Rua do Chacon, 335, Casa Forte, Recife, PE
55 81 32696134 | www.editoracarpediem.com.br
Sumário

Apresentação, Antônio Campos, 9

Prefácio, Cyl Gallindo, 13

Abdias Moura, Natal com criminosos, 25


Admaldo Matos de Assis, A menina, 31
Alberto Lins Caldas, O exterminador, 37
Albuquerque Pereira, A visita da saúde, 42
Alexandre Santos, A história de Bentinho, 48
Aluízio Furtado de Mendonça, Para além dos campos semeados, 54
Amílcar Dória Matos, Prelúdio, 56
Ana Maria César, Incidente ao meio-dia, 64
Antônio Campos, O julgamento, 67
Ariano Suassuna, O casamento, 71
Arnaldo Tobias, Clarinha, 95
Ascenso Ferreira, O Engole Cobra, 97
Augusto Ferraz, Bestas piedosas, 99
Barbosa Lima Sobrinho, A supremacia feminina, 105
Bartyra Soares, Estradas do mar, 109
Beatriz Brenner, O sono, 113
Benito Araújo, O rio, 117
Carlos Newton Júnior, Regresso, 121
Carlos Cavalcanti, O teco-teco, 126
Clarice Lispector, Felicidade clandestina, 129
Cláudio Aguiar, O comedor de sonhos, 133
Cloves Marques, A dama do paço, 138
Cristovam Buarque, Os dois corações, 143
Cyl Gallindo, De como descobri que não existo, 154
Dioclécio Luz, O dançarino de bolero, 163
Djanira Silva, Teodora, 170
Edna Alcântara, Corina, 173
Eduardo Lucena, O jardim, 175
Everaldo Moreira Veras, Pião na unha ou o campeão, 184
Fátima Quintas, De profundis, 190
Fernando Monteiro, Stromboli, 194
Fernando Pessoa Ferreira, Ninguém ouve os sabiás, 200
Flávio Chaves, O sonho de Ulpiano, 211
Flávio Guerra, Rua do Encantamento, 217
Francisco Bandeira de Mello, Crônica de uma tarde de domingo, 223
Francisco Julião, As escravas, 233
Gastão de Holanda, Josias e a Imperatriz, 241
Geraldo Falcão, Osteopatia, 254
Gerusa Leal, Os brincos prateados, 261
Gilberto Freyre, Fred, o Tio Comandante, 264
Gilvan Lemos, Ex-noite, 270
Graciliano Ramos, Dois dedos, 282
Hermilo Borba Filho, O almirante, 291
Hugo Vaz, Desempregado, 293
Iran Gama, O rosário, 303
Jacques Ribemboim, Essa mosca morde, 316
Jayme Torban, João sem Pernas e Maria dos Jornais, 319
Joaquim Cardoso, Brassávola, 324
José Carlos Cavalcanti Borges, Coração de dona Iaiá, 334
José Cláudio, Lucky, mártir da Copa, 342
José Conde, O regresso, 345
José Rodrigues de Paiva, Como as nuvens que passam, 349
Juareiz Correia, O dia em que a cidade endoidou, 353
Ladjane Bandeira, Um gesto ancestral, 357
Lailson de Holanda Cavalcanti, A casa do velho Cirilo, 364
Laura Areias, Efemeridade da vida, 372
Leônidas Câmara, Franz Kafka voa de Zepelim, 375

6
Liana Ribemboim Feldman, Dela, Adina, 395
Lourdes Nicácio, Sobreviventes, 399
Lourdes Sarmento, O perdão, 402
Luce Pereira, Clóvis, 407
Lúcia Cardoso, O chapéu de Gary Cooper, 411
Lúcia Moura, A chuva de sábado à noite, 415
Luciene Freitas, Detalhes no azul, 418
Lucilo Varejão, Duquesa, 420
Lucilo Varejão Neto, Zero, zerinho, 425
Lúcio Ferreira, Joca do Boi, 428
Luís André Negrão, Ansiedade, 430
Luís Jardim, O homem que galopava, 434
Luiz Arraes, O remetente, 449
Luzilá Gonçalves Ferreira, O enterro de João, 452
Majela Colares, O fantasma de Samoa, 459
Marco Albertim, Soler, emoção e morte, 465
Marco Polo Guimarães, Valentia, 470
Marcus Accioly, Uma égua chamada Sua-Mãe, 472
Margarida Cantarelli, O retrato e as flores, 477
Maria de Lourdes Hortas, O bruxo de Santiago, 482
Maria Inêz Oludé, Tio Zambelê, 487
Maria Lúcia Chiappetta, A decisão, 498
Mário Márcio, Luna, 502
Mário Rodrigues do Nascimento, Papéis sombrios, 512
Mário Sete, Juros do coração..., 515
Maurício Melo Júnior, Amanhã eu vou, 519
Mauro Mota, O criador de passarinhos, 525
Maximiano Campos, Na estrada, 535
Medeiros e Albuquerque, As calças do Raposo, 547
Micheliny Verunschk, A menina do nome de flor, 562
Milton Lins, Os cinco reinos ganhos e o reino perdido, 566
Montez Magno, A construção do tempo, 571
Múcio Leão, A última viagem do almirante Silva, 583
Nelson Rodrigues, A dama do lotação, 589

7
Nivaldo Tenório, A reforma, 595
Olímpio Bonald Neto, Mestre João de Dão, 599
Osman Lins, Elegíada, 605
Paulo Caldas, Refresco de cajá, 610
Pelópidas Soares, A grande reta, 617
Perseu Lemos, O carro vermelho, 622
Pietro Galindo, O louco, 630
Raimundo Carrero, Aika Tharina, 633
Rosa Lia Dinelli, Madeira perfumada, 638
Rubem Rocha Filho, Desfile na Dantas Barreto, 644
Sérgio Moacir de Albuquerque, Decisão, 652
Si Cabral, Tal pai, tal filho, 656
Telma de Figueiredo Brilhante, O voo, 659
Urariano Mota, Daniel, 661
Valdecir Freire Lopes, Sanatório, 667
Valdi Coutinho, Ângelus, 671
Vanja Carneiro Campos, O bem, 675
Verônica Nery, Separação por assassinato, 681
Vital Corrêa de Araújo, Vida simples, 685
William Ferrer, Excluídos, 688
William Porto, Aconteceu no Natal, 691
Zenaide Pedrosa, Mudando a vida, 696
Zenilda Pinheiro Borges Santiago, Encanto, 699
Zuleide Duarte, Nome, 703
Zuyla Cartaxo, Revelação, 707

Dados biobibliográficos, 710

Abreviaturas e siglas, 857

Índice onomástico, 861

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Apresentação

Pernambuco em Antologias
Antônio Campos*

O Instituto Maximiano Campos surgiu da necessidade


de preservar a memória do escritor Maximiano Campos,
meu pai. Memória não apenas dele, mas também da fa-
mília, do trabalho, dos seus amigos – na quase totalidade
escritores –, do seu Estado, da sua região Nordeste, enfim
do Brasil. Para ser fiel ao seu espírito plural e coletivo, o
IMC, além de conservar, promover e divulgar a obra de
Maximiano, realiza e apoia eventos culturais, como tam-
bém concursos literários.
Entre as atividades que o IMC vem desenvolvendo,
devo destacar a publicação de livros, a exemplo desta
coleção, Pernambuco em Antologias, que revela a literatura
pernambucana em verso e prosa. As obras, organizadas
por mim em parceria com grandes amigos, são um vasto
mural da produção literária pernambucana.
O livro Pernambuco, terra da poesia, idealizado por mim
e pela ensaísta Cláudia Cordeiro, é um painel da poesia
pernambucana entre os séculos XVI e XXI. Ao reunir 161
poetas em quase 600 páginas de poemas, tivemos como
resultado um registro magnífico de várias situações, paisa-
gens e sentimentos vivenciados, tanto por parte dos auto-
res quanto pelos leitores que “viajam” ao lerem a obra. É
um registro físico da literatura nacional, desde o marco da
Literatura Brasileira, com o poema Prosopopeia, de Ben-
to Teixeira, até produções locais da famosa Geração 65,
da qual o próprio Maximiano fez parte. A toda hora, em
toda parte, encontro um poeta, agradecido por participar
da obra, ou escritores e críticos a comentá-la, citando des-
conhecer autores nela revelados. É uma forma de termos
conosco a história de Pernambuco de uma maneira mais
clara e sublime, através da Arte Poética.
Como em todos os escritos poéticos, esses trajetos não
se desenrolam de maneira uniforme. Cada poeta e cada
poema têm suas próprias características, assim como avalia-
ções, julgamentos e encantamentos singulares – reservados
aos leitores desta coletânea. Uma estética sucede-se à outra,
assim como um juízo a outro. A história da Arte Poética está
longe de formar um todo homogêneo e unânime. Assim,
acreditamos que a principal tarefa da poesia tem sido, atra-
vés dos séculos, falar das verdades que habitam em cada
homem, em cada escritor, de uma forma atemporal e que
possibilita ao próprio homem se reconhecer, independen-
temente da época. Concordo com Ferreira Gullar que diz:
“Pretendo que a poesia tenha a virtude de, em meio ao so-
frimento e ao desamparo, acender uma luz qualquer, uma
luz que não nos é dada, que não desce dos céus, mas que
nasce das mãos e do espírito dos homens.”, pois a poesia é
isso. É a verdade absoluta em cada um de nós.
O sucesso de Pernambuco, terra da poesia despertou em
mim o interesse de produzir outro livro. Desta vez, volta-
do à área da ficção. O outro volume da coleção é Panorâ-
mica do conto em Pernambuco, fruto da minha parceria com
o escritor Cyl Gallindo. A obra, cuja produção demandou
a leitura detalhada de mais de 500 textos em livros, re-
vistas, internet e até mesmo em acervos pessoais cedidos
pelos próprios autores, resultou em uma síntese do que
há de melhor na literatura de contos.
Nessa coletânea de contos, tivemos prazerosas des-
cobertas, desde a inédita Margarida Cantarelli até o ex-
governador de Pernambuco Barbosa Lima Sobrinho; na
extensão do conceito de pernambucanidade, incluímos

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Graciliano Ramos, visto que morou em Buíque durante
boa parte de sua infância, assim como a ucraniana Clarice
Lispector, que se dizia recifense por ter morado no Recife
quando criança e onde realizou os estudos primários. Essas
inserções são possíveis, porque, a partir da primeira obra,
adotamos o critério de “Domicílio Literário”, que trans-
cende ao do simples registro biográfico da naturalidade.
Histórias da infância, amizades, aventuras e grandes
amores são narrados por escritores como Amílcar Dória
Matos (recém-falecido), Benito Araújo, Fátima Quintas,
Gilberto Freyre, Luzilá Gonçalves, Raimundo Carrero e
tantos outros não menos importantes que estes antes ci-
tados. Como afirmou Gallindo, “as coletâneas são como
as publicações de obras completas de autores vivos: ficam
sempre incompletas”, mas acredito piamente que fizemos
um belo trabalho.
Lançada a antologia de contos, era chegado o momento
de voltar a atenção para a publicação de uma antologia de
crônicas. Desta feita, a parceria na organização seria com
o professor Luiz Carlos Monteiro. A antologia Cronistas de
Pernambuco reflete um esforço literário de forte expressivi-
dade cultural, no sentido de trazer a lume escritores de pe-
ríodos diferenciados da vida e da história pernambucanas.
São autores de variada origem e tendência profissional e
artística, do século XIX até os dias atuais. A importância
dessa contribuição cultural evidencia-se pelo registro lite-
rário que tais autores empreenderam na forma da crôni-
ca, reunindo pequenos ou grandes acontecimentos, fatos e
eventos cotidianos que a notícia de jornal não pode expri-
mir com a poesia e a sutilidade que a crônica requer.
O mundo, cada vez mais individualista e fragmentado,
precisa unir-se, e uma antologia é uma tentativa de união.
João Cabral de Melo Neto mostra que a reunião de diver-
sos cantos é a responsável por uma grande manhã:

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“Um galo sozinho não tece uma manhã
ele precisará sempre de outros galos.
(...) para que a manhã, desde uma teia tênue
se vá tecendo, entre todos os galos.”
O sociólogo Renato Carneiro Campos, em um ensaio
intitulado Joaquim Nabuco: um agitador de ideias, afirma que,
se tivesse que escolher um Estado, na Federação, para re-
presentar D. Quixote, este Estado seria Pernambuco, pois
“Não lhe faltam magreza, loucura e sonho para tanto”.
Realmente, Renato tinha razão. Pernambuco, com suas
revoluções falhadas e seus movimentos libertários abafados
a ferro e a fogo, é uma espécie de D. Quixote da Federação.
Em virtude dos seus ideais republicanos, manifestados em
1817, quando foi proclamada a República de Pernambuco,
e em 1824, quando se desenrolou a Confederação do Equa-
dor, o território da antiga Província de Pernambuco perdeu
as Comarcas das Alagoas e a do São Francisco. Contudo, Per-
nambuco resistiu e nunca deixou de sonhar e de fazer arte.
Certa vez, Alceu Amoroso Lima disse que, quando o
Brasil está em crise, se volta para cá, para a região cortada
pelo Rio São Francisco, que é conhecido como o “Rio da
Integração Nacional”.
Que o sol de Pernambuco e a força de sua poesia e
de seus ideais libertários, forjados na luta de gerações,
acendam uma luz no meio da escuridão e nos mostre o
verdadeiro caminho da nação brasileira. A série Pernam-
buco em Antologias é exatamente isso. É um meio de mos-
trar ao Brasil e ao mundo o valor desta terra iluminada,
tanto pelo sol estampado em nossa bandeira, quanto no
valor histórico, cultural e intelectual do nosso povo. Além
de ser uma homenagem sincera que prestamos ao nosso
Estado e a cada um dos pernambucanos.

*Advogado, Escritor, Presidente do


Instituto Maximiano Campos (IMC).

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Prefácio
Cyl Gallindo

A segunda edição deste livro vale por um troféu, con-


quistado por Antônio Campos, presidente do Instituto Ma-
ximiano Campos, e por toda a equipe que dela participou.
Eu próprio que dei tudo de mim na sua elaboração estou
feliz. E muito especialmente se esta 2ª. edição traz a partici-
pação de Ariano Suassuna. Ariano, o épico, o modelo inspi-
rador de quantos fazem literatura neste País. Ariano e Zélia
o casal amigo de longas datas. Seu nome não havia sido
esquecido e a sua ausência doía-me como espinha de peixe
atravessada na garganta. Reparada essa falta, grito: Ariano
Suassuna participa da PANORÂMICA DO CONTO – Em
Pernambuco. Veio juntar-se aos grandes nomes que fizeram
de Pernambuco o seu domicílio cultural. E com ele veio o
jovem escritor Carlos Newton, completarem o motivo desta
2ª. edição, revista dentro das normas da nova ortografia da
língua portuguesa e ampliada. Há falhas, tenho consciência
disso, mas também sei da quase impossibilidade de incluir
todos os nomes daqueles que viveram Pernambuco.
Relendo a apresentação feita para a primeira edição,
agora nomeada de Prefácio, aceitando sugestões de outros
escritores, graças a sua ampla estrutura, por situar histo-
ricamente a obra, justificá-la e descer a detalhes estéticos,
verifico que as alterações serão poucas, mas relevantes.
Relevantes pelo que corrobora com as teses aqui expostas,
como é o caso da importância da Literatura praticada no
Nordeste brasileiro, em relação à Literatura brasileira, ou
o que se define como Literatura.
Estava fora das minhas cogitações a ideia de produzir
mais uma antologia de autores pernambucanos.
As coletâneas são como as publicações de obras comple-
tas de autores vivos: ficam sempre incompletas. No entanto,
diante do convite de Antônio Campos, presidente do Insti-
tuto Maximiano Campos (IMC), dando-me plena liberdade
na seleção dos participantes, nas Notas e na Apresentação,
não pude recusar essa tarefa. E com a evolução do trabalho,
pude ver no filho do meu amigo Maximiano Campos a fir-
meza de propósito e o grau de cidadania por ele exercida, a
confirmar a linhagem de descendência do estadista seu avô
Miguel Arraes. Todo o período de elaboração da obra, do
qual ele participou atenta e minuciosamente, transcorreu
em harmonia e entendimento.
O exemplo de uma obra de arte estava na minha mão,
como marco histórico da literatura pernambucana, quiçá
brasileira, produzida pelo próprio Antônio Campos e por
Cláudia Cordeiro: a coletânea Pernambuco, terra da poesia:
um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI ao XXI –,
prefácio de Hildeberto Barbosa Filho e orelhas de Gilber-
to Mendonça Telles, IMC-PE/Escrituras – SP, 2005.
Ademais, mesmo tendo organizado a Agenda poética
do Recife: antologia dos novíssimos –, honrada com o prefá-
cio do poeta Joaquim Cardozo e notas de Audálio Alves,
Mauro Mota, Pessoa de Moraes e Aguinaldo Silva; e mais
duas outras de contos: O urbanismo na literatura e Contos
de Pernambuco, e acreditasse que minha missão estivesse
cumprida, sentia no imo da consciência que algumas ver-
dades precisavam ser ditas sobre a Literatura Brasileira e
sobre o Nordeste. A oportunidade era chegada: organizar
uma obra, com textos de outros autores, muitos deles in-
telectuais incontestáveis, como Gilberto Freyre, Joaquim
Cardozo, Osman Lins, Ariano Suassuna e o surpreenden-
temente contista Barbosa Lima Sobrinho, mais Graciliano
Ramos, Clarice Lispector, enfim, uma obra que reunisse

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do primeiro contista pernambucano Medeiros e Albuquer-
que até inéditos como Liana Ribemboim, Pietro Galindo
e Luiz André Negrão, metade do recado estaria dado.
A outra metade, tentarei transmitir com a seguinte ex-
plicação: Fala-se demais em Literatura Brasileira, em que
se apontam Machado de Assis, Olavo Bilac, Raul Pompéia,
Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Carlos Drummond
de Andrade, e uma lista imensa de grandes autores cario-
cas, paulistas, mineiros, paranaenses e gaúchos. Acontece,
porém, que a literatura de um país, de um Estado, de uma
região, por mais que se enquadre na definição do poeta
Manuel Bandeira: Literatura é arte que se exprime por meio
de palavras, não é constituída apenas da obra de um autor
isolado, por importante que seja esse autor e grandiosa
que seja a sua obra.
No conceito de Aurélio Buarque de Holanda: Litera-
tura é um conjunto de trabalhos literários dum país ou duma
época. R. W. Emerson, mesmo que omita o indispensável
termo conjunto, é um pouco mais exaltado e preceitua:
Literatura é a expressão pessoal das nacionalidades. Ajuntan-
do os dois conceitos, Antônio Cândido conclui: ...convém
principiar distinguindo manifestações literárias, de literatura
propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas
por denominadores comuns.
Denominadores comuns que, no meu entendimento,
definem a Literatura como conjunto de obras profunda-
mente entrelaçadas, entre si, com conexões estabelecidas
pela palavra, com o som, a cor, o espaço, o volume, o mo-
vimento, e o senso abstrato do ser, entre todas as demais
artes, que revelem um povo, uma região, um estado, um
país, ou mesmo uma época.
Longe de mim está a pretensão de negar o valor de
qualquer um desses grandes escritores nacionais. Mas não
vejo meios de amarrar a obra de Machado de Assis à de
Simões Lopes Neto ou de Erico Verissimo, ou à de Carlos

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Drummond de Andrade, ou à de Dalton Trevisan, nem às
de centenas de outros intelectuais das demais regiões do
País, em todas as épocas. São valores indiscutíveis, mas in-
dividuais, desagregados, dissociados uns dos outros. Eles
não compõem o tal conjunto de obras, como expressão pes-
soal da nacionalidade, salvo exceções como Macunaíma,
de Mário de Andrade; Cobra Norato, de Raul Bopp; livros
de Monteiro Lobato; a pintura de Portinari, que realmen-
te são obras de identidade brasileira, grandiosas e sem frau-
de, no dizer de Oswald de Andrade saudando Cobra No-
rato. A não ser que se invoque a linha urbana explorada
pela maioria deles, desde Machado de Assis, ou mesmo
antes, mas perfeitamente identificada como produto de
importação. Especialmente porque é temerário falar de
urbanismo, neste país, ainda hoje, onde o anacrônico e o
hodierno se cruzam nas avenidas das grandes cidades de
todas as regiões, ou até mesmo no interior das residências.
J. Baptista Chabot define cidade por suas funções e por um
gênero de vida e os elementos menos visíveis, mas indispensáveis
da noção de cidade: passado histórico ou forma de civilização,
concepção e mentalidade dos seus habitantes.
O que me leva a dizer que urbanismo é mais um apu-
rado complexo de civilização científico-artístico-tecno-
crática do que simples agrupamento humano, residente
em casas ou edifícios dispostos em logradouros. Nos paí­
ses altamente civilizados, citadinos e rurícolas, até certo
ponto, formam uma sociedade única, participam de uma
mesma civilização e de um mesmo mercado econômico,
como constatei visitando o interior da Holanda.
Não se pode esconder que alguns autores, como Carlos
Heitor Cony, em Tijolo de segurança, e José Condé, em Noite
contra noite, já se lançaram com revelações de uma angústia
urbano-burguesa, mas não deixam de ser atos isolados.
Enquanto as obras produzidas pelos autores nordesti-
nos, como que perpassadas por um fio de Ariadne, desde o

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Romantismo, apresentam criações profundamente entrela­
çadas umas às outras, com reflexo de todas as demais artes
produzidas na região.
Assim sendo, podemos afirmar que o Brasil tem uma
literatura, mas a espinha dorsal dessa Literatura Brasi-
leira está no Nordeste. E de tal forma mostra-se como
expressão pessoal da nacionalidade brasileira, pois nada
produzido neste país, em termos de cinema, teatro, ar-
tes plásticas, televisão, rádio, música, dança, gastronomia,
tem intrínseco o sentido de brasilidade sem que tenha raí­
zes na cultura nordestina.
Aqui há uma forte sinergia incontestável entre o passa-
do e o presente; o rural e o urbano; o popular e o erudi-
to, Deus e o Diabo, o sofrimento e o prazer. Os melhores
exemplos dessa expressão são as obras de Graciliano Ra-
mos e as de Ariano Suassuna. Este tornou eruditos per-
sonagens como João Grilo; compôs a sua obra-prima, o
romance A pedra do reino, dividida em folhetos, criou o
Movimento Armorial, com Cussy de Almeida, seguidos
por inúmeros artistas e escritores, com vista ao aproveita-
mento erudito dos valores populares, ruralistas e telúricos
do Nordeste. Ariano nas suas conferências é um Ascenso
Ferreira declamando, com a espetaculosa dimensão dada
por Manuel Bandeira no prefácio do livro Catimbó, ao pa-
tentear: quem não ouviu Ascenso dizer, cantar, declamar, rezar,
cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode ter ideia das
virtualidades verbais neles contidas, do movimento lírico que
lhes imprime o autor. Assim também se pode definir Aria-
no, ouvindo-o nas suas palestras, sem nenhum desmaio
das verdades que são ditas. Ele próprio as define de aulas
espetáculos. Já o mestre Graciliano, especialmente nas suas
Histórias de Alexandre, uma das mais cristalinas expressões
da cultura nordestina, continua a enfeitar as telinhas nos
programas humorísticos, sem que seu nome sequer seja
citado. É mentira, Terta?

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As razões dessa produção uníssona vêm dos tempos co-
loniais. A primeira delas foi a perda da hegemonia político-
econômica pelo Nordeste, o que resultou no isolamento, no
esquecimento e no empobrecimento da Região. Seguem-se
as adversidades climáticas, causadoras das secas e estiagens
e promotoras da fome, da desnutrição e das doenças, tão
bem demonstradas por Josué de Castro e Nelson Chaves.
Outra mais é a posição geográfica do Nordeste: exceto na
banda leste, a nos oferecer a luz do sol nascente e as águas
oceânicas, nos demais pontos cardeais, todos os nossos limi-
tes são com o próprio Brasil. Noutras regiões, cada Estado
limita-se com um ou dois países de cultura hispânica, in-
clusive na região Norte, não obstante, aí, a influência seja
quase nula, porque ainda lhe cabe a definição do paraense
Leandro Tocantins, que é: um mundo de água, um tanto de
terra e um quê de gente. Gente que já nos deu José Veríssimo,
Artur César Ferreira Reis, Thiago de Mello, Astrid Cabral,
Benedito Monteiro, e uns tantos mais jovens, todos de boa
cepa. No Centro-Sul, as fronteiras eram intestinas, delimita-
das pelos muros dos consulados e das embaixadas, algumas
das quais exercendo mais poderes sobre a nossa vontade do
que os governantes tupiniquins. Veio daí o ar cosmopolita
das suas grandes cidades, e o hábito de olhar quase que
exclusivamente para o exterior, para as nações mais desen-
volvidas, em detrimento dos reclamos das demais regiões
e dos países vizinhos. Dessa forma, as diferenças regionais
viraram fossos intransponíveis, geradores de muitos brasis,
naquilo que poderia ser uma única nação.
O cruzamento de europeus, negros e índios, segundo
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro, engendrou esse povo bra-
sileiro, de etnia singular no mundo.
No Nordeste não se formaram bolsões étnicos como
no Sul e Centro-Sul. Jamais, por aqui, o papa João Paulo
II teria uma recepção tão polonesa como a que teve em
Santa Catarina; nem o imperador Hiroito, tão japonesa

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como a que lhe foi oferecida em São Paulo. Quem se fixou
no Nordeste virou brasileiro, nesses quinhentos anos.
Dos tempos coloniais, apesar das perdas, contamos
com a presença de Maurício de Nassau, que para aqui
trouxe uma plêiade de intelectuais: pintores, como Albert
Eckhout e Frans Post, botânicos, como Georg Marcgra-
ve, e médicos como William Piso, mais arquitetos, geó-
grafos, religiosos, historiadores, cartógrafos, estes autores
do Atlas Vingboons, contrastando com a grande maioria de
mercenários e degredados enviados pelos ibéricos.
A verdade é que no Recife edificou-se a primeira Sinago-
ga das Américas, a Kahal Zur Israel; e em Igarassu, a primei-
ra Igreja Católica do Brasil, a dos Santos Cosme e Damião;
assim como existiram, por certo, muitos centros de Xangô,
ao lado dos Ouricuris, indígenas, que foram engolidos pelo
tempo. Europeus cultuavam Cristo; negros, Xangô; e indí-
genas, Tupã. A diferença não tinha importância.
Importa, porém, é frisar que pela primeira vez se viveu
uma democracia religiosa nas Américas. Tudo isso sob a
visão calvinista, intolerante nos Países Baixos, mas liberali-
zante na colônia. E na época em que predominava o Santo
Ofício, com a Inquisição, para quem índios e negros não
tinham alma e podiam ser mortos como os gados.
Pela primeira vez um governante pretendeu pagar sa-
lário ao trabalhador braçal, exatamente índios e negros.
Pela primeira vez uma cidade foi urbanizada e saneada.
Foi estabelecida a liberdade de comércio. Aqui foram es-
critos os primeiros poemas da Literatura Brasileira, por
Bento Teixeira, e pela primeira vez a nossa História foi
escrita, por Barlaeus, e tantas coisas mais que dariam
tratados, como têm dado os ensaios de Evaldo Cabral de
Mello, José Antônio Gonsalves de Mello, e alguns outros.
Para fechar o assunto, lembro que ainda hoje se fala
em Maurício de Nassau, mesmo que os seus palácios te-
nham sido varridos do mapa da cidade do Recife, e se põe

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em questão se o Nordeste sob seu governo não teria outra
feição, diferente da atual. Vale dizer sobre as influências
do século XVII, que não se perderam por completo no
tempo, pois ainda vivem na documentação que vem sen-
do estudada, no imaginário fantástico do pernambucano,
em torno dessa ocupação e nas centenas de Lendas que
corriam Brasil afora. Lendas já em grande parte reunidas
no livro O holandês imaginário – lendas do Brasil Holandês,
idealizado por Pablo Marcyl Bruyns Gallindo e produzi-
do por Ann Blokland e Judith de Jong Andrade Oliveira,
editado pela CEPE, Recife, 2007, sob patrocínio da Em-
baixada do Reino dos Países Baixos/ABN-Amro Bank.
Com o isolamento e o esquecimento impostos, o nor-
destino criou os seus próprios meios de sobrevivência ma-
terial e emocional. Temática é o que não lhe falta. Bro-
ta na própria carne. Anote-se que autor nenhum pode
arrogar-se proprietário de uma temática. Quem se pode-
ria proclamar dono do amor, das guerras, do sofrimento,
da fé, da ganância, da traição, da vingança, do encontro
e desencontro, da exploração do homem pelo homem,
com patriarcalismo, feudalismo e a mais-valia, da fome,
da miséria e de milhões de motivos que geraram e geram
as literaturas de todos os povos? Adicionem-se a esses in-
gredientes, a despeito de tantas adversidades, a alegria
de ser, a música, a dança, a luz, o calor, que terá como
resultado um Nordeste com uma forte literatura, ou um
só corpo cultural e, como diz Emerson, como expressão
da nacionalidade. Expressão esta que Euclides da Cunha
afixou na História com esta frase irretocável: O Nordeste é
o cerne da nacionalidade brasileira.
Além do legado colonial, o misticismo, nesta terra,
que atingiu seu ápice na figura de Antônio Conselheiro,
magistralmente retratado por Euclides da Cunha, em Os
sertões, criou uma quase dinastia mística, ao transmitir sua
liderança à figura do Padre Cícero Romão Batista, tam-

20
bém de atuação belicosa, ao lado de Floro Bartolomeu,
no Ceará, descrita por Rui Facó em Cangaceiros e fanáticos.
Com acentuada queda de autoridade, porém de gran-
de significado no terreno religioso/místico, permaneceu
até poucos dias Frei Damião, prometendo o fogo do infer-
no para os amancebados e para os descrentes das leis de Deus.
Os coronéis e senhores de engenho, patriarcalistas e feu-
dais, fizeram uma história particularista nas fazendas e
engenhos de cana-de-açúcar, assim como os fazendeiros
de cacau, na Bahia, e os cangaceiros, em toda a região,
souberam marcar suas presenças nos anais do Nordeste,
com o suor e o sangue das senzalas. Senzalas que também
fizeram história com seus quilombos, com reverências ao
Quilombo dos Palmares.
Todo esse caldeirão exigiu um especial tratamento da
parte dos intelectuais. Motivou uma grande criação ar-
tístico-literária e fez de cada nordestino um artesão do
próprio sentimento. E quase todos souberam dar a sua
contribuição, desde os grandes romancistas, teatrólogos,
musicólogos e poetas eruditos, até os romancistas, teatró-
logos, musicólogos e poetas populares e semianalfabetos.
Aqui, enquanto Manuel Bandeira ameaça ir embora para
Pasárgada, Manoel Camilo dos Santos relata sua Viagem a
São Saruê; Cícero Dias e Vicente do Rego Monteiro pon-
tuam, em Paris, ao lado de Picasso; Dila e J. Borges gra-
vam nas feiras do interior; Ariano Suassuna produz Auto
da Compadecida, João Ferreira de Lima descreve as Proezas
de João Grilo; o poemário de Ascenso Ferreira veio, quase
todo, da boca do povo; a famosa música Águas de março,
arranjada pelo maestro Tom Jobim, já era cantada pelo
meu avô, talvez sem esse título. Vem daí a reação popu-
lar à sua utilização na propaganda de um refrigerante de
uma multinacional. E não para nesses exemplos.
É quase impossível separar um autor de outro, uma
obra de outra: O fio que desponta no século XVII passa

21
por Gonçalves Dias, Castro Alves, costura Franklin Távora,
José de Alencar, Aluísio Azevedo, Augusto dos Anjos, Ma-
nuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Luís da Câmara
Cascudo, Jorge de Lima, Ascenso Ferreira, Gilberto Freyre,
Hermilo Borba Filho, Jorge Amado, Rachel de Queiroz,
José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano
Ramos, Osman Lins, até escritores atuais como Ferreira
Gullar, Luiz Berto, Gilvan Lemos, Maria do Carmo Barre-
to Campello de Melo, Vamireh Chacon, Maximiano Cam-
pos, Marcus Accioly, Ângelo Monteiro, Alberto da Cunha
Melo, Raimundo Carrero e todos os nomes que compõem
esta Coletânea. Fio esse que sobe aos céus e desce aos in-
fernos, e tece, e tece, ora com a temática, ora com o voca-
bulário, ora com o ritmo e se desembesta e se mistura às
outras artes, nessa contagiante magia atemporal. Isso é a
Literatura produzida no Nordeste.
Como separar desse contexto a música do rei do baião
Luiz Gonzaga, o mestre Sivuca, Capiba, Caymmi, Nelson
Ferreira, Cussy de Almeida, Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Alceu Valença, Lia de Itamaracá, e os cultores das nossas
centenas de ritmos? Na cerâmica, do erudito Francisco
Brennand a artesãos como o mestre Vitalino, de Caruaru,
e Ana das Carrancas, de Petrolina? Os gravuristas Dila e J.
Borges? No entalhe, do inconfundível Corbiniano Lins ao
mestre Nosa, de Juazeiro? Todos eles com sutis expressões
inseridas no trabalho pela antememória. O núcleo, ou
epicentro dessa explosão cultural, foi e é o Recife. Como
ensina Gilberto Freyre, no prefácio de Tempo dos flamengos,
de Gonsalves de Mello, Cidade que, na sua história intelectu-
al, é quase tão dos sergipanos e dos cearenses, dos paraibanos e
dos rio-grandenses-do-norte, dos maranhenses e dos paranaen-
ses, e tão do Brasil inteiro, e não apenas de um Estado ou de uma
região, como o Rio de Janeiro e a Bahia...
Razão essa que impõe a inclusão de autores nascidos
em Pernambuco e daqueles que têm formação intelectual

22
pernambucana. Para quem Lêdo Ivo receitou: Amar mu-
lheres, várias. Cidade, só uma, o Recife.
Para categorizar a força e a importância da cultura nor-
destina, cito apenas dois grandes exemplos, com trabalhos
estruturais, pela adesão a essa realidade brasileira: O pri-
meiro deles é Euclides da Cunha, natural de Cantagalo,
Rio de Janeiro, que ao tomar conhecimento de Canudos,
apontada como foco antirrepublicano, saiu do Sul para a
Bahia, defendendo o extermínio do Conselheiro e seus
jagunços. Uma vez no palco da guerra, ao fazer as suas
anotações, das quais resultou o livro Os sertões, concluiu
essa monumental obra com a declaração de que o que pre-
senciara fora um crime, e lamenta que ainda não exista um
Mauds­ley para as loucuras e os crimes das nacionalidades.
Mas a importância dessa obra não está apenas no fato
de ele reconhecer o erro do prejulgamento, como tan-
tos outros, ainda hoje, feito sem conhecimento de causa
daquela comunidade. A obra, em si própria, tornou-se,
perante o mundo, a mais importante da historiografia na-
cional, traçou um perfil exato deste país, por ter coragem
de reconhecer e comprovar que o Nordeste é o cerne da na-
cionalidade brasileira.
O segundo exemplo é Guimarães Rosa. Para falar do
autor de Sagarana, antecipo que o Brasil está dividido em
cinco regiões, o que não existe. Uma região não é defi-
nida por um grupo de geógrafos num escritório. O que
determina uma região são a fauna e a flora nela existentes
ou inexistentes. Dessa forma, no Brasil há apenas quatro
regiões: da Serra da Mantiqueira para a bacia do Prata
temos a região Sul; no lado oposto, com a bacia do São
Francisco, a região Nordeste, que se estende de Minas Ge-
rais até a metade do Maranhão. Daí em diante, começa a
bacia amazônica, que forma a região Norte. Para Oeste,
tem-se o Planalto Central, ou região Centro-Oeste. Pode
haver trechos formando sub-regiões, mas região, mesmo,

23
não há. O São Francisco é considerado o rio de integra-
ção nacional, pelo fato de que por ele descem as águas, e
navegam as embarcações levando notícias, hábitos, costu-
mes, fuxico, rezas, pragas, e mil coisas menos visíveis, mas
que vêm a redundar no cerne da nacionalidade, captado
por Euclides. Se Guimarães Rosa tivesse descido em dire-
ção à bacia do Prata, por certo teria escrito um Ulisses à
brasileira. Como desceu para o São Francisco, o resultado
foi Grande sertão: veredas.
Assim entendido, Euclides e Guimarães Rosa, ao lado
de Gilberto Freyre, com obras estruturais, constituem os
principais elementos anatômicos dessa coluna vertebral
chamada Literatura Brasileira.
Quem quiser, através da Literatura Comparada, pode
conferir, a começar pelos 116 autores, enfeixados nesta
Panorâmica do conto em Pernambuco, sem a pretensão de
reunir obras-primas, selecionada a partir da leitura de
quase 500 trabalhos, seguindo a orientação estabelecida
pelo Instituto Maximiano Campos (IMC), a exemplo do
trabalho realizado com a poesia.

Recife, 15 de maio de 2007

24
Natal com criminosos
Abdias Moura

No dia 20 de dezembro de 19..., recebi em casa uma


ligação telefônica inesperada. No outro lado da linha, o
Juiz das Execuções Criminais do Recife, meu antigo cole-
ga de Faculdade de Direito, que poucos anos depois fale-
ceu, precocemente. Sua morte foi registrada como natu-
ral, mas não deixou de ser estranha, pois era muito jovem
e parecia gozar de boa saúde. O Atestado de Óbito falava
em “parada cardíaca”, mas nunca considerei essa consta-
tação explicativa da ocorrência. Penso que ela se aplica a
qualquer tipo de morte.
Não é disso, porém, que desejo falar, mas do telefo-
nema em si. Depois de me desejar Feliz Natal, extensivo
à esposa e aos filhos, o meu amigo magistrado fez um
pedido que me pareceu muito embaraçoso, mas não tive
condições de negar. Nós dois não nos havíamos encontra-
do, na realidade, desde o dia da formatura, mas tínhamos
tido na Faculdade uma convivência muito amigável.
Como, recém-formado, me mudara para o Rio de Ja-
neiro, e nunca me correspondi com o ex-colega, havíamos
perdido o contato. Nem mesmo o procurei, quando da
volta a Pernambuco. Só não digo que ele conseguiu meu
endereço no Catálogo Telefônico, porque a natureza do
assunto requeria que estivesse bem informado sobre mi-
nha vida familiar e profissional. Ele desejava simplesmen-
te que eu recebesse em minha casa, para jantar com a fa-
mília, na noite da comemoração do nascimento do Cristo,
dois detentos da Penitenciária Agrícola de Itamaracá, que
Natal com criminosos

haviam sido autorizados a passar a noite fora das grades,


como “prêmio ao bom comportamento”, mas não tinham
família no Recife. A única recomendação era a de que não
servisse bebidas alcoólicas.
Li, depois, que o bom juiz, idealista perfeito, premiou
igualmente vários outros detentos com esse indulto de
Natal, tendo se encarregado pessoalmente de conseguir
outros voluntários para completar sua boa ação.
De minha parte, naquele ano, mandei os filhos jantar
com parentes, e recebi em casa, com certa apreensão, os
dois desconhecidos de maus antecedentes. Eles foram tra-
zidos por um carro da Polícia, pouco depois das dez horas
da noite do dia 24, e apanhados de volta nas primeiras
horas do dia 25. Este não é um conto de suspense, por isso
prefiro logo antecipar que nada aconteceu de extraordiná-
rio, ou alarmante, na reunião. Os dois prisioneiros eram
pessoas simples e não me pareceram agressivos. Um mais
tímido, o outro falante, mas os dois inteligentes. Salvo pe-
quenas gafes, como a de lamber o dedo com que segurara
uma fatia de presunto, e molhar de xixi a tampa da privada
(comportamento reprovado mais pela minha companhei-
ra), saíram-se muito bem do teste de sociabilidade.
De início, a conversa se arrastou penosamente, mas aos
poucos conseguimos deixá-los à vontade, apesar da proibi-
ção de ingerir bebidas fortes feita pelo meu amigo magis-
trado. Não exibi garrafas, mas fiz pessoalmente um pon-
che, adocicado, contendo um pouco de vinho tinto tipo Ca-
bernet e uma quantidade bem maior de suco de uva, além
de refrigerantes variados. Seja como for, os dois comeram
bem, beberam um pouco e a partir de certo momento con-
versaram animadamente, sentindo-se à vontade, como se
estivessem em casa, num ambiente familiar.
Evitei perguntas sobre o passado de cada um, mas eles
próprios fizeram questão de dizer o que os levara à con-

26
Abdias Moura

denação, ambos por crimes de morte: um “por vingança”


e o outro numa briga “sem motivo”, iniciada numa mesa
de bar. O mais moço chegara a frequentar o ginásio, em
sua cidade do interior, tendo parado os estudos por se en-
volver no assassinato. Não pedi detalhes sobre o crime,
mas parece que ele conseguiu passar alguns anos foragido
noutro Estado, antes de ser preso. Por isso, interrompeu os
estudos. O mais velho fizera apenas o curso primário, mas
disse que gostava muito de ler revistas e às vezes livros. Até
brincou: “Condenado a tantos anos de prisão, tive de virar
intelectual, e hoje sei mais do que muito doutor que conhe-
ço”. Não tomei essa declaração como ironia.
Para fugir de assuntos pessoais, fiz aos dois uma pergun-
ta que provocou muita discussão, mas em nível civilizado:
“Como será a celebração do Natal, no próximo século?”
– Completamente diferente de hoje – respondeu o que
gostava de leituras. E continuou: – O mundo vai se trans-
formar numa grande penitenciária aberta. Não precisa ter
cometido crime, cada um passará o Natal em seu peque-
no espaço parecido com os de uma prisão, com banhei-
ro privativo e uma cama tipo hospitalar. Na parede, uma
grande tela de televisão. As imagens vão se sucedendo,
coloridas, e aparecem as festas de todo os cantos da terra.
Os alimentos da ceia serão trazidos na hora, mediante um
código de escolha de cardápio, com registro automático
na conta bancária.
Devo acentuar que, na época dessa conversa, que ago-
ra relembro, a televisão no Recife se limitava às iniciativas
pioneiras de Assis Chateaubriand e F. Pessoa de Queiroz,
com a TV Tupi e a Jornal do Commercio transmitindo
apenas programas locais, em preto e branco. Também
não havia pagamento com cartão de crédito, nem movi-
mentação de contas bancárias por telefone, que só apare-
ceram anos depois.

27
Natal com criminosos

O outro visitante corrigiu, com veemência bem-educa-


da, a opinião do companheiro.
– Ora, para mim – disse ele –, o Natal será como sem-
pre foi. Jesus é o mesmo, a humanidade é a mesma. Esse
negócio de “penitenciária aberta” é fantasia. Quem esti-
ver condenado vai ver as estrelas dentro da prisão, com
aquela ceia horrorosa que fazem todos os anos. A não ser
que apareça outro juiz humano como o doutor Antônio
Luiz e deixe dois ou três jantar na casa de uma família
distinta como esta. Eu quero aproveitar para agradecer ao
casal o que estão nos oferecendo... Houve um momento
de silêncio, ficando todos a esperar o que mais iria dizer,
até que o outro retomou a palavra.
– Eu também agradeço pelo jantar. Estar aqui fora da
prisão prova que as coisas estão mudando. Lá dentro das
grades ninguém nota direito como está o mundo, mas a
verdade é que tudo está diferente cá fora. Estamos viven-
do um novo Renascimento, como aquele que acabou com
o mundo em que os padres mandavam em tudo.
Eu senti, nesse exato momento, que o outro presidiá­
rio não prestava a menor atenção ao que dizia seu compa-
nheiro (penso mesmo que percebi um brilho de lágrimas
em seus olhos). Parecia comovido. Poderia ser o efeito do
vinho, mesmo em quantidade tão pequena? Pensei em di-
zer também qualquer coisa sobre o Natal, para atrair a sua
atenção. Pessoalmente, acho que o mundo está sempre
mudando, mas devo esclarecer que na época dessa con-
versa não se falava em microcomputador muito menos na
internet, ou globalização. Falava-se, sim, em internacio-
nalismo, em trustes e cartéis, em crescimento e decadên-
cia das civilizações. Mas já estava começando a entrar na
onda a teoria do desenvolvimento econômico, como se o
bem-estar coletivo estivesse ao alcance de todos os povos,
por vias diferentes daquelas pregadas pelo cristianismo

28
Abdias Moura

ou pelo socialismo. Eu poderia talvez aproveitar a refe-


rência do presidiário à palavra renascimento, para dizer
que nossa época tinha alguma coisa em comum com o fim
da Idade Média. Mas não disse isso. Anotara, no tempo
da Faculdade, que quando a palavra renascença foi escrita
pela primeira vez na França (em 1553) pelo escritor Be-
lon, no livro Les observations de plusieurs singularités, muitos
pensaram que se estava anunciando o fim do cristianis-
mo, talvez a vinda de um novo Deus. No entanto, os pro-
testos de Lutero contra os erros da Igreja resultaram no
surgimento da Ordem de Cristo para pregar a Contrarre-
forma. O Natal continuou a ser comemorado na Europa,
e também nas terras recém-ocupadas das Américas, por
protestantes e católicos. Mas preferi me manter em silên-
cio. Os outros também continua­ram calados.
Quem salvou a reunião foi minha companheira, que
resolveu pôr na radiola um disco com cantos de Natal.
Com a magia da música, o presidiário que primeiro falara
retornou à palavra. Disse ele:
– É, tudo muda, e a comemoração do Natal também.
Lembro-me que em criança minha mãe enfeitava a sala com
bonecos que representavam a cena da Manjedoura: o Cristo
menino, José e Maria, o boi e o burro, os pastores e os reis
magos com seus presentes. Sempre achei muito lindo, e sei
onde começou isso. Era uma tradição deixada por São Fran-
cisco de Assis, trazida pelos portugueses para o Brasil.
O outro disse que preferia as comemorações com os
presentes e as árvores de Natal.
– Influência norte-americana, acentuou o seu compa­
nheiro de prisão. A Lapinha foi sendo substituída pela ár-
vore de Natal, o menino Jesus pela figura do Papai Noel,
um homem muito bondoso, que morou em um país onde
havia muita neve e muito frio. Não se pode negar que mui-
ta coisa mudou, mas eu prefiro o Natal de antigamente.

29
Natal com criminosos

Minha companheira, que pouco havia falado, disse


pensar que o hábito de dar presentes estava ligado à tra-
dição referente aos Reis Magos, que trouxeram ouro, in-
censo e mirra para o menino da Manjedoura.
– Muito conveniente para o comércio – advertiu o que
falara por último.
– E, sobretudo, injusto para os muitos pobres. Quan-
do eu era garoto, acordava cedo no dia 25 de dezembro,
para ver o que havia sobre o meu sapato deixado junto da
cama. Minha mãe era professora e eu já dormia sabendo
o que iria encontrar: um livro de histórias (de Anderson,
de Grimm, de Monteiro Lobato). É por isso que eu gosto
tanto de livros...
Cada um contou então os tipos de presentes que re-
cebia na infância. E a conversa continuou assim, ingê-
nua e simples até a hora em que o camburão da Polícia
Judiciária chegou para apanhar de volta os prisioneiros.
Quem não reparasse nesse pormenor, poderia pensar que
se tratava de uma Ceia de Natal comum, celebrada entre
parentes e amigos. Para mim, tornou-se inesquecível, so-
bretudo depois que a morte prematura levou para outras
paragens o meu ex-colega de Faculdade, Juiz Corregedor
Antônio Luiz Lins de Barros. Penso que, desde então, ele
comemora o Natal ao lado de Cristo, tendo à mesa o bom
ladrão da cena do Calvário e, quem sabe, alguns homens
que cumpriram pena em prisões brasileiras.

30
A menina
Admaldo Matos de Assis

O quarto tinha paredes altas e brancas. A porta, tam-


bém alta, de madeira maciça, pintada de azul e encimada
por uma abertura a que chamam de bandeira.
Estava na cama, em decúbito dorsal, olhando o telha-
do escuro. Tentava conciliar o sono, olhando o telhado
muito alto e escuro, onde uma telha de vidro projetava
facho de luz sobre a parede, pois era noite de lua cheia.
Não sou dado a perder o sono. Pelo contrário, durmo
pesada e continuamente, não havendo pancada, chamado
e barulho comum que me despertem. Dizem que ronco e o
meu roncar incomoda não só quem divide comigo o quar-
to, mas os que dormem na mesma casa. Naquela noite, per-
dera o sono sem motivo: alimentara-me frugalmente, não
tivera contrariedade ou excitação alguma, sequer dormira
a sesta. Salvo um pouco de calor, no quarto de paredes altas
e brancas, desprovido de ventilador e de ar-condicionado,
nenhuma outra justificativa havia para a insônia.
Não sei durante quanto tempo, enquanto todos dor-
miam e o silêncio era sepulcral, fiquei na cama, olhando
o telhado, a réstia de luar, tentando pacientemente ador-
mecer.
Como tenho prazer da reflexão, aproveitei o espaço
aberto pela insônia para ocupá-lo como voos longínquos,
alçados deliberadamente, na expectativa de que o sono,
como uma aranha, de forma imperceptível, me acolhesse
em sua teia suave.
A menina

Pensava na finitude ou infinitude do espaço, na eter-


nidade ou não do tempo, no sentido da vida, no vazio da
morte... Refletia sobre todas essas questões que as ciências
exatas não demonstram, a Filosofia não esclarece, a Teolo-
gia, ao explicar, não convence. Sempre que penso na mor-
te, não como fenômeno físico ou circunstância natural, mas
como o vazio antagônico do meu ser, o adeus definitivo à
vida, meu racionalismo cartesiano cede lugar a temor orgâ-
nico, verdadeiro pavor animal. Naquela noite, sucumbido
pela insônia, pensei na morte e senti calafrio de medo.
Só tardiamente compreendi que o exercício do pensar
e o ato de dormir são inconciliáveis. Mas, quando me ad-
verti, as asas do pensamento tinham voado longe demais,
durante um lapso de tempo não medido, que poderia ter
a duração de um minuto ou a de uma noite inteira.
Embora fosse noite alta, não estava imerso na escuri-
dão, mas na penumbra do quarto de paredes altas e bran-
cas, porque, além do luar coado pela telha de vidro, havia
uma réstia de luz vinda do corredor fronteiriço.
Não foi difícil vê-la, pequenina, com seu passinho cur-
to, entrar no quarto, arrastando um lençol branco, sem
saber ao certo para onde ia.
– Minha filha, venha cá – disse-lhe baixinho. – Filhi-
nha, venha cá – repeti, supondo que não me ouvira.
Não eram aqueles olhos – grandes e negros – mas o
olhar que vinha deles que me transmitia medo, como se
a menina estivesse em perigo, me pedindo socorro, na
solidão do quarto de paredes altas e brancas.
Aqueles olhos, grandes e negros – mas o olhar, que me
transmitia medo, como se a menina estivesse em perigo,
me pedindo socorro, na solidão do quarto de paredes al-
tas e brancas.
– Filha, me dê um abraço – disse-lhe baixinho, quase
sussurrando, na suposição de que, desperta em meio a
um pesadelo, estivesse amedrontada.

32
Admaldo Matos de Assis

Ela se aproximou e percebi que estava fria, cheirando


mal, cheia de urina dos pés à cabeça, inclusive o lençol,
que arrastara do seu quarto até o meu.
– Estou com frio – foi tudo que ela me disse, não sei se
com a voz de choro ou se apenas com os olhos – grandes
e negros – que insistiam em me lembrar os de alguém que
eu não conseguia identificar.
Rapidamente a despi da calcinha, da fralda, da cami-
sola fina; afastei o lençol preso em uma de suas mãos;
enfim, a livrei de todos os panos frios, encharcados de uri-
na, e a abracei com o meu pijama de algodão de mangas
longas, para desumidificar e aquecer seu corpinho frágil.
Com ela nos braços, fui ao seu quarto, depositei as ves-
tes e o lençol molhados na cesta de vime destinada à rou-
pa suja, peguei na cômoda branca calcinha, fralda e cami-
sola enxutas, além de uma toalha felpuda, para lavar-lhe
o corpo pegajoso e livrá-la do cheiro acre do xixi.
O banheiro era enorme, revestido de azulejos bran-
cos e encardidos, lavatório, bacia sanitária e bidê de louça
igualmente branca, e, no alto, um velho chuveiro de me-
tal, de onde pendia mangueira transparente, com a qual
dei um banho morno na menina, enxugando-a e vestin-
do-a rapidamente.
Durante esse tempo, continuou a me olhar com seus
olhos – grandes e negros – que me davam a impressão de
estar em perigo e suplicar proteção.
Foi tentando decifrar a mensagem do seu olhar pro-
fundo que acordei sobressaltado. Durante algum tem-
po, após despertar, ainda tinha dúvidas se atravessara a
fronteira do sonho à realidade ou o contrário. Quando
tive certeza de que estivera sonhando (o sonho mais real
de toda minha vida), fui tomado pelo terrível pressenti-
mento de que alguém em casa ou, talvez, um parente, um
amigo estivesse em perigo. Verifiquei que minha mulher,
ao lado, dormia sono calmo. Intranquilo, fui ao quarto

33
A menina

das minhas filhas, ambas moças feitas, onde não constatei


qualquer anormalidade. Ainda temeroso, percorri todo o
apartamento e observei estar tudo na mais perfeita or-
dem. Um pouco aliviado, mas ainda preso do mau pres-
sentimento, voltei ao leito e assisti, de olhos abertos, ao
amanhecer. No dia seguinte, não me chegou notícia de
morte, acidente ou fato desagradável envolvendo pessoa
de minha amizade. Finalmente – pensei – havia me im-
pressionado demais e sem motivo com mero sonho, sem
maiores consequências.
Ocorre que, na noite seguinte e nas semanas subsequen-
tes, o mesmo sonho se repetiu com pequenas variações.
Agora, tão logo a menina entrava no quarto de paredes
brancas e altas, eu já tinha coragem de chamá-la, e nem era
preciso, porque ela se dirigia a mim, com passo miúdo, os
mesmos olhos – grandes e negros – e o mesmíssimo olhar
de quem pedia socorro. O pior – e para mim incompreen-
sível – é que, no decorrer de cada sonho, me lembrava do
anterior, como se a cada vez não estivesse sonhando.
Os parentes e amigos me consideravam homem de co-
ração duro e extremamente racional. Apesar de toda essa
dureza e racionalidade, a repetição daquele sonho trans-
tornou-me a vida. O quarto de paredes altas e brancas, a
porta, encimada por uma bandeira, e a réstia de luar me
envolviam numa atmosfera asfixiante. Os olhos – grandes
e negros – da menina (lembrando os de alguém que eu não
conseguia identificar) e o olhar suplicando-me proteção me
causaram tão forte piedade e angústia que, a cada dia, to-
dos facilmente percebiam que eu dormira mal e amanhece-
ra tenso. Sempre achei que o sonho espelha, com maior ou
menor nitidez, imagens ou impressões do cotidiano recen-
te ou antigo; por isso, nunca me pareceu razoável sonhar
com o desconhecido, o nunca visto. Assim supondo, passei
a investigar, no curso de minha vida, que fato, imagem ou

34
Admaldo Matos de Assis

experiência teria ensejado o sonho dramático e repetido,


que me vinha transformando a vida num inferno.
Inicialmente, vasculhei a memória como se procu-
ra agulha num palheiro, buscando rosto de alguém, fo-
tografia, pintura que lembrasse aqueles olhos – grandes
e negros – que me pediam atenção, proteção, ou ainda
alguma construção (casa, igreja, escola, hotel, hospital)
que me tivesse inoculado no subconsciente a imagem do
quarto de paredes altas e brancas e daquela porta azul,
de madeira maciça, encimada por uma bandeira. A pro-
cura rigorosa nos escaninhos da lembrança resultou em
vão. Obstinado em resolver o mistério, consultei minha
mulher, com quem era casado há mais de vinte anos, e
meus pais, então vivos e lúcidos, se, em alguma época ou
lugar havíamos conhecido alguém que nos tivesse pedido
socorro (eu descrevia, com riqueza de detalhes, os olhos
e o olhar que vira em sonho). Ninguém recordava de ter
visto algo parecido com a minha descrição. Também lhes
indaguei se em alguma circunstância, próxima ou remota,
conhecêramos prédio que tivesse paredes altas e brancas
e a porta azul, encimada pela bandeira, que se repetia no
meu sonho. Quanto a isso, não me conseguiram ajudar.
Recorri aos álbuns de família, aos livros em que estuda-
ra e que ainda guardo comigo, visitei museus e galerias de
arte, dei-me até ao trabalho de percorrer, pacientemente,
os cemitérios onde algum dia estivera, à procura de uma
imagem, por simples que fosse, que servisse de chave para
esclarecer o segredo. Todo esforço resultou inútil.
Conversei sobre o sonho com um psicólogo renomado,
com o padre que me casou e batizou minhas filhas e com
um velho tio, espírita, que lera e relera as obras completas
de Allan Kardec. O que me disseram ou insinuaram, não
me pareceu convincente.
O sentimento de impotência que me afligia por não
socorrer aquela menina que, em sonho, repetia insistente-

35
A menina

mente o pedido de proteção, criou-me uma sensação tão


permanente e opressiva que comecei a retardar a ida para
a cama (lendo, escrevendo, assistindo à televisão madru-
gada adentro), evitando dormir, pelo medo de sonhar.
Esse sofrimento me consumiu durante meses, até o dia
(ou melhor, noite) em que o sonho se repetiu de forma
dife­rente. O quarto, as paredes, a porta e a réstia eram
os mesmos. Eu estava dormindo. A menina, a mesma me-
nina, acordava-me e passava a pentear os meus cabelos
suavemente, deliciosamente. Suas roupas estavam secas e
a sua camisola cheirava a alfazema. Os olhos – grandes e
negros – não mais expressavam medo; seu olhar já não
pedia socorro, mas me cobria de afeto.
Acordei. Mas continuei de olhos fechados, na vã tenta-
tiva de reatar o fio do sonho desfeito.
Nunca mais voltei a ter o sonho feliz, embora já se te-
nham passado quase dez anos. Dele ficou-me a sensação
de que me separei de uma filha querida, que me penteava
os cabelos com carinho e, felizmente, já não corria perigo
e nem me pedia proteção. Na minha vida, a angústia foi
substituída pela saudade.
Minhas filhas casaram e já chegaram netos. O aparta­
mento onde vivo cresceu, à medida que diminuíram seus
moradores. Agora, quando vou dormir, no meu coração
duro de homem extremamente racional, a cada noite, re-
nasce a esperança de que a menina – de olhos grandes e
negros – voltará para mim.

36
O exterminador
Alberto Lins Caldas

Sou um homem velho e cansado. Trabalho neste lugar


há muito tempo. Se me aposento, morro de fome. Por isso
ainda permaneço nesta mesa. Quando arrasto os pés pe-
los corredores, posso sentir nos moços o medo da velhice
e a intranquilidade provocada pela minha insignificante
figura. Quando tusso um pouco mais, percebo que todos
param apreensivos com o trabalho que dará minha prová-
vel morte. Um estorvo definitivo. Por isso fico tanto tempo
nesta mesa. Minha perna tem doído terrivelmente. Não
chega exatamente a ser uma dor, mas um mal-estar pesa-
do puxando os tendões, querendo explodir maldosamen-
te os músculos, como se minha perna existisse mais do que
a mim próprio. De tanto pensar e olhar para ela e alisá-la
como se fosse um cachorro, tenho esquecido o edifício, a
sala, os corredores e principalmente a mim mesmo. Mas
isso não é justo. Depois de tantos anos de trabalho, ficar
reduzido a cuidar de uma perna é mais que terrível. É
como se fosse o espelho da minha vida: uma perna que
não para de doer existindo mais que o dono. Por isso, é
bem mesmo talvez por isso, que me pus a escrever. Mas
não tenho sobre o que escrever. Minha vida é este edifí-
cio, estas salas, minha mesa e os papéis. Não vivi e isso
não dói mais do que a perna. Comecei agora a escrever
porque a perna dói insuportavelmente e já não tenho tra-
balho suficiente para esquecer a perna, os papéis, a sala,
o edifício. Se não fosse por isso, não me poria inutilmente
a gastar o papel e o lápis da repartição. Algum inquérito
O exterminador

poderia me aposentar ou mesmo me pôr na rua. Aí, sim,


teria de enfrentar miseravelmente a morte, a miséria e a
dor por dentro dos ossos da perna sem mais o conforto
da mesa conhecida, a cadeira com a marca do meu corpo,
a pintura gasta da sala, os corredores e o velho conhecido
edifício. Mas ninguém se importa mais com o que faço.
Temem os atropelos que a minha morte causaria. Por isso
mesmo não perguntam mais nada. É bem verdade que
não teria muito a responder. Com as modificações no ser-
viço, não conheço as novas exigências. Antes eram o lápis,
o papel, alguns carimbos, uns números conhecidos e tudo
fluía sem mistério. Esquecíamos o que estávamos fazendo
e podíamos sonhar. Só não podíamos fazer cara de sonho,
mas podía­mos sonhar. As máquinas de hoje não permitem
sonhos. Mas não quero continuar o assunto. É melhor es-
quecer. Esta sala é simples. Conheço até as pequenas ba-
ratas que nascem no verão. Acho que é no verão. Depois
de muito lutar, escondem-se nas rachaduras da madeira
velha. Às vezes tenho orgulho de ser um homem bom e
medo por ser bom. Medo porque eles podem querer me
devorar por uma simples folha de papel gasta por enfa-
do. Medo também da soberba. A bondade deve ser uma
virtude inconsciente. Tão inconsciente que poderíamos
flutuar ou mesmo correr sobre as águas sem afundar. Mas
eu sou de uma bondade dolorosa e triste. Não caminho
sobre as águas, é certo, mas em toda a minha vida não
fiz mal a ninguém. Somente a mim mesmo por não ter
fugido. Mas isso contribui ainda mais para minha bonda-
de. Mas bondade não é virtude que se encontre em muita
gente. Chegam mesmo a afiar a faca. Não ligo, não. Ve-
lho demais para sofrer com certos olhares que machucam
e risos que nos fazem chorar por dentro. Não ligo mais
nada, não. Parece que a velhice nos entorpece a alma com
tanta memória vã que não mais distingo esta sala desta

38
Alberto Lins Caldas

mesa ou esta perna deste lápis. Fica tudo sendo partes de


nós mesmos. Ainda por cima, a questão da bondade. Mas
eles não se importam com isso. Serpenteiam descarada-
mente de sala em sala. Não querem saber se estamos num
mesmo buraco. Fazem sofrer e eu sofro ou não sofro tanto
quanto sofria. Não sei se a bondade, a velhice ou a dor na
perna têm-me feito relevar as maldades. De qualquer ma-
neira não é nada importante. É apenas um homem que
vai apodrecendo em paz e sonha ser um homem bom e fe-
liz. Mesmo que jamais eu tenha sido feliz ou tenha vivido
em paz. Não importa. Queira deus tudo seja breve. Escre-
vendo esqueço a dor na perna, a sala, os papéis, onde as
letras se unem misteriosamente. Ainda não sei como leio
ou escrevo. Parece fácil. Mas eu não sei como acontece.
Como a imagem que é um mistério e mesmo o nada es-
curo de dentro se transformam em tão poucas letras que
se juntam em palavras que nascem de mim. Logo de mim
que não tenho história. Já pensei muito nisso. Não tenho
história e ponto final. Parece que não vivi. Olho para trás
e todos os segundos estão vazios. Dentro deles não existe
sequer uma saudade, um verso, um pôr do sol, uma coisi-
nha besta qualquer que valha a pena. Olho para frente e
os poucos segundos que me restam em nada diferem dos
segundos mortos. A minha vida foi um nada e não pude
ousar o contrário. O futuro somente agravará o puro es-
quecimento que foi a minha vida. Conheço esta mesa
como nenhum homem no mundo. Sei o conteúdo exato
das gavetas. Me conheço como as conheço. Meu tempo
se escoa como se fosse uma borra de café jogada pelo es-
goto. Sou dispensável, mas não guardo mágoa. Não sou
um homem mau. Sei que não fui nada porque nada dese-
jei, nada quis, por nada lutei. Então chorar por quê? Por
que tamanho desatino? Sou simplesmente um homem.
Um homem bom. Não consigo esmagar nem mesmo as

39
O exterminador

pequenas baratas que nascem dentro das gavetas. Nem


mesmo o ruído dos carros na rua nem mesmo o pouco
oxigênio desta sala me entristecem. O mundo sempre foi
para mim absolutamente estranho. Aqui dentro, não. Co-
nheço todo mundo e eles de uma maneira ou de outra me
conhecem. Somos todos uns vermes. Mas eles não sabem
disso. Isso nos distingue. Mas todos eles sem exceção de-
pois de quarenta anos de trabalho se olham no espelho e
descobrem que jamais foram humanos. Descobrem que
sempre foram vermes. Ninguém escapa. Comigo foi dife-
rente. Sempre soube que era um verme. Sou um homem
do meu tempo: não tenho história: estou fora da história:
não creio na história. Depois o nascimento das baratas.
Dediquei-me a elas quando escassearam os papéis. Sou
alguém que se perdeu num lugar conhecido. A morte já
não permite qualquer gesto além da rotina. Sou um ho-
mem bom: faço nascer as baratinhas que não conseguem
vir naturalmente ao mundo. Com um estilete apresso-lhes
o nascimento. As baratinhas estão nascendo. É bom vê-las
lutar pela vida, estender as patas e correr para um lugar
seguro, secar as asas, endurecer o corpo. Uma delas não
consegue sair do casulo. Ajudo-a. Faço-a sair. Acaricio-a
como a um pequeno filho. Recordo de mim. A peque-
na barata titubeia se deve procurar abrigo ou ceder ao
cansaço e à morte. Por um momento eu sou o minúsculo
inseto. Sinto frio. O mundo é infinito e terrível. O horror
dentro do horror. Lá em cima um monstro se move e eu
sinto medo. Um inseto, meu deus, é a mesma coisa que
um homem. Retorno a mim e choro por tudo o que é vivo
e ama e sofre. Sou definitivamente um homem bom. Com
o estilete decepo a cabeça da barata. É o primeiro crime
da minha vida. Sinto-me triste e pesado. Fui um tolo. É
impossível sair deste labirinto de salas e gritar que somos
os vermes mais terríveis do Universo. Fui um homem pro-

40
Alberto Lins Caldas

fundamente bom. A barata já não estremece. Minha per-


na explode. Meu deus, tenha piedade de tudo que é vivo
e nos aniquile com um gesto. Inútil. Como sempre, eu
sobreviverei. Eu sobrevivo a tudo.

41
A visita da saúde
Albuquerque Pereira

Começava por Mui Amada e bem-nascida, a delirante


saudação de Herval Moreno, declamada pelo autor junto
ao berço natal daquela que seria sua única descendente.
Segundo ele mesmo, o tempo mostrou o lado oracular
do seu arrebatamento poético. A menina lhe parecia cada
vez mais digna da homenagem. A ponto de fazê-lo pen-
sar que nem o afeto reunido de mil outros rebentos, se os
tivesse, chegaria perto do ascendente desvelo de Amada.
Quanto maior em estatura e entendimento, mais alta a
gratidão da filha por aqueles versos:

Mui Amada e bem-nascida,


tu me fazes transportado
do terráqueo desta vida
à sidérea dimensão.
Acordada, és real sonho
das alvíssaras e festas
de um futuro mui risonho;
dormitando me despertas
para aquilo que eu suponho
muito além de adoração
ante a qual frágil me faço
pois abalaste de assalto
(batimento em descompasso,
entre o baixo e o mais alto)
meu paterno coração.
Albuquerque Pereira

De fato, Amada dedicou-se, anos a fio, à retribuição de


tão derramada benquerença. Em tudo se esforçava para
honrar a redondilha maior daquele autor que ela consi-
derava antes de tudo um injustiçado. Porque ninguém lhe
reconhecia o valor, para ela digno de todos os louvores. Por
isso, sempre que podia, referia-se publicamente a Herval
como poeta superdotado, lia em voz alta suas últimas pro-
duções, repetia-lhe as tiradas literárias originalmente es-
critas em cadernos de papel pautado. Delas também fazia
cópias que exibia a indiferentes leitores e ouvintes tomados
ao acaso. Assediava inclusive críticos literários. O motivo
por que nenhum deles acusava o recebimento nem comen-
tava o material enviado era para ela um mistério. Extravio
do Correio? Insensibilidade ao belo? Inveja? Burrice? Ten-
tou editar os poemas reunidos e uma coletânea de pen-
samentos de Herval. Mas nenhuma editora se interessou,
nenhum financiador quis investir nos seus projetos. Assim,
o pai continuava inédito e, em consequência, injustiça das
injustiças, não poderia pensar na Academia, instituição que
decerto honraria com seu talento.
Nenhum contratempo, entretanto, a impedia de supe-
restimá-lo. E chegou às raias do exagero, sonhando com
um memorial, tão logo percebeu o progressivo enfraque-
cimento físico do poeta. Na verdade Amada compreen-
deu que, longe de qualquer mau agouro, Herval poderia
morrer de uma hora para outra, velhinho e doente como
estava. “Todos nós murchamos como a folha, e as nossas
iniquidades, como um vento, nos arrebatam”, lera na sur-
rada Bíblia dele, em destaque a lápis vermelho no livro de
Isaías, 64.6. Premonição do poeta?
Pois ele era digno de um sodalício, como gostava de
chamar. Os invejosos e indiferentes podiam negar-lhe
essa honraria, mas bem que merecia um museu, um tem-
plo onde beletristas e pesquisadores pudessem beber

43
A visita da saúde

principalmente do seu romantismo. Um bardo dos áure-


os tempos, menestrel plural. Clássico na poesia e popu-
lar nos costumes, os mais simples, do dia a dia. Para as
abluções matinais, rotineiras lavagens corporais de todas as
manhãs, Herval servia-se de jarra e bacia de porcelana,
heranças de estimação. Para ele, água encanada e pia não
passavam de inovações sem maior significado. A propó-
sito, entre seus objetos queridos incluía-se um urinol de
ágate, de comprovada resistência ao efeito corrosivo da
mais oxidante excreção. Era peça de uso noturno cons-
tante, inclusive porque (“maldita próstata!”) evitava-lhe
infindáveis idas, e voltas, ao banheiro, situado no fim do
corredor da casinha onde nasceu e ainda morava.
Erudito na escrita, mas dado, no colóquio, ao portu-
guês singelo, Herval dizia mesmo mijar e preferencial-
mente em penico, em vez de urinol ou vaso. Nada contra
penico, aliás sinônimo também de região pluviosa, penico
do céu como dizia o povo e o poeta aprovava, lembrando
a expressão pedir o penico, própria de quem se acovarda.
Amada, na sua admiração cega, enxergava também nessa
simplicidade mais uma faceta do valor do pai.
Mas, realidade inelutável, a doença de Herval era ir-
reversível, segundo os médicos. Amada, é claro, rejeitou
esse diagnóstico, fez jejum, promessa e (na hora do deses-
pero tudo vale!) até a oração forte recorreu. Mas o pai só
piorava.
Conformada, enfim, com a ideia da perda iminente,
Amada agarrou-se na esperança (a última que morre...) de
uma visita da saúde, antes que Herval se finasse. Ela jamais
presenciara essa visita, que a tradição popular dizia portado-
ra da falsa melhora de doente em estado grave, momentos
antes de sua morte. Mas nessas ocasiões, soubera, os visita-
dos aparentavam repentino restabelecimento, mostravam-
se lúcidos e até rememoravam a infância. Soubera, ainda,

44
Albuquerque Pereira

que alguns pediam e comiam, com apetite voraz, seu prato


preferido, embora falecessem logo após a refeição.
Fosse como fosse, a expectativa da visita da saúde vi-
rou sustento de Amada. O pai entrara em estado terminal
sem pronunciar uma palavra. Isso não era comum em in-
telectuais. Nas horas pré-agônicas eles costumavam falar.
Até lera últimas palavras atribuídas a poetas famosos an-
tes do último suspiro. Tobias Barreto, por exemplo, teria
dito: “Até a morte tem sua lógica”. E Olavo Bilac, o gênio
da Via-Láctea: “Amanhece… Deem-me café. Quero escre-
ver”. Francamente, não gostara da expressão satírica do
boêmio Emílio de Menezes: “Estou morrendo à presta-
ção”. Se verdadeira, tal frase não ficava bem na boca de
um parnasiano cultor das rimas raras. Quanto ao que te-
ria dito Casimiro de Abreu, menos mal: “Pois a morte é só
isso?” Magníficas, porém, as palavras do grande Milton,
autor do imortal Paraíso Perdido: “Agora vejo brilhar a
minha aurora”. Sem esquecer a incomparável grandeza
de Goethe naquela oração tão curta quanto irradiante:
“Luz, mais luz…”
Certamente Herval, de volta a si, diria algo que ela
cuidaria de publicar e inscrever na memória intelectual
brasileira do século. E então se faria, finalmente, justiça
ao grande poeta. A visita da saúde lhe daria uma der-
radeira cintilação de consciência, um último relâmpago
mental, um rebrilho dos muitos que, na fantasia de Ama-
da, afamariam Herval se editado... As esperadas derra-
deiras palavras do pai, a encomendação do padre e um
soneto, o primeiro da autoria de Amada, comporiam a
parte oral dos funerais: Meu Pai, era o título da rebuscada
obra. O estilo, imitando o clássico, arremedando o épico,
espelhava a procura da autora por um vocábulo finalmen-
te definidor de Herval, figura humana e literária que ela,
no seu delírio hereditário, na verdade julgava incabível

45
A visita da saúde

numa única expressão, mesmo a mais rica, daí sua tentati-


va de retratá-lo através de seguidas aproximações:

Poetastro, afamado epigramista,


soneteiro, cantor melodioso,
menestrel e rapsodo, um aforista,
trovador bem ritmado, harmonioso,

Foi das Musas um filho laureado,


um aedo, sem par versejador,
musical Helicon alevantado,
sobremodo um exímio rimador.
Redivivo Camões, grão beletrista,
divo, bardo, de Apolo iluminado,
do Parnaso sublime cancionista
por Homero e Calíope tutelado,
da existência se fez alado hinista
pelos ares ruflando sublimado.

Deus haveria de dar-lhe serenidade e voz firme para,


ao lado do ataúde, declamar seus versos, nascidos do que
considerava um impulso mágico e irresistível do qual ela
somente se apercebera depois de burilar o terceto final.
Nunca se julgara capaz de tamanha grandiloquência. Mas
produzira, com certeza, um soneto admirável na rima, na
métrica e, por que não dizer, na erudição. Tal pai, tal fi-
lha... e, modéstia à parte, de estatura poética superior à
do próprio Herval, que ele perdoasse a ousadia!
Nessa altura uma acompanhante do enfermo interrom­
peu o desvario vaidoso de Amada: – “Chegou a visita da
saúde!”.
Correram as duas para o quarto de Herval. Amada viu
no pai, sentado na cama e de olhos bem abertos, aquela
expressão iluminada de quando falava como seu pensa-
dor favorito. Então, maravilhada, ela quase gritou:

46
Albuquerque Pereira

“Depressa! Lápis e papel! Meu pai vai proferir suas


últimas palavras!”
Num fiozinho de voz, Herval disse apenas:
– Amada, dá-me o penico.
A sábia frase tão esperada limitou-se a essas palavras.
E como a visita da saúde tinha pressa, antes que Amanda
atendesse o pai, ele morreu.

47
A história de Bentinho
Alexandre Santos

Bentinho, como era conhecido Bento Antônio Trajano


Mendes Apolinário Neto, olhou para os lados e, sem remor-
so, puxou o gatilho, abatendo sua 12ª vítima. O ribombar
do disparo já não lhe causava nenhuma emoção. Os olhos
não piscavam. As mãos não tremiam. O coração não aperta-
va. A carreira de matador começara seis meses antes, quan-
do teve liberado o demônio que morava dentro de si.
Até os dez anos, Bentinho, a irmã e o irmão tiveram
infâncias felizes. Sem deixar que a pobreza interferisse na
estrutura familiar, o pai de Bentinho, o soldado de polícia
Natanael Bento, impunha rígida disciplina em casa. Ao
estilo do marido, além de acordá-los bem cedinho para
estudar e ajudar nas tarefas caseiras, a mãe obrigava os
filhos a receber o pai no retorno do trabalho todos os dias
no portão da casa.
Esta rotina foi quebrada bruscamente num dia de Na-
tal, quando, em vez do pai, a família recebeu a visita de
um sargento que, com a voz baixa, informou sobre a mor-
te de Natanael Bento num tiroteio com bandidos.
Desde então a vida de Bentinho se transformou. Sem
condições de sustentar a família, logo sua mãe se casou
com o dono da mercearia da esquina – um português com
quase o dobro da idade dela. As novas obrigações conju-
gais afastaram-na dos filhos, que, repentinamente, viram
abertas as portas do mundo. A irmã, não tardou, envere-
dou por uma trilha de festas e namorados. Ainda nova,
deixou a casa e partiu para a noite. O irmão meteu-se
Alexandre Santos

com companhias estranhas e, em poucos meses, depois


de curta vida de turbulências e tempestades, foi encontrar
o pai, igualmente morto com o corpo crivado de balas.
Estarrecido com tudo aquilo, Bentinho, mal saído da
infância, foi forçado a amadurecer. Amadureceu no car-
bureto. Ainda sem compreender a morte do irmão e o
desaparecimento da irmã, prometeu-se vencer na vida e
honrar o nome do pai. Mergulhou fundo na mercearia.
Acordava com os passarinhos e, ainda ruminando o café
da manhã, se colocava atrás do balcão para atender os
clientes e cumprir as ordens rosnadas pelo homem casado
com sua mãe. No início da tarde, interrompia a faina e
corria até a escola, onde ouvia coisas que já sabia. Pouco
ligava para as surras que o padrasto lhe aplicava. Queria
vencer na vida e tinha consciência de que ainda não esta-
va em condições de deixar o único lar que conhecia.
Um ano mais tarde foi forçado a abandonar a escola
e o trabalho aumentou. Passou, então, a trabalhar doze
horas por dia. Os gritos e safanões que recebia do velho
padrasto não arrefeciam a vontade. Pelo contrário. O me-
nino superou as humilhações e, em vez de cultivar perso-
nalidade fraca, curtido no fogo e no breu, Bentinho de-
senvolveu espírito forte. De qualquer forma, com o passar
dos anos, as surras foram ficando cada vez mais esparsas
até desaparecerem por completo. Bentinho nunca soube
se a alforria deveu-se ao fato de ter crescido, tendo ficado
mais alto que o velho, ou de ter assumido, de fato, a con-
dução do negócio do padrasto.
Tudo ia bem até que, belo dia, sem mais nem menos, a
pequena mercearia foi assaltada por três homens. Assus-
tado, Bentinho viu quando, sem necessidade ou aviso, o
padrasto foi alvejado com cinco balaços. O velho fora jul-
gado, condenado e executado pelos bandidos. Seu único
crime fora lamentar a coronhada que recebeu no rosto e

49
A história de Bentinho

reclamar da vida enquanto a caixa registradora era esva-


ziada. Sem encarar os bandidos, Bentinho viu a aranha
tatuada no braço do carrasco. Uma imagem que nunca
esqueceu.
Os funerais foram tristes. A polícia decepcionara, pois,
em greve por melhores salários, além de demorar a libe-
rar o corpo, não tomara nenhuma providência para elu-
cidar o crime.
A morte perseguia Bentinho. Primeiro, o pai. Depois,
o irmão. Agora, o padrasto. Mas, obstinado, mantinha a
promessa de subir na vida e honrar a memória do pai.
Deu a volta por cima. Convenceu a mãe, ainda jovem
e já viú­va pela segunda vez, a experimentar novos ares.
Vendeu a pequena mercearia, a casa miúda e mudou-se
com o que restava da família. Nova casa, nova vizinhança,
muitos planos, novo negócio. Não foi preciso muito esfor-
ço para convencer a dona do galpão abandonado e, incri-
velmente situado no melhor ponto do bairro, a alugá-lo.
Uma pechincha. Contrato longo. Aluguel barato. Só de-
pois Bentinho soube da chacina que, junto com o marido
e quatro amigos, arrasara os sonhos de felicidade daquela
mulher. Habituado com a morte, Bentinho desdenhou os
maus presságios e, embalado por muito suor e poucas ho-
ras de sono, transformou o lugar num mercadinho. Com
sua experiência e a ajuda da mãe, pensava Bentinho, o
negócio prosperaria.
Dito e feito. Já nos primeiros meses, o mercadinho se
consolidou como o preferido da vizinhança. E, de tostão
em tostão, Bentinho subiu na vida.
Disposto a contrariar a “regra” tão condenada pelo
pai, Bentinho não deixou que a prosperidade lhe subisse
à cabeça ou que mudasse a boa alma que sabia ter. Pelo
contrário. Passou a ajudar a comunidade, da qual retirava
o sustento e a riqueza. Empréstimos aos velhos. Crédito

50
Alexandre Santos

para os necessitados. Remédio para os doentes. Ajuda à


escola. Criou um time de futebol e passou a intermediar
os pedidos da comunidade perante a prefeitura.
O nome Bento Antônio Trajano Mendes Apolinário
Neto passou a figurar nas conversas do bairro. Para uns, ele
queria ser vereador. Para outros, queria apenas fazer o bem.
Todos, no entanto, concordavam que a ação de Bentinho
ajudava a comunidade, mantendo as crianças e os adoles-
centes ocupados, longe dos maus caminhos. Sem saber das
conversas, o benemérito Bentinho continuava a trabalhar
duro, enriquecendo e ajudando os mais necessitados.
Belo dia, ao chegar ao mercadinho, Bentinho encon-
trou o lugar aberto. A porta tinha sido forçada com um
pé de cabra. Pensou no pior. Mas, ao entrar, uma surpre-
sa. Nada havia sido tocado. Prateleiras arrumadas, cofre
intacto, caixa registradora incólume. Apenas um cartaz
escrito em tinta vermelha denunciava a visita intrusa. Na
folha de cartolina, garranchos ordenavam a imediata sus-
pensão das caridades. A assinatura, o desenho mal rabis-
cado de uma caveira indicava a seriedade da mensagem.
Com um frio na espinha, Bentinho resolveu acatar a inti-
mação e, bruscamente, interrompeu sua carreira de bom
samaritano. Ao tempo em que a assistência social do bair-
ro voltava para a exclusividade dos mentores do tráfico,
Bentinho caía nos malquereres dos antigos protegidos.
Coincidência ou não, o fato é que, em três semanas, o
mercado foi assaltado duas vezes. Assaltos baratos, pró-
prios de iniciantes e descontentes. Num primeiro mo-
mento, Bentinho endureceu e resolveu se armar – com-
prou uma escopeta cuja existência logo foi conhecida por
todos. O tiro, no entanto, saiu pela culatra, pois, em com-
portamento que depois foi associado a uma espécie de
implicância, os ladrões não recuaram e os assaltos ficaram
mais frequentes.

51
A história de Bentinho

Um dia, o mercadinho foi mais uma vez invadido. Cin­


co mascarados que logo anunciaram o assalto. Aquele seria
apenas mais um assalto na atribulada rotina que se estabe-
lecera havia algum tempo, se não fosse a inesperada che-
gada de uma vizinha. Ao ver os homens armados, a mulher
exasperou-se e gritou a todo pulmão. Foi o bastante para o
início da fuzilaria. Ao todo foram disparados 18 tiros, cinco
dos quais acertaram a mãe de Bentinho, matando-a ime-
diatamente. Bentinho foi alvejado quatro vezes.
Ao despertar, dois dias mais tarde, no leito de um hos-
pital, depois de uma cirurgia que lhe salvou a vida, Ben-
tinho quis morrer. Perdera a última referência que ainda
preservava. Desiludido, percebeu que, injustamente, es-
tava vivendo num inferno. Demônios impunes já haviam
levado o pai, a irmã, o irmão, o padrasto e agora a mãe.
Quem seria o próximo?
Ainda preso ao leito do hospital, Bentinho repensou
a vida e os compromissos que tinha consigo mesmo. Ain-
da não completara 21 anos e, embora procurasse dar o
melhor de si, nunca sentira o gostinho do céu. De que
adiantava trabalhar honestamente, pensou ele, se a vida
sempre lhe roubava os tesouros mais preciosos que tinha?
E, num estalo de dedos, o Bentinho que todos conheciam
desapareceu, dando lugar a um outro. Repentinamen-
te Bentinho endureceu o coração. O lado bom de Ben-
tinho não foi forte o suficiente para conter o demônio
que emergiu do lado sombrio que sequer sabia possuir.
Soube-se depois que a morte da mãe foi demais para a
estrutura que todos imaginavam forte. Bentinho saiu do
hospital transformado. Não era mais aquele homem pa-
cato e confiante, que queria subir na vida pelo trabalho,
honrando a memória do pai, o soldado Natanael Bento,
morto em serviço, em combate contra bandidos. O novo
Bentinho era um homem disposto a fazer justiça pelas
próprias mãos.

52
Alexandre Santos

Como se nada tivesse acontecido, Bentinho reabriu


o mercadinho tão logo chegou em casa após uma rápida
visita ao túmulo da mãe, ainda no dia em que recebeu
alta do hospital. E, sem que ninguém soubesse, Bentinho
se preparou e torceu pelo próximo assalto, que sabia não
demoraria. De fato, não tardou. Ainda naquela semana,
o mercadinho foi invadido por dois rapazes recém-saídos
da Febem. Coitados. Mal tiveram tempo para sacar as ar-
mas e anunciar o assalto. Tombaram mortos pelos tiros
certeiros desfechados por Bentinho, que com um sorriso
estranho segurava a escopeta jamais usada até então. As
formalidades com a polícia foram mais simples do que
Bentinho imaginava. Na realidade, o novo Bentinho não
deixou de sentir uma certa simpatia pelos policiais en-
carregados pelo levantamento dos corpos. Como se es-
tivessem aliviados pela súbita morte dos dois aprendizes
de bandido, os policiais foram extremamente suaves no
relatório, omitindo, inclusive, a participação de Bentinho
no sangrento episódio.
Quinze dias mais tarde, o novo Bentinho voltou a agir,
despachando mais duas pessoas para o mundo do além.
Desta vez, ao puxar o gatilho, Bentinho sentiu uma es-
tranha sensação de prazer. Um prazer que nunca expe-
rimentara. Ainda extasiado pela sensação, Bentinho se
deu conta que, aos 21 anos, era virgem. Já matara quatro
pessoas, mas nunca tivera uma mulher. Era melhor assim,
pensou ele, pois, sem ter a quem gostar, não corria o ris-
co de sofrer como sofrera com a morte do pai, do irmão,
do padrasto e da mãe. Respirou fundo, lembrou a aranha
tatuada no braço do carrasco de seu padrasto e, sem re-
morso, voltou à caçada convencido de que era sua a tarefa
de banir o mal.

53
Para além dos campos semeados
Aluízio Furtado de Mendonça

A tarde cai morna sobre os campos semeados.


É uma tarde de sol que avança sobre as terras até as
partes mais altas, na linha do horizonte. Fui criado nesses
mundos enormes, de matas fechadas, de ruídos estranhos
à noite, que nos despertam curiosas emoções: você ouve
os estalidos, percebe que seres ágeis fogem na sombra e
você começa a imaginar coisas que só a memória do ho-
mem do campo pode compreender.
Sim, é uma tarde de sol que se espraia devagar, atinge a
cabeceira da mata virgem, vai avançando em jornadas de luz
que vão terminar no alto das serras; a perder de vista. Quan-
do eu era menino, ficava horas inteiras olhando o horizon-
te azulado, imaginando coisas. Via-me devassando aquele
mundo de mistério, de sonho, de esperança de felicidade,
algo que vinha assim de dentro, que avassalava a alma, que
incitava o instinto ao êxtase, um estado de espírito sensual,
de apaziguada fascinação, um desejo de posse irresistível. Só
o homem nascido no interior pode compreender isso.
Chego à janela da casa-grande.
Estou inquieto.
Espero Gabriela como quem espera uma notícia de fe-
licidade. Ela é, aqui, neste mundo enorme e cultivado,
como o rio descendo as encostas em busca do vale, lá em-
baixo, as vacas pastando no pasto de capim alto, como
uma coisa de Deus, que eu não mereço.
Gabriela é meu amor da idade madura. Ela tem vinte
e oito anos, é esbelta, é bela, é sensual. Ela me chegou
Aluízio Furtado de Mendonça

numa época difícil, em que eu tinha conseguido estabili-


dade econômica, mas não tinha amor. A propriedade dava
lucro. Os negócios iam bem. Tudo o que eu fazia dava cer-
to, era um sucesso. Mas minha alma era fria. Eu estava só.
Sentia a solidão dos dias entrando pela minha alma, como
se uma noite de chuva ameaçasse a minha paz noturna.
Gabriela chegou. Deu-me calor. Deu-me vida. Desper-
tou-me daquela letargia dos negócios. Quando a noite
chega, ela vem com o seu corpo ardente, com os seus lá-
bios enxutos e sensuais e, na cama, entre os lençóis acon-
chegantes, me dá o incêndio de seu corpo de mulher jo-
vem em êxtase:
– Me aperta, me consome com teu amor! Me liberta
desse desejo! – ela me diz naquela sua linguagem incen-
diária.
E eu me transformo nesse homem de hoje que sente a
tarde cair mansamente sobre os campos arados, como se
meu próprio corpo exigisse a semente que haverá, mais
tarde, de povoar os celeiros de grãos, à espera da vida e
da reprodução.
O carro de Gabriela surge na estrada, avançando para
a casa-grande. Ela volta das compras na cidade e eu sinto
o perfume de seu corpo, o calor de sua carne, a volúpia
de seu sexo, pedindo-me amor. É uma coisa louca essa
mulher na minha vida!
– Ei, Nonô! Vem me buscar! – ela grita, lá da estrada.
E eu vou ao seu encontro, para trazê-la nos braços,
direto para a cama, onde o nosso amor se renova a cada
encontro, num múltiplo e iluminado campo de paixões
incontroláveis, semeantes.

55
Prelúdio
Amílcar Dória Matos

Ainda ressoa, nos ouvidos da minha alma, o alarido


de ontem, quando da celebração do meu aniversário de
sessenta anos, que coincide com o penúltimo dia do ca-
lendário.
Neste mesmo apartamento – impregnado da nostalgia
e da saudade da companheira que, já se vão mais de dois
anos, me antecedeu na viagem à outra margem –, nossos
descendentes cumpriram, durante toda a noite, o ritual
da benevolência.
Era como se me dissessem “veja bem, a vida prosse-
gue em sua misteriosa plenitude, você continua firme e
magnífico, dando sentido às nossas existências como ela
também o fez. Depois, esses traços melancólicos no seu
rosto emprestam-lhe ainda maior brilho aos olhos. E seus
sessenta anos simbolizam apenas o prelúdio, a centelha
do sol que sempre iluminará seus caminhos, enriquecidos
por uma lembrança benfazeja e vigorosa”.
Houve insinuações de que, embora se sabendo ser ela
insubstituível, o mundo é isso, um constante acréscimo,
uma continuidade, um continuum que não prescinde da
substância anterior. Não se trata de traição ao passado.
Trata-se de honrar sua herança. E prosseguir.
Tais palavras conotavam a subliminar sugestão de que
a este apartamento se incorporasse a figura de outra com-
panheira, o que seria, “com certeza”, o desejo da que hoje
me olha da região a que todos somos inapelavelmente
destinados.
Amílcar Dória Matos

Eu os ouvia, aos queridos filhos e netos – eles próprios


envolvidos nos nichos que já haviam construído –, com a
paciência típica dos maduros e com a resignada gratidão
dos que se sabem alvo de cuidados.
Do que eles não desconfiavam, na dissimulação dos
seus sentimentos contrários à reclusão solitária pela qual
eu optara, é que estou bem, sim, e me basto, e me prepa-
ro. Para mim, é suficiente saber que posso com eles contar
quando da entrada em cena da Guardiã que me conduzi-
rá às instâncias de outro plano.
Agora, terminada a festa das minhas seis décadas, res-
tituído à minha quietude, cercado destas paredes que tes-
temunham a glória do meu amadurecimento, apresto-me
para a chegada do ano-novo.

Eu nunca podia imaginar que, neste 31 de dezembro,


teria o pressentimento da minha morte. No momento em
que faço o presente registro, acredito saber, com alguma
precisão, como ela se dará.
Não importa, ainda, presumidamente, me restam mui-
tos anos de vida. Nunca se sabe, porém.
Conquanto recentemente haja adquirido o direito de
ser apelidado de sessentão, me é permitido imaginar que
tenho um bom pedaço de janeiros pela frente. Nenhuma
das doenças chamadas malignas parece andar corroendo
meu organismo. Avesso aos hábitos dos glutões, boêmios,
frouxos sedentários ou sistemáticos prevaricadores, sou
razoável candidato à longevidade, sem considerar, é cla-
ro, os acidentes e incidentes de percurso. Ademais, tenho
a meu favor a proteção dos deuses da sadia saudade.
Mas nunca se sabe, graças a Deus, aliás.
Assim, o que importa, para o fiel teor desta narrativa,
não é o quando, mas o como. O tal prenúncio poderia

57
Prelúdio

sugerir um iminente colapso da minha sanidade mental,


um sinal de que – para mim – a Intrusa Amiga já estivesse
a afiar sua ceifadeira. Não deve ser o caso, pelos menos no
meu nível consciente. A curiosidade é tão natural quanto
a inescapável visita da Arrebatadora Senhora.

Deu-se que dois episódios que passo a narrar simples-


mente aconteceram, separados por um tênue fio tempo-
ral, mas nunca desconectados entre si. Ambos os suces-
sos marcaram a presença no último dia do ano, como já
mencionado. Dois também foram os cenários: o quarto de
dormir e o parque urbano, distantes um do outro, para
efeito contábil, dois quilômetros e duas horas.
O primeiro anúncio me ocorreu após a sesta, aí pelas
duas horas da tarde. Estava eu deitado ao comprido na
cama, o ventilador ao lado a ronronar sua música rotativa,
mesmo que eu pudesse dispensá-lo para debelar o calor: a
janela aberta no décimo sétimo andar do prédio permitia
a entrada do ventinho gostoso lá de fora. Mas me habituei
ao som das pás do apetrecho, que me ajuda a adormecer
com sua monocórdia. É o meu sonífero.
Quando despertei, resolvi deixar-me estar um pouco
na modorra. Era um momento de paz. A lâmpada pendu-
rada no teto, bem à altura do meu umbigo, pode ter con-
tribuído para a deflagração do processo. Pois a imaginei a
emitir sinais elétricos, se bem que apagada, para o núcleo
fundamental do meu corpo, para o seu centro fulcral de
energia. Daí que passei a concentrar-me em mim mesmo,
no meu arcabouço de carne e fibras e fluidos, em exercício
que se diria de auto-hipnose.
Eu há muito andara lendo, de forma um tanto assiste-
mática, a respeito de exercícios de concentração e medita-

58
Amílcar Dória Matos

ção. Não obstante dispersiva a leitura, eu já me aventura-


ra até a tentativas de pré-levitação, que viriam a ser aban-
donadas pelo pavor que me acometeu no dia em que me
imaginei contemplando aquela forma humana ali deitada
– a minha forma humana. Era como se meu espírito – ou
minha mente projetada – se tivesse libertado do pedante-
mente apelidado invólucro carnal, como dizem acontecer
no instante definitivo da morte.
Eu não era, assim, exatamente um jejuno nessas artes,
digamos, transcendentais. Apenas abandonei a experiên-
cia por arrepiante. Minha covardia vergonhosa, como se
vê, deve ter-me sonegado o que poderia ter sido a aquisi-
ção de valiosos ensinamentos. Observar o próprio corpo
sem a recorrência a espelhos, que, aliás, sempre distor-
cem o objeto reproduzido por exatos que se pretendam,
é acontecimento promissor, mesmo que possa decorrer
também de distorções psiquicamente doentias.
Agora, porém, de algo diferente e inédito se tratava.
Ao invés de sair do corpo, nele mergulhei com inusitado
senso de aprofundamento. Talvez mergulhar não seja a
metáfora correta: fui como que penetrando, confundin-
do-me com meu ser interior, visitando-lhe as galerias mais
obscuras, os esconderijos mais ariscos da minha carnali-
dade interna e invisível. Misturei-me às células e glându-
las e tecidos e órgãos e avenidas e ruas e ruelas que com-
põem este labirinto borbulhante de impulsos e descargas,
de fluxos e refluxos, de ritmos e espasmos. Mais impor-
tante: senti a pulsação de toda essa máquina estranha e
tão familiar, tão minha e tão mesma, como se eu assim
fosse conseguindo – finalmente! – dialogar com a verdade
essencial da minha química, desta estrutura que provoca e
reage aos meus pensamentos, emoções e gestos.
Pareceu-me que, pela primeira vez nas minhas seis déca-
das de autoignorância, eu dirigia a luz da lanterna mental

59
Prelúdio

para os mais fundos recantos destas cavernas que me habi-


tam. E foi aí que veio a revelação, antes apenas eventual-
mente sugerida, de minha integral individualidade. Percebi
que ninguém, em todo o Universo, podia sentir o que eu
estava sentindo, com a agudeza de quem se sabe criatura e
criador, de quem se horroriza e extasia com o fato de que se
é único e singular, intransitivo, intransferível. Isso porque,
cada pequena pulsação agora tiquetaqueada era o resultado
de uma sequência inesgotável de vivências tão somente por
mim sofridas e assimiladas ao longo da correnteza da exis-
tência, em meio ao turbilhão de ações e reações por mim
acondicionadas de maneira ímpar e incompreensível para
todos os demais seres humanos, por mais íntimos, por mais
amados e empáticos, por mais vizinhos e afins, por mais gê-
meos univitelinos de mim, por mais siameses de mim.
Então eu ali fiquei, atento e expectante, deixando que
as lágrimas fossem imitando, no meu rosto, o fluir da ca-
dência dentro do meu corpo. Lágrimas que ninguém ha-
via chorado nem haveria de chorar, porque feitas do sal
deste bichinho tão igual e tão desigual aos seus semelhan-
tes, esta fera indomada e imprevisível, este compósito de
metabolismos inconfundíveis, de medos e angústias, de
prazeres e assombros. Lágrimas que nem sequer a mu-
lher querida, com a qual eu havia repartido os momentos
supremos da espécie na perdição da entrega, teria sido
capaz de entender, e secar, e estancar, pois feitas de luz
própria e bastante.
Foi nesse momento que me ocorreu a antecipação da
minha morte: com a suspensão da consciência do estado
cotidiano, a cessação dessa labareda e a interrupção desse
fluxo, viria a contemplação do meu corpo a partir da ja-
nela exterior sem carne e, portanto, sem lágrimas.
O tempo de duração desses eventos, eu não sei decla-
rar. No caso, o tempo pareceu desvencilhar-se das coorde-

60
Amílcar Dória Matos

nadas que nos aprisionam. O que sei é que, de tão atônito


e sonâmbulo, fui dar por mim, horas mais tarde, no par-
que. Onde ocorreria o segundo episódio da revelação, ou
da insanidade.

Sabe-se, era o dia derradeiro do ano. E, nesse final


de tarde, a maioria dos frequentadores do descampado
incrustado na selva de cimento, aço e estresses citadinos,
já o abandonara para os preparativos da data, deixando-o
assim um tanto escasso de gentes. Com esse abandono,
ganhava predominância na paisagem o frescor vegetal e o
ruído de aves e insetos.
À medida que o crepúsculo entornava seu óleo cin-
zento sobre a paisagem, um outro tom de cinza foi-me
tomando posse da alma. Percebi que estava ficando quase
sozinho, a cumprir passadas de moderno andarilho, sem
os obstáculos humanos comuns às ruas bulhentas de bu-
zinas, antevendo a noitada triunfal de logo mais, quando
ultrapassada a faixa do ano velho; triunfal de embriaguez
e esperanças, inventários e projetos.
Quanto a mim. Eu ia ficando a sós comigo, não mais
no quarto de algumas horas atrás, e sim no espaço instan-
taneamente enorme e temerário que se desfalcava de gen-
tes. Onde os atletas? Onde os corpos suados da juventude
vigorosa de músculos? Onde os iludidos velhotes, peles
já a ressecar e descamar na carcaça antiga, em busca de
um oxigênio que eles sabem exauridos em seus pulmões
fatigados? Onde os casais despudoradamente atracados
sobre bancos e relvados, a permutar soluços e salivas? De-
certo tinham corrido à procura dos rituais de fim de ano,
deixando-me abandonado nesta imensidão de temores e
armadilhas da solidão.

61
Prelúdio

De súbito voltou a tal notícia da minha morte anuncia-


da. Seria desse modo que ela aconteceria, quando todas
as pessoas com quem intercambio viços e sufocos, mesmo
as mais telepáticas de mim, nada poderiam fazer.
Eu era agora, como seria na tal ocasião do traspasse,
o que sempre fora, desde que gerado por conta de gestos
amorosos e alucinados que vão perdendo o furor na velhi-
ce e na deterioração corporal; eu era sozinho, perdido no
descampado do parque.
Sombras adensando-se ao meu derredor espichavam
dedos e línguas por entre árvores e arbustos. Num repente,
na curva da pista tão percorrida por seres distintos e in-
transitivos, apagaram-se as luzes. Deveria ser assim o curto-
circuito da minha existência: a verdade solitária e escura
que me empolgará como a noite, estancando-me o sangue,
exaurindo-me a vitalidade, apagando-me o sopro.
Obedecendo ao compasso do pânico, acelerei em di-
reção à área do parque não atingida pelo blecaute, onde
dois vigilantes conversavam, alheios ao meu desequilí-
brio. Busquei um banco de cimento sobre o qual se de-
bruçavam galhos de uma jaqueira. Nele me sentei para a
retomada do fôlego. Cruzei as pernas e assumi a posição
assemelhada à de um iogue. Baixei a cabeça para receber
o impacto da lâmina afiada da Arrebatadora. Em segun-
dos – se é que o tempo existia –, repassei toda uma vida
agora agonizante. Veio-me o arrependimento de não tê-
la cumprido com a finalidade exclusiva de preparar-me
para este instante final, o único insubornável, o único in-
contornável por meio de negaças, simulações e dissimula-
ções. Pedi perdão a Deus por ter sido tão ateu. E sofri pela
pranteada mulher, a quem eu pensara satisfazer a cada
intercâmbio de humores e ardores, e a quem já fora reser-
vada esta sufocação de que vivente algum é poupado.
Agora morro, pensei. Adeus.

62
Amílcar Dória Matos

Ora, ei-lo de volta, o insólito. Aquele trecho escuro da


pista me atraiu à maneira de uma fêmea despida e irre-
sistivelmente ansiosa. Fui ao seu encontro. Confundi-me
com as sombras, qual fizera no quarto com as entranhas
do meu corpo. Sorvi o gosto agridoce da tentação. In-
corporei-me àquela luz de breu, indiferente aos olhares
curiosos e intrigados dos vigilantes. Vi passar, arrastando
os pés inchados na pista bifurcada por linha divisória a in-
dicar “marcha lenta” e “marcha veloz”, um homem velho,
gordo e baboso. Numa rajada de vento, vi disparar em seu
encalço, quebrando a morosidade da cena, um garoto de
cabelo espesso, a gritar “vamos, vovô, mais rápido!”
Compreendi tudo, do fundo da escuridão: era eu mes-
mo que passava ali, saindo de uma faixa para outra, desfa-
zendo-me das cascas esclerosadas do meu corpo envelhe-
cido, para fazer dela emergir uma carne sólida e fresca,
em pleno processo de afirmação promissora.
Ganhei as ruas a um tempo escleróticas e vivazes.
Ao deitar-me de novo na cama, devolvido à semilevi­
tação, derramei lágrimas vindouras...

63
Incidente ao meio-dia
Ana Maria César

Luciano liga o rádio do carro. A voz de Milton Nas-


cimento preenche os espaços do veículo e se lança pela
janela no congestionado trânsito do meio-dia. Dirige au-
tomaticamente, mãos ao volante, pés distribuídos entre o
acelerador, a embreagem e o freio, naquela marcha pró-
pria das horas de rush. O carro conhece as ruas, os sinais,
até os buracos no asfalto.
O percurso diário renova a satisfação de rever as mes-
mas árvores, podaram o fícus-benjamim, mas que mal-
dade, só deixaram o tronco. Em farda de colégio, duas
meninas seguem pela calçada, sobraçando livros e cader-
nos. O longo cabelo da lourinha chega-lhe à cintura. A
morena está tomando corpo, as formas arredondadas a
sobressaírem na roupa colegial. Não faz ainda muito tem-
po e eram duas crianças. A mais velha segurando a mão
da menor, pela mesma calçada, à saída das aulas.
Mais adiante, sua atenção se volta para o muro carco-
mido de uma casa abandonada, onde um mamoeiro, nas-
cido entre o cimento e o tijolo, ganha altura e folhagem.
Luciano acompanha o crescimento da árvore e a imagina
frutificando.
Desvia de um buraco e lembra o dia em que, debaixo
de pesada chuva, atolou uma roda naquele local. No se-
máforo, pardais fizeram ninho e desde a semana anterior
percebe, toda vez que o surpreende o sinal vermelho, a
barulhenta ninhada que se esconde por trás do luminoso.
Ana Maria César

O trânsito escoa um pouco mais rápido. Luciano ace-


lera, passa uma segunda e de repente o carro a sua frente
breca. Automaticamente pressiona o freio, os pneus chiam
no asfalto, o veículo dança na pista e se choca contra a lâ-
mina de aço do fusca azul. Desce do carro e vai até a fren-
te do veículo. Examina a batida, não foi nada, apenas um
encontrão, e então escuta a voz do outro motorista que
lhe chega por trás.
– Qual é o galho, ó chapa?
A voz. A voz daquela noite. Tinha certeza. A mesma
inflexão. Qual é o galho? O camarada não quer colabo-
rar. Deixa comigo, ó chapa, ó chapa, ó chapa... Luciano
crispa os dedos, sente a boca seca, um suor frio começa a
porejar. Virou-se lentamente, tentando encarar seu inter-
locutor, mas estava escuro, a luz vinha da sala ao lado. A
silhueta do recém-chegado desenhava-se no portal. Joga-
do ao chão como um amontoado de ossos, ouvia apenas a
voz e repetia, nada a declarar, nada a declarar.
O homem aproxima-se, vai até a traseira do carro,
examina meticulosamente o para-choque, corre os dedos
pela lâmina de aço. Tudo perfeito. Insiste ainda na averi-
guação, o desejo incontido de flagrar alguma mossa na la-
taria do seu carro. Anda pra lá e pra cá, os passos pesados,
arrastados, o som das botas no cimento áspero do porão,
o corpo doído, machucado, a ânsia de vômito, a zoeira
nos ouvidos. Preso para averiguação. Nada a declarar.
– Parece que está tudo bem – diz Luciano, voz engas­
gada.
– Calma, rapaz, nessas coisas é preciso calma.
A noite fria e longa. Despido, a umidade lhe atraves-
sava a pele, os músculos, atingia os ossos, provocando-
lhe tremores espasmódicos. As têmporas latejavam, sentia
ainda o arco de metal a lhe comprimir o cérebro, não ti-
nha nada a dizer, nada a declarar.

65
Incidente ao meio-dia

– Estamos perdendo tempo. Ele não tem nenhuma in-


formação que nos interesse.
– Calma, rapaz, nessas coisas é preciso calma.
Os passageiros do meio-dia retomam sua marcha, o
trânsito congestionado se refaz, apenas os olhos enfastia-
dos dos que viajam nos ônibus ainda se detêm na colisão.
O homem parece frustrado, nada a declarar, ora porra,
tempo perdido, podia já ter chegado em casa, dia quen-
te aquele, precisa tomar uma pinga pra refrescar. Anda
nervoso em torno do veículo, para, coça de leve a barba
cerrada e finalmente, num gesto brusco, chuta uma pedra
solta no asfalto e se vai.
O grito de Luciano rasgou as pesadas paredes e ecoou
na noite densa. A perna esquerda parecia morta, não con-
seguia movê-la. Faíscas de aço atravessavam sua rótula
despedaçada e uma imensa dor o engoliu.
Lentamente, arrastando a perna imóvel, entra no caro
e dá partida. Como ficará o fícus-benjamim quando a fo-
lhagem renascer? O mamoeiro crescerá a ponto de dar
frutos? E o cabelo da lourinha? Ela o cortará no próximo
semestre ou o prenderá no alto da cabeça? Voltariam os
pardais a fazer ninho no semáforo?...

66
O julgamento
Antônio Campos

O velho escritor começou a ler o manuscrito de uma


estória que acabara de concluir. Era um conto sobre um
suicida, um homem que perdendo a hora ou julgando tê-
la perdido renunciara à vida. Na sua estória havia alguma
verossimilhança com certos acontecimentos e pessoas da
vida real. Já escrevera quase cem pequenas estórias e sua
capacidade de criação ia diminuindo a cada conto concluí-
do. Julgava que lhe restavam poucos contos a escrever. Não
lhe agradou esse que concluíra, achava-o muito próximo
da vida real, os acontecimentos tiravam-lhe possibilidades
da imaginação. Considerava que, para os bons escritores,
não havia grandes ou pequenos temas, tudo dependia da
mestria das palavras se harmonizando para a revelação
de verdades insuspeitadas, verdades adormecidas, demô-
nios exorcizados pelo verbo escondido, compreensões no-
vas de velhos temas e sepultados esquecimentos. Pensou:
“somos cemitérios de nós mesmos, de sonhos, infância,
juventude, instantes de felicidade, heroísmos, covardias.
O corpo humano é um grande cemitério individual”.
Olhou ao seu redor, estava em uma pequena sala que
lhe servia de gabinete, onde existiam apenas duas estan-
tes de livros, um sofá com a fazenda azul que o recobria já
rota em alguns lugares, e sua mesa de trabalho. De repente,
surgiu-lhe o desafio de escrever outro conto imediatamente
após o que acabara há pouco de concluir. Convocou a ima-
ginação, preparou papel e lápis. Não gostava de escrever à
máquina, achava que as palavras manuscritas tinham uma
O julgamento

maior magia, alguma coisa de arquitetura pessoal e intrans-


ferível aumentando o poder criador, ou melhor: facilitando
esse poder. Mas os personagens não apareciam. Resolveu
que o cenário da ação seria aquele seu gabinete, decisão
sem maiores motivações, tentativa só de aumentar o desa-
fio, testar a sua capacidade de erguer estórias. Distraído de
tudo que não fosse a estória que estava para surgir, foi escre-
vendo, criando uma atmosfera, um clima que propiciasse o
surgimento do seu personagem. Este atendeu à convoca-
ção, foi se erguendo das palavras. Só então percebeu que
se tratava de um narcisista que já havia aparecido em mais
de dez das suas estórias. Procurou modificar-lhe algumas
características, foi em frente, parou um pouco para ver o
rumo da estória. O personagem que julgara novo já estava
parecido com outro. Irritado, rasgou o manuscrito, tentou
recomeçar. Queria experimentar outro caminho, uma estó-
ria de tal maneira inverossímil, fantástica, que não pudesse
ser repetição de realidade da vida e da arte.
E no seu gabinete começaram a surgir animais estra-
nhos, feras em toda sua capacidade de enfurecimento, um
tempo resolvido, passado adiante de futuro, presente se
antecipando ao passado. Mas a sala foi descrita com preci-
são minuciosa. Num sofá, um fantasma filosofava sobre a
desnecessidade da vida, conversando com um corvo, que
em vez de repetir exaustivamente: “nunca mais”, falava
mal da razão e dos racionais.
No meio da sala, em cima do tapete indiano, colocou
um tigre numa jaula. Em seguida, retirou-se dela, obrigou
o domador a substituir a fera naquela prisão que come-
çou, num repente, a falar em saudades dos seus descam-
pos e a ameaçar o domador.
Imaginou uma bela mulher e a colocou na sala como
uma bailarina russa. O som da música encheu o recinto,
uma música forte, com aquela alegria se avizinhando da

68
Antônio Campos

angústia existente nas músicas das estepes russas. Ao escre-


ver a palavra estepes, lembrou-se do romance de Herman
Hesse. Por uma sucessão de títulos que lhe iam surgindo na
memória, recordou-se de vários livros nacionais e latino-
americanos, e também de alguns romances russos. Decidiu
afastá-los da memória e fez com que o fantasma convences-
se o corvo de que viver é inteiramente dispensável.
O tigre comoveu-se com as palavras do fantasma e co-
meçou a chorar, pensando nos descampos da Índia, no seu
exílio forçado. O corvo argumentou com ele que tudo aqui-
lo devia ser uma grande impressão, fantasmas não falam,
alguém deveria estar querendo zombar deles, pobres ani-
mais. O tigre agradeceu em palavras muito polidas a deli-
cadeza do corvo. A bailarina russa começou a olhar para o
homem enjaulado e de tão triste com a situação dele, parou
de dançar. Pediu ao tigre as chaves da jaula e, soltando o
domador humilhado, confessou-lhe uma paixão repentina.
O tigre tentou convencer os presentes de que quem deveria
estar naquela jaula era o fantasma.
O fantasma, calado, assistia a tudo com absoluta tran-
quilidade. Estava sendo julgado sumariamente. Assistia
ao julgamento, não se defendia e parecia indiferente ao
resultado. Mas foi o domador quem sugeriu a forma-
ção de um corpo de jurados, um juiz, um promotor, um
advogado de defesa. A proposta foi derrotada. O corvo
defendia pura e simplesmente a morte para o fantasma.
O domador achava mais justo prisão perpétua. O tigre,
heroico, desafiou o fantasma para um duelo. O fantasma
teve vontade de perguntar por que os ofendera e os ma-
goara tanto. Mas resolveu permanecer reclinado no sofá,
esperando para ver no que ia terminar aquilo tudo.
O velho escritor já estava prestes a colocar o fantasma
na jaula, devidamente julgado e condenado, quando o viu
desaparecer não do sofá, o que seria fácil de resolver, mas

69
O julgamento

da sua estória. E parecendo escutar um riso irônico, pa-


rou de escrever. Ao olhar para um retrato de Tchekov na
parede, por cima da sua mesa de trabalho, imaginou ver
no rosto do contista um riso de galhofa. Rasgou o manus-
crito, e deu por encerrado mais um dia de trabalho. Ao se
deitar para repousar no sofá da sala, surpreendeu-se ao
perceber que estava no mesmo lugar do fantasma que ia
ser julgado, teve medo. Olhou com raiva para o retrato,
desta vez o rosto coberto de barbas estava sisudo.

70
O casamento
Ariano Suassuna

No tempo em que o Exmo. Sr. Dr. Gratuliano de Brito


era Interventor1 em nosso Estado da Paraíba, viveu aqui,
em Taperoá, um meu amigo e compadre, Seu Corsino de
Almeida Tejo, homem nobre mas de posses curtas em re-
lação à sua qualidade. Era casado com uma grande dama,
Dona Perpétua, da família Corrêa de Queiroz, que, como
se sabe, ainda vem a ser aparentada comigo e é uma das
linhagens mais ilustres da fidalga Vila Real de São João do
Cariri, deste nosso Sertão da Paraíba.
Seu Corsino Tejo tinha duas filhas, Mercedes e Aliana,
das quais a primeira, mais velha e menos bonita, era mi-
nha afilhada. Ambas estavam noivas e já para casar. Mer-
cedes, que tinha ido passar uma temporada na Vila de São
José do Egito, Sertão do Pajeú, em Pemambuco, voltara
de lá noiva de um rapaz pajeuzeiro de boas posses, um
jovem e disposto boiadeiro, chamado Quintino Estrela.
Aliana noivara com um primo, originário da Vila de Ca-
baceiras, mas, já há uma boa porção de tempo morador
na nossa, onde exercia a digna profissão de caixeiro da
loja de tecidos de Seu Antônio Fragoso.
Como sabem todos os bons genealogistas brasileiros,
a grande família sertaneja dos Almeidas é espalhada por
todo Cariri, subdividindo-se em dois ramos principais,
os Almeida-Tejos e os Almeida-Pebas. O noivo de Aliana,
Laércio, era do segundo ramo, sendo por isso, seu nome
completo, Laércio de Almeida Peba. De fato, Laércio era
1
Foi interventor de 1932 a 1935.
O casamento

filho de um primo legítimo de Seu Corsino; mas seguindo


o velho costume sertanejo, chamava meu compadre de
Tio Corsino.
Tinha-se combinado que o casamento das duas moças
seria realizado no mesmo dia, 22 de março de 1933. Como
Laércio Peba morava em nossa Vila, o jovem boiadeiro
Quintino Estrela deveria viajar do Pajeú para cá no dia 21,
hospedando-se no nosso conceituado Vesúvio Hotel.
Como de fato: lá no dia 2l de março, mais ou menos às
dez horas da manhã, pela estrada que nos liga à Vila do
Teixeira, entravam em Taperoá cinco Cavaleiros. Na fren-
te, isolado, vinha Quintino Estrela, noivo de Mercedes.
Os dois que o seguiam imediatamente vinham escoltando
o jovem boiadeiro, à guisa de padrinhos do casamento
e escudeiros da viagem. Por isso, viajavam juntos e uns
dois passos atrás do noivo. Eram, como soubemos depois,
Seu Aristides Chicó, homem de certa idade, fazendeiro e
respeitável apostador; e o Cigano Pereira, cavalariano e
famoso trocador de cavalos2, que diziam ser descendente
bastardo do célebre fidalgo sertanejo Dom Andrelino Pe-
reira, Barão do Pajeú.
Todos três estadeavam elegância cavaleirosa e viagei-
ra, no melhor estilo sertanejo: calça e paletó cáquis, botas,
cartucheira com revólver e punhal, rebenque, esporas,
arreios dos cavalos enfeitados com moedas e estrelas de
metal. Montavam em belos animais que, como soubemos
depois, tinham sido vendidos a Quintino Estrela pelo Ci-
gano Pereira, especialmente para aquela viagem.
Quanto aos outros dois que faziam parte da comitiva
de Quintino, não se podia dizer que fossem, mesmo, Ca-
valeiros: eram dois almocreves3, montados na garupa dos
2
Notar como no estilo hábil do Autor apenas duas indicações rápidas prenunciam
todo o desenrolar do conto: o fazendeiro era “respeitável apostador”, e o cigano famo-
so “trocador de cavalos”: a aposta e a troca de noivas. Logo em seguida as circunstân-
cias misteriosas que cercam o depósito do documento completam o quadro.
3
Homem cujo ofício é conduzir bestas de carga.

72
Ariano Suassuna

burros que conduziam, em bruacas de couro, as roupas e


matalotagens dos viajantes principais.
Como era de esperar, a entrada deles em Taperoá cau-
sou não pequena sensação. Os cinco, depois de indagar
onde ficava o Vesúvio Hotel, para lá se dirigiram: apearam-
se, banharam-se, e logo Quintino, o Cigano e Seu Aristi-
des Chicó se encaminharam para a casa do meu Compa-
dre Corsino Tejo, onde todo mundo os aguardava. E seria
então que ocorreriam os incidentes que terminaram me
obrigando a me envolver na orientação do casamento das
duas moças, de um modo muito mais empenhado do que
a mera qualidade de padrinho de Mercedes fazia esperar.
Eu não tinha visto os cinco Cavaleiros, quando de sua
entrada em nossa Vila. Encontrava-me na pequena casa
de porta e janela onde mantenho o meu “Consultório
Sentimental e Astrológico” e redijo o meu relativamen-
te famoso e já conceituado Almanarque do Cariri. Naquela
hora, estava atarefadíssimo, tirando horóscopo a uma viú-
va da Burguesia urbana local, e predizendo-Ihe o destino
através do Taro Adivinhatício4, livro que, com seu baralho,
como todo mundo sabe, contém todos os segredos zodia-
cais e numerológicos do velho Egito.
Fui interrompido então, de repente, pela chegada de
Seu Paulo Pisadinha, meu escrevente, o qual me deu no-
tícia da chegada dos forasteiros e da ida de Seu Aristides;
Chicó e do Cigano Pereira a meu cartório. Os dois que-
riam “registrar um documento em segredo de justiça”,
com recomendação de guardá-lo no cofre, sob sete chaves,
até o dia 23 pela manhã, passadas as festas do casamen-
to. Seu Paulo Pisadinha estava meio cismado com aque-
la encomenda pouco comum, e vinha receber instruções.
Expliquei-lhe como agir e voltei à minha consulta.

4
Conjunto das cartas usadas em cartomancia. O baralho é composto de setenta e
oito cartas.

73
O casamento

Mal Seu Paulo se afastara, porém, ouvi de novo bate-


rem à porta. Corri para lá e dei de cara com minha afilha-
da Mercedes. Mas uma Mercedes tão transtornada, que vi
logo que alguma coisa de muito desagradável estava lhe
acontecendo.
– Mercedes! O que é que há? – perguntei, solícito.
– O que é que há, meu Padrinho? O que há é uma
coisa horrorosa, e vim procurar o senhor porque só você
pode dar jeito nisso tudo!
Fiz-lhe sinal de silêncio, porque a viúva poderia ouvir.
Mandei Mercedes entrar e sentar-se na sala de espera, vol-
tei ao gabinete das consultas, despachei a viúva como pude,
pedindo-lhe que saísse pela porta dos fundos, pois não que-
ria que ela visse a moça. Então, voltei para junto da minha
afilhada e roguei-lhe que me contasse o que lhe acontecera.
– O que há, meu Padrinho, é que aquele desgraçado
me fez a maior desfeita que você possa imaginar!
– Quem? Que desgraçado?
– Meu noivo, aquele peste de Quintino Estrela, que o
Diabo leve para as profundas do Inferno!
– Que é isso, Mercedes, meu bem? Não diga uma coisa
dessas de seu noivo! – disse eu, um pouco hipocritamente,
e passando o braço pelos ombros dela, porque sempre fui
um Padrinho muito carinhoso.
E insisti:
– O que é que seu noivo pode ter lhe feito de mal se,
pelo que eu soube, não faz nem uma hora que ele che-
gou?
– Faz uma hora que ele chegou, mas já teve tempo de
me fazer a maior desfeita que se pode fazer a uma noiva
neste mundo! O senhor sabe que ele me conheceu lá, no
Pajeú, não sabe?
– Sei!
– Foi só ele me conhecer e ficar doido de apaixonado,
dizendo que, ou casava comigo ou morria! A gente noivou

74
Ariano Suassuna

logo, e eu vim me embora pra cá! A paixão de Quintino con-


tinuava cada vez maior, era carta em cima de carta, cada carta
bonita que fazia gosto! Meu Padrinho sabe disso muito bem,
porque era do senhor que eu me valia para responder!
Suspirei, melancólico:
– É verdade! E só Deus sabe como me ficava o coração
para escrever aquelas cartas suas para ele, Mercedes!
– Meu Padrinho sempre brincalhão! Pois bem, meu
Padrinho: com essa paixão toda, foi só Quintino chegar
hoje, aqui, e botar os olhos em cima de minha irmã Alia-
na, para dizer que ela é muito mais bonita, e que, agora,
ele não se casa mais comigo não, só casa se for com ela!
– Mas Aliana não vai casar com Laércio Peba? – inda-
guei, espantado.
– Foi o que meu Pai lembrou a Quintino! Mas ele está
renitente, e diz que não cede, de jeito nenhum! Ou casa
com Aliana, ou não casa com ninguém!
– Isso foi uma ruindade de seu noivo, minha afilhada!
Como é que se troca uma moça viva como você por aquela
cabra-morta de sua irmã?
– Você diz isso porque é meu Padrinho e gosta de mim,
mas Aliana é muito mais bonita do que eu!
– É nada! – menti.
– A prova é que Quintino não quer mais casar comigo
e me largou por causa dela!
– Bem, eu é que não queria essa troca! Mas gosto não se
discute e coração não se governa! Vamos até sua casa! Vou
falar com seu Pai e seu noivo: você vai ver como ajeito tudo
e como você termina casando é com Quintino, mesmo!
– Mas acontece que agora eu é que não quero me casar
mais com aquele peste! Depois de uma ofensa como a que
ele me fez?
– Então, se você está com essa raiva toda dele, deixe
Quintino casar com Aliana, como ele quer!

75
O casamento

– Eu? Eu não! Fico desmoralizada! Sou mais velha do


que Aliana: vou lá deixar que ela case, antes de mim, com
um noivo que foi meu!
– Calma, meu bem! Vamos ver o que é que se faz! Va-
mos lá!
– Não, eu vou sozinha, na frente, e meu Padrinho vai
depois! Não quero que aquele peste de Quintino tenha
a impressão de que estou lutando para que ele volte pra
mim, não!
Indignada, Mercedes ia batendo violentamente a por-
ta e saindo pela frente. Observei-lhe que seria menos no-
tada saindo pela porta dos fundos, como a viúva. Ela se-
guiu meu conselho. Dei-lhe uns dez minutos de dianteira
e então saí também, trancando o “Consultório”.
Fui, primeiro, ao Vesúvio Hotel, pois fui logo infor-
mado, na rua, de que os viajantes já tinham voltado para
lá, depois de terem causado na casa do meu Compadre
Corsino Tejo o rebuliço que já conhecemos.
Encontrei os três forasteiros importantes na sala da
frente do Hotel, sentados em cadeiras de assento de sola,
com um ar meio soturno e obstinado que me revelou,
logo de entrada, que minha missão seria mais dura do
que eu julgara. Quintino era um mocetão alto, robusto,
vermelho, de cabelos pretíssimos, com um ar meio tau-
rino, astuto e lerdo ao mesmo tempo, o que, aliás, ficava
muito bem a um boiadeiro como ele.
Apresentei-me como Padrinho, que era, de sua noi-
va Mercedes. Disse que ele me desculpasse a intromissão,
mas a moça era minha afilhada e eu não podia entender
que um casamento tão bem iniciado fosse de água abaixo,
em condições tão incompreensíveis.
Perguntei-lhe, afinal:
– Você não estava tão apaixonado? Não estava tão conten-
te com Mercedes, tão entusiasmado com o casamento?

76
Ariano Suassuna

Com aquela fala meio arrastada e cantante do pessoal


do Pajeú – fala que provavelmente era de grande serven-
tia a ele em suas discussões sobre preço e trocas de gado
– Quintino respondeu:
– Estava, eu estava muito satisfeito com o casamento
com Dona Mercedes! Mas era porque não conhecia a outra
moça, Dona Aliana! Depois que vi Dona Aliana, achei que
ela é muito mais bonita do que Dona Mercedes, e que, ca-
sando com a irmã da minha noiva, eu faço muito melhor
negócio do que casando com minha noiva, mesmo!
Ao dizer isso, olhou para seus dois amigos, como que
pedindo um reforço, uma confirmação. O Cigano Perei-
ra, voltando-se para mim, falou de lá, com sua voz meio
rouca:
– O senhor compreende que seria uma desmoraliza-
ção, para um boiadeiro vivo e esperto como Quintino, ca-
sar com a mais velha e mais feia, deixando que, no mesmo
dia, um idiota, da qualidade desse Laércio Peba, case com
a mais moça e mais bonita!
Quintino, com ar vitorioso mas lento, olhou para mim:
– O senhor está entendendo, agora? Tenho razão ou
não tenho? Seria uma desmoralização, um mau negócio,
e, desmoralizado em negócio, um boiadeiro como eu não
pode ficar!
Vi logo que, por ali, não encontraria saída. Uma vez
que era “questão de honra de boiadeiro em negócio”, não
adiantava nem sequer tentar aquele caminho. Falei:
– Bem, se vocês encaram a história como questão de
honra, não posso mais me intrometer por esse lado! Mas
vocês entendam, também, minha posição! A moça é mi-
nha afilhada, de modo que ninguém estranhe que eu, por
meu lado, tome minhas providências para ajeitar a vida
dela, que vai ficar meio desmantelada com esse casamen-
to desmanchado assim, em cima da hora!

77
O casamento

– Está no seu direito! – concordou gravemente o Ciga-


no Pereira. – Desde que não seja para desmoralizar meu
amigo Quintino com um mau negócio, o senhor tem toda
liberdade para ajeitar a vida de sua afilhada!
Passei, então, pela loja de Seu Antônio Fragoso, onde
fui encontrar Laércio Peba, com ar meio enfarruscado.
Laércio era meio parvo, meio inocente. Não chegava a
ser “um idiota”, como dissera o Cigano Pereira: era ape-
nas um rapaz sem malícia e sem maldade, ambicioso mas
limitado, com uma ambição miúda e rasteira, aliás muito
de esperar num caixeiro como ele.
Aproximei-me e pedi para lhe falar particularmente.
Pousou o metro de madeira, fez-me um sinal, e segui com ele
para o interior da loja, onde nos sentamos em tamboretes.
– Laércio – falei para começar –, é verdade o que me
contaram?
– Conforme! – respondeu ele, meio desconfiado. – O
que foi que contaram ao senhor?
– Mercedes foi me procurar, furiosa, porque esse noivo
dela, Quitino Estrela, disse que agora, depois que viu sua
noiva, não casa mais com a dele, não, só casa se for com a
sua! É verdade?
– É, parece que ele disse isso lá, na minha frente!
– Na sua frente? – disse eu, fingindo-me de mais es-
candalizado do que realmente estava.
– Bem, na minha frente, mesmo, não! – falou Laércio,
desculpando-se. – Ele pegou Tio Corsino por um braço,
chamou assim para um canto da sala e disse tudo a ele,
baixo!
– Baixo? E como foi que você ouviu?
– Eles começaram a discutir, Quintino levantou a voz,
e aí todo mundo terminou ouvindo ele dizer aquilo: que,
agora, não casa mais com Mercedes, não, só casa se for
com Aliana, que é a mais bonita!

78
Ariano Suassuna

– E você está de acordo, homem?


– Eu? Eu, não!
– E por que não reagiu logo, ali na hora?
– Reagir como? – perguntou Laércio, meio aparvalhado.
– Você devia, pelo menos, ter ameaçado de dar umas
tapas naquele atrevido!
– Umas tapas? – falou Laércio, com uma cara que me
confirmou logo a impressão que eu tinha, há tempo, de
que ele não era capaz de dar tapa na cara de ninguém. E
acrescentou, meio sem jeito:
– É, eu devia, talvez, ter dado umas tapas nele: Mas
Quintino estava armado, e eu, não! – disse afinal, satisfei-
to de ter, para alegar, um motivo de sua passividade.
– Era exatamente o que eu queria. Sugeri, então, logo,
outro motivo:
– É verdade! Além disso, Quintino estava acompanha-
do pelo Cigano Pereira, que, como todo mundo sabe, é
homem criminoso e de maus bofes!
– É isso mesmo! – concordou Laércio. – Foi por isso
que não reagi!
– Quer dizer que vai deixar correr tudo como Quinti-
no quer?
– Eu? Eu, não! Fiquei calado na hora, mas, quando
ele saiu, eu disse a Tio Corsino que não estava de acordo,
nem que ele se danasse comigo! Agora, quero ver como é
que esse casamento se faz!
– E Compadre Corsino? – perguntei, com ar casual. –
Está a seu favor, ou a favor de Quintino Estrela?
– A meu favor, é claro!
– Ele lhe garantiu isso? Deu a palavra dele?
– Não! Mas como é que Tio Corsino pode ficar do lado
desse sujeito, que ele conheceu hoje, pra ficar contra mim,
que sou sobrinho dele?

79
O casamento

– É mesmo! – falei, pensativo, enquanto ruminava


ideias para a ação. – Olhe, Laércio, Mercedes pediu que
eu tentasse resolver esse caso, e é o que eu vou fazer!
– Ah, Seu Quaderna, se o senhor resolver essa história,
me faz, também, um grande favor, uma obra de caridade!
– Pois fique aqui! Fique, que eu vou falar com seu tio e
sondar como anda tudo! Depois, volto para lhe dar ciên-
cia do que está acontecendo!
Saí, então, para a casa do meu Compadre Corsino
Tejo, onde fui encontrar toda a família em grande cons-
ternação. Toda, aliás, é exagero meu: Aliana achava-se na
calma imperturbável em que vivia sempre mergulhada.
Uns diziam que essa calma vinha de serenidade interior
e da segurança que sua beleza lhe dava, mas eu tinha mi-
nhas desconfianças de que ela era assim, serena e calada,
simplesmente porque nunca lhe ocorria coisa nenhuma.
Já Mercedes, minha afilhada, sendo menos bonita, era
mais atirada, mais ardente e, na minha opinião, mais en-
cantadora do que a irmã.
Agora, ali, Mercedes estava uma fúria, arrumando,
sem necessidade, todos os objetos que ia encontrando e
que ela trocava de Iugar, dando grandes pancadas, com
eles, na mesa e nos outros móveis da sala.
Quando entrei, fui saudado por meu Compadre Cor-
sino como um salvador:
– Ah, Compadre Quaderna, você chega na hora! Já
soube da desgraça que nos aconteceu?
– Soube, assim por alto! Quando vinha para cá, passei
na loja de Antônio Fragoso e falei com Laércio, que me
contou, mais ou menos, a história!
– E Laércio? O que foi que ele disse? Qual é a opinião
dele? – indagou Comadre Perpétua com o ar esgazeado
que lhe era natural e que, no momento, estava mais esga-
zeado ainda, pela ansiedade.
Houve um silêncio e eu falei:

80
Ariano Suassuna

– Laércio diz que já estava tudo combinado, de modo


que, por sua inclinação, ele casava, mesmo, era aqui, com
Dona Aliana!
– É o diabo! É danado! – falou Compadre Corsino,
com desgosto. – E acontecer uma história dessas na vés-
pera do casamento!
– Qual é sua opinião sobre tudo isso, Compadre? –
perguntei.
– E eu sei lá, meu Compadre Quaderna da minh’alma!
Estava tudo tão bem combinado, e agora esse rapaz do
Pajeú sai-se com uma doidice dessa qualidade!
Dona Perpétua reforçou:
– Um rapaz como Quintino, tão agradável, tão bem
apessoado! E rico! O homem compra e vende bois por
aqueles mundos todos, dizem que ganha um dinheirão!
E a gente perder esse genro, na situação difícil em que
estamos, é danado!
Mercedes encrespou-se:
– Mamãe, quem ouve você falar, vê logo que você está
do lado de Quintino e de Aliana, contra mim!
– Minha filha, que do Iado de Quintino que nada! –
defendeu-se, chorosa, Comadre Perpétua. – Estou é do
Iado de vocês todos! Mas, se Quintino tem esse gosto, se
está com essa teimosia, acho que não custava nada ceder
um pouco ao que ele quer!
– Ceder? – protestou Compadre Corsino. – Ceder coi-
sa nenhuma, mulher! Se a gente cede Aliana a ele, assim
sem mais nem menos, Mercedes fica sem casar!
Antes que nova explosão de cólera de Mercedes inter-
rompesse as conversações, tive uma inspiração e disse:
– Um momento! Compadre Corsino, eu queria que
você saísse, com Comadre Perpétua e Aliana, e me deixas-
se ter, aqui, um particular com minha afilhada Mercedes!
Vocês poderiam sair um pouco, lá para a outra sala?

81
O casamento

– Podemos, Compadre, por que não? Vamos, Aliana!


Vamos, Perpétua! Eu não dizia a vocês que Compadre
Quaderna era o único homem capaz de resolver essa com-
plicação?
Os três saíram e eu fiquei, de novo, só com Mercedes.
Falei, persuasivo:
– Mercedes, minha querida, por que você mesma não
resolve essa história?
– Eu, meu Padrinho? Como?
– Ceda Quintino a Aliana e case com Laércio!
– Eu? Para ficar desmoralizada, aceitando aquele idio-
ta, “sobejo” de Aliana?
– “Sobejo”, não! Laércio só seria “resto” de Aliana se
ela já tivesse acabado o casamento com ele! Mas ela não
acabou não, ainda é noiva dele, de modo que você é quem
vai tomar o noivo dela!
– Mas aí ela vai tomar o meu!
– Aliana não vai tomar coisa nenhuma sua, porque,
quando ela noivar, você já terá deixado Quintino por
Laér­cio! Ela é quem vai ficar com seu “resto”, com Quin-
tino, com o “sobejo” que você vai deixar!
Os olhos de Mercedes brilharam, mas logo se apaga-
ram de novo, desanimados. Ela insistiu na teima:
– Mas Laércio é um abestalhado!
– Melhor para nós, Mercedes! Melhor para mim, que
gosto tanto da minha afilhada e que, assim, vou poder fi-
car com ela, aqui em Taperoá! Se você casasse com Quin-
tino Estrela, ia-se embora para o Pajeú e nunca mais eu
botava os olhos em cima de você! Depois, mesmo que
você casasse com ele e viesse cá de vez em quando, aque-
le boiadeiro tem cara de sujeito ciumento e desconfiado!
Nunca mais ele ia deixar que você fosse ao meu “Consul-
tório Astrológico”, para eu lhe deitar cartas, ler sua mão e
tirar seu horóscopo!

82
Ariano Suassuna

Mercedes, ouvindo minhas palavras, suspirou:


– Ah, se meu Padrinho quisesse, eu bem que sabia com
quem era que havia de casar!
– Eu também, Mercedes! Mas você sabe que padrinho
não pode casar com afilhada, nem comadre com compa-
dre! Com os que desrespeitam esta lei, todo mundo sabe
o que é que acontece: vão para o lnferno e são obrigados,
toda noite, a dormir com o Diabo na cama dele! Mas, veja
bem: esse é mais um motivo para você ver que seu casa-
mento com Laércio é que vai resolver nossa situação, a sua
e a minha! Laércio é rapaz bom, sem maldade, incapaz de
desconfiar de ninguém! Casando com ele, você fique cer-
ta de que vou poder continuar orientando sua vida pelas
cartas! Você irá, de vez em quando, lá, ao “Consultório
Astrológico”, e eu garanto que não será por falta de ca-
rinho e de assistência moral que você vai sofrer, com o
abandono de Quintino e a leseira de Laércio!
Os olhos dela brilharam de novo, de prazer e vingança:
– Sabe que meu Padrinho parece que tem razão? En-
tão é assim? Um me larga, o outro é um besta, Meu Pai e
minha Mãe me desprestigiam, só meu Padrinho é quem
pensa em mim? Pois eu topo! Topo a troca de Quintino
por Laércio!
– Pois Deus recompense seu bom gênio, minha queri-
da Mercedes! Você é um anjo! Nem Quintino nem Laércio
merecem você! Sua bondade é que vai dar jeito a tudo, e
fazer a felicidade de todo mundo!
Gritei, então, para dentro, chamando os outros, de
volta. Vinham mortos de curiosidade e resolvi satisfazê-
los logo:
– Olhe, Compadre Corsino, me ocorreu, aqui, uma
ideia que eu acho que pode resolver tudo!
– Resolver, como? – indagou Comadre Perpétua, cau-
telosa mas esperançosa.

83
O casamento

– Trocam-se os noivos: Mercedes casa com Laércio e


Aliana com Quintino!
– Oxente, eu pensei que era alguma novidade! – disse
Compadre Corsino, decepcionado. – Nisso, nós já tínha-
mos pensado! Foi o que Quintino propôs, mas Laércio e
Mercedes não quiseram! Mercedes está de acordo, agora?
– Mercedes, com o gênio de santa que tem, não faz
objeções! Mas, com uma condição! – expliquei, disposto
a defender os brios da minha protegida. – Mercedes con-
corda com a troca, com a condição de ser ela a primeira
a acabar o noivado, oficialmente! Só depois disso é que
Quintino pede Dona Aliana em casamento! Dona Aliana
concorda?
Aliana, olhando pela janela a terra sertaneja, que se
perdia, parda, na distância, falou, sem me olhar:
– Ora, era o que faltava eu ligar para essas besteiras de
homem sim, homem não, homem este, homem aquele!
Pra mim, tanto faz Quintino como Laércio, tanto faz ca-
sar como não! Caso com qualquer um dos dois, e também
posso até deixar de casar de uma vez! Pra mim, tanto faz!
Troquei um olhar de inteligência com Mercedes, como
dizendo: “Está vendo, que cabra-morta?” Depois falei:
– Estão vendo? É a solução!
– Mas será que Laércio concorda? – perguntou Coma-
dre Perpétua, aboticando os olhos.
– Deixem comigo! – respondi, já começando a me en-
tusiasmar com o rumo que as coisas iam tomando. – Vou
falar com Laércio, e volto já, para dar a notícia a vocês!
Voltei à loja de Seu Antônio Fragoso e disse a Laércio:
– Olhe, Laércio, estive em casa de sua noiva e o negó-
cio parece que está meio empancado para o seu lado! Co-
madre Perpétua acha que você, sendo da família, poderia
ter mais boa-vontade e ceder um pouco para que tudo se
resolvesse!

84
Ariano Suassuna

– Mas ceder um pouco, como? Resolver tudo, como?


Dando minha noiva a Quintino?
– Não, dando sua noiva não, trocando sua noiva pela
de Quintino! Ele casa com Aliana, como está querendo, e
você casa com Mercedes!
– Mas Aliana é mais bonita! – protestou Laércio.
– Que tolice, Laércio! Todas duas são bonitas, todas
duas são boas moças, todas duas são suas primas! Para
você, não faz diferença nenhuma!
– Pois se não faz diferença, é melhor que eu me case,
mesmo, com Aliana! Eu já era noivo dela, me acostumei
com essa ideia, de modo que caso é com ela, mesmo!
– Laércio, eu, se fosse você, pensaria um pouco mais no
assunto! Não é por Aliana, nem por Mercedes, nem por
você: é, mais, por sua Tia Perpétua e por seu Tio Corsino!
Você sabe que, com a seca, nossa situação aqui anda ruim.
Quintino tem muito mais recursos do que você! É claro que
seus tios não me falaram nada, mas eu entendi perfeita-
mente, da nossa conversa, que eles não estão, absolutamen-
te, em condições de perder aquele genro boiadeiro e rico!
Acho que, em último caso, eles vão ter que fazer somente o
casamento de Aliana com Quintino! E aí, vai ser pior para
você: todo mundo vai ficar mangando e rindo de você, por-
que tomaram sua noiva e não lhe deram nada em troca!
Laércio me olhou, espantado. Pela primeira vez, a
questão lhe era apresentada por aquele prisma. Conti-
nuei, para reforçar:
– Agora, veja como a coisa muda de figura se você casa
com Mercedes! Primeiro, ninguém pode dizer, mais, que
você ficou sem nada, porque você terá ganho outra noi-
va, em troca da que perdeu. Em segundo lugar, como eu
disse, lá na casa do seu sogro, por enquanto, está tudo
no mesmo pé: oficialmente, você ainda é noivo de Alia-
na, e Quintino é noivo de Mercedes. Já combinei tudo

85
O casamento

com as moças: caso a gente faça o acordo, Mercedes vai a


Quintino e acaba o casamento dela. Aí, você vai a Aliana e
acaba o seu. Depois, você vai a Mercedes e noiva com ela.
Só depois disso tudo é que Quintino pede Aliana! Assim,
ninguém pode dizer que Quintino tomou sua noiva: você
é quem vai tomar a noiva dele, porque vai noivar com ela
antes dele noivar com aquela que tinha sido sua, mas não
será mais! E, nisso tudo, você ainda pode lucrar, tendo
uma boa compensação no negócio, Laércio!
– Lucrar uma compensação? Que compensação? – fa-
lou Laércio, começando a melhorar a cara, mas ainda in-
terrogativo.
– Aqui no Sertão, quando a gente troca uma novilha
por outra melhor, não paga um dinheiro ao dono da boa,
como volta? Pois, mal comparando, se você trocar Aliana
por Mercedes, você pode conseguir uma volta no negó-
cio! Seu Tio Corsino ficará tão contente por casar as duas
filhas, de novo, que bem pode dar alguma coisa a você,
em troca de sua boa-vontade!
A cara de Laércio estava, sem dúvida, cada vez melhor:
– O senhor acha que Tio Corsino poderia me dar algu-
ma coisa, mesmo, Seu Quaderna?
– Acho! Você quer que eu fale com ele sobre isso?
– Quero, quero! Fale, Seu Quadema! Se Tio Corsino
der uma volta, uma volta boa, mesmo, eu topo a troca
e o casamento com Mercedes! Agora estou vendo que o
senhor tem toda razão: todas duas são bonitas, todas duas
são minhas primas, e qualquer uma das duas me serve!
– Então, ótimo! Vou falar com meu Compadre Corsino
e volto já.
Cheguei à casa do meu Compadre e pedi para falar
com ele, em particular. Desta vez, Mercedes saiu, com
Aliana e Comadre Perpétua. Fiquei só, com o pai dela, e
fui logo dando a boa notícia:

86
Ariano Suassuna

– Compadre, falei com Laércio! No começo, ele ficou


contra; mas eu discuti e terminamos chegando a um acor-
do: ele concorda em ceder Aliana a Quintino, se, em tro-
ca, você der, a ele, Mercedes e uma volta!
– Pois está certo! – concordou Compadre Corsino. – Eu
dou a volta, pra ninguém dizer que não tive boa-vontade!
O que é que Laércio quer, de volta?
– Ele não me disse não, mas eu pensei no seguinte:
você sabe, Compadre, que Laércio tem um pedaço de ter-
ra que ele comprou com as economias que trouxe de Ca-
baceiras. O ordenado de caixeiro, dele, é pequeno. Se ele
conseguisse fazer a terra dar uma rendazinha, a situação
seria outra, principalmente agora, que ele vai casar! Eu
soube que Laércio andou querendo comprar uma junta
de bois, para trabalhar na terra, e não pôde fazer o negó-
cio por falta de dinheiro! Por que você não dá a Laércio
uma junta de bois de carro?
– Ah, não! Uma junta, é demais! Dou um boi!
– Mas Compadre, ele vai ceder a noiva! Veja que não é
coisa pouca não! Dê a junta!
– Dou um boi e já é demais! Não discuta isso não, Com-
padre! Quem sabe das minhas posses sou eu, de modo
que, quem sabe o que eu posso dar ou não, sou eu! Dou o
boi: se ele quiser, o casamento de Mercedes com ele se faz!
Se não, não se faz, e acabou-se!
– Está bem, vou ver se ele aceita a troca somente com
um boi, de volta! Qual é o boi que você vai dar? Me diga,
para eu dizer a Laércio, caso ele pergunte!
– É o boi “Bordado”! Desmancho a junta que ele faz
com “Bem-Feito”, e dou “Bordado” a Laércio!
– Está certo, Compadre, vou levar a proposta a Laér-
cio! Mas tem uma coisa: você não fale dessa história da
volta a Mercedes de jeito nenhum! Ela pode se ofender,
e aí o negócio volta todo à estaca zero! Diga somente que

87
O casamento

Laércio concorda, em princípio, e que eu estou ultimando


os termos do acordo!
Voltei a Laércio:
– Laércio, meus parabéns! Está tudo resolvido! Você
cede Aliana a Quitino, casa com Mercedes, e seu sogro lhe
dá, como volta, um boi de carro que ele tem, “Bordado”!
Laércio deu um pulo do tamborete:
– Ah, não! Um boi, só? Até a junta é pouco! ... Pra
que desfazer a junta que “Bordado” faz com “Bem-Feito”?
Meu tio, então, acha que ceder minha noiva àquele boia-
deiro safado é pouca coisa? Não, assim não cedo, não!
Diga a Tio Corsino que ele me dê a junta completa e mais
dois contos de reis, que aí eu cedo!
– Mas, Laércio, que exagero! A diferença de Mercedes
para Aliana também não é tão grande assim, não!
– Seu Quaderna, isso não discuta não, porque eu sei
o que estou fazendo! Quem vai ceder a noiva sou eu, de
modo que quem determina a volta sou eu!
– Está bem, Laércio! – falei, cordato. – Já que você,
nisso, está irredutível, vou ver se consigo a volta que você
quer!
– Viera-me uma ideia que talvez fosse a solução. En-
quanto Laércio esbravejava, tinha se referido a Quintino
Estrela como “aquele boiadeiro safado”. Eu me recordara,
então, de que Quintino era boiadeiro e que bem podia
então, no caso, resolver aquela parte, uma vez que havia
gado pelo meio.
Fui procurá-lo, de novo, no Vesúvio Hotel. O Cigano
Pereira não estava, o que me deixou mais animado, por-
que, do grupo de pajeuzeiros, ele me parecia o mais astuto
e obstinado. Encontrei Quintino e Seu Aristides Chicó no
mesmo lugar em que os deixara. Dirigi-me ao primeiro:
– Quintino, vim aqui procurá-lo, porque o negócio do
seu casamento parece que vai se resolver. Falei com Laér-

88
Ariano Suassuna

cio Peba: ele concorda em ceder Aliana a você, casando


ele, em troca, com Mercedes!
Quintino falou lento, de lá, sem surpresa:
– E não foi o que e propus desde o começo? Por que
aquele besta não cedeu logo?
– Bem, você sabe que não é fácil uma pessoa se conven-
cer assim, logo, de que deve ceder a noiva a outro e casar
com a irmã dela! Mas agora Laércio viu que, para ele que é
primo, tanto faz casar com Mercedes como com Aliana!
– Então, ótimo! Amanhã, o padre faz os dois casamen-
tos e o senhor está convidado!
– Espere, homem! Existe ainda uma dificuldade a ven-
cer! Laércio concorda na troca das noivas, mas exige uma
volta, pelo fato de Aliana ser mais bonita do que Mercedes
– o que, aliás, você foi o primeiro a dizer! Fui procurar seu
futuro sogro, e ele mandou oferecer a Laércio um boi de
carro, como volta. Mas Laércio só fica satisfeito com dois
bois e mais dois contos de réis, para começar a vida numa
terrinha que ele tem! Lembrei-me, então, de que você, sen-
do boiadeiro e homem rico, pode dar a parte da volta que
está faltando, isto é, um boi e mais dois contos!
Quintino me olhou, pesando a proposta. Depois, fa-
lou:
– Olhe aí, Seu Quaderna, essa volta está grande de-
mais! Se a coisa vai nesse pé, daqui a pouco termino fazen-
do mau negócio, de novo! Diga a esse tal de Laércio que o
que eu posso fazer é dar o outro boi, para ele completar a
junta! Os dois contos, eu não dou, de jeito nenhum! Não
acha, Aristides Chicó?
– Acho, Quintino! – concordou Seu Aristides. – Assim,
mau negócio por mau negócio, era melhor não ter nem
começado a trocar as noivas!
– Tem razão, Aristides! – falou Quintino. – Diga a Laér­
cio, Seu Quaderna, que minha última palavra é essa! Dou
o boi: ele junta com o outro que Seu Corsino dá, completa

89
O casamento

a junta e começa a vida na terra dele, com isso! Se ele qui-


ser, está resolvido! Se não, pela cara que Dona Perpétua
anda fazendo, sei que termino me casando com a noiva
dele e ele sem noiva nenhuma!
– Está bem! – concordei com minha proverbial paciên-
cia. – Vamos ver o que se pode fazer!
Quando cheguei à calçada da rua, notei que, lá da es-
quina, o Cigano Pereira estava me espreitando, com ar de
conspirador. Ele me fez um aceno e eu me cheguei para
o lado de lá.
Perguntou-me o que havia. Em poucas palavras, eu o
coloquei a par da situação. Terminei dizendo, aflito:
– De modo que, apesar de todos os meus esforços, ago-
ra é capaz do negócio encrencar todinho de novo, só por
causa desses dois contos!
– Mas pode ser que o tal do Laércio concorde na troca
somente pela junta de bois!
– Acho que não, Seu Pereira! Pela cara dele, o homem
não cede, nisso, nem a pau! Em todo caso, como não te-
nho outro caminho, é o que vou tentar!
– O senhor acha que eu podia ir, também conversar
com Laércio?
– Acho que sim! Por que pergunta?
– Porque, se o senhor não vê mal nisso, eu tenho um
certo jeito para tratar desses assuntos de troca e volta, de
modo que acredito que posso ajudar!
– Pois então, vamos nós dois!
Pela quarta vez naquela manhã, cheguei à loja de Seu
Antônio Fragoso, desta vez acompanhado pelo Cigano
Pereira. Vi-me, porém, desta vez, diante de um Laércio de
pedra. Fiz todos os apelos possíveis para que ele abrisse
mão dos dois contos, e nada! Terminou dizendo:
– Seu Quaderna, eu tive a maior das boas-vontades!
Abri mão da minha noiva para outro, somente para não
causar problemas e ver todo mundo feliz! Agora, também

90
Ariano Suassuna

espero boa-vontade das outras partes, porque, abrir mão


de Aliana, eu ainda abri, mas desses dois contos, não tem
quem me faça! Nessas coisas de princípios, eu sou duro!
Desanimei:
– Então, acho que vai voltar tudo para o mesmo pé,
porque esses dois contos, eu não vejo de onde tirar! Con-
segui a junta de bois que você exigiu, mas quem iria en-
trar com esses dois contos?
Foi aí que sucedeu um lance que eu não teria coragem
de contar se não tivesse visto acontecer. E foi que, ouvindo
aquela pergunta sobre quem iria pagar aqueles dois con-
tos, o Cigano Pereira rouquejou de lá:
– Eu! Eu pago esses dois contos!
Fiquei, durante alguns momentos, olhando embasba­
cado para ele, porque nunca se ouviu contar que um ci-
gano desse dois contos, assim, a ninguém, fosse por que
motivo fosse. O Cigano Pereira, aliás, parece que sentiu
nossa estranheza, porque resolveu explicar:
– Você sabe, Laércio, que eu sou amigo de Quintino,
amigo pra rir e pra chorar! O pessoal diz, por aí, que
cigano é gente incapaz de gastar dinheiro, mesmo com
um amigo... É verdade que, de fato, eu já ganhei dinheiro
com o casamento de Quintino, na venda dos animais em
que viemos, e que os dois contos serão tirados do lucro
que tive nessa venda. Mas, mesmo assim, a verdade é que
o lucro já estava no meu bolso. Assim, d’agora por diante,
vocês já podem dizer a todo mundo que viram um cigano
gastar dinheiro grosso, só por causa da amizade que tem
a uma pessoa. Você dá sua palavra de que, com esses dois
contos, não aparece mais dificuldade nenhuma e o casa-
mento se faz, Laércio?
– Dou!
– Pois então, tome! Você recebe os dois contos é agora!
Vamos comunicar a boa notícia a todos, Seu Quaderna! E
vamos almoçar, que já é tarde e a gente bem merece!

91
O casamento

Naquele mesmo dia, à tarde, quando tudo já estava


combinado e encaminhado, Mercedes apareceu no meu
“Consultório Sentimental e Astrológico” para me agra-
decer. Conforme se resolvera, ela tinha ido ao Vesúvio
Hotel, comunicar “oficialmente” a Quintino Estrela que
lhe devolvia a palavra de noivo. Recebeu a aliança dele,
atirou-lhe a dela na cara e saiu, furiosa. Depois disso, La-
ércio foi à casa do tio e acabou seu noivado com Aliana,
pedindo, logo em seguida, Mercedes em casamento. Fina-
mente, depois dessas cenas, Quintino foi à casa de Aliana
e noivou com ela.
De modo que, no dia seguinte, 22 de março de 1933,
o duplo casamento se fez, com boa festa e grande con-
tentamento de todos, casando-se Laércio com Mercedes
e Quintino com Aliana. Eu me sentia orgulhoso com a
brilhante atuação que tivera, movendo-me calmo, lúcido
e obstinado em todas as peripécias daquele caso. Tudo eu
planejara, tudo ajeitara, tudo decifrara, com as astúcias
do Tabelião, Astrólogo e Decifrador que sou.
Um só fato ainda me deixava intrigado: eram os dois
contos do Cigano Pereira. Esse fora o único pormenor
com o qual eu não contara, que me deixara surpreendido,
pois, com a experiência de vida que tenho, no Cartório e
no Consultório, ainda me parecia inacreditável.
A explicação dele só me chegaria no dia seguinte ao
do casamento. Na casa do meu Compadre Corsino Tejo
faziam-se os preparativos para a viagem de Aliana, que
ia, de automóvel alugado, para o Pajeú, com seu marido,
Quintino Estrela. O Cigano Pereira e Seu Aristides Chicó
iam voltar como tinham vindo, a cavalo, e levando, pela
rédea, a esplêndida montaria do boiadeiro.
Eu estava no Cartório, quando esses dois pajeuzeiros
me entraram de sala adentro, reclamando o documento
que tinham deixado no cofre, dois dias antes, em segredo

92
Ariano Suassuna

de justiça. Abri o cofre, recebi as custas do registro e ia en-


tregar o documento, quando o Cigano Pereira, fosse por
ter encontrado e admirado em mim alguma habilidade,
fosse por orgulho profissional de trocador e negociante,
me autorizou a ler o papel.
Passei uma vista rápida e curiosa por ele e as escamas5
caíram de meus olhos. Estavam ali, registrados e assina-
dos pelos dois, os termos de uma aposta firmada entre
o Cigano e Seu Aristides Chicó. O Cigano Pereira tinha
se obrigado, na aposta, a, no prazo de um dia, conven-
cer Quintino Estrela a acabar seu casamento com a noiva
Mercedes e a casar com a irmã dela. Se conseguisse isso,
ganharia cinco contos de réis de Seu Aristides Chicó, pa-
gando-lhe a mesma quantia em caso contrário. Como sua
tarefa era a mais difícil, estipulava-se, no contrato, que o
Cigano poderia “tomar iniciativas”, coisa vedada a Seu
Aristides Chicó.
Rindo, o Cigano Pereira me disse que, graças a mim,
porém, ele só tivera que tomar duas iniciativas: a primei-
ra, quando insinuara a Quintino Estrela, na hora da che-
gada, que a noiva de Laércio era muito mais bonita e que
ele faria um mau negócio casando-se com a sua – coisa
insuportável para o senso de honra de um boiadeiro e tro-
cador de sua estirpe. A outra iniciativa fora a de oferecer
a Laércio os dois contos de réis da volta. O Cigano fazia
questão de me mostrar como, mesmo aí, fizera bom ne-
gócio: gastara dois contos, no dia anterior, mas receberia,
agora, os cinco da aposta. É verdade que, com a despesa
da volta, seu lucro ficara reduzido a três contos. Mas três
contos, dois contos, um conto, qualquer dinheiro que lhe
aparecesse pela aposta seria lucro – e esse fora o motivo
de ter ele se oferecido tão facilmente para completar a
volta de Laércio.
5
No sentido de descobrir a verdade.

93
O casamento

Agora, sim, estava tudo claro e perfeito: eu matara a


charada e decifrara o enigma. De modo que posso concluir
dizendo que, talvez sem muita relação entre as leis da vida
e as leis do Código, a história do casamento de Mercedes e
Aliana é dessas raras, em que tudo termina bem, com todo
mundo lucrando e todo mundo satisfeito. Compadre Cor-
sino e Comadre Perpétua livraram-se de duas filhas soltei-
ras e dispendiosas e ganharam dois genros, como sonha-
vam. Aliana ganhou um marido mais rico do que o noivo
que possuía, e Quintino Estrela uma mulher mais bonita
do que a noiva que lhe estava destinada. Laércio – a quem,
segundo ele, eu fizera “uma obra de caridade” – ganhou
uma junta de bois e mais dois contos. Mercedes ganhou
um marido e o direito de continuar tirando horóscopos
em meu consultório. Eu ganhei o direito de continuar a
conviver com ela, dando assistência moral e conforto con-
tínuo a uma afilhada ardorosa e muito querida. O Cigano
Pereira teve o lucro da venda dos cavalos e os três contos
que sobraram do dinheiro da aposta. E até Seu Aristides
Chicó – que perdeu os cinco contos – ganhou uma via-
gem de recreio a Taperoá, com todas as despesas pagas
por Quintino, e a lição de que ninguém deve nunca, em
hipótese nunhuma, fazer aposta com cigano.

94
Clarinha
Arnaldo Tobias

Capítulo 1
Acompanhei a sua roupa crescendo no varal. Do meu
quintal eu assistia a esse espetáculo sob o sol e ventos.
A anágua azul e a calcinha de rendas e flores bordando
setembro e a primavera. Do seu quintal ela olhando para
mim com a indiferença de ontem. A Menina crescendo
não sabia que eu escrevia poemas para ela e os guardava
dentro de livros com pétalas de rosas vermelhas.

Capítulo 2
A menina se fez moça e a roupa diminuiu no espaço do
corpo. A blusinha curta mostrando o umbigo vertical com
a covinha. Não vi mais anáguas azuis no varal. A saiinha
ou o vestido no meio das coxas róseas. Clarinha já tinha
abolido o sutiã e o decote desceu oferecendo pretensa-
mente o vértice dos seios. Um dia a surpresa foi tamanha
que me invadiu o peito.
Fui convidado de palavra para o seu aniversário de
quinze anos. Senti o seu hálito tão perto que me subiu
um calor no rosto e ela deve ter notado a minha emoção
tímida. Prometi ir à festa e fui comprar uma camisa de
cetim e um sapato social. Na festa (sem champanhe e de
poucas pessoas) Clarinha confessou sua paixão por mim
desde os nove anos. A paixão cegava os sonhos e desejos
perturbáveis. O pecado consentido. Disse: Mas Clarinha
Clarinha

eu tenho exatamente quarenta anos. Vinte e cinco mais da


sua idade. Disse-lhe: Para mim você é jovem e tão latente
como o sol nascente. Respondeu-me com metáfora.

Capítulo 3
Quando nos casamos no mesmo ano (sem véu e grinal-
da) a festa foi simples como a festa dos seus quinze anos.
Clarinha não acompanhou minha idade avançando. De-
pois de quinze anos, ela ficou a balzaquiana mais bela do
mundo e eu sessentão acometido de fortes dores na ure-
tra. Tive de um dia submeter-me a uma inadiável cirurgia
(que me impediu de fazer um filho em Clarinha) na im-
potencialidade sexual. Então o urologista arrancou-me a
castanha da próstata deixando lá no fundo um câncer me
matando de sofrimentos. Clarinha escusando-se dos meus
tratos e asseios. Esquecendo o meu remédio na farmácia.
Hoje a acompanho com resignação e tristeza vendo-a ter
filhos com o jardineiro. Pago muito bem ao rapaz para ele
trazer rosas vermelhas e fazer Clarinha feliz. Satisfeita.

96
O Engole Cobra
Ascenso Ferreira

O coronel não gostava de apelido. Assim, por volta das


seis horas da tarde, ele estava sentado no terraço da casa-
grande, passeando pra lá e pra cá, quando aparece um
sujeitinho...
– Boa-noite, seu coroné.
– Boa-noite.
– Coroné, não tem um servicim por aí pra mim, não?
– Talvez se arrume, talvez se arrume... Como é que
você se chama?
– Eu me chamo Engole Cobra.
– Engole Cobra?! Ô, Maria!... Maria!... Anda ver o ho-
mem que engole cobra! – chamou a mulher que estava lá
dentro.
A mulher apareceu. Ele fez a apresentação e disse:
– Engole Cobra, meu nego, você vai morar ali naquele
ranchinho…
Passou sexta, sábado, no domingo o sujeito veio recla-
mar:
– Coroné, não tem um servicim pra mim, não?
– Que é que o senhor tá reclamando? Não recebeu as
suas férias?
– Recebi, sim senhor.
– Não se incomode que logo aparece... logo aparece...
Lá para o meio da outra semana, descobriram uma
surucucu que não tinha mais pra onde crescer.
– Não bole com ela não, vai chamar ali seu Engole
Cobra.
O Engole Cobra

O Engole Cobra veio nas carreiras. Disse:


– Engole Cobra, meu nego, está aí um servicim pra
você. É só essa besteirinha pra você engolir.
– Tá doido, seu coroné. Eu nunca engoli cobra! Isso é
apelido!
– Aaaahhh! é apelido!... Vigia, ô vigia! Dá uma surra
nesse homem, vigia!

98
Bestas piedosas
Augusto Ferraz

Há dez anos pede esmolas naquela esquina. Um cruza­


mento de ruas num recanto qualquer de uma cidade gran-
de. A perna esquerda, atrofiada pela pólio, à mostra, que
era para as pessoas se compadecerem. Lembrava-se do dia
em que, quando criança, a perna resolvera deixar de cres-
cer, tornara-se essa coisa disforme, curta, de pele e osso, a
acompanhar a direita que se desenvolvera normal­mente.
Só de birra, ela acompanhava a outra, e isso o machucava.
Odiava a perna, dependurada no seu corpo. O pé, tron-
cho, parecia querer dar-lhe rasteiras a todo momento. Para
nada lhe servia, aquela perna. Só para pedir esmolas. Uma
bengala branca, de madeira, ajudava a manter o equilíbrio
de quem fora driblado pela própria perna. A bengala, fur-
tara de um cego, no momento em que o pobre caíra, quase
atropelado e morto a dois quarteirões dali. O cego não
perdera a vida, mas ficara sem a bengala. Chegava cedo ao
local e atravessava o dia. Era difícil andar entre os carros,
com aquela perna quase morta. Ela, muito mais o arrasta-
va. A mão estendida, era duro. As pessoas invariavelmente
lhe diziam não, muitas nem o olhavam, ele tinha certeza
de que era a bosta da perna, e ficava com raiva das pessoas
e da perna. Mas, no instante seguinte, que fazer?, a raiva
passava, outra coisa não lhe restava a não ser carregar a
perna e obrigar a todos a vê-la, mesmo que não quisessem.
Era a sua vingança contra os sãos. Era o que o mantinha
vivo. Estava recostado no pé de oiti, na beira da calçada,
quando teve um pressentimento. Uma voz sussurrou-lhe
Bestas piedosas

ao ouvido uma mensagem. Coisa estranha! A mensagem


cravou-se-lhe nos miolos, tal um oiti que amadurecera
dentro deles. Ergueu-se, preocupado, olhava para os lados
e para mais além, para a rua a perder de vista, do outro
lado do cruzamento. Ficou espiando. Um amontoado de
gente e de carros. Uma agonia. Ele, a espiar, a andar, na
calçada, de um lado para o outro, a puxar aquela perna
maldita, esquecera-se até de pedir esmola. Bem distante,
na calçada da rua do outro lado, uma sombra manquitola-
va e aproximava-se da esquina. O semáforo aceso: verde,
amarelo, vermelho, amarelo, verde... O semáforo nunca
saía do vermelho. Mas a sombra avançava. Viu tratar-se de
um homem imenso, cor parda, como a dele, desprovido
da perna direita. O homem caminhava com a ajuda de
uma muleta. Aquela muleta no sovaco devia incomodar
um bocado. Vestia uma camisa de manga curta e uma ber-
muda, que era para as pessoas admirarem-lhe a ausência
da perna, na presença daquela musculosa, mas que não
lhe valia pela outra, a que lhe faltava. A que lhe faltava,
dera-lhe um chute na bunda e fora embora. O homem,
descalço. Sem perna, e ainda descalço. O mendigo olhou
o homem com um olhar de superioridade. Entronchou o
canto da boca, numa expressão de asco. Esse não presta,
resmungou. O homem sem perna sorriu e pôs-se imedia-
tamente a pedir esmolas, na esquina, do outro lado do
cruzamento. Só me faltava essa... Um concorrente, depois
de dez anos! Estava rindo do quê, o carinha?! Desconfiou,
o homem rira da sua perna atrofiada. Uma neblina des-
prendeu-se de dentro do mendigo e tomou a calçada. A
neblina flutuou feito uma poça de lama engolindo suas
pernas. Nesses momentos, ele sentia uma vertigem, sob os
seus pés um buraco abriu-se e ele foi tragado para o fundo
do buraco. Sua fisionomia mudou. A cabeça a ponto de
explodir. Ouvia vozes, um mato fechado cresceu em torno

100
Augusto Ferraz

de si. O coração disparou. Ele, no fundo do buraco, a per-


na mastigada pela pólio, enterrada na lama. Não conse-
guia respirar, nem retirar a perna da lama. Tossiu. A nebli-
na a desprender-se, negra e venenosa, escancarava-lhe
uma portinhola no coração. Era por ela que o guará se
esquivava e aparecia do fundo da mata que havia dentro
dele, nessas horas em que não enxergava nada dentro do
buraco. Apareceu. Um bicho esguio. Cara pequena, olhos
desconfiados, pernas e focinho compridos, a pelagem,
vermelho-clara, grossa, as orelhas enormes de saber-lhe os
segredos mais ocultos..., e os pés pretos, sujos de lama. O
ódio nunca confessado que o fizera viver em aperreio e em
aperreio fizera-lhe do coração brotar aquele guará que o
perseguia pelos cantos, a sombra do seu ódio. O animal
pôs-se a dar voltas e mais voltas em torno do mendigo,
não o perdia de vista. Temia ser despedaçado pelo animal.
Sabia-se prisioneiro dele, mas, não sabia, o animal era ele.
Detestava quando o bicho, de um momento para o outro,
urinava-lhe na perna atrofiada para, logo depois, afastar-
se e ficar, a uma certa distância, a encará-lo interrogativo.
Coisa boa não está para acontecer, farejou. O resto do dia,
intranquilo. Aflito, nos seguintes. A sombra atlética do
mendigo manco atravessava a rua e vinha assombrar-lhe o
corpo mirrado. Ameaçava-o de decepar-lhe a perna atro-
fiada com um chute da perna que não havia. Era peremp-
tório. O homem zurrava: sua perna estava lá. Ele a sentia
caminhar. Toda vez que escorava o corpanzil na muleta era
sobre o pé da perna inexistente que o raio da muleta cal-
cava. É um veado, repetia o mendigo, morto de despeito
por ver, o manco conseguia mais trocados. O guará lá, sen-
tado, encoberto pela neblina, fingindo-se distraído, po-
rém, pronto para dar o bote. O bicho nunca mais saíra da
cola dele, desde que o manco chegara e se aboletara na-
quele canto. Será, estou do lado errado? Matutou, e sentiu

101
Bestas piedosas

uma raiva danada de si, só de pensar, permanecera dez


anos a pedir esmolas no local errado. O manco invejava as
pernas do rival. Achava-as lindas! Aquela perninha depen-
durada, então, um mimo. Que lhe adiantava ganhar mais
moedas, se o mendigo, do outro lado, tinha pernas, e a ele
faltava uma? Era um homem torturado pela perna que o
ônibus esmigalhara. No dia do acidente, lembrava-se ain-
da, perdera a perna, e o juízo se fora depois de ver-se sem
o precioso membro, deitado no leito. Quem foi o filho da
puta que arrancou a minha perna?, vociferou, o hospital
em polvorosa com a imensidade daquele grito medonho.
Jamais esquecera, estava com a perna quando chegara ao
hospital. Foi num piscar de olhos. A vida, um martírio,
desde o dia em que, ao levantar da cama, precisou se esco-
rar numa muleta para caminhar. Nunca mais fora o mes-
mo. Tornara-se um desconhecido de si mesmo. Um ho-
mem soturno. Não. Um homem, não. Uma sombra sinis-
tra a apoiar-se numa muleta e a caminhar com uma perna
que não mais existia. Não existia para os outros. Para ele,
ela estava ali, coçava todo santo dia, e o incomodava em
sua invisibilidade irritante. Sem a perna, perdera o cami-
nho e, no descaminho, fora descobrir, restavam-lhe duas
mãos para recuperar a dignidade nas moedas que outros
pudessem lhe dar. Não demorou para ele enxergar o gua-
rá escondido na perna carcomida do mendigo. Aquilo
pensa que é esperto, grunhiu, e se fechou nas dobras da
sua inveja. Pois sim... Tenho medo de cara feia, não. O
homem só faltava comer a muleta. A inveja goteja dos seus
olhos. Gotejava. Os olhos do cão selvagem a espiá-lo dos
olhos do mendigo. O gotejar da inveja foi dando corpo a
sua sombra. Uma sombra esquisita, amarrada a uma única
perna, a sombra a rastejar de quatro. Uma sombra incha-
da pelo corpo da perna que não havia no homem. Bicho
perigoso, aquele homem sem perna, aquela sombra engo-

102
Augusto Ferraz

lindo o homem, o homem a rastejar no chão, devorado


pela inveja, agora uma sombra. A sombra, um homem es-
quisito. Não. Um homem, não. Um bicho. Que bicho? O
bicho esticou-se pelo tronco do oitizeiro, talvez atraído
pelo aroma intenso das drupas, no alto. Uma suçua­rana. A
fera esgueirou-se nos galhos da árvore, voava silenciosa na
mata de folhas pequenas, estendida no céu, indo de um pé
de oiti a outro, a suçuarana, com seu pelo baço, armava a
tarde morna, a boca da noite na da suçuarana a engolir a
cidade. O guará, nem aí. À presa se achegou sorrateira,
escondida atrás das folhagens da árvore, bem no alto, os
olhos cinzentos focavam o dia indo embora na figura do
mendigo. Foi só o pobre dar dois passos, e na calçada um
abismo abriu-se. A mais negra escuridão despencou do pé
de oiti e desceu rasgando as costas do homem a unhadas.
O mendigo não sabia o que estava acontecendo. Teve cons-
ciência apenas quando uma boca voraz mordeu-lhe o qua-
dril e pôs-se a decepar-lhe a perna boa a dentadas. Larga
minha perna, urrou apavorado o guará, com o rabo entre
as pernas. Aquilo não podia ser. Olhou para o outro lado,
e não viu o mendigo sem perna, só uma perna sem o men-
digo. Ficou mais apavorado. Podia ser, sim, e era, uma su-
çuarana a atacá-lo do pé de oiti, acontecimento banal na
vida de uma cidade grande. Num segundo, não passava de
um guará estropiado, estendido no canto do muro, o san-
gue pobre a vazar-lhe do corpo e a escorrer pela calçada
como uma perna, na qual ele tinha nojo de pegar. Minha
perna, cadê minha perna? O homem, aos berros. Mas não
havia berros, nem homem. O homem se fora, nos berros.
E a neblina escura desvanecera para desencobrir-lhe a rai-
va. Na calçada, estrebuchava. Um corpo moribundo.
Olhou, mais adiante, e viu o mendigo, de muleta, atraves-
sar a rua, carregando uma perna sobre os ombros. Ele ria,
sarcástico. Acompanhou aquela figura terrível largar sua

103
Bestas piedosas

carga macabra no chão e só então percebeu, aquela perna,


em pé, que vira sobre a calçada, na outra esquina, era a sua
e não do manco. Olhou para a que lhe restara e choramin-
gou: agora, nem muleta nem nada. Sentiu-se um guará,
humano, de verdade. Volveu o olhar para o rival, que ódio!,
e viu o sacana a afastar-se, capengando com a sua perna,
no lugar da que lhe faltava, feliz da vida. Lembrou do dia
em que surrupiara a bengala do cego.

104
A supremacia feminina
Barbosa Lima Sobrinho

Naquela noite, a falta de assuntos excedera as propor­ções


habituais. Debalde remexia as velhas coleções de jornais;
debalde esquadrinhava as gazetas do dia. Arrumava diante
de mim as laudas de papel, molhava a pena no tinteiro... e
o assunto zombava desses preparativos metódicos...
Eis senão quando entra pela sala e atravessa a correr os
espaços entre as bancas um senhor de meia-idade, agitado,
nervoso e que não parava de firmar, no seu nariz adunco, as
suas lunetas de aros de prata. Estacou junto à mesa do secre-
tário, disse algumas palavras e o secretário apontou a minha
direção. Sorri, na esperança de que com o visitante me viesse
também o assunto arredio. Prazenteiro lhe perguntei:
– Que deseja o senhor?
Fechando os sobrolhos, ele respondeu com aspereza:
– Venho fazer uma reclamação.
Anuviou-se-me o ar prazenteiro. Tinha, por certo, al-
guma história trivial, as impertinências de um mau vizi-
nho, voltas desnecessárias de chauffeur esperto, excessos
de poder de policial suburbano. Desconsoladamente fui
ajeitando as laudas de papel:
– Pode começar.
O sujeito firmou as suas lunetas de aros de prata, de-
trás das quais fuzilava um olhar austero:
– Ouça primeiro. Não se trata de uma história comum.
Estou aqui em missão cívica, como presidente da “Liga
dos bons costumes”, em defesa de interesses coletivos e
do pundonor geral.
A supremacia feminina

Disse, a gesticular, irritado, vermelho. Pedi que se acal-


masse e me dispus a ouvir.
– Não preciso lembrar que estamos no carnaval. Os cor-
dões há dias que movimentam a cidade, com as passeatas,
a alegria dos cantos e das músicas aliciadoras. A “Liga dos
bons costumes” me encarregou de fiscalizar as festas de
Momo, porque eu sou, na diretoria, o mais resistente.
Curvei-me na reverência espontânea que me desper-
tam os homens resistentes, os que podem fugir à delicio-
sa provocação do pecado. Superior também à admiração,
ele continuou despercebido de meu cumprimento.
– Antes, era fácil o meu trabalho. Corriam os festejos
tão bem, que só me cumpria elogiar a população, pela sua
atitude superior nas saturnais permitidas. E um dia, com o
prestígio de minha posição, fiz distribuir circulares, aconse-
lhando às famílias os folguedos carnavalescos. Aproximan-
do os sexos, e favorecendo a multiplicação da espécie, eles
concorriam para manter, no continente, a hegemonia de
nossa população, atuando como fator saliente na política
sul-americana. Ah! Tudo se transformou! Os inimigos do
Brasil desnaturaram as festas de Momo, roubaram-lhe a efi-
ciência, por meio de um fenômeno anormal, que exige a
atenção imediata dos poderes públicos: a efeminação cole-
tiva, desgraça e opróbrio do País. Quase todos os cordões de
ontem levavam homens seminus, ostentando decotes enor-
mes e saiotes de dançarinas, com que exibir braços desnu-
dos e pernas metidas em meias de cor. Não está direito! O
seu jornal deve protestar contra a deserção indecente!
Ele já falava tão alto que, na sala enorme, todos o con-
sideravam com espanto. Tentei diminuir-lhe a cólera:
– O cavalheiro nos desculpe, mas não nos cabe pro-
priamente a função de censurar os costumes. Quem se
fantasia tem o direito de escolher o disfarce. Assim decidi-
ram as cartas de direitos elaboradas ao calor de revoluções
cruentas. Junto do direito de locomoção e do direito de

106
Barbosa Lima Sobrinho

pensar veio, na preamar de conquistas liberais, o direito


de fantasia.
Não sei descrever o tumulto que o reclamante promo-
veu:
– É por isso que eles desertam! Há quem os defenda,
escutando-os com a Constituição Federal, com a Declara-
ção dos Direitos dos Homens e até com as revoluções! Pois
se assim pensa, ouça!
Que havia de fazer? Tornei-me todo atenção:
– Eu estava parado diante da Galeria Cruzeiro quando
passou, num cordão, um grupo de moças encantadoras.
Lembraram-me as carnavalescas de outrora, promotoras
da hegemonia do Brasil no continente. Considerei-as,
por isso, cuidadosamente e descobri, entre elas, uma que
era toda feita de graciosidade e sedução. Resolvi acom-
panhá-la, no desejo de verificar se merecia, da “Liga dos
bons costumes”, a medalha de honra, prêmio de beneme-
rência excepcional. Juro que era formosa e tinha a pele
fina, olhos lânguidos e sorriso diabólico, um sorriso que
descobria dentes alvíssimos e uma ânsia enorme de pe-
cado. Movia-se o corpo flexuosamente; os braços tinham
contornos de que se adivinhava a suavidade; o colo fa-
zia pensar em vertigens ardentes... acompanhei-a duas
horas, marchando sobre asfalto e paralelepípedo, sobre
calçada e areia. Em toda a minha vida, nunca tinha visto
jogo mais harmonioso de quadris! Quando lhe indaguei
o nome, para a inscrição no livro de beneméritos a que a
“Liga dos bons costumes” deve homenagens... Ah!, Água!
Água! Que eu morro!
Pulei de meu posto, dei-lhe a água que ele pedia nesse
transe mortal. No intervalo de dois goles, impressionante­
mente pálido, o presidente da “Liga dos bons costumes”
mal pôde dizer aquelas sílabas quase fatais:
– Joãozinho La Garçonne!

107
A supremacia feminina

Procurei despertar no seu espírito os sentimentos da


paz, adormecidos pela ira:
– Honra ao nosso tempo e à geração a que pertence-
mos!
Tendo diante de si abertas todas as atividades, a mu-
lher ainda assim detém algumas de suas antigas prerro-
gativas e, por mais que se desprestigie a galanteria, mais
facilmente cederemos às damas o nosso lugar nos bon-
des. Não deixemos sem reparo que talvez se deva o ocaso
da galanteria à sua significação de espécie de deferência,
mais ou menos desdenhosa, com que o antigo sexo forte
ostentava a sua supremacia diante do antigo sexo fraco.
Honremos a época em que as mulheres adquirem o do-
mínio aparente do mundo, depois de por muitos séculos
terem tido apenas o domínio real. A influência das novas
dominadoras não perturbará os sonhos de nossa hegemo-
nia continental. Militaristas e belicosas, presas eternas do
fetichismo dos fardamentos, elas saberão manter as tro-
pas guerreiras, destacando para o serviço das vanguardas
os pelotões de sogras bravias. Eis porque nos cabe louvar
esses moços que vestem saiotes curtos e saem pelas ruas
baloiçando os seus quadris redondo. Eles procuram res-
pingar as migalhas do domínio do mundo...
Sob a força desses argumentos, o presidente da “Liga
dos bons costumes” capitulou, com uma pequena reserva
que me expôs gravemente:
– Tem razão. Vou agora mesmo para casa vestir um
saiote de bailarina. Mas o amigo acha que poderei usar,
com essa nova roupa, as minhas lunetas de aros de prata?

108
Estradas do mar
Bartyra Soares

– Clementino, o sol já foi embora. Coa o teu café.


Projetado nas reentrâncias da parede de taipa do velho
casebre, o seu vulto falava-lhe usando uma voz sem tim-
bre, saída de uma boca invisível. Uma voz remota, lerda
como o arrastar-se de um rio na planície. Triste como os
olhos súplices de um cão escorraçado pela fúria nervosa
de seu próprio dono. Insistente como um eco:
– Coa o teu café. Coa o teu café.
Quieto, sentado num banco de três pernas, Clemen-
tino aquecia as mãos na boca acesa do quase desmonta-
do fogão de lenha, enquanto, ainda uma vez, escancarou
para si a porta que dava acesso ao seu passado. Ressurgi-
ram as cores diante de seus olhos semiapagados, realizan-
do um suave bailado. Suas mãos entrevadas mexeram-se
impacientes, sacudidas pelo ritmo da saudade. Um gesto
agudo manifestou-se na parede.
– Coa o teu café.
Indiferente ao apelo, Clementino buscou as trilhas
da infância, indo chapinhar pelos mangues à cata de ca-
ranguejos e siris, e os seus passos de menino, outra vez,
foram-se imprimindo à flor das águas.
Por vezes, ele era aquele riozinho incerto que se des-
fiava correnteza abaixo, lavando o areal que dava para
o mar. Outras vezes, era aquele peixe miúdo que nunca
deixara de levar nas costas um fragmento do sol, que nem
mesmo as águas turvas do inverno conseguiram apagar.
Estradas do mar

Deitado na areia branca atapetada de sargaços, no-


vamente sentiu na pele escura o grito ansioso do sol do
verão, a aspereza do sal invadindo a intimidade de seu
corpo, a cantilena soturna do vento revelando-lhe os se-
gredos do mar, sua dor, seu existir sem memória e tudo
sempre marcado por um pranto azul.
– O teu café. O teu café.
Reviu a jangada pequena dos primeiros anos da sua
adolescência, a rede de traçado estreito confundindo-se
com as suas esperanças e as pescarias que nunca se atre-
veram a ir além dos arrecifes. A sua sombra unida às som-
bras dos coqueiros sempre traçou no chão uma dança pi-
toresca de coreografia assimétrica.
– O teu café.
O vulto agitou-se, traçando estranhos arabescos na pa-
rede. O fogo começava a minguar, oscilando nas chamas
débeis.
À medida que se foi tornando adulto, ampliaram-se
também os seus espaços.
A jangada cresceu, cresceram os sonhos, as ambições,
os desafios. Clementino conhecera as longas pescarias, os
pernoites no alto-mar. Enfrentara a sanha dos ventos ro-
dopiantes, as tempestades.
A sua jangada, sempre no encalço do horizonte, explo-
rara cada vez mais as infindáveis estradas do mar, que se
cruzavam azuis, pelo tempo afora...
E aos poucos tudo se foi tornando tão da sua intimi-
dade, como as veredas das suas mãos. Por elas também
caminharam tantas luas e tantos sóis, sempre guiados
pelo fogo faiscante de estrelas cadentes. Por elas, a vida
desdobrara-se, andando com seus passos de silêncio.
Aquelas mãos com familiaridade haviam abrigado
aves, que confiantes vinham dos galhos dos cajueiros,
mangueiras e touceiras de guajirus para a tepidez daque-

110
Bartyra Soares

le regaço. Mas também guardaram a chuva, a neblina e o


sol. Como as estradas do mar, os caminhos das suas mãos
cruzavam-se azuis.
– Teu café. Teu café.
O vulto movimentou-se mansamente, assumindo uma
postura inclinada.
Lá fora, o mar continha-se aquiescente nos limites re-
cuados da maré vazante. Era como se naquele instante
guardasse só para si a dor, que incessantemente o fazia
chorar. Talvez chorasse, por aquelas mãos entrevadas, de
caminhos tão semelhantes aos seus, mas que se consumi-
ram no traçado das linhas de longas redes.
Talvez fosse por aqueles olhos quase apagados, que de
há muito perdera o roteiro de suas estradas.
– Teu café.
O fogo agonizava nas brasas. O vulto agora era uma
tênue mancha, um leve palpitar, indefinido, fugaz.
Não tivera mulher. Sua vida havia sido marcada por
encontros fortuitos, que nunca ultrapassaram o prazer de
uma noite. Fora homem das águas, dos caminhos absur-
dos, que afoitos se lançavam horizonte adentro e se per-
diam no mistério do infinito.
Por onde passaram os seus passos, não existiam pega-
das que pudessem ser de filhos. Sempre temera a incer-
teza das águas. Não quisera deixar em terra firme filhos
presos ao estigma da orfandade.
Agora, ali estava ele só, atado ao companheirismo do
seu próprio vulto, comendo do que lhe concedia a cari-
dade pública e do que lhe davam alguns parentes afasta-
dos, que uma vez ou outra ainda se lembravam de que ele
existia.
– Café.
A voz inaudível resvalou pela sala, agonizando triste-
mente. Seria aquilo existir? Clementino baixou a cabeça.

111
Estradas do mar

Os cabelos brancos encaracolaram-se na barba acinzen-


tada, que lhe descia até o peito. A barriga enorme espa-
lhava-se dolente pelas coxas frágeis. O fogo extinguira-se
completamente.
Permaneceu naquela posição por alguns minutos ou
por um tempo sem fim? Para ele, o tempo era um pulsar
de lembranças, um permanente correr para o passado.
Não se via desembocando no futuro. As suas mãos sem
o alento das chamas quedaram-se frias ao longo do corpo.
Não ousou erguer a cabeça. Sabia que diante dele nada
mais restava de seu vulto, que exausto se guardara no si-
lêncio das sombras definitivas.
Agora estava realmente só. O bater das asas de um mor-
cego retirou-o da solidão. Levantou-se com dificuldade,
arrastando-se até a porta e escancarou-a para a noite, que
o envolveu com os seus braços adereçados de estrelas.
A vida desceu-lhe exangue pelas costas curvas, trope-
çando-lhe nas pernas inseguras. Mesmo assim não he-
sitou: soprava o terral e, com a sua ajuda, uma imensa
gaivota lentamente alçou voo em direção a novas e desco-
nhecidas estradas do mar.

112
O sono
Beatriz Brenner

Achou as botas embaixo da cômoda. Sempre malchei­


rosas que tanto lhe pedia para deixar fora de casa, depois
que chegasse da caça. Ou mesmo quando retornasse da
mata onde ia colher a lenha que estocava para o inverno.
Nunca atendeu aos seus pedidos. Nelas, ficaram as con-
trariedades. Vê-las significava humilhação e fraqueza. A
raiva guardada a fez jogá-las contra a parede do fundo do
quarto. Pedaços de lama seca do solado se espalharam por
todos os lados. Não se importava com quem estivesse por
perto. Ou fazia aquilo ou mais uma vez estaria à mercê de
vontade alheias. Mais uma vez. Não poderia admitir isso.
No canto da gaveta achou um pente e várias facas. Gos-
tava de colecionar facas de todos os tamanhos. De todos os
estilos e cores. Não sabia para quê. Nunca soube, nem ousou
perguntar. Entulho. Colocou-as sem interesse em cima do
sofá azul. Essas serão para o vizinho caçador. Decidiu dar fim
às facas que, de todo jeito, breve, estariam enferrujadas.
E continuava cavando mais e mais, freneticamente.
Havia sonhado com aquele dia. Livre dele e das suas coi-
sas. O último filho, não pensou em tê-lo. Estava certa de
que ele havia sido resultado de uma noite de amor rápido,
só para satisfazer o desejo carnal do marido. Talvez por
isso sentisse raiva. Sentisse ódio. Cada coisa jogada para
o ar significava ir junto situações mal resolvidas, ou mes-
mo as que nunca se resolveram e nem iriam, como nunca
chegaram a ser. Estava casada havia anos. Mais tempo do
que o tempo que passou sem ele.
O sono

Já nem sabia quem era. Fora enterrada embaixo dos


vários desejos não satisfeitos. E assim, a cada dia se dis-
tanciou ainda mais dela. Até estava em dúvida se a en-
contraria novamente. Será possível haver um reencontro
comigo mesma? Chegou a perguntar.
Em meio aos pensamentos achou um rolo de cordão
grosso com o qual ele amarrava a lenha para não se sol-
tar pela grama afora. Tinha ciúme daquele rolo de cor-
dão... mais do que de um filho. Mais do que da mulher.
Ninguém poderia tocá-lo. Que vá para o inferno. A lenha
também. Todos ali estranhavam. Alguns chegaram a ter a
coragem de falar uma palavra ou outra sobre o que viam.
Não sabem o quanto cada objeto desse me trouxe dor e
agonia. Apego demais o fez se distanciar da gente. Nos
tornou ainda mais sós.
Na casa havia um vaivém intenso. O corpo na sala de
espera à espera do padre. Uma lágrima sequer rolava de
seus olhos. Secaram. Passou a vida chorando calada. Não
por ele, mas pelo que foi e o que isso provocara na famí-
lia. – Não sei se vou ter chance de recuperar a sensação da
liberdade que sonhei ter. Quem quiser que chore pra lá.
Sinta o que quiser sentir. A minha realidade é outra.
Continuou cavando até o chão da gaveta funda da cô-
moda. Encontrava mais objetos que a fizeram lembrar das
crises sem grandes motivos. Cada qual com uma história
diferente, de começo, meio. E fim? Encontrou fotos do
casal que os filhos teimavam em tirar. Ilusão, murmurou,
coisa só para compor o álbum da família, mais nada. Cada
momento registrado por aquelas imagens, ou mesmo pelos
objetos e para o resto da vida, em seu coração, tudo o que
não quis que acontecesse. A presença deles, sobretudo.
O padre chegou. Disseram-lhe aos gritos para que ou-
visse no quarto. Já que tinha fama de mouca, aproveitou.
Ficou lá onde estava, sem arredar o pé. Gostou de ter de-

114
Beatriz Brenner

cidido assim. Havia tempo que não fazia o que queria. E


baixinho... Deixa o padre esperar. Deixa o povo esperar.
Deixa o corpo esperar. Não mais tinha pressa. Achava que
pressa era coisa do passado. E deliciou-se com a sensação.
Quando tentava identificar o que havia dentro de um
pequeno embrulho, a filha surgiu na porta do quarto. –
Mãe, o padre chegou. Está na sala aguardando somente
por você. Ela ficou sem saída. Afinal o defunto tinha que
tomar o seu rumo e já era hora. Sentia-se obrigada mais
uma vez a fazer o que não queria. Não queria ter de ir
até a sala. Sua vontade era ficar no quarto. Num relan-
ce temeu que a vida continuasse a lhe exigir coisas que
não desejava fazer. Achou que tinha que tomar todas as
precauções para se defender de tudo e de todos que con-
tribuíssem com essa possibilidade. Sei que estou velha, o
que não significa que terei de ser subjugada. Serei forte
para reagir.
A filha segurou-a na mão e seguiram em direção à sala.
O padre e logo as pessoas se levantaram. O caixão não a
comoveu. Muito menos o corpo inerte e gelado que se en-
contrava dentro dele. Ouviu uns choramingados na sala.
Quem poderia ser? se perguntou surpresa. Quem poderia
estar sentindo a falta desse…
Tentou se concentrar nas palavras do padre. Sim, era
melhor ouvi-las. Mesmo que soassem falsas ou vazias.
Qualquer coisa que dissesse não teria sentido, de todo
jeito. Pelo menos ali havia um padre para as pessoas se
distraírem e deixá-la em paz. Depois do sermão de corpo
presente sabia que muita mão teria que apertar e mui-
ta coisa que não queria ouvir, ouvir. Muita coisa que não
queria dizer, dizer.
Fecharam o caixão.
Acho melhor ela ficar em casa, não ir ao cemitério,
ouviu alguém dizer no corredor... e como gostou naquele

115
O sono

exato momento de ser velha carcomida. Além do mais vai


ser muito forte para ela. Vê-lo ser enterrado a sete pal-
mos, disse a vizinha, dona Eugênia, coitada. Sorriu por
dentro. Aproveitou as emoções, pediu licença e voltou ao
quarto. Tirou os sapatos fechados, pretos. As meias cinzas
de náilon. Afrouxou o cinto e o sutiã. Livrou-se das mar-
rafas que lhe prendiam os cabelos. Movimentou os dedos
dos pés para felizmente livrá-los do aperto em que se en-
contravam. Sentiu alívio. Muito alívio.
O silêncio da casa a fez se deitar. Preferiu deixar as
pernas dobradas para fora da cama, a fim de evitar que
dormisse. Queria estar alerta para gozar a sensação da
mais nova experiência. A experiência de não tê-lo mais
perto dizendo o que teria ou não que fazer. O prazer de
desfrutar do espaço todo da cama.
Sentiu-se desnorteada. Teve medo de não saber con-
trolar a sensação e aí perder tempo. O tempo que, por ser
velha, achava valioso. Foi assim que caiu no sono, mesmo
sem querer. Dormiu.
Um sono profundo.

116
O rio
Benito Araújo

Já idoso, Albali não tardaria em atravessar o rio. Em


algum momento no futuro – a face velada do tempo –
emboscava-se a hora da travessia. Seguir naquela direção
e cruzar as suas águas, era o destino de todos. “Ninguém
permanece neste lado, para sempre” – refletira.
Tentava imaginar o seu estado de espírito nessa oca-
sião: estando consciente e lúcido – o que não desejava –
acovardar-se-ia ou se portaria com destemor? Tinha me­
do de ter medo.
Às vezes, sereno como um lago; de outras, um mar
vergastado pela tormenta, o rio constituía um enigma, um
mistério.
Muitos de sua geração e, por último, Lindu, já o ha-
viam transposto. De um certo modo, invejava-os: tinham
passado pela temida travessia.
Como se emergissem das profundezas de seu leito,
rostos afloravam-lhe à memória. Indistintos quando sub-
mersos, à superfície tornavam-se nítidos. Uma tarde, ao
pôr do sol, parecera-lhe ouvir Lindu, postada na outra
margem:
– Venha, meu velho. (Tratava-o assim, com meiguice,
desde os tempos de namoro.) Aqui há resposta para as
indagações que julgamos essenciais.
– Que indagações?
– Por exemplo, o que nos espera no lado de cá. Além
disso, teremos um ao outro. Não é maravilhoso?
O rio

Nos cinquenta anos de convívio com Lindu, muitos ti-


nham sido os momentos luminosos, apesar dos desafios
impostos pela acidentada margem.
– Só um problema não tem solução: é quando nos en-
tregamos ao rio. Já não há como sair dele. A propósito,
você teme a passagem, não é, meu velho?
– Sempre a temi. E você sabe disso.
– Sim, eu sei. Mas não vejo razão para ter medo. Acre-
dito na verdade da outra margem para onde o rio nos
levará um dia.
– Infelizmente, não tenho essa convicção. Gostaria de
acreditar em muitas outras coisas.
– Como assim, meu velho?
– Por exemplo, no ser humano. As pessoas decepcio-
nam por tão pouco! Em Sua onisciência, Deus devia saber
da natureza falível do homem. Contudo o criou.
– Entendo o seu desapontamento. “Fraternidade” é
uma palavra que os pretensos amigos trazem nos lábios,
mas que não vem do coração. Felizmente, nem todas as
pessoas são assim. Mesmo imperfeitas, há aquelas pro-
pensas à amizade, à consideração, ao reconhecimento, à
solidariedade. E você tem a prova disso.
– É possível.
– Quanto à nossa imperfeição, inúmeros espíritos são
ainda elementares. Têm muito que apanhar e aprender.
Essa é a lei, meu velho: inflexível, justa.
– Então não devemos cogitar de um Deus misericor-
dioso. Seria uma contradição.
– Sua misericórdia consiste exatamente em ser justo.
Onde não há a verdadeira justiça, é a iniquidade, a tirania.
Fizera uma pausa. Quando voltara a falar, mais uma
vez se referira ao rio:
– A verdade é que, chegada a hora, teremos de atraves-
sá-lo. E naturalmente serei a primeira. Sou alguns anos
mais velha do que você.

118
Benito Araújo

– Não tenha essa certeza. A idade é relativa.


Mas se de fato o antecedesse, ele não gostaria de que-
dar-se ali na margem, vendo-a transpor o rio. Preferiria
acompanhá-la, ela sempre lhe dera segurança. Depois de
cinco décadas de união e companheirismo, penosa não
seria a sua falta e a solidão?
Uma noite, como Lindu previra, a hora da travessia a
ela anunciara-se. Rendera-se então ao remanso das águas
cálidas e calmas. Inanimada e emudecida, atingira enfim
o outro lado.
Durante um longo tempo contemplou-a, o rosto vi-
sivelmente marcado pelos anos, os cabelos encanecidos
denunciando-se (por economia, espaçara as vezes em que
os pintava). Estranho determinismo: ao idoso, frágil e ca-
rente, era tirado o que lhe fora concedido no vigor da
juventude.
Numa panorâmica, vieram as recordações: o namoro
numa festa de formatura, a primeira dança.
– Você é um pé de ouro!
– É uma das minhas habilidades – admitira ele, em
tom de gracejo.
Ante essa lembrança, sorriu interiormente, pesaroso.
A seguir, o noivado, a noite de núpcias, as bodas, as
viagens, as fotos, seu sorriso e fotogenia: na Europa, ten-
do como pano de fundo o Coliseu em Roma, os canais de
Veneza, os Alpes austríacos e suíços, o Palácio das Nin-
fas em Munique, os moinhos em Amsterdã, o “Manneken
pis” em Bruxelas, os Jardins de Versailles e a Torre Eiffel
em Paris. Em Buenos Aires, o Parque de Palermo, o Jar-
dim Japonês, o Delta do Tigre.
Todavia, por pudor e orgulho, em nenhum momento
ousara confessar o quanto estava ligado a ela.
– Você nunca disse que me ama!
– Meus gestos e atitudes sempre disseram isso. Ade-
mais, as palavras são enganosas.

119
O rio

Declarações como “Eu te amo”, as novelas e os filmes


de mau gosto tinham se encarregado de vulgarizá-las.
Havia em seu repouso o vazio de uma ausência defini-
tiva. Com a saudade a pungir-lhe a alma, sentiu o que sig-
nificava perdê-la. Ela fora como uma casa sempre cheia,
onde soava a música e a alegria. Agora desocupada, era o
silêncio, a desolação. Compadecido, dominou-o um pran-
to repentino e convulso. A acariciar-lhe a fronte lívida,
encontrou-se a balbuciar, com infinita amargura: “Eu amo
você. Sempre a amei. Desculpe, querida, se isso não lhe
confessei, quando você mais gostaria de ter ouvido”.
Um dia, viu-se diante de Lindu, cheia de vida e júbi-
lo. Sentiu, de uma maneira inequívoca, sua presença, seu
perfume, sua ternura. Quando se abraçaram e se beija-
ram, foi um momento de intensa emoção.
Albali acabara de cruzar o rio.

120
Regresso
Carlos Newton Júnior

O senhor está vendo aquela ilha, à nossa direita? É Íta-


ca, famosa por uma história inverossímil que certo aedo
criou há muitos anos e que os rapsodos de então se encar-
regaram de espalhar por todo o continente. É uma terra
áspera e pedregosa, cheia de penhascos, imprópria para
a criação de cavalos e o tráfego de carros. O solo, po-
rém, não é ruim. Em algumas regiões o trigo é abundante
e crescem parreiras. A chuva não falta. É uma terra boa
para a criação de cabras e de gado bovino. Há boas matas
para se retirar madeira e para caçar, sobretudo naquele
monte mais alto, o monte Nérito, inteiramente coberto
por uma densa selva ondulante. Ali, por trás daquela en-
seada, está o porto de Fórcis, capaz de abrigar um bom
número de navios.
Anos atrás, quantos eu não poderia precisar, um velho
louco aportou àquelas praias. Dizia-se, imagine o senhor,
o antigo rei da ilha, desaparecido há mais de vinte anos
e cuja fama chegava aos céus. Ao que tudo indica, esse
rei, após uma longa guerra no Helesponto e várias faça-
nhas sem conta, perdera-se no caminho de volta e acabara
morrendo no mar com todos os seus companheiros, ví-
tima que fora, talvez, da ira de Poseidon, a quem ele me-
nosprezava, o insensato, não lhe oferecendo os devidos
holocaustos antes de uma viagem.
O velho louco, de olhar fixo e fala mansa, de corpo
ainda rijo, apesar da idade, vestido de andrajos, de longa
barba e com os cabelos brancos desgrenhados, uma vez
Regresso

na ilha, convenceu dois servos do antigo rei de que era


o senhor deles quem estava ali de volta, em carne e osso,
para reivindicar o trono e expulsar, do seu palácio, os pre-
tendentes que há três anos disputavam a mão de sua es-
posa. A audácia dos pretendentes, que não arredavam os
pés do belo solar e dissipavam os bens da propriedade,
comendo e bebendo do bom e do melhor, era por demais
conhecida nas ilhas vizinhas, desde Dulíquio, aquela por
onde passamos, até Same e Zacinto, mais próximas do
continente. Fora em uma delas, decerto, que o velho men-
digo ficara sabendo de toda a história, tendo se decidido,
então, a fazer-se passar pelo soberano, fosse por alguma
doença do espírito, como querem alguns, fosse por pura
cobiça, como insiste a maioria.
Os servos do rei eram dois pobres néscios, um porca-
riço e um vaqueiro. Ambos se recusavam a acreditar que
o amo, a quem nunca se dirigiram diretamente, mas que
sempre se revelara tão bom senhor, tivesse de fato morri-
do, e ainda acalentavam a esperança de revê-lo. Naturais
de Ítaca, nenhum dos dois jamais colocara os pés em ou-
tra terra. Não foi difícil para o velho, portanto, convencê-
los de que a longa espera chegara a bom termo. Bastou-
lhe narrar com convicção dois ou três fatos relacionados
à vida do ausente, amplamente conhecidos fora da ilha,
para que os dois logo prosternassem os corpos, reverentes,
agradecendo aos deuses aquele regresso tão almejado.
Tendo convencido os dois serviçais, e extraindo deles,
com a sua fala habilidosa, o maior número de informações
que podia, o velho convenceu, depois, o próprio filho do
rei. O príncipe era um belo rapaz de vinte anos, forte de
corpo, mas fraco de ideias. Era ele, coitado, quem mais
sentia saudades do pai que nunca conhecera, o pai ausen-
te que partira para a guerra quando ele era ainda um me-
nino recém-nascido. Durante anos, por amor a esse pai,

122
Carlos Newton Júnior

ele su­por­tara angústias no coração e toda sorte de dis-


sabores em sua própria casa. Impotente para lutar, sozi-
nho, contra os arrogantes pretendentes, o jovem príncipe
resignava-se diante da violência dos varões e esperava um
sinal divino que lhe orientasse sobre a melhor maneira de
sair daquela terrível situação.
Dizem que o jovem príncipe verteu copiosas lágrimas
quando o velho, na cabana do porcariço, disse-lhe que era
o seu pai. Ali estava o seu pai, o pai único e amado, aquele
pai há muito esperado e que, passados vinte anos, após
sofrer tribulações sem conta e vaguear por muitos lugares,
regressava à terra pátria. Entre soluços, o jovem abraçou o
velho, cobrindo-o de beijos como a um escapo da morte.
Então, acompanhado do jovem príncipe e dos dois
servos, o velho se dirigiu ao palácio, para ir ter com os
pretendentes e reaver os seus direitos. Mísero forasteiro!
Que sentimentos dominavam seu espírito desvairado?
Que deus incutiu na sua mente tão torpes pensamentos?
Acreditaria, de fato, que era o verdadeiro rei e que os in-
desejáveis pretendentes, reconhecendo-o, abandonariam
o solar e desistiriam da mão da rainha? Achava ele, por
acaso, que os pretendentes, homens de escol, acredita-
riam nas patranhas de um facinoroso vagamundo queren-
do passar por varão irrepreensível?
Tão logo chegou à propriedade real, o velho, insaciá-
vel de enganos, ainda aprontou mais uma das suas. Ocor-
re que jazia ali, diante das portas que davam para o jardim
do belo solar, um velho cão, deitado em meio ao esterco
e cheio de carrapatos. Era o cão de caça do rei, posto à
margem pela ausência do dono e cuja vida já estava por
um fio. O cão, certamente reconhecendo o príncipe, so-
ergueu a cabeça e abanou a cauda, fazendo uma pequena
festa com as forças que lhe restavam. O velho logo to-
mou a dianteira para acariciar a cabeça do débil animal e

123
Regresso

sussurrar-lhe algumas palavras incompreensíveis, dando


a entender aos que o acompanhavam que a festa do cão
fora dirigida a ele.
Ora: o final dessa história não poderia ser diferente.
Tão logo o velho entrou no palácio e começou a gritar im-
propérios, ameaçando de morte terrível todos os que ali
banqueteavam, um dos pretendentes, incomparavelmente
o mais nobre dos jovens de Ítaca, deitou-o por terra, com
um só golpe do seu poderoso punho. Seu pique reforçado
completou o serviço, transpassando, com facilidade, um
corpo já desgastado pelos anos. Foi esse jovem, aliás, que
a rainha acabou tomando para marido e é a descendên-
cia do casal que ainda hoje governa a ilha. Os fiéis servos
do pretenso rei tiveram destino semelhante: foram ambos
enforcados e seus corpos passaram três dias pendurados
junto ao cais do porto, pálidos e frouxos, como exemplo
para aqueles de inferior condição que ainda ousassem des-
respeitar os nobres. Quanto ao jovem príncipe, humilhado
em público, abandonou a ilha e foi morar no estrangeiro,
sendo muito bem acolhido em Pilos areenta, onde passou
o resto dos seus dias. O rei de Pilos fora grande amigo do
seu pai e lutara na mesma guerra da qual o infeliz jamais
regressara. Além disso, ele tinha um filho da mesma idade
do príncipe, a quem este, depois, passou a auxiliar, ocu-
pando um alto cargo na administração do país.
Bem sei que não é esse o final que o senhor provavel­
mente conhece. Ocorre que, no solar, em meio ao ban-
quete, havia o tal aedo, que a todos agradava com a sua
lira melodiosa. Apesar de cego, ele dedilhava o sonoro
instrumento com rara habilidade e cantava com perfei-
ção, inspirado pelas Musas ou pelo próprio Apolo. Sua
voz, áspera e rouca, era capaz de fazer eriçar a pele do
mais insensível dos varões. Tomado de simpatia pelo ve-
lho louco e seus seguidores, por um motivo que ninguém

124
Carlos Newton Júnior

saberia, ao certo, precisar, esse aedo resolveu forjar um


destino melhor para tão desditosos personagens. Não o
censuro por isso. Afinal de contas, talvez seja essa, mes-
mo, a missão dos poetas: transfigurar o real na criação de
verdades que jamais aconteceram.

125
O teco-teco
Carlos Cavalcanti

João Coragem, filho de fazendeiro, comprador de al-


godão e dono de imóveis em Currais Novos, com brevê ti-
rado no Encanta Moça do Recife, comprara um teco-teco
seminovo, para transporte de passageiros entre as cidades
próximas da região. Rapaz jovem, um tipo avantajado,
espadaúdo, com seus noventa quilos de peso, no auge dos
quarenta anos de idade e duas toneladas de ignorância.
Sovina e trabalhador, fazia do vaivém do avião uma ma-
neira de ganhar dinheiro e de se divertir, pois voar era o
seu esporte preferido (daí o apelido de João Coragem).
Na hora do voo, não aceitava sugestões nem dava explica-
ções a passageiros.
Coronel da Guarda Nacional, o velho Coronel Jovino,
da Serra Negra, homem beirando os oitenta anos, respei-
táveis bigodes retorcidos, entonado no linho branco, botas
de couro de veado e chapéu Prada de abas curtas, pensou
em alugar o avião de João Coragem, para uma viagem de
Caicó a Natal com pernoite no Hotel dos Três Reis Magos.
Tinha necessidade de comprar sementes de algodão Seri-
dó para novas plantações na fazenda, além de visitar ami-
gos. Pessoalmente, não conhecia o dono do avião.
Acostumado a mandar, no campo e na cidade, seguro
no dinheiro, imperioso e ranzinza, procurou João Cora-
gem a fim de contratar o avião para a viagem pretendida
e, quem sabe, tomar-lhe a freguesia, comprando a safra
daquela região. Chegando à cidade, apresentaram-lhe o
aviador.
Carlos Cavalcanti

– É a primeira vez que venho à feira de Currais Novos –


disse o Coronel. – Queria comprar, na folha, o algodão des-
ta redondeza e também fazer outro negócio, mas já vi que
o senhor comprou a safra toda. Sou o Coronel Jovino, da
Serra Negra, e moro na cidade de Caicó. O senhor, como já
me disseram, é o João Coragem, moço rico e sabido deste
lugar e que manda até no céu voando no seu avião.
– Que sou moço, lá isso é verdade. Rico e sabido é o se-
nhor, Coronel Jovino, da Serra Negra, o maior plantador
e comprador de algodão do Rio Grande do Norte.
Depois da troca de amabilidades e de muito regatear,
acertaram a viagem, tomaram a saideira na bodega de
Seu Odilon e seguiram em rumos diferentes.
Dia seguinte, após o almoço na fazenda, o Coronel to-
mou o jeep Willys e foi a Currais Novos para o devido
embarque.
No campo de pouso, João Coragem, raivoso e cansado
de tanto esperar, aborrecido, sem nem ouvir o boa-tarde
do Coronel, dedo em riste:
– O senhor devia ter chegado mais cedo, já são quase
duas horas e não podemos viajar à noite.
– Se não quer fazer a viagem diga logo que eu volto
agora mesmo para a fazenda. Não gosto de reclamação
nem tenho medo de cara feia.
Puxando a aba do boné para os olhos, cigarro apagado
no canto da boca e através do Ray-Ban, fitou por alguns
segundos a cara do Coronel desaforado. Rumou para o
avião apontando a escada:
– Vamos viajar.
O Coronel, testa franzida, benzeu-se duas vezes, tem-
perou a garganta e subiu sentando-se ao lado do aviador.
Mal começou o voo, o Coronel, irrequieto e nervoso,
não se conteve:
– Espere aí, desse jeito você vai parar no Maranhão,
dobre à direita e vamos para Natal, rapaz.

127
O teco-teco

O piloto obedeceu em silêncio enquanto olhava, sem


pestanejar, o rosto afogueado do Coronel.
O Sol declinava no horizonte e a quarto minguante já
invadia meio céu.
À tardinha o teco-teco aterrissava aos solavancos. O
Coronel desorientado e sisudo desceu seguindo os pas-
sos de João Coragem e, batendo no ombro esquerdo do
aviador:
– Isso aqui já é Natal?
– Não. É Campina Grande, e eu termino aqui a via-
gem. O senhor não me deve nada. Mas no meu avião
quem manda sou eu. E estamos conversados.
– Você não pode fazer isso comigo, contratei a viagem
para Natal. Sou um Coronel e não admito essa desfeita.
– Admita, ou não admita, tenho seis balas novas aqui
no meu trinta e oito e descarrego tudinho nos seus dentes
agora mesmo se se meter a besta.
O Coronel arregalou os olhos. Pediu desculpas…
O avião levantou voo de volta para Currais Novos.
O velho Jovino seguiu a pé para o hangar em busca
de conseguir um táxi que o levasse à cidade serrana, até
à Pensão Boa Vista. No dia seguinte pegou o trem maria-
fumaça e foi para Natal.
João Coragem, revoltado com a intenção da concor-
rência desleal na compra do algodão em folha, ao che-
gar em Currais Novos boatou em toda a redondeza e na
região de Caicó, a desfeita que fizera ao famoso Coronel
Jovino, da Serra Negra.
Uma semana depois, um estrondo abalou Currais No-
vos. Pensava-se em bomba atômica ou bombardeio de fo-
guete. A tarde escureceu e mais negra ficou a serra com a
fumaça do teco-teco incendiado no campo de aviação.

128
Felicidade clandestina
Clarice Lispector

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessiva­


mente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme,
enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não
bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto,
com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora
de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.
Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para ani-
versário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela
nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai.
Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde
morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás es-
crevia com letra bordadíssima palavras como “data nata-
lícia” e “saudade”.
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era
pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa
menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavel-
mente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Co-
migo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na
minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que
ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados
os livros que ela não lia.
Até que veio para ela o magno dia de começar a exer-
cer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente,
informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de
Mon­teiro Lobato.
Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se fi-
car vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E comple-
Felicidade clandestina

tamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passas-


se pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.
Até o dia seguinte eu me transformei na própria es-
perança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num
mar suave, as ondas me levavam e me traziam.
No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo.
Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa.
Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos,
disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e
que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaber-
ta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me to-
mava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que
era o meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife.
Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia
seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a mi-
nha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei
pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da
filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia
seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso
e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro
ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia
seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da
vida, o drama do “dia seguinte” com ela ia se repetir com
meu coração batendo.
E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia
que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse
todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que
ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adi-
vinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me
fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem fal-
tar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve
comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de

130
Clarice Lispector

modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era


dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus
olhos espantados.
Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa,
ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua
mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diá-
ria daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações
a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada
de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez
mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que
essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enor-
me surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de
casa e você nem quis ler!
E o pior para essa mulher não era a descoberta do que
acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que
tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perver-
sidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé
à porta, exausta, ao vento das ruas do Recife. Foi então
que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a
filha: “Você vai emprestar o livro agora mesmo”. E para
mim: “E você fica com o livro por quanto tempo quiser”.
Entendem? Valia mais do que me dar o livro: “pelo tempo
que eu quisesse” é tudo o que uma pessoa, grande ou pe-
quena, pode ter a ousadia de querer.
Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e
assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada.
Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí an-
dando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com
as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto
tempo levei até chegar em casa, também pouco importa.
Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não
o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois
abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui

131
Felicidade clandestina

passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com
manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, acha-
va-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas difi-
culdades para aquela coisa clandestina que era a felicidade.
A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece
que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia
orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede balançando-me com o li-
vro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mu-
lher com o seu amante.

132
O comedor de sonhos
Cláudio Aguiar

O mais triste da velhice é carecer de amanhã.


Santiago Ramón y Cajal

Exemplo do que o esperava estava na rua.


Logo cedo, Dino Silas olhou pela janela frontal de sua
casa e viu o doido andando sobre os mesmos passos, numa
autêntica caminhada estacionária. Durante vários anos a
mania daquele homem não ganhava nenhuma variante.
Seu comportamento desatinado podia até causar indife-
rença nas demais pessoas, mas, para Silas, que havia anos
também vivia no seu quarto abafado e sem apetência para
nada, era prenúncio do que lhe reservava o futuro não
muito distante. E o pior: os passos dados pelo doido dian-
te de sua calçada assemelhavam-se com a sua forma de
andar nos poucos metros quadrados de seu quarto. O uni-
verso de ambos se restringia a poucos metros quadrados,
embora livres, soltos, como o mundo que pulsava diante
deles. Por isso, Silas achava-se cada vez mais parecido com
o doido de sua rua e recusava-se a sair do seu tugúrio a
fim de não se transformar num ser capaz de provocar tris-
teza aos adultos e uma incontrolável alegria às crianças,
circunstância que nos leva a pensar que nem sempre elas
são inocentes como se costuma dizer.
Dino Silas já perdera a conta das vezes em que pro-
metera a si mesmo nunca mais olhar com piedade para
aquele doido. No entanto, mal começava o dia, seus olhos
pousavam sobre a figura sumida e nervosa do homem
O comedor de sonhos

sem juízo a caminhar sobre os mesmos passos, indo e vol-


tando, estonteante, inclinado para frente, quase a cair,
porém, equilibrando-se a todo instante e, apesar de tudo,
armando um sorriso consolador para quem observasse
seus gestos sem nenhum sentido lógico. De repente, disse
a si mesmo que, em muitas coisas, diferia daquele doido:
“Ele fora funcionário público, e eu, um atleta”.
Em muitos aspectos, sua vida, porém, não poderia ser
tomada como um rosário de fracassos. Um dia, recordava,
passou a ser a estrela número um do ginásio onde pratica-
va educação física. Para surpresa de todos, ultrapassou os
padrões de normalidade previstos nos manuais de haltero-
filia: altura, dimensões de músculos, eficiência no levanta-
mento de pesos e halteres etc. O sonho de ser “Maciste do
Universo”, finalmente, aproximou-se da realidade, porque
conseguira o título de Maciste de seu país. Seu nome pas-
sou a ser cogitado para disputar o título universal.
De tanto divagar, sentiu os olhos invadidos por sombras
e réstias fulgurantes. Confortavelmente sentado, embalara-
se num sonho inevitável. Quase não distinguia na parede o
poster amarrotado pela ação do tempo, onde ele aparecia
em pose viril de autêntico halterofilista: destacavam-se os
músculos à mostra, sorriso jovial e transbordante e osten-
tava uma convincente demonstração de força a saltar por
todas as partes de seu excepcional corpo.
Dino Silas girou mais uma vez a cadeira e não se con-
formou em contemplar apenas os quadros e as fotografias
expostas em molduras vistosas pelas paredes. Sua vista, de
leve, deslizou por algumas mesas tomadas por objetos es-
maecidos pela ação do tempo e cobertos de poeira. Tudo
refletia um certo desprezo pela falta de limpeza e zelo do
ambiente. Sentiu, de imediato, que algo não lhe ia bem.
A vista começava a turvar-se, os objetos a andar de um
lugar para outro, como se mãos invisíveis e poderosas os

134
Cláudio Aguiar

afastassem de seus lugares. Até a parede se deslocava para


lá e para cá toda vez que ele piscava os olhos. Na altura da
porta, entre o vazio e a madeira da grade cuidadosamente
pintada de branco gelo, notou que fervilhavam coisinhas
pequenas, irreconhecíveis. O limite entre o nada e a ma-
téria atingia seus olhos como algo vivo, vibrante, indo e
voltando, ora se inclinando, ora ficando ereto. Ele obser-
vou que aquilo poderia ser ilusão de ótica e até sorriu,
fazendo-se forte. Fechou os olhos e novamente os abriu
com certa cautela, olhando de novo para os objetos do
ambiente. E, para seu assombro, a dança dos objetos, in-
clusive dos quadros e fotos na parede, continuava do mes-
mo jeito. Será por causa da cadeira giratória? Então, ficou
completamente parado. A seguir, desconfiado de sua co-
modidade, achou melhor sentar numa simples cadeira de
encosto. Com dificuldade, levantou-se e colocou a cadei-
ra firme contra a parede. Testou-a e sentou-se, respirou
fundo, confortavelmente acomodado, admitiu que nada
mais tremeria nem mudaria de lugar. Abriu os olhos em
direção dos objetos pousados sobre a mesa e, com pouco
tempo, os viu outra vez se movendo, agora com maior ni-
tidez. De repente, a antiga fotografia em que ele aparecia
com os meninos na grama da praça moveu-se de tal sorte,
que, após cair espetacularmente sobre o assoalho e parar
próximo a seus pés, obrigou-o a abrir mais os olhos e a
inclinar-se para o chão, a fim de apanhá-la. E, censuran-
do a si mesmo, questionou suas atitudes: “Estou ficando
maluco ou será a vista que começa a apagar-se de uma
vez?” Fechou bem os olhos e, pela segunda vez, os abriu
devagar e tentou apanhar a fotografia... Não havia nada
próximo a seus pés. O assoalho permanecia limpo. Subiu
o rosto e viu que a foto continuava no antigo lugar. Deu
um forte muxoxo: “Ah, que merda!”. E lamentou que a
velhice fosse capaz de pregar tantas lições desagradáveis.

135
O comedor de sonhos

Então, levantou-se decidido a testar umas tantas coi-


sas. Encostou-se na parede do quarto e pressentiu que ela
não estava firme. Afastou-se um pouco e a empurrou com
a mão. Teve a nítida sensação de que não só a parede
se movia, mas também tudo ao seu redor ameaçava ruir.
Resolveu fazer outra experiência. Pisou, então, forte, com
raiva, contra o chão e viu que o assoalho, antes rijo, imó-
vel, duríssimo por ser concreto armado, também se mo-
via, ou melhor, afundava com facilidade. Juntou as pernas
e, com o peso do corpo, forçou-as contra a terra, que pa-
recia mover-se. Tudo, portanto, estava ameaçado.
E pensou numas tantas lições de física e astronomia
que tomara no colégio, quando jovem. Então, dizia a si
mesmo em voz alta: “Ora, que tolice, se a própria Terra,
com efeito, anda solta no espaço, descrevendo suas conhe-
cidas rotas, nada é firme ou imóvel no Universo. Logo,
por que não posso sentir tais sensações?” Foi mais além:
andou em direção à sua mesa de trabalho e, de posse de
lápis, papel e régua, riscou, numa folha em branco, uma
linha reta, junto da qual, afastada cerca de quatro ou cin-
co centímetros, fez outra reta rigorosamente paralela e do
mesmo tamanho. As duas retas distanciavam-se pelo cen-
tro do papel até uma razoável distância. Dino Silas, dei-
xando correr um sorriso pelo rosto, que, até então, esti-
vera imerso numa rigidez de homem taciturno e inquieto,
inscreveu, entre as linhas paralelas, um ponto. Dali, com
esmero e atenção, ainda que tremessem suas mãos, riscou
vários traços para cima, para baixo, para os lados. As no-
vas linhas funcionavam como raios a romper o paralelismo
das retas primitivas. À medida que os traços se sucediam,
no seu rosto se armava um riso com sabor de vitória, por-
que as retas, retíssimas no paralelismo extraordinário do
papel branco, logo ficavam, a seus olhos, completamente
tortas. “Espetacular!”, gritou. Elas já não lembravam, nem

136
Cláudio Aguiar

de longe, as retas antes traçadas com a régua. Eram e não


eram as mesmas. Ressurgiam tortas ou quebradas.
Temendo continuar a experiência, soltou o papel so-
bre a mesa e deu uma forte gargalhada, enquanto dizia a
si mesmo: “Não há nada real. Tudo é ilusão. Ou, ao revés,
não há nenhuma ilusão. Só a realidade existe...” Eufóri-
co, gritou mais alto: “Eu não estou aqui Eu não vivo Eu
já morri e no entanto respiro e vejo tenho fome e devoro
os alimentos para poder continuar a sonhar As retas não
existem mas eu as tracei sobre o papel Toda reta pode
ser uma curva na ilusão do olhar ou na materialidade do
papel riscado A luz do dia embora se projete na densa es-
curidão esta indiscutivelmente continua sendo escuridão
O mesmo acontece com a noite e o dia Estou de cabeça
para baixo e para cima ao mesmo tempo A terra gira e
temos a sensação de que ela permanece parada imóvel
intocável Minhas paredes são fixas e balizadas com ferro
cimento pedra ou cal e no entanto se movem e cairão
com o simples peso do meu corpo O ontem poderá ser o
amanhã porém nunca saio deste hoje Eis o ritmo da vida
o ilógico a assumir as razões da lógica a estabelecer regras
infalíveis E por isso concluo que o velho louco não é louco
Eu também sou velho e não estou louco isto é posso estar
louco Já fui uma fortaleza e agora não passo de um frágil
Eu Nós sonho...”
Cansado do tremendo esforço mental despendido,
Dino Silas, ofegante, voltou a cair sobre a cadeira girató-
ria e, com o pé, deu, pela última vez, um frágil impulso
contra o assoalho... Sentiu o mundo rodar com tanta ra-
pidez, que perdeu os sentidos e o sonho foi servido como
alimento para que ele resistisse, mais um dia e uma noite,
em sua vida. Até quando?

137
A dama do paço
Cloves Marques

Há ansiedade no seu caminhar. Ainda longe, uma ba-


tida ritmada aos poucos vem se chegando. Tambores, cai-
xas, instrumentos de percussão. O coração acelera, pois
não quer perder a oportunidade. Encontro com um pou-
co da sua história. “Quando o sangue ferve, a identidade
acontece” – pensa ele. Máquina fotográfica em punho.
Coração com emoção e olhos atentos a cada detalhe. Já
próximo, uma parada dos instrumentos. Uma voz mascu-
lina destaca-se em estilo dolente e cadenciado:

Nós viemos da mãe África,


Somos presas da saudade.
Só amor em abundância
É que nos dá liberdade.

E o coro do cortejo se faz ecoar:

Só amor em abundância
É que nos dá liberdade.

Carlos aproxima-se. Um espetáculo de cores, bailado e


encantamento quase hipnótico.

Nosso rei já tem coroa,


A rainha que primor.
Quem quiser felicidade,
Vá buscar o seu amor.
Cloves Marques

Quem quiser felicidade,


Vá buscar o seu amor.

Mal começara a tirar as primeiras fotos é surpreendi-


do: um beijo roubado. Coisas do carnaval pernambucano.
Ousadia das ladeiras de Olinda.
– Meu príncipe, tira minha foto e tira minha solidão!
Ele fica meio atônito. Recobra um pouco do fôlego e,
em tom jocoso e de continuidade, responde:
– O que a aflige, minha princesa? Tem imagem bonita,
companhias formosas e uma dança encantadora. Eu é que
peço socorro. A surpresa do seu carinho dá até susto de
amor.
Lídia, uma morena nascida de um amor-folguedo,
desses que só Momo sabe fazer, traz nas mãos uma boneca
coroada. No corpo moreno, um vestido de cetim azul com
miçangas prateadas, que no reflexo do sol acentuam o seu
gingado. O rosto é adornado por expressivos olhos negros
e um sorriso, que fala no requebro de palavras dengosas.
– Tudo isso, mas um coração vazio, meu príncipe – diz
e prossegue. – Minha calunga protetora e guardiã dos se-
gredos, dona Isabel, mandou-me lhe dar um beijo.
Carlos, um mulato bem postado, era assaltado por dois
calores, embora uma brisa em fuga com cheiro de maresia
corresse por ali. O ritmo do batuque aquecia o cortejo com a
percussão de tambores, alfaias, agogôs e caixas. A multidão
aspergia gotas de energia no suor que molhava os calçamen-
tos de Olinda. Ao mesmo tempo, um folguedo particular
fazia ferver as entranhas de Carlos que, nos seus 30 anos,
tinha saúde para muito mais. Uma calunga e um tambor,
marcas maiores do maracatu, lhe assaltavam, enquanto as
idades da certidão e do coração davam as cartas.
– Num brinca comigo, menina. Deixa tirar minhas
fotos. Faz uma pose, vai. Abraça a calunga, pra eu saber
quem é mais boneca...”

139
A dama do paço

– Nem fala assim, moço. Dona Isabel é a protetora de


nós todos e de você também. O espírito da África e dos
nossos antepassados lhe acompanham. Mãe me falou
tudo isso antes de morrer.
Os músicos retomam o seu ofício toque de louvação,
enquanto os brincantes parecem flutuar em evoluções
em torno do rei, da rainha e da Dama do Paço, que vol-
tara ao cortejo. À percepção e à objetiva de Carlos não
escapam os trejeitos ameaçadores do caboclo de lança –
representação de um guerreiro das divindades africanas
–, que desferia olhares de ódio para Lídia.
Mais um silvo de apito e o mestre condutor do fol-
guedo para o desfile, entoando nova loa:

Cuidado, moça bonita,


Tudo tem encanto e dor.
O ciúme faz o amante
Ser o risco do amor.

O eco fatalista do cortejo fazia o refrão:

O ciúme faz o amante


Ser o risco do amor.

Aquele caboclo de lança era certamente diferente,


principalmente, para Lídia. Fora amante de sua mãe.
Parece que a estava ouvindo dizer, “Quando a gente
ama, expõe o que está mais guardado na gente”, em res-
posta às censuras que fazia. A menina não tinha dúvida.
A mãe havia caído na arapuca do coração: amor por
mendicância de amor. Ainda martelavam doidamente
as palavras balbuciadas, quando sua mãe definhava:
“Quem mata por amor é piedoso”. Com tão pouca ida-
de, aprendera que deveria se arriscar a devol­ver a do-

140
Cloves Marques

minação ou a liberdade na mesma medida como proce-


dessem com ela. As investidas do caboclo de lança não
lhe punham medo. Ela sabia o que queria.
Enquanto isso, os componentes daquela nação maraca-
tu, ainda agitados pelo último bater dos tambores, escutam
o mestre que não tira o olho do caboclo de lança, que só
tem gestos de raiva para Lídia, e solta mais uma loa:

Homem feio só dá susto,


Muito mais, se é odioso.
Só se salva quando for
Educado e carinhoso.
Só se salva quando for
Educado e carinhoso.

Lídia rindo volta ao seu assédio:


– Eu sou a Dama do Paço e meu destino é pedir. Quero
uma paga pro meu beijo, meu príncipe.
Disse Carlos, não se contendo:
– O seu jeitinho sensual de falar acrescenta tragédia ao
meu desejo. E completou:
– Minha Dama, quantos aninhos?
Quando ela disse dezessete, prosseguiu:
– Você quer muitas bonecas de cabelos ondulados, ves-
tidinhos coloridos de seda da China, enfeitados com ren-
da de Angola?
Assistindo o brilho de alegria nos olhos de Lídia, pro-
meteu:
– Terá minha proteção e todas as bonecas. Basta ser
dama só minha e largar os encantos da Nação Maracatu.
Uma fadiga de decepção lhe tomara a face, quando
recobra a imagem que traz encalhada na memória: sua
mãe se destruindo na fatalidade do amor prisão.
– Quem vê um homem declarando amor por uma mu-
lher, já viu todos, não é, dona Isabel?

141
A dama do paço

A calunga silente deixa que as loas do mestre façam


malabarismo na lógica da convivência dos amantes:

Aí se enganado quem pensa


Homem sempre é igual!
Aprender tudo outra vez
Dá prazer, nunca faz mal.

Enquanto Carlos gira a objetiva para mais uma foto, a


Dama do Paço, com sonhos de donzela enfeitiçada, volta
ao cortejo, repetindo em uníssono:

Aprender tudo outra vez


Dá prazer, nunca faz mal.

E Carlos prosseguia tirando fotos. Imagens aprisio­


nadas, que lhe restariam como propriedade.

142
Os dois corações
Cristovam Buarque

As grandes ideias mudam a realidade do mundo, reorien-


tam o rumo das coisas e o fluxo do conhecimento. Quando
uma delas chega, arrepia quem pensa. Os grandes cientistas
sentem, os artistas também. Gente comum também.
O senhor que naquela noite, em um quarto de hos-
pital, assistia ao noticiário da televisão, sentiu o arrepio
atravessar o seu corpo. Como se a ideia fosse uma descarga
elétrica. E olhou para a cama ao lado, onde um jovem es-
tava deitado, acordado, ligado a aparelhos, com tubos de
oxigênio nas narinas. Assistindo também ao noticiário.
Quando passou o curto arrepio que o surpreendeu
junto com a ideia enlouquecida, o senhor falou para o
jovem deitado.
– Você viu a notícia, filho?
– Sim. Que vida desperdiçada.
– O crime que ele cometeu justifica a pena.
– Nenhum crime justifica a pena de morte, meu pai.
– Você não prestou atenção à notícia? Três mortes, in-
clusive uma menina de seis anos.
– Meu pai, ele vai mofar na cadeia contando os dias
para a morte marcada.
Nenhum crime justifica essa penalidade.
O senhor olhou com carinho para o jovem. Pensou
contar a ideia de minutos antes.
– Meu filho, enquanto ele mofa saudável na cadeia,
você fica condenado nesta cama até o dia em que conse-
guirmos a doação. É injusto.
Os dois corações

Fez um silêncio. O jovem olhava curioso, cabeça virada


sobre o travesseiro, movendo mais os olhos.
– Quando ouvi a notícia e vi o tipo daquele criminoso,
imaginei que o coração dele poderia servir para você.
Fez outro silêncio, olhando para o filho, com ternura
e um pouco de esperança. O jovem nada disse, fez um
ligeiro sorriso. Fechou os olhos e tentou dormir. O pai
continuou acordado por muito tempo. A ideia que lhe
havia dado arrepios começava a se transformar em proje-
to. Quando nada mais há a fazer, os lúcidos se permitem
pensar o impossível. Nada disse ao filho.
No outro dia, foi até o presídio. Pediu para falar com o
preso que na véspera havia sido condenado à morte.
Sete anos antes, um jovem de 18 anos entrara na casa
de um rico empresário. Queria roubar, apenas roubar. O
alarme disparou e a polícia chegou. Armado, ele man-
teve a polícia no lado de fora por tempo suficiente para
cometer o crime de um desesperado. Assassinou os três
moradores que estavam na casa. Depois foi capturado.
Demorou, mas terminou condenado, tinha 25 anos. A
mesma idade do jovem também condenado, no hospital.
E a mesma estatura. Altos, fortes.
Depois de se apresentar ao diretor da prisão, que já o
esperava, e de curtos comentários sobre o amigo comum
que intermediara o encontro, o pai foi levado a uma sala
de visitas. O condenado entrou pouco depois. Quando
percebeu a entrada, o senhor levantou, como se estivesse
diante da pessoa que poderia mudar o seu futuro. Senta-
ram no mesmo instante. Fizeram silêncio. O condenado
foi quem primeiro falou. Parecia calmo. Acostumado à
própria prisão.
– O senhor pediu para me ver. O que deseja?
– Tenho um filho de sua idade. Muito parecido no cor-
po com você.

144
Cristovam Buarque

O jovem preso ficou calado, como que aborrecido.


– Ele vai morrer.
– Quem vai morrer?
– Meu filho.
– Por quê?
– Ele tem uma doença rara. Uma cardiopatia.
– O que é isto?
– Uma doença no coração. O coração cresce. Já não
tem forças. Fica sempre deitado, com oxigênio todo o
tempo.
– E não tem remédio?
– Tem. Um transplante.
Fez-se silêncio. O preso pensava o que tinha ele a ver
com aquela visita.
– O senhor pode dizer por que veio me ver?
– Vim pedir seu coração.
O preso deu um salto para cima e para trás. Derrubou a
cadeira. Saiu em direção à porta, arrastando os pés amar-
rados. Bateu para que abrissem. O homem correu para ele.
Tentou abraçá-lo e puxá-lo, por trás. O preso o empurrou
com a força de jovem sobre o corpo de um homem madu-
ro. A porta abriu rápido, os policiais entraram, subjugaram
o preso. Olhando o jovem preso, no chão, debaixo de três
guardas, o homem disse-lhe rapidamente, enquanto o via
ser arrastado para fora da sala.
– Meu filho é de sua idade. Um jovem com futuro, pai
de duas filhinhas, vai morrer por falta de um coração,
enquanto você vai morrer dentro de meses, de qualquer
forma, preso, sozinho, até o último dia. Por que você não
doa seu coração fazendo uma caridade em troca de tanto
mal que fez ao mundo com suas mãos assassinas e ainda
deixa dinheiro para seus pais ou para quem você quiser?
Quando concluiu seu discurso inútil, já estava falando
sozinho. De longe viu os olhos esbugalhados do preso se

145
Os dois corações

afastando arrastado pelo corredor de volta à cela onde


passaria o resto de sua vida. Sentou ali mesmo, ao lado da
porta, encostado na parede. Puxou as pernas para junto
do corpo, colocou a cabeça sobre os joelhos. Chorou sem
exagero.
Ao sair da cadeia, o homem sentia-se abatido, desmora­
li­­zado, pela falta de esperança para salvar o filho e pelo
ridículo ao fazer um pedido absurdo. Estava chorando
quando entrou no carro. Um choro leve, que muitas vezes
é o mais pesado. Como se os olhos e a alma não combi-
nassem.
Dias depois decidiu dar um passo adiante. Era uma ideia
absurda sob todos os aspectos, menos no que lhe interessava:
salvar a vida do filho. Ia tentar tudo. Sabia da impossibili-
dade de seu gesto, mas não ia deixar de tentar. Quando um
dia, talvez próximo, tivesse de levar o corpo de seu filho, iria
poder dizer para si próprio que tinha tentado. “Eu tentei!”
É o que pensaria quando nada mais fosse possível.
Não contou à mulher. Naquela manhã ela tinha ficado
no hospital. Ele foi ao prédio do Congresso. Tinha uma
audiência com um Deputado. O seu Deputado, como ele
pensava. Não o conhecia, mas tinha votado nele, nas últi-
mas eleições. Entrou no gabinete no momento em que o
Deputado se levantava para recebê-lo. Sentaram de frente
à mesa de trabalho entre os dois. Havia uma pessoa por
perto, parecia assessor ou secretário. Olhou para o Depu-
tado como pedindo para ficarem a sós. O Deputado en-
tendeu. Fez um gesto com a cabeça. Depois que a pessoa
saiu, disse ao visitante.
– Peço desculpa pelo pouco tempo que tenho. Haverá
uma reunião daqui a meia hora e não posso atrasar. O
senhor insistiu em me ver.
– É verdade. Votei no senhor nas últimas eleições. Vou
votar outra vez. – O Deputado riu, contente.

146
Cristovam Buarque

– Na minha casa foram três votos. Mas na próxima


eleição serão apenas dois. – O Deputado aproximou-se
da mesa.
– O que eu fiz de errado? Quem não vai votar em mim,
em sua casa?
– Meu filho. Meu único filho.
– Por quê?
– Porque estará morto.
Houve um silêncio. O Deputado pensando o que aque-
le homem respeitável, muito bem-vestido, ia lhe pedir.
– O que acontece com seu filho?
– Tem uma grave doença no coração.
– Não tem cura?
– Só um transplante. Mas ele é muito grande. É pouco
provável que consiga um coração. Há uma longa fila de
espera. E poucos compatíveis.
O Deputado esqueceu o voto que perderia. Por sensi-
bilidade, por ser pai e porque nenhum voto sozinho faria
diferença nas eleições. Perguntou, compungido.
– Posso fazer alguma coisa?
O homem olhou nos olhos do Deputado. Pensou se po-
deria confiar. Se não estava indo longe demais. Fez pausa
de quem está na beira de um abismo, sabe que depois não
terá volta. Às vezes, a única saída é saltar o abismo. Do
outro lado estava a vida de seu filho. Nenhuma reputação
merece ser preservada na luta para salvar a vida de uma
pessoa, ainda menos um filho doente do coração.
– O senhor pode apresentar uma lei que obrigue a
doa­ção dos órgãos de condenados.
Houve um silêncio.
– Uma lei de doação?
– Sim.
O Deputado pensou rapidamente. Não era absurdo.
Ele próprio defendia que a doação deveria ser obrigató-

147
Os dois corações

ria. Mas depois de uma morte natural, decidida por Deus.


Nunca morte antecipada, com data marcada. Apesar dis-
so, não era absurdo que na morte de um preso os órgãos
fossem doados.
– O perigo é que isso induza assassinatos dentro da
cadeia. Os presos vão matar uns aos outros em troca de
dinheiro dos que vão comprar os órgãos.
– É apenas para os condenados à morte. Sem apressar
a data. No dia da execução.
Houve um silêncio.
– O que o senhor deseja de mim?
– Que apresente uma lei transformando a pena de
morte em pena de doação.
No lugar de condenar a morrer, condenar a salvar. A
pena de salvação de uma vida, depois do assassino ter ti-
rado a vida de outro. Espiritualmente, o bandido vai ficar
com a virtude de doar sua vida para salvar outra. É o mí-
nimo que ele pode fazer.
Foi nesse momento que o Deputado começou a pensar
como político. Fez um quadro de como essa ideia iria re-
percutir, quantos beneficiados potenciais gostariam, quan-
tos defensores da ordem e da lei veriam como medida po-
sitiva. As cadeias superlotadas, a sociedade reclamando da
proximidade dos mais periculosos. O alto custo de manter
os bandidos presos. Um criminoso custando dez vezes mais
que um aluno. A pena de doação deveria ser aplicada a to-
dos os condenados. Todos os condenados com pena supe-
rior a 30 anos. Valer para todos. Ia pensar um pouco mais.
Levantou, estirou a mão e disse que ia pensar.
Realmente pensou. Conversou com outras pessoas. In-
clusive sua mulher e seus filhos adultos. Chegou à conclu-
são de que valia a pena.
Em duas semanas ligou para o homem dizendo que
iria apresentar a lei, mas queria refletir com ele, porque

148
Cristovam Buarque

tinha algumas dúvidas. Marcaram uma conversa. Desta


vez foi o Deputado quem começou.
– Estou pronto para apresentar a lei de doação. Mas
tenho um problema. Sabemos o doador, mas como vamos
escolher quem recebe o órgão? São raros os presos conde-
nados à morte. E só um coração em cada um...
– São oito órgãos. Coração, dois pulmões, fígado, duas
córneas, dois rins. Em breve outros órgãos também pode-
rão ser transplantados. Até os testículos poderão também.
O Deputado riu. Só ele. Insistiu na sua pergunta.
– Mas como escolher o receptor?
– Os receptores. Para cada preso, haverá oito benefi-
ciados. E o resto do corpo pode ir para a Faculdade de
Medicina. Muitos se beneficiam. A própria família do pre-
so pode receber uma indenização, uma percentagem da
venda.
– Qual venda?
– A venda do corpo.
– Vender?
– É a maneira mais democrática. Não podemos deixar
ao governo o direito de escolher. Vai virar politicagem.
Vão atender aos pedidos de deputados, senadores, gover-
nadores. A pressão vai ser muito grande.
O Deputado estava perplexo com a lógica. Fria, mas
perfeita. Ainda não sabia porém como resolver seu pro-
blema.
– Mas como transferir os órgãos: como escolher os be-
neficiados?
– Leilão. Fazemos um leilão do corpo. Depois um lei-
lão para cada órgão. O Deputado pareceu ausente, até os
olhos pareciam em silêncio. O homem continuou.
– Fazemos o leilão do corpo e o leilão para cada órgão,
depois o corpo é enviado a um hospital. O condenado é
anestesiado, como para uma cirurgia. Seus órgãos são re-

149
Os dois corações

tirados e distribuídos para os hospitais onde os receptores


já estarão esperando. Acaba o desespero da pressa de car-
regar os órgãos, cirurgias nas carreiras. Sabendo a hora da
morte do condenado, pode-se planejar cada cirurgia.
– E quem vai fazer a venda? O Ministério da Saúde ou
o da Justiça?
– Nenhum dos dois. Criamos empresas encarregadas
de comprar o corpo e vender os órgãos. Como uma Bolsa
de Corpos e Órgãos.
O Deputado estava perplexo. Achou que estava se me-
tendo em um tema muito arriscado. Mas sem risco não há
política. Valeria a pena.
Começou a trabalhar na ideia. Menos de um mês depois
deu entrada no projeto de lei. Conseguiu regime de urgên-
cia. Doentes de todo o País e suas famílias pressionaram
pela aprovação. Jornais do Exterior se pronunciaram. Pou-
cos contra, muitos considerando uma política lúcida, mo-
derna, contemporânea com o avanço técnico da Medicina.
A Igreja Católica se pronunciou duramente em contrário,
o Vaticano chegou a convocar o Embaixador do Brasil. As
outras religiões se dividiram. As ONGs contra a pena de
morte fizeram forte pressão contrária. Mas a opinião públi-
ca ficou deliciada com a ideia. Um editorial propôs que a
lei se aplicasse a todos os condenados a mais de trinta anos
de prisão, outros defenderam que o Código Civil fosse sim-
plificado, vinculando a pena de certos crimes diretamente
com a doação de algum órgão. As penas menores poderiam
ser pagas em doação de órgãos não fatais, como córnea, ou
rim. Depois da doação o condenado seria solto.
O pai estava no plenário no dia da aprovação da lei. O
Presidente da República logo a sancionou.
Um mês depois fez-se o primeiro leilão. O preso que
tinha motivado a ideia escapou com o argumento de que
a lei não pode ter efeito retroativo. Outro assassino con-

150
Cristovam Buarque

denado logo depois da sanção tinha o corpo compatível


com a estatura do filho. O pai tinha esperança de conse-
guir pagar aquele coração. Tinha dinheiro, tinha posses,
venderia tudo. Não era apenas salvar a vida do filho, era
também se beneficiar da lei que ele inspirara, construíra
junto com o Deputado. Seu Deputado.
No dia do leilão do corpo ele estava presente. Queria
assistir. Mesmo que o leilão do coração ficasse para alguns
dias depois.
O juiz abriu o leilão. Explicou as regras e esperou o
primeiro lance.
– Meritíssimo, minha empresa oferece R$ 30 mil.
– R$ 45 mil.
– R$ 50 mil.
Rapidamente os lances chegaram a R$ 200 mil. Equi-
valeria a mais de R$ 30 mil por órgão, em média. Um
valor elevado. Levando em conta a diferença entre o valor
de um coração e o valor de uma córnea, o coração não
custaria menos de R$ 60 mil, talvez R$ 100 mil. O pai da
ideia e do doente começou a se preocupar.
A partir daí o custo foi subindo mais devagar. Até R$
280.725,00.
O leilão durara cinco horas.
O juiz, cansado, perguntou para que hospital o corpo
deveria ser levado. O comprador, também cansado, mas
com um imenso riso de vencedor, disse.
– Para hospital nenhum, Meritíssimo. Eu represento
uma ONG holandesa contrária à pena de morte. Com-
pramos o corpo para que ele continue vivo.
Houve protesto das outras empresas. Alguns correto-
res disseram que a lei era de doação, não de perdão; ou-
tro que era imperialismo com dinheiro do exterior pagar
para manter a vida de um bandido nacional; outro falou
na injustiça, pessoas morrendo e um condenado à morte

151
Os dois corações

sendo salvo pelo investimento de quase R$ 300 mil. O


advogado da ONG falou.
– A lei diz que a doação é para o transplante. Para o
corpo de quem pagar mais. Estamos apenas transplan-
tando para o próprio dono do corpo. É um direito nosso.
Vamos entrar em todos os leilões daqui para frente. Te-
mos dinheiro para comprar todos os condenados à morte
deste país.
O juiz, mesmo contrafeito, bateu o martelo e disse:
– Está vendido. Quem quiser recorra à Justiça. Até lá a
empresa terá que pagar os custos de manutenção do preso.
– De acordo.
O juiz levantou, mas o pai que desejava salvar o filho
não levantou. Colocou a cabeça sobre as mãos e chorou.
Chorou profundamente como diante da morte do filho e
de um sonho. O sonho de salvar a vida do próprio filho,
jovem de 25 anos, com um futuro adiante, pai de duas
pequenas meninas. Chorou como quem perde o que esta-
va ao alcance das mãos depois de ter parecido impossível
pouco tempo antes.
Até que não teve mais alternativa e foi cabisbaixo deva-
gar até o hospital, sem saber como contar ao filho o fim da
esperança de salvar a vida dele. A esposa não tinha querido
assistir ao leilão, nem a nora. Sozinho teria que dar a notí-
cia. Estavam todos no hospital, esperando por ele.
Chegou derrotado. Sentou na cadeira. Todos enten-
deram que algo havia passado. Não sabiam como, mas ti-
nham perdido o coração. Acharam que alguém teria pago
mais. Não era possível, porque o leilão individualizado
dos órgãos seria alguns dias depois.
A mãe perguntou.
– Ficou muito caro? Não teremos dinheiro?
– Não haverá doação.
– Como não haverá?

152
Cristovam Buarque

– Uma ONG contra a pena de morte comprou o corpo


para que continuasse VIVO.
Houve um silêncio.
Sentado, o pai disse.
– Não entendo como é possível. A ciência evoluiu a
ponto de permitir salvar a vida de pessoas decentes com
órgãos de bandidos. E a ética continua prisioneira dos ve-
lhos tempos, quando esta troca não era possível. Estamos
no tempo errado, da indecisão. Trinta anos atrás, esta hi-
pótese não existia, daqui a 20 anos não haverá mais dú-
vida. A ética vai se submeter à técnica. Estamos em um
tempo errado. Bastariam mais poucos anos. Poucos.
Foi quando o filho falou. Estava cansado. Falava pausa-
do, sentindo a falta de ar.
– Meu pai. Não sabemos se teríamos o dinheiro para
comprar o coração desse homem. E se tivéssemos, toma-
ríamos de alguém que não poderia pagar. Além disso, eu
morrerei assistindo deslumbrado estes tempos de tanta
perplexidade. Sinto não receber um coração sadio, mas
com este meu doente estou assistindo aos espetáculos de
nossos tempos.
O pai abraçou a mãe. A esposa alisava a cabeça do jo-
vem marido, passando os dedos entre os cabelos negros
que tinha sobre o travesseiro. Foi o pai quem disse.
– Sou eu quem precisa de um novo coração, como o seu.

153
De como descobri que não existo
Cyl Gallindo

E quando se dispõe a usar as


duas poderosas armas infalíveis,
a feminilidade e o pudor, vira ser­pente.
É um jogo armado pela espécie,
do qual o homem não se livra.

Descobri que não existo.


Desesperei-me com a descoberta.
Ao entrar em casa, encontrei a mulher na sala, assis-
tindo à televisão.
Dirijo-lhe a palavra, faço comentários sobre o dia de
trabalho, o tempo, o programa. Simples pretexto para
entabular conversação, já que não houve sequer um boa-
noite formal.
Nenhuma resposta. Nem um olhar.
Inquieto-me.
Vou à cozinha. Abro a geladeira e pergunto “quer
água?”.
Calada estava, calada ficou.
Sabia que estava com raiva. Brigamos pela manhã. Aguar-
do ela dizer “morro de trabalhar nesta casa” e eu responder
“para você mesma”. “Para mim você não faz nada. Saio pela
manhã e volto à noite. Como as sobras das suas refeições.
Se você almoça carne, peixe, sopa, papa, panquecas, isso
eu janto”. Nada feito com aquele “especialmente para você,
meu bem”, como fora no início do casamento.
Casamento!?
Cyl Gallindo

Dá calafrios pensar. Organizado exclusivamente para


a mulher. Festa, bolo, presentes, fotografias, filmagens,
padrinhos, convidados... Tudo gira em torno dela e para
ela. Entrei na igreja como se fosse sacristão, ninguém sou-
be, ninguém viu. Para ela, as luzes acenderam, a música
tocou, a multidão voltou-se encantada.
A partir daí, virei escravo de sua vontade, de seus de-
sejos, da sua fome e sono, do seu estado de espírito. Com
um agravante: há uma encenação de tal forma que parece
que sou eu quem manda, a minha vontade é a que pre-
valece. Eu mesmo cheguei a acreditar nisso. E declara-
va “Quem manda na minha casa é minha mulher. Quem
manda na minha mulher sou eu”. O motivo é simples: o
homem manda mandando. Sobressai a imposição. A mu-
lher manda pedindo e, quando a coisa é meio complica-
da, manda implorando. Envolve cinicamente outras pes-
soas. Quando o homem menos espera estão pais, irmãos,
vizinhos, defendendo a causa dela, e ele cede. Só tem vez,
quando ela decide. Até mesmo numa comida, caso eu ma-
nifeste minha preferência, ela diz com desdém: que tire
da geladeira e prepare.
Estando ela com raiva, como agora, aí é que não há
oportunidade mesmo.
O homem é uniforme, imutável, incolor, inodoro.
Com o mínimo de inteligência e insinuação da mulher,
torna-se manipulável, um bonequinho de marionete, um
robozinho.
A mulher a cada dia é uma pessoa diferente. Nunca se
sabe onde nem como está. Se ela amanhece preocupada
com a aparência pessoal, sorri, fala, canta. Faz um café es-
pecial. Come saboreando. Forra a cama. Arruma a casa. Te-
mos pela frente uma fêmea, compreensiva, dócil, cordata.
Esse estado de espírito dura uma semana. Daí em diante
declina. Há uma metamorfose, com imprevisíveis transfor-
mações, até chegar a isto que tenho diante de mim. Não

155
De como descobri que não existo

suporta nem meu olhar. Levanta-se a contragosto. Recla-


ma. Briga. Perde o interesse por ela própria, pela vida.
Medusa: expele serpentes pelos cabelos.
E ainda se declara normalíssima. O homem é que não
presta. A sociedade é uma desgraça. A vida não merece o
sacrifício de ser vivida.
Cheguei a imaginar “ela não gosta mais de mim”.
Nunca fui o homem ideal. Está arrependida de ter casa-
do. Tem outro homem.
Engano!
Gosta do mesmo jeito. Soma-se ao amor o hábito que
adquiriu do marido, do companheiro, do amigo. Repul-
sa ao macho. Qualquer que seja. Está no fundo do poço,
onde não comporta ninguém. Quando essa condição a
submerge, posso estar rasgando a roupa de tesão, não
chego nem perto. Isso também não lhe agrada. Acode-
lhe a sensação de desprezo, “no momento em que mais
necessita de compreensão”. Mas que fazer?
Hoje é um desses dias odientos. Uma tola discussão.
Ela dramatiza, amplia, odeia. Exatamente por isso fiquei
pela rua.
Se estivesse para falar, comentaria “chega uma hora
dessa e nem dá satisfação”. “Bebendo com amiguinhos e
amiguinhas. Divertindo-se! A besta aqui, esperando”.
Seguia-se um rosário de alegações de falta de respon-
sabilidade, liberdade para fazer o que bem quer, com
quem quer. Ela não fala com ninguém, não vê ninguém.
Não tem direito nem de sair de casa.
Um disco, tocado sistematicamente a cada mês. “Rou-
pinha lavada…”, comenta irônica. “Na máquina!”, res-
pondo no mesmo tom. “Tudo pronto, a tempo e a hora…
dinheiro no bolso…”
E continua, indefinidamente, como se estivesse a falar
sozinha.

156
Cyl Gallindo

Se o humor está em ascensão, termina por me abraçar,


dizendo, “mas eu gosto de você mesmo assim”. “Você sabe
que sou sua mulherzinha, que lhe adoro.” Se estiver em bai-
xa, passa quatro, cinco, oito dias sem uma única palavra.
Paro e penso: “dois adultos brigando”. Por quê?
Como, porém, impor razão onde impera a emoção?
Parodiando Fernando Pessoa: Todas as atitudes de
amor são ridículas e não seriam de amor se não fossem
ridículas.
Dominado pela ridicularia (ou infantilidade?), fiquei
mais uma vez perambulando. Saí do trabalho e me deixei
ficar. Não estava disposto a ouvir reclamações, achinca-
lhes. Não havia conjeturado que hoje é dia de silêncio.
Está a própria Helen Keller. Cega, surda e muda.
Ah! Santo casamento!
Ah! Senhor amor eterno!
A química do amor perdendo efeito.
O homem americano diz “numa família, em primeiro
lugar está a mulher; em segundo, os filhos; em terceiro, os
parentes; em quarto, o cachorro; por fim, o homem”.
Tenho ciência disso, mas confesso ao mundo “adoro
minha mulher. Adoro minha casa.” Aqui está a desembo-
cadura de toda a minha razão de ser. Somente consegui
adquirir leito, quando edifiquei a minha própria foz. Até
então, fui enxurradas.
Ela foi os diques, confinando sabores e dissabores. E,
quando se dispõe a usar as duas poderosas armas infalíveis,
a feminilidade e o pudor, vira serpente. É um jogo armado
pela espécie, do qual o homem não se livra. Engrandece.
Pois apenas a mulher pode revelar-se frágil, delicada, sub-
missa, cordata. Unicamente ela, estando nua, pode fechar-
se com malícia, cruzar as mãos a cobrir o ventre, ou os seios,
deitar a cabeça sobre os ombros como quem pede miseri-
córdia. Dizer não com significado de sim. E o homem vai

157
De como descobri que não existo

como fera, como quem estupra, rasga, possui. É o que agra-


da. Pois, se agir igual a ela, desfaz o jogo, elimina o prazer.
Por isso, às vezes, digo, declamo, grito: ah! Santa di-
ferença! Instala-se nos palácios e nos mocambos. Como o
tempo. Tem quatro estações durante um mês. Encontrar a
mulher primavera, cheirosa, dengosa, alegre, é desbravar
caminhos para a eternidade. Mesmo que para isso se pas-
se pelo purgatório do verão; o limbo do outono e o infer-
no do inverno. Ela se insinua e nos desequilibra. Podemos
beliscá-la na bunda, puxar-lhe os cabelos, morder-lhe o
pescoço. Flácida, derreia sobre nosso peito e balbucia “ca-
chorro, à noite você me paga!” Botânica, oferece flores e
pomos à vida.
Fora dessa época, os frutos são verdes, amargos; as flo-
res, em botões ou murchas. Gracejos, carinhos, intimida-
des, em vez de agradarem, arranham, ferem, ofendem. É
melhor deixar de lado. Esquecer. Exatamente como estou
fazendo agora.
Toca a campainha.
Por estar mais perto da porta, ela projeta-se e atende.
Não me movimentei. Imaginei: “é a chata da vizinha”.
Vem bisbilhotar a vida alheia, contar e ouvir intimidades.
Conversa de mulher, definem. Falam com a maior natu-
ralidade do mundo. Cada uma morre negando a verdade
para o marido. Censuram as amigas, mas procedem do
mesmo modo. Juntas, dizem, “ah! fulana, ontem ele estava
indócil”. “Pegou-me…,” descrevem tudo o que foi prati-
cado entre as quatro paredes, com o marido ou o amante,
só que dizem o marido. Homem nenhum faria uma coisa
dessas. Como dizer ao vizinho, ao colega de trabalho, ou
a qualquer um conhecido, que fiz isto e aquilo com minha
mulher? Quando o homem conta é inventando lugares,
personagens. Parece mentira. Histórias falsas, sem graça,
sem alma. As narrativas delas têm ação, realidade, perso-

158
Cyl Gallindo

nagens vivas. Têm nervos, músculos, secreção, tomados


de sensualismo.
Pouca gente sabe: a única situação de desvantagem da
mulher para o homem, no ato sexual, está no êxtase. O
homem penetrou, goza. A mulher, nem sempre. Ela dis-
farça. Mente. Conforma-se. Algumas até desconhecem o
ápice do prazer. Aquele que transborda o corpo de júbilo
e desmorona as necessidades. Dizem alcançá-lo por eta-
pas. Não pode! O êxtase é um relâmpago, avaliado pelo
trovão a estremecer o corpo. Jamais acontece em cirros
ou estratos. Zeus sabe do que falo. Mas eu não a contesto,
pois não é ela. É a natureza do gênero.
Exatamente como imaginei, é a vizinha. Está com ou-
tras. Disseram-lhe qualquer coisa, que não entendi. A mu-
lher fechou a porta e acompanhou-as. Asseguro, “vão me
retalhar”. Prefiro fingir que não estou vendo nem ouvin-
do nada.
Só fingimento, pois na verdade estou ouvindo muito
barulho e pressentindo grande movimentação no aparta-
mento ao lado. Como não me chamaram, continuo fazen-
do que não estou percebendo coisa alguma. Quando ela
voltar, que relate o que houve. Pode ser a oportunidade
de quebrar o gelo.
Creio que há alguém doente. Sem dúvida vou ser cha-
mado para levá-lo ao hospital. É sempre assim. Para isso
sou o marido, bonzinho, amigo. O que não faz questão de
nada. Honestamente não posso negar a curiosidade. Mas
continuo indiferente.
Disse indiferente?
Acabo de lembrar a maior arma humana: a indiferen-
ça. Não chego ao nível da mulher. A indiferença nela é
natural, é apatia, aversão. Em mim é disciplina. Dá uma
certa independência, senão viro cachorrinho de madame.
Sei que esta é a única arma do homem, proporcional ao

159
De como descobri que não existo

seu caráter. A mulher perde terreno exatamente porque é


competitiva. Pode não ter o menor interesse por um ho-
mem, mas se ele estiver sendo assediado por outras mu-
lheres, ela passa também a se interessar por ele, e pode
até transar, só para não se sentir inferior às demais. O
homem interessado por uma mulher, no momento em
que observa que ela está ligada a outro homem, sai da
raia. No jogo da conquista, quem decide é a mulher, por-
tanto, na disputa vence quem mais se insinua, e segura,
prende, aquela que souber manter renovada a insinuação.
Quando uma mulher não se interessa por um homem,
com um simples olhar o desarma, e, quando se interessa,
sai da frente, dificilmente ele escapa. A mulher é o FMI
do homem, ao qual estamos irremediavelmente presos,
somos eternamente devedores. E, para elas, cada caso é
um caso.
Agora, aqui na sala, fiz todos os esforços possíveis para
que me dirigisse a palavra, cheguei a bater propositalmen-
te nos seus pés, quando fui à cozinha, ela permaneceu es-
tátua. Movimentou-se, toda espertinha e alegre, quando
a outra a chamou.
Eu devia ter ficado na rua. Só voltaria quando ela já esti-
vesse deitada. Tomaria banho e me deitaria sutilmente. Ela,
virada para o outro lado, fingiria dormir. Amanhã, depen-
dendo da estação, as coisas tomariam o rumo definido.
Continuo indiferente à sua indiferença. Só que a indi-
ferença golpeia fundo. Atinge o espírito. Machuca a dig-
nidade. Torna-nos insignificantes. Na verdade, depois de
andar ao léu, entrei no bar.
Epa! Tenho a impressão de que não paguei a conta.
Que absurdo! O garçom deve estar puto da vida. Lem-
brando bem, pedi um uísque e um prato de salgadinhos.
Outro uísque. Deitei a cabeça no braço sobre a mesa para
ouvir músicas. Hoje em dia, ninguém ouve mais música

160
Cyl Gallindo

boa, num bar nem numa estação de rádio. Música com


melodia, ritmo, harmonia. Só tocam rock. Rock. Rock. Já
imaginou se todas as rádios só tocassem samba ou valsa
ou tango? Seria loucura. Só que essa loucura está aí, só
se ouve rock. Um jovem excitadíssimo definiu para um
repórter um festival de rock: “É barulho, porra! Ba-ru-
lho!!”. Às vezes necessitamos fugir.
Precisava de lições de harmonia.
Só que parece que cochilei. É, dormi. Acordei meio
atordoado, com dor de cabeça. Não bebi nem comi mais.
Saí sem dar satisfações nem ao garçom. A rua não agra-
dou, o bar estava ruim, aqui está péssimo.
O problema sou eu mesmo que não consigo assentar
dentro de mim, por causa dela. Como diz Garcia Lorca:
“compadre, eu não sou eu, nem minha casa é minha casa”.
A casa é a mulher. Do substantivo comum, singular,
concreto, feminino, nasceu o verbo casar. O homem é
apenas o adjunto adverbial de lugar, ou de companhia.
Estranho. A movimentação na casa da vizinha aumen-
tou.
Vou continuar indiferente.
Como?
A vizinha e outras duas mulheres embocaram porta
adentro, nesse instante. Sequer deram boa-noite, ou pe-
diram licença. Parece que nem estão me vendo. Sei que
têm toda intimidade aqui, principalmente quando não
estou. Na minha presença se fazem mais comedidas. Sem
mim, olham panelas, reviram gavetas, falam dos maridos
e ouvem narrativas a meu respeito. Devem estar de pac-
to com a mulher, querem desconhecer que sou o dono
desta merda. Vou permanecer calado e parado para ver
até onde querem chegar. Principalmente a puta da minha
vizinha. Ela é a que mais induz a minha mulher a ser dura
e exigente comigo. Pensa que não sei?

161
De como descobri que não existo

Como uma boneca elétrica, começou arrumando coi-


sas, fechando janelas e apagando luzes.
Já estava para explodir, quando chega outra vizinha,
do apartamento da frente, membro da confraria, inda-
gando:
– O que foi que houve, mulher? Conta, pelo amor de
Deus!
– O proprietário do bar ligou dizendo que ele sentou,
pediu uísque e um prato de salgadinhos. Repetiu a dose,
mas nem terminou. Deitou a cabeça sobre o braço em cima
da mesa e morreu sem que ninguém se apercebesse. Não
deu um gemido nem fez um gesto. Chamaram a polícia e
ligaram lá para casa para não darem a notícia de supetão
a ela. Estamos indo lá para reconhecer o corpo.
– Colapso?
– Fulminante!
Desligaram a televisão, apagaram a última luz da sala
e fecharam a porta.

162
O dançarino de bolero
Dioclécio Luz

No espelho era ele. Já levava vantagem nisso. Ele. Se


olhando nos olhos. Não. Nas grotas. Onde havia dois
olhos moravam onças, dizia-se. Onde tinha a boca, era
sabido, vivia um rebanho de cascavéis, crotalus, raça pura,
serpentes arianas. E ele ali. A noite o pegou no colo, de-
licada, suave, diante do espelho que refletia as luzes mar-
rons da cidade e seu corpo perfumado depois do banho.
Finalmente, ainda nu, vestido apenas com a sombra clara
das luzes do poste lá fora, disse, convicto:
– É bom a gente ser a gente.
Suspirou. Sorriu. Viu seus dentes amarelos refletindo
sua angústia e seus medos de homem e acrescentou, feliz:
– Melhor que isso só quando eu me acho morando
dentro de mim.
Era o seu jeito de estar ali. Era domingo, com seus
cansaços, suas dores no peito, suas saudades de algo que
não sabia o que era. Era um bicho, um algo azul que mo-
rava dentro dele, mas ocultado dentro de alguma tripa,
algum pulmão, algum fígado.
– Todo dia deveria ser segunda-feira, ou terça. Não
precisa dos outros dias da semana. Um só é o bastante.
Pra que fragmentar o que é completo? – pensou herético,
ontem.
Agora são 18 horas. Nem mais nem menos. Anote
aí...
Tem ele e os espelhos. Cada fatia sua, cada lasca de sua
alma herbívora, cada pá de areia com que foi construído
O dançarino de bolero

seu corpo branco e pintoso, pedaços, todos, estão ali, são


espelhos. Fora dele há o destino:
– Destino é chuva – falou, sério. Mas não agora. Isso
foi outro dia. Um dia que nem mais existe.
Porque agora são 18h30min, o que há é ele se vendo
no espelho. E confirmando que o tempo não passa.
Finalmente inicia…
Pisca para ele, para eles – eus, espalhados no espelho.
Mas ele pisca como se fosse só um. E se acha um, o puro
de espírito. Seus olhos abrem e fecham, venezianos. “Ja-
nela de mim, cale-se!” – pensou certa vez. Não hoje. Não
agora. Agora ele é somente higiênico. Se pudesse lavaria
os olhos com sabão em pó e água sanitária. Nada de re-
mela, nada de líquidos, umidades. Detesta umidades. “Eu
deveria morar no deserto, ou no bucho do sol”, pensou,
blasfemo, agora há pouco. É o pavor de umidades. Não é
homem de chorar, portanto. Mas o diabo é que ele chora
muito. Não gosta, mas chora. Certa vez achou que pa-
rando de beber água não choraria mais. Parou de beber.
Descobriu depois, científico, seco, que sem líquidos seu
corpo não conseguiria sobreviver. E desistiu do experi-
mento. E as águas continuaram correndo dos seus olhos.
Pobre. Triste. Uma cachoeira. Chora com novela, chora
com criança na rua, chora quando o presidente anuncia
um novo plano econômico, chora quando seu time ganha
e também quando perde, chora até pela tristeza dos torce-
dores dos outros times, chora com cinema, chora quando
sente saudades, de ódio e por amor...
Com o lenço enxuga os olhos que, de pensar nisso de
chorar, já se transbordam, rompendo a barragem. Limpa
por dentro e por fora. Se pudesse, toda manhã botaria
os olhos no forno de micro-ondas até que se tornassem
como devem ser os olhos que a gente carrega na face: se-
cos. Pensar inútil. Ele no espelho olha para ele e indaga:

164
Dioclécio Luz

“talvez não consiga secar o mar, o mar florestal, mas faço


a minha parte. Não tenho águas voláteis”. Pensou assim,
biodegradável, inocente, sem saber que o mais volátil no
mundo era aquele seu pensamento.
O pensar. Não aquele ele.
Pelo menos na sua credulidade sovina, sibilosa:
– Eu não. Eu sou um homem pregado ao mundo. Sou
granito e magma. Ou um poste de madeira. Nem um ter-
remoto, nem maremoto, nem ventomoto me tira daqui
– declarou, inocente das palavras, mas cioso de que bus-
cava algo no espelho além dos olhos. Até, por fim, achar
e concluir, feliz: “agora sim, tenho os meus olhos limpos,
porque é isto meu espírito”.
Na sua opinião, sua alma era “leve e solta e bela como
uma aeromoça”. E mais ainda agora, depois da assepsia.
Piscou para si, sim, feliz por estar se vendo. Arriscou pen-
sar: “fazia tempo que a gente não se via, não é, minha
bela; você aí, eu cá, de fora, te vendo, feliz, minha doce
meretriz”. Então calou seu pensamento profano, temero-
so: “E se minha alma ler meus pensamentos?”…
Então o tempo permanecia ali, quieto, mudo, olhan-
do para ele. O tempo era um poste de cimento. E são
19h5min.
Seus cabelos estavam ali. Muitos. Era um homem feliz
por isso. Não os tivesse, certamente teria já praticado o
haraquiri. “É pelos cabelos que um homem mostra sua
honra”, disse anteontem, repetindo o que já havia dito no
mês passado. Pegou o pente no bolso e olhou-o, detetives-
co, microdetetívico, em busca de evidências de alguma ca-
tástrofe. Sorriu. Feliz. Não havia nem um, unzinho fio de
cabelo. Estava bom. “O mundo é bom por causa dos deta-
lhes”, pensou, rico, filosófico, como se fosse personagem
de um best-seller. Então passou o pente sobre o cabelo,
levezinho, docemente, carinhosamente, delicadamente,

165
O dançarino de bolero

gostosamente. Até que parou e se olhou no espelho mais


uma vez, cismado.
– Será que alisar cabelo de homem, assim, com tanto
carinho, mesmo sendo o da gente, não é coisa de veado?
A cabeleira negra é seu orgulho. Os cabelos brancos
foram pintados, enegrecidos para afastar o tempo que in-
siste em nevar sobre eles. “Se eu fosse careca seria um
homem morto”, pensou mais uma vez. E aí teve medo.
E aí lembrou que quando se tem medo os cabelos caem.
Então, branco, velado, apavorado, olhou-se no espelho e
sorriu e disse bem alto para que todas as suas bactérias e
suas tripas e seus ossos escutassem: “eu sou um homem
feliz e por ser feliz sou sempre feliz”.
É cedo ainda, 19h45min, mas o relógio dorme dian-
te do tempo. Nada passa ali. O tempo é um museu de
nada.
Agora ele vê os dentes. Não gosta deles. Gosta por
obrigação. “Dente é parente”, ouviu certa vez num pro-
grama de televisão. “Dos meus dentes quero distância”,
falou certa vez, sem querer, no elevador, e todos olharam
para ele, e ele disse ainda: “sou eu que crio, é problema
meu, vocês não têm nada a ver com isso”, disse, antes de
descer no quinto andar.
Mas agora eles estão ali, carentes, buscando carinho,
carinhos. Fedem. Então ele asperge um vento sabor de
hortelã. Depois canela. Achou que não era o bastante e
fumegou almíscar na boca. Já não pensava nos dentes,
pensava nas mulheres: “elas sendo diferentes, faço seus
gostos, aqui tem três alvos, pelo menos”.
Ainda estava nu. Ou melhor, estava, mas não se acha-
va. Já tinha algum cheiro. Faltava o que faltava. Perfumar-
se era sua epifania. Olhou-se no espelho e consultou com
o especialista ali, um macho feito ele, ele mesmo, qual o
odor mais adequado para aquela noite. E ele, o do espe-

166
Dioclécio Luz

lho, disse: “aquele”. E ele, “o de cá”, pegou o vidrinho cor


de bosta, derramou uma gota no pulso esquerdo e outra
no pulso direito. “Basta?” – perguntou. “Não, seu bosta”
– não se conteve o de lá – “também aquele outro é bom,
presta-se a um homem feito tu”. E o de cá obedeceu e der-
ramou duas gotinhas atrás de cada orelhinha. Via-se, por
seu rosto sereno, sempre reto, sem desgostos para não criar
rugas, que a escolha não era o bastante. Mais cinco ou dez
vidrinhos ele abriu e colocou as gotas na face, no pescoço,
nas axilas, no umbigo (“nunca se sabe o que nos reserva o
futuro”, pensou, pensando em mulheres ousadas).
Ele no espelho olhando no espelho. Muitos e eram um
só. Só não era um só o tempo. O tempo estava morto ali,
do lado de cá, marcando, fúnebre, 21h5min.
Foi ao guarda-roupa e pegou o terno preto. Gostava
dele. Tanto que todas as noites o colocava. Colocava-se
dentro dele. Era mudar de pele. Mas, sabia bem, era a
mesma pele.
– Pra que mudar de roupa se, por dentro, é sempre o
mesmo corpo e a mesma alma feita de nuvem e poeira?
Vestiu a cueca azul com bolinhas amarelas. E reprimiu
um riso. Achou que eram ridículas, mas era moda, pelo
menos foi o que lhe disseram na loja de roupas para ho-
mem. E ele, ele, ele, “sou um homem contemporâneo,
carne e osso nos dias de hoje”, pensava assim quase todos
os dias. Então vestiu a calça. A camisa branca. E pegou a
gravata amarela e colocou no pescoço...
Aí ele se olhou. Olhou. Olhou. Desconfiou: “o mundo
está troncho ou é esta minha gravata?” No da sua frente,
viu, antes de ser o mundo torto, era a gravata mesmo.
Queria zangar-se e não podia – as rugas, as rugas, as ru-
gas, não permitiam. Atrás dele existia uma reta, um armá-
rio, eixo do mundo, seu guia. Por esta reta tão cartesiana
guiou-se no alinhamento da gravata. Era torta, era redon-

167
O dançarino de bolero

da, ficou reta, aprumada. Então, feliz, proferiu a máxima


do dia: – “o que vale é o que gente faz com amor e lou-
vor” – aprendida no livro de máximas e provérbios de um
escritor esotérico que, usando de magia, faz sucesso até
na França.
O tempo permanece lá, fedendo a defunto. Agora são
21h30min e ele, o tempo, nem está aí pro mundo. Os
mortos não se preocupam com as vaidades, têm lá as de-
les para cuidar.
O homem apanha as meias. Experimenta as brancas...
Não prestam. O branco não está na moda, lembra. Bota
as azuis... Não servem, não estão na moda. Coloca, então,
as marrons... Mas não combinam com a gravata... Roxo,
amarelo, lilás,... Nada parece servir. Até que, nada haven-
do a fazer, a não ser viver com elas, coloca um par de
meias beges. Por garantia, considerando a probabilidade
de o tempo e a circunstância social assim o permitirem,
guarda um par de meias vermelhas no bolso do paletó.
“Só de garantia, um homem sem garantia é um homem
morto”, ponderou, cansado.
O tempo se mexe, ele nota. Não morreu. O tempo
agora marca 21h45min. E ele ainda dá uma volta para se
olhar no espelho. A última olhada. Não, a penúltima. A
antepenúltima. E transúltima, e a ante, ante, ante, ante,...
Gira e gira diante do espelho. Confere se está tudo nos
seus lugares. Nenhum fio sobrando, nenhuma ponta apa-
recendo, nada troncho, nada torto, nada fora do lugar.
Tem pressa. Está atrasado, mas esta última verificação é
fundamental. É o ritual último de quem vai à celebração
da vida, ao rito de glória, ao pódio dos vencedores.
– Positivo – diz, finalmente.
Agora são exatamente 22 horas. Ele olha para o reló-
gio e sorri, feliz de sua pontualidade. Então espalha as sa-
patilhas sobre o carpete do apartamento, liga o disco com

168
Dioclécio Luz

o curso de dança de salão, e começa a bailar um bolero


com a dama imaginária, são dois pra lá, dois pra cá, não ace-
lere, dois pra lá, dois pra cá, determine o ritmo da dama, assim,
ótimo, você é grande, você é demais...
Sorri. Ele é um homem feliz.

169
Teodora
Djanira Silva

Se Teodora tivesse se atrasado pelo menos um minuto,


um minuto apenas, ao fechar a porta, ou mesmo ajeitan-
do os cabelos no espelho da sala, ou atando os cordões
dos sapatos; se tivesse esperado, pelo menos um minuto,
um só, quando eu lhe disse: “não vá”.
Voluntariosa, quando dizia “vou”, já estava indo. Nun-
ca desistia. Quando me avisou que ia sair, ainda tentei
detê-la: “por que a pressa”, eu disse, “estou com um mau
pressentimento”. Ria dos meus medos. Ironizava: “Joel, o
profeta – sabe que não acredito em pressentimentos”.
Às vezes, eu me zangava quando ela me chamava de
profeta, mas a suavidade da sua voz, o sorriso nos olhos
anulavam qualquer ressentimento.
Só acreditava no momento, no destino, no que tinha
de ser “Nem pense em me modificar, serei sempre assim,
importante é o momento presente. O que sabemos do que
há de vir? O que passou, passou”.
Ao abrir o portão, o rangido carinhoso me avisava da
sua chegada. Os passos leves, ritmados, o perfume de la-
vanda, a voz alegre me chamando.
Nunca usava de rodeios para falar nem agir. Decidida
dizia: “vou nadar”. “Com este frio?”. “Sim, com este frio.”
O quarto onde dormia comunicava-se com o meu por
uma pequena passagem onde ela colocara vasos com ro-
sas e uma folhagem verde exuberante.
Ter cada um seu quarto fora uma exigência que fizera
quando nos casamos. Não abriria mão da sua privacida-
Djanira Silva

de. “Cama de casal, nunca”. “Fechar uma porta é criar


mistérios”, dizia com um sorriso nos olhos. A malícia de
sempre, “preciso fechar minhas portas”.
A princípio relutei. Com o tempo entendi, tudo aquilo
fazia parte de um jogo.
Quartos separados, ligados apenas pelo pequeno jar-
dim, quando à noite ela surgia na porta, coberta apenas
por uma túnica negra, ou vermelha, branca ou de qual-
quer cor, nem precisava falar.
Se naquela tarde Teodora tivesse se detido por um
momento apenas…
A porta bateu e eu a imaginei voltando. Ficava sempre
à espera: “Você gosta de se enganar”, dissera-me várias
vezes, tinha razão, era isto que eu estava fazendo naquele
momento. Fiquei parado por muito tempo, embora sa-
bendo que não adiantava o engano das esperas.
“Não vá, Teodora, não vá”. Sentia que ela não deveria
ir. A dor de uma certeza estranha doía-me no corpo e na
alma. Embaçava-me a visão, dava-me uma tristeza, uma
vontade de chorar. “Não vá, Teodora, não vá”, eu insistia.
Sua imagem surgia em fachos de luz como um relâm-
pago ou a luz de um fósforo riscado na escuridão alu-
miando o olhar sorridente, os gestos leves.
O som crescia, surdo a princípio, estridente em segui-
da. A voz de um desespero perdido, de uma dor que aos
poucos ia desbotando e eu sabia que também estava indo,
na imagem da mulher que há poucos instantes passara
por mim, acariciara meus cabelos e dissera: “Vou cami-
nhar”, “Agora não, Teodora, espere um pouco”. “Por que,
Joel?”. “Por que não esperar um minuto, apenas um mi-
nuto para anular o pressentimento?” Ela riu mais uma
vez. Não pude ver o riso nos seus olhos.
O portão bateu de leve. Ficara nos meus ouvidos, a sua
voz: “já vou”.

171
Teodora

O barulho, o som estridente de um freio brusco, o gri-


to, o silêncio.
Se Teodora tivesse esperado pelo menos um minuto,
um minuto apenas…

172
Corina
Edna Alcântara

Quando Corina entrou em casa, as sombras se esguei­


raram para detrás dos móveis. O pássaro despertou na
gaiola. Ela fechou a porta, a penumbra voltou e as pare-
des recolheram os últimos ecos das buzinas. O olhar acos-
tumado da mulher percorreu o ambiente. “O pássaro... é
preciso alimentá-lo” – pensou. Trouxera alpiste, maxixe e
jiló. “Tinha mesmo que conservá-lo preso?” Disseram-lhe
que seria bom um daqueles dentro de casa, se quisesse
ficar boa da asma.
As pernas lhe doíam. O corpo todo doía. Sentou-se
deixando as sacolas no chão, ao lado da cadeira. Cada
vez que ia às compras, o supermercado ficava mais longe.
“Bote uma empregada, Corina, uma mulher na sua idade
morando sozinha”. Talvez os vizinhos tivessem razão. Até
que seria bom, uma pessoa agora para limpar a casa, ser-
vir uma xícara de chá. Não, não queria saber de estranhos
remexendo nos objetos guardados.
Os parentes há muito vinham insistindo para morar
com ela. O que eles queriam mesmo era meter as mãos nas
baixelas de prata, nas porcelanas de Limoges, nos cristais,
no relógio de carrilhão. “Mulher avarenta, mesquinha”.
Pois sim, eles que a esperassem fechar os olhos. Não pre-
cisava de ninguém para cuidar do que lhe pertencia.
Depois não se sentia só. Tudo ali permanecera do jeito
que sempre fora: o marquesão, as cadeiras, os móveis da
sala de jantar. Ainda podia ouvir a voz da mãe na cozinha,
ralhando com as criadas, as pisadas do pai, o cheiro do
Corina

fumo do cachimbo dele incensando a casa, o pigarro que


puxava lá de dentro da garganta. Nunca mudara nada.
Do lado de fora chegavam sons abafados de conversa.
Onde hoje era calçada, havia sido o jardim da casa. Rosas,
hortênsias, papoulas, o muro coberto de hera destruído
para alargar a avenida. Tinha também o caramanchão,
noite de lua todos iam dormir e ela ficava até tarde apre-
ciando as estrelas. “Corina, bote o xale, ou você pega um
resfriado, minha filha”.
De onde vinha aquele frio repentino, aquele cansaço,
a tontura? Recostou-se mais na cadeira, fechou os olhos.
Tanto o que fazer, precisava se pegar em alguma coisa.
Ah, as batidas do carrilhão: uma, duas, três, quatro. “Co-
rina, beba o chá, filha, quer o agasalho? Maria, ó, Maria,
anda logo com esse xale, o xale da menina, sua tonta, e vê
se abre as janelas que ninguém mais aguenta este cheiro
de cachimbo.” Oito, nove, dez. A dormência tomando o
corpo, a respiração que não passava da garganta.
Abriu os olhos e ainda pôde ver o pássaro se debaten-
do na gaiola.

174
O jardim
Eduardo Lucena

Era uma quadrilha muito mais ridícula e gigantesca:


mas eu sempre volto, muito mais jovem e ridente por so-
bre a epiderme; mais velha e cansada na carne...
E lá vem ele, com seu rubro narigão, seu chapeuzinho
listrado, entrando de volta no mundo que há.
Era um pássaro que fugiu. Eu também vi os porões do
palácio da Gaiola: o califa estava lá, tinha dois vizires enfei-
tados com perlas e alvos turbantes, as traças comiam tudo,
devorando estruturas e blocos de barro: por isso estavam tão
buchudas, elas roíam os documentos todos, farfalhavam, eu
as vi farfalhar!, enquanto o califa escutava o canto do pás-
saro que fugiu. Cantava bonito, o dono do pássaro sofreu
muito e chorou, ele era o rei, era o califa, mas ele achou um
menino de doze anos que cantava do mesmo modo que o
pássaro, igual ao pássaro. Aí, o rei mandou chamar o meni-
no e ele imitava o pássaro todos os dias, para diverti-lo. Um
dia, muito lindo e claro, azul, sol, foi, foi naquele dia que
o rei mandou chamar o menino e decretou que ele fosse
decapitado, mas depois o Grão-Vizir disse para o rei dizer
o motivo. O rei, então, levantou o olhar na direção da ca-
beça ensanguentada daquele que sabia trinar, e disse, bem
lentamente: – “Você canta como o pássaro, mas você não
é o pássaro!”, e ficou sorrindo e dizendo “piu, piu, piu…”
havia também uma cruz, uma nítida cruz fixada nos olhos,
no centro dos olhos fitos em nada, coisa alguma além da
cruz, o crucifixo marcando a encruzilhada e, bem no meio –
nem para lá nem para cá –, de pé, esbelto espectro imóvel,
O jardim

de jaquetão e chapéu-coco, o senhor Tocotas a comandar


seus aviões, sua imensa frota de navios – e eram todos car-
gueiros, aliás: levavam imagens, ilusões; traziam nos bojos
tintos de azul sonhos, antigas esperanças, paixões duma in-
fância remota e comum, a ganhar novas dimensões dentro
da cruz, no olhar inerte dos olhos do senhor Tocotas, do
satânico senhor Tocotas vestido de bizarro e negro e trazia
nas mãos uma pistola carregada de horror, destruição, mor-
te intencional, fixa, pré-moldada morte, porque o senhor
Tocotas era muito mau, era um monstro dotado de incrí-
vel crueldade, dum poder de devastar além das imagina-
ções e suas naves flutuam no ar, atacam, matam, morrem,
se destruindo mutuamente, há um imenso troar de canho-
neiras, um pavoroso combate!, mas não há tréguas: estão
a se destruir ternamente (num sorriso do senhor Tocotas,
horrorosamente calmo, tranquilidade absoluta pairando
nos lábios), se devoram com violência, com amor e sangue
dentro do ar, dos olhos, da alma cor de cinza, cor de solidão
e dor completa, hermética, tanta dor que já nem doía mais
– hum... era prazer; um infinito, constante gozar dentro da
dor, a dor total, rubra, crível, palpável porque era uma bo-
lacha gostosa; – ei-lo de novo!
Tocotas engastado no meu medo, mínima pérola ene-
grecida, coberta da fuligem de tantos combates, batalhas
navais, corpos estilhaçados, tudo!, tudo!, marcado no corpo,
pendurado nos olhos, revolvido – TERRA – na memória: a
criança espia, solitária e triste, por trás de algum postigo
velho – há teias de aranha nos olhos, mas Deus me livre
de envelhecer feito um pau fofo, um destroço desdentado;
porque as velhas são todas umas nojentas: obram nas calças,
gritam com as pessoas, passam a vida a dizer coisas sem
nexo (mamãe! Mamãe!), intermináveis bobagens... e, ainda
por cima, só conseguem falar balbu­ciando, arquejantes, os
beiços trêmulos para cá, para lá, para cá, para lá, moles, flá-
cidos... cachorro vai cachorro vem cachorro vem cachorro

176
Eduardo Lucena

vai cachorro vem, foi no piano, que piano! Mamãe obrigava


a tocar todo dia o professor gordinho... cachorro vai cachor-
ro vem. Tocotas, o meu senhor Tocotas, só ele é que me en-
tendia. Mas o professor gordinho parecia um porco: de tan-
to pensar, tinha ficado velho e caducava firme, a todo vapor,
num infértil vale donde nada havia: só os senis, trêmulos
arbustos a balouçar lentamente, lá está: a criança, enternece
e alucina, apavora e atrai, cria e desmancha, comove mas
destrói, violenta – é uma grande máquina desfilando den-
tro do sono, em cima do jeito de olhar, os ouvidos ouvem
mais que o nariz e a boca ressequida também sente – que
sede, meu Deus! – mas tudo vai nos olhos, veja os poros di-
latados, a mente doendo de calma e exaltação...
Te amo e te odeio, te venero e te devoro inteiro com a
boca – meus dentes rubros de teu sangue matam minha
sede, esgotam meu cansaço, ai, que perco as forças de te
ver porque te quero ver mais ainda, te decantar – eis!:
– Tu és minha banana, meu amor!
Te quero por inteiro para te comer e destruir, pois só
assim refulgirás dentro de mim, dos olhos, da calma... vem,
aperta minhas mãos, meu Ser está todo nas mãos, são gar-
ras de chumbo, asas de pássaro, as mãos acima de tudo, os
dedos claros, macios, as unhas são Lagos e neles se reflete
minha imagem, meu rostinho encantador, Feliz, Criança –
e Sancho está por detrás de meu rosto reflexo nas unhas:
consigo ver as mãos de Sancho Pança, os dedos redondos,
dentro das unhas rechonchudas, lá, por trás do rosto...
Há um Lago nelas também! – e sabes o que há dentro
das unhas de Sancho, Escudeiro do meu Gesto?
– Não, não sabes, não sabes de nada, Caretão!
Tem uma cruz, uma cruz feita de sangue: bem no cen-
tro desta dolorosa encruzilhada, inerte, frio como aço, jaz
o Senhor Tocotas, sim, ele mesmo por trás do rostinho,
inerte nas unhas, nos lagos dos dedos – mas não dos meus
– nos lagos de Sancho, dentro de mim.

177
O jardim

Ele veste negro, é esmagador, parece uma coronhada no


escuro, um tiro na cara, dor fria em minha testa: consciência
que se foi. Outro dia, quando eu estava sozinha, ele me cha-
mou e disse, bem baixinho e devagar, para não doer, porque
ele estava em pé, dentro da minha orelha, que ele morava na
gaveta do criado-mudo do quarto de mamãe; que o criado-
mudo era seu Castelo – a gaveta, quer dizer –; e aí, eu pensei
cá comigo: “– mulher, você está é ficando louca, criado-mudo
não é casa de ninguém, criado-mudo é só criado-mudo...” aí,
o senhor Tocotas, que ele adivinha os pensamentos, sonda
as consciências e jamais crê na doçura de um olhar, o senhor
Tocotas respondeu, em pé, na orelha:
“– Tu estás enganada. Criado-mudo é escravo e escra-
vo é Castelo e mesmo que não fosse eu moro lá, vem co-
migo.”
Aí eu fui. Quando entrei na gavetinha, vi que ele tinha
razão: lá estava o Castelo, quatro torres muito altas, mura-
lhas majestosas, bandeiras tremulando ao vento. O senhor
Tocotas me levava pela mão, eu era criança de novo, a
ponte levadiça foi baixando devagarinho e, enquanto nós
passávamos, eu vi que no fosso os crocodilos me fitavam
com ar sombrio. Paramos no meio da ponte. O senhor
Tocotas virou pra mim e disse:
– Sabe que eu podia sacudir você aí dentro? Sabe que
posso lhe matar e que ninguém vai saber disso porque
estamos no criado-mudo, dentro da gaveta?
Olhei para ele, aflita. Se era castelo, como podia ser
mesa de cabeceira?
– Sei que o senhor pode fazer comigo o que quiser e
bem entender, mas sei também que o senhor jamais fará
isso – respondi, num tom firme, decidido, nunca pensei
que pudesse falar assim com ninguém, principalmente
com o senhor Tocotas.
– E por que não posso? – perguntou, suave, gélido in-
seto.

178
Eduardo Lucena

– Porque o senhor não vive sem mim. Para a sua vida é


necessário a minha vida, pois o senhor sou eu, na medida
em que sou o senhor.
Parece que os crocodilos entenderam o que havíamos
falado em cima da ponte: os seus olhares decepcionados
demonstravam-no claramente. O senhor Tocotas não dis-
se mais nada. Continuou a andar e me conduzia pela mão
como se eu fosse um anjo, sua amante belle époque, coisa
que urge conservar, por prazer, por sobrevivência.
Quando entramos no Castelo... foi um negócio dana-
do! Lá estavam elas, as naves, os tanques – todo o arsenal
do senhor Tocotas –, as metralhadoras, as desilusões, a
aflição gemia, no canto do muro, as mãos trêmulas, e um
denso desespero pairava nas coisas. Senti tanta vontade
de chorar! E quis retroceder, sair da Gaveta, mas Tocotas
não deixou, segurou minha mão com força e me arrastou
mais para dentro do Castelo:
A preguiça, estirada no meio do pátio, um pouco à
esquerda de quem entra, nem abria os olhos para me ver;
e como ela era feia!, e ossuda, a barba encaracolada no
queixo, o ódio, trepado num castanheiro, feroz, quase me
arranca o braço com uma patada.
Era tão grande o meu medo! Mas o senhor Tocotas foi
logo dizendo:
– Não tenha medo. Ele não pode matar você. É mes-
mo do jeito que conversamos na ponte. Está lembrada?
Ele é você, e você é ele. Por isso não se matam. Somente
se machucam um pouco; que é para sobreviver – e fez um
gesto largo, do tamanho do mundo – nada mais natural
do que isso. Não vivem um sem o outro.
E foi aí que vi o amor que se acariciava no meio da-
quele girassol amarelo que era eu ao contrário, meio pelo
avesso, a ternura. Tocotas apontou-me a beleza, que ace-
nava dum balcão do castelo, como ela era linda! A violên-
cia dando bofetadas por todos os lados, o ódio urrando

179
O jardim

no galho do Castanheiro antipático, o amor no centro da


planta, o senhor Tocotas sorrindo para mim. Sua roupa
negra parecia reluzir naquela atmosfera parada.
– Vamos. Lá atrás, no jardim – e apontou mais para
dentro ainda.
Engraçado, eu não sentia mais medo. Sei lá! É como se
eu já estivesse acostumada.
Havia, em meu ser, como que leves palpitações de feli-
cidade, ternura, amor, entremeadas de horror, de medo e
pânico; não era um jardim de Trevas, nem leve, nem Har-
mônico, mas tudo. Eu era mais que um jardim: dentro do
útero, fibra por fibra, quantos homens, quantas mulheres,
quantos monstros, quanto gozo não havia?
Eu, amarrada ao senhor Tocotas, atada pelas mãos, fui
atravessando debilmente o pátio do Castelo, e perpassei-
lhe as reentrâncias como louca e em desamparo, a alma se
desfazendo para, mais adiante, recompor-me toda num
segundo e tornar a morrer e, seguidamente, de deses-
pero em desespero, fazer de mim mesma a minha vida,
de minhas sensações meu ser, da dúvida (ah, a dúvida!;
normalmente, a importância está em que eles, os que vão
pelo lado de cá, nada veem: de manhã, de tarde, de noite,
e está tudo arranjadinho no mundo: somos a raça posi-
cionada, indiscutível, construída com a calma das pílulas,
com o sono do aparelho elétrico, com o pitiatismo dos
múltiplos voos em frígidas naves de oiro e broquéis e a
cama de molinhas!...) o horror que há em mim de existir;
mas isso tudo, por meu corpo, anda misturado à maravi-
lhosa sensação de ser feliz, pois serei eu amada, acariciada
– ai, que arrepio! –, pura, serei eu ansiosamente aguarda-
da nalgum cais olvidado por todos os demais – e isto –,
somente enquanto viva eu estiver.
Logo após o Corpo Principal do Castelo – uma ala em
que a torre do centro servia como que de denominador

180
Eduardo Lucena

comum aos demais aposentos do edifício –, avistei um


obscuro quintal, imenso terreno de risos e pavor, como
floresta interviva e, ali, o senhor Tocotas me mostrou –
ah, e como as vi! – aquelas belíssimas crianças, impávi-
das, hirtas, estúpidas flores humanas, em canteiros bem-
dispostas, entravadas por suas próprias raízes, estranhas
e rubras rosas cuja maneira de sugar o alimento é muito
ódio e medo (gravames que persistem!), muito horror e
ternura:
– Quanta altivez e quantos mortos há no olhar duma
criança!
Seriam bebês recém-natos, tênues, belos, terríveis!
Tocotas, então, olhou para mim, como se visse um
Anjo:
– Há monstros onde eu vivo, cá nesta gaveta, neste
Castelo e mundo. Eles são imóveis e lépidos; são escar-
lates, azuis, alguns trazem uma longa e dolorosa cauda,
que arrastam – como esteira que fosse largada ao mar por
maldita Nau Errante – atrás do corpo enlouquecido. Al-
guns há que ostentam longos pelos escorrendo por sobre
a sua dor – aqui, Tocotas fez uma pausa, tocou levemente
no meu ombro, e foi com os olhos a brilhar que disse: – E
eles são colhidos, mínimos, detalhados, por inteiro; e são
pausadamente enterrados nos teus ventres, ó Fêmea de
todo o Universo!; ser inútil, ser exausto e exangue, a ti são
eles depostos, a teus pés, por lindas, puríssimas e obscu-
ras Bruxas de Metal.
Foi aí que as vi pelo ar! Eram tantas e esvoantes que
quase cheguei ao pavor, a um louco frenesi de beira de
abismo, porta de precipício inevitável. Mas Tocotas, sem-
pre ao meu lado, com o olhar, como que relembrou nossa
conversa: elas são eu: não há por que temer...
E elas vão e vêm, feito bailarina a servir-nos, em bande-
jas de prata, a eles – que estão à outra margem do Grande

181
O jardim

Rio da Inconsciência –, os monstrinhos e o amor que os


constitui.
As flores eram bebês: maquinismos anteprojetados
mas peludos ao ar leve, tépido, musical.
Um Lindo Jardim, povoado de tédio, medo e amor.
Mais ao fundo, avistei uma jaula onde estava encerra-
da a mais divina das Criaturas. Um louco.
Ah, ser um louco totalmente aterrador!, sentir a loucura
em cada poro, i-n-f-i-n-i-t-a-m-e-n-t-e total e incompreen-
dida! Queria ser como vós, que sentis pouco, que comeis
pouco, que fornicais somente um pouco e por hábito e até
por modelos!, e isto só porque sois pouco, sois somente
quase-nada, ínfima partícula transponível, igual, verificá-
vel, (como) frasco de pimenta sem sabor: ... e não trazeis
ternura alguma em vosso olhar; nem o ódio podeis senti-lo
em todo o seu horror. Oh, como sois felizes e palpáveis,
cercados pelos corpos, pelas carnes e pelas coisas: móveis,
imundos catres, suja realidade do ser exterior, estéril, todo
ele muito pleno em sua total oquidão.
Mas os loucos (ah, os loucos!), imersos em toda a sua
opacidade, intransponível idiotia, eles é que são verdadei-
ramente!
... ser um louco arrasador, nos olhos que fulguram, na
carne que sucumbe, na alma que não há.
Dois olhos, plenos de mundos, aclaram a escuridade.
Amar loucamente, lança em punho, dama ausente em
sua terna presença, coração pleno a transbordar, alma in-
cansável, calma partida, destroçado modo de ser.
Roxo! Está tudo ficando roxo ao meu redor, berrando
contra mim, apertando-me o rosto e a comprimir-me o
desgastado, raquítico, neurótico anteprojeto de alma que
há por mim dentro.
Rosaly Dantas de Araújo sentia-se mal, dor de cabeça
constante, de vez em quando latejava. O estômago vazio
doía de fome. Não tinha nem forças para levantar.

182
Eduardo Lucena

Deitada – mais que deitada –, caía no chão do banhei-


ro, a latrina do lado direito apoiava o rosto vazio, exausto,
mais que morto.
Devagar, hesitante, ela se apalpa: está nuazinha da sil-
va. Vai até o espelho grande, por trás da porta do banhei-
ro e se olha, toda nua, diante de si, trapo humano por
tantas viagens surrado.
“Ah, esta inútil barriguinha burguesa!”, pensa, com
indizível amargura, enquanto rodopia sobre si, ante o es-
pelho.
A boca do estômago é um abismo de dor. Agonia e
medo ao mesmo tempo que nada. “Agora entenda! Que é
que estou fazendo aqui, meu Deus?”
Em pé, cambaleia até o quarto, a cama, lá, aquele ar de
século dezenove e mofo pairando sobre as coisas.
Sorri, triste, para o criado-mudo: vai até lá, abre a ga-
vetinha, prepara a seringa hipodérmica, um tiquinho de
álcool no branco do braço todo picado, totalmente despi-
da, em abandono, e se injeta um novo passaporte. Preci-
sava de viajar, rápido, antes que voltasse a pensar naquilo
de novo, quarto, mamãe, esperança é a última que morre,
“uma coisa não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo
e sob o mesmo aspecto” (mas claro que pode!): corre à
cozinha, antes que o trem comece a correr, espavorido,
come duas salsichas frias com a banha e da lata e tudo, ai,
como queria devorar também a lata!
Então, Rosaly vai para a cama. Deitada, ela sabe:
O senhor Tocotas a espera, lá, do outro lado, no centro
da Cruz Escarlate, no interior da gaveta.

183
Pião na unha ou o campeão
Everaldo Moreira Véras

Não sabíamos o nome dele direito, apenas que se cha-


mava Teleu. E só. Ninguém desconfiava de onde tinha
vindo, onde morava, nem nada.
Apareceu, um dia, na barreira, sempre nos reuníamos
lá para brincar, a turma toda. (O nosso ponto de encontro
certo, não tinha um só menino do bairro que não compa-
recesse, domingo de tarde.)
Foi quando chegou o tal sujeito.
Não parecia morar naquelas bandas, isso percebemos
de imediato, porque a cara dele era diferente, coradona,
o jeito de forasteiro. Meio gordinho mas do nosso tama-
nho, não tinha nem dez anos. Parou, encostou-se, como
quem não quer nada, mas querendo. Pensamos: É peru,
baixou por aqui faz pouco tempo. Coube a mim, o chefe,
perguntar,
– Ei, bicho, você quem é?
Respondeu,
– Eu? Sou de longe.
Esclareceu apenas assim, não explicou muito. Acoco-
rou-se no chão e ficou de olho pregado na brincadeira.
– Tá legal – eu disse. – Tudo bem.
Era pacífico, não queria encrenca. Se fosse valentão,
rápido entrava na porrada, a turma não era mole. Novato
não tinha vez.
– Sou Teleu – completou – queria somente ver o jogo
de pião. Posso?
– Pode, mas não aborreça – ordenei.
Everaldo Moreira Véras

Os moleques só esperavam minha decisão.


– Ele fica, não é?
– É, deixe ele aí, mas só peruando – o pessoal concor-
dou.
– Certo – o menino acrescentou.
Então continuamos na disputa, no jogo duro de pião.
O tempo era de campeonato. Eu, Zé Carlos e Chicão fa-
zíamos o time do terror, ninguém aguentava. Gabriel, Al-
finete e Caneta, os adversários, tão somente serviam para
apanhar.
Já entrávamos no terceiro rodeio, nós sempre na fren-
te, e eles, nada. Coitados! Reclamavam – e se referiam a
mim – “Você é bom demais, passa o dia treinando”. “Qual
o quê”, eu respondia, “vocês é que são moles, não sabem
jogar pião. Reparem:” e mandava a maior banca, fazia o
que queria com o meu pião amarelo, que papai me dera
no dia de Natal.
“Puxa!”, a turma suspirava. “É o máximo!”
Até os da seleção do outro lado invejavam,
– Você é muito bom!
E era. Melhor do que eu não tinha, ali, não. Nasci para
rodar pião, foi o que mais aprendi na vida. Admirava-me
com a sorte, pois pontaria não valia, a arte já ultrapassava
os limites. Todo tipo de jogada eu dava. No ponto-ficão,
era perfeito. No ponto-camarão, muito mais. Nunca per-
dia uma única lapada. Por isso, a turma, ou melhor, a mi-
nha turma, jamais apanhava, terminava todo ano como
campeã invicta do torneio da barreira.
No verão passado, o escore mostrou verdadeira lava-
gem, esqueci a conta das partidas ganhas, de cinco a zero.
Zé Carlos e Chicão, bem-dizer, só vinham para compor,
porque a estrela mesmo era eu. Lá uma vezinha ou outra,
davam dentro, então os meninos debochavam,
“Assim até nós, não tem graça!”

185
Pião na unha ou o campeão

No primeiro dia de peruada, Teleu não soltou, de fato,


uma palavra. Recuou-se na humildade e incompetência
dele, somente olhava, porque não devia falar, senão a
gente não o aceitava nem para peruar. Peru dorme ca-
lado, foi a ordem de Chicão. (Chicão não tinha conversa
fiada, resolvia na marra, e para arrebentar o freguês. Um
cavalo batizado. O elemento era ignorante, bruto.)
No domingo seguinte, apareceu de novo, a mesma
cara vermelha, o mesmo corpo gordinho que nem uma
manga-rosa. Quedou-se por ali, corubijando, como quem
não quer nada, mas querendo, de olho duro no campeo-
nato. E torcia, na maior alegria, mas calado, um pio não
soltava. Parecia o companheiro legal. Não prejudicava,
um torcedor assim, pacato, boa-praça, a participar da
brincadeira, nenhum palpite, sem se meter.
Aí, na minha vez, eu caprichava, justo por causa da
torcida de fora que me aplaudia, o moleque estranho,
sentado quieto lá no canto dele. Eu pegava o pião com a
classe de campeão, alisava-lhe o corpo macio, carinhoso,
enquanto enrolava a fieira. (A fieira azul, brilhante, eu
passava cera de vela, para deixá-la na pedida, bem ajeita-
da e firme.) Depois, o pião já enrolado, dava o saque de
mestre, fazia-o cair no centro do círculo de giz marcado
no chão, e ali o bichinho dormia, zunindo o maior tempo
possível. A glória, e ninguém conseguia me derrubar. Os
outros babavam, abismados,
“Puxa! Jogar assim é demais!”
E eu ria, satisfeito, o campeão tem um riso orgulhoso,
somente nós sabemos o segredo. Para completar, vinham
Zé Carlos e Chicão, do meu lado, davam a jogada deles,
um de cada vez, somávamos o tempo (marcado no meu
relógio, apenas eu tinha relógio). No fim, ganhávamos,
os adversários não atingiam nosso recorde, aliás nunca
batido.

186
Everaldo Moreira Véras

E Teleu, o peru, torcia. Torcia para mim, o único que


sabia jogar, o herói. Ria ao acompanhar a minha classe,
o entusiasmo estampado na cara vermelha dele mostrava
que me admirava. E foi com isso que me conquistou, me
ganhou, porque vibrava, então caí na conversa. A conversa
mansa, que veio devagar, sem pressa, maneirosa. Insinuou,
– Olhe, eu também sei jogar um pouquinho... Sabe?
Garantiu, – Sei.
Eu quase cedia, quando Chicão se intrometeu,
– Ninguém perguntou! Você não tem vez!
Mas, no quarto ou talvez quinto domingo (nem me
lembro direito), abrimos a retaguarda. O acordo foi que-
brado. Teleu conquistou minha simpatia, e também a de
Zé Carlos e até mesmo a do estúpido Chicão. Permitimos
que entrasse no outro time, só para experimentar. “Não
faz mal”, pensei. “Afinal, os palhaços não são de nada, vão
perder de qualquer jeito, então o peru pode tentar. É bom
que aprenda logo a apanhar igual aos outros”, concluí.
Foi aí que me estrepei.
Teleu, de besta, só tinha a cara. Rodava pião como o
diabo. Já no começo, desmoralizou no ponto-ficão, que
é uma jogada dificílima, justo acertar no olho do pião-
zunindo do adversário, para o bico lascar o brinquedo.
Uma tacada de mestre, apenas eu fazia aquilo com classe
e, veja bem, em determinadas ocasiões errava.
Mas ele, não.
De saída, aplicou, certeiro, um bruto ponto-ficão no
Zé Carlos, rachou o pião de banda em banda. Veio o do
Chicão, mandou um ponto-camarão, que é também su-
perdifícil, porque expulsa o inimigo da arena num em-
purrão vergonhoso, humilhante.
Eu começava a suar frio. O mau-caráter não era fra-
co, não. Na minha hora, teria de dar duro no safado e
mostrar que eu não dormia de touca. Afinal, me sentia

187
Pião na unha ou o campeão

responsável pelo desastre. “Por que deixei o peru jogar,


meu Deus? Por quê?”
Chegou a vez. A expectativa era grande, os compa­
nheiros estavam todos comigo, isto é, aqueles do meu
time, porque os demais já balançavam para o lado de Te-
leu. Saquei a jogada clássica (os dedos tremiam), acertei
bem no centro do círculo de giz, o pião zuniu, e dormiu,
e dormiu durante uns três minutos.
A plateia me aplaudiu. Enquanto o pião dormia, o
inimigo preparou o dele, para dar a jogada regulamen-
tar. Uma das duas coisas faria: o ponto-ficão ou o ponto-
camarão, imaginei, apavorado. Santo Deus, que fosse o
ponto-camarão! O ponto-ficão era desmoralizante. (Bom
mesmo era que errasse, tanto um quanto o outro.)
Que errar coisa nenhuma! Teleu, com a pontaria de
um craque, aplicou o ponto-ficão, desses de alto nível,
que esfacelou meu pião amarelo de estimação. Puxa! O
miserável riu. A molecada bateu palmas.
– É, mas você não sabe agarrar na unha – retruquei.
A esperança era salvar minha reputação, nessas alturas
perigosamente abalada. Não zombou, respondeu,
– Sei, vamos apostar?
Ora, pegar pião na unha também fora meu forte. Nun-
ca errei uma tacada, chega a unha do dedão polegar da
mão esquerda (eu pegava com a esquerda, porque o saque
fazia com a direita) já estar calejada. Ah, isso não, ele não
toparia, eu era imbatível.
Saíamos para a luta, os amigos reparavam no desafio,
solidários comigo. Dei novo saque de mestre, quase er-
rava, porque não estava com o pião amarelo, tomei em-
prestado o de outro companheiro, o sujeito irresponsável
não tinha arrebentado o meu? E quando a gente troca de
pião, sente a diferença, é preciso ser bom para manter a
classe. Dei sorte, segurei o bichinho na unha do polegar

188
Everaldo Moreira Véras

da mão esquerda, ajeitei-o para dormir até o fim. (Graças


a Deus!) Já considerava ganha a parada, jamais alguém
faria igual. Impossível.
Nisso, o moleque ordinário arremessou o saque. Foi
um espetáculo maravilhoso: o sem-vergonha era o cão
chupando manga. Pegou o pião na unha com incrível fa-
cilidade, e mais: passava-o de uma unha para outra, tanto
da mão direita quanto da mão esquerda. Por fim, deixou-o
dormir na unha do dedo mínimo da mão direita, o bico
de ferro comeu o canto da unha, e ele nem ligava, somen-
te olhava para mim, a cara vermelha, os olhos brilhavam,
a boca ria debochada...
Nesse exato instante, Chicão me arremessou um olhar
de touro. Zé Carlos, também. Para minha surpresa, pois já
não contava com a força do lado de lá, os três, Gabriel, Al-
finete e Caneta, me transmitiram a senha, afinal, éramos
vizinhos fazia anos, desde que nascemos. Imediatamente
adivinhei: Este cara vai ver o que é bom pra tosse!
Não combinamos estratégia alguma, mas pareceu que
combinado foi: juntos, os seis de uma vez, demos em cima
do vagabundo, do maldito Teleu. E foi murro, e foi chute,
e foi joelhada, e foi pedrada, e foi a maior surra do mun-
do. Um massacre.
Ai, Nossa Senhora! o covarde gritava sem reagir, inde-
feso, quase morto.
– Toma, mentiroso! Toma, bandido! – berrava Chicão,
o potro selvagem, justo quem mais batia no penetra mas-
carado.
A maior alegria da vida foi quando Teleu safou-se, e,
derrotado, ganhou a reta da frente. Para onde, não sabía-
mos. Do jeito que apareceu, foi embora, correndo, nunca
mais pintou para perturbar nosso campeonato.
E voltei a ser campeão.

189
De profundis
Fátima Quintas

Dez horas.
Benedita fecha a tampa do relógio de carrilhão. Cum-
prira o seu dever.
A vela acesa, o santuário, a devoção de sempre. O
menino Deus sobre a manjedoura, a chama ardendo em
eterno rogo, o manto vermelho a acomodar as imagens.
A cabeça baixa. As emoções em feridas abertas. A leitura
da Bíblia – “Das profundezas clamo a ti, Iahweh: Senhor
ouve o meu grito! Que teus ouvidos estejam atentos ao
meu pedido por graça!”.
De profundis.
O ritual se repete na casa da velha senhora. As rugas
acentuadas sulcam-lhe a pele, conferindo-lhe um ar abati-
do; nada esmorece a fé inabalável. Após a liturgia, com es-
forço, agasalha-se no canto da desolação. As miragens do
Senhor conduzem-na a paraísos idílicos, onde os amores
não vividos ressuscitam em desejos libidinosos – prêmio
por flagelos e sublimações. O ascetismo lhe suga a menor
das vontades; a carne decompõe-se, vítima de cilícios e
disciplinas; a virtude arranca-lhe os gozos últimos.
Faz calor, o que não impede que o xale envolva o cor-
po esquálido, exposto às agressões da exterioridade. Reza
em voz baixa, sentada na cadeira de balanço, gesto que a
acompanha ao longo da sua história. Noventa anos. Não
se queixa das dores no joelho, menos ainda de qualquer
infortúnio que a maltrate. Gosta de viver, mas pressente
a morte, próxima como o instante que se acerca. E a cada
Fátima Quintas

dia, o hino de agradecimento, a louvação aos santos, a


gratidão por ainda ser, ela, corpo e alma. Cuida-se pouco
em uma quase imolação voluntária.
Mora sozinha; o quintal, em abandono; a casa se es-
gueirando no silêncio dos aposentos – vence o cansaço
miúdo de quem se despede do santuário e do relógio. Du-
rante o dia, Benedita prepara o frugal almoço, cozinha
uma rodela de inhame, acondiciona torradas no depósito
de vidro, coa o café, aproveita os legumes já utilizados,
passa-os no liquidificador; o creme está pronto para a ceia.
Forra a mesa da sala, ajeita os castiçais, acomoda os pratos,
os talheres, a xícara... Despede-se à tardinha com um “até
amanhã”, imediatamente respondido “se Deus quiser”. O
ruído da cadeira de balanço representa o eco vivente, o
som mais uniforme que ali se escuta, compasso de vigílias.
Reza. E despreza o corpo. E o espírito levita antes do tem-
po. E a morte se avizinha na quietude escolhida.
O toque do relógio a desperta do êxtase das preces.
O tempo corre, martelando-a. Agrada-lhe fiscalizá-lo sem
medo. Assim, não se engana nem se deixa por ele enga-
nar. Ambos em plena cumplicidade, avisos prévios, pactos
selados.
O santuário, ao fundo do corredor, fortalece-a. Com difi-
culdade, levanta-se, a bengala à mão, o amparo. Os chinelos
arrastam-na. A luz votiva serve de claridade ao escuro da
noite. A velha senhora compraz-se com a penumbra. A ora-
ção lhe basta, não precisa de artifícios para aumentar a fé,
os santos a zelam, sabe-se protegida por fantasmas seráficos.
E o olhar suplica por paz, nada mais. “Eu espero, Iahweh, e
minha alma espera, confiando na tua palavra; minha alma
aguarda o Senhor mais que os guardas pela aurora.”
Entre o santuário e a cadeira de balanço, a vida. O re-
lógio ao meio, estrondando os quinze minutos.
Ninguém a visita. As irmãs morreram. Não casou. A
Deus, doou-se.

191
De profundis

O chiado da cadeira repercute, os lábios balbuciam


Ave-Marias e Pai-Nossos; no ar, a gravidade da solidão.
Nem percebe que o mundo efervesce lá fora. O copo
d’água sobre a cômoda, dele bebe pequenos e pálidos go-
les. Satisfaz-se em inspirar e expirar, suspiro derradeiro
de uma lâmina em precária existência. Sorri. É feliz.
A igreja repica os sinos da missa crepuscular. A velha
senhora senta-se à mesa, deglute a sopa, devagar, muito
devagar, a colher trêmula, a dificuldade do movimento.
Com o guardanapo asseia a boca e pensa... Tem o cos-
tume de pensar quando não reza. Então fecha os olhos,
reabilita a memória. De nada esqueceu, os anos não em-
baçaram as recordações, as preferidas. Renasce em nome
do evocar e habitam tantas certezas nesse passado que
dele jamais desconfia. Resíduos do inconsciente. Sobejos
de alguma alegoria. Lembranças e frustrações... Nem ca-
rece de mais. O novelo se desenleia, os fios entrelaçam-se,
o bordado se define qual pintura que não sofreu a erosão
dos ventos nem das tempestades. Tão inteira, ela, a velha
senhora, no propósito de reatar as rasuras da tecelagem
concluída!
O prato. Os talheres. O inhame – divide a pequena ro-
dela em partes iguais, a delicadeza em ingerir cada pedaço,
como se um dependesse do outro, ou a sequência obedeces-
se a uma determinada hierarquia. Por fim, dois sorvos de
café em xícara de porcelana inglesa. Com o sinal da cruz,
finaliza a refeição. Lentamente, chinelos rentes ao chão,
retorna à cadeira de balanço. Resigna-se com o estado de
acídia. Renuncia ao pensamento. Abdica da ipseidade.
Reza. Reza. Reza… “Senhor, quem poderá se manter?
Mas contigo está o perdão.”
O relógio de carrilhão badala os quartos de hora. Nes-
se átimo de instante, a soada contínua e perseverante
da cadeira permite a passagem do tempo. Agrada-lhe a

192
Fátima Quintas

sensação de vivente, o relógio assegura-lhe a consistên-


cia ontológica. Benedita não relaxa a renovação da corda.
Todos os dias atentamente – com a chave própria – roda
o mecanismo dos ponteiros. Então ressurge a declinante
energia da velha senhora. Às dez horas da manhã, a cena
se reproduz com uma regularidade inviolável.
E a noite transcorre sob a ode do relógio e sob o monó-
tono alarido da cadeira. Cochila e reza. Não se deita. Dói-
lhe a coluna, e o tempo parado, anúncio da pré-morte, já
a descansa o suficiente. A chama da vela não se mexe, o
vento retrai-se contra a pesada madeira das portas. Portas
trancadas, todas, a aguardarem a chegada de Benedita.
A velha senhora desperta de um cochilo mais longo. O
silêncio se solidifica em estátuas de mármore, lisas e bran-
cas, a esboçarem nuvens no teto alto da sala. Tenta rezar.
Estremece num frio de lápide sepulcral.
Alguém bate à porta.
Curva e debilitada, precipita-se no vestido comprido,
a saia a roçar-lhe as magras coxas, a bainha desfeita, o
linho puído... Os músculos, tênues e atrofiados, se es-
forçam para alcançar os dois cadeados que defendem o
austero frontispício. Os dedos torcem e retorcem a chave
na fechadura, porém a ferrugem, decorrente de estáticas
antiguidades, bloqueia a ação circular da lingueta. Insiste.
Insiste ainda. O corpo reclama. A alma também. Aspira
ao sossego quase tumular. Desiste.
Longa noite de espera… O tempo a congelar-se na
imobilidade.
O ruído da cadeira se esvai.
O relógio emudece.
As portas se abrem.
Dez horas da manhã seguinte.
De profundis. “Pois com Iahweh está o amor, e redenção
em abundância.”

193
Stromboli
Fernando Monteiro

O avião, primeiro é um ronco, um som longínquo en-


rolado nas nuvens.
Se à noite houvesse conseguido dormir, seu ronco se-
ria um ronco assim – mas à noite não dorme, o meni-
no não dorme, ninguém aqui dorme até ir o aeroplano
vago, o avião-ronco se tornando uma coisa mais sonora e
maior, porque sua forma bojuda rompe os cúmulos e vem
na nossa direção, cresce um dragão metálico irritado e se
prepara para pousar quando já estamos lá fora.
Antes de sairmos, a mulher ou eu, na estação das chu-
vas, sempre olharemos para a mesa de mariposas, por um
motivo qualquer, relacionado com o avião e com a noite,
e por superstição que, talvez, não precise de tantas expli-
cações. E aqui devo voltar a mencionar o menino e seus
muitos talentos desenvolvidos na escuridão, um menino
cego que não pode ver os aviões, mas é o primeiro a escu-
tar a sua aproximação.
O menino pode estar atento ao outro voo – o dos inse-
tos antes da morte – mas é sempre ele que ouve o ronronar
(o ronco antes do ronco), levantando a cabeça como um
sinal para nós (porque logo depois se ouvirá claramente
o som cortando as nuvens de sombra, pesadas sobre a pe-
nínsula).
Uma única vez ele deixou de escutar: eu lhe mostrava
uma lebre negra e um lobo faminto, com os dedos das
duas mãos contra a luz da lâmpada assassina dos insetos,
e o seu ouvido foi para dentro das sombras que não po-
Fernando Monteiro

dia ver projetadas na parede. Buscava os sons, quem sabe,


que eu não sabia fazer com o meu lábio leporino feio de
se ver produzindo os sopros de deformação das palavras
sibilantes como “sassânida”, “assassino”, “sussurro”, “silí-
cio” e “açafrão”. Seja como for, ficamos ali, com receio de
que ele estivesse se retardando demais na sua sombra, não
escutando o avião da noite, fazia frio e nossa esperança
era que a noite ficasse como um borrão sem nada de avião
surgindo da irrealidade do ronco que crescia ao encontro
do hangar sem nome, que não figurava nos mapas: nós.
“Aqui estamos, menino: esse nada somos você, eu, sua
mãe e toda a sucata, todos os pedaços de coisas que estão
atrás da casa: hélices quebradas, manches, partes de asas
partidas como um coração de piloto abandonado.” Fazia
frio, eu já disse, e voltamos – porém o menino continuava
sentado como se pudesse ver a parede onde as minhas
mãos haviam animado o contorno do predador e da ví-
tima que não escapa, o animalzinho sem socorro (que a
mão desfaz na boca do lobo).
Como escapar? Como fugir do fogo antiaéreo que der-
ruba os caças e as altas esperanças dos jovens pilotos? O
que há de estranho sobre a juventude eterna dos rapazes
que pousam o capacete de couro como uma couraça dos
dançarinos do touro corcoveando entre as nuvens? Tive
vontade de perguntar ao menino silencioso, mas a falta
do avião, a parede sem manchas, tudo que era branco e
silencioso também me calou naquele instante e deixamos
que o menino saísse lentamente do seu sonho imóvel para
a imobilidade do sono.
Nem sempre é o mesmo avião. Mas o ronco é sempre
o mesmo (o ronronar, só o menino escuta). E há sempre as
mariposas mortas sobre a mesa, quando nos levantamos
para fazer os sinais com a lanterna (menos o menino, que
“vê” tudo pela janela). Ele poderia se ferir com as hélices,

195
Stromboli

topar numa pedra, ver mais do que nós, na nossa noite de


sombras se esquivando.
Lá fora, o vento enfuna o vestido da mulher, às vezes
mostra as suas meias grossas – porque a luz é voltada para
a terra, formando círculos ao redor das pernas (seríamos
alvos fáceis, se o avião fosse hostil, e não o aliado que aca-
ba de atravessar as linhas de fogo inimigo).
Uma vez eu fiquei doente e a mulher, durante uma se-
mana, fez tudo sozinha – ou quase sozinha, porque o me-
nino veio para fora nas noites dessa semana e esteve tão
perto do avião, todas as vezes, que passou semanas imerso
naqueles seus sonhos da parede, tardes inteiras, de novo
próximo do metal suado das alturas, do combustível que
forma um capote de cheiro grosso e forte em torno da-
quela coisa que atravessa a noite e que a noite também
atravessa, como uma sombra entra pela mancha da outra,
nas minhas manipulações nunca mais feitas contra a pa-
rede branca, o lobo faminto não mais devorando a lebre
trêmula que não pode escapar do fatal encanto...
Um avião de perto é tão diferente de um avião voando,
roncando, sumido no frio das nuvens rosadas por um sol
carinhoso. O menino não consegue entender, parece, que
o sol quente possa ser terno na sua luz ingênua, de alegria
pelas coisas. Nunca vi o sol contente nos olhos opacos do
menino que, no entanto, refletem a grandeza gelada das
naves e a morte das mariposas contra a lâmpada. Há rela-
ção? A fuselagem riscada, as pequenas luzes vermelhas, a
graxa em excesso, o combustível (que um aeroplano bebe
de pleno direito), o voo cego com os instrumentos de na-
vegação abandonados a si mesmos.
O menino disse – depois de eu muito perguntar, como
um professor de aldeia exigindo definições – que os a­vi­ões­
eram tristes. Os aviões, segundo ele, não eram tristes como
os insetos indecisos, ainda à volta da luz, decidindo se que-

196
Fernando Monteiro

rem ou não morrer contra o céu falso do bojo ocultando os


filamentos da luz elétrica acesa como um mortal engano
para eles. Triste, realmente triste, segundo ele, era um úni-
co inseto morto em que se podia tocar com o dedo, empur-
rando o pequeno corpo inerte da mesa limpa para o chão
sujo de farelos e folhas secas, lixo das asas queimadas e uma
ou outra pena de ave abatida pelas hélices (riscos de sangue
na fuselagem davam sinal dos choques frequentes).
“Nem o piloto está mais dentro” – foi o que ele quis
dizer, riscando na areia da praia, com seus olhos feridos,
um avião vazio que não tinha, quase, a forma dos aviões
descidos do céu, porque tudo pode se tornar desmedido
nos desenhos riscados por um cego. Não o ajudei, na-
quele dia. Dei-lhe o melhor graveto, no máximo, e com
ele o menino sulcou na areia fina, ficou ouvindo o mar
para imaginar a fortaleza voadora que ainda ficou visível
debaixo da língua espumosa da água indo e vindo sobre
o avião triste da sua cabeça de menino morto (aquela ca-
beça grande, que não espera pelo corpo para crescer) de
medo dos gafanhotos vivos quando eu os ponho na mão
dele, dizendo que são os aviões verdes da natureza, que
ele poderia esmagar com os dedos, se quisesse.
Há muitos gafanhotos neste extremo da península (o
que é estranho, considerando-se o vento e a ausência de
plantações atrativas). Não chegam a ser uma praga, nada
como no Egito, porém não são agradáveis de se ver nos
seus bandos metálicos e aguerridos, enquanto um inseto,
sozinho na sua paz de patas inamovíveis, fincadas como
um hidroavião em terra firme... isso eu tento que o meni-
no compreenda com a mão, mas ele solta o ser tranquilo,
não dá tempo que se forme a impressão no oco da palma
sensível. Também não tive muito sucesso com uma borbo-
leta na parede – exatamente onde estivera um quadro de
formato redondo, talvez um retrato solitário na casa que

197
Stromboli

nunca mais foi caiada sobre aquele carimbo de poeira e


proteção da luz... o que não me incomoda em nada, nem
à sua mãe, nem creio que deva incomodar aos pilotos que
descem como se não existíssemos, nós e o Ícaro do único
livro aqui existente (um livro de mitologia antiga, com a
bela imagem de Ícaro caindo, derrotado, a sua sombra
sobre a massa de água que o espera).
E o que esperamos, todos? A sombra dos aviões “tris-
tes”, chegando e partindo, como sombras? As sombras,
sempre apressadas, dos pilotos atrás das máscaras que não
nos olham como pessoas reais, já disse, os aviadores com
os polegares levantados, os acenos de rotina, feitos com a
elegância de aeronautas acostumados às despedidas?
Eu já disse que eles, os modernos argonautas sobre
mares de chumbo, não se incomodam conosco? Com es-
tarmos, ou não, cansados, ao menos a mulher ser frágil,
o menino deficiente (além de triste como os aviões cujo
ronco ele adivinha entre as quatro paredes apagadas da
sua noite de menino cego)?
Se o menino tivesse a visão e os pilotos fossem menos
apressados, eu lhes pediria para trazerem algum almana-
que em braile, alguma obra de generalidades menos difí-
cil do que o livro comum de mitologia que já li de cabo a
rabo, muitas vezes sem entender as confusões dos deuses
antigos, promíscuos e mais ou menos indecentes. Não seria
bom para ler, em voz alta, para um menino dado a imagi-
nações na sua solidão povoada de roncos de aviões e nossos
silêncios não de marido e de mulher – silêncio a dois –, mas
de medo dos pensamentos e das ações que a mesma soli-
dão inspire a adultos com muitas horas desocupadas para
a acídia, a preguiça do desespero. Assim, um almanaque
de qualquer tipo poderia encher horas duplas, minhas e
do menino a ser ensinado sobre outros mundos e outros
insetos, outros mares e outros vulcões marinhos e terres-

198
Fernando Monteiro

tres, evitados pelas aves que migram das geleiras para as


zonas quentes, dos invernos para as praias aprazíveis, as
cidades brancas diante de um mar de turquesa onde se pes-
ca com vara, redes e as mãos nuas nos remansos da água
de grutas azuis, cheias de ecos. Tudo maravilhas descritas
em obras geográficas de grande encanto e interesse, com
gravuras remotas e fotografias nítidas como a do vulcão
Stromboli visto por trás de um terraço de flores cinzentas:
“Le volcan de Stromboli fait partie de cet archipel auquel
on donne le nom d’îles Lipari et aussi d’îles Éoliennes ou
Vulcaniennes. C’est un groupe de petites îles, situées dans
la portion de la Méditerranée que les anciens appelaient
mer Tyrrhénienne­, comprise entre la côte occidentale de
l’Italie, la Sicile, la Corse e la Sardaigne”…
Eu pensava nisso tudo (o vulcão Stromboli fez parte da
minha infância, mesmo que pelo meio indireto de solenes
descrições lidas na solidão do quarto do castigo), quando
percebi que o menino chorava. Pensava em como seria
agradável tomar-lhe lições sobre esses e outros vulcões do
mundo, adormecidos ou ativos, quando suas lágrimas me
surpreenderam, no fim da tarde – talvez porque estivesse
cansado da solidão do lugar e da falta de lições verdadeiras,
numa escola de janelas longe do mar, dos aviões e de um
quase desconhecido, com meu lábio leporino estropiando
o belo som da palavra Stromboli, cheia de sal e cinza.
Só mais tarde – e pela boca silenciosa da sua mãe – é
que fiquei sabendo que ele chorava porque ela lhe havia
dito, no promontório onde sentamos sobre as pedras, que
todos os pilotos estavam mortos havia muito tempo, voan-
do nos aviões fantasmas que faziam aquele ronco sobre as
nossas cabeças, mas, na verdade, pousavam sem o auxílio
das lâmpadas que hoje já não levamos para fora da casa
onde, afinal, deveremos viver sozinhos para sempre.

199
Ninguém ouve os sabiás
Fernando Pessoa Ferreira

Em outubro, os sabiás estão apaixonados. Parecem


imunes a todas as formas de poluição que assolam a cida-
de e partilham sem conflito as ruas e as árvores. Os felinos
machos urinam para delimitar seus territórios. Os sabiás
machos cantam. Pode-se ouvi-los antes mesmo de o dia
amanhecer. Seus trinados são o mais confiável prenúncio
da aurora. E prosseguem incansavelmente até o cair da
noite. Mas quase ninguém lhes dá atenção.
Parei na calçada e apontei a copa de uma sibipiruna. Em
algum galho, entre a folhagem e os cachos de flores amare-
las, um sabiá-laranjeira entoava o seu canto de amor.
– Está ouvindo?
– Ouvindo o quê?
Raquel exibia uma sincera cara de espanto.
– O sabiá. Nesta época ele está em lua de mel. Ali, na-
quela árvore...
– Ah, estou descobrindo que você é meio poeta.
Meio babaca, é o que ela pensou. Mas como ainda es-
tava interessada em mim, permitiu-se uma certa ternura.
Ou então, pode ter achado que eu tentava me mostrar
romântico para impressioná-la. Não tentava. Aliás, Ra-
quel tinha menos importância para mim do que qualquer
sabiá. Nem sequer estou certo de que o nome dela era
mesmo Raquel. Acho que tinha algo a ver com o Velho
Testamento. Mas poderia ser Judith, ou Esther. Com to-
dos os agás a que tivesse direito.
Só me lembro dela quando ouço um sabiá.
Fernando Pessoa Ferreira

Às 12h13min de uma segunda-feira, Zacarias Men­


donça Carneiro, tenente-coronel reformado da Polícia
Militar, estacionou seu alquebrado Monza junto à calça-
da do Batalhão de Choque Tobias de Aguiar, na Avenida
Tiradentes. É óbvio que ali, perímetro da temida Rota, é
proibido estacionar, mas o velho oficial não se deu conta
desse detalhe. Ou fez de propósito. Mas a afronta maior
ainda estava por vir.
Dentro do carro, Zacarias, gestos calmos mas resolutos,
desfez-se do paletó de pijama, da camiseta regata, do ber-
mudão, dos tênis, das meias e até da cueca samba-canção.
Enfim, de todas as peças de sua indumentária de aposen-
tado. Arrumou tudo direitinho sobre o banco traseiro. Em
seguida, pegou um espadim, relíquia de sua formatura
como aspirante a oficial da PM, que estava no assento do
carona, zelosamente protegido por uma bainha de flane-
la. Então saiu do carro, sem se preocupar em tirar a chave
do painel e travar a porta. Espadim em punho, com garbo
de mosqueteiro do rei, dirigiu-se em largas passadas para
o portão do quartel, cujo nome homenageia a memória
do ilustre militar que fundou aquela instituição, a serviço
da qual Zacarias havia dedicado trinta e oito dos seus ses-
senta e sete anos de vida.
Foi detido antes de chegar ao portão, cujas sentinelas
certamente não o deixariam passar, pelado daquele jei-
to. Materializada não se sabe de onde, uma guarnição da
Rota, formada por um sargento, um cabo e três soldados,
interrompeu o trajeto do tenente-coronel, subjugando-o
sem dificuldade e arrastando-o com maus modos para a
traseira de um camburão que também surgira do nada.
Foi uma operação eficiente e rápida, consumada em pou-
cos segundos e facilitada pelo fato de Zacarias Carneiro,
além de velho, ser um homem pequeno e franzino.

201
Ninguém ouve os sabiás

Assim, embora a avenida, em pleno rush do meio-dia,


estivesse sempre movimentada, não foram muitas as pes-
soas que testemunharam o estranho agravo. Além do que,
a maioria delas estava impedida de divulgar o acontecido,
por força do rigoroso regulamento da corporação.
O camburão, com seu inusitado prisioneiro, embicou
pelo portão do quartel e instantes depois Zacarias foi con-
duzido, algemado, para a enfermaria. Pouco depois, sua
carteira com documentos foi encontrada entre as roupas
no banco traseiro do Monza e seus captores descobriram
que o espadachim pelado era um oficial de alta patente,
ainda que reformado. Passaram então a tratá-lo com mais
consideração, embora o conservassem algemado à cabe-
ceira de ferro de uma cama. Até esse momento e também
depois, Zacarias manteve-se calado. De sua boca saíram
apenas, ao ser dominado, alguns sopros e grunhidos.
Agora, porém, mantinha-se dignamente mudo. Mas logo
o oficial médico de plantão conseguiu entrar em contato
telefônico com sua família, a fim de discutirem o destino
que se poderia dar a ele.
Dois dias depois, quarta-feira, por volta das onze da
noite, três casais dividiam uma mesa num restaurante caro
nos Jardins. Comemoravam o retorno de uma das senho-
ras, após longa temporada de férias na Europa. Ela e o ma-
rido eram juristas muito considerados: ele desembargador
e ela advogada tributária. Os outros dois casais pertenciam
a elites equivalentes. Um cirurgião plástico e a mulher,
irmã da advogada homenageada; e um economista, ex-
deputado e agora sócio de um banco de investimentos. A
sua jovem e bonita esposa dedicava-se a obras filantrópicas
e aparecia com frequência nas colunas sociais.
Terminado o jantar, as senhoras se levantaram e foram
juntas ao toalete, onde se dedicaram à inadiável tarefa
de retocar a maquiagem. Demoraram alguns minutos e,

202
Fernando Pessoa Ferreira

depois, só duas delas voltaram à companhia dos maridos.


A terceira, a apetitosa mulher do banqueiro, Iolanda Ca-
margo Fachinardi, disse às amigas que voltaria em segui-
da. Quando o fez, estava magnificamente pelada. Tinha
seios ainda altivos e belíssimas coxas, apesar de alguns
vestígios de celulite, localizados pelas mulheres que ob-
servaram de perto a sua performance.
O marido de Iolanda, após um momento de choque,
apressou-se em tirar o paletó e envolver com ele o corpo
da mulher. Mas o tamanho do paletó era insuficiente para
esconder tudo: os seios, empinados e firmes, continuaram
de fora, conforme confidenciou mais tarde um privilegia-
do membro da plateia.
Por conta do adiantado da hora, a imprensa escrita e
falada não pôde noticiar o fato no dia seguinte. Porém,
na sexta-feira, as páginas de mexericos de alto nível dos
dois maiores jornais contaram a aventura em detalhes,
omitindo apenas os nomes da protagonista e respectivos
acompanhantes. A esta altura, porém, todos os comuni-
cadores bem informados da cidade conheciam a história
completa, acrescida, inclusive, de alguns detalhes pican-
tes, produto de suas imaginações.
A pobre Iolanda não dispunha, como o tenente-coro-
nel Zacarias, de um manto corporativo que a protegesse
das más-línguas. Mas, por sorte sua, a repercussão de seu
infortúnio foi diluída por uma sucessão de novos aconte-
cimentos. Melhor dizendo: de novos episódios de nudez
pública.
Na tarde da mesma sexta-feira em que os colunistas
contaram a história do seu strip no restaurante, uma ce-
rimônia fúnebre no crematório de Vila Alpina foi inter-
rompida quando um dos presentes, enteado do morto,
desnudou-se subitamente, sem abandonar o ar compun-
gido, apropriado àquela circunstância.

203
Ninguém ouve os sabiás

A muitos quilômetros dali, do outro lado da cidade, no


modesto bairro de Pirituba, um farmacêutico de 55 anos,
que os conhecidos tinham como homem sisudo, quase foi
linchado ao tentar aviar uma receita para duas mulheres,
mãe e filha, sem qualquer pano a lhe cobrir as vergonhas.
Acudindo aos gritos das duas, uma multidão de vizinhos e
passantes avançou sobre o coitado, que só se salvou graças
à providencial aparição de uma viatura policial, na qual
foi conduzido à delegacia mais próxima, a fim de ser au-
tuado por desacato ao pudor. Frustrados, os linchadores
aproveitaram para saquear a farmácia.
No sábado, os peladões pipocaram em toda a região
metropolitana. Somente em São Bernardo do Campo
foram registrados oito casos. O mais chocante foi, sem
dúvida, o do pastor evangélico Donizete Barreto, que in-
terrompeu a prédica, abandonou o púlpito por alguns
instantes e em seguida retornou completamente nu. Ao
tentar atravessar a massa de fiéis que lotava o templo, foi
surrado sem piedade, para que Satanás o libertasse.
– Trata-se de um caso de possessão diabólica. Os Evan-
gelhos registram vários fatos semelhantes –, sentenciou
o bispo Darcy Damasceno, superior imediato do pastor
possuído, cuja transferência para outra cidade, bem longe
dali, já estava sendo providenciada.
No domingo, a epidemia de nudez que assolava São
Paulo já se tornara notícia nacional e até internacional. A
mídia externa tratava o assunto com bom humor e outra
atitude não se poderia esperar. Mas os cariocas (sobretudo
os humoristas cariocas) exageravam no deboche. Porém,
justiça seja feita, foram seguidos nesse desrespeito pela
imprensa de diversos países.
Com a virtuosa proteção de uma tarja preta, jornais es-
portivos e televisões do mundo inteiro divulgaram a foto
do juiz de futebol que se despiu em pleno calor de uma

204
Fernando Pessoa Ferreira

partida, logo após apitar um pênalti contra o time visi-


tante. Sua Senhoria livrou-se do uniforme preto com de-
bruns cor de abóbora, da cueca, das chuteiras e das meias,
mas conservou na boca o apito, símbolo de sua autorida-
de. Esse detalhe aparecia bem nítido na fotografia que se
tornaria histórica.
A peste da nudez pública também teve efeitos positivos.
Num shopping da zona leste, um sequestro relâmpago foi
frustrado quando um dos bandidos, ao tentar sacar dinhei-
ro de um caixa-eletrônico com o cartão da vítima, repenti-
namente interrompeu sua atividade criminosa para se des-
pojar da roupa e do revólver 38 que trazia escondido. Foi
logo imobilizado pelos seguranças do shopping, que também
conseguiram prender um dos seus comparsas, atarantado
pelo surpreendente comportamento do colega.
A esse tempo, especialistas de diversos matizes e auto-
ridades de variados calibres inventavam teorias e palpites
sobre a causa do curioso surto. Uma professora doutora
em Psicologia Social atribuiu o fenômeno ao desejo repri-
mido de obter fama e sucesso. Desejo esse que também
atormenta em muitos outros lugares, mas só aqui resultou
em tamanho rebuliço. Isso ela não tentou explicar, nem
esclareceu também como pessoas tão diferentes entre si,
em termos de educação, posição social e conta bancária,
sucumbiam do mesmo modo ao vírus da nudez. Sim, pois
a coisa poderia ser provocada por um vírus, como muitos
outros desenvolvido por macacas africanas no cio, confor-
me admitiu um respeitável epidemiologista, num arroubo
de delírio.
Nas redações dos meios de comunicação, os repórteres
investigativos que foram pautados sobre o assunto deba-
tiam-se com uma dificuldade aparentemente intransponí-
vel: as vítimas do “Mal da Roupa Louca” (o apelido de
mau gosto foi inventado por um deles) já se aproximavam

205
Ninguém ouve os sabiás

de uma centena, mas todas tinham em comum o fato de


que não se lembravam do ocorrido. Não se lembravam de
absolutamente nada. Algumas até se mostraram ofendidas
ao serem interrogadas sobre o assunto. Outras achavam
que estavam sendo vítimas de uma brincadeira, só o que
variava entre elas era a duração da pane. Os repórteres
logo descobriram que isso tornava quase inútil o esforço
de entrevistá-las, numa tentativa de esclarecer o mistério.
Iolanda, por exemplo, lembrava-se de ter ido ao toa-
lete com as amigas no fim do jantar. Depois, deu-lhe um
branco, até que, novamente vestida com a ajuda delas e
de uma funcionária do restaurante, recobrou a consciên-
cia sentindo uma leve sensação de vertigem. Já o tenente-
coronel Zacarias Carneiro, conforme depoimento a seus
familiares, lembrava-se de ter tirado o carro da garagem
do prédio onde morava e depois pluf! O seu período de
amnésia foi prolongado pela injeção de tranquilizante
que lhe aplicaram na enfermaria da Rota.
O pastor Donizete, por sua vez, faturou muitos pontos
com o bispo Gonçalves ao declarar, diante das câmeras de
TV, estar convencido de que de fato havia incorporado o
Maligno:
– Quando recuperei a razão – afirmou –, sentia ainda
um calafrio me descendo pelo pescoço e a espinha. Só
podia ser o dedo de Satanás.
A maioria das pessoas ouvidas pelos institutos de pes-
quisa achava haver uma boa dose de exibicionismo naquilo
tudo. A cronista mais irônica e venenosa da imprensa local
decretou que “essa onda é macaquice de colonizados. Tirar
a roupa em público é mania de inglês”.
Várias outras explicações surgiram, destacando-se en-
tre elas:
A epidemia era provocada pelo aquecimento global.
A culpa era do FMI, ou da CIA, ou dos grupos finan-
ceiros internacionais. Ou de todos eles juntos.

206
Fernando Pessoa Ferreira

Era tudo coisa de comunista.


Era provocada pelos alimentos transgênicos.
Era consequência de uma mutação genética, acirrada
pela emissão de gases venenosos pelo escapamento dos
carros desregulados que enchiam as ruas da cidade.
Raios cósmicos provenientes de um ponto remoto da
galáxia afetavam os cérebros de pessoas mais antenadas
e danificavam as suas moleiras, foi o diagnóstico de uma
associação de ufólogos.
Os culpados eram os telefones celulares. “O uso abusi-
vo deles intoxica a mente e danifica a moleira”, pontificou
o dirigente de uma ONG conservacionista. Como justifi-
car então que o mal tivesse acometido também numerosas
pessoas que não usavam e nunca tinham usado telefones
celulares? O tenente-coronel Zacarias, por exemplo. A
principal vantagem dos teóricos idiotas é não precisar ex-
plicar suas teorias.
A mais interessante delas foi elaborada por um psica-
nalista paulista, estabelecido em Ipanema, no Rio. Segun-
do ele, tratava-se de uma reação inconsciente, mas com-
pulsiva, à carência de mar na Pauliceia:
– O subconsciente desse pessoal de repente se trans­
porta para o Arpoador, ou mesmo para Ubatuba ou outra
praia qualquer, provocando o impulso irresistível de tirar a
roupa. Ninguém vai querer nadar vestido, não é verdade?
A síndrome da falta de mar foi uma tese bem recebida
pela mídia. Impressionou sobretudo um vereador de São
Paulo que logo propôs a criação de uma comissão de alto
nível para estudar a revitalização de um projeto muito dis-
cutido em fins do século dezenove: trazer o mar serra acima,
até a capital paulista, através de um engenhoso sistema de
comportas. A proposta de criar tal comissão foi rejeitada na
Câmara Municipal por estreita margem de votos.

207
Ninguém ouve os sabiás

Por falta de mar, de belas montanhas e rios aprazí-


veis, os parcos encantos naturais da região se refugiaram
em pequenos nichos, que, em geral, ficam despercebidos.
Quando a paisagem salta aos olhos e envolve a gente num
impacto brutal, como no Rio de Janeiro e em outras raras
cidades aquinhoadas pela sorte, as pessoas não precisam
ser atentas para perceber e saborear sua beleza.
Aqui, a paisagem sobrevive nos detalhes. Sobrevive,
por exemplo, nas pitangueiras carregadas de frutinhas
avermelhadas, da safra que começa em setembro e se es-
tende até o fim de outubro, proporcionando farta refeição
para os pássaros silvestres. Elas se espalham por toda a ci-
dade, brotando em qualquer nesga de terra, mas são mais
abundantes nas encostas das vias expressas e nos cantei-
ros centrais das avenidas bem arborizadas, como a Brasil.
Mas entre os transeuntes que passam por ali, ou esperam
nos pontos de ônibus, ou ocupam os automóveis a cami-
nho do escritório ou da ponte aérea, quase ninguém tem
olhos para a discreta beleza da safra de pitangas.
Nem ouvidos para os sabiás.

Segunda-feira, uma semana após a investida do tenen-


te-coronel Zacarias contra a sede da Rota, o surto de nu-
dez pública deu sinais de arrefecer. Depois de 56 novos
casos registrados no sábado e 42 no domingo, a segunda-
feira contabilizou apenas 23, reduzidos a míseros 11 no
dia seguinte.
O enfraquecimento da crise deu lugar à nova enxurra-
da de interpretações e palpites:
Os raios cósmicos estão perdendo força, observou a
associação de ufólogos.
O FMI, a CIA e os grupos financeiros internacionais de-
ram-se por satisfeitos com o número de cobaias que conse-

208
Fernando Pessoa Ferreira

guiram colher. Mas logo farão novos experimentos, ainda


mais danosos para a nossa independência econômica.
Os comunistas, como sempre, estão mudando de táti-
ca para iludir os inocentes úteis.
A falta de mar continua angustiando a população pau-
listana. Mas só provoca reações radicais (como a de tirar a
roupa em público) numa minoria mais sensível. Minoria
que começa a se esgotar.
Sem que nenhuma dessas teorias e outras tantas ainda
mais estapafúrdias pudessem ser comprovadas, a epide-
mia de nudez se exauriu por completo em mais duas se-
manas. Um caso isolado ocorrido dias depois se revelou
uma fraude. Um homem invadiu a festinha de formatura
de um curso de corte e costura na Mooca, vestido apenas
com uma camiseta do Corinthians. Mas era só um exi-
bicionista, que já havia sido preso duas vezes antes, por
atentados semelhantes.
Logo em seguida as atenções da mídia se voltaram em
peso para um novo acontecimento: um crime bárbaro en-
volvendo uma família de classe média alta no rico bairro
do Morumbi. Ninguém mais escrevia ou lia sobre os nu-
distas compulsivos, simplesmente porque haviam desapa-
recido por completo. Até mesmo o grotesco apelido “Mal
da Roupa Louca” caiu no esquecimento, pelo desuso.
No carnaval paulistano houve ainda um breve recru-
descimento de interesse pelo assunto. Uma escola de sam-
ba incluiu uma ala de mulheres peladas em seu desfile. A
audácia pecou por falta de originalidade e a tal escola
acabou rebaixada.
É bem possível que, mais cedo ou mais tarde, algum
pesquisador mergulhe fundo na busca de novas pistas que
levem ao esclarecimento de tão esquizofrênico mistério.
Duvido que consiga.

209
Ninguém ouve os sabiás

Por minha vez, também tenho uma explicação para


aquele fenômeno, tão absurda como qualquer outra. A
esta altura, minha explicação é previsível. Acredito since-
ramente que a epidemia de nudez na Grande São Paulo
foi uma consequência da indiferença da população para
com os lampejos de puro encantamento que se escondem
nas feias dobras desta metrópole. Como, por exemplo, os
sabiás e as pitangueiras.
Estudei com cuidado o noticiário dos jornais, durante
as três semanas que durou a calamidade e mapeei a inci-
dência dos casos em todas as cidades da região. Em duas
delas, não aconteceu nenhum: Salesópolis e Santana do
Parnaíba. Não por acaso elas são oásis de sossego. Na pri-
meira, rodeada pelo verde da Mata Atlântica nas encostas
da Serra do Mar, nasce o Rio Tietê, ainda puro e transpa-
rente. Já a outra é quase uma relíquia colonial e preserva
sua memória com zelo e competência.
Não posso assegurar, mas acho que em Salesópolis e
Santana do Parnaíba as pessoas ouvem os sabiás quando
eles estão apaixonados. E notam a safra das pitangas.

210
O sonho de Ulpiano
Flávio Chaves

Nasceu impulsionado para a aventura. Gestos desassos­


se­gados, como quem procura achar o mundo. Seu andar era
uma pulsação de tigre. Soldado exemplar, integrava a guar-
da pretoriana, com muito orgulho. O sonho era tornar-se
centurião. Comandar uma milícia romana. Pertencia a uma
casta – a dos militares do Império – que detinha amplo po-
der e era aquinhoada pela admiração popular, distinguida
com privilégios e, mesmo, prestígio político.
Como era jovem, sensual, seguro, de personalidade
forte e grande amante, possuindo mulheres, tanto em
Roma quanto nos lindes dos vastos domínios romanos,
preferindo, antes de qualquer troféu ou despojo de guer-
ra, o corpo ardente e trêmulo de uma ninfeta bárbara, Jô-
nathas Célio Ulpiano desfrutava de carisma incomparável
e mesmo da admiração dos seus pares. Era um cancionei-
ro. Recitava, encantando a todos à sua volta. Trazia loas
de ternura dentro do peito.
De Célio, a colina de que herdou o nome, tinha a ma-
jestade circunspecta e a firmeza indócil. Sua vida cruza­
ria dinastias ibéricas, impérios monarquistas erguidos so-
bre mortos, alicerçados na cinza das guerras civis, e se
imiscuiria na apoteose do mal calígula: seu legado para a
história seria a dor ou o encanto vivo, a ressurreição das
pessoas no seio do amor? É a pergunta que o narrador se
atreve a jogar para o futuro deleite do leitor, cujo xadrez
de estrelas apenas começa a iluminar a trajetória do he-
rói, mártir do amor.
O sonho de Ulpiano

Íris Sépia, filha favorita do Imperador, bonita e provoca­


tiva, nos seus 16 anos frutuosos, abalava os corações dos
súditos, dos nobres, dos generais e dos senadores. Era ob-
jeto de desejo – sexual – não político de centuriões.
Era Íris um acepipe raro, rico, uma visão carnal dotada
do espírito imperial, com sangue de césares correndo ve-
locissimamente em suas veias ardentes, quase galopando
de tanto viço e beleza a derramar-se pelas vias romanas.
Ela era inquieta, curiosa, destemida, viajava deslocan-
do-se de um lugar a outro em curtas viagens ditadas pelo
cio e pelo prazer de viver. Tinha um grande mistério: ar
sagrado do silêncio.
Ulpiano, designado para compor a guarda pessoal da
filha do Imperador, em substituição ao titular que adoe-
cera, viajou com a comitiva, e vitimou-se do mais perigoso
dos males, da doença espiritual mais impactante para o
seu coração simples de soldado, egresso do povo: a pai-
xão cálida, o mal de amor, de amar a mais desejada moça
da poderosa Roma.
E começou seu doce martírio, seu sofrer solidário teve
início sem fim. Os momentos mais esperados de sua vida
eram o encontro de olhares com Íris e a troca espontânea
de lampejos, os dela, ingênuos, os dele, sedutores.
E Ulpiano vagava nas ruas solitárias da urbe noturna
procurando nas estrelas os olhos de sua amada, buscava no
silêncio da noite amuralhada pasto para seus pensamentos,
distração para o desejo e, nas linhas dos frisos magistrais
dos edifícios, os traços do resto que perdera, a imagem fu-
gida do único ápice de uma vida, seu signo e razão de viver:
Íris, a filha de Roma, da poderosa cidade que Cícero coroa
com o título de rainha das cidades, adorno do Universo.
Começou uma fase perene de sua vida em que o valor
primeiro era permanecer na guarda pessoal da filha do
Imperador em suas peregrinações por Roma e arredo-

212
Flávio Chaves

res, assegurando a seus olhos, próximos, a visão suprema,


sempre.
Usava todos os recursos, amizade, prestígio, favo-
res para não deixar de seguir a amada e isso começou a
desgastá-lo. Ficava tão óbvio seu empenho em integrar a
guarda da filha do Imperador, que os apuros apareceram
e as dificuldades em viajar, acompanhando-a, tornaram-se
excessivas, o que, exigindo pressões cada vez mais crescen-
tes e o uso de influência pessoal e militar, terminou por
tornar aparente e inevitável o desgaste, aumentando os
riscos que sua ação apaixonada criava progressivamente.
Se cresciam, os riscos maiores eram os momentos de
volúpia que uma migalha do olhar de Íris, um brilho de
sua pupila, um pêndulo de sua pálpebra, provocavam em
Ulpiano, tonto da aura de beleza e dos relâmpagos de de-
sejo. Inconscientemente bebia a estonteante mulher num
imaginoso viço e em delírio via sangrar a donzela de tanta
força e gozo abraçado a seu corpo de potranca.
Um dia, quando designado para uma missão militar –
que o beneficiaria com uma promoção e o crescimento de
sua carreira – recusou asperamente e insistiu em voltar a
compor a guarda da filha favorita do Império.
A crise gerada findou com sua prisão, por indisciplina,
desacato, suspeição por excessiva devoção ao serviço jun-
to à bela Íris. Indisciplina e ciúme derrubaram Ulpiano,
que, trancafiado, viu de sua janela presidiária a comitiva
da sua amada desaparecer no horizonte, em mais uma
viagem de recreio e alumbramento, sem que seus olhos
acompanhassem literalmente a amada. Mas o seu coração
foi moído pelas rodas da carruagem que levava a ninfeta.
O amor, a paixão, especialmente quando unilaterais,
geram uma força insuspeitável, um misto de revolta e so-
nho, de inconformação e coragem; cria um véu sobre a
razão e libera instintos primários de soberba, disposição

213
O sonho de Ulpiano

para luta, necessidade de não aceitar os dados de destino


tão ingrato que distanciava os amantes, que interrompia
o encanto e separava suas almas.
Reformaram sua sentença, triplicaram os dias de pri-
são, como resultado de sua não conformação aos fatos, de
sua insistente rebeldia ditada pelo coração.
A solidão, a cela, o silêncio, a névoa que dissipava o
rosto da amada, tudo aumentava o martírio, fazia crescer
o sofrimento, decuplicava a ânsia por Íris.
Ela voltava desse e de outros passeios, e Ulpiano sentia
crescer sua paixão, presa dos terríveis obstáculos de sua
detenção por amar e não se conformar com o desfavor
da sina.
Seus cálculos apontavam, como justo o seu ato, razoá-
vel sua ação em evitar a separação, mas a justiça e a razão
estavam contra ele e sua mágoa só não superava o amor
que sentia por Íris, mas empanava sua percepção das coi-
sas mundanas.
Vieram à memória torrentes de recordações dos dias
prisioneiros da Íris dos seus desejos, quando, junto ao seu
coche, fitava a sombra, a névoa por trás das persianas, o
traço fulgurante do rosto do seu amor ilimitado e difícil.
E lembrou-se da tarde já perdida nos desvãos do infor-
túnio em que dera a Íris de presente uma lua azul, ícone
grato a Ulpiano, fetiche, signo de seu lirismo avassalador.
Próximo à sua liberdade, já ciente de sua transferência
para distante província romana, nos limites setentrionais
do Império, Ulpiano teve uma visão esplendorosa, e du-
pla, uma no sono outra na vigília, da amante.
O sonho de Ulpiano foi róseo como o leito, sob dos-
sel de estrelas e aromas em que amava Íris – e os atos de
amor superavam qualquer outro que marcaram sua vida,
dentro e fora do sonho.
Eram transportes oníricos, arrebatamentos que só o
devaneio concede. Inflamada pelo sonho, a volúpia era

214
Flávio Chaves

como cavalos selvagens disparados ao amanhecer ou pás-


saros em revoada para guardar a noite.
A outra e decisiva visão, a manhã concedeu o cenário e
o sol dourou os decisivos acontecimentos matinais.
Íris Sépia, voluptuosa sempre, vagarosamente, em pe-
queno carro, espécie de biga, acionada por dois belíssi-
mos cavalos, transportava-se, junto aos muros da prisão,
rente à pequena janela onde Ulpiano bebia os primeiros
raios de sol.
O resoluto olhar de Íris cruzou, movido por acaso e
destino, com o faminto e frágil olhar de Ulpiano: por áti-
mos de segundos casaram-se os olhares; um, desatento,
rápido, curioso; o outro, fotográfico, minucioso, volup­
tuoso, eterno.
A visão de Íris logo se perdeu, a de Ulpiano tornou-se
suprema, pétrea, indissolúvel elo do rosto amado com seu
coração, presa de tão grandes encantos e sonhos.
Quando, por acaso, Íris soube que um membro de sua
guarda pessoal estava detido, sua curiosidade levou-a, no
começo da noite, quando retornava, a passar sob a janela
em que Ulpiano, agora, bebia o luar azul, enchendo os
olhos amorosos com a segunda lua cheia do mês, a lua
azul e estranha, e bela como Íris.
E supremo bem, divino momento, instante eterno fo-
ram-lhe concedidos, quando se repetiu a mais esplendo-
rosa de todas as encruzilhadas, o cruzamento, agora mais
sentido, do divo olhar de Íris com o extasiado de Ulpiano,
sob a lua azul acasalados.
Cruz que ele protegeria em seu peito, em cada instan-
te da sua vida desamparada, em cada martírio pelo amor
que sofrera. Aquele olhar doce e travesso para Ulpiano
seria o néctar e pássaro, liberdade e doçura.
Tirando proveito da intervenção do eu do narrador,
interponho uma reflexão, não minha, mas de Stendhal,
que se referindo à cidade eterna, onde viveu, disse: nada

215
O sonho de Ulpiano

na Terra pode comparar-se a Roma. E é essa Roma, no


apogeu do seu brilho político, artístico e urbanístico, no
azimute da fama, no auge do apogeu imperial, que serve
de cenário para os sofrimentos de Ulpiano.
Trinta e dois anos depois, na mais inóspita região do
Império, às margens do Ponto Euxino (Mar Negro), Ul-
piano morreu, desencantado, desprezado, exilado, afoga-
do por todas as mágoas do mundo, mas apaixonado como
um jovem, como o jovem que fora, e amando mais ainda a
mesma moça, a mesma jovem de sempre, a bela e distante
Íris, filha do Imperador, hoje, cercada de filhos, um deles
novo Imperador de Roma.
No exílio longínquo, Ulpiano conviveu por meses com
o poeta Ovídio, também revoltado, sozinho, que ele viu
morrer, 31 anos atrás, em leito tristíssimo.
Ulpiano morreu com os olhos brilhando mais do que
todas as estrelas juntas, com um sorriso fincado em sua
boca antiga, rodeado por aura intensa de felicidade: Ul-
piano morreu junto ao crepúsculo, sob o olhar azul da lua
e, em sua retina, estampado ou esculpido, o perene olhar
de Íris, que ele guardou eternamente, único momento fe-
liz de sua vida; como adorno, prêmio e lenitivo.

216
Rua do Encantamento
Flávio Guerra

O frei José da Aparição foi lamentavelmente um frade


vadio.
Viveu naqueles instantes ainda confusos do Recife de
fins de século XVII, quando a preocupação máxima das
ordens religiosas aqui era a catequese e o aproveitamen-
to da igreja em terra estranha, ainda sem preparo social
e moral.
Por isso, conta a doce lenda, que o frei José da Apa-
rição era um frade bem vadio, diferente dos mais, pois
gostava de passear altas horas da noite devidamente dis-
farçado, pelas ruas ainda imprecisas do velho Recife, à
procura de aventuras, divagações, novidades...
O velho bairro, na sua confusa distribuição de traves-
sas e ruas tortas e desiguais, sem calçamento e escuras,
tinha um aspecto quase selvagem, a provocar mesmo
medo e sobressaltos. A Rua da Cadeia, sua artéria mais
importante, “torcia-se toda e estreitava-se desde o Arco
da Conceição até os fundos da Igreja do Corpo Santo” e
terminava em dois becos, que abraçavam a velha igreja;
o beco da esquerda, que se alargava para o lado da Rua
dos Judeus, e o da direita, que numa curva acentuada,
desembocava no Largo do Corpo Santo, depois de abra-
çar uma rua, paralela com a Rua do Vigário.
Naquela noite, frei José disfarçara-se cuidadosamente,
como de costume, e fora dar o seu passeio. Saíra do con-
vento, na praia de Santo Antônio, tomara a ponte de ma-
deira, seguindo em direção ao outro lado da povoação. Ca-
Rua do Encantamento

minhava vagaroso, talvez absorto e vago, pensando, quem


sabe, no pecado que cometia, mas que para ele tinha, en-
tretanto, o gosto da aventura, o sabor da novidade...
Mas o que era aquilo? Que elegante e tão distinta mu-
lher, de traje tão insinuante, um pouco longe, toda que de
repente, sem que ele até aquele momento tivesse notado,
estava ali caminhando na sua frente?
Apressou os passos. O trânsito na velha ponte era qua-
se nenhum. E frei José, bem moço e vigoroso, andou mais
rápido: deu mesmo uma pequena carreira e conseguiu
aproximar-se da estranha caminhante. Passou à frente,
virando-se para olhá-la.
Oh, céus! Que bela e jovem mulher! E que delicioso
convite à aventura. Ela deixara cair discretamente o véu,
mostrando um lindo rosto e um encantador sorriso vela-
do, enquanto uma bela cabeleira negra, bem arrumada,
emoldurava-lhe a cabeça.
Depois, delicadamente virou o rosto, puxou o véu e
seguiu em direção ao bairro do Recife.
O frade diminuiu os passos e deixou-a passar. Depois
a seguiu discretamente. Empolgava-o a tentação fácil da-
quela mulher. Segui-la-ia até o infinito e saberia do seu
mistério. Conquistá-la-ia de qualquer modo...
Desceram pela Rua da Cadeia; depois tomaram a Rua
da Senzala Velha, entraram no beco dos Tanceiros e, de
lá, cruzaram novamente a Rua da Cadeia, indo atingir a
Rua do Vigário.
Compreendeu o frade que a bela mulher queria des-
pistá-lo. Mas ele estava persistente e decidido. A curiosi-
dade já o obcecava pela presença estranha daquela criatu-
ra tão distinta, sozinha, altas horas da noite, naqueles er-
mos, sem se decidir por quaisquer daqueles sobradinhos
coevos da Fernandes Vieira ou Henrique Dias, “baixos,
exíguos, de varandinhas de ferro e guarda-mãos de pau

218
Flávio Guerra

amarelo”, em frente dos quais muitas vezes diminuía os


passos, parecendo que ia entrar.
A certa altura, enfim, já perto da ponte outra vez, tomou
ela à esquerda, enveredando pela rua então conhecida como
“aquela que vai por detrás da cadeia para a ponte”. Ao che-
gar em frente a um sobrado, esguio e de dois andares, subiu
as escadas, abrindo a porta do primeiro pavimento, pene-
trando numa sala completamente às escuras.
Frei José não mais se conteve. De três em três degraus,
subiu também a escada, alcançando a bela mulher antes
que pudesse fechar a porta. Interpelou-a:
– Permite, bela e misteriosa dama, que eu entre tam-
bém?
A mulher de preto deixou cair completamente o véu,
que encobria o belo rosto e a linda cabeleira bem arruma-
da, sorriu com graça respondendo com uma voz maviosa:
– Pois não. Tenha bondade e vamos entrar...
E puxando uma cadeira de um canto ofereceu-a, en-
quanto se sentava junto.
O frade agarrou-lhe as mãos. Sentiu-as frias e trêmulas.
Beijou-as carinhosamente, interrogando-a apaixonado.
– Quem és, bela mulher? Como te chamas? Moras
aqui?
– Nada me perguntes. Aqui estou para cumprir um
destino. Não tentes passar além daquilo que a prudên-
cia manda. Recatai um pouco o entusiasmo e não pre-
cipites o que está acontecendo...
Aquilo era quase uma advertência, um aviso, ao qual,
entretanto, o outro não fez caso. Cada palavra daquela
criatura era para ele um convite, uma tentação. O perfu-
me de mulher jovem e bem tratada; o aroma que vinha
daquela cabeleira sedosa, tudo isso embriagava os senti-
dos. Não tinha mais noção do que estava acontecendo,
bem do que poderia advir.

219
Rua do Encantamento

Somente admitia que desejava loucamente aquela mis-


teriosa criatura.
– É impossível. És bela demais para se recusar o convite
dos teus lábios trêmulos, palpitantes e sequiosos, o tremor
de tuas mimosas mãozinhas, o anseio de tua sedução...
E, ato contínuo, puxou-a para junto de si, abraçando-a
desesperadamente. Seus lábios encontraram-se e um lon-
go beijo selou aquele encontro.
Frei José jamais sentira tamanho sabor, igual a tenta-
ção e desejo. Perturbou-se, inteiramente estático, embria-
gado, não podendo evitar que a desconhecida fugisse dos
seus braços.
De repente, porém, antes que pudesse se refazer da
doce emoção daquele beijo, uma coisa extraordinária
aconteceu.
A sala, misteriosa e repentinamente, ficou toda ilumi­
nada pela luz de quatro grandes tocheiros, que apareceram
ninguém sabe de onde, com os círios acesos, em volta de um
esquife, colocado bem no meio; nenhum outro móvel mais
havia, afora as duas cadeiras nas quais estiveram sentados.
Não havia mais ninguém e as portas, com exceção daquela
por onde haviam entrado, estavam todas fechadas.
Refeito do susto, concentrou sua atenção no ataúde.
Dentro dele havia o corpo de uma mulher. Aproximou-se
mais e sentiu as pernas trêmulas, a cabeça a rodar.
Morta, de lábios já roxos, pálida, de olhos semicerra-
dos e a bela cabeleira agora solta, estava ali a linda desco-
nhecida, que segundos antes beijara e de quem recebera
aquela tão estranha sensação de amor e volúpia. Trajava o
mesmo vestido preto e suas mãos, cruzadas sobre o peito,
seguravam o mesmo véu que faceiramente, por duas ve-
zes, soubera arriar do rosto.
Frei José não sentiu pavor diante da morte, mas se
abalou com o imprevisto e o horror do que estava acon-
tecendo.

220
Flávio Guerra

Foi, entretanto, seguro. Ajoelhou-se, rezando uma ora-


ção. Depois tirou do pescoço o seu relicário e pendurou-o
em um prego que viu na parede. Fechou em seguida a por-
ta lentamente, descendo as escadas. Na rua observou bem
o sobrado e, após, com passos apressados, seguiu para o
outro lado da ponte, a fim de recolher-se no convento.
Estava moralmente confundido; dos seus lábios, dos
seus sentidos, da sua imaginação não se afastava a lem-
brança daqueles trágicos instantes; a visão daquela bela
mulher, o seu sorriso encantador, aquele beijo volutuoso
e quente e, por fim, a tragédia do esquife com ela morta
dentro.
No convento não pôde mais suportar; soluçante, cheio
de horror e arrependimento, procurou mesmo à noite o
seu superior, confessando a falta cometida e sua angústia.
O velho frade-mestre escutou-o com carinho e pieda-
de, aconselhando-o:
– Vai, meu filho, faze durante o resto da noite tua pe-
nitência e pede misericórdia e perdão a Deus. Tudo não
deve ter passado de uma tentação de Satanás, através de
um sonho mau, uma visão irreal.
– Não, pai, não foi sonho, nem visão. Eu vi mesmo
aquela mulher viva. Beijei-a e depois a vi morta. Tanto
isso foi verdade que pus na sala, em um prego, o meu reli-
cário, para identificar o local. Vê, não o tenho no pescoço;
não foi, pois, um sonho...
O superior mandou-o se recolher à clausura, pois no
dia seguinte iriam pessoalmente visitar o local e verificar
o que havia.
Pela manhã, logo após as missas, frei José, seu superior
e outro irmão franciscano foram à rua indicada. Já havia
ali bastante movimento, com negros carregando açúcar,
comerciantes atarefados às portas dos seus passos, maríti-
mos e soldados em grande atividade no bairro.

221
Rua do Encantamento

Chegaram ao sobrado, indagando de um bodegueiro


estabelecido em frente, sobre quem morava ali.
– Ninguém, bom frade. Faz mais ou menos dois meses
que morreu no primeiro andar a esposa do intendente
Fagundes. Ele, desgostoso, embarcou para o Reino. De lá
pra cá, não se alugou mais o sobrado, pois o dizem mal-
assombrado.
Subiram a escada. Frei José, desta vez pálido e trê-
mulo, apontou para a porta entreaberta. Seus compa-
nheiros empurraram-na e entraram. Lá, dentro de uma
vasta sala, agora inteiramente vazia, triste e recordando
a própria morte, somente estava pendurado na parede
o relicário, posto na noite anterior, como uma testemu-
nha sagrada de sua palavra, do que acontecera. Todos
ficaram emudecidos e preocupados, entre assombrados
e até medrosos. Frei José, depois e uns instantes, sorriu
baixo, depois mais alto e por fim, gargalhou, gritando:
– Eu a vi, sim. Ela estava ali. Olhem, eu ainda a estou
vendo sorrindo pra mim, deitada dentro daquele caixão.
Misericórdia, meu Deus. Perdão. Vai-te, Satanás... Vai.
Deixa-me em paz...
Perdera a razão. A lembrança daquele trágico instan-
te não podia afastar mais do seu pensamento.
A partir daquele dia, aquela rua passou a ser conheci-
da no Velho Recife como Rua do Encantamento.

222
Crônica de uma tarde de domingo
Francisco Bandeira de Mello

Passou Glostora. Ajeitou a trunfa do cabelo e pôs a


gravata – dessas que têm um elástico e atacam atrás do
pescoço. Era vermelha com flores azuis.
Olhou-se uma vez mais no espelho. Ficou satisfeito.
Apesar das espinhas e marcas de espinhas. Apesar dos
óculos de grau.
O cabelo liso e lustroso, as sobrancelhas agressivas, o
nariz afilado, os lábios vermelhos. (“Você tem as sobrance-
lhas grossas e os lábios lindos”, dizia Anunciata, sua tia.)
Sapatos novos, calça comprida, gravata, lenço colorido
no bolso do paletó, camisa de seda, perfume, óleo no ca-
belo. Faltavam uns óculos Ray-Ban.
Pediu dinheiro.
A mãe sorriu-lhe um beijo na testa.
Ele teve certa vontade de abraçá-la, mas conteve o ges-
to infantil.
– Até!
Os sapatos rangiam um pouco e estavam apertando
nos calcanhares e nos dedos. Os calos que gritassem den-
tro dos sapatos! Sapatos lindos: tipo bateau-mouche.
Na rua, uma tarde de domingo. Ah! se as vizinhas o
vissem... Passou em frente à casa das Meireles e tocou na
campainha da casa de Jatir.
(Mas ele sentia uma cabulosa frieza na espinha; um
mal-estar, uma intensidade no estômago: seria bom que
elas o vissem e também que elas não o vissem.)
– Quebrou a panela!
Crônica de uma tarde de domingo

Era Albino, Nariz de Tucano. Ia (com Doutorzinho)


para o jogo Náutico e América. Hoje: a estreia de Manu e
Salustiano, que vieram do ABC de Natal.
– E o América vai jogar sem Vavá!
(Todo mundo, quando via Albino, brincava: – “Ora
viva, eis quem deu o vice-campeonato infantil ao Sport!...
Se não tivesse jogado, o Sport teria sido campeão”... Albi-
no estirava o dedo num gesto imoral. Mas hoje não quis
chatear com Albino nem este lhe chamou de cunhado.)
Quanto a Jatir, como sempre, ainda não estava pronto.
– “Vamos logo. É para ir a jato, Jatir.” E, enquanto
aguardava, ficou olhando o viveiro e (esperançosamente)
a janela do quarto de Margot.
Porém a irmã de Jatir já tinha saído. Ela era meio gor-
dinha e não era feia, e vivia lendo revistas do tipo Dois
Corações, Amor Jovem, Grande Hotel etc. Ele também
gostava de ler essas revistas, que Margot antigamente lhe
emprestava, mas depois passou a recusar porque o pes­
soal dizia que isso era negócio de mulher. Mas também
não era muito de ler as estórias em quadrinhos masculi-
nas – as aventuras do Príncipe Namor, Mister Flag, Capi-
tão Marvell. Nunca faria como Bino: que, de noite, toma-
va Pevertin ou outro estimulante para ler gibi. Limitava-se
a passar a vista numa ou noutra ao acaso. Ele até gostava
de Margot (uma vez a vira de combinação), mas nunca
pensara em namorá-la. Mais do que encabulado, ficava
impaciente quando, para chatear, diziam que os dois esta-
vam de namoro fixo (“Quando é o casório?”) ou quando
perguntavam coisas claramente maliciosas (“O que é que
vocês estavam fazendo no quintal?”). E até ficara cheio de
dedos quando Margot lhe mandou um bilhete propondo
namoro (“Mirinho, por que você não decide logo? Eu já
estou decidida. Amo-o”). Passara quase um mês sem ir à
casa de Jatir e nunca dera qualquer resposta.

224
Francisco Bandeira de Mello

Quando Jatir finalmente ficou pronto – chaveiro pen-


durado na algibeira e lenço branco no bolso do paletó
– pediu dinheiro a seu Antero, que esbravejou um pouco
(como sempre), mas lhe deu duas cédulas.
– Vinte pratas.
Dona Lina recomendou muito cuidado. E que, depois
do cinema, viessem direto para casa. Embora ressalvasse,
enquanto lhes obrigava a tomar um copo de leite malta-
do: – “Quando Jatir anda com você, Belmiro, eu posso fi-
car descansada”. (Seu Antero disse, francamente, que não
ia nessa conversa e gritou por sua tesourinha: – “Eu não
posso ter nada nesta casa! Aqui tudo se encanta!”.)
Saíram à rua. Era realmente uma tarde de domingo.
A rua, o rio, os jardins sorrindo; o sol vaidosamente se es-
tendia por cima dos telhados. O mês era setembro. Uma
tarde suburbana do Recife.
Evitaram pisar na areia para não sujar os sapatos. To-
caram, como sempre, na campainha da casa de Be­roaldo
(e foram embora); chatearam com a empregada velha do
casarão azul; derrubaram o lixo da casa de dona Alexan-
drina; passaram em frente à casa das Meireles; e foram
esperar o ônibus na Rua Real Bandeira.
No poste de ônibus, entre poeira e sol, vizinhos, vi-
zinhas, um ou outro desconhecido. Outras pessoas para
outros cinemas. Todo mundo em traje domingueiro: rou-
pas de tropical, gabardine, linho, tubarão; vestidos de or-
gandi bordado, cássia, algodão da Bangu. Óculos escuros.
(Mães com suas filhas, tias, primos, casais.)
Vanda e Lenita aceitaram o bigu de umas amigas que
passavam numa baratinha Ford de duas cores. Despedi-
ram-se sorrindo: – “Ciao, pobreza”.
(Jatir vira os agarrados de Vanda com Manfredo e de
Lenita com Fernando. Estes, na rede do terraço. Ele até
se deitara por cima dela! Vira pelo postigo da janela do

225
Crônica de uma tarde de domingo

apartamento, mas Manfredo mesmo contara tudo, na es-


quina, à turma toda.)
– “Macaca Prenha!”, gritou Advíncula, de uma cami-
nhonete verde international que passou caindo aos pedaços.
Ia provavelmente para Goiana, como fazia todos os domin-
gos. E Jatir ficou morto de vergonha (principalmente de
seu Vito) e disfarçou que não era com ele. Mas seu Vito
estava com a mulher e a filha Vitória, ambas de cor-de-rosa,
de toda maneira lhe fuzilou com o olhar.
Estavam em cima da hora. O suor tropical começava
a escorrer na testa, nas costas, nos braços, molhando as
camisas de jérsei, as roupas de casimira. Belmiro estava
impaciente. Consultou várias vezes o relógio de pulso que
trazia na algibeira. Dois ônibus haviam passado muito
cheios. Excepcional seria pegar um táxi: – Ritz! Chega-
rem logo. De costas para o cinema fazer o pagamento,
com um certo ar de displicência. A carteira de crocodilo.
As cédulas de dez cruzeiros novas. (Nove cruzeiros... Dar
dez: – Fique com o troco. Virar-se e ousadamente cami-
nhar para a bilheteria meio à multidão alegre e colorida
da calçada resplendente de domingo.)
Nove cruzeiros... Tomaram o ônibus. Pegaram um lu-
gar bem atrás do motorista, sentados de costa para a rua.
Defronte: ela! Era uma menina quase bonita. Linda! Cheia
de vida. De vestido quadriculado e meião. De sardas e
tranças. Olhos negros, irrequietos, maliciosos. Ombros à
mostra. Nos braços, pulseira cheia de balagandãs.
Belmiro meteu os olhos. Os olhos. Fixou tímida mas
persistentemente aquele rosto insinuante e puro. Tendo
cuidado, toda vez que ela virava o olhar para o seu lado,
de desviar o seu para não ser surpreendido. Mas às vezes
não sobrava tempo. Deixava, um fiapo de instante, que
ela surpreendesse os seus olhos meio maravilhados.
Ele estava nervoso (e uma certa vergonha de andar de
ônibus). Um cabuloso mal-estar lhe beijando a espinha. O

226
Francisco Bandeira de Mello

coração intenso, as calças fazendo vinco, os sapatos mo-


dernos. As meias de náilon. Os seus olhos medrosos e ou-
sados. As mãos cheias de silêncio e gestos.
– Tem troco pra dez? (Ela está olhando, as mulheres
são menos tímidas.) Tira a cédula da carteira de crocodilo,
reclame (brinde de Natal) de Menezes & Cia. O dinheiro
trocado põe, elegante e displicentemente, na carteira de
níquel. Pagou a sua e a de Jatir.
Ela agora o pegou em cheio. Estava olhando meio
maravilhado para ela – e, por alguns instantes, aguentou
o olhar. Ela, ao que parece, sorriu. Pura, maliciosa, lon-
ginquamente. Ele foi quem desconcertou. E odiou aquele
sangue que (um pouco) lhe subiu às faces. (“Vai achar que
sou algum maricas.”) Resolveu não olhar mais.
Belmiro só agora resolvera encará-la mais claramente.
Era, aliás, a primeira vez que mostrava um interesse direto,
de frente, por uma menina. Havia cinco meses que vinha
sonhando com aquela. Quase todo domingo a encontrava
– no ônibus, no cinema, na sorveteria. Já sabia onde ela
morava: lá para os lados da fábrica. Na Praça Dom Afonso.
Raramente, no entanto, passava por lá, seja a pé ou de bici-
cleta, pois não queria que os amigos desconfiassem de nada.
Mas, quando podia, dava uma fugida por aquelas bandas, a
pretexto de ir à feira ou ao mercado de passarinhos.
Um dia a vira na saída do colégio. A sua farda, azul e
branca, superengomada; as tranças tranquilas, negras; o
brilho tênue das sardas; a pele alva; os olhos sorrindo; o
sorriso franco e malicioso; os gestos meio discretos, meio
derramados. Sempre feminina. Quando ela o viu, olhou
com um rabo de olho e exagerou a animação da conversa
com as amigas e com os dois lambretistas de óculos Ray-
Ban. Belmiro, nesse dia, fingiu um grande desinteresse
(“com lambretistas!”) e passou ao largo, também exage-
rando, com os colegas, suas risadas e gestos. De noite foi
à casa de Margot.

227
Crônica de uma tarde de domingo

Mas nunca a tivera, como hoje, tão perto tanto tempo;


vendo até o azul de suas veias sob a pele alvíssima, suas unhas
róseas, seu trancelim, seus cílios precocemente pintados.
Ficou um pouco vexado quando Jatir, para se mostrar,
começou a falar alto, tirar brincadeiras com a cobradora,
a dizer piadas sem graça: – Aceita cheque? Tem troco para
dois morabitinos?... E com o motorista: – Nessa velocida-
de vamos chegar no fim do mês!... Pode dar uma entradi-
nha aí na casa de minha avó?...
Ficou meio desapontado quando Jatir, na saída, disse
algo indiretamente para ela (“nós vamos ao Ritz”) e ela
sorriu.
Desceram. Belmiro não teve coragem de propor (nem
achou oportuno) uma mudança de programa a Jatir,
quando viu que ela não ia descer ali do ônibus, indo pro-
vavelmente ao Plaza ou ao Art Palácio.
(Jatir, na calçada, ficou olhando e rindo ostensivamen-
te para ela, com ar conquistador, e ainda lhe deu um adeus
muito florido. Para Belmiro: – Viu a bola que ela me deu?)
Não entraram logo no cinema. Belmiro foi à esquina,
comprou chocolates e chicletes. Na verdade, relutou – fa-
ria mal à sua pele e, por outro lado, talvez comprar essas
coisas não fosse próprio de sua idade. Viu uma linda me-
nina de cor-de-rosa: Madalena. Não olhou – para ela não
pensar que ele tinha algum interesse. Era amiga de suas
primas e irmãs. Mal a cumprimentou, depois, no hall do
cinema, enquanto falava distraidamente com Jatir e Mau-
ro sobre os jogos de futebol do Rio de Janeiro.
Aliás, assim é que tratava quase todas as meninas, às
vezes muito mais velhas do que ele, para esconder o que
quase todas lhe despertavam: um vago, indeciso, começo
de paixão. Era tenuamente apaixonado por quase todas
as moças que conhecia (inclusive Madalena, inclusive Le-
nita, Voleide, Suzana, inclusive Isaura, Vera e Elza). A me-

228
Francisco Bandeira de Mello

nina do ônibus, no entanto, havia muito era a sua paixão


central, pois vivia pensando nela, imaginando coisas, mu-
dando itinerários, embora hoje estivesse meio desaponta-
do/chateado por ela ter flertado com Jatir.
Entraram no cinema.
Belmiro subiu, desceu, cumprimentou. Finalmente pôs-
se bem perto de uma conhecida. Mas a certa distância. De
costas. Que ela o visse (impecável) e também notasse o seu
alheamento. Olhou o relógio de pulso (tirou do bolso). Deu
corda. Pegou a caneta Parker 51, anotou algo imaginário
na caixa de chicletes. Foi até a primeira fila, voltou, foi de
novo. Escolheu a cadeira já escolhida e se sentou. Olhou
para trás como se estivesse procurando alguém. (– “Preciso
começar a fumar.”) Achou graça quando Jatir disse “ago-
ra estou nas nuvens”, no momento em que Zezé sentou,
fazendo um fru-fru medonho com seu vestido de organza
branco, todo rodado, e ela, voltando-se rápido, respondeu
“cuidado para não cair” e perguntou como ia Margot.
Envergonhou-se um pouco com as risadas irreprimi-
das que desperdiçou durante o desenho de Walt Disney e
num short meio pateta (“Menino e Moço”) estrelado por
Ted Roney. Depois foi a fita de caubói, mas sentia dever
resistir a todas as tentações de torcer pelo mocinho. Assis-
tiu calado como gente grande. E, vez ou outra, reprovan-
do com um pchii as piadas do amigo.
Terminada a sessão, levantou-se alheadamente. Olhou
para todos os lados e deixou que todo mundo saísse: é
que Jatir gostava de repassar as filas de cadeiras vazias
para ver se alguém esquecera alguma coisa. Nada.
Lá fora, já as primeiras sombras da saudade do fim do
domingo. Novos abraços e cumprimentos, sorrisos, pulhas,
despedidas e convites. Novos chocolates, sorvetes, ônibus,
bigus. Encontros marcados para de noite e outros dias.

229
Crônica de uma tarde de domingo

Mirinho (Belmiro!) sentia-se um general perdido em


meio a uma batalha. Quase não conversou com seus anti-
gos amigos. Despediu-se até de Jatir, que arranjara uma
carona no Pakard de Suzana, e atravessou a ponte. Reso-
lutamente. Nem deu bolas para o último páreo da regata
que o Sport ia perdendo. O vento nos seus cabelos louros,
lustrosos, penteados com Glostora. Os sapatos rangendo
e brilhando. Os calos gritando um pouco. A camisa de
seda. Uma ligeira nostalgia.
(Encontrara-a pela primeira vez na quermesse do Co-
légio Regina Coeli. Era uma pessoa diferente. De sardas
e tranças, sorriso feminino. Passara a persegui-la em so-
nhos e, mais ou menos, nas tardes de domingo. Nas ma-
tinês de cinema. Ou entre as flores e fontes do Parque
13 de Maio. Agora vinha Jatir e, sem mais nem menos,
anunciava: – Está no papo, vou esperá-la amanhã na saída
do colégio!)
Na Avenida Brasil, bem na descida da Ponte Nova,
uma caminhonete tonitroava propaganda política. Dizia
que “chegou a hora da verdade” e que “o doutor Madeira
não promete, cumpre”.
(– Quanto a mim, pensou Belmiro, sou apenas uma
pessoa que ela conhece de vista. E realmente deu bola
para Jatir. Se ele chegar primeiro, certamente vai namo-
rar com ela. Pois é sempre bem-sucedido. Mas talvez ele
prefira Selma. Ou Suzana. Ou alguma das suas amigas do
Náutico. Ele vai viajar para o Maranhão?)
Estava meio chateado com Jatir – que, muito saliente,
dá em cima de todo mundo. Nem se incomoda de levar
um fora. (“Pior para ela”, diz.) Quer sempre se mostrar.
Tirar vantagem. Levar toda vez a melhor. Dentro do seu
coração, Belmiro guardava “um direito”: reivindicava tê-la
descoberto, tê-la visto primeiro. E pensar constantemente
nela. Mas quem ela preferiria? (“Certamente Jatir.”) Uma

230
Francisco Bandeira de Mello

vez a vira escolhendo maçãs e tomates na feira e ela quase


lhe sorrira; outra vez no camarote do circo Buglione; na
porta da Sloper; na Festa da Torre (saindo do Palácio dos
Espelhos); assistindo ao trote da Escola de Engenharia.
Sábado retrasado a vira, ela jogando voleibol, com as suas
pernas lindamente mariscadas. Jogava bem. Agora se ar-
rependia redondamente de ter, para se gabar, confessado
a Jatir tudo que sabia sobre ela: sua casa de varandas na
esquina da Rua Santo Aleixo com a Praça Dom Afonso, o
colégio, a missa, o voleibol e a feirinha.
Dobrou na Praça do Riachuelo. Resolutamente. Em-
bora não soubesse propriamente que tipo de resolução to-
mara, pois o fato é que seus planos reais se limitavam em
vê-la, em olhá-la fixamente, talvez sem rodeios, em sorrir
talvez, mas é claro que não pretendia abordá-la sem mais
nem menos no meio da rua. Nem noutro lugar. A não ser
que por acaso se sentassem juntos no ônibus ou na missa
ou no cinema ou se enturmassem numa festa... Quando?
Hoje, menos comedido, deixaria transparecer claramente
alguns sinais. Guardando, porém, uma porta aberta para
qualquer recuo, se necessário. (“Talvez ela tivesse dado
bola a Jatir para mostrar simpatia pelos meus amigos ou
até para me fazer ciúme”, pensou.) Agora teria de marcar
uma posição que vinha adiando havia meses. Hoje, agora,
neste instante. (Teria?)
Procurou-a, contudo, na saída do Plaza; procurou-a na
sorveteria – ela não estava. Foi apressado ao terminal do
ônibus circular Torre-Madalena para vê-la na fila. Mas não
viu. Esperou a saída de três ônibus e nada. Desde o princí-
pio, aliás, sabendo tudo inútil. (Seis e meia!) Ajeitou outra
vez a trunfa do cabelo. Resolveu ir jantar na casa dos avós.
Foi. (Suas primas Anelise e Eliane estavam lá.) À avó, para
o aniversário, pediu umas luvas de boxe. Ao invés do vio-
lino e do livro de música que ela queria lhe dar. (Ao pai,

231
Crônica de uma tarde de domingo

quem sabe, uma bicicleta nova, de pneu balão, para pas-


sar em frente da casa dela, pois Jatir não tinha bicicleta.)
Lá sua tia Anunciata, como sempre, elogiou os seus “belos
olhos”. No que foi alegremente acompanhada pelas pri-
mas. (Bom, pediria também ao motorista do seu pai para
passarem em frente à saída do colégio dela, no seu carro
velho, mas ainda bonito. “Ao passarmos, lhe darei um sim-
pático adeus e até poderei oferecer uma carona, a ela com
as irmãs.”) Em todo caso, se ela não estiver namorando
com Jatir, esperarei pelo próximo domingo.

232
As escravas1
Francisco Julião

Chica Beque não ia. Ali, na porta da venda, fazia finca-


pé. Alguém, condoído, não dela, mas de ver o filho, Ro-
mão, um molecaço de pés de espalha-brasa, a chamá-la,
com voz humilhada, vinha ajudá-lo.
– Vai timbora, Chica. Vai curtir em casa essa danada!
Chica tinha sempre um palavrão cabeludo que provo-
cava risos. Teimava, ciscava o chão com as unhas, num ar-
rastado mole, dava um tombo, tornava a equilibrar-se, sem
apoiar-se em nada, não se sabe como. A mandureba es-
canchava-se-lhe no cangote e zombava de tudo. Chica era
assim: sisuda e calada quando não bebia, mas se molhava
a goela, ficava importuna e malcriada como os seiscentos
diabos. Os olhinhos cinzentos e inexpressivos perdiam-se
sob as pálpebras empapuçadas, e mal se notava o piscar. A
carapinha, que ela enrolava num pano encardido e esmo-
lambado, à maneira de turbante, era um ninho de piolhos.
Chica gostava dos bichinhos, das suas dentadas no casco.
Entubibada de cana, a piolhada aquietava-se, adormecia,
gozando, deliciosamente, as emanações que subiam à ca-
beça de Chica e se destilavam no suor. A cara de Chica, de
um preto cinzento e sem brilho, amarfanhada, como uma
fazenda que desbotou ao sol, abriu-se num sorriso de den-
tes agudos, sujos, de gengivas cor de chocolate. Toda ela

1
Título original: As escravas e filhas de escravas que, à semelhan­ça do
milagre bíblico, transformaram cachaça em leite, para alimentar os seus se-
nhores.
As escravas

era uma máscara que não exprimia dor nem cinismo, mas
antes indiferença e desprezo. Magra, de cotovelos agudos,
sem vestígios dos seios, as canelas secas, duras, as mãos
calosas e grandes, os pés zambetas, Chica ia arrastando o
seu fardo, sem queixa. A vida, para ela, resumia-se num
copinho de “suor de cana torta”, desde que acertou com
a venda e se deixou arrastar, seduzida, sem forças, pelo
primeiro trago. Essa paixão pela “sinhazinha”, como cha-
mava ela, com ternura, começou na mesma noite em que
perdeu Neco Beque. Chica ainda estava taluda, cheia de
corpo, de peitaria robusta, capaz de tirar uma “conta” no
cabo da enxada, de uma vez, sem arriar.
Quando Neco trouxe Chica pelo braço da matriz de
Queimadas, onde o reverendo Serafim os unira, com a ne-
gralhada a segui-los e a dar vivas, ninguém pensaria que a
pobre por dentro vinha chorando. O remorso, como um
cupim, roía o seu coração desde o momento em que os dois
se levantaram do altar. Que iria acontecer quando Neco
soubesse de tudo? Matá-la, não mataria. O negro era man-
so, sem bravata. Mas poderia entregá-la aos pais, encher o
eito, o mundo todo: “Ela me enganou. Não tava inteira”.
Seria o diabo. Os pais não a receberiam mais, os irmãos
também. Ela teria de deixar aquela terra, de arranjar um
homem, de ficar conhecida... Chica tinha-se deixado levar
por um mulato de sorriso dengoso, de voz quieta, de gestos
lentos, preguiçosos. Fora um feitiço, uma zelação que lhe
passou na vista. Ela viu o caiana, ficou presa como passa-
rinho no visgo, seguiu-o fascinada, deixou-se envolver nos
seus braços, ficou embriagada com o seu cheiro. Agora,
quando Chica se lembrava dele, tinha uns laivos de tristeza
na voz, no pergaminho do rosto, uma nesga de saudade.
– Como era ele, Chica?
Ela sorria e repetia sempre a mesma coisa.
– Ele era assim cuma aguardente de cabeça. Tinha o
cheiro da “virge” quando sai do alambique.

234
Francisco Julião

O mulato era violeiro. Não tinha pouso. Dentro daque-


la viola ele carregava o coração de quanta negrinha, quanta
mulata sarará e uma ou outra branca, de cabelo estirado,
cruzassem sem querer o seu caminho. Ela também foi na
enxurrada... Foi contente, feliz, até o dia em que viu partir
o safado com as cordas da sua viola ainda úmidas das suas
lágrimas. E Chica despertou, quis segui-lo, perdeu a cora-
gem, tomou-se de medo de ficar perdida. E ficou... Ficou
mesmo sem ir atrás daquele demônio. Não mais o viu, não
mais teve notícias dele. Era preciso machucar aquela sauda-
de, apagar aquela chama. Era preciso esquecer. E danou-se
a sambar. De retraída que fora, surgiu de repente de pés
irre­quietos, de ancas buliçosas, um cravo no cabelo, jogan-
do umbigadas, despertando as energias em toda a sua bru-
talidade, gozando e sofrendo. Foi numa dessas umbigadas
que ela viu os olhos gulosos com que Neco Beque a devo-
rava. Aceitou o desafio, por desabafo, por vingança, como
se assim pudesse desforrar-se do outro que se fora. Enga-
nou a si mesma, pondo um emplastro por cima das feridas,
numa tentativa inútil de estrangular o bicho que fizera nela
a sua toca... De noite, queimada pela febre, com falta de ar,
sentindo o cheiro ativo das próprias carnes, esgueirava-se,
silenciosa, até a porta do copiar, abria-a sem fazer baru-
lho e ia refrescar-se com o hálito que vinha dos canaviais.
Aquele murmurejo tinha qualquer coisa de parecido com
os soluços da viola do seu ingrato. Aquelas estrelas tão dis-
tantes fascinavam-na como se fossem os olhos dele. A noite
mal iluminada, com um resto de lua se acabando por trás
dos pindaís da serra, até a noite parecia o diogo do mulato,
macio, dengoso, chorando de mentira perto dela. E quan-
do dava fé, Chica ia vagando ao léu, falando baixinho para
uma sombra que ela sentia no seu pé.
Foi assim que foi pedida. Foi assim que se casou.
E quando se viu a sós com Beque, tendo de aceitar os
seus carinhos, tendo de justificar-se depois que ele notas-

235
As escravas

se tudo, deu-lhe uma veneta, uma vontade de maltratá-lo,


desse no que desse.
– Nego besta, você não sabia que eu estava desgraça-
da?
Beque não sabia de nada. O diabo é que ele experi-
mentava uma alegria secreta com os modos bruscos com
que Chica o tratava. Foi-se habituando aos seus maus-tra-
tos, às suas respostas. Fora-se deixando vencer por ela, a
ponto de temê-la, de adorá-la.
– Eu sabia…
Neco Beque relaxou-se.
– Pois é... Tou desgraçada. Se quiser, é desse jeito...
Ele pensou que ela pudesse abandoná-lo.
– Ora, Chica, eu te quero assim mesmo…
Foi pior para Chica. O remorso que lhe roía o peito
transformou-se em raiva. Ela esperava uma cena violenta.
Ela queria o escândalo. Quem a desgraçou? Todos que-
riam saber. Chica gostaria de dizer, contristada, mas, no
íntimo, banhada de orgulho, que fora o mulato violeiro.
Os homens invejariam o violeiro porque ela era enxuta e
nova. As pareceiras invejariam Chica. Falariam dela…
Mas tudo findou como findou. Neco Beque virou um
molambo nas mãos dela. Sua raiva por ele foi-se afogan-
do, com o tempo, na indiferença. Houve filhos. Mas, en-
quanto se mostrava contente, Chica vivia oca...
Tratou, ela mesma, de espalhar a sua desgraça. Neco
Beque, no começo, não sentiu aquilo, mas depois que o
povo começou a dar com a língua o negro foi perdendo o
gosto da vida. E deu para tomar uns tragos... Chica che-
gou a ameaçá-lo de abandono, mas ele não deixou a tro-
aca. Também não durou muito a paixão de Beque. Num
dia de domingo, de tardezinha, entubibou-se na porta da
venda junto com dois companheiros. Zé Grosso, um de-
les, com fama de valentão, cochichou qualquer coisa no
ouvido do negro. Beque ainda perguntou:

236
Francisco Julião

– É sério ou é conversa de bebo?


Zé Grosso bateu no balcão.
– Bebo, não! Quem tá bebo é você.
– Pois tá certo. É nói doi... seu cuia.
– Se eu sou cuia, você é gaiudo…
Beque ia replicar quando ouviu uma gargalhada explo­
dindo de todas as bocas. Ainda pôde pensar consigo: “Tô
perdido”. Avançou pra Zé Grosso, atracaram-se os dois.
Houve uma estupefação ante o seu gesto. Neco era man-
so. Quiseram apartar.
– Bobage! Briga de bebo. Não tem o que vê...
Mas luziu uma quicé. Não. Era um punhal. Os dois
tinham rolado de calçada abaixo. Neco agarrou no pulso
de Zé Grosso. Quis tomar-lhe o ferro. Sentiu que lhe falta-
vam as forças. Zé Grosso ia furá-lo. Neco gritou:
– Zé Grosso, me fura!
Um terceiro acudiu, tomou o punhal de Zé Grosso,
apartou os dois. Todos agora queriam conciliar. Alguém
recomendou:
– Bota essa gente no caminho.
Um sujeito mais jeitoso quis juntá-los. Neco entregou-
se, aceitou o convite, quase chorando, amolecido. Chegou
a comentar: “Zé Grosso é do peito”. O outro embirrou,
mas cedeu, e, agitado como um galo de raça, pediu fosse
selado o ajuste com um trago. Travou-se uma porfia.
– Venha de lá...
– Você, primeiro...
Tá certo. Eu bebo, mas sou é home...
Tomou o trago de uma vez, bateu com o copo no bal-
cão, fez uma careta, cusparou no chão, aos pés do outro.
O demônio estava nele. Gritou pra Neco:
– Conheça, nego...
Neco não chegou a emborcar o copo. Tornou a par-
tir. Agora podiam brigar. Não tinham armas. Rolaram de
novo.

237
As escravas

– Aqueta, gente!
– Manda chamar o inspetor.
– Deixe os “meninos” brincar; pediu um velhote cabe-
ludo que mal se mexia de seu canto.
Sem que ninguém pudesse acreditar, viu-se, num re-
pente, Zé Grosso desembaraçar-se de Neco e empinar de
rampa abaixo. Neco seguiu-lhe atrás a gritar-lhe “Cuia,
caco…”, quando o outro se agachou, deu de garra de
uma pedra e descarregou-a com toda a força na cabeça
de Neco. O negro deu um urro, andou dois passos e caiu
como um molambo velho. Zé Grosso avançou outra vez
para a pedra, mas antes que pudesse esmigalhar o negro,
foi desarmado e preso. Zé Grosso começou a chorar como
um menino quando espiou e viu Neco estrebuchando com
a cara lavada de sangue. Quiseram destampar a cabeça de
Zé Grosso com um tiro. Houve interferência de todo lado.
Zé Grosso foi pendurado pelos braços numa gameleira, e
quando o inspetor chegou, já estava de munhecas incha-
das e sem forças para pedir misericórdia.
Neco seguiu num banguê pra casa. A pedra destambo-
cou a cabeça de Beque, do miolo aparecer, espumando no
sangue. Não deu mais sinal de vida. Juntou gente pra re-
zar na casa do turuna. Chica não sentiu grande dor. Neco
guardava na camarinha um cabaço cheiinho de mandure-
ba para as eventualidades.
Chica distribuiu a droga com os presentes. Todos fi-
caram tocados. Ela encheu-se também para afogar a má-
goa. Pelas tantas, quando estava aos tombos, abraçou-se
chorando ao cadáver de Neco, arrependida de tudo o que
fizera com ele.
A madrugada veio encontrar toda aquela gente entu-
bibada de cana, rouca de berrar rezas macabras, terríveis,
por entre goles e mais goles de truaca. Quando a rede
saiu, Chica não viu. Dormia como um tronco. Mas os mo-

238
Francisco Julião

leques, de olhos espantados, espiavam para aquilo tudo,


ainda mal desfeitos.
– Pronde vão levar pai?
Uma negra velha, de braços cansados de pegar nos
meninos dos outros, enrolou os negrinhos na saia e disse
apontando para o céu onde ainda havia uma estrela se
apagando:
– Ele vai praquele canto.
Chica só guardou de toda aquela tragédia uma grata
recordação: a cachaça. Neco tinha razão: não era tão má
a mulatinha. Sabia fazer cócegas de goela abaixo: tinha
umas carícias quentes, batia no bucho, tornava a subir e
ficava o tempo todo na cabeça. Chica precisava esquecer.
Não era Neco. Não era o outro. Não era nada. Foram-
lhe perdoando as carraspanas. Ela tinha precisão daquilo.
Depois voltaria ao que era. Mas não voltou. Chica tomou-
se de uns amores por sinhazinha, e todo o tempo em que
podia era pra amá-la.
– Deixa disso, Chica.
– Tou puigando os pecado…
Neco deixara algumas economias. Ela reduziu tudo
a cana. Fez-se sujeita do destilador do engenho só para
afogar o vício. Todos os dias, o velhote, que não tocava
naquela perdição, levava, com a boquinha da noite, uma
garrafinha cheia pelo gogó. O destilador era um artis-
ta que já sabia calcular pelo cheiro o grau da pechincha.
Apostava e ganhava sempre. O homem tinha um faro de
cachorro. Chica só queria dele a preciosa. Em troca, dava-
lhe os seus afagos violentos, alucinados. Mas descobriram
o segredo daquela união. O destilador recebeu as contas e
não quis levar Chica consigo. Sumiu. Chica chorou aquela
perda como se fosse um fim de mundo.
Esperou pelo outro destilador, mas perdeu o tempo
dela. Por fim, no auge do desespero, deu pra furtar, pra

239
As escravas

pedir. Mendigou pelos caminhos, enamorada da mais re-


pelente criatura que levasse debaixo do braço uma gar-
rafa cheia de imaculada. Os moleques foram crescendo,
foram tomando conta da casa. Davam a sujeição no eito,
garantiam a morada. Tinham pena da negra, mas não se
opunham a que ela se embriagasse. Da primeira vez que
o fizeram, Chica teve um ataque que a pôs como louca, de
olhos esbugalhados, de boca espumosa, com a saliva gros-
sa. Viram-na correr doida, praguejando, aos gritos, por
um trago. Deixaram-na de mão. Chica deu pra vagabun-
da. Ia às feiras, goderava nas portas das vendas, deixava-se
escravizar até por um mendigo que lhe garantisse o copo
de cada dia, fazia as tarefas mais repugnantes, contanto
que matasse a sede que lhe consumia o corpo todo...
Um dia, ela não voltou da feira. Esperaram pelo outro
dia. Ela não veio. Os moleques, alarmados, deram uma
busca. Ninguém soube dar seu paradeiro. Voltaram tristes.
Não teriam mais com quem lidar pelas portas das ven-
das, pelos botequins das novenas, pelos caminhos, quando
havia luar, ou mesmo em noites escuras como breu, com
o céu desmanchando-se em água, com a lama escorrega-
dia e pegajosa onde Chica se esparramava e de onde, feliz
como uma porca, não queria mais sair. Houve ainda quem
desse dela uma outra notícia vaga, incerta, distante. Tinha
sido vista esmolando na feira do Surubim. Andava para os
lados das Vertentes. Descera num caminhão, de mãos ata-
das, furiosa como um cão danado, de carapinha desgre-
nhada, de sorriso idiota, aos berros, para o asilo. Sumira
para sempre. Ninguém soube mais dar notícia de Chica.

240
Josias e a Imperatriz
Gastão de Holanda

Josias plantou-se à beira da calçada, ao lado de uma


negra que se benzia a toda hora, e de cujas mãos pendia
um rosário de contas negras. Aguardavam ansiosamente
que a procissão despontasse como um caudal. A multidão
estava inquieta e os sinos repicavam festivamente. Falava-
se, gritava-se, enquanto os inspetores, de apito na boca,
acabavam de desviar o tráfego, com gestos apocalípticos,
como se quisessem transformar a rua comercial numa es-
trada evangélica. Todo o mundo se acotovelava à beira
das calçadas, rezando, gritando, rindo, sem a compostura
que exigia o santo feriado.
Josias esperava encontrar a Imperatriz, identificá-la
na multidão dos fiéis. O sino gigantesco tinia nos seus ou-
vidos tão sensíveis às melodias apaziguadoras da noite. O
sino largava o balado bem na cabeça de Josias, que olhou
para a torre da igreja e viu quando o bicho apareceu do-
brando, desapareceu em seguida, para inundar o espaço
vespertino com o ribombar de um trovão. Era um sino do
tamanho daquela porta imensa, pesadona, que daria pau
para construir um armazém. De vez em quando Josias re-
cebia uma cotovelada da velha rezadora. As mulatinhas
que lhe chegavam aos calcanhares, cheirando a brilhan-
tina empurravam Josias docemente, até que ele perdia o
equilíbrio e descia a calçada. O calor subia, o suor empa-
pava a camisa preta, de listras amarelas e brilhantes. A
procissão ainda não havia aparecido na ponta da rua e já
gritavam lá detrás, como se Josias estivesse num cinema:
Josias e a Imperatriz

– Tira o chapéu, quizila!


Ele amarfanhou o chapéu de abas largas. Tudo iria
bem se ele descobrisse a Imperatriz naquele mundo de
gente maluca. As mulatinhas xingavam as pessoas que
disputavam um lugar melhor na rua santificada. O cheiro
de cravo, forte, persistente, misturado à catinga do suor,
vinha não se sabe de onde, enjoava Josias, já atordoado
com as cotoveladas e o ribombar do sino.
A sirena das motocicletas silenciou a multidão que se
comprimia nas calçadas. Logo depois, surgiu o estandarte
purpúreo da altura de um sobrado, que tapou a entrada
da rua, quase atingindo a fiação elétrica. A seta dourada
do mastro parecia querer atingir as nuvens e o puríssimo
azul. Um homem alto e pálido como um sírio, transporta-
va a preciosa bandeira com a afobação de um predestina-
do. Quando repousava, tirava de sob a bata púrpura um
lenço branco, enxugava a testa enrugada pelo orgulho e
consultava os quatro irmãos que estavam ligados à ban-
deira por um cordel dourado.
Josias murmurou:
– Só pode ser um veado.
Ele sabia que as porretadas cantavam como se sua ca-
beça fosse o bronze de um sino. Mas a Imperatriz não tar-
daria a aparecer. Surgiram as Irmandades, cada qual com
o seu hábito, a sua contrição e o seu hino piedoso. Tudo
olhando para frente ou para o céu. As vozes delicadas e
juvenis misturavam-se aos guinchos das velhas. Entre os
dois cordões, marchava um bando de anjos sorridentes,
o azul e o branco do céu nas asas, uma festa de plumas
e lantejoulas. O céu desfilava na frente de Josias, que só
tinha olhos para o ideal de sua mulata. Ela disse que gos-
taria de desfilar com uma fantasia daquelas, só por farra.
Pelo visto, não conseguiu. O desfile prosseguia... Se não
conseguiu a roupa de anjo, pelo menos viria acompanha-
do de promessa, aquela extravagância.

242
Gastão de Holanda

Passou o andor, carregado pelas autoridades munici-


pais e líderes católicos, que gemiam sob o peso da ima-
gem. Mal se via a escultura cambaleante do Cristo, sufo-
cado pela floresta de lírios brancos e orquídeas roxas. Do
gigantesco ramalhete confeccionado por mãos piedosas,
só emergia a sofrida cabeça coroada de espinhos e o sa-
grado lenho que apontava o céu como uma advertência.
Até que o pálio também dobrou a esquina. O incen-
so inundou o ar viciado da rua e Josias tossiu de raiva,
porque a multidão que se acumulara atrás do sobrecéu
eliminaria qualquer possibilidade de encontro com a Im-
peratriz. A multidão roncava abafando os compassos mu-
sicais da banda militar. Aproximou-se como uma torrente
esmagadora, indomável.
O padre, todo dourado e circunspecto, carregava a sua
custódia, indiferente ao furor da crença popular. Entre
recreio e fé, um homem alto, que cobria o peito com o
chapéu, foi identificado como sendo o governador. Josias
parecia boiar entre ondas de humana consistência.
– Ajoelha, peste!
Neste momento, Josias distinguiu a cabeça da Impera-
triz, logo atrás da orquestra. Então sentiu dois braços de
mulher que o cingiram pela cintura.
– Me larga, peste!
– Se eu não te agarro, eles me atropelam – disse a mu-
latinha.
Josias deu um safanão na mulatinha, que não caiu por-
que não havia espaço livre. Ele gritou, mas foi arrastado,
misteriosamente ajoelhado, como quem afunda, voltou à
tona num esforço tremendo, vislumbrou novamente a ca-
beleira familiar que se afastava e outra vez foi envolvido
pela impetuosa torrente. Deixou no ar um grito rouco e um
gesto desesperado, que não atingiram o objetivo. Quando
emergiu, a onda tinha passado, carregado a Imperatriz e
a rua esvaziou-se por encanto. Procurou a mulatinha para

243
Josias e a Imperatriz

lhe dar um pontapé na ilharga, mas até ela se havia escoa-


do, com o povo que se comprimia nas calçadas.
Josias encontrou-se desolado, arrimado a uma árvo-
re, o sino baixando o balado na sua cabeça descoberta e
úmida, o chapéu amassado entre os dedos. Era a imagem
da desolação e da descrença. Por algum tempo cultivou o
seu ódio, praguejou, acendeu um cigarro amarrotado. Ele
ficava no remanso, enquanto se ia a Imperatriz levada por
aquele mundo de incenso e música de enterro, sorrindo,
apalpada pelos beatos, com o mesmo estado de espírito
com que se acompanhava uma troça carnavalesca.
– Peste! – exclamou.
Passada aquela espécie de naufrágio, que o fez perder
a mulher, descansou num bar até que a noite chegou. As
pensões do bairro começaram a escancarar as janelas e da
rua se viam as bandeirinhas cortadas em M, que enfeita-
vam os tetos. Passou na Gruta do Pitu, já noite profunda.
Subiu também, ali, pela escadinha de degraus corroídos.
– Tem alguém no salão?
– Tem sim, meu filho.
A luz espantou a mulher que dormitava sobre a única
mesa da acanhada peça.
– Pensando na vida, minha filha?
A mulher não respondeu e saiu ofuscada pela clarida-
de. A paisagem exterior, torres de igrejas e uma infinidade
de pequenos telhados, onde o musgo e os detritos compu-
nham uma cor indefinida, entristeceu Josias. Ao alcance
da vista, só os telhadinhos remendados e as cumeeiras.
Canos, respiradores, antenas, surgiam e mal se sustenta-
vam nas vigas carcomidas ou na alegria das mulheres. Por
detrás dos telhados estava o mar. Josias sentiu o cheiro da
salmoura. Na brisa suave procurou descobrir o paradeiro
da Imperatriz. “Mato-a” – exclamou.
Entravam os primeiros fregueses.

244
Gastão de Holanda

– Como é que você se chama?


– Sônia Pereira de Carvalho
Toma uma cervejinha aqui com a gente.
– Você usa saia demais.
– Menos a verdade. Veja isto!
Foi quando Josias não suportou mais o pantim daque-
las mulheres e desceu. Os amigos convidaram-no para
jantar. Não aceitou logo.
– Não tenho apetite.
– A mulher te mata, Josias. Alimenta essa caveira.
– Ora, você não me compreende.
– Mas venha sempre.
– Volto já.
Ainda perambulou por algumas horas. Cruzou alguns
jardins, onde as canas-da-índia floriam nas várias tonali-
dades do vermelho. Marginou o rio, atravessou as pontes
sem perturbar o sono dos vagabundos. Lembrou-se da
mãe costurando em Brasília Teimosa e apanhando maris-
co na lama do Capibaribe, com as suas vizinhas armadas
de latas e uma multidão de crianças. E pelo amor penava.
Voltou ao bairro. Nas portas dos armazéns de miudezas,
os rapazes haviam deixado para os turcos a cerveja des-
tilada. A escura mancha de urina descia a porta, calçada
abaixo. Um ou outro guarda-noturno cruzava a rua, sem
dar ouvido ao discurso dos bêbedos.
Aí Josias lembrou-se do primeiro dia. Dia terno, outo-
nal. As cigarras não cantavam mais quando ele viu a Impe-
ratriz pela primeira vez. Os oitizeiros do arrabalde come-
çavam a perder a velha folhagem. A Imperatriz tinha ido
visitar a sua mãe. Ele se lembra da camada de lodo avelu-
dado, um verde luminoso da árvore, que manchou o ves-
tido da amante. A Imperatriz vinha ressuscitar a própria
natureza, com um passe de mágica que Josias ainda não o
conhecia. Pegaram na conversa na parada do ônibus.

245
Josias e a Imperatriz

– Ora, você não me compreende – disse ela, depois de


algum tempo.
Resolveram ir andando na tarde outonal, margeando
a várzea do crespo Capibaribe. O vento atapetava as ruas
com folhas mortas. Passaram pelo museu quando a intimi-
dade ia adiantada. Nunca havia entrado num museu.
– Vamos ver o que é isso – pediu ela.
– Velharias.
– Vamos ver assim mesmo. Não tenho pressa.
Entraram sob o olhar suspeitoso do guarda. E come-
çaram a circular entre os cristais do Império, entre paisa-
gens de pintores mortos. O guarda abandonou-os. Eles
subiram. Aí já estavam de mãos dadas. Josias recorda. De-
ram com um quadro da altura de uma parede.
– Quem é aquela?
– Deve ser a Imperatriz. Você tem o mesmo penteado.
Ela sorriu vaidosa. O silêncio tomava conta do museu.
Nem sombra do guarda ou inquisidor funcionário. Josias
tomou-a pela mão e, levantando o cordel que defendia a
mobília imperial, sentou-se com ela no sofá.
– Esse sofá não aguenta. E além do mais parece o sofá
do Imperador.
Mas obedeceu, trêmula. Abraçaram-se.
– Nem te conheço direito...
O vento passava entre os prismas de cristal que pen-
diam do teto e uma doce música espalhava-se pela sala
reluzente. As fisionomias carrancudas dos retratos eram
um protesto contra a profanação da história. Dois desa-
justados atracados sob as bochechas de dom João VI. O
sofá estalava nas suas perninhas finas. O estofo dourado
cedia ao movimento dos jovens amantes. Depois voltaram
a ouvir a música dos cristais.
Ainda deram uma volta pelo jardim, pisando os grave-
tos e as folhas secas.

246
Gastão de Holanda

– Agora me leva ao cilembra.


Josias entendeu que a Imperatriz gostava de cinema.
E até hoje não larga a mulher. Faz sua ronda, visita os
mesmos lugares noturnos, janta com os amigos e retoma
a noite nas mãos...
O pátio de São Pedro, antiga sesmaria recifense, dian-
te de Josias e dos seus amigos, parece uma velha horta de
pedra. O lajedo baço é o jardim dos sobradinhos de vidra-
ça batida, que parecem acanhados com a autoridade da
igreja barroca. Josias continua de mau humor. Pensa em
derrubar todo aquele pátio noturno, de silenciosos covis,
sem saber que desvendará a velha Irmandade de hábito
púrpura, que deliberava no tempo dos vice-reis, que cons-
truía os templos, e hoje lidera as procissões. Tantos anos
se passaram para que o tempo nascesse aos poucos, ma-
jestosa gameleira que extinguiu um século para construir
a sua sombra. De uma antiga horta plantada na Rua das
Águas Verdes. Gameleira de pedra, que cresceu augusta
e lenta, até projetar o seu campanário ao sul do pátio,
diante de uma horta de pequenos sobrados enrugados.
Cornijas desgastadas pelo tempo, miúdo comércio, irre-
verente boemia.
O moço blasfema como se quisesse atingir a Irman-
dade sepultada sob as lajes do templo. Sente a carne de
sol roncando no estômago, ronco de boi seco, secando
espetado nas varas de Araripina. Pensa na sua Imperatriz.
A mulher caprichosa que vive a escamotear-se entre os
homens do bairro e a paisagem do Recife.
– Isso é a melhor brincadeira do mundo, não é, meu
filho? Agora me leva ao cilembra.
Quando ela desaparece, como agora, a vida de Josias
é um langor de séculos e o seu desejo voa para a Rua das
Águas Verdes, ou beco, estreita e equilibrada por milagre.
O desejo voa, Josias atrás dele, para as margens relva-

247
Josias e a Imperatriz

das do Capibaribe, onde a Imperatriz costuma passear de


braço dado com suas amigas. A predileção até aí é uma
norma. Entre os anúncios luminosos, se escolhe, se mede
o corpo que desfila à margem do rio, aí se encontra o
sorriso do adolescente e a oferta. Aí o amor é disponível,
oferta e procura, entre os bancos de pedra e o apaziguar
da corrente iluminada, o mel da noite.
No pátio, um hálito quente se eleva das pedras. Diante
dos três rapazes, os copos de cerveja esperam, murchan-
do a espuma.
– Como fez calor na rua – disse Laudelino, descorti-
nando a sua dentadura panorâmica. Um sorriso que é o
abrir de um pano, um cenário.
– Cheguei em casa fedendo a queimado – falou o ama-
relo Gumercindo, autor do samba “Véu e capela”.
– Afinal, vocês vão ficar bochornando? – perguntou
Josias. – Eu não sou boneco de exposição. Dou o fora.
– Acaba pelo menos a cerveja.
– Vocês não me compreendem.
Josias só pensava na Imperatriz. Depois da procissão,
devia estar acuada em algum canto da cidade, olhando o
tempo com os seus olhos noturnos e os homens cercando.
A mulher tinha de um tudo em seu mistério, mas valia a
pena, pois se destacava das outras em corpo e linhagem.
Gumercindo cantarolou:
“Lalá casou de véu e capela,/ Como qualquer moça sol-
teira”.
– Vocês ficam? – perguntou Josias.
– Fica-se pensando numa saída, sem briga. Não pinga
nada?
– Ora, vocês não me compreendem.
Farejou a Academia da Rua das Hortas. Não paravam
nunca, as mulheres da Academia. Uma contradança atrás
de outra contradança. Encontrou-se com Narciso, o ve-

248
Gastão de Holanda

lho que bailava horas a fio e que gastava o salário inteiro


de mestre de obras, dançando. Quando Narciso vinha à
mesa para refrescar-se no lenço perfumado ou no copo de
cerveja, de costas para o ventilador, continuava a marcar
o passo com os seus passos e com os ombros musculosos.
Solfejava frequentemente.
– Construo casa de dia e danço de noite. Aceita uma
cervejinha?
– Com prazer. Viu por acaso a Imperatriz?
– Nem sombra até aqui – disse o velho, tomando o seu
gole.
Para não pensar em se matar, depois de matar a Im-
peratriz, Josias tomou uma dama nos braços e arrastou-se
com algum estilo.
– A que horas vai ser, filhinha?
– Somente às três. Seu Aníbal não deixa a gente sair
antes. Você sabe.
– Também essa orquestra nunca para. Chega dá um
zumbido no ouvido da gente. Ainda estou zonzo com o
sino da procissão.
– Você é católico?
– Sou.
– Acredita em inferno?
– Acredito. Mas vamos conversar sentados.
– Seu Aníbal não quer. Só quando morre uma da gen-
te, ele manda fazer cinco minutos de silêncio. Depois, a
orquestra toca para frente.
– Quer dizer que não adianta lágrima?
– Um homem desse é que merece o inferno.
– Acredito.
Josias tomou cerveja nas costas do velho Narciso e saiu
com a nova amiga pela mão. Lancharam num boteco, ele
pagou as despesas. Desceram a Rua Direita. Subiram as
escadas de um pardieiro que fedia a mijo, no Pátio do

249
Josias e a Imperatriz

Terço. Sentado num corredor estreito, ele teve de esperar


que a mulher ajeitasse o quarto de tabique. Outras dan-
çarinas moravam no mesmo cortiço e tinham para ele um
olhar de mel e simpatia. Algumas lhe dirigiram a palavra,
contaram-lhe mágoas.
– O senhor sabe, mulher deve ter vergonha. Por mim,
eu só recebo no meu quarto o homem que eu gosto.
Ouvia-se também uma conversa baixa, renitente, den-
tro do quartinho de tabique, onde desaparecera a dama
de Josias. Mais tarde, uma velha apareceu esfregando os
olhos, para melhor enxergar o fantasma que ia dormir
com a filha. Tinha uma aparência infeliz e desapareceu
com dificuldade no fundo do corredor. A dançarina rea-
pareceu. – Venha, meu filho, o quarto está pronto.
Entrou como se entrasse num caixote. Ao lado da cama
de casal, que ocupava quase todo o quarto, havia um berço
e dentro do berço uma criança pálida, de poucos meses.
Seus olhinhos espantados cravaram-se em Josias.
– Tem quatro meses a bichinha. É por isso que estou
com os peitos tão carregados de leite – disse a mulher,
despindo-se.
O rapaz forçou uma carícia, amaldiçoando a Impera-
triz. A mão dele, vacilante, estendeu-se sobre a cabeça da
criança. Ela sacudiu os braços e as pernas, livrando-se do
cobertor listrado de azul. Um cheiro morno, ácido, de fe-
zes, espalhou-se pelo quarto.
– Ela está sujinha – disse a mulher. – Tenha paciência,
meu filho. Deixe-me primeiro limpar a bichinha.
A menina continuava a olhar para Josias, como se es-
tivesse reconhecendo nele um pai. Sorriu. Brilharam os
seus olhos negros, enquanto a mãe despejava água no ba-
nheiro pegado ao quarto e dissimulado por uma cortina
de estopa. Josias abriu a porta procurando não fazer ruí-
do e fugiu, levando consigo o sorriso da criança.

250
Gastão de Holanda

A noite lá fora doeu-lhe no coração. Estava imensa,


profunda, entre as cornijas dos sobrados. As águas-furta-
das pareciam querer soterrá-lo junto com a lembrança da
amante, enquanto uma luz se apagava no sótão inclina-
do para o beco e um choro de criança, como um miado,
anunciava a sutil aproximação da aurora.
Quer dizer que a jornada de Josias estava terminan-
do. Ele se lembrou que a Imperatriz costumava dar umas
voltas pela pensão que fica atrás do mercado. Pensão que
toca os seus discos prediletos. Onde o fartum de galinha
ultrapassa as grades do mercado, quando os garajaus se
acumulam na escuridão dos corredores. “Se ela está na
orgia, eu mato.”
Os galos cantavam lá dentro. Uma única lâmpada
como estrela solitária e prisioneira das grades, iluminava
o comprido e imundo corredor. Josias se pergunta por
que a noite o transforma numa espécie de vampiro. Dor-
me de dia e o dia, com sua claridade, afugenta os pensa-
mentos. A noite os multiplica até que das sombras surja a
ideia absurda da morte. Não há tristeza mais profunda do
que a tristeza que nasce do amor. E Josias a sente em toda
a sua intensidade.
A música do sobrado havia-se extinguido. Só os galos
cantavam espaçadamente. Um canto que exigia o espaço
infinito de uma planície. Josias consultou as estrelas, com
um olhar de esperança. Elas brilhavam entre a folhagem
dos fícus.
Mais adiante, um vulto sentado à beira da calçada que-
brada pelas raízes. Um vulto diáfano, quase imóvel. Era
a Imperatriz e sua solidão. Josias quase gritou de alegria.
Conteve-se, porque não se deve dar tanta asa a mulher.
Sentiu ainda os braços da mulatinha, que o detivera na
procissão. Mal se aproximou, contendo uma exclamação
de amor, a Imperatriz puxou-o delicadamente pelo braço

251
Josias e a Imperatriz

e forçou-o a sentar-se ao seu lado. Tinha os olhos fixos na


calçada oposta. A noite tomou a forma de um arco e Josias
encontrou-se em um dos seus extremos.
– Olha. Repara como eles são engraçados.
A fala quente de mulher varou a noite adelgaçada. Jo-
sias não viu nada.
– Repara – disse a Imperatriz graciosamente.
Jogou para a calçada oposta um pedaço de pão. Logo
os ratos se movimentaram com extrema rapidez. Vinham
de todos os lados, como acontecia em dia claro com os
homens que frequentavam o mercado. Do esgoto, do
meio-fio, das raízes, da escuridão. Apareciam vorazes,
atiravam-se sobre o pão e brigavam, estraçalhavam-se,
enormes, negros como a calçada negra e a noite negra.
Mas só eram vistos quando riscavam o chão, aos pulos,
ridículos e asquerosos. Josias fez uma careta, repugnado
com a convivência dos bichos. Tinha a impressão de estar
entrando num esgoto.
– Como os ratos me divertem. Olha.
Jogava outro pedaço de pão. Josias acompanhava a
trajetória da migalha, que descrevia uma parábola sobre
as pedras da rua, caía, rolava, os ratos negros com ela,
estraçalhando-a, aos guinchos e pulos. Pareciam nascer
da laje fosca e negra como eles, como se fossem de pedra
e lixo. O amor venceu a repugnância e passou a divertir o
homem também.
– Me dá um pedaço de pão – disse Josias.
Jogou-o. A brincadeira começava a interessá-lo, a ali-
viar o coração debilitado por tantas horas de incômoda
expectativa. Os galos cantavam dentro do mercado, anun-
ciando a indecisa madrugada. O mundo era belo para Jo-
sias. O galo, os ratos, a sua amante, os alvores do reencon-
tro. O mundo era belo para a Imperatriz: a rua deserta,
o pão, os seus ratos, a ausência dos homens e, depois de
tudo, o alvéolo do sonho.

252
Gastão de Holanda

– Ninguém te compreende – disse Josias, abraçando-a.


Ela recusou a mão que lhe afagava o seio e jogou outra
migalha. Os ratos avançaram, enquanto o céu ia clarean-
do sobre o Recife, a cidade agonizante.

253
Osteopatia
Geraldo Falcão

Tristeza, revolta, causava-lhe flagrar-se num espelho.


Por que nascera assim, estigmatizado pela deformidade?
Os que não riam da sua figura olhavam-no com curiosida-
de ou se apiedavam. Rodeavam-no com aquele detestável
ar de comiseração. No desenrolar da doença, que assina-
lou a sua estada no hospital, todos os dias de visita, lá es-
tavam os religiosos. Leituras pias, cânticos de louvor a um
Deus que o havia desprezado, convites a orientar o sofri-
mento transformando-o em precioso combustível. Cristo
também sofrera muito. A cama hospitalar era a cruz onde
ele – como o Homem-Deus – estava pregado.
Por delicadeza tinha que suportar todas aquelas ba-
boseiras. Desprezava aqueles rostos em que a bondade
aflorava como peça de prótese. Récua de mentirosos.
Abo­minava-os. Percebia-os competindo entre si. Cada um
deles parecia afirmar: “Eu sou o melhor, o mais carido-
so, o mais amorável para com os doentes. Deles eu sou
o preferido. Quando chego, eles exultam”. Receava um
dia estourar, dizer o que verdadeiramente sentia por eles.
Repugnavam-lhe os modos melífluos como lhe falavam:
os carinhos e cuidados de um instante. Onde estavam nos
restantes dias da semana?
Médicos, enfermeiras, serventes passavam como bóli-
dos por ele:
– E então, como vai o nosso doente?
Sorria com polidez. Consentia nos afagos, recebia pre-
sentes esboçando riso. Por dentro a vontade de mandá-los
Geraldo Falcão

para o inferno. Via os médicos discutindo entre si, diver-


gindo ou concordando sobre as mazelas deste ou daquele
doente. Curandeiros todos. De nada sabiam. Os ossos, por
sob as carnes, desenvolviam-se desarmoniosamente e eles
afirmavam que só restava esperar. Esperar até que o cres-
cimento físico fosse cumprido. Uma perna mais longa que
a outra. A face esquerda retraindo-se em decorrência de o
malar direito se haver projetado em demasia. O occipital
avolumou-se tanto que mal podia deitar-se em decúbito
dorsal sem se sentir incomodado.
A enfermeira destinada aos pacientes com osteopatias
e fraturas graves causava-lhe repugnância. O mau cheiro
exalado das chagas abafadas pelo gesso, os doentes sujos
e mesmo a precariedade das instalações estressavam-no.
Angústia. Maldizia os pais que, ainda criança, o trouxe-
ram para ali e desapareceram. Ficaram, sem dúvida, hor-
rorizados com as deformações que se iam instalando. Ali,
aprendera com as freiras a ler, a escrever e o desmedido
gosto pelos livros. Através deles sonhava, visitava lugares
que nunca imaginara existir. Tivera notícia de princesas
que se apaixonavam por grotescos animais. Bastava um
beijo e o monstro se metamorfoseava em belo príncipe.
Chegara, uma vez, a perguntar a uma das religiosas:
– Irmã, se a princesa me beijar eu vou me transformar
num príncipe muito bonito?
A freira desiludiu-o. Impossível. Deus o fizera assim.
Assim teria que morrer. Não se conformou. E por que
Deus fez as outras pessoas normais? Quantos eram tão
bonitos!... E ele daquele jeito. Enraiveceu-se quando ela
finalizou lapidarmente:
– Não devemos discutir os desígnios divinos. Só Ele os
conhece.
Passou a odiar aquele Deus e os seus representantes.
Cheio de preferências. Tão ruim que provocou até a morte

255
Osteopatia

do filho da maneira terrível como era contada. Começou


então a eleger os livros que procediam do mundo exte-
rior, trazidos por outros visitantes. Esqueceu a divindade
monstruosa. Passou mesmo a descrer nela e a hostilizar
as religiosas que dele se aproximavam, Suas representan-
tes. Se os seus companheiros de pavilhão solicitavam dos
visitantes doces, roupas ou dinheiro, ele recusava tais coi-
sas. Queria este ou aquele livro e material para escrever.
Tinha fome de conhecimento. Descobrira um universo
particular dentro dele próprio. Ali se escondia, sonhava e
realizava-se. Daquele ponto foi, pouco a pouco, partindo
para objetivos situados além daquele mundo estreito. Ao
seu redor: sujeira, pederastia, enfermeiras mal-humora-
das, médicos apressados. Ele, como os outros, era apenas
uma peça. Seus exames constavam de uma rotina cumpri-
da com enfado. Acrescentavam notas, riscavam gráficos e
partiam em desabalada carreira. Os doutores justificavam
a pressa dizendo que os seus vencimentos eram insignifi-
cantes. Tinham que atuar em vários hospitais, além dos
consultórios, para sobreviverem.
Sabia que na verdade eles todos desprezavam o aleijão
em que se vinha transformando. Na cadeira de rodas os
doen­tes mais aptos fisicamente levavam-no para tomar sol
no pátio da casa de saúde. Grupos conversavam pelos corre-
dores. Silenciavam por instantes à sua passagem. Olhavam-
no. Uns, querendo destacar-se dos demais, demonstrar
despreconceito, bondade mesmo, saudavam-no. Depois, os
comentários sussurrados, olhando-o de través.
Os companheiros de enfermaria ironizavam o seu gos-
to pela leitura. Achavam-no tão ignorante quanto eles.
Mas chamavam-no fungando, rindo, de professor. E pas-
saram a estranhar quando o novo diretor começou a ma-
nifestar interesse por ele. Iniciou tomando informações.
Quem era, o que sentia, como ia. Depois as conversas

256
Geraldo Falcão

foram se tornando mais longas. O dirigente chegava-se,


sentava-se em uma cadeira e conversava longamente. Ar-
ranjou estante para colocar os livros do professor. E, pes-
soalmente, vinha buscá-lo na cadeira de rodas e ficava em
sua companhia por muito tempo, no próprio gabinete.
Os companheiros murmuravam. Como preferir um ma-
luco daqueles, que se julgava superior a todos ali? Alguns
passaram a hostilizá-lo mesmo.
Até fora das horas do expediente o diretor aparecia,
com um livro debaixo do braço para entregar ao doente.
Sentava-se na cadeira ou mesmo na beira da cama e ficava
um tempão. Às vezes a enfermeira surgia anunciando que
a sua esposa telefonara. Não esquecesse o compromisso
que tinham a cumprir. O diretor levantava-se visivelmen-
te contrariado e saía.
O professor sentia prazer em refutar as ideias do amigo
e protetor. E essa tendência crescia, à medida que o tem-
po passava. Pulverizava as teorias postuladas pelo médico.
Cada vez mais se convencia de que era intelectualmente
superdotado. Explicava a si mesmo que o doutor, como
as demais pessoas, invadiam o terreno do conhecimento
de forma acidental, descomprometidos. Não postulavam
conceitos próprios. Emitiam opiniões formuladas por
outros e, naquele instante, em moda. Desprezava-os. Era
desgracioso, feio mesmo, de acordo com os padrões ge-
rais. Pairava, contudo, acima de todos. Era cerebralmente
forte, superior, soberano. E por que não?
Belo como um príncipe de estórias infantis. Fora beija-
do pela princesa Cultura.
Os ossos completaram o ciclo de crescimento. O di-
retor tratou-o como a um filho. Comprou-lhe botas orto-
pédicas, o que, através de treinamento, possibilitou-lhe
andar pelas ruas. Vestiu-o, deu-lhe um modesto emprego
na administração do hospital. E, pessoalmente, levou-o,

257
Osteopatia

até que adquirisse independência na rua, ao curso que o


habilitaria, em dois anos, a ingressar na universidade.
E o professor demonstrou ser excepcionalmente apa-
ratado de inteligência. Três anos depois estava cursando
Medicina. O diretor alojou-o em pequeno apartamento
por sobre a garagem de sua casa. E o neocandidato a mé-
dico estudava obsessivamente. Nas horas vagas ministrava
aulas de Física, Química, Biologia e Matemática. Dormia
pouco, sempre lendo. Assombrava pelos seus conhecimen-
tos. Mas assustava pela agressividade. Não tolerava que o
contradissessem. Chamava a todos de estúpidos, ineptos.
Já no último ano de Medicina o ex-interno, após longo
estágio no hospital, terminou por ser assimilado pelo seu
corpo médico. Ainda doutorando, a sua opinião pesava
nos juízos formulados pelos terapeutas. Formado, tomou
lugar ao lado do seu protetor. Este, apesar de se orgu-
lhar do seu protegido, temia-o. Evitava polemizar com
ele a propósito de qualquer coisa. Sentira-se, por diversas
vezes, atingido pelo quase-filho. Isso doía-lhe. Atribuía
aquela exaltação à deformidade física, ao descontenta-
mento com a própria figura.
Algum tempo depois que o professor fora admitido
como médico na casa de saúde, ali chegou estagiária es-
trangeira que desejava especializar-se em determinado
tipo de osteopatia, decorrente principalmente da subnu-
trição. Alourada, de excepcional beleza, chamou a atenção
da comunidade médica masculina jovem. O tutelado do
diretor olhava-a com discrição. Era realmente impressio-
nante a beleza da moça. Além disso, estudiosa e versada
em sua especialidade. Ao protetor dizia o jovem médico
que à beleza física estava sempre atrelada a burrice.
Mas o diretor sabia haver certa dose de despeito na
afirmativa que lhe fazia o filho adotivo. Observava-o ou-
vindo a jovem alourada sem antepor objeções aos seus

258
Geraldo Falcão

discursos. Arrastava, em torno dela, desajeitadamente,


as botas de imensos solados, discorrendo sobre a matéria
que parecia interessá-la. Não usava o seu costumeiro tom
polêmico. Calava e seguia ouvindo, atento.
Vezes havia em que a doutora olhava-o com doçura,
enquanto ele dissertava. Aí o pai adotivo observava-o con-
fuso, pregando os olhos no chão, gesticulando muito, o
riso grotesco puxando-lhe o lábio apenas para a direita. E
o velho vinha assinalando um toque de ternura no olhar
da estudante. Mas não ousava comentar com ele. Temia a
sua reação.
A jovem, realmente, impressionara-se com o seu ins-
trutor. Jamais, em toda a sua vida, vira cérebro tão ágil:
um poço profundo de conhecimentos. A princípio foi mo-
vida pela curiosidade. Ouvia-o perplexa discorrer sobre os
mais diversos ramos do saber com tanta fluência. Estava
informada, pelo diretor, de que família muito pobre, re-
sidente em distante localidade, deixara-o ali. Nunca mais
viera reclamá-lo. Narrou também como ficara preso ao
rapaz e como ele, em tão pouco tempo, se fizera médico-
cientista: eis o termo, pois grande parte do dia passava
enfurnado nos laboratórios, pesquisando.
E o agora realmente professor, jamais se sentira tão
perturbado. Sentimento novo aflorava-lhe ao espírito. Por
que aquela moça o deixava assim? Passou a perder o sono.
Adorável. Desejável. Mas como poderia interessar-se por
ele? Na certa, como o diretor, que se travestia de seu pai,
teria unicamente piedade pelo aleijado que era. Se trocas-
sem as posições, fosse ele a moça e a moça ele, o monstro,
na certa o repudiaria. Ela queria – como todos – parasitar
os seus conhecimentos. Certo que, em sua presença, ele se
sentia magnetizado. Enchia-se de torpor diferente. Aque-
le perfume, o calor que exalava da pele quase transparen-
te. As coxas entrevistas na justeza das calças jeans.

259
Osteopatia

E se ela, realmente atraída pelos seus dotes intelec-


tuais, estivesse iludida e quisesse unir-se a ele? Logo na
primeira vez seria execrado. Tão logo ele se despisse.
Deformações na cabeça, no rosto, nas costas, nas pernas.
Não devia, não podia mergulhar naquele universo menti-
roso, falso. Não sofreria o ataque da besta, investiria para
esmagá-la. Devia atacar antes, como sempre o fazia.
Olhava uma lâmina, através do microscópio, quando ela
se foi chegando. Ele afastou os olhos, como se fosse ceder-
lhe as oculares à observação. Ela sorriu-lhe, afagou-lhe a
nuca. Com o sotaque arrevesado de estrangeira, falou:
– Eu o amo tanto…
Sentiu-se impactado por um instante. Se estivesse
em pé cambalearia. Recompôs-se. A raiva subiu-lhe ao
rosto que avermelhou. A fisionomia tomou um aspecto
feroz. Estava deitado outra vez em seu leito hospitalar.
Aquela gente mentirosa, babosa, rodea­va-o. Todos men-
tirosos. Falsa piedade – comiseração. Não continuariam
olhando-o de cima para baixo. Antigamente dependia
dos outros. Agora, era independente, não tinha que aba-
far o menosprezo. Intelectualmente acima de todos. O
diretor mesmo era um inepto. Ele e toda a sua equipe de
“normais”, desfilando em batas de linho para cima e para
baixo. Mostraria a eles o quanto eram incapazes. Era im-
prescindível para que o hospital mantivesse o nível a que
tinha chegado. O eixo. Falsa meiguice. Aqueles lábios en-
treabertos, pronunciando palavras falsamente carinhosas,
tornaram-no ainda mais exasperado.
Ergueu-se fitando furiosamente a jovem, que retroce-
deu. Os olhos do jovem médico tinham um brilho sinis-
tro. Ele abriu a boca como se fosse dizer alguma coisa. O
seu punho caiu forte sobre a mesa, virou-se, saiu rápido,
capengando, e bateu de rijo a porta às suas costas.

260
Os brincos prateados
Gerusa Leal

Arrumava os cabelos com as mãos onde quer que esti-


vesse, sem precisar de espelho. Fizera isso vezes sem con-
ta. A vida não contribuía para amenizar os traços.
Tivesse o cuidado de não dar moleza desde o início,
não estava passando por tanta decepção. Sim, pode-se
perder o controle do lance, ser trapaceada e levar uma
rasteira. Dava lá as escorregadas dele, ela sabia, sempre
tinha uma explicação, você é que é meu amor, ela preci-
sava que a convencesse. Não era mais menina, ralando
daquele jeito, chegando em casa à noite no bagaço. Em
vez de chorar, devia era soltar foguete.
Retocou o batom, também sem espelho, contornando
os lábios com precisão.
Calma. Tenho que ter calma. Adianta me descabelar?
Por que não escutei a voz da razão? Teria percebido que
era sorte demais para ser verdade. Tem cabimento acredi-
tar que um rapagão daqueles ficasse com ela muito tem-
po? Uma tonta, é o que foi. Ainda por cima deixar de se
cuidar para vestir ele com roupa de marca, fazer presta-
ção para financiar o carro usado que tanto queria e botar
no nome dele, onde já se viu? A amiga alertou, e daí? E
daí que, para seu azar, apaixonou-se. Toda a sensatez foi
parar na lata de lixo. Na lata de lixo.
Enxugava as mãos no vestido, suadas feito quando era
adolescente.
Isso pode acontecer com qualquer uma.
Os brincos prateados

Andava de um lado para o outro na sala. Na imagina-


ção o rosto do amante, cara lisa, barba feita, no meio do
mundo.
Sabia quando estava chegando pelo barulho do ele-
vador, ficava de pé olhando a porta, aguardando que ele
abrisse. Entrava, pegava pela cintura, virava de costas,
empurrava para o sofá e ali mesmo a possuía, ela de qua-
tro. Como uma cadela.
Escurecia lá fora, o ar frio do inverno entrando pelo
apartamento.
O cordão dourado com a letra M, que usava sempre,
era fantasia, imitação barata. Único presente que lhe dera
em três anos; bem mais vagabundo que o par de brin-
cos prateados com pedrinhas brilhantes que encontrara
na gaveta de cuecas e meias, por baixo de tudo, bem lá
no fundo, comprado com o dinheiro dela para a outra:
sacudiu na cara dele, aos gritos, como se isso resolvesse
alguma coisa.
Ele negou, era surpresa, para comemorar a data em
que se mudou para a casa dela, mas não faz mal, e adulou,
e fez carinho, levou para cama, e ela se acalmou. Colocou
os brincos.
Dia seguinte fazia quatro anos, um sábado. Culpada
por haver desconfiado dele, comprou dois metros de vis-
cose a prestação, abriu a máquina de costura, pegou a
tesoura grande para cortar a camisa. Com sorte estaria
pronta antes que ele voltasse da pelada com os amigos.
Cedo ainda, nem prestou atenção no barulho do eleva-
dor abrindo. Tocaram a campainha, não podia ser ele. Deu
de cara com a ninfeta dizendo para ela passar os brincos,
que não engolia essa de ter paciência e abrir mão para uma
velha enrugada, pelancuda, só porque ele tinha pena.
Bateu a porta, sentada na sala não escutava nada, nem
os berros da outra de isso não vai ficar assim, até que tudo

262
Gerusa Leal

ficou silêncio, olhou ao redor, a máquina aberta, o tecido


na mesa, devia ser intriga da garota, ele não ia dizer uma
coisa dessas dela, de que jeito a outra sabia dos brincos?,
não era nada daquilo, haveria explicação, sempre tinha
uma, a visão dele abraçado com a ninfeta, a voz dentro da
cabeça sussurrando no ouvido da outra você que é meu
amor, imagina se tem comparação com aquela velha en-
rugada, pelancuda, é que ela é tão sozinha, tenho dó, pa-
ciência que vou dar um jeito.
Dar um jeito.
Na delegacia, arrumava os cabelos com as mãos, reto-
cou o batom, se deixou conduzir para a cela. Com a roupa
do corpo, de chinelos, usando os brincos prateados.

263
Fred, o Tio Comandante
Gilberto Freyre

“Não me esqueço da figura do estranho que eu vi, en-


cantada, há um bocado de anos, com olhos de menina.
Ficou na minha lembrança como Tio Fred. Tio Fred, o Tio
Comandante. Vi-o pela primeira vez numa bonita tarde
de sol na nossa casa da Torre.” Quem assim me falava era
dona Maria Isabel. Sinhá muito recifense. Viúva. Morado-
ra na Rua da Aurora.
Como era esse Tio Fred? “Alto, moreno claro, olhos e
cabelos castanhos, um bigode diferente do de meu Pai,
maior, mas torcido, um sorriso que mostrava uns dentes
maravilhosos e era constante, umas mãos muito bonitas.
Vestia um dólmã branco como os de ingleses daquela épo-
ca. Imaculadamente branco.” E a voz? “Uma voz muito de
homem e que, ao mesmo tempo, parecia fazer festa nos
ouvidos da gente. Creio que sobretudo aos ouvidos das
moças e das meninas.” Foi o que logo me respondeu dona
Maria Isabel.
E explicando: “digo das moças, porque minha Tia, Car-
mem, que estava chegando aos trinta anos, idade, naqueles
dias, já de solteirona, foi quem mais encantada ficou pelo
tal estranho. E ele, ao que todos notaram, muito caído por
Tia Carmem. Por Tia Carmem e por mim, que andava en-
tão pelos meus nove anos. Como me acariciou! Como falava
comigo como se eu fosse pessoa importante! Me chamava
de Isabelita com sotaque um tanto espanhol. Dizia que era
neto de espanhola, chamada também Carmem. E que se
parecia com a avó. Os mesmos olhos grandões.”
Gilberto Freyre

“Todo o seu lar”, acrescentava dona Isabel, “era de


pessoa mais do que importante. Trazia charutos para meu
Pai, flores para minha Mãe, ora leques, ora mantilhas, ora
livros, para Tia Carmem. Bombons para mim.”
“Vinha do Rio. Falava na gente ilustre do Rio e de São
Paulo que lhe recomendara visitar meu Pai. Visitar nossa
casa que era na Torre, depois de ter sido maior, na Ma-
dalena. Que visitasse os Fiusa. Meu Pai como médico, na
época, notável, era de origem cearense, casado no Recife
com uma Wanderley de engenho do Rio Formoso. Ultima-
mente, com a vaga dos dois Marques, a do doutor Simões,
a do doutor Gouveia, perdera um pouco como clínico de
gente bem. Mas continuava doutor de prestígio. Podia ser
útil ao ‘Comandante’, pois como ‘Comandante’ foi como
o estranho se apresentou.”
Não fora preciso carta de apresentação. A ele, Frede-
rico Burgos – era o seu nome – haviam dito amigos cario-
cas, admiradores de doutor Fiusa, que explicasse de viva
voz ao doutor a que vinha aos Estados do Norte. Missão
muito discreta. Reservada, mesmo. Quase secreta.
Apresentou-se ao doutor Fiusa como Comandante da
Marinha Mercante. Afilhado, “quase filho”, acentuava ao
apresentar-se ao Almirante Alexandrino. Fora incumbido
de inspecionar as agências do Loide sem que ninguém
desse por isso. Que só o soubessem uns poucos. O Sal-
gado, do Recife Hotel, onde ele se instalara e que muito
simpaticamente lhe dissera que não era hóspede do Ho-
tel mas, sem que se soubesse, particularmente convidado
dele, Salgado. O Agra, do mesmo modo, pusera até car-
ro – uma vitória, com cocheiro de cartola à sua disposi-
ção, sussurrando-se entre a gente que frequentava a Casa
Agra, à Rua do Imperador, que ele, Burgos, era um gran-
de na Maçonaria no Rio de Janeiro. Sabia-se pelo aperto
de mão. Talvez grau 39. Também na Lafaiete, o Moreira,

265
Fred, o Tio Comandante

logo que soube reservadamente da missão do logo cha-


mado pelos iniciados no segredo, de “Comandante”, não
só o encheu de charutos brasileiros dos mais finos como
o recomendou ao Maniva, alfaiate, como se Burgos fos-
se seu amigo particular, porventura recomendado a ele,
Moreira, pelo próprio conde do Agrolongo, do truste ca-
rioca de cigarros. Como o conde, o “Comandante”, era
para ele, Moreira, homem de recursos e segundo ouvira
do próprio Burgos, às vésperas de receber alta comenda
do Governo Português.
Tudo, no Recife que Burgos, por vezes, retórico, gosta-
va de exaltar como “Veneza Americana, boiando sobre as
águas” vinha correndo da melhor forma para esse homem-
sereia. Sereia de bigodes frisados. Encantador e quase poé­
tico no falar. Para Burgos, os pernambucanos eram ainda
mais hospitaleiros que os baianos. E como as pernambu-
canas eram belas! Que moças bonitas se viam indo à missa
na Igreja do Espírito Santo ou fazendo compras na Rua
Nova: no Louvre, na Rosa dos Alpes, na Viúva Guilherme,
na Brack, na Júlia! Já estivera nessas lojas todas. Já adquiri-
ra umas coisinhas para, segundo dizia, sua Mãe: era soltei-
ro. Coisinhas de que enchera seu quarto no Recife-Hotel.
E às coisas assim adquiridas se vinham juntando, naquele
quarto de príncipe, presentes que vinha recebendo, alguns
do próprio Salgado, outros de Moreira, uns tantos de Jovi-
no, vários de comissários, exportadores de açúcar. E mais:
perfumes franceses, charutos de Havana, vinha pedindo,
rogando até, a todos os bons recifenses, seus amigos, que
fossem discretos sobre sua missão no Norte. Mas repetia ao
doutor Fiusa o que vinha dizendo muito em segredo aos
outros: que de agora em diante podiam dispor dele no Rio,
no Loide, e junto ao Alexandrino.
“Tudo isso” – recordou-me dona Maria Isabel – “eu fui
sabendo aos poucos, como menina que ouvia muito o que

266
Gilberto Freyre

a gente grande conversava”. Não tardara a receber do Co­


man­dante uma linda boneca francesa que dizia “maman”.
Nem outros presentes. Chocolates suíços. Isabelita, meni-
na de nove anos, era muito mimada pela família. Estava
sempre junto da tia solteira. Burgos passou a dispensar
atenções especiais à pequena, enchendo-a de bombons,
de biscoitos finos, de doces. Até aquela boneca francesa,
loura e cor-de-rosa, que dizia “maman”.
Na família Fiusa todos passaram a chamar Burgos “Co-
mandante”: “o Comandante”. A tia, porém, convencera
Isabelita – como Burgos a chamava – a chamá-lo “Tio”:
“Tio Fred”. Ou “Tio Comandante”.
Aos seus ouvidos de menina, isso de “Tio Comandan-
te” soava de um modo que a envaidecia. Que importan-
te, que belo homem, que príncipe encantado, aquele seu
novo “tio” como que caído do céu ou saído do mar!
A propósito do que dona Maria Isabel, recordando-
se das festas que lhe fazia o Tio Comandante, filosofava:
“Como as mulheres começam ainda meninas a ser vai-
dosas!”. E especificava: “Vaidosas não apenas sobre sua
aparência, sua boniteza, seus olhos, seus cabelos, suas
mãos, seus vestidos, seus sapatos, seus pés quando elogia-
dos. Vaidosas também quanto à sua importância. Quanto
à importância de seus pais. Quanto à sua casa. Quanto aos
móveis de sua casa. Quanto a seus parentes. E tudo isso
Tio Fred elogiava, ao mesmo tempo em que me agrada-
va”, recordava dona Maria Isabel.
Na verdade, aquilo de “Tio Comandante”, embora
para consumo só da família, envaidecia a menina. Que
tio! Gostaria de poder falar no colégio desse seu tio um
tanto príncipe – Comandante! – vindo do Rio: e tão bo-
nito, tão elegante, tão atraente. Já começara a pedir a
Deus, nas suas preces, que não tardasse o Tio Fred em
se tornar noivo de Tia Carmem. Que não tardasse o ca-

267
Fred, o Tio Comandante

samento. Nem a viagem de todos os Fiusas ao Rio – isso


era segredo de que não se falava – naqueles camarotes de
luxo de vapor do Loide que Burgos dizia estarem sempre
à disposição. Eram deles, Fiusas, sempre à sua espera com
damascos, quadros a óleo, tapetes, jarros de porcelana.
Mas que guardassem reserva. Não era coisa de se falar ou
de se propalar.
Isabelita sabia que a todos os Fiusas encantava a pers-
pectiva dessa viagem, desse casamento, dessa bênção do
céu sobre a família que caprichava em receber o “Tio Co-
mandante” com seus melhores jantares, seus mais apeti-
tosos guisados, seus mais aromáticos assados, seus doces
mais segredos de família. Afinal a já quase trintona Car-
mem – bonita, bem-educada, tocando piano, sabendo seu
francês – encontrara um esposo ideal. No santuário da
casa, ardia noite e dia uma vela de agradecimento a Santo
Antônio: gratidão ao bom do santo em que se antecipava a
Tia Carmem. E pelo que contava o “Tio Comandante” não
lhe vinham faltando outros jantares finos e até festivos no
Recife. Era um herói secreto para não poucos recifenses.
Compreende-se assim que Isabelita nunca conseguisse
se conformar com o fato de o “Tio Comandante”, quase de
repente, ter deixado de ser seu “tio” e de ser “O Coman-
dante”. Pois foi o que aconteceu. Incrível, mas aconteceu.
Lembrava-se dona Isabel de ele aos poucos ter começado
a se ausentar da casa da quase noiva. Recordava-se da in-
quietação da Tia Carmem. Da vela a Santo Antônio ter
passado de uma a três. E um dia, a notícia brutal: Burgos
fugira do Recife! Enganara Salgado. Iludira Agra. Enga-
nara gente da melhor. Burgos não era Comandante coisa
nenhuma. Burgos nada tinha a ver com o Loide! Nem com
o Almirante Alexandrino! E o doutor Fiusa comentando:
“Um perfeito charlatão!”. Mas dizendo baixinho: “Mas
que homem fino! Que gentleman! Que cavalheiro!”. E dona

268
Gilberto Freyre

Antônia Fiusa atalhando: “Mas que simpático! Nunca vi


carioca tão encantador!”. E Carmem chorando. Chorando
como uma desesperada. Não acreditando. As velas a Santo
Antônio se apagando. Flores murchando por toda a casa.
Caixas de bombons já meio vazias deixando de alegrar os
olhos de menina da Isabelita.

269
Ex-noite
Gilvan Lemos

– Tenho a impressão de que ela sabe que vai morrer,


Nice. Hem, você não acha?
– Oh, meu Deus! No princípio conseguimos enganá-
la, julgo que conseguimos. “É uma simples cirurgia”, di-
zíamos. Depois da operação, ela: “Simples cirurgia! E por
que fizeram esse estrago todo no meu corpo?”. “Para pre-
venir, mamãe, só para prevenir”, dizíamos.
– Lembro que ainda voltou ao trabalho, readquiriu as
cores. Nós mesmas na repartição pensávamos que estava
curada.
– Nunca se referiu à operação, jamais falou no seio extir-
pado. Nem comigo, acredita, Lala? Ainda hoje, quando vou
tratar dela, esconde o local, faz mil manobras para que eu
não veja o que não existe mais. Uma vez seu Leitão entrou
no quarto enquanto ela trocava de roupa, ouvi-a protestar,
aborrecida. Seu Leitão: “Besteira, mulher. Que diferença
faz? Inda tem uma sobra”. Sei que disse isso de brincadeira,
talvez para reanimá-la, mas mamãe não gostou, passou o
resto do dia emburrada. Acho que foi a partir do momento
em que lhe tiraram o seio que ela começou a morrer.
– Sempre foi muito vaidosa. Que trauma para a pobre-
zinha. Qual é realmente sua idade, Nice?
– Fez sessenta o mês passado.
– Era o que eu calculava. Dizia que tinha... Agora não
interessa. Podia viver tanto ainda. A gente nota que já não
tem ânimo para coisa alguma. Ausente, desinteressada,
como que ressentida. Por isso acho que sabe.
Gilvan Lemos

– Quando veio a metástase, com aquelas dores enor-


mes que sentia na perna, conseguimos por muito tempo
fazer com que acreditasse que se tratava de reumatismo.
Com a continuação, ah! desconfiou: “E por que me apo-
sentaram por invalidez?”.
– Exato, Lucinda já compreendeu. E ele? Ali, tão sos-
segado. Não estará ouvindo nossa conversa? Parece ser
um homem calmo. Que tanto ele lê, Nice?
– Novelas policiais. É uma boa pessoa, não incomoda
ninguém, não tenho o que dizer de seu Leitão.
– Conservado no físico. Já se aposentou?
– Sim, pelo Instituto. É cinco anos mais velho que ma-
mãe. Passa o dia em casa, não sai para canto nenhum, a
não ser para as compras. Quando chego do grupo já tem
varrido, espanado. Atende mamãe com uma paciência!
Você sabe que essa doença deixa as pessoas irritadas, neu-
rastênicas, por isso mamãe implica muito com ele. Mas,
apesar de ser um homem meio rude, não se aborrece, tem
a maior paciência.
– Quanto a isso não tenho dúvida, Lucinda sempre o
elogiou. Sabe, Nice, ele mudou pouco, e olhe que o conhe-
ço desde o tempo em que trabalhava no bar onde lanchá-
vamos. Era caixa. A gente notava que ele dava toda atenção
a Lucinda. Brincávamos com ela, a gente não podia ima-
ginar. Não que eu ache nada demais, você compreende,
não é? Tolice da gente. Pensávamos que Lucinda não era
para ele. Essas ideias preconceituosas. Afinal, quem éra-
mos, quem somos nós? Gente pobre também, funcionaria-
zinhas. Só que Lucinda tinha mais cultura que ele. Cultura!
Isso lá interessa? Sua mãe, viúva, nova ainda. Se você tem
sessenta, naquele tempo estaria pegando os quarenta.
– Exatamente, casou a segunda vez com quarenta. Mi-
nha idade hoje. Pensa que me incomodo, Lala? Nunca
neguei.

271
Ex-noite

– Mas então? Apenas Lucinda dizia que estava com


trinta e dois, mas isso não vem ao caso. Ora, ele viúvo
também, e sem filhos. Atraente, sabe? Talvez um pouco
baixo, meio gordo. Mas ele de vez em quando deixa a
leitura, fica a nos observar.
– Impressão sua, é assim mesmo, tranquilo, chega a
ser tolo, de tão discreto.
– E como fica a situação quando sua mão morrer? Já
pensou nisso?
– Não, Lala, ainda não pensamos, não pensei. Estou tão
habituada. Por mim... São vinte anos, não é, Lala? Vinte anos
de convivência. Seu Leitão podia ser meu pai, não era?
Delicado, atencioso com Nice. Desde o início, prova­vel­
mente sem intenções de conquistá-la, obter-lhe a aprovação
do seu ingresso na família. Devia ser dessas pessoas que não
se escandalizam, acham tudo natural. Apenas, para o gosto
de Nice, permitia-se liberdades que ela reprovava: andar pela
casa de torso nu, só com a calça do pijama; bater na porta
do banheiro em ocasiões em que estava ocupado; espalhar
cinzas de cigarro pelo chão. Talvez fizesse isso sem ter cons-
ciência de que estava sendo inconveniente. A primeira vez
que o viu à vontade, a calça do pijama escorrendo-lhe pela
barriga, o peito volumoso, cabeludo, veio-lhe, como numa
espécie de ansioso sobressalto, antiga imagem: Papai!
Com o passar do tempo ocorreram-lhe outras coin­
cidên­cias que mais o aproximaram do pai: a maneira de
correr as portas e as janelas antes de deitar-se; o modo
como dava corda ao relógio da sala de jantar; o jeito de
fumar, pensativo, diante da janela. Até, às vezes, o pigar-
ro. E o cheiro, o cheiro do seu corpo antes do banho. De-
pois de algum serviço caseiro, tampouco perfume. Des-
prendia-se dele uma exalação morna, paternal, como se
o envolvesse um halo de ternura, proteção (como muitas
vezes eu pressentia em papai).

272
Gilvan Lemos

Em suma, as liberdades eram dessas que um pai toma


com os filhos, decorrentes de toda intimidade, permis-
síveis afinal entre pai e filha, filha moça. Assim Nice as
entendia, Lucinda também. Comum, Nice levar-lhe a
toalha (que ele sempre esquecia) no banheiro, estando a
mãe ocupada na cozinha; obter permissão para entrar no
quarto do casal, quando preciso. A própria Lucinda au-
torizava: “É dinheiro para o ônibus, minha filha? A bolsa
está em cima do bidê, vá tirar. Leitão está dormindo, vá,
pode ir, ele não se incomoda”. Enquanto remexia na bol-
sa, olhava-o de soslaio, demorando-se na busca (ele dor-
me como papai, de costas, as mãos fechadas sobre o peito,
o lençol preso nas coxas). Se acontecia Leitão despertar,
sorria, sonolento, virava-se para o lado. Uma vez o lençol
escapou-lhe por trás e Nice viu: Dorme nu como papai!
E um incidente quase esquecido, de anos, voltou-lhe,
obsessivo, persistente, com uma força que a sufocava,
acarretando-lhe outras lembranças, revivendo-lhe a es-
pécie de amor que, muito em segredo, dedicava ao pai.
(Acho que eu tinha seis anos, pois ainda não estava na
escola, e foi com sete que fui para a escola.)
– E você, Nice, não tem um pretendente? Um caso secre-
to? Me conte isso direito, menina. Hoje é tão comum. Não
que eu esteja aconselhando, Deus me livre. Também não
reprovo. Quem reprovaria? Basta! nas melhores famílias...
– Que ideia, Lala. Na minha idade?
– Esta anciã, agora. Não foi na sua idade que Lucinda
casou pela segunda vez?
– Porque era viúva. A moça solteira nessa idade... Não,
deixa pra lá, interessa não.
– Tolice, menina, você ainda tem muito que aproveitar.
Já pensou quando Lucinda... Sim, não é segredo, Lucinda,
coitada, breve vai morrer, muito breve. Então, como você
fica? Sozinha ou com esse velho duma banda, aborrecen-

273
Ex-noite

do, chateando? Você não sabe o que é ter um velho nas


costas, minha filha. Eu sim, tenho experiência própria.
– Oh! Lala, não me aperreie, deixe, deixe. Não quero
pensar nisso, agora não.
– Não compreendo por que você não quis casar.
– Não quis?
– Claro, você nunca quis. Tanto rapaz interessado em
você. Não, não me venha com desculpas, sei de tudo, Lu-
cinda me contava. Você, minha filha, jogou fora todas as
oportunidades, boas oportunidades, ótimas até. Sei de
um...
– Ih! Lala, vamos mudar de assunto.
– É para seu bem que falo, tenho idade de ser sua mãe,
conheço o mundo melhor que você. Vai ficar desprotegi-
da quando Lucinda partir. Pensa que esse aí vai lhe dar
proteção? Coitado, pegando os setenta. Você é que vai fi-
car com a carga.
– Lala, por favor!
– Pensa que isso não preocupava Lucinda? E muito.
Dizia não saber o que se passava com sua cabeça, gostaria
de fazer com que você consultasse um psiquiatra, mas não
tinha coragem de sugerir, podia você se ofender.
A casa era pequena, conjugada. Da cozinha, último
cômodo, partia beirando o muro do vizinho, uma calça-
da estreita que se alongava até o sanitário, nos fundos do
quintal. Toda noite, ao carregar para o quarto o urinol,
a mãe protestava contra essa inconveniência, dispensável
se existisse um sanitário dentro de casa. Nice dormia com
os pais, num berço que então media o tamanho exato do
seu corpo e que ainda conservava as grades protetoras.
Recolhia-se primeiro, raras vezes em que estava acordada
quando o pai vinha dormir. Ele então beliscava o queixo:
“Ainda espertada, moleca?”. Colocava um lençol sobre o
espelho da cama de casal, isolando-a da visão de Nice;

274
Gilvan Lemos

apagava a luz, deitava-se. Nice não atinava com a razão do


lençol e, ouvindo-o despir-se, não compreendia por que
ele preferia fazê-lo no escuro.
Tinha a casa de bonecas arrumada ao lado da cama
grande. Toda manhã simulava varrê-la, espaná-la, em se-
guida comprazia-se em botar seus ocupantes para viver.
O boneco tomava café, fumava, ia ler o jornal; a boneca,
após o café, ganhava a cozinha. Depois disso teriam uma
folga, extensiva a Nice, que somente à tarde tornaria a
ocupar-se deles. Certa manhã de domingo, o pai ainda
deitado, a mãe na missa, Nice tomou café, o seu, de verda-
de, tratou de dá-lo também à família de bonecas. (Eu era
tão pequena que, abaixada no brinquedo, provavelmente
fui encoberta pela cama de casal. Papai levantou-se e não
me viu. Mas eu o vi por inteiro, despido de roupas, ves-
tido numa inconcebível vastidão de cabelos. Ah, dormia
nu, por isso apagava a luz para deitar-se. Deduzi que não
era correto vê-lo assim, agachei-me o mais que pude, fi-
quei debaixo da cama, numa posição em que dificilmente
seria notada.) O pai acocorou-se, puxou o urinol e, de
frente para Nice, utilizou-o. Depois o pai vestiu a calça
do pijama, deixou o quarto. Nice aguardou que ele fosse
lavar o rosto. Ao ouvir a água caindo na pia, saiu também,
foi à porta da frente e voltou, como se lá tivesse estado
durante todo aquele momento.
O resto do dia passou-o fascinada pelo pai. Só queria
estar ao seu lado, tocando-o, sentindo-lhe o calor da pele,
sabendo-se possuidor daquela coisa que conservara em se-
gredo. Que outros segredos haveria de possuir? Descobriu
mais um, dias depois, e este fez com que ela adoecesse e
transferisse para o estado febril de que fora acometida a
responsabilidade do ato confuso que presenciara, relutan-
do em aceitá-lo como real. (Durante muito tempo julguei
que o que tinha visto fora apenas um delírio por causa da

275
Ex-noite

febre.) O dia já havia clareado, Nice despertou com cer-


tos rumores na cama dos pais. O berço, onde dormia, tão
próximo: bastou a Nice estirar o braço e erguer a ponta
do lençol que guarnecia a cama de casal. Já haviam ini-
ciado, ambos despidos. (Por mais que tentasse evitar, não
resisti, fiquei olhando, vendo até o fim. Não tinha inteira
consciência do que estavam fazendo, um conceito instin-
tivo, porém, me convencia de que não era coisa decen-
te, própria de gente grande. Para minha compreensão,
a gente grande – que dava ordens, que tudo sabia, tudo
determinava – obrigava-se a ser perfeita em suas atitudes,
mesmo as mais elementares. E aquilo, aquilo... Parecia-
me sobretudo nojento, anti-higiênico. Mamãe não proibia
simplesmente de botar a mão na boca?)
– Sentimos a falta de Lucinda na repartição. Uma pes-
soa divertida, sempre animada nas brincadeiras de ani-
versário, nas festinhas de fim de ano. Veja como esta vida
é traiçoeira: Lucinda sempre dizia, “tenho tanta vontade
de me aposentar que nesse dia é capaz de me acontecer
uma desgraça”. Mal sabia ela que nem chegaria a comple-
tar o tempo de serviço.
– Dizia que ao se aposentar ia aproveitar o máximo. O
sonho dela era viajar, conhecer a Europa.
– Dizia, “detesto a repartição, a obrigação do expe­
diente, a chatice do serviço, mas adoro a convivência com
vocês”. Conosco. Por isso, mesmo contrariada na repar-
tição, era cordata, alegre. “A gente tem de aproveitar o
momento que vive”, dizia.
– Olhando de fora, penso que mamãe não teve lá mui-
tos bons momentos. Casou a primeira vez com um homem
pobre, ao seu lado teve de fazer muitos sacrifícios. Depois
ele morreu, passamos aperturas, verdadeiras aperturas.
Mamãe trabalhava feito escrava pra me manter no estu-
do. Melhoramos quando ela começou na repartição e eu,
formada, passei a ganhar também.

276
Gilvan Lemos

– Você diz bem, Nice, olhando de fora. A gente costu-


ma julgar a felicidade alheia sob o prisma do nosso pró-
prio ponto de vista. Pra você, por exemplo, sua mãe pode
não ter sido feliz, mas, quem sabe? Quem sabe se a preo-
cupação dela não era você, hem, minha filha?
– Eu? Por que se preocuparia comigo?
– Achava você esquisita.
– Porque não casei?
– Porque não quis casar.
– Ninguém quer ou não casar, Lala. O casamento acon-
tece. Tanta moça que passa a vida desejando casar e não
casa. Outras nem se interessam, os príncipes encantados
vão tirá-las da toca, casam-se bem-dizer a pulso. Não acho
justo dizer que eu não quis casar. Apenas não casei, foi
isso o que aconteceu... ou não aconteceu.
– Mas você omitiu a fase em que sua mãe casou pela se-
gunda vez. Então, Lucinda não foi feliz com o segundo ma-
rido? Quem pode dizer que não? Só fazia dele as melhores
referências. Como esposo... Ela nos confidenciava. Não vou
entrar em detalhes. Tenho muita experiência, Nice. Um
homem assim como esse Leitão... Um homem robusto, que
não frequentava bares, não gosta de futebol, não gosta de
rua, assim caseiro. Você me compreende. Lucinda mesma
dizia que nesse ponto era felicíssima. Pra você ver.
Em sua porta batia, tarde da noite: “Sua mãe”. Acompa­
nhava Nice, mas não entrava no quarto da doente. Nice
a atendia, às vezes levava horas mudando-lhe os panos,
acalmando-a. Ao deixá-la, dava com Leitão na sala de jan-
tar, cabisbaixo, fumando. Tresnoitado, a barba despontan-
do, olhos vermelhos, sorria, tímido, desculpando-se: “Não
quer que me aproxime. De minhas mãos o remédio não
faz efeito. Parece que está me odiando”.
Nice foi obrigada a licenciar-se do grupo onde lecio-
nava. Quando não estava com a mãe era topando no cor-
redor, na cozinha, no banheiro (seria de propósito que ele

277
Ex-noite

não fechava a porta?). Preparava-lhe o café separadamen-


te, bem forte, como ele gostava. Estalava a língua: “está no
ponto!”. À mesa, surpreendia-o a fitá-la de modo inusita-
do (ele também não me surpreendia com idêntico olhar?).
Nos momentos de maior aflição, entrava no quarto para
ajudá-la, ajudar a ambas. No espaço exíguo fatalmente te-
riam de se tocar. Nice sentia no braço a aspereza do pelo de
suas costas (até nas costas tinha cabelos), do peito, do ven-
tre; assim como, de sua pele, uma mornidão suave, iman-
tada tepidez que cada vez mais a perturbava. Com a trégua
que lhes dava a doente, iam para a sala de jantar, exaustos,
evitando olharem-se, certos de que se o fizessem sucum-
biriam. “Quer que lhe coe um cafezinho?”, gemia Nice,
muito baixo (temendo acordar a mãe ou acordar-se? Ou
acordá-lo?). Ele assentia com ar bondoso (paternal!): “Está
ficando perita em café”. Nice o fitou essa vez. Ele ficou sé-
rio de repente, tremeram-lhe as comissuras da boca, o osso
do maxilar tornou-se-lhe visível, como se ele, contendo-se,
apertasse os dentes. E antes que Nice apanhasse as xícaras
para levá-las à cozinha: “Sua mãe era assim quando me
casei. Você está ficando igualzinha a ela”.
Com o agravamento da doença de Lucinda, Leitão ficara
dormindo no sofá, enquanto não se lhe providenciava uma
cama. Tinha noite que ferrava no sono, não ouvia o ape-
lo desesperado da doente. Nice, sim, de seu quarto, para
isso costumava deixar a porta aberta. Ao passar pela sala da
frente, sem necessidade acendia a luz, só para vê-lo naquela
postura tão conhecida: de costas, pernas entreabertas, os pu-
nhos sobre o peito. Havia ocasiões em que se dava o contrá-
rio: despertava com Leitão, em pé, junto à cama: “Sua mãe”.
Mas Nice tinha quase certeza de que ele não a havia chama-
do antes, teria ficado ali durante algum tempo, olhando-a,
sentindo talvez o que ela sentia vendo-o na mesma situação.
Numa noite em que a mãe mais sofrera, Nice, ao vê-la
enfim sossegada, deixou-a, no intuito de apenas descan-

278
Gilvan Lemos

sar. Amanhecia. Só então se lembrou de que Leitão se au-


sentara. Não o encontrou no sofá. Estava na sala, as mãos
no rosto, curvado sobre a mesa. Mas não dormia. Voltou-
se ao dar pela presença de Nice. Tinha a face brilhante,
resto de lágrimas a escorrer-lhe pelo queixo: “Como ficou
ela?”. Levantou-se, ansioso: “Pensei que fosse morrer”.
Inesperadamente abraçou-se com Nice, baixou a cabeça,
soluçou em seu colo; participava da dor comum a ambos,
era evidente. Sua voz ecoava no peito de Nice, o signifi-
cado de suas palavras perdia-se, abafado. Solidária, Nice
afagou-lhe a cabeça, descansou em seu ombro. Mas houve
em seguida uma espécie de silêncio, silêncio íntimo, sú-
bito e inexplicável. Nice percebeu que ele a beijava nos
seios, no pescoço, e que de seu corpo, do dele, emanava
um tepor crescente, envolvente, e que, enorme, áspero
em alguma parte, ele a subjugava. A expressão do seu ros-
to se modificara. Não demonstrava arrependimento ou
surpresa, mas um propósito firme, uma vontade inaba-
lável, certo ar de cumplicidade. Botou o dedo nos lábios,
afastou-se rápido. Em suspenso, como que esvaziada, Nice
permaneceu no mesmo lugar: esperava. Ele voltou, pisan-
do com maciez, ciciou: “Está dormindo, vamos no quarto,
na sua cama”. A Nice soou afável, adoravelmente meiga
aquela instância (de experiência feita, como a do pai que
interfere para que o filho ingira um remédio salutar).
– Santo Deus, como é tarde, Nice! Preciso ir, minha
filha, tenho tanto que fazer.
– É cedo, Lala, fique mais um pouco, pode ser que
mamãe se reanime, vocês conversam.
– Não, não acredito que ela se reanime. Fica para ou-
tra ocasião. Coitada da Lucinda, não creio que haja outra
ocasião. Desculpe, Nice, mas é necessário que você esteja
prevenida, você não deve ter ilusões.
– Sei, Lala, estou conformada.
– Pobrezinha! Paciência, querida, isso é da vida.

279
Ex-noite

– Sei, sei.
– Bom… Seu padrasto? Pensei que estivesse aqui.
– Deve estar lá para os fundos.
– Recomende-me a ele. E não esqueça de nos avisar.
Qualquer coisa, já sabe. Não passe esse momento sozinha,
querida, chame-nos, qualquer uma de nós, é só telefonar
para a repartição.
– Sei que conto com as colegas de mamãe, principal­
mente com você, Lala. Muito obrigada.
– Está aberta a porta? Não precisa ir comigo até o por-
tão. Até a próxima vez, querida. Mas espere, Nice, minha
filha, não sei como dizer...
– Que é, Lala?
– Esse homem…
– Seu Leitão? Que tem ele?
– Minha filha, não repare, falo em confiança, afinal
tenho idade de ser sua mãe.
– Que é, Lala? Pode falar.
– Esse seu Leitão! Você disse que ele estava lendo, mas
reparei: não retirava os olhos de você.
– Tolice, Lala, pode ir em paz. Quanto a isso não tenha
receio, não há perigo, pode ficar tranquila.
– Bem, adeus, esqueça o que eu disse. Olhe, estamos
prontas para ajudá-la a qualquer hora do dia ou da noite.
Três dias depois, Lucinda morreu. Enquanto Leitão
providenciava o necessário junto à casa funerária, Nice
vestiu-a – tendo o cuidado de manter no lugar próprio
o enchimento que lhe servia de peito –, penteou-lhe o
cabelo, botou a dentadura em sua boca. Quando o cai-
xão chegou e foi colocado na sala sobre duas cadeiras,
transportou-a para ali, com a ajuda do padrasto. Só então
telefonou para as colegas, amigos e parentes.
Nesse mesmo dia, à noite, logo que a casa ficou deso-
cupada de todas as pessoas solidárias e de suas respectivas

280
Gilvan Lemos

condolências, Nice transferiu para o quarto da mãe seus


objetos de uso íntimo, virou o colchão, mudou os lençóis e
foi tomar banho. Leitão, livre já do fato solene e em calça
de pijama, acompanhava no televisor os últimos telegra-
mas do noticiário.
Ao sair do banheiro, Nice verificou que Leitão estava
cochilando, com um dos seus romances policiais prestes a
escapar-lhe da mão. Nice recolheu-se ao novo aposento.
Pouco depois ouviu que Leitão corria os trincos das por-
tas, ia apagando uma a uma das lâmpadas que ficaram
acesas. Na penumbra, viu-o penetrar no quarto, escorar a
porta levemente. E despir a calça do pijama.

281
Dois dedos
Graciliano Ramos

Doutor Silveira atravessou a antecâmara e aproximou-


se do reposteiro. O contínuo velho barrou-lhe a passa-
gem, quis exigir cartão de visita, mas vendo-lhe o rosto, a
mão que se agitava como afastando uma coisa importuna,
curvou-se, entreabriu o pano verde e foi encolher-se num
vão de janela:
– Deve ser troço na política.
Doutor Silveira entrou no gabinete do governador.
Entrou de coração leve, como se pisasse em terreno co-
nhecido, os braços alongados para um abraço. Um abraço,
perfeitamente. O homem que ali estava fora vizinho dele,
colega de escola primária, colega de liceu, amigo íntimo,
unha com carne. A mulher de doutor Silveira tinha dito:
– Visita sem jeito. Esqueça-se disso. Política! E ele res-
pondera:
– Que política! Eu me importo com política? É que
fomos criados juntos. Assim, olhe.
Juntava o médio e o indicador da mão direita, de modo
que se conservassem em posição horizontal, movia-os li-
geiramente. Nenhum dos dedos ultrapassava o outro.
– Assim.
Estirava o indicador e contraía o médio, para que ficas-
sem do mesmo tamanho. Infelizmente não tinham ficado.
Um deles estudara Direito, entrara em combinações, tre-
para, saíra Governador; o outro, mais curto, era médico
de arrabalde, com diminuta clientela e sem automóvel. Por
isso a mulher dissera:
Graciliano Ramos

– Não gosto de misturas. Visita sem jeito. Cada macaco


no seu galho.
– Que galho! – retrucara doutor Silveira. Éramos dois
irmãos. Estudávamos juntos, vivíamos juntos. Vou. Se não
fosse, o homem havia de reparar. Um irmão.
Escovara e vestira a roupa menos batida. Isso de roupa
era tolice, mas afinal fazia uma eternidade que não via o
amigo, o irmão, unha com carne.
– Assim.
Tomara um automóvel. Chegara ao Palácio, onde nun-
ca havia posto os pés, atravessara o hall, hesitando. O ga-
binete do Governador seria à direita ou à esquerda? Per-
guntas cochichadas a funcionários carrancudos.
O amigo, o irmão, havia sido reprovado em química
vinte anos antes, enganchara-se no átomo. Agora domi-
nava aquilo tudo, e o átomo era inútil.
Informado por um guarda, doutor Silveira transpuse-
ra uns metros de corredor sombrio, entrara na antecâma-
ra, chegara-se ao reposteiro, afastara o contínuo velho,
que se encolhera num vão de janela:
– Deve ser troço.
Bem, doutor Silveira estava no gabinete, livre de in­cer­
tezas e das informações daquelas caras antipáticas. Avan-
çou dois passos, os braços estirados como para abraçar
alguém, sem ver nada. Infelizmente escorregou no soa­
lho muito lustroso e parou. Veio-lhe então a ideia de que
escorregar era inconveniente. Não devia escorregar. Pi-
sando no paralelepípedo, caminhava direito. Mas ali, na
madeira envernizada, a segurança desaparecia. Cócegas
nas solas dos pés, suor nas solas dos pés. Um escorrego –
confissão de inferioridade.
Aprumou-se, estendeu os olhos em redor, e foi aí que
notou o lugar onde se achava. No salão, fechado, o que lhe
provocou a atenção foi a mesa de tamanho absurdo, entre

283
Dois dedos

cadeiras de altura absurda. Teve a impressão extravagante


de que a mesa era maior que o salão. Nunca havia entrado
em gabinetes, mas acostumara-se a julgá-los pequenos. E o
salão era enorme, cercado de vidros por um lado, de livros
pelo outro. Aquilo tinha aparência de biblioteca pública.
De relance percebeu uma fileira de volumes taludos,
bem encadernados, e entristeceu. Devia ser um dicionário
monstruoso, uma enciclopédia, qualquer coisa assim, para
contos de réis. Engano: era simplesmente uma coleção do
Diário Oficial. Mas isso produzia efeito extraordinário, e
doutor Silveira imaginou ali grande soma de ciência. Deu
um passo tímido no soalho, temendo escorregar de novo.
Nenhuma segurança. Os braços, que se arqueavam para
um abraço, caíram desajeitados ao longo do corpo meio
corcunda.
Desviando-se das prateleiras onde se enfileiravam as
dezenas de volumes grossos, os olhos pregaram-se no chão
e assustaram-se com o brilho excessivo das tábuas. Insen-
satez fazer o pavimento das casas assim lustroso e escor-
regadio. Arriscou algumas passadas, convencido de que o
observavam e censuravam. Certamente havia ali pessoas,
talvez pessoas conhecidas, que ele se esquecera de cumpri-
mentar. Notara apenas a mesa enorme, as cadeiras altas
demais, as vidraças e os livros, especialmente a coleção en-
cadernada a couro, com letras douradas nos lombos. Teve
raiva da timidez que o amarrava, ergueu a cabeça e quis
pisar firme. Uma criança, um matuto, encabulado.
Examinou a sala. Na extremidade da mesa, um homen­
zinho escrevendo. No momento em que doutor Silveira
se certificava disto, a personagem soltou a pena, mostrou
uns olhos empapuçados e deixou escapar um gesto de
repugnância. Contrariado, sem dúvida, interrompido no
trabalho maçador.
Doutor Silveira arrependeu-se de não ter ouvido o
conselho da mulher. Que entendia ele de política? Devia

284
Graciliano Ramos

ter ido visitar os doentes do arrabalde. Estupidez aproxi-


mar-se de figurões.
O movimento de repugnância do homem que escrevia
na cabeça da mesa durara um segundo, transformara-se
num sorriso de resignação. O antigo camarada tinha aque-
le sorriso, mas não tinha o gesto de aborrecimento nem os
olhos empapuçados. Que mudança! E em pouco tempo.
Na verdade fazia pouco tempo que eles estudavam
juntos no quintal de Silveira pai, debaixo das manguei-
ras, deitados nas folhas secas. As meninas dançavam e
cantavam. Uma tia do outro vinha vigiá-los, com óculos e
um romance. Não vigiava nada, mas a presença dela, dos
óculos e do romance era um hábito necessário. Parecia
que aquilo tinha sido na véspera. A tia idosa, com o nariz
em cima do livro; as meninas dançando e cantando; eles
deitados nas folhas secas, decorando os pontos.
O companheiro fora reprovado em química. Rapaz
inteligente, mas perturbara-se, atrapalhara-se no átomo.
Chorara, jurara vingar-se do doutor Guedes, inimigo do
pai dele. Injustiça, não valia a pena estudar. Perseguição
a um excelente aluno, bem comportado, avesso a bader-
nas. Doutor Guedes tinha feito canalhice. Para que servia
o átomo a quem ia ser bacharel? Vinte anos. Em vinte
anos o mundo dá muitas voltas, mas realmente parecia
que aquilo acontecera na véspera.
– Como a gente muda depressa!
O antigo colega não tinha os olhos empapuçados nem
o gesto de aborrecimento. Era um menino amável e riso-
nho. Por isso ele o animara, consolara, citara exemplos de
homens importantes que haviam sido reprovados. Tolice
amofinar-se por causa de uma safadeza do doutor Guedes.
Vinte anos. Agora tudo era diferente. O salão enorme,
a mesa enorme. Doutor Silveira estava numa extremida-
de da mesa e via na outra os olhos empapuçados que se
fixavam nele, tranquilos. O gesto de impaciência desapa-

285
Dois dedos

recera, o sorriso desaparecera. O que havia eram os olhos


cansados que não o reconheciam. Estaria transformado a
ponto de não ser reconhecido? Devia estar. A calva, a cor-
cunda, a palidez. Era outro, certamente. Moço ainda. Mas
aquela vida agarrado aos defuntos e aos doentes inutili-
zava um homem. Velho. Ambos velhos. A calva, a corcun-
da, a palidez; os olhos empapuçados, frios, indiferentes.
Se encontrasse o amigo na rua, passaria distraído, com o
pensamento no hospital, no necrotério, na mesa de ope-
rações. Passaria distraído, lembrando-se de uma artéria
que havia sido cortada. Essas coisas tinham grande im-
portância para ele e nada significavam para o homem que
escrevia, ali a alguns metros. Que estaria escrevendo? Te-
legrama ao Ministro do Interior, ao Ministro da Agricultu-
ra. Doutor Silveira não saberia redigir telegramas a esses
ministros. Podia ser que aquilo fosse apenas um cartão a
chefe político da roça. Doutor Silveira não seria capaz de
redigir sequer um desses cartões vagabundos.
Avançou um passo para contornar a mesa e chegar-se
ao homem pelo lado direito; recuou, avançou pelo lado
esquerdo – e permaneceu no mesmo lugar. Indecisão es-
túpida. Suor nas palmas das mãos, suor nas solas dos pés.
Felizmente a mesa estava sobre um tapete e não havia o
receio de escorregar. Podia aproximar-se andando com
segurança, mas os olhos empapuçados, a mão esmorecida
no papel, uma interrogação no rosto parado, davam-lhe
vergonha e tremuras. Quis retroceder, abandonar a sala
triste e silenciosa; olhou para trás, encontrou os volumes
do Diário Oficial, terríveis, com letras douradas nos lom-
bos de couro. Não conseguiria adquirir uma coleção assim
rica, mesmo a prestações. Que fazia num salão que tinha
livros tão ricos? Queria voltar, atravessar o espaço que o
separava da porta, levantar o reposteiro, fugir do contí-
nuo, do guarda, alcançar a rua. Mas ninguém entra numa

286
Graciliano Ramos

sala para sair correndo como doido. Difícil escapulir-se,


deixar os olhos empapuçados que tentavam reconhecê-lo.
Estava cheio de constrangimento e notava que produzia
constrangimento a um desconhecido perturbado no seu
trabalho: telegrama ou cartão, a ministro ou a prefeito do
interior. Esse trabalho estranho confundia-o. Difícil escre-
ver o cartão ao prefeito.
Compreendeu que havia procedido mal não dando o
cartão de visita ao contínuo. Cultivavam ali uma etique-
ta, costumes bestas que ele ignorava e não procurara co-
nhecer, porque do outro lado do reposteiro se achava um
homem que fora para ele unha com carne. Dois dedos,
assim, juntos, movendo-se no mesmo nível e quase do
mesmo comprimento. A mulher não acreditara na histó-
ria dos dedos e aconselhara-o a ficar em casa de pijama,
lendo revistas de Medicina. Revistas, naturalmente: im-
possível obter volumes grossos como aqueles encaderna-
dos a couro, com letras douradas nos dorsos.
Criatura inferior. Sem dúvida, inferior. Não avançava
nem recuava. Iria aproximar-se pela direita ou pela es-
querda?
Os pontos do liceu eram cacetes. À noite Silveira pai
interrogava-os em Geografia e História, queria saber se
eles aproveitavam o tempo. As meninas dançavam e can-
tavam, fazendo rodas. Onde estariam elas? Longe, casa-
das, mortas, diferentes, outras criaturas que não dança-
vam nem cantavam.
O antigo companheiro também era outro, um dedo
amputado. Doutor Silveira desejava apenas aproximar-se,
dizer algumas palavras. As palavras, estudadas, sumiam-
se. Como se chegaria? Pela direita ou pela esquerda? Era
melhor fugir, sair do tapete, pisar no soalho lustroso, ar-
riscar-se a escorregar novamente. Suava. Impossível evi-
tar os olhos que não o reconheciam.

287
Dois dedos

Agora tinha medo de que o homem supusesse que ele


ia chorar, pedir emprego. Não ia. Imaginava fazer o gesto
de virar os bolsos pelo avesso, mostrar que não precisava
mendigar os cobres mesquinhos do imposto. Vivia satis-
feito. Visitava doentes pobres, trabalhava no hospital, as-
sinava as revistas indispensáveis. Tranquilo. Não ia pedir.
Nenhuma ambição, poucas necessidades. Queria abraçar
o amigo, felicitá-lo, conversar uns minutos, lembrar os
tempos velhos, os pontos decorados sob as mangueiras,
as meninas, a senhora idosa. Não ia pedir. A roupa estava
realmente safada, os sapatos cambavam. E a corcunda, a
palidez, a magreza, o modo encolhido. Mas tinha os doen­
tes do arrabalde, que só acreditavam nele, o hospital, que
dava ordenado magro e trabalho excessivo, a mulher eco-
nômica. Sentiria se o privassem do hospital. Muitos casos
interessantes.
Uma visita de cortesia. A roupa era de mendigo. Não ti-
nha pensado na roupa ao sair de casa. A gola suja, a gravata
enrolada como corda. Desleixado. Nunca prestava atenção
à mulher, que o importunava diariamente: “Feche esse pa-
letó”. Não fechava. E arrependia-se, ali na ponta da mesa,
mostrando a camisa, que entufava na barriga.
O homem dos olhos empapuçados julgava-o um pulha,
um pedinte de emprego, uma dessas criaturas que apare-
cem nas audiências públicas e levam cartas de recomenda-
ção. Por isso estava com o rosto parado, pronto a murmurar
uma recusa seca, defendendo o osso roído. Doutor Silveira
não precisava do osso. Queria conversar uns minutos, lem-
brar o tempo de liceu, a senhora velha que lia o romance,
as meninas, os pontos, o átomo, as amolações de Silveira
pai. Impossível falar sobre essas coisas. Tinham sido dois
dedos, assim, mas estavam separados. Como vencer a se-
paração, a mesa enorme que se interpunha entre eles, ro-
deada de cadeiras altas? Iria pela direita ou pela esquerda?

288
Graciliano Ramos

Doutor Silveira afastava-se para um lado, afastava-se para


outro lado, e permanecia no mesmo lugar. O homem dos
olhos empapuçados não o reconhecia. Reconhecia-o. Tal-
vez não o reconhecesse. Um antigo condiscípulo, um su-
jeito encontrado em qualquer parte. Amigo, certamente,
desses que a gente saúda com indiferença: “Olá! Como
vai?” Procurava lembrar-se do nome de doutor Silveira.
Colega de escola primária, de liceu ou de academia. Ten-
tava recordar-se, a pena suspensa, o telegrama interrom-
pido. Visita importuna, tempo perdido.
– Esses tipos têm as horas contadas, tantos minutos
para isto, tantos para aquilo. Não se ocupam em conver-
sas fiadas.
Negócios sérios, públicos. Doutor Silveira sentia-se
amarrado, preso ao tapete, junto a uma cadeira alta que
tinha uma águia sobre o espaldar. As encadernações não
lhe saíam da cabeça. Muitos livros, aparência de bibliote-
ca. Volumes grossos, com letras douradas nos lombos.
Recordações tão minguadas! A senhora velha folhean-
do o romance, as crianças dançando e cantando, as man-
gueiras, os dois ouvindo as explicações de Silveira pai.
Ele e aquele indivíduo que se aborrecia a alguns metros
de distância, a pena suspensa, o telegrama interrompi-
do, uma interrogação vaga nos olhos empapuçados: “Olá!
Como vai?”
Estupidez lembrar-se do passado inútil. A mulher ti-
nha razão. Acabar depressa com aquilo, voltar ao subúr-
bio, vestir pijama, calçar chinelos, ler as revistas indispen-
sáveis.
Avançou. Não sabia se avançava pela direita ou pela
esquerda. Completamente atordoado. Acabar depressa
com aquilo. A mulher tinha razão.
– Olá! Como vai? – perguntou o homem de olhos em-
papuçados.

289
Dois dedos

Doutor Silveira sentou-se numa das cadeiras altas de-


mais, começou a gaguejar. Cadeiras tão altas! Esfregou as
mãos. E pediu o emprego. Uma sinecura, um gancho na
Saúde Pública. Não se referiu aos acontecimentos antigos.
Necessidade, pobreza, tempos duros. Esfregava as mãos
encabulado, mostrando a esmeralda. Um emprego na
Saúde Pública.
– Está bem, disse lentamente o homem de olhos em-
papuçados. Vamos ver. Apareça.
E encostou a pena no papel, manifestou a intenção de
continuar o telegrama.

290
O almirante
Hermilo Borba Filho

Era raro mas acontecia: a neblina. A claridade ainda


muito difusa que vinha da barra do horizonte abria, na
cerração, um semicírculo de olho direito a olho esquerdo, a
cabeça firme, em linha reta, movida para cá e para lá, o se-
micírculo de cada lado interrompido por edifícios, coquei-
rais, cajueiros, mangueiras. Ele gostava da névoa e tentava
agarrar os fiapos brancos, esgarçados, sabia que haveria
de chegar atrasado ao mercado, mas não conseguia fugir
ao encantamento, a féria do dia seria insignificante, os ca-
ranguejos, nas latas, faziam um barulho rascante e metáli-
co, outros concorrentes já teriam vendido os bichos, para
ele pouca coisa haveria de sobrar. Raras vezes no ano havia
neblina e era bom aproveitá-la, para nada, pelo prazer de
permanecer com as pernas musculosas atoladas na lama,
respirando de boca aberta, vendo como tudo era leitoso.
Somente o primeiro lampejo do sol despertava-o de vez:
a obrigação; tratava, apressadamente, de fazer as rodilhas
de caranguejos, nessas vezes bem chochas, saía do mangue
no chape-chape, lavava os pés na primeira água corrente
esfregando-os um contra o outro, punha-se a andar, em
quinze minutos vencia a distância que o separava do mer-
cado, postava-se atrás do balcão dos caranguejos, os outros
já haviam vendido e ido embora, armava-se de paciência
para esperar um hipotético freguês, mas nem por isto per-
dia o riso claro, aberto, de dentes largos.
Almirante Siri era figura musculosa de um metro e
noventa, ria a propósito de tudo, tinha as mulheres que
queria, sabia ser valente quando era preciso e amigo nos
O almirante

momentos incertos. Durante as manhãs vendia carangue-


jos, brincava e contava piadas; almoçava com uma pinga,
uma só, procurava um caminhão estacionado e metia-se
embaixo dele para a sesta, abrigado do sol. Quando acor-
dava, pelas quatro, encontrava um parceiro para jogar firo
até que a noite descesse; ia à procura de mulheres, sem-
pre encontrava uma, com ela dormia ou não, quando não,
deixava-se arriar na rede do seu mocambo para acordar
noite ainda e sair atrás dos caranguejos; o dia se repetia.
Somente aos sábados à noite (o domingo não contava: era
todo ele uma diversão só) saía dessa rotina para se dedi-
car, com toda a seriedade, à grande paixão de sua vida:
Almirante Siri era Capitão-General de Fandango e ensaia-
va durante todos os sábados do ano todo para o Ciclo do
Natal. Não admitia brincadeiras no seu folguedo. Nada de
esculhambação, berrava, quando os marinheiros, nas jorna-
das, atrasavam a dança ou desafinavam ou riam de uma
bobagem qualquer. O Ração e o Vassoura improvisassem,
menos na sua cena: Fostes à Casa do Contramestre? Destes
o dinheiro da ração? Que compraste para a gente da Aba-
riação? Comprei tanta coisa que o Contramestre não sabe.
Então diz lá. Eu comprei dez réis de fígado, um vintém
de tripa fina com tripa grossa, comprei dez réis de bofe.
Quando cai na caldeira faz pufu. Compolhos e repolhos,
comprei um vintém de alface misturado com presunto para
mim mais Vassoura, que gosto muito. Comprei um mocotó
tal e qual, comprei uma coisa para a frigideira do senhor
Capitão-General que ainda não comeu, já está lambendo
o beiço. Então diz lá. Digo se me der alguma gorjeta para
mim mais Vassoura. Senhor Capitão-General já foi à caban-
ga? Não viste? Quando as fateiras estão tratando os fatos,
tripas. Viste? Quando elas cortam a tripa em cima e cortam
embaixo aquilo que sai de dentro como se chama, senhor
Capitão-General? Maniçoba. Pois foi isto que comprei para
a frigideira do senhor Capitão-General.

292
Desempregado
Hugo Vaz

Quando o automóvel dobrou na esquina, vindo em di-


reção ao prédio de apartamentos, os faróis iluminaram o
muro do edifício e a luz bateu de chapa no rosto de Gena-
ro. Há mais de uma hora estava ali, à espera, no aguardo
do primo Henrique. Depois de sete anos sem emprego,
sofrendo as piores vicissitudes, finalmente acreditava ter
arranjado colocação, e agora, definitivamente, poderia
descansar sossegado, a consciência tranquila, ciente da se-
gurança futura que não faltaria aos oito filhos e à mulher.
Nunca mais choraria quando descrevesse aos conhecidos
toda sorte de misérias por que tinha passado. A extensão
de sua infelicidade não caberia, daquele dia em diante,
na quietação que o novo emprego lhe asseguraria. Agora,
teria trabalho certo, classificado, documentado, com ga-
rantia de direitos que a legislação trabalhista outorgava.
Ficaria na memória, apenas, lembrança de empregos an-
teriormente ocupados, sem carteira profissional assinada,
sem direito a férias, sem gratificação natalina, sem vale-
transporte, sem tíquete-refeição, sem nada, sujeito à de-
missão e sumária, numa visita inoportuna de auditores do
Ministério do Trabalho. Temia que chegasse à empresa,
de um momento para o outro, aquele tal Moreira, um dos
poucos auditores do Ministério que não “comiam bola”
dos empregadores? Estaria perdido o emprego. Com a
colocação certa que agora lhe arranjaram, tornaria a vi-
ver o bom tempo de ontem, sete anos atrás, o espírito
tranquilizado pela certeza de quinzenas pagas a cada mês.
Desempregado

Aos sábados, a padaria da esquina de novo voltaria a des-


pachar-lhe pacotões de pão – o pão melhorado de massa
pura – biscoitos doces e salgados, bolinhos de queijada,
que os meninos adoravam no café dos domingos. Poderia
até voltar a ir ao cinema com a mulher e os três filhos
mais velhos. Levaria a patroa e os meninos à sessão pas-
satempo das matinais domingueiras no centro da cidade.
Aos domingos de tarde, o Horto de Dois Irmãos e o Jar-
dim Zoológico voltariam a maravilhar os olhos extasiados
da criançada. Ao meio-dia, o cozido ferveria na panela à
espera deles, suculento, enquanto a meninada lancharia
às dez, bananas e doces. Ah! quanto tempo faz que os oito
meninos não sabem o que é um pedacinho de doce! Desde
que demitido do último emprego, nunca mais entrou em
sua despensa uma lata sequer de doce de goiaba! Há sete
anos, precisamente! Desde então, Genaro foi perseguido
por sorte madrasta. Enterraram caveira de burro nos ras-
tros do seu caminho... Tentara todos os meios em busca
de nova colocação. Parentes, amigos, conhecidos, até po-
líticos ele procurou – “o recurso infalível”, disseram-lhe.
Tudo falhou. Nas eleições passadas, comprometeu-se, ci-
nicamente, com cinco vereadores, prometendo-lhes votos
seguros seu, de sua mulher e de parentes. Todos promete-
ram emprego de servente na Câmara Municipal, no caso
de serem eleitos. Acreditou em todos e não votou em ne-
nhum. Dois foram realmente eleitos por grande maioria
de votos. Todavia, divergências partidárias que influen-
ciaram a Mesa Diretora da Câmara Municipal não permi-
tiram contratar mais um servente, além dos vinte e nove
que já se acotovelavam nos corredores e dependências
da edilidade. Continuou tentando, ora o balcão de lojas,
ora tarefas de office-boy, ora o trabalho braçal de emprei-
teiras que a Municipalidade contratava para serviços nas
vias públicas. Nada e nada. Nenhum dos dois vereado-

294
Hugo Vaz

res pôde ajudá-lo. Alegavam ser novos no cargo, em pri-


meiro mandato, e não dispor de prestígio suficiente para
contratá-lo. Foram-se sete anos de aperreios, de fome, de
doença e desespero. Sete anos de provação terrível, que
Genaro enfrentou com serenidade oriental. Os meninos
enfraqueceram, quase mortos de inanição. Males os mais
variados foram minando o organismo das crianças, debi-
litando por alimentação ordinária, insuficiente. Não fora
a caridade de parentes e amigos estaria hoje amargando
a saudade d’algum filho morto. A esposa, fraquejando,
adoecera também, perigosamente. Seus parentes se co-
tizaram para salvá-la. Ao fim de cada semana, o menino
mais velho, o Bartolomeu, ia à casa da avó, no bairro de
Campo Grande, apanhar modesta feira. Pacotes de feijão,
de arroz, de farinha e de açúcar, alguns quilos de café
e fubá. A velha sogra também, às vezes, mandava algum
dinheirinho. Poucas notas que economizava serviam-lhe
para comprar, raras vezes, um pedaço de carne verde,
com a qual, junto com metade de um jerimum, ele fazia
refeição mais nutritiva para a mulher adoentada. Quan-
do o menino chegava da casa da avó, Genaro tomava-lhe
das mãos os pacotes, olhava um a um cada produto. Ia
calculando, pensando para quantos dias chegaria a redu-
zida feira. Depois, de súbito, inexplicavelmente voltava-
se para a criança. O olhar parado de louco, sob as vistas
da mulher boquiaberta, esbordoava o filho sem piedade,
odiosamente. Muitas vezes fora preciso a intervenção dos
vizinhos, que vinham arrancar o menino das mãos do pai
alucinado, do “desalmado vagabundo…” Seu Antônio, o
quitandeiro, que morava na casa à direita da de Genaro,
certa vez perdera a paciência, ficara queimado, arretara-
se com Genaro, e desabafara com ele. Aquilo que o pai
fazia com o filho era um absurdo, uma miséria de que a
polícia deveria tomar conhecimento. Era preciso prender

295
Desempregado

aquele monstro! Seu Antônio estava revoltado, disse-lhe


tudo na cara. Que ele não trabalhava, que vivia filando o
pirão da sogra, que lhe pagava até o aluguel da casa; ain-
da por cima, como se não tivesse nada a fazer, espancava
o filho inocente, impiedosamente, como se batesse num
jumento. Antônio ameaçou: – Que parasse com aquilo, do
contrário ele mesmo tomaria as providências; não supor-
taria ver tanta miséria de um pai em relação ao filho me-
nor, não toleraria tamanha desumanidade. Genaro não
reagiu. Tampouco deixou de bater nos meninos.
Naquela tarde, Genaro retirou-se para o fundo do
quintal; foi matutar, sentado num banco de tábuas velhas,
por trás do mocambo onde morava, debaixo de frondoso
cajueiro. Tentava compreender por que razão espancava o
menino toda vez que ele voltava da casa da avó, trazendo
a humilde feira semanal. Que diabo de ódio sem sentido
lhe assanhava, como se tivesse virado bicho desalmado,
ele que, na maioria das vezes, era tão terno com os filhos.
Filhos que ele considerava tudo o quanto lhe restava da
onda de misérias que varrera sua vida. Seu único e maior
patrimônio! Julgava, por um instante, que os meninos
eram exclusivos responsáveis pela desgraça que se abatera
sobre eles. Lembrava-se agora dos conselhos de um amigo
prudente, antes de casar-se, de que deveria evitar filhos.
Havia tantos e tão eficientes métodos! Camisinha, tabela
de fertilidade de Ogino, saltar do bonde em movimento...
Métodos seguros e fáceis de serem adotados. Era só querer
e combinar com a mulher. “Filhos arruínam tudo” – ad-
vertia-lhe o amigo – “botam azar no casamento.” Genaro
não entendia, não queria se convencer da culpabilidade
dos meninos. Algo imponderável se ocultava por detrás do
seu destino infeliz. Continuou a bater nos meninos, espe-
cialmente no mais velho, o Bartolomeu, toda vez que ele
retornava da casa da avó com a feira de toda semana. Sua

296
Hugo Vaz

ferocidade se ampliava a cada surra que dava. Os vizinhos


até que se foram acostumando, seu Antônio já não mais
ameaçava chamar a polícia, concluíra que não havia mais
jeito. Um ano, dois, três, quatro, cinco, seis, sete anos e
Genaro na mesma vida miserável. Desempregado, depen-
dendo de parentes e de amigos, engolindo a farinha seca
que a sogra lhe mandava todos os sábados. Coisa que os
vizinhos não entendiam eram a ternura e o carinho de
Genaro com os meninos, quando à noite, depois do magro
café, se sentavam ele e a mulher na frente do mocambo
para contar histórias de Trancoso e contos das Mil e uma
noites. Eram oito os meninos, o mais novo com poucos me-
ses de nascido e o mais velho beirando os treze anos. O no-
vinho ficava no colo da mãe, enquanto o resto se espalhava
em torno. Sentados no chão, sem camisa, com a mesma
roupa usada e suja com que se levantavam e se deitavam
todos os dias; alguns montados nas pernas do pai.
Não havia água encanada nem luz elétrica no mocam-
bo de Genaro. O telhado baixo de zinco absorvia a luz do
sol durante o dia e de noite filtrava para o interior um ca-
lor infernal, que escarmentava as crianças semidespidas,
dentro da tapera sem divisões. Um velho lenço de lã todo
esburacado servia de tabique entre a cama de Genaro e
a dos meninos. Bartolomeu, o mais velho de todos, pe-
gara o costume de olhar o pai pelos buracos do cobertor
quando ele se deitava com sua mãe. Genaro tinha medo
de dormir no escuro, por isso não dispensava um cande-
eiro de querosene aceso durante toda a noite. Era difícil
para ele adormecer, quando, na falta de querosene que a
sogra fornecia, tinha de se deitar e dormir na escuridão.
Sonhava sonhos horrorosos, visões e alucinações terríveis.
Preferia ficar de vigília, decifrando cada ruído no telha-
do de zinco, cada baque de fruta no fundo do quintal.
Nessas noites, sem a luz do candeeiro, Bartolomeu ador-

297
Desempregado

mecia aperreado... Quando, todavia, estava aceso o pavio


da lanterna de gás e a luz bruxuleante projetava sombras
esquisitas, espalhadas na parede suja do casebre, o meni-
no se levantava da cama sorrateiro, cuidadoso para não
acordar os irmãos, e ficava espiando os movimentos do
pai, deitado sobre sua mãe, as sombras grotescas e curio-
sas dançando na parede sem reboco. Já sabia de tudo...
Descobrira como era... Uma noite, Genaro o pegou de
surpresa, brechando-o pelo orifício do lençol esburacado.
A surra que dera no filho não lhe fizera tanto mal, não lhe
calou tão fundo, como a ameaça aterradora que fizera ao
menino: “Doutra vez, lhe mando para o Juizado de Me-
nores, seu sem-vergonha!”
Eram dificuldades de um homem sem emprego, do
“vagabundo cruel” que os vizinhos não cansavam de cha-
cotear. Mas agora, finalmente, Genaro arranjara novo
emprego, com carteira profissional assinada e tudo mais.
Estava ali, no portão do primo Henrique, esperando por
ele para contar a novidade, os seus sucessos. Pedir-lhe-
ia, pela última vez, derradeiras finezas de que necessitava
para pôr ordem em sua malfadada vida.
O automóvel parou bem defronte do apartamento, bu-
zinando alto, chamando Marília, que veio correndo acenar
da varanda ao marido recém-chegado. Desta vez, a incô-
moda sensação de vergonha que o acompanhava quando
ia pedir favores ao primo Henrique não seguira com ele.
Tão convicto estava da nova situação, pelo emprego que
passaria a ocupar no dia seguinte, que chegara a esquecer
ser um pobretão, a calça rasgada nos fundos e nos joelhos
e a camisa suja que exalava odor malcheiroso. Esquecera
até a vida privilegiada do primo Henrique, o automóvel,
a roupa de tropical bem passada, a gravata de seda visto-
sa, o luxo quase exagerado do apartamento em que resi-
diam ele e a mulher, Marília. Foi logo subindo as escadas,

298
Hugo Vaz

abraçado ao primo. Alegria besta de menino satisfeito se


derramava de sua fala e dos seus gestos. Para Henrique,
era esta a mais desagradável das visitas a que era obrigado
a receber. Sempre que Genaro aparecia no apartamento,
fosse para que fosse, Henrique passava a noite intranqui-
lo, a cabeça doía-lhe, as ideias embaralhavam-se na busca
de uma explicação para a inquietação que a presença do
primo lhe causava. Não era vergonha nem nojo da situa-
ção de Genaro. Isso nunca! O desemprego era até natu-
ral, qualquer um poderia sofrer o mesmo. Também não
acreditava fosse repugnância às roupas sujas do primo,
à barba por fazer havia dias, os cabelos enormes, sujos e
fedorentos. Seria a distância social entre ambos? Seria o
mocambo de um e o apartamento do outro? Henrique he-
sitava. Enquanto subiam os últimos degraus da escada, o
braço do primo sobre seus ombros, Henrique examinava
furtivamente as unhas crescidas e enegrecidas do primo
arrasado. Esta seria mais uma noite de inquietações, noite
angustiosa que sofreria, meditando na busca de explica-
ções. Que jeito poderia dar na vida de Genaro? – conjec-
turava. O problema do primo era de âmbito muito vasto.
Atingia as raias do terreno político, além do puramente
social. Seria resultante da instabilidade econômica que o
País atravessava? Ou seria mero fruto da indolência do
próprio indivíduo? Seria uma crise social, coletiva, ou
seria a crise de um homem só? Não poderia dar jeito à
sua vida, esta era a verdade mais próxima. Não adiantava
querer compreender um problema que não era seu e do
qual não lhe cabiam culpas. Ou deveria insistir, ajudar? –
Mateus, primeiro os teus... pensou, egoisticamente.
Marília chamou-os para o jantar posto à mesa. Genaro
recusou o convite. Tinha muita pressa, precisava ainda de ir
a Campo Grande, à casa de um cunhado, pedir emprestado
um par de sapatos. Por isso o desculpassem, noutro dia acei-

299
Desempregado

taria o convite. Quando estivesse traba­lhando e o emprego


lhe rendesse o primeiro salário, viria com a mulher visitá-
los demoradamente. Bastaria já o incômodo que dera, pe-
dindo emprestada um terno completo e uma camisa social
de Henrique. Quis dizer mais qualquer coisa, dizer que la-
mentava sinceramente ser obrigado àquilo, estar pedindo o
que era dos outros, mas... Henrique o interrompeu:
– Tolice, Genaro. Vai com Deus e se agarre com fé,
desta vez, com muita vontade, ao seu trabalho. Um dia
também poderão precisar de você, de suas roupas, dos
seus sapatos. A vida é mesmo assim.
Um conselho tolo dado em frase oca. Foi tudo quanto
Henrique soube dizer ao primo, quando este se despediu.
Fora só mesmo o que lhe veio à mente na circunstância
cabulosa da retirada humilhante. Disse até logo ao primo
e deu boa-noite a Marília, que, sem querer, tinha uma lá-
grima pendida dos olhos. Ficou-lhe na retina a imagem
do homem pobre, fundos e joelhos rotos, roupa suja e
cabelos fétidos. Foram jantar. Henrique acabrunhado. A
esposa, silenciosa, indagava de si para si o porquê da mi-
séria do primo do marido. Nunca lhes faltou sequer um
refrigerante na geladeira. Possuía joias, vestidos moder-
nos e caros, automóvel na garagem, móveis funcionais e
completa aparelhagem eletrodoméstica. Tudo adquirido
pelo mais alto preço. Muita comodidade e facilidade em
sua vida, que se constituía, na verdade, um nada fazer
ocioso. O marido, não obstante não ter diploma universi-
tário, estava colocado numa grande empresa multinacio-
nal, privilegiadamente, da qual auferia ótimo salário, su-
ficiente para a manutenção do conforto do apartamento
e do qual ainda lhe restava razoável saldo para poupança
bancária. Não tinham problemas nem filhos. Eram ape-
nas os dois, a vida corria placidamente. Enquanto jantava,
Marília recompunha a situação do seu lar, juntando deta-

300
Hugo Vaz

lhes, comparando-os depois às vicissitudes que o primo


de Henrique sofria. Incompreensível aquele estado de
coisas. Mas agora, felizmente, não teria mais do que se
lamentar. Genaro estava empregado, depois de sete anos
de vagabundagem compulsória, coitado! Os oito meninos
teriam alimentação adequada, o primo do marido não o
viria mais incomodar com pedidos constantes. Não pelo
valor material do pedido, mas pelo sentido de esmola a
ele condicionado. Genaro teria, então, meios de comprar,
talvez – quem sabe? – uma máquina de costura para sua
esposa. Ela até que poderia ir ajudando com costura para
fora, melhorando aos poucos o padrão de nova vida que
agora iniciariam, o marido de novo empregado.

Na noite do dia seguinte, quase à mesma hora do dia


anterior, quando o carro de Henrique dobrou na esquina
e os faróis iluminaram o muro do prédio do apartamen-
to, um homem surgiu à claridade. Henrique saltou sem
buzinar para a mulher. Era Genaro que o esperava. Foi ao
seu encontro:
– Que tal o novo emprego? – perguntou Henrique,
pondo a mão no ombro do primo. – Satisfeito? – deteve-
se, no entanto, e parou à frente do primo Genaro. O ho-
mem chorava, soluçando baixinho, talvez para que estra-
nhos não escutassem o pranto. Falou, a voz entrecortada
por nervoso choro:
– Vim trazer sua roupa e sua camisa. Muito obrigado.
Já devolvi os sapatos ao cunhado.
– Mas o que houve? Não ficou no emprego?
– Não fiquei. O amigo que me arranjou a colocação es-
queceu de informar a minha idade. Com quarenta e cinco
anos, nunca mais me empregarão...

301
Desempregado

O motor do automóvel trabalhava ruidosamente, parado


no meio-fio. A porta entreaberta, escancarada, a luz acesa
no interior clareando o couro vermelho dos assentos luxuo­
sos. Henrique voltou ao veículo, desligou a ignição, bateu
a porta devagar e recebeu o pacote de roupas das mãos do
primo. Subiram as escadas do apartamento, abraçados.
Genaro continuaria desempregado.

302
O rosário
Iran Gama

A fome, a fome diuturna, é guardiã do desespero e da


morte. Então vieram os passamentos, que se alimentavam
apenas com água, na perambulação iniciada. A casa do
parente, jamais encontrada. Sós... A prece, fuga, refúgio,
solução...

... assim como nós perdoamos aos que nos têm ofendi-
do, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do
mal. Amém, que mais um se foi, minha santa mãe!
A conta de biurá partiu-se sob a pressão dos dentes...

O urubu veio planando, suavemente, até que, abrupto,


tocou os pés no chão, fechando as asas de permanente
luto. Achegou-se à disputa pela carniça, cadáver de um
cachorro, deitada no monturo.
Fora assim, naquele tempo da fuga da seca. Os urubus
devorando tudo que cheirasse a morte. Lembrava. Era
menino pequeno. Mas lembrava. O pai sempre preocupa-
do com a estiagem. Estiagem? Não há estiagem no sertão.
Ali, só a seca. A fome, a desolação. Lembrava, sim. Como
não haveria de lembrar? Garranchos, seixos, formando
serrotes e currais, onde pastoreava brincadeiras. O gado
eram ossos, de muitos animais. Assim também os automó-
O rosário

veis e caminhões, nos postos de gasolina que inventava.


Tempo bom, o da chuva, da invernada. Cabras gordas,
bom leite. Poucas vezes viu. Lembrava, sim. As longas ca-
minhadas, de dias e dias, cortando a caatinga, fugindo
da seca, sem destino nem pouso certo. Navegação difícil,
sacrificosa. Um dia, sem que soubesse como, quando nem
por quê, que o pai nada falava, chegaram na cidade gran-
de. Aí foi só humilhação. Até que a gente se acostumasse,
houve o que padecer de humilhação. Tanta, capaz de ca-
lejar a fé de qualquer cristão. E a fé era tudo pra gente,
era só o que a gente possuía. Especialmente no Padim
Ciço e nas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Escondido sob a moita de mangue, ficou olhando os


urubus devorarem a carniça. O mau cheiro era quase in-
suportável. Mas tinha que aguentar. Havia jurado que
um dia balearia um urubu bem na cabeça. Acocorou-se,
achegou-se mais um pouco, tomando a melhor posição na
tocaia. Algumas formigas começaram a subir pelos seus
pés. Formigas pretas, brabas. Mexeu-se para a direita,
para melhorar o ângulo do tiro. As formigas assanharam-
se. Tomou do bodoque e escolheu no bolso um seixo a
capricho. Lembrou do pai, na espera da asa-branca. A es-
colha do local, direção do vento, teto coberto, vegetação
certinha, combinando com o mato da bebida, o silêncio.
Silêncio. A asa-branca chegando, voando ao redor da bebi-
da, cabeça investigando as cercanias, o pouso no mulungu
mais alto que dominasse todo o terreiro. Bicho esperto.
E arisco. Pousado, olhava em derredor, catava pixilinga.
Finalmente, saltava à margem da bebida, onde por algum
tempo ficava andando em zigue-zague, de cabeça erguida,
ainda na tentativa de surpreender algum inimigo natural.

304
Iran Gama

Certo de não haver nenhum perigo, aproximava-se da


água e baixava a cabeça para beber. Se o tiro saísse, ficaria
ali mesmo ou cairia mais adiante, dependendo do ponto
atingido. Caso não fosse o tiro detonado, enfiava o bico
na água durante brevíssimos segundos, levantava-o para
sorvê-la e, incontinente, batia asas, sem tardança, rumo ao
horizonte. O pai jamais errava o tiro.

As formigas começaram a ferroar, ferozmente. Impa-


cientou-se, sem se mexer do local. Que ferroassem. Em-
punhou o bodoque, seixo no couro, esticou-o, fez mira e
disparou. A revoada foi geral. O urubu visado foi atingido
na cabeça, em cheio. Rodopiou, tonto, as pernas cedendo
ao peso do corpo. Susteve a queda com a asa esquerda to-
cando o solo, depois a direita. Derreou, cambaleou como
bêbado, cangalha, parou, aprumou-se, bateu as asas, cor-
rendo, e alçou voo. Tentou. Ainda tonto, o voo saiu pesa-
do e baixo, fazendo-o chocar-se contra uma touceira de
mangue-branco. Enredou-se na ramagem, deslizou pela
galharia, foi ao chão. Saiu capengando, pernas arquea-
das. Parou. Tomou tento. Novamente decolou. Subiu.
O menino pulou fora do formigueiro. Desgraçadas,
pestes, miseráveis. Esfregou as pernas desesperadamen-
te, esmagando as formigas. As pernas ficaram todas fer-
roadas, marcadas com calombos vermelhos. Ardendo que
só.
Colocou o bodoque no bolso traseiro da calça curta
de zuarte e voltou para a favela, as pernas latejando, feliz
por ter cumprido o que prometera a si mesmo, acertando
o urubu.
... agora e na hora da nossa morte. Amém, que mais
um se foi, minha santa mãe!

305
O rosário

Mal entrou no beco viu o que não entendeu. Um mon-


te de gente na porta do barraco. Correu, assustado. Mãe?!
Pai?! Amedrontado, enfiou-se pelo meio do povo. Arre-
da, arreda, gente. Arreda, que eu quero passar. O choque.
A mãe, em prantos, cabelos desalinhados, expressão de
horror nos mínimos detalhes do rosto. O pai no chão, os
olhos desgraçadamente abertos, a dor da morte tatuada
entre as rugas do rosto. Cerrou os punhos e desferiu enor-
me soco contra a tábua do barraco. Urrou, ferido. Depois,
silenciou. A vizinha acarinhou-lhe os cabelos lisos. Ficou
no passado, olhando o filhote da cadela chorando. A mãe
fora à caça. Uma urutu botara-lhe no focinho. Morte hor-
rível. O filhote, já abertos os olhos, farejando por toda
a casa, grunhindo, chorando, procurando-a. Dolorosa e
sem sucesso, a procura. Grunhiu horas e horas, dia-noite-
adentrando, dando dó. Ele, menino, só olhando, acom-
panhando o cachorrinho no choro sem fim.
Foi ao enterro. Olhar frio, vendo o caixão preto ser co-
berto pela areia, na cova rasa. Rezou o rosário com a mãe
e os vizinhos que acompanharam o sepultamento. Coisa
feia, via, o enterro. A face lívida, uma inexplicável dureza
na voz ainda infantil, enquanto orava.
... agora e na hora da nossa morte. Amém, que mais
um se foi, minha santa mãe!

Madrugada na favela. Do barraco podia-se ouvir o som


de uma vitrola caça-níquel, de cambulhada com um vo-
zerio. Sexta-feira. Uma agitação festiva percorre as entra-
nhas da favela. Ainda luzes acesas, música, goles de cacha-
ça, cerveja gelada, conversas sendo jogadas fora, discussão

306
Iran Gama

acerca do campeonato de futebol. As mulheres casadas se


recolhendo com os maridos. As descasadas e solteiras par-
ticipando dos jogos na noitada, no barracão da cruzada
social. Noite quente, o suor escorrendo pelo pescoço. Bar-
racos fechados, no escuro. O cheiro forte da lama podre do
mangue recende. Lua de quarto minguante. Maré vazan-
te. O guincho dos ratos invade as paredes dos mocambos.
Nauseabundo, paira o desagradável odor de excrementos
em decomposição, jogados na lama, do mangue, sujo ain-
da por força da maré morta. Só maré grande, de lua, é
que limpava a lama. Quinze dias de limpeza, quinze de
sujeira completa. De forma intercalada – lua cheia, quarto
minguante, lua nova, quarto crescente. Favelamento. Ro-
lam a cachaça e a cerveja, copo a copo, gargalo a gargalo,
boca a boca. E a noite prossegue, erma, morna, magra,
faminta. Nordestina. A fome habita os casebres e palafitas.
A barriga grande engorda parasitas. Outra fome. O piado
da coruja sobrevoa o magro casario.
Dorme o homem adulto filho, ao lado da mãe, nas
esteiras de piripiri. Uma luz tênue invade as frestas do
barraco. O piado da coruja lembra o sertão, onde não
se viam ratos. Maré não havia. Nem dessas coisas outras
que conheceram na cidade grande. Agora era o bulício, o
corpo a corpo pela sobrevivência. Piorara tudo, desde que
o pai morrera, pensava o filho adulto, acordado pelo ba-
rulho da farra, próximo da sua morada. O ganho pouco,
grana curta, outro jargão, que alvoroço de cidade grande
muda os costumes da gente. Levantou o braço esquerdo.
A mão tocou no rosário, jogando-o contra o caneco de
lata, derrubando-o. A mãe acordou. Que foi? Nada não,
descanse, mãe.
Subitamente, a noite é invadida pelo espoucar de
balas. Tiros. Gritos. Correria. Levantam-se. Que diacho
será? Sei não. Sei que é bala muita. Deve ser a polícia. Pa-

307
O rosário

rece que é pelas bandas da boca de fumo. O tropel de co-


turnos se aproxima. Três tiros soam bem próximos. A mãe
se agacha. O filho chama-a para junto de si, apertando-a
contra o peito. Se aperreie não, mãe, que estou aqui. A
gente não deve nada. Eu sei, filho, mas essas balas doidas
não enxergam coisa com coisa. Aonde vão, furam. Outros
tiros. Correria. Nos barracos mais próximos apenas o si-
lêncio respondia ao matraquear dos revólveres.
Foi por ali que eles se meteram. O informante disse
que é num desses barracos daqui. Como a gente vai saber
qual é? Não pode. A academia não ensina a gente a adi-
vinhar. Aliás, nem os oficiais aprendem a fazer isso. Tem
que ser mesmo na base da marra. A gente bate na porta.
E se vier bala de dentro? Não quero servir de alvo pra
ninguém. A conversa, aos gritos. Acordando todo mundo.
Barracos fechados. Mete os pés, sô! A porta foi derribada.
A mãe deu um salto, instinto materno protegendo a cria.
O tiro reboou toda a violência do calibre trinta e oito.
... o pão nosso, de cada dia, nos dai hoje, e perdoai as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem
ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-
nos do mal. Amém, que mais um se foi, minha santa mãe!

A mãe fora ao copiá. Precisava de um pedaço de carne


seca. A porta da casa rangeu à sua passagem. Foi e voltou.
O cachorrinho chorava, procurando a cadela enterrada. Na
passagem, de volta, a mãe chutou o cachorrinho. Teve pena,
fez carinhos. Devolveu-o ao chão, que a obrigação da casa
chamava. Pela porta, entreaberta, o cachorrinho saiu. A mãe
observou. Saísse o menino no encalço do fugitivo, que podia
também ser picado de cobra. Lá fora, o chorão entalara-se
numa moita de unha-de-gato. Aprisionara-se, ferido.

308
Iran Gama

O filho adulto amanheceu na cadeia. O corpo man-


chado do sangue que saíra da ferida no peito da mãe.
Agarrara-se a ela. Preso. Deixe-me socorrer minha mãe. A
gente faz isso, malandro. Tapa, chutes, cacetadas, murros.
O mundo rodando, giro doido num eixo de ódio. O mun-
do desabando, sob o efeito de uma coronhada.
Manhã. Bolor nauseabundo. Impossível mover qual-
quer articulação. Dores. Dores. Um papo atrás da cabeça.
Sem conversa. Sofrer o resultado do espancamento. Dure-
za. E a mãe, onde andava? Como estaria? Precisava saber,
precisava ver, precisava ajudar, precisava confortá-la. Ne-
nhuma informação. Prisão. Cadeia. Grades. Animal. Ódio.
Um bicho feio, enorme, crescendo dentro do peito. Policial
safado, nojento. Nova surra... Por quê? Porraaaaaaa!!!...
Nova estação de trevas.
... Amém, que mais um se foi, minha santa mãe!

A gente até que podia ser feliz aqui, minha velha. O


filho ficou ouvindo. Achou bonita aquela conversa do pai
com a mãe. Era pequeno, ainda. Mas não tão pequeno.
Já crescera muito. Curioso, fez-se escondido, amoitado.
Namoravam, pai e mãe. O pai perdera o monossilabismo.
A cidade grande exigia falação. Noite nova, mal iniciada
a escuridão. A gente e o nosso filho, mercê de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo e do Santo Padim Ciço, pode ser feliz
em qualquer lugar. É querer de Deus. Que mal fizemos,
para não merecermos a felicidade? O pai pareceu desnor-
teado, mas encontrado. É, você tem razão. A gente sem-
pre cumpriu a vontade de Deus. A mãe puxou a cabeça
do pai, colocando-a no colo. Deus sempre foi bom com a

309
O rosário

gente. Se a gente sofreu algumas vezes foi por culpa dos


nossos pecados. É preciso purgar os pecados. A gente so-
fre, mas depura o espírito. Alisava a cabeça do pai. Houve
silêncio. Apenas o mangue falava os arruídos naturais, de
caranguejos, aratus, apuás, sururus, o safrejado da ara-
gem sobre as flores brancas. Passou-lhe os dedos entre os
cabelos, sobre a ponta das orelhas, fez-se carícias.
O filho encolheu-se na moita. Lembrou a mãe alisan-
do os seus próprios cabelos. Amor.
Saiu silenciosamente, pisando no baixio do mangue-
zal, como um felino à procura da caça, farejando qualquer
passo em falso.
Acordou. A cadeia comprimia. A vida girava, na pri-
são, sobre o eixo do ódio.

Teve pena. Fazia pena. Sempre fizera pena. O novilho


peiado, futuro reprodutor. Desnecessário. Já havia o cam-
peão, pai do lote, bom de mantença, melhor de cruza. Ca-
pão. Doía. Alguns passavam de novilho a touro. Outros, a
maioria, direto a bois, capados.
A madrugada da seca sempre terrível. Vermelho e
preto. Poente preto, nascente vermelho, peito e pernas
de concriz. Acauã, predição de tempo ruim. Madrugada
rubro-negra, sangue-luto, consumação.

Era outro o lavradouro. Carregar tijolos, telhas, lajo-


tas, azulejos, cobogós, areia, saibro, cimento, o que há de
material de construção. Ajudante de pedreiro. Preparar a
massa, carregá-la, erguê-la para o piso superior. Um duro
danado. Sábado também. Melhorar o ganho, com troca-
dos extras, virando domingos e feriados.

310
Iran Gama

As grades, prisão. Ódio. A mãe, que é feito da mãe?


Adulto. De que lhe servia ser, se não podia, se não servia
sequer para ajudar a própria mãe? Peão de construção. O
que era pior? Ser adulto, sem importância alguma para
coisa nenhuma, ou ser ajudante de pedreiro, sem impor-
tância nenhuma para coisa alguma? Era tudo o mesmo
mané luiz. Nem eira, nem beira. Ao menos para uma coi-
sa lhe servira a profissão. Aprendera todos os caminhos
da cidade, praças, ruas, avenidas, becos, vielas, prédios,
favelas, palafitários, mangue, morro, asfalto.
Preso. Nem menino, nem adulto, nem nada. Boi, en-
caretado. A mãe, onde andava a mãe?

A passeata vinha pelo meio da avenida. De cima do pré-


dio em construção podia-se ver com perfeição a multidão,
as faixas, os cartazes. Estudantes. Gritavam qualquer coisa
sobre refeitório. Protestavam contra os aumentos de preços
no restaurante universitário e os recentes aumentos no pre-
ço das passagens de ônibus. Falava-se em suprimir os passes
estudantis. A estudantada estava furiosa. Gritava palavras de
ordem, esbravejava contra a situação que se pretendia criar
para eles. Do meio da multidão de estudantes partiu uma
pedra, que esfacelou a vidraça de uma loja. A polícia surgiu
na avenida, vindo em sentido contrário ao dos estudantes. A
batalha começou. Pedras contra os policiais. Estes, protegi-
dos pelos capacetes e escudos, avançam continuadamente,
tentando se aproximar da turba estudantil para dispersá-la.
Várias granadas de gás lacrimogêneo foram atiradas. Pedras.
A praça de guerra estava completa. A falange policial arre-
meteu definitivamente contra o núcleo da passeata. A de-
bandada foi geral. Alguns, mais afoitos, gritavam as palavras
de ordem e vociferavam o direito que tinham, de expor suas
mazelas, que eram mazelas da sociedade como um todo.

311
O rosário

De cima do andaime ele viu. Três policiais pegaram


um estudante. Aliás, somente dois pegaram, um em cada
braço. O terceiro o que fez foi espancar o rapaz. Golpes
de cassetete e chutes. Ficou de cima, vendo a cena. A co-
vardia do ato causou-lhe náuseas. Covardes. Vai ver que
sozinho não aguenta um sopapo. Cresceu dentro dele o
bicho ruim da revolta, uma semente de ódio. Então era
pra isso que o governo pagava a polícia?

... santificado seja o Vosso nome, venha a nós o Vosso


reino, seja feita a Vossa vontade, assim na terra como no
céu. O pão nosso de cada dia dai-nos hoje, e perdoai as
nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos
têm ofendido, e não nos deixeis cair em tentação, mas
livrai-nos de todo o mal. Amém, que mais um se foi, mi-
nha santa mãe!

Noite. A cidade começa a adormecer. Segunda-feira,


início de jornada. Um mormaço atravessa as ruas da cida-
de, paira sobre as habitações e adensa a temperatura. O
soldado desce do ônibus e toma o caminho de casa. Atrás
de si o ônibus dá partida, deixando a parada deserta de
tudo. Afora os ruídos normais da cidade, há um silêncio
enorme na rua. O soldado, sem pressa, caminha, vez por
outra olhando para os lados, como se temesse algo. Os
acontecimentos dos últimos meses justificam todo o seu
temor. Foram cento e sessenta e quatro militares, policiais,
mortos. Todos vitimados por arma branca. Nenhuma tes-
temunha conseguira descrever o criminoso ou criminosos.
Coisa esquisita. A polícia vítima de tamanho desatino. A

312
Iran Gama

cidade está inquieta. A polícia está inquieta. Dos assassi-


nados, a maioria era de soldados. Mas foram igualmente
vitimados alguns cabos, cinco sargentos e até um major.
O governo inteiro estava assustado. Seria a máfia? Que
tipo de criminosos organizados estavam praticando se-
melhante desatino? O governo estadual passava por uma
crise sem precedentes na sua história republicana. Na sua
história inteira, desde as capitanias. Crise de credibilida-
de, crise de responsabilidade, crise moral, crise política.
Como era possível um fato tão assombroso acontecer,
mantendo a própria polícia manietada, ela, a responsável
pela integridade dos cidadãos, e o governo sem respostas
perante a comunidade? No noticiário do País inteiro não
era outro o assunto das manchetes. Mais um caso de cras-
sa incompetência, diziam uns. Puro imobilismo, diziam
outros. Quem poderá proteger a sociedade e os pobres
policiais da sanha desses criminosos? Indagavam outros.
O soldado dobrou a esquina, pisando na rua sem asfal-
to. Rua deserta, mal iluminada. Com medo, desabotoou o
coldre, quase empunhando o revólver. Não cessava de olhar
para os lados, para trás, para frente, tentando enxergar na
escuridão os possíveis vultos que se avizinhassem. Nada via.
Apenas escuridão. Sob o peso do passo com o coturno, a
areia rangia. Enervava-se com o ruído, mas não havia como
mudar. Uma poça de lama, desviou. O suor escorria pelo
queixo. Lembrava os companheiros mortos. Furadas segu-
ras. Às vezes uma só, certeira, no coração. Vinte e cinco deles
foram colegas da mesma turma, na academia. Outros eram
mais novos, alguns mais antigos. Até o dunga do pelotão,
cabra valente, bom de capoeira, sabedor de golpes de cara-
tê, esperto que só, tinha ido. Quem tinha segurança, quem
estava livre de se encontrar com esse assassino louco? E se eu
o encontrasse e o matasse? Seria condecorado, promovido a
cabo, tenho certeza. Apertou mais a coronha do revólver.

313
O rosário

Boa-noite, seu guarda. Assustou-se, o coração dispa-


rado, doidinho da silva, aterrorizado. Como é que esse
aleijado apareceu aqui, tão de repente, de onde veio que
não vi? Deve de ter parte com o capeta. A mão doeu, do
aperto que deu na coronha da arma. Que é que você quer?
Não quero nada não senhor. Então desafasta, arreda! O
homem magro, esmolambado, com uma perna só, duas
muletas, desculpou-se, deu as costas. O soldado voltou-se,
retomando a caminhada.
Vuup! O soldado caiu, surpreendido pela pancada des-
ferida com a muleta. Uma faca brilhou sob os reflexos de
uma distante lâmpada. Um rosto lívido, enrugado, ma-
gro, fez-se todo decisão, sob o olhar duro, no momento
em que a faca seguiu o seu itinerário de morte.

Liberto. Dois dias de cadeia. Nenhuma explicação


para a prisão, nem outra para a soltura. Coisa sem valor,
o que se soltava. Voltou correndo para casa. Ansiedade
enorme dominando o corpo. Queria ter asas, para chegar
mais depressa. Impacientava-se, angustiava-se. Precisava
saber da mãe, como estava. Na prisão não obtivera qual-
quer notícia, não ouvira o mínimo comentário. A angús-
tia deixava-o deprimido, sufocado. Ônibus cheio. Cabeça
cheia. Impaciência. A favela. As ruelas, o beco, o baixio
do mangue. Os vizinhos olhando para ele, comiseração
estampada nas faces. Minha mãe? Quem me diz?
Está morta!
Crispou mãos, trincou dentes, sufocou lágrimas. En-
terrada? Sim. Me leva até ela? Vamos.
Seguiram. Conheceu a cova rasa. Agradeceu. Deus que
pagasse o favor.
Queria ficar só. O corpo magro ajoelhou-se.

314
Iran Gama

Pegou o rosário, começando as orações.


Prometo, minha mãe, pelas chagas de Nosso Senhor
Jesus Cristo, que para cada uma conta deste rosário dei-
xarei um policial morto. Eu juro.

... rogai por nós, pecadores, agora e na hora da nossa


morte. Amém, que o último se foi, minha santa mãe!
As palavras soaram suavizadas, sob o timbre de voz
grave e seca. Magro, rosto enrugado, o filho adulto orava
sobre a sepultura da mãe. Nenhuma compunção nas li-
nhas do rosto.
Levou à boca a última conta do rosário que perma-
necia inteira, partindo-a. Guardou-o no bolso traseiro da
calça de zuarte e saiu, deixando para trás o eco das suas
orações.

315
Essa mosca morde
Jacques Ribemboim

Em meio ao jantar, a mosca pousou na mesa. Era enor-


me, parecia um monstro, um tanque de guerra, um coura-
çado. O casal parou de comer. A mulher, aflita, murmurou
alguma coisa óbvia e o marido deparou-se perplexo. “Que
mosca enorme!”, foi o que pensaram a um só tempo, sem
tirar a vista do inseto.
A mosca, cada vez mais ameaçadora, agitava as pati-
nhas da frente umas nas outras, como se estivesse prepa-
rando o bote final. “Vou comê-los. Vou comêêê-los!” – emi-
tia com voz cavernosa, que ressoava na plateia atônita. Os
olhinhos eram radares antenados, faiscando para todos os
lados. Ali, de pé sobre a toalha de linho branco, erguia-
se a mais potente das armas atômicas, capaz de destruir,
num piscar, milhões de casais como aquele.
Terminado o primeiro ato do dramalhão, o homem
vaticinou solene: “Essa mosca morde!”. Foi o bastante. A
frase teve efeito devastador sobre a esposa, que já não se
controlava mais e gritava sem parar, olhos aboticados no
monstruoso inseto. “Mata…, mata…, mata!” Estava com-
pletamente histérica e balançava as mãos, tentando es-
pantar a drosófila.
O homem, ainda atordoado, passara agora a apreciar
o cenário. Não tinham filhos, não tinham amigos (a es-
posa detestava seus colegas de escritório), não tinha ele
mais sossego, sempre precisando comprar frivolidades
no supermercado, na padaria, no shopping center... Tentou
manter a fleuma das refeições, quando praticamente não
Jacques Ribemboim

se falavam e ouvia-se apenas o tilintar dos talheres. Pôs


um pouco de purê na boca e mastigou-o devagar entre as
bochechas.
Por fim, decidiu reagir: “Calma, calma! Esta mosca só
morde quando está com fome ou medo. E quanto mais
você agitar as mãos, mais risco irá correr”. Com ousadia,
pôs-se à frente da esposa, procurando defendê-la, surpre-
endendo a si próprio, pois, no íntimo, não era o que que-
ria. “Eu a protejo, amor.” Mas que diabos! – conjecturou
– por que se meter entre o criador e a criatura se de nada
adiantaria, se a sua sorte já estava selada?
E a mulher continuava agitando as mãos ridiculamen-
te: – “Mata…, mata o bicho!”.
Num salto, o homem partiu para a cozinha onde apa-
nhou o frasco de inseticida que guardava no armário. De
arma em punho, volta-se contra o inseto. “Vai, vai, dispa-
ra, está esperando o quê? Atira... atira! Mata!” O homem
hesitou por alguns momentos e depois, como em câmera
lenta num filme de caubói, foi movendo o polegar, pres-
sionando o gatilho.
De súbito, a mosca deu um salto e voou para o cabelo
da patroa, como um kamikaze que decide morrer levando
consigo o inimigo. A mulher, então, mudou diametral-
mente o tom do discurso: “Não atira! Não dispara, espe-
ra..., acabei de fazer o cabelo no salão!”. Mas, a esta altura,
o marido estava resoluto. “Esborrifo só um pouquinho, fi-
que parada, não vai doer, não vai lhe causar nenhum mal.
Uma borrifada e... puf..., fim da estória!”.
No cabelo da mulher, a mosca já não parecia feroz
nem ameaçadora. Era um bichinho frágil, um ser inútil
em busca de diversão esporádica. O polegar do homem
é que havia se transformado em nova ameaça. Sentiu-se
poderoso, arma em punho, e esboçou um sorriso sutil,
quase imperceptível. Uma mosca na cabeça da mulher,

317
Essa mosca morde

um crime na cabeça do homem. Despejaria todo o veneno


na esposa e depois jogaria a culpa na mosca. Lembrou-se
que, na véspera, ela havia reclamado do horário em que
chegara a casa após uns drinques solitários.
Cresceu a vontade de pulverizá-la, pensando nas hu-
milhações que havia sofrido no dia em que visitaram os
Silva, e os Jardim, e os Dourado. A mulher costumava di-
zer que o marido não tinha jeito para ganhar dinheiro,
talvez nem mesmo para trabalhar. Por que repetia aquilo,
por quê? Acuava-o num beco sem saída. Por causa de sua
indiscrição mentirosa, ela o transformaria num assassino
maluco, Baygon na mão, pondo a culpa em um inseto.
Apontou o orifício da garrafa direto para o nariz da
mulher. Já nem via mais onde estava a mosca, o monstro
terrível de há pouco. Mas continuou baixando o pulve-
rizador e já não ameaçava a mulher, nem a mosca, nem
mais nada, e foi baixando também o corpo até ficar de
joelhos, braços largados, apenas segurando o frasco de
veneno com uma das mãos.
“Vou matar-me” – pensou. Seria manchete nos jornais.
De forma inédita, um homem apontaria um jato de inse-
ticida caseiro contra seu próprio rosto e o acionaria. Em
segundos, estaria morto e livre de tudo, da mulher, das
moscas, dos Silva, dos Jardim e dos Dourado.
Suspirou fundo, apertou o polegar. O jato foi fulmi-
nante. Num átimo, a mosca se debatia no assoalho em es-
piral de estertor. Havia matado a mosca que mordia. Sem
entender por quê, começou a soluçar, procurando conter
o choro, e com a voz embargada, murmurou baixinho e
uma vez mais. “Essa mosca morde.”
Em seguida, desabou de vez em um pranto incontrolá-
vel, para espanto da mulher.

318
João sem Pernas e Maria dos Jornais
Jayme Torban

Nascido sem as duas pernas e de um ventre de mãe


solteira e pobre, a opção da genitora, nos primeiros dias,
foi abandoná-lo sob a marquise de um banco, à noitinha,
onde ela nutria a esperança de que, ao abrir-se o estabele-
cimento para o público, algum funcionário ou quem quer
que fosse se apiedasse do bebê deformado e o protegesse.
Acontece que ali era o abrigo noturno da pedinte conhe-
cida como Maria dos Jornais.
Quando a parda gorda, já quarentona, chegou para
recolher-se em seu canto, o umbral, que havia muito era
sua casa e seu refúgio, deparou-se com o bebê agitado a
chorar de fome e que não tinha pernas.
Assombrada e assustada, tomou a criança no colo e de-
pois, mais calma, partiu em busca de uma prostituta co-
nhecida que amamentou o desamparado. Voltando para
seu lugar, depois de não muito pensar, decidiu que iria
criá-lo.
Amparado pelos seios da prostituta e pelo calor e ca-
rinho de sua nova mãe, o bebê conseguiu sobreviver e se
tornou um menino forte, esperto, alegre.
Fazendo ponto em uma esquina sinalizada, deslizava
entre os carros parados no sinal, mão estendida e com um
sorriso simpático e transparente conseguia ao fim do dia
boa soma de recursos para que nem a ele nem a Maria
dos Jornais faltasse comida. Verdade que sua madrinha,
como ele a chamava, conseguia sempre menos que seu
afilhado.
João sem Pernas e Maria dos Jornais

Quando criança, em seu carrinho, constantemente


abandonava seus afazeres e concorria com outros me-
ninos normais e filhos de burgueses, em seus carrinhos
montados sobre rodas de madeira, feitos por encomenda
em serrarias. Nas competições pelas ruas em declive, ele
sempre vencia, não só porque seu carro era montado em
rolimãs, como também pela força de seus braços em im-
pulsionar o veículo. Foi proibido de disputar, afastado por
concorrência desleal.
Magoou-se, mas não perdeu o sorriso. Com a idade
avançando, dedicou-se a tentar ver nas moças, favorecido
por sua posição baixa, suas coxas, a calcinha, para depois,
isolado, masturbar-se.
Profundamente desiguais em pensamentos, necessi­
dades, emoções, convivendo num mesmo limitado vão,
entre uma porta e uma platibanda, Maria dos Jornais, co-
nhecida por esse nome por carregar sempre uma pilha
de velhos jornais, que à noite eram transformados em seu
colchão e travesseiro para acomodar melhor as dores do
seu corpo, pesado e cansado, e João sem Pernas, com seu
carrinho, tinham entre si profunda comunicação, unidos
por um grande amor, embora os diálogos entre ambos
fossem pouquíssimos. Gestos, olhares, união muda, prati-
camente banida de sons.
Enquanto o jovem se tornava homem, a mulher enve-
lhecia. Dores, incômodos, gemidos, reclamações sussur-
radas, deu para acender vez por outra uma vela e esbo-
çar uma prece, um pedido de ajuda. Gestos mais lentos,
passos vacilantes, mais inchada, dificuldade para deitar e
levantar.
Mas a vida ia sendo vivida normalmente por eles, até
porque, para quem não se adapta às suas circunstâncias, o
resultado é a extinção.
No início de uma madrugada, ainda estrelas pálidas e
lua enfraquecida, João acordou com os gemidos e choro

320
Jayme Torban

de sua madrinha, que ao seu lado o despertou preocupa-


do. Ela tinha muita febre e calafrios. Cobriu-a com todas
as folhas de jornal disponíveis.
Quando a madrinha ainda era uma tenra menina, um
dia refugiou-se, porque chovia, na porta de uma casa onde
foi percebida por um senhor alto, de cabelos brancos, que
a levou para dentro. Com uma pilha de jornais, forrou-
lhe as costas, depois o seu peito magro, protegeu-lhe as
sandálias e fez um chapéu de almirante para lhe amparar
a cabeça. Explicou que as folhas de jornal a protegeriam
do frio e da umidade. Uma garoa caía do céu cinzento.
Ela foi para casa e nunca mais esqueceu a lição do velho
professor Matos, de música e canto orfeônico.
Ela delirava. Fala com voz entrecortada de um amplo
campo coberto de cinzas, sob um céu descolorido. Nes-
se campo havia vultos que se arrastavam. Ela pedia para
voltar para a casa de onde nunca deveria ter saído. Que
casa seria? Não entendia como havia chegado a este lugar
estranho.
As visões se lhe misturavam e ela revia habitações onde
nunca havia penetrado, ruas que nunca percorrera, cida-
des onde nunca havia morado. Mas se dava conta de que
além de não ter dinheiro, também não havia condução
que a transportasse para sua casa, amigos conhecidos, a
sua família.
Pessoas disformes arrastavam-se entre a camada de
cinza. Figuras aterradoras. Ela se via com as nádegas ar-
rastando-se no chão, nádegas em que ela se apoiava mais
do que nos próprios pés. Pessoas, troncos que se arrasta-
vam, outros cujos braços pareciam tentáculos de polvos.
Pescoços compridos que não suportavam o peso da cabe-
ça, mulheres de seios feridentos, murchos, desabando pela
barriga; orelhas, narizes, olhos, ouvidos, peitos, genitais,
tudo deformado em um pesadelo jamais por ela imagina-
do. Tudo como se a gravidade a houvesse inexoravelmente

321
João sem Pernas e Maria dos Jornais

puxado para baixo, ignorando qualquer possibilidade de


se integrar a um plano superior que não fosse o arrastar-se
na camada de cinzas, suave como seda.
Entre as suas palavras balbuciadas, mal compreendi-
das entre as monstruosidades que a estavam apavorando,
descobriu ao caos uma figura alta e esguia, que sobre a
bruma tocava um violino.
Sua cabeça debruçada sobre o instrumento qual aman-
te agradecido, seus dedos pressionando as cordas e seu
arco, impulsionado ao comando do seu ouvido, dos seus
sentimentos, a tudo sobrepujou, dando uma nova espe-
rança para quem a buscasse. Maria dos Jornais, admirada
e surpresa, encantada, procurou aproximar-se dele, afas-
tando quem obstruísse seu caminho. João sem Pernas viu
seus olhos abertos perderem o brilho, a boca entreabrir-
se, mostrando dentes irregulares e falhos, totalmente en-
volvida pelo som apenas por ela percebido, aquietar-se na
imobilidade total.
Embora tendo consciência de que a sua madrinha ha-
via falecido, durante algum tempo ainda a sacudiu suave-
mente, conversou tentando dar-lhe forças, mas, rendido
às evidências, catou nos pertences um toco de vela que
acendeu ao seu lado. Sofrendo, mas incapaz de chorar,
pensava como deveria agir e qual seria o destino do corpo
da Maria dos Jornais.
Enquanto velava o corpo da querida madrinha, sol
nascendo como todo dia, chegou o caminhão do lixo, ve-
lho conhecido. Os funcionários tomaram conhecimento,
desejaram pêsames, lamentaram, e para resolver a situa-
ção, em comum acordo, colocaram o corpo no caminhão,
o levaram para o cemitério do subúrbio e lá encontraram
o Fotógrafo, como era conhecido, que junto com os vigias,
coveiros, floristas, trabalhava no lugar há alguns anos e
especializara-se justamente em fotografar uma última
imagem dos mortos para seus familiares.

322
Jayme Torban

Ele prontificou-se a resolver tudo, ajudar no que fosse


preciso, pois conhecia todos os meandros antiburocráticos
daquele campo santo, mas antes insistiu em tirar uma fo-
tografia da morta, pendurada no caminhão do lixo, com
um monte de jornais e lixeiros sorridentes, e por falha de
fotografia, apenas a cabeça triste de João sem Pernas.
O fotógrafo conseguiu de seus amigos que cuidavam
do cemitério, enterrá-la rápido em cova rasa. Sem data ou
identidade, como se nunca houvesse vivido, nunca toma-
do parte da humanidade, ali desapareceu para sempre.
Igual ao final de todos, que mais cedo ou tarde, são total-
mente ignorados.
A fotografia foi entregue ao afilhado que a guarda até
hoje, enquanto também não for para o lixo ou para um
arquivo barato de um antiquário curioso.

323
Brassávola
Joaquim Cardozo

Uma das ruas em que morei, por algum tempo, no


Recife, tinha o nome de 24 de Maio; era uma rua que há
vários anos foi aberta sobre o Cemitério do Convento dos
Carmelitas, por isso se chamou, primeiramente, Rua dos
Ossos; a razão deste nome provinha de terem sido revol-
vidos, por ocasião dos trabalhos com a sua construção, vá-
rios túmulos e valas comuns, exumando-se os esqueletos
de muitos que ali foram sepultados.
A atual Rua 24 de Maio foi, assim, traçada sobre terra
ocupada por gente morta há muito tempo, e de quem não
mais se tinha qualquer lembrança dos parentes e amigos.
Nas catacumbas demolidas, nos túmulos desmoronados, fo-
ram, em dias muito remotos, encerrados os corpos de fra-
des do convento; irmãos membros da Ordem Terceira, das
irmandades e confrarias: homens, mulheres e crianças que
teriam morado naquele bairro ou nas suas proximidades;
como era de hábito, naquele então teriam sido inumados.
As pequenas casas daquela rua, quase todas de porta e
janela, tinham dependências mal distribuídas, e de dimen-
sões exíguas; faziam lembrar, essas pequenas casas, verda-
deiros mausoléus para gente viva, ou talvez, quem sabe,
para darem acolhimento às almas dos que morreram, e
ali ficaram como defuntos, as almas que depois de tanto
tempo muita gente ainda acreditava que visitassem aquele
local, e se comprazessem em vagar pelas vizinhanças.
Era uma rua estreita e triste indicando pelo seu aspec-
to a sua origem lúgubre e funérea; naquele mesmo lugar
Joaquim Cardozo

muita gente chorou; em épocas já muito antigas, diversas


famílias rezaram diante dos cadáveres dos seus parentes
mais íntimos, e cobriram de flores, e acenderam velas, e
rezaram terços; nos dias de Finados voltavam, todos os
anos, para repetir as mesmas cerimônias que foram aos
poucos desaparecendo, pois se desfizeram com o tempo,
as próprias famílias. Apagaram-se os nomes das pedras
nas sepulturas, apagaram-se, nas memórias, as recorda-
ções. E toda a saudade se perdeu no meio daqueles ossos
revolvidos, ossos que teriam sido sementes plantadas, das
quais nada cresceu; semeadura que nada produziu.
Era uma rua estreita e triste, que, apesar de tudo, esta-
va impregnada de uma lembrança vaga e incerta, desco-
nhecida ou indeterminada; impregnada de uma saudade
imperceptível e mutilada, de uma nostalgia secreta e lon-
gínqua. Era uma rua estreita e triste!
Eu morava sozinho numa das casas da Rua 24 de Maio;
ocupava dessa casa apenas a sala da frente e o quarto que
dava para essa mesma sala. Nela estavam a minha espre-
guiçadeira, os meus livros, os meus desenhos; nessa cadei-
ra lia todas as tardes, antes de sair para jantar, lia todas as
noites antes de dormir.
No quarto estava a cama em que dormia, deixando
inteiramente abandonado o restante da casa: o longo cor-
redor, a sala de jantar e o quarto que, com ela, se comu-
nicava. A cozinha ficou inteiramente sem uso; sem uso o
seu fogão de vários borralhos e com forno de assar bolos
e pernis; fogão todo de tijolo de barro, ao jeito antigo das
velhas casas. Na sala de jantar pus, entretanto, uma larga
mesa de madeira tosca, onde fazia e tomava o meu café
pela manhã.
E o corredor? O corredor somente usava pela manhã
para alcançar o banheiro e o sanitário, localizados no ex-
tremo da casa, depois de um pequeno quintal.

325
Brassávola

Naquele tempo eu vivia sempre na rua; trabalhava


numa repartição pública, almoçava sempre em restauran-
tes e somente voltava para casa à tarde, depois dos servi-
ços prestados na repartição. Das quatro e meia da tarde
às seis horas ficava lendo, na espreguiçadeira, à espera da
hora do jantar, para o que também usava os restaurantes
Gambrino ou 32.
Logo após o jantar, ia à procura de um grupo de ami-
gos que se reuniam todas as noites no Café Continental,
sito à Rua do Imperador; em companhia desses amigos,
ficava eu conversando até tarde da noite. Como a maior
parte desses amigos voltava cedo para casa, costumava eu,
quase sempre, em companhia dos mais retardatários, ou
atravessar a ponte para o Recife Velho, aonde íamos beber
num bar da Rua da Guia, ou procurávamos o bar alemão,
que existia ao lado do Diario de Pernambuco, onde ceáva-
mos, onde bebíamos chope e comíamos frios sortidos. Às
vezes, andávamos até um outro bar, o Pergentino, à Rua
de Santo Amaro, onde também ceávamos; depois visitá-
vamos as pensões de mulheres: Pensão Bohemia, Pensão
Monte Carlo, ou Pensão Mimi; não era, entretanto, todos
os dias que me demorava por tanto tempo nessas excur-
sões notívagas; muitos dias da semana voltava também
cedo para casa, onde, na minha espreguiçadeira, ficava
lendo até tarde da noite.
Dessa casa em que morei, na Rua 24 de Maio, o que
mais impressionava era o corredor; não sei por que desco-
bria, na sua escura e larga e longa penetração até à sala de
jantar, qualquer coisa de esquisito e fantástico, sobretudo
porque sabia que ele era uma comunicação quase mutila-
da para o resto da casa, sobretudo para a cozinha e o ou-
tro quarto. O que mais me impressionava era o corredor.
Quando levantava os olhos da leitura que estava fazendo
era sempre do corredor que me vinha uma sensação de

326
Joaquim Cardozo

tristeza e isolamento. Ao longo das suas duas paredes sem


aberturas para os dois quartos da casa reinava sempre um
silêncio, dentro de uma escuridão mais espessa quando,
com as chuvas, mais cedo anoitecia; e quando procurava
ir ao banheiro durante a noite era uma aflição que me
vinha ao penetrar naquele túnel, pois representava para
mim uma aventura percorrê-lo. De qualquer modo, aque-
le corredor era uma passagem forçada para alcançar a
sala de jantar e o banheiro; habituei-me, portanto, ao seu
mistério e à sua realidade.
Entre os amigos com quem costumava conversar, sen-
tado tranquilamente numa das pequenas mesas do Café
Continental; mesas que estavam todas as noites espalha-
das nas largas calçadas da Rua do Imperador; entre esses
amigos estava, todas as noites, um descendente de um
funcionário do London Bank. Era filho de um engenheiro
que veio da sua terra trabalhar na Great Western, com-
panhia inglesa de estrada de ferro. Chamava-se Walter
William Cox, mas, camaradamente, todos nós, lhe cha-
mávamos de “o velho Cox”; morava na Estrada de Dois
Irmãos, num grande sítio, muito arborizado, numa velha
e grande casa, no subúrbio de Casa Forte. O “velho Cox”
era um dos primeiros a deixar a tertúlia, preocupado com
a entrada no banco onde trabalhava, no dia seguinte pela
manhã muito cedo.
No sítio onde morava, junto à grande arborização que
conservava, Cox cultivava orquídeas; cultivar esse tipo de
flores era o seu hobby, nas conversas que tínhamos fala-
va-se, às vezes, de orquídeas raras, do hibridismo que se
usava, procurando obter novas espécies não existentes na
natureza que importam em quase 20 mil espécies.
Dessas conversas que mantínhamos sobre as orquídeas,
resultou que nos meses que floriam essas plantas epífitas –
quase sempre nos meses de março e abril –, Cox começou

327
Brassávola

a nos trazer, e nos oferecer o que o seu orquidário pro-


duzia; eram Oncidius (os regnere e lencianus) eram Catleias
e Lélias, eram Wandas e Dendróbios, eram Miltônias e
Epidendreas, todas de belos coloridos, todas de labelos
de formas diversas, algumas em cachos de flores amarelas
ou vermelhas.
Nos dias em que recebíamos os presentes das orquíde-
as, depois que todos nós as contemplávamos, costumava
levá-las para casa, onde as colocava na sala de jantar, em
cima da mesa, dentro de um copo com água; voltava, nes-
ses dias, mais cedo para casa com o fim de guardá-las e
conservá-las por mais tempo.
Na manhã seguinte, quando passava para o banheiro
ou me sentava à mesa para tomar café, elas sempre me sur-
preendiam; sempre chamavam a minha atenção, essas belas
flores. Contemplava-as então à luz do dia, observando-lhes
o seu encanto. Assim fui conhecendo, aos poucos, grande
parte do orquidário do meu amigo Walter Cox, e fiquei
familiarizado com essa família de plantas de tanta rique-
za formal e tão caprichosas linhas, e admiráveis contornos.
Essas mesmas plantas que muitos anos depois voltei a apre-
ciar no orquidário de um outro amigo, o notável escritor
carioca Gastão Cruls, também descendente de estrangeiro,
e que possuía uma casa no Alto da Boa Vista, onde passava
o verão e, às vezes, me recebia, a mim e a Rodrigo M. F. de
Andrade para com ele jantarmos; gostava nessas ocasiões
de olhar as suas orquídeas, naqueles dias de verão carioca,
áspero e quente, e do qual ficávamos abrigados pelo bom
clima do Alto da Boa Vista; olhava a coleção das suas flores
e lembrava-me das do velho Cox; Gastão era também apai-
xonado por esse tipo de flor. Hoje, Gastão e Rodrigo vivem
ainda na lembrança dos seus parentes e amigos; portanto,
também na minha recordação.
Da influência que em mim exerceram as orquídeas de
Cox basta contar o seguinte episódio. Uma noite o meu

328
Joaquim Cardozo

amigo trouxe-nos uma pequena flor sem o brilho das


Catleias­ou das Lélias ou das Oncidius e tantas outras que
eram belas, brilhantes, com suas pétalas acetinadas; era,
sim, uma pequena orquídea de cor branca e medíocre,
que o nosso amigo designou como uma Brassávola; quase
sem graça e sem valor para ser vista, mas tinha uma pro-
priedade que as outras não possuíam: aquela Brassávola
era perfumada, emitia um cheiro bom, forte e agradável
a partir das primeiras horas da tarde; a flor com o seu
perfume anunciava a noite; o crepúsculo tinha o dom cós-
mico, universal, de comunicar ao mundo terrestre, à natu-
reza da vida vegetal que o sol distante desaparecera; havia
entre a flor e a luz solar uma espécie de simbiose ou de
despedida qualquer, que justificava o seu perfume como
uma manifestação de vida vegetal, caracterizada pela clo-
rofila; o seu perfume era uma parte do crepúsculo, era a
transformação da luz em sombra.
Quando me entregou esse exemplar do seu orquidário
já era quase oito horas da noite e a flor não tinha mais
perfume, pelo que não acreditei no que disse o meu ami-
go, pois nunca tinha visto uma orquídea com hábito tão
raro na sua vida de flor.
Cox costumava ir cedo para casa, e dentro de pouco tem-
po se despediu e foi embora no seu bonde de Dois Irmãos.
Fiquei com a Brassávola, e resolvi voltar também para
casa; demorei-me apesar disso, bastante tempo para que,
ainda com a flor na mão, fosse, aos poucos, esquecendo
o seu sortilégio; na minha hora quase habitual de ir para
casa levei comigo a orquídea, já esquecido das suas virtu-
des quase milagrosas: cheguei em casa e lá, na sala de jan-
tar, fiz o gesto quase automático de outros dias: coloquei,
num copo com água a Brassávola.
Voltei à sala da frente já quase esquecido da sua exis-
tência e, como todos os dias, comecei a ler na minha es-
preguiçadeira.

329
Brassávola

No dia seguinte, pela manhã, como todos os dias,


passei pela sala de jantar para o banheiro, depois sentei-
me à mesa para fazer o café e, logo após, tomei-o com o
pão trazido pela velha empregada que chegava cedo; não
prestei a mínima atenção à Brassávola, orquídea pequena
e sem brilho ali esquecida, abandonada para murchar.
Sem mais me lembrar dela, vesti-me, e saí para o horá-
rio da manhã na repartição a que pertencia; às onze e meia
deixei a repartição para almoçar, o que fiz no Gambrino
como usualmente fazia, dei depois uma aula na Escola de
Engenharia, e voltei ao trabalho no horário da tarde.
Da repartição saí às quatro horas e regressei à casa
onde, como era meu costume, estendi-me na velha cadei-
ra e continuei a ler o romance de Aléxis Tolstoi: Dietsvo
Hikita – A infância de Nikita –, primeiro livro que li em
língua russa, aliás, com muita dificuldade; devia sair logo
mais às sete horas, para jantar, e depois dirigir-me ao
Continental para a conversinha costumeira.
Estava assim a ler, me valendo do auxílio de uma gra-
mática e um dicionário russos, aquela história de uma
infância, empenhado em bem compreender como Niki-
ta conseguira deslizar na neve, montado num escabelo
transformado em trenó, quando comecei a sentir que es-
curecia, e, com a escuridão, um cheiro intenso e agradável
invadia a sala onde me achava. Era esquisito aquele chei-
ro intenso que vinha, pareceu-me, da boca do corredor já
escuro; era como se alguém estivesse àquela hora, viven-
do, ocupando o resto da casa e, talvez, se preparasse para
sair, usando um perfume; talvez na sala de trás uma em-
pregada preparando a mesa para o jantar, ou na cozinha
uma cozinheira ativando aquele morto fogão de tijolo que
nunca utilizei para coisa alguma; era como se uma gente
inesperada, ou escondida naquele resto de casa, estivesse
ressurgindo das cinzas para viver ali; para aparecer, sobre-

330
Joaquim Cardozo

tudo, na personagem de uma mulher bonita e perfumada


que estivesse se preparando para vir ao meu encontro na
sala da frente.
Nesse ponto senti um calafrio, um pânico me invadiu,
lembrando os mortos que, no lugar daquela casa onde
morava, tinham sido, há muito tempo, sepultados. O fan-
tasma de uma mulher formosa e perfumada, talvez agora
vindo me ver, me espiar; talvez estivesse mesmo, na som-
bra do corredor, me espreitando, procurando saber como
eu era; o fantasma de uma bela moça e formosa mulher
naquele lugar enterrada há muitos anos. Cheguei a ter
a sensação de passos no corredor, e uma certa ilusão de
ouvir sorrisos abafados.
Fiquei sem saber o que fazer. Era o corredor, aquele
fantástico corredor que voltava a assumir a sua condição
de mágica influência sobre mim, como há meses passa-
dos; transido de medo pensei em me esgueirar pela porta
da rua, mas me veio ao pensamento que alguém iria pôr a
mão no meu ombro; meio alucinado, supus até que algum
desconhecido estava diante de mim.
Tomado pelo medo, comecei a me arrepender de vir
morar em semelhante rua, construída sobre o terreno de
um cemitério, e cemitério de convento, com muitos anos
de existência e onde, sucessivamente, muitas pessoas fo-
ram inumadas.
Por fim, com um esforço inesperado, procurei voltar
à realidade: levantei-me e acendi a lâmpada da sala; o
aroma que vinha pelo corredor era cada vez mais forte;
animado por essa decisão resoluta, quis me aproximar da
abertura do corredor de onde vinha aquele perfume fan-
tástico, recuei; havia como um tremor, no ar daquela pas-
sagem larga e comprida que se prolongava até a sala de
jantar, e não tinha contato com os quartos da casa; como
se fosse um túnel.

331
Brassávola

Quando ergui os olhos da leitura, sentido o perfume


que inundava a sala, inteiramente fechada, tive a impres-
são de ver: vi, na abertura do corredor, uma figura esvae-
cida, estrangulada que desapareceu de repente.
Vi depois, mais devagar, passar uma mão muito branca
de dedos crispados, ao longo da ombreira da passagem
para a sala de jantar.
Apesar dessas visões que me frequentavam, fui me ha-
bituando ao cheiro agradável que invadiu a sala, procurei
me refazer de todas aquelas suposições e tomei uma de-
liberação definitiva: iria atravessar o corredor até à outra
sala.
Eram, aproximadamente, seis e meia, todas as pertur-
bações que senti me amorteceram, apesar de não com-
preender, e não poder explicar de onde vinha aquele per-
fume, me expliquei como possibilidade longínqua, que
viria da casa vizinha; de qualquer modo fiquei um pouco
tranquilo e abatido.
Resolvi penetrar pelo corredor até o fim do mesmo.
Angustiadamente atravessando o escuro corredor che-
guei à sala de jantar onde também acendi a lâmpada;
olhei em torno da sala, estendi a vista pela porta aberta
da cozinha; não havia sinal nenhum de ter por ali andado
alguém. Até então não tinha ainda percebido a Brassávo-
la, que ali pusera na véspera, dentro de um copo cheio
d’água, em cima da mesa.
Aproximei-me mais da mesa e vi... vi então a pequena
orquídea! Estava ali: medíocre, alvacenta, desbotada, que
à simples vista era quase nada e... de repente lembrei-me
que ela emitia perfume às seis horas da tarde. Cheguei-
me mais para perto.
Aproximei-me então da orquídea; tomei o copo de
cima da mesa; era ela, era a orquídea que intensamente
perfumava o ambiente àquela hora da tarde.

332
Joaquim Cardozo

Era o aroma da Brassávola que começa às seis horas;


hora da antiga Ave-Maria das igrejas do Recife que ain-
da hoje soa e ninguém mais ouve, ninguém mais escuta,
ninguém mesmo a conta como fazendo parte do folclore;
e os serviços de cultura nunca incluíram a sua música à
tradição nacional.
Era o perfume da Brassávola e, ao mesmo tempo, o
perfume da tarde, da luz vibrando no metal da tarde.
Perfume da luz crepuscular se transformando em noite
pura.

333
Coração de dona Iaiá
José Carlos Cavalcanti Borges

“Meu filho:

Teu pai melhorou da cabeça. Seu Quincas, o farmacêu­


tico novo da botica da feira, disse que podia ser albumina.
Você o que acha?
Uma pessoa me disse que você tem uma namorada.
Que não era coisa de bobagem. Parecia uma coisa séria.
Meu filho, penso que é muito cedo para você tomar
um compromisso. Seu pai conversou comigo e também
pensa da mesma maneira. Você ainda nem se formou.
Mesmo depois de formado a vida hoje está muito difícil.
Enfim, não acreditei muito. Mas não se zangue com os
meus conselhos.
Bernardinho tem estudado mais; a professora diz que
ele está tomando gosto. (Mas eu acho que ele é doido de-
mais pela música, não perde um ensaio da Euterpina.)
Você acha que seu pai ficaria melhor fazendo um exa-
me aí no Recife?
Tenha muito juízo, meu filho.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

*
José Carlos Cavalcanti Borges

“Meu filho:

Fiquei mais descansada com a sua carta. A gripe aqui


tem pegado todo mundo. Felizmente seu pai vai com a
cabeça naquilo mesmo. A gripe dele foi mais de nariz.
A pessoa que me falou da sua namorada não foi para
mentir, não. É uma senhora da minha confiança, irmã de
outra senhora que mora perto de você e lhe conhece mui-
to. Ela não quis me dizer o nome da moça, mas disse que
ela era minha conhecida e que se eu soubesse de tudo não
havia de gostar.
Agora estou mais contente. Sei que não é verdade e
que não passa de namorozinho tolo.
Tenha cuidado, meu filho. Você é pobre, seu pai está
velho na vida e a maior alegria dele é ver você formado e
bem empregado. E minha também.
Na semana passada Bernardinho tirou dez em geogra-
fia (o mapa foi Ceminha quem fez, mas a lição ele estu-
dou).
Seu Quincas se ofereceu para ser o portador e eu apro-
veitei para mandar esta carne de sol. Foi comprada no
sábado. Seu pai escolheu da que você gosta.
Já ia me esquecendo da novidade. O prefeito disse que
vai abrir uma escola e prometeu nomear Ceminha profes-
sora. Ela está muito contente. E nós também.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“Meu filho:

Faz quinze dias que não lhe escrevo. Ceminha esteve


gripada. Bernardinho teve muito catarro, de uma chuva

335
Coração de dona Iaiá

que apanhou quando saía, de noite, da Euterpina. Seu pai


já proibiu ele de ir tão cedo aos ensaios.
Você me mandou dizer que não tinha importância,
mas estou achando a coisa muito séria. Então, meu filho,
você se sentando no cinema junto com Lelé, filha de dona
Palmira? Passeando com ela na praia de Olinda como se
fosse noivo?
É capaz de você já estar querendo muito bem a ela.
Meu filho, eu lhe digo porque sou mãe. Você não sabe
como dona Palmira é falada aqui e no Recife mesmo? Tan-
ta moça que existe e você foi logo escolher Lelé. Você não
sabe que dona Palmira vive quase separada do marido?
Só não se separam de vez porque ela tem dinheiro. Uma
mulher que tem dado escândalos. A filha pode ser muito
boa, eu sei, mas vive com ela, foi criada por ela, tem do
aprender os costumes da mãe. Agora a moça pode gostar
de você, ser muito boa, mas depois pode dar para ruim.
Eu lhe falo com toda franqueza.
Seu pai garante que o negócio da escola de Ceminha
está certo. Eu não sei porque desconfio dessa gente de
política.
Pense bem no que lhe digo. Você quer se juntar com
gente de dona Palmira?
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“Meu filho:

Tenho chorado muito. Seu pai já anda até desconfiado.


Você escreve umas coisas e faz outras. Você pensa que aqui
não se sabe direitinho o que se passa no Recife? Está mui-
to enganado. Você tem tomado banho de mar com Lelé.

336
José Carlos Cavalcanti Borges

Você anda na Rua Nova emparelhado com ela e dona Pal-


mira, como se fosse noivo oficial. Só falta a aliança. Meu
filho, você quer se perder? Você não está vendo que esse
namoro não serve para você? Fiz uma promessa ao Bom
Jesus dos Passos, tenho fé que ele salvará você.
Amanhã ou depois, a irmã do agente do correio vai
passar uns dias aí. Vou aproveitar para lhe mandar uns
bolinhos de goma, se chegarem moles, você peça para bo-
tarem a lata no calor do fogão, que ficam torradinhos.
Por que você não estuda muito aquela matéria que está
com nota baixa?
Meu filho, escrevo-lhe chorando, com pena da tua sor-
te. Não queira mais saber daquela moça. É a sua desgraça,
meu filho.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“Meu filho:

Seu pai melhorou, tem saído, tem trabalhado. Às ve-


zes, na força do sol do meio-dia é que a cabeça aperta.
Mas vai dando. Seu Quincas diz que se ele for aí os médi-
cos vão dizer que é albumina.
Meu filho, você ainda não se convenceu de que aquela
moça não lhe serve? Não sei o que é que você tem no juí-
zo. Se eu acreditasse no espiritismo estava pensando que
fosse coisa feita. Uma filha de dona Palmira, meu filho?
Fico muito tempo pensando, me dá uma tristeza. Deus
não me deixará sem ajuda. Ele não ressuscitou Lázaro?
O mestre da música pediu a seu pai para Bernardinho
aprender a arte. Ele diz que o menino tem muita cadência.
Ele pode aprender de dia, nas horas que não tiver escola.
Seu pai ficou de dar a resposta depois. Você o que acha?

337
Coração de dona Iaiá

Ceminha está esperando o emprego dela. O prefeito


já alugou uma casa para a escola, na rua da matriz. É uma
casa boazinha. Lembra-se onde morou dona Francisqui-
nha? Pois é lá.
Eu não queria dizer, meu filho, mas eu sei que você
continua. Uma pessoa daqui viu você num café toman-
do bebidas com aquela moça e dona Palmira. Você já se
encontrou alguma vez com o marido dela? A pessoa dis-
se que vocês beberam uma porção de tempo, ela saiu do
café e vocês ainda ficaram. Você não avalia como eu senti
com esta notícia. Pensei, eu não tinha motivo para pen-
sar, mas pensei que as suas amizades com Lelé estivessem
mais acabadas. Você tomando bebidas, meu filho? Você
não sabe como as bebidas fazem mal? Seu pai com dois
dedos de vinho fica com a cabeça sem ter onde botar.
Nunca pensei que tivesse tanto desgosto por causa da-
quela moça. Você nunca me fez uma ingratidão, meu fi-
lho. Se contassem a seu pai, nem sei o que acontecia. Para
mim ele já desconfia de alguma coisa.
Deus te abençoe,
Iaiá”

“Sinhana manda perguntar se você não sabe um remé-


dio bom para reumatismo. É nos pés”.
Iaiá.”

“Meu filho:

Quando recebo sua carta fico mais calma. Conheço


que você ainda não se esqueceu da gente. Mas vejo logo
que você não fala daquelas coisas que mandei dizer. Se

338
José Carlos Cavalcanti Borges

não fala é porque é verdade, porque não deixou de na-


morar com aquela sapeca. (Ouvi dizer que o marido de
dona Palmira embarcou para o Rio de Janeiro. Não sei
se foi mesmo.) Por que razão você não me escreve sobre o
seu namoro?
Siga os conselhos de sua mãe, meu filho. Eu só quero
o seu bem. A coisa que eu mais desejo é ver você feliz e
muito satisfeito.
Ontem eu tive uma vergonha horrível. Dona Maria Pia
veio me perguntar na novena se você estava para casar
com a filha de dona Palmira. Tinham dito a ela. Eu fiquei
sem saber o que dizer. Passei a novena toda e o resto da
noite com uns soluços me aperreando. Conto para você
saber o que eu sofro.
Você não pense que eu e seu pai não queremos que
você goste de uma moça e se case, não. Mas acho que
um rapaz como você deve procurar uma mocinha direita,
de bons costumes. Então eu não conheço o seu coração?
Depois ainda é muito cedo para você tratar de casamen-
to. Não fique noivo daquela moça, meu filho. É para seu
bem.
Bernardinho pede para você comprar a arte da mú-
sica, para ele estudar. Tem nas livrarias. Seu pai diz que
manda o dinheiro pelo primeiro portador.
Bom Jesus dos Passos que te proteja, meu filho.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“Meu filho:

Faz três dias que seu pai não dorme com o aperto da
cabeça. Seu Quincas não quer que ele tome mais aspiri-
na. Seu pai não tem comido quase nada, a Coletoria ele

339
Coração de dona Iaiá

nem sabe como vai. Bernardinho é que aparece por lá,


fala com o escrivão e vem dar notícia.
Tem sido um aperreio muito grande. Não sei como
posso lhe escrever.
Então agora descobri que seu pai sabe de tudo. Ele vi-
nha sofrendo calado há muito tempo, sem me dizer nada.
Ontem, quando a sua carta chegou, ele me pediu para ler,
ele não pode apurar a vista, com a enxaqueca. Quando eu
acabei, ele disse: quase que eu fiquei bom, Iaiá, uma coisa
estava me dizendo que nessa carta Joãozinho mandava
dizer que tinha se esquecido daquela sirigaita.
Coitado. Tive tanta pena de seu pai. Não falei nestas
coisas para ver se ele melhorava.
Ceminha tem ajudado muito em casa. Ela vinha estu-
dando para começar a ensinar, mas estes dias não abriu
um livro.
Você não conhece um remédio que sirva para a doença
de seu pai? Injeção ele não toma. Seu Quincas tem boa
vontade, mas a farmácia dele está pior do que no tempo
de seu Lobo.
Estou doida que cheguem as férias, meu filho.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“Meu filho:

Aqui todos ficamos muito contentes com a notícia de


que você vem no princípio de dezembro. Foi uma alegria
enorme.
Será mesmo, meu filho, que não tem importância a
sua amizade com Lelé e dona Palmira? Bom Jesus dos
Passos que lhe ouça. E Santa Terezinha.

340
José Carlos Cavalcanti Borges

O prefeito hoje de manhã esteve na Coletoria e falou


a seu pai cheio de rodeios. Era porque ele não ia nomear
Ceminha para a escola nova. Tinha um pedido do juiz mu-
nicipal, para a escola nova. Tinha um pedido do juiz muni-
cipal, para a cunhada dele. Você não conhece, ela chegou
aqui no mês passado. O juiz tem um primo que foi deputa-
do. O prefeito prometeu arranjar Ceminha noutra escola,
que ele vai abrir no ano que vem, perto do matadouro.
Bernardinho já está acompanhando dobrado na trom-
pa. Seu pai faz que não gosta, mas tem ido olhar da porta
quase toda noite os ensaios da Euterpina.
Não tem importância mesmo não, meu filho?
Estude muito a matéria que você sabe menos.
Aqui me disseram que estão usando gravata de uma
cor só. Eu tinha guardado um retalho de seda azul, muito
bonita. Tirei o forro de uma gravata velha de seu pai e vou
fazer outra para você.
Deus te abençoe,
Iaiá.”

“A carta já estava no envelope, felizmente eu não tinha


fechado. Agora de noite, quando seu pai voltou da Euter-
pina encontrou Ceminha conversando com um rapaz. Ele
não disse nada a ela. Mas parece que não gostou muito e
me disse que vai saber quem é o rapaz. Amanhã é que vou
conversar com ela.
Iaiá.”

341
Lucky, mártir da Copa
José Cláudio

Outra história de cachorro. Não sei se quando for pu-


blicada o Brasil ainda estará na Copa: escrevo sempre com
grande antecedência, maio no caso. Se fosse eu, botava o
nome dele de Xaréu ou Tubarão ou outro nome de peixe
para evitar doença, como fazem com nome de cachorro.
Mas se chamava Lucky e sua história começou, a que nós
conhecemos, numa manhã de sábado, março de 2000.
Meu genro Marconi abriu a porta da casa para pegar o
jornal e vem esse cachorrinho muito amigável, fazendo
aí sua aparição. Tinha coleira. Pensando que caminhava
com alguém, Marconi mandou-o continuar. Quando abriu
a porta, ele disparou para dentro de casa. Chamou Maria,
minha filha, sua mulher. “Um cachorro acabou de entrar!”
O futuro Lucky, ainda sem nome àquela altura, correu pela
casa todinha. Conseguiram pegá-lo no quintal. Limpinho,
bem tratado, não trazia identificação na coleira: geralmen-
te vêm com identificação numa medalhinha na coleira, lá
em Houston, Texas, onde o caso aconteceu.
Esperaram um pouco para ver se alguém aparecia pro-
curando um cachorro. Não apareceu ninguém. “A gente
pegou ele, levou no braço passeando pelo quarteirão, para
ver se via alguém procurando cachorro.” Nada. Voltaram
para casa, passando antes no mercado para comprar um
saco de ração. Fizeram cartazes, no computador, para pre-
gar nos postes da vizinhança: “Achamos um cachorro pe-
queno de três cores” e o telefone. Ninguém apareceu. Bo-
taram anúncio no jornal Houston Chronicle com os mesmos
José Cláudio

dizeres. Receberam dois telefonemas, mas não se tratava


do mesmo cão.
Levaram ele no veterinário, deram todas as vacinas, e
foi adotado oficialmente com o nome de Lucky, sugestão
de minha neta Juliana, então com 11 anos; Lucky, feliz,
em inglês, afortunado, sortudo, botado tanto pela boa
acolhida que ele teve na nova casa como por homenagem
ao padroeiro da Irlanda, festejado no mês de março, São
Patrício, cujo símbolo é o trevo-de-quatro-folhas, dador
de sorte: nos Estados Unidos acreditam que irlandês tem
uma sorte sobrenatural, “the luck of the irish”, a sorte do
irlandês.
A ironia é que na época estavam justamente decididos
a comprar um cachorro. Depois de muito estudo, optaram
por um recém-nascido, de uma raça que não soltasse pelo,
e fêmea, chegando até a encomendá-la num canil. Lucky
era adulto, mais ou menos uns quatro anos de idade pela
estimativa do veterinário, macho, e da raça Beagle, que
soltava pelos em três cores: preto, branco e marrom.
Seis meses depois, descobriram que sofria do cora-
ção, infectado por um parasita, ocorrendo a hipótese de
ter sido abandonado por essa causa. Os novos donos, ao
descobrirem, através de exames, o tal parasita, em inglês
heart­worm, verme do coração, já era tarde.
Lucky ficou dois anos e meio com a nova família. Mor-
reu também num sábado, dia de Finados, 2/11/2002, de-
pois de complicações com o coração provavelmente agra-
vados durante o jogo Brasil × Inglaterra. A família toda
assistia ao jogo pela televisão. O Brasil começou perdendo
de 1 x 0. Foi no gol de empate, de Rivaldo, pelo que, em
nome de todos pernambucanos, se me dão licença, peço
a Lucky mil perdões. O segundo gol foi de Ronaldinho,
de falta, que o goleiro inglês pensava que não ia entrar e
depois do jogo disse que sabia que aquele gol ia persegui-
lo para sempre. Ganhamos de virada, 2 x 1.

343
Lucky, mártir da Copa

Mas foi no gol de Rivaldo. Todos gritaram ao mesmo


tempo “Gol!” e começaram a se abraçar. Lucky, dormin-
do, acordou sobressaltado. Desceu correndo do sofá, subiu
noutro, subiu de novo no primeiro sofá e ficou todo arma-
do para o quintal, latindo, olhando pela vidraça como se a
casa estivesse sendo assaltada. Todos pararam e tentaram
acalmá-lo. O segundo gol, por isso, foi menos festejado,
ou menos ruidosamente, em respeito ao coração de Lucky.
Mas talvez já tenha sido tarde. O gol de Rivaldo, funda-
mental para tirar a Inglaterra da Copa, matou Lucky. Não
se recuperou. Demorou uns quatro meses para morrer.
Em agosto, notaram que começava a engordar. Na rea-
lidade estava simplesmente retendo água. Letárgico, per-
dera a disposição costumeira. A respiração ficou pesada,
barulhenta, agonizante. Passou a noite no pronto-socorro
veterinário onde recebeu tratamento diurético e voltou
para casa bem. Mas o veterinário avisou: o coração estava
fraco. Dois meses depois, a mesma coisa. Tomava remé-
dio diariamente mas não adiantou. Nessa segunda, vez
passou a noite na clínica, mas não voltaria para casa. Não
havia nada mais a fazer senão abreviar-lhe o sofrimento.
Botar ele pra dormir, como dizem lá, “put to sleep”. Ma-
ria ficou com ele até o fim. “Eu não aguentei, não.”

344
O regresso
José Condé

Vinte anos me separavam daquele mundo – vinte anos


me separavam de Catarina. Que fizera durante esse tem-
po? Vagara de cidade em cidade, um dia aqui, outro acolá,
como um fugitivo. Agora, porém, retornava e não podia
impedir que a lembrança do passado me seguisse, embo-
ra não desejasse recuperá-lo.
A lua acabara de aparecer sobre a estrada velha de
Santa Rita, um pássaro noturno flechou à minha frente.
E sob o silêncio cortado apenas pelo trote do cavalo, eu
revia a paisagem antiga: conservava-se a mesma, embora
vinte anos mais houvessem transformado minha angústia
em indiferença, meu sofrimento em serenidade. Estranha
vida! Ao fim de tudo, apenas um homem só; um homem
que pode recordar sem ficar triste.
De repente, porém, vi a casa-grande. Recuada da es-
trada, em campo aberto, como sempre a tinha visto nou-
tros tempos. Havia luz no alpendre. Se não me engano,
ouvi mesmo um piano que tocava, vozes e risos. Freei o
animal e fiquei olhando: não me atemorizava a presença
da casa; não despertava em mim nenhum sentimento de
tristeza. Pensei, então: “é preciso que eles saibam disso; é
preciso que ela saiba disso... Ouçam: sou o mesmo, apesar
de mais envelhecido, sou o mesmo, apesar do passado”.
– Que fez durante esses anos?
Então, comecei a falar. Era como se durante aquele
tempo todo houvesse vivido à espera dessa oportunidade
O regresso

e agora quisesse gozá-la vagarosamente, com o prazer de


quem pode ferir com cada palavra que pronuncia.
– Que fiz durante esse tempo? Ora, coronel, vivi, vivi
muito. Ganhei dinheiro. Conheci o mundo, mas estive
sempre só, fruindo o prazer de não me sentir preso a coi-
sa alguma. Talvez até tenha sido feliz, coronel.
Minhas palavras não o perturbaram. Prossegui:
– E o senhor, coronel, e a fazenda? Como se viu com os
negros após a abolição da escravatura?
Sem me encarar, olhando os campos adormecidos,
talvez falando mais para a noite do que para mim, disse-
me:
– As lavouras crescem, os negros trabalham e Deus
protege as minhas terras. Os cafezais florescem e perfu-
mam as estradas. Você não o sente agora?
Baixei a cabeça, confundindo-me, porém continuou
falando e suas palavras eram somente para aquelas ter-
ras.
Ali nascera. Ali também tinham nascido seu pai e o
pai do seu pai, as filhas – Elisa, Malvina e Catarina. – Ali
casara-se. Ali...
Interrompi-o quase bruscamente:
– E Catarina?
Não respondeu. Continuou fitando a noite.

A lua começava a descer. Então me dispus a partir:


– Vou indo. Está ficando tarde.
– Não. Durma aqui. Siga viagem amanhã de manhã,
pois está muito escuro.
Há quanto tempo conversávamos? Talvez uma hora,
talvez duas ou três. Mas as suas palavras já não me interes-
savam, tampouco me interessava o que eu pudesse dizer

346
José Condé

ainda. O meu desejo naquele instante se resumia em ver


Catarina. Após vinte anos de ausência, como seria ela?
Queria vê-la mais envelhecida, com rugas, talvez, mais
triste, só para vingar-me com a minha presença: ou a de-
sejaria como nos outros tempos: bonita, com os cabelos
soltos pelos ombros, o sorriso, e a voz?
– Durma aqui – continuou o coronel – durma aqui.
Atravessamos a sala onde tudo era como antigamente: os
móveis de jacarandá, o espelho de cristal, os quadros.
Depois, o quarto:
– Boa-noite – disse-me.
– Fechei a porta, deitei-me, mas não adormeci logo.
A verdade é que não devia ter aceito o convite. Viera
para vingar-me. No entanto, aquela casa prendia-me, su-
focando-me a vontade e a resistência. Tudo saíra ao con-
trário do que havia planejado. Estava vencido, e o mundo
antigo retomava.
Cerrei os olhos e me virei para o outro lado. Depois
foi o vento. A princípio, uma simples brisa soprando pelas
frestas da janela, para tornar-se, depois, ventania forte,
uivante, varrendo os campos e chicoteando as árvores. Su-
bitamente, a chuva chegou, violenta, caindo lá fora.
Creio que adormeci, porque, quando dei acordo de
mim, estava amanhecendo e a primeira claridade do dia
se projetava através da janela. Chovia ainda, embora o
aguaceiro se houvesse transformado em chuvisco. “E o ca-
valo?” – pensei. Com os diabos! O animal passara toda a
noite ao relento, levando chuva. Ergui-me, rápido, e deci-
di ir em seu socorro. Embora ainda estivesse escuro, era-
me possível ver as coisas em redor. E a minha primeira
sensação de estranheza veio com a desordem do quarto:
um monte de coisas velhas estava depositado ao pé da
porta. Saí para o corredor e... Que se passava? Gritei:
– Coronel! Coronel!

347
O regresso

Caminhei apressado até à sala. Não havia sala, meu


Deus! Não havia móveis, nem quadros: havia apenas ruínas
e um piano despedaçado a um canto. Corri toda a casa, e
somente via paredes esburacadas, teias de aranha, um rato
que, ao avistar-me, enfiou-se no primeiro esconderijo.
– Coronel! Coronel!
Entrei em todos os quartos, e ninguém... Voltei ao al-
pendre: não havia teto, nem rede, nem a cadeira de pa-
lhinha. E o pátio mais adiante era somente mato e pedras,
por onde a chuva escorria lentamente, como se caísse so-
bre túmulos.

348
Como as nuvens que passam
José Rodrigues de Paiva

E eis que regressas, enfim, por esta tarde cinzenta de


inverno. Retornas com as chuvas de um tempo opaco como
essa velhice que se vai prenunciando nos teus olhos, no gri-
salho triste do teu cabelo, em cada marca do teu rosto, em
certa flacidez que se adivinha nessa gordura insidiosa que
te avoluma o corpo. Regressas, finalmente, trazido não se
sabe por que apelo. Vens para ficar, é o que parece e o que
dizes. Ficarás realmente? Quando partiste, era o verão que
levavas, mesmo que daqui tenhas saído pelo inverno. Ve-
rão de juventude e de sonho, de desejo de vencer, de rea­
lizar, de alçar voo definitivo para o imprevisto do que está
por vir. Sabias bem de ti, mais do que sabias do mundo. O
mundo era para ser descoberto, conquistado, costumavas
dizer, e citavas um dos teus poetas mais amados:

O mundo é para quem nasce para o conquistar


E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que
tenha razão.

Porque cresceste, estreitos demais ficaram estes nossos


pobres horizontes. Olhavas para longe, perdido em pensa-
mentos, lias notícias de jornais estranhos que trazias às ve-
zes da cidade, contemplavas nos mapas o traçado do mun-
do, ouvias encantado, no velho rádio da casa, a linguagem
mágica de outros povos. O mundo era vasto e era preciso
percorrê-lo. Por isso decidiste partir. Muito cedo sabias que
partirias, e sempre te preparaste para isso. Tua mãe dizia-
Como as nuvens que passam

te: “Não vás”. Teu pai, calado e pensativo, só com os olhos


te dizia: “Fica…”. Mas tu partiste, levando na mala muitos
sonhos, alguns livros e, em pastas e envelopes, folhas e fo-
lhas de papel em que escreveste horas e horas ao longo das
noites de tantos dias ou de tantos anos. Todos ficaram tris-
tes quando te foste. Todos te abraçaram quase em silêncio,
com uma espécie de temor ou de respeito. Para os outros,
ficar é que era o certo, o racional, o lógico. Ninguém, até
então, tinha partido assim, em definitivo, para o incerto,
o longe, talvez para o nunca mais. Mas para ti, o partir é
que estava em consonância com a vida. Um pássaro não
fica no seu ninho a vida toda: cresce, empluma-se e ganha
o espaço, em voo alçado para a liberdade. Por isso partiste,
levando contigo um sonho para a vida.
Correu depressa o tempo, como as nuvens que pas-
sam. De longe em longe escrevias aos teus. Algumas das
tuas cartas vi-as nas mãos de teu pai. Ele falava, às vezes,
dos teus estudos, dos teus trabalhos, dos teus planos... De
coisas que escrevias para jornais e revistas, do que dizias
em palestras e coisas assim... Falava disso tudo com muita
admiração e com certo espanto. Sabíamos pouco de ti, e
alguma coisa fantasiamos em torno da tua pessoa. Na rea­
lidade, nada sabíamos além daqueles pequenos farrapos
de notícias que aqui chegavam só de vez em quando. E
o tempo continuou a passar, como a água que corre. Os
dias nada mais são do que nuvens fugidas para o infinito.
O passado é só um acúmulo de lembranças e o futuro é,
quando muito, a expectativa do que está por vir. Todos en-
velhecemos. Teus pais principalmente. Escassearam ain-
da mais as notícias. Cheguei a ver alguns cartões postais
que enviaste do estrangeiro. Estavas afinal conquistando
o mundo conforme desejaste quando jovem. Da babel
moderna dominavas três ou quatro línguas, com certeza,
daquelas que outrora te maravilhavam os ouvidos junto
ao rádio. Eras, enfim, o escritor que desejaste ser. Homem

350
José Rodrigues de Paiva

famoso, sempre solicitado para conferências, congressos e


coisas semelhantes que as universidades fazem por toda a
parte. Cargos, honrarias, recepções, vida agitada, notícias
nos jornais, tudo isso que te dizia respeito nos vinha de
muito longe, diluindo-se nas distâncias que nos separam
do mundo. Queríamos saber mais, e então imaginávamos,
todos nós, os que sempre decidimos ficar nestas lonjuras
da vida, admirando, secretamente, a tua coragem de par-
tir, a tua vocação para a diáspora. Um homem é como um
pássaro, dizias, não pode ficar a vida toda no ninho...
Mas eis que enfim, regressas, por esta tarde úmida de
inverno. Não há ninguém para te receber. Só eu. Teus pais,
muito velhinhos, cansados de esperar a tua volta, partiram
para sempre desta vida. Os outros, igualmente se foram
dispersando. Mortos os velhos, os novos ganharam os ca-
minhos. Influenciaste uma geração de emigrantes. Todos
se espelharam em ti para a partida. Foste o modelo seguido
pela juventude. Todos se foram daqui, guiados pela tua co-
ragem, todos voltados para o teu exemplo. Partir era a es-
perança, o apelo ao futuro, a busca de um mundo novo. Fi-
car seria a morte antecipada, a desertificação do corpo e do
espírito, a cristalização no nada. “Uma geração vai, e outra
geração vem, mas a terra para sempre permanece” – gos-
tavas de recitar do Eclesiastes. Daqui já todas as gerações se
foram. Só a terra permanece, e estou eu, só, nesta vila mor-
ta. Mas eis que regressas agora tu, um homem famoso, um
mito para os que ficaram quando partiste, e destes ermos e
lonjuras puderam, entre grandes espaços de silêncio, seguir
o brilho da tua trajetória. Ninguém mais te esperava, mas
eis que regressas, com grandes bagagens. Vens, pois, para
ficar, é o que imagino pelas coisas que trazes. Vários caixo-
tes cheios de livros, alguns com o teu nome impresso nas
capas, uma radiola, muitos discos, quadros com pinturas,
outros com diplomas... alguns móveis chegaram depois,
noutro transporte. Ocupaste a casa de antigamente, onde

351
Como as nuvens que passam

nasceste e que deixaste depois, para ires à conquista do


mundo. A casa tem um amplo terraço de onde se avista, ao
longe, uma encosta de monte coberta de arvoredo. Era aí
que gostavas de ler quando eras jovem. Foi aí, nesse terra-
ço, olhando a cor da paisagem, que leste e releste um livro
chamado Como era verde meu vale, que é também uma histó-
ria de partidas e regressos. Todos se foram, agora voltaste.
Merecias que a vila te oferecesse uma recepção, uma gran-
de festa com banda de música e tudo, afinal, és a honra da
terra, um nome, um mito, uma figura quase irreal que não
se acredita ter partido daqui, deste nada, para aquilo em
que te transformaste e que és agora. Merecias uma recep-
ção. A vila deve-te uma grande festa, mas não há ninguém
aqui para a fazer. Jamais terás a estátua que poderias ter na
nossa praça. Não há crianças para haver uma escola com
o teu nome... todos se foram, seguindo o teu exemplo. As
casas estão vazias, a vila deserta, o mundo desabitado. Só
eu fiquei, e agora eis que regressas, com teus livros e discos,
quadros, móveis... Sozinho retomaste a velha casa de onde
se avista o vale. Como era verde... Refazes o jardim, em silên-
cio, onde já começam a florescer algumas rosas vermelhas.
Tua mãe amava as rosas. Gostava de as cultivar, sobretudo
as vermelhas. Enfeitava com elas o oratório da Imaculada
Conceição e dispunha algumas outras flores em jarras pela
casa. Cultivas agora tu as roseiras, relês os livros que trou-
xeste, escreves para reinventar a vida e o teu sonho, olhas
do teu terraço a amplidão solitária dos espaços enquanto
ouves, pairando na noite, as músicas que mais te falam ao
espírito. Deixaste muito longe a agitação do mundo. Não
há carteiro que venha a esta vila. Relembras, não esqueces.
Escreverás, por certo, um livro de memórias, enquanto o
tempo foge para o infinito, como a água que corre, como
as nuvens que passam...

352
O dia em que a cidade endoidou
Juareiz Correya

A gente gostava de dar as coisas a Incoloca somente


pra ouvi-lo dizer com uma voz de bicho – “Incoloca aqui”,
abrindo as mãozonas dele, grandes e sujas, com os dedos
grossos e as unhas grandes, negras, carregadas de todo
grude. Mãe dizia que ele era doido. Todo mundo dizia
que ele era doido. A gente não chegava muito perto dele,
não, com medo, porque ele era doido, e porque ele assus-
tava mesmo a gente. Ele tinha uma barba grande, bem
preta, que, ao mesmo tempo que aumentava mais ainda o
medo que a gente tinha dele, mais fazia a gente ter von-
tade de chegar mais perto dele pra puxá-la, pra puxá-la e
até balançar nela, como se fosse folha de bananeira.
O que a gente sabia era que Incoloca nunca tinha cor-
tado a barba dele, ninguém da cidade tinha visto a cara
de Incoloca direito, e mãe mesmo – quando falava ligeiro
nele, porque ela não gostava de falar nele, só falava por-
que a gente insistia – mãe mesmo dizia que aquilo era
por causa da demência dele. “Homem quando fica doido
esquece do mundo”, ela dizia assim, para mostrar que In-
coloca tinha esquecido até dele mesmo.
Os meninos da rua da gente se divertiam feito a gente
quando Incoloca passava. Nem todos os meninos se apro-
ximavam dele, é claro, a maioria tinha um medo danado.
Lá de casa, somente Aluísio, que era o mais atilado, é que
ia pra perto dele, quando a gente queria lhe dar alguma
coisa. E quando Incoloca via que era esmola pra ele, ia
logo estendendo as mãozonas e dizendo: “Incoloca aqui”.
O dia em que a cidade endoidou

Depois que ele se virava pra ir embora pela rua abaixo, a


gente ficava gritando atrás dele: “Incoloca! Incoloca! In-
coloca!”
Todos os dias Incoloca passava pela rua da gente. Ele
andava pelas ruas todas de Catingueira, como se fosse o
dono delas, conferindo as coisas pra ver se tudo estava
em seu lugar. Não tinha dia que a gente não visse Incolo-
ca com aquela barbona dele, andando pela rua como se
fosse um soldado bem importante, porque ele não andava
como as pessoas andam, ele marchava, parecia que tinha
uma banda de música tocando atrás dele pra ele andar
daquele jeito.
Seu Tonho Meira era farmacêutico de Catingueira e
era a única pessoa que brincava de perto com Incoloca.
Ninguém queria saber de brincadeira com Incoloca – só
os meninos que, depois de dar as coisas pra ele, saíam
correndo pelas ruas, gritando, “Incoloca! Incoloca!”. Mas
gente grande, feito seu Tonho Meira, da farmácia, ne-
nhum deles brincava com Incoloca.
Certo que seu Tonho Meira brincava com todo mun-
do. Mas assim mesmo, brincar como ele brincava com In-
coloca, não era coisa de brincadeira só, não. Incoloca não
ligava, não gritava nem mordia, feito mãe dizia que ele
fazia com a gente se a gente brincasse com ele. Mãe até di-
zia que seu Tonho Meira era tão doido quanto ele. “Quem
brinca com doido, só sendo doido também.”
Incoloca estava dormindo numa banca, que ficava
atrás do mercado, onde vendiam cereais. Ali era o local
mais limpo do mercado e Incoloca dormia toda noite lá.
Seu Tonho Meira resolveu fazer a brincadeira mais séria
que uma pessoa podia fazer nesse mundo: cortar a barba
de Incoloca. Disseram que ele fez de tudo pra Incoloca
dormir do jeito que dormiu naquela noite. Teve gente
que jurou que ele deu uns remédios pra Incoloca dormir

354
Juareiz Correya

feito um condenado. E não deu outra, não. Incoloca dor-


miu a noite toda, passou pela manhã, espichado ali no
banco da feira, atrás do mercado, virando troça de todo
mundo que estava por ali naquelas horas. Quando ele se
acordou eram três horas da tarde, com um solão na cara
queimando ele. Incoloca se levantou assustado. As pesso-
as que estavam ali perto parece que correram logo, sem
nem ver a reação de Incoloca, que na hora não percebeu
de imediato o que seu Tonho Meira tinha feito com ele.
Quando ele percebeu que estava sem barba, dizem que
ele deu um esturro que foi ouvido pra lá de Patos do Espi-
nhara. A cidade toda ouviu o berrão de Incoloca, que saiu
gritando feito doido mesmo pelo mercado, espantando
todo mundo. E todo mundo que estava ali correu. E todo
mundo que estava nas ruas correu.
A gente se escondeu com mãe na cozinha, as portas
e as janelas todas fechadas. De repente, todas as casas
fecharam suas portas e janelas e as ruas de Catingueira
ficaram desertas. Só se ouvia passar nas ruas o doido do
Incoloca gritando feito um bicho cavernoso. Ninguém sa-
bia o que ele dizia, só se ouviam aqueles esturros que não
pareciam ser coisa de gente, aquele berreiro sem fim, e
aquela agonia de fora da rua pra dentro de casa, como se
o mundo fosse se acabar com a gente ali na cozinha, em
volta de mãe, tremendo e sem dizer uma palavra.
Não se sabe quando aquilo acabou. Mãe mesmo não
gosta de se lembrar disso. Ela nunca fala disso. Ninguém
em Catingueira gosta de falar disso, e ninguém sabe
quando aquilo acabou. O que se sabe é que, mais tarde
– ninguém sabe direito – mais tarde, depois de tanto tem-
po da cidade inteira com portas e janelas fechadas, sem
ninguém na rua, somente Incoloca gritando pela barba
dele feito um demônio desesperado, quando as pessoas
tiveram coragem de sair às ruas, os homens e mulheres

355
O dia em que a cidade endoidou

de Catingueira, as pessoas grandes de Catingueira saíram


acompanhando Incoloca pelas ruas, numa gritaria sem
fim, berrando feito ele, urrando feito ele, todo mundo
doido feito ele, numa gritaria infernal, numa loucura que
durou dias e noites, até que a barba de Incoloca começou
a crescer de novo e ele se acalmou.

356
Um gesto ancestral
Ladjane Bandeira

I
Quando eu era pequena e olhava para o meu avô, ele
não me parecia, absolutamente, fantástico. Não tanto an-
tes quanto depois que essa ideia de fantasticidade se en-
casquetou na minha cabeça.
Ele era estranho. Sim, o que tem isso? Eu sabia o que
era ser estranho?
Era soturno, mal-humorado em sua situação de novo-
pobre. Pois sim, e o que tinha isso? Eu distinguia valores
financeiros? Se havia duas palavras que nada me diziam
essas eram: “pobre” e “rico”.
E se havia coisas que nem ao menos existiam, essas coi-
sas eram as classes sociais. Chegassem a mim e dissessem:
– “Aquele safado daquele varredor de rua”.
Pois sim, e daí? Era possível que o “safado” me impres-
sionasse muito mais – e “safado” não distingue classe – do
que o pretendido insulto de “varredor de rua”.
Era por isso que meu avô não me parecia fantástico
absolutamente em nada. Olhava para ele muito calado
dentro de sua moldura de novo-pobre – moldura também
deslustrada – e não me dizia nem fazia coisa alguma do
fantástico. Talvez porque eu tinha os olhos vagos, a cabeça
grande para o corpo e o corpo mole dentro das mãos dos
outros. Mas nem eu também era fantástica por ter cabeça
grande senão na medida em que o são todas as crianças
recém-nascidas.
Um gesto ancestral

E era por isso que eu não achava que meu avô fosse
fantástico e nem mesmo sabia que a palavra existia. Mas a
verdade é que ele era fantástico e rabugento. E o pessoal na
cidade se encarregava de propagar o que ele fizesse e dis-
sesse, e, possivelmente, o que nem fizesse e nem dissesse.
Um dia ele chamou minha avó e disse:
– Ô, Nana, traz aí o martelo e a caixa de pregos.
Minha avó lhos entregou sem perguntar para que os
queria, como teria perguntado qualquer mulher que não
fosse ela. Mas o povo se pôs a dizer, antes mesmo que ele
batesse o primeiro prego:
– É hoje! Vai fazer o caixão.
E era certo. Só então, depois que todos já haviam fala-
do e tornado a falar foi que ele disse:
– Vou fazer minha arca, Nana, recebi aviso.
O rosto de minha avó quase dissolveu de ternura e
compaixão. Tremeu como os pudins que ela fazia, mas
não disse nada. Chorou em silêncio e longe da presença
do marido sentiu que o céu talvez não fosse perto.
Quase todos os processos utilizados por Utnapishtim
e por Noé no feitio de sua arca ele usou recitando em voz
alta:
“– Junte madeira, com tantos côvados de largura por
tantos de altura e faça o seu caixão. Forre-o bem por den-
tro, fazendo-o acolchoado para ser confortável durante o
dilúvio que Eu vou mandar sobre você. Quando o dilú-
vio passar, sua arca já não terá mais préstimos, nem seu
corpo. Tenha cuidado para pôr quatro alças pelo lado de
fora e um travesseiro para a cabeça pelo lado de dentro.
Faça-o todo negro e de veludo. Pode acrescentar-lhes en-
feites prateados sobre o veludo, inclusive cabeças de anjos
gorduchos, festões e tudo o que lhe der na cabeça que
também isso perderá o seu valor quando o dilúvio houver
passado. Acrescente-lhe uma cruz para que se pense que

358
Ladjane Bandeira

você levou consigo as últimas atribuições e não as deixou


para ninguém como uma herança incômoda. Faça de tudo
de modo a combinar com os enfeites da Igreja para onde
o mandarei em breve estágio.
Pronto o caixão, não se esqueça de entrar nele e se
manter decentemente tranquilo, imóvel e sem fazer care-
tas ou distorções musculares, nem revirar os olhos. Cruze
as mãos sobre o peito, puxe a tampa sobre você e o dilúvio
o apanhará e o conduzirá para a minha eternidade.”
Era doloroso para a minha avó escutar aquelas palavras
acompanhadas pelas batidas do martelo, mas já conhecidas
do marido há quarenta anos consecutivos e simplesmente
pensava: “Meu pobre velho”. E suas mãos pareciam na-
dar dentro de rios de lágrimas enquanto amassava a goma
para os bolos que teria de fazer por amor ao seu ofício.
Todo o dia ele esteve ocupado, todo o dia recitou suas
orações no mesmo gênero. Então, de repente, minha avó
escutou que ele cantava. Era uma voz estranha, dolorosa,
muito baixa e trêmula. E ela retornou ao seu pensamento
favorito: “Oh, meu Deus, meu pobre velho”.

II
Dez dias depois o caixão ainda estava no mesmo lugar
e meu avô o rondava meio fascinado recitando orações
estranhas e excitando a imaginação do povo que manti-
nha suas antenas de pé para captar as mais insignificantes
notícias sobre os feitos.
Chamaram um padre dizendo: “Ele precisa”, e minha
avó, protestando, reclamou: “Não é tempo ainda, ele sa-
berá”.
E então começaram a pensar que ele havia enfeitiçado
minha avó e ninguém o percebera. Puseram as mãos na
cabeça e se lastimaram de terem sido enganados durante
tanto tempo e se sentiram como anjos. Eram todos tão

359
Um gesto ancestral

bons, tão prestativos, minha avó e meu avô – monstros! –


não sabiam sequer reconhecer.
“Vamos arrastar o padre aqui de qualquer maneira.”
O padre olhou aquilo, fez o sinal da cruz e começou: –
“Meu filho” – e meu avô era mais velho do que ele – “aceite
resignado o que Deus lhe enviar. É um pecado revoltar-se
contra a vontade d’Ele. Estamos na terra para isso mesmo”
– apontou o caixão – “e não vale a pena tentar fugir dos
desígnios de Deus. Aceite a morte como aceitaria um pre-
sente inestimável e tudo parecerá mais fácil...”
Meu avô sem se dignar olhá-lo falou com inesperada
mansidão:
– Ô, Nana, que está fazendo esse urubu aqui?
– Credo em cruz! – gritaram horrorizados. Retiraram-
se para as suas casas para gozar a liberdade de comentar
com mais detalhe o fato. – É um herege! O que ele fez!...
Depois disso o caixão desapareceu da sala e apareceu
no sótão. Ali ninguém o via e assim o esqueceram. Até
mesmo minha avó deslembrou-se dele e continuou fazen-
do seus bolos de estimação.
As crianças os adoravam. Esse inconsciente elogio to-
cava o seu coração como toca o coração de um artista ver
o povo admirar a sua obra e desejar tê-la.
Meu avô ia sempre para a sede de sua banda preferi-
da, tocava o saxofone, ou fazia que o tocava. Não era bom
músico, embora o desejasse ardentemente. Já ninguém
pensava mais no incidente do caixão acreditando mesmo
que ele fora vendido, ou destruído, ou sabiam lá o quê!
Meu avô passou a frequentar com mais assiduidade a
sede da banda musical mantendo os olhos vagos, distan-
tes, e vez por outra murmurava qualquer coisa como: “Mi-
nha grande arca! Quando chegar meu dilúvio...”.
Mas como àquele tempo havia uma arca em cada casa,
isto é, um baú grande incrustado de percevejos ornamen-
tais de metal, ninguém se preocupou de averiguar o assun-

360
Ladjane Bandeira

to. Todavia, minha avó achava que meu avô estava cada vez
mais casmurro e distante e pensando nele meneava a cabe-
ça e falava sua frase ternamente: “Pobre do meu velho”.

III
Seis meses, um ano e as antenas do povo não tiveram
mais o que captar em relação à arca do meu avô. Mas de
quando em vez ele subia ao sótão, entrava no caixão, experi-
mentando-o, tentando sentir a sensação da morte sobre seus
braços e pernas, sobre seu coração já seriamente abalado.
Quando minha avó não o via dentro de casa olhava
para cima, como se fosse para o céu – o sótão – e ba-
lançava a cabeça desaprovativamente sem contudo ousar
repreendê-lo.
Ele mal falava, talvez treinando, consciencioso para o
grande silêncio que lhe parecia muito próximo.
Detestava qualquer ruído, especialmente se fosse feito
pelos outros. Mas nada o deixava tão irritado quanto ou-
vir alguém assobiar.
Um dia, ao voltar da sede da banda de música, já de
longe estava ouvindo uma coisa inacreditável! Sim, al-
guém estava assobiando dentro da sua casa.
Entrou, olhou o sujeito trepado numa escada pincelan-
do as paredes num ritmo lento de valsa vienense, mediu-o
de alto a baixo e passou bufando.
Lá dentro chamou minha avó:
– Ô, Nana, bota esse apanhador de capim para fora.
Manda ele embora.
– Mas meu velho, ele está caiando a casa.
– Nana! Não ouviu o que eu disse? – Usou sua melhor
ênfase.
Desde então a casa permaneceu metade caiada meta-
de não, o que intrigava a gente da cidade, sempre pronta
a cuidar do que não lhe dizia respeito.

361
Um gesto ancestral

Aborrecido com o incidente do caiador, meu avô sentiu


à noite necessidade de recorrer à sua arca para apaziguar-
se consigo próprio e com os seus “semelhantes”.
Subiu vagarosamente as escadas para não se cansar de-
masiado, levando na mão um candeeiro, porque no sótão
não tinha luz.
As sombras dançavam cada vez mais que a luz do can-
deeiro vacilava. Galgado o último degrau, olhou enter-
necido para o seu velho companheiro, aquele que seria
também o último e seu coração quase lhe saltou da boca
na disparada, sufocando-o.
Arregalou os olhos mas, dominando-se, convenceu-se
de que não acreditava em espíritos e se aproximou, reso-
luto.
A tampa do caixão estremecia e um ruído surdo vinha
lá de dentro. Lembrou-se de ter deixado o caixão aberto
da última vez e sabendo que ninguém subia ali, estreme-
ceu. Voltou a dominar-se. Chegou mais perto e deu um
salto, sem querer, quando um angustiado “miau!” saiu de
dentro, arrepiando-lhes os cabelos.
Súbito ele ergueu a tampa do caixão e o gato preto da
minha avó saiu louco de medo, saltando pelas pernas do
meu avô que ficaram a tremer a despeito do seu pretendi-
do autodomínio: “Ah, miserável, estragando minha arca!
Não recebi ordens de levar animais”.
Espanando o caixão para tirar os pelos e as possíveis
pulgas, deitou-se dentro e ficou pensando até cansar-se e
adormecer.

IV
Quando souberam que meu avô havia morrido, já
dentro do caixão, lamentaram que minha avó insistisse
para vesti-lo com a farda da Guarda Nacional porque as-
sim – diziam – não valeu a pena ele ter morrido ali dentro

362
Ladjane Bandeira

uma vez que sempre ia dar trabalho. Até mais: retirá-lo e


pô-lo novamente lá.
Antes ele tivesse morrido mesmo na cama. Não daria
trabalho descer com ele e o caixão, as escadas do sótão.
Falavam sem sequer respeitar a dor da minha avó, tal-
vez o fazendo de propósito para castigá-la por ter aguen-
tado um sujeito tão esquisito e tão fantástico durante tan-
tos anos sem o abandonar.
Mas minha avó não se alterava com isso. Apenas es-
queceu seus bolos e seus doces àquele dia – só por alguns
momentos –, porque depois vendo o marido aparamen-
tado com a farda da Guarda Nacional, um riso beatífico
assomou-lhe aos lábios e ela saiu de mansinho para a co-
zinha onde apanhou os melhores e colocou-os nas mãos
do meu avô, falando com simplicidade.
– É para você não se esquecer do gosto, meu velho. A
viagem vai ser longa. Enquanto eu não chego lá você vá
se divertindo com esses. E quando o povo, chegando, via
o caixão do meu avô cheio de bolos e doces, em lugar de
flores dizia, meneando a cabeça – “Coitada da velha!”.

363
A casa do velho Cirilo
Lailson de Holanda Cavalcanti

Ali ficava a casa onde pousavam os discos voadores.


Bem ali, onde hoje está aquele edifício de pastilhas
vermelhas, janelas de alumínio e vidros esverdeados.
Em outros tempos, ali era a casa do velho Cirilo, que
vivia sozinho no meio dos seus gatos e das suas quinqui-
lharias, restos de um outro tempo onde existiam discos de
vinil, agulhas de diamante, rádios com válvulas, fitas de
gravação e televisores em preto e branco.
Naquele lado, onde agora tem aquele canteiro, era a
entrada da grande garagem onde ele trabalhava. Se bem
que a casa toda era meio que sua oficina, com pedaços de
tudo um pouco espalhados pelos cômodos empoeirados,
pois parecia que ninguém nunca vinha limpar nada, ali.
A garagem, apesar de também estar cheia de ferra-
mentas e caixas, tinha sempre seu espaço central desocu-
pado, como se o velho esperasse estacionar ali um auto-
móvel que não possuía.
As lendas que as outras crianças inventavam sobre o
velho Cirilo eram fantásticas. Diziam que ele fazia malda-
des terríveis para os que ousavam invadir a sua privacida-
de e que fantasmas e duendes dividiam com ele o espaço
que sobrava entre gatos e fios.
Mas Zeca e eu gostávamos dele.
Ele sempre nos dava válvulas velhas, potenciômetros
quebrados e magnetos, para os quais não tinha uso, como
presentes, e nós os usávamos para criar toda sorte de brin-
cadeiras.
Acho que, além dos gatos que não tinham mais quem
lhes desse de comer, fomos os únicos a sentir sua falta,
quando ele sumiu.
Os bombeiros que forçaram a entrada na casa, uma se-
mana depois que sua ausência foi notada, chamados pela
vizinha do lado, não encontraram nada fora do lugar,
nem corpo, nem bilhete, nem nada.
O velho Cirilo simplesmente desapareceu.
A casa ficou fechada desde então, enquanto se espera-
va que aparecesse algum parente distante para dizer que
ele havia morrido e reclamar seus haveres, vir morar na
casa ou vendê-la para alguém.
Mas parece que o velho Cirilo não tinha parentes nes-
te mundo, ninguém que viesse buscar alguma coisa que
lhe pertencera ou derramar uma única lágrima pela sua
ausência.
Portanto, numa reunião no quintal da minha casa,
quando estava completando um ano da sua desaparição,
Zeca e eu nos declaramos seus únicos e legítimos herdei-
ros universais, pois se alguém tinha direito a qualquer coi-
sa que estivesse dentro daquela casa, esse alguém éramos
nós, os únicos amigos – além dos gatos – daquele que fora
proprietário daquela casa agora abandonada.
E se os gatos já haviam partido em busca de novas ti-
gelas de ração, nós estávamos bem ali, prontos para ex-
plorar a extensão do nosso legado.
Naquela noite arrancamos sem fazer barulho a tábua
solta da porta da garagem e, depois de nos certificarmos
de que ninguém nos vira, penetramos no interior da es-
cura oficina.
Zeca estava com a lanterna do seu pai e sob a sua luz
começamos a explorar o que ele insistia em chamar de “o
tesouro do velho Cirilo”.
Não lembro bem quem descobriu o ovo de cristal pri-
meiro, se fui eu ou foi o Zeca, talvez a luz tenha batido na

365
A casa do velho Cirilo

caixa onde ele estava guardado e o reflexo chamado nossa


atenção ao mesmo tempo.
Depois que o retiramos da caixa, porém, era impossí-
vel tirar os olhos dele.
Sua consistência era a de um cristal azulado, porém,
leitoso, co­mo se fosse ao mesmo tempo sólido e líquido
ou maciço e oco e cheio de líquido, tudo ao mesmo tem-
po, difícil descrever.
Com um respeitoso espanto, aproximamos nossos ros-
tos do cristal deixando que a luz incidisse bem em cima
dele, para ter certeza de que nunca tínhamos visto nada
como aquilo antes.
A princípio pensamos que devia fazer parte de algum
daqueles aparelhos esquisitos que o velho montava e des-
montava, mas devíamos ter visto logo que aquilo não po-
dia fazer parte de qualquer engenhoca inventada no sé-
culo passado.
Ficamos ali ajoelhados como devotos de algum anti-
go ritual, a luz da lanterna no chão alongando a sombra
de todas as coisas e pouco a pouco percebemos que uma
luminosidade se escoava do cristal, provocada talvez pelo
calor das nossas mãos.
Zeca segurava o ovo que principiou a adquirir uma
aparência imaterial e a luminosidade foi crescendo e for-
mando um círculo. Mas parava, incompreensivelmente,
ao se aproximar da barra da porta.
Não acredito que qualquer pessoa, passando do lado de
fora, fosse capaz de ver qualquer réstia daquela luz azul.
Desligamos a lanterna e deixamos que aquele azul en-
volvesse a nós dois como um casulo e não percebemos o
instante exato em que o disco se materializou dentro da
garagem.
Materializou-se sim, disso tenho certeza, pois das ou-
tras vezes eu prestei atenção e era como se o próprio ar
tremesse e se dobrasse em torno de si mesmo e pequenas

366
Lailson de Holanda Cavalcanti

partículas de luz, vindas de todas as direções, fossem su-


gadas para formar um objeto sólido.
Um objeto brilhante que ficava parado a poucos centí-
metros do solo, vibrando de uma maneira que não ouvía-
mos nada, mas que sentíamos na pele, na eletricidade dos
cabelos, no cheiro do ar.
Era o nosso disco voador. Foi assim que chamamos o
objeto desde o início.
Andamos ao seu redor procurando uma abertura, uma
porta, uma fresta, mas ele era todo uniforme, liso, brilhan-
te. Até que Zeca sem querer encostou o cristal nele.
Foi como se uma chave encontrasse sua fechadura e
uma porta deslizou na parede do disco revelando seu in-
terior iluminado.
Com a temeridade das crianças colocamos primeiro as
cabeças dentro dele e depois as mãos, por fim as pernas e
ficamos de pé, mudos diante da infinidade de mostrado-
res, luzes e painéis brilhando ao nosso redor.
Passado o primeiro momento de espanto, porém, co-
meçamos a rir e a conjeturar como o velho Cirilo fize-
ra aquilo e como ele tinha sido esperto em não contar
para ninguém sobre aquele seu maravilhoso brinquedo.
E como nós éramos dois garotos de sorte por sermos os
únicos donos dele agora!
Levados pela emoção da brincadeira, transformamo-
nos em aventureiros e piratas espaciais, prontos para des-
bravar todos os mistérios das galáxias e Zeca, empolgado
com seu novo papel, gritou bem alto:
“Vamos para o próximo planeta habitável!”
Imediatamente a porta desapareceu, as luzes passaram
a seguir uma nova dança de cores e as paredes assumiram
a aparência do cristal azulado, permitindo que víssemos
tudo à nossa volta enquanto nós e os mostradores parecía­
mos flutuar no nada.

367
A casa do velho Cirilo

Uma vibração diferente tomou conta de tudo e vimos o


mundo se desfazer num turbilhão de estrelas que acelera-
vam como se fossem cadentes, num vertiginoso turbilhão
que não conseguíamos entender até que as paredes volta-
ram à sua condição opaca e a porta começou a reaparecer.
Se a viagem não tivesse demorado mais que um ou dois
minutos, eu talvez tivesse chorado de medo, mas logo de-
pois que a porta se abriu, qualquer medo que tivéssemos
foi substituído por silenciosa estupefação.
A garagem onde esperávamos estar não estava mais
ali. Em seu lugar havia uma outra paisagem, um outro
céu, não com uma, mas sim, com oito luas! Um desfile
que cruzava um crepúsculo saturado de tons de púrpura
com um imenso sol alaranjado que se punha.
O ar era diferente, mas agradável. Odores de flores
que nunca tínhamos visto antes e pequenos animais que
nos olhavam sem surpresa, ocupados em encontrar suas
tocas ou seus ninhos no final do dia.
Se fôssemos adultos, creio que teríamos acreditado es-
tarmos loucos ou sob o efeito de alguma droga poderosa,
mas as crianças têm uma capacidade diferente de lidar
com o inusitado. Para nós era apenas a realidade de um
sonho que se tornara verdade.
“Vamos voltar para onde estávamos!”, gritou Zeca.
E o turbilhão retornou com seus milhares de estrelas e
quando a porta voltou a se abrir estávamos outra vez no
espaço central da garagem do velho Cirilo.
Com todo cuidado colocamos o cristal no lugar onde
estava e vimos o disco voador ir desaparecendo como se
fosse absorvido pelo ar, enquanto a luminosidade azul ia
pouco a pouco desaparecendo.
Jurando não contar a ninguém nada do que se passa-
ra, fomos cada um para sua casa prometendo um novo
encontro, na mesma hora, para a próxima noite.

368
Lailson de Holanda Cavalcanti

Ah, fizemos muitas viagens nas semanas seguintes, sim!


Encontramos lugares onde criaturas de pescoço com-
prido e múltiplas pernas nos procuraram para trocar coi-
sas que nunca havíamos visto por qualquer coisa que ti-
véssemos em nossos bolsos.
Visitamos planetas onde o povo vivia em casas flutuan-
tes num imenso oceano.
Encontramos criaturas de variados graus de inteligên­
cia, de várias aparências e formas, que procuravam se co-
municar conosco ou que não nos davam a menor atenção,
que demonstravam curiosidade e às vezes receio, descon-
fiança ou aversão.
É claro que não saíamos do disco em todos eles, pois
parecia haver um mecanismo de defesa que impedia que
descêssemos em ambientes hostis ou onde a gravidade ou
a atmosfera nos fosse adversa.
Nesses, as paredes permaneciam translúcidas e podía­
mos ver tudo o que se passava lá fora, mas elas não se
tornavam opacas e nem a porta aparecia.
O fato de não sabermos mexer nos painéis nos levava a
improvisar sempre uma frase diferente para ir a um novo
planeta e isso nem sempre funcionava bem.
Zeca, então, resolveu assumir o controle da situação e
desvendar os segredos do ovo de cristal.
Já que ele era a fonte de criação do disco, parecia lógi-
co que nele estivesse o controle total da sua programação.
Talvez houvesse um painel dentro dele, ou uma sequência
de números, ou qualquer coisa que nos indicasse como
controlar melhor aquele veículo.
A ideia agora parece absurda, mas pela lógica infantil
seria muito mais fácil abrir o cristal oval, ver o que tinha
dentro dele e como aquilo tudo funcionava.
Depois de tentar com uma chave de fenda e com um
pedaço de arame, Zeca pegou um martelo e disse que

369
A casa do velho Cirilo

talvez batendo ao redor dele descobríssemos onde tinha


uma abertura.
Fagulhas saltavam quando o martelo resvalava na su-
perfície do ovo, mas Zeca não desistia.
Pediu que eu martelasse também um pouco, talvez ti-
vesse mais sorte em abrir a casca que aprisionava o segre-
do da viagem pelo Universo.
Foi então que sentimos a presença.
Veio crescendo como a sombra da noite que desce cor-
rendo pelos lados do vale, como o vento que sopra na hora
do medo, trazendo odores de vácuo e de desertos vazios.
A sombra invisível cresceu até ocupar toda a garagem,
transbordando aquele pequeno interior para todo o es-
paço infinito, cresceu para fora e para dentro das nossas
almas, nos fez sentir pequenos e mesquinhos.
No silêncio das nossas cabeças ouvimos as palavras
que não eram palavras e que nos desprezavam pela nossa
ignorância, pela pequenez dos nossos espíritos, pela mal-
dade intrínseca da nossa espécie.
As palavras que não eram palavras negaram-nos para
sempre o direito de percorrer os caminhos do cosmos, da
mesma maneira que éramos incapazes de trilhar os cami-
nhos do bom senso e da razão.
O mundo veio abaixo e a escuridão se fez completa.
Acordei todo engessado no hospital, com Zeca em
iguais ou piores condições na cama ao lado, tubos saindo
da sua boca e do seu nariz e um monte de fios enfiados
em seu braço através de uma agulha.
Disseram-me que estávamos brincando na casa aban-
donada quando alguma viga deve ter cedido e a garagem,
com a casa inteira, ruiu e desabou sobre nós.
Era um milagre termos sido encontrados com vida,
pois quase nenhum dos nossos ossos tinha sido poupado
de algum estrago.

370
Lailson de Holanda Cavalcanti

Não dissemos nada, mas nós sabíamos que a presença


seria incapaz de um ato tão mesquinho quanto tirar a vida
de duas criaturas inferiores.
Ela já havia nos tirado o direito de viajar entre as estre-
las e isso já era o pior castigo que poderíamos receber.
Depois que saímos do hospital, a família do Zeca se
mudou para outra parte da cidade e nunca mais nos fa-
lamos.
Sabíamos que um era a razão do castigo do outro e
mesmo depois que crescemos, casamos, tivemos filhos e
netos, nunca mais voltamos a nos falar.
Ele, como eu, de vez em quando, vem aqui e fica olhan-
do para o lugar onde era a casa do velho Cirilo.
Mas quando quer que um perceba a presença do outro,
quem chegou primeiro vai embora e deixa que o recém-
chegado admire o lugar onde sua estupidez está enterra-
da.
Muitos anos depois que a casa ruiu fizeram este prédio
e se for uma noite sem lua, dá até para perceber uma leve
luminosidade azul filtrando-se por baixo do concreto.
Mas os discos voadores…
Ah! aqui eles não pousam jamais.

371
Efemeridade da vida
Laura Areias

O vento. A tempestade. O céu escuro. A chuva forte


repentina atemorizava os moradores da praia. As casas
próximas ao mar desprendiam seus telhados como folhas
levadas por brisa forte. Inverno, frio, desconhecido. Os
moradores amedrontados corriam para longe da terra.
Um pavor para banhistas que se deliciavam com o ven-
to marítimo transformado num monstro marinho, veloz,
atemorizador dos circulantes na areia. Assim, uma manhã
de dezembro, com procura de mar, em ilhas tropicais.
Os namorados, casais, homens e mulheres só gozavam
o descanso, imposto ao duro trabalho de um ano estres-
sante. Uns estreavam a visita às ilhas. Outros, comumen-
te, as frequentavam, por serem o sanar de seu cansaço.
Há no dia controvérsias não esperadas, nem sequer
imaginadas, existentes no decorrer dos tempos, sem ra-
zão clara da existência. São essas que destroem sonhos,
emoções e até vidas. Irreparáveis suas atitudes, aniqui-
ladoras de bens, amealhados através de anos. Os hotéis,
conforto de turistas, não resistiram à avalanche das ondas
que os tragou. A força do oceano destemperou-se, cres-
ceu em volume e dissolveu-se num líquido que tudo levou
pela terra adentro.
Casais com crianças faziam covas e estatuetas na areia,
belas estas, mostrando arte e imaginação. Adão e João
sonharam, em princípios de namoro, quando formassem
um lar e tivessem dois filhos, com os mesmos nomes dos
pais, iriam à ilha, imaginada por eles como o éden ter-
Laura Areias

restre, numa viagem bíblica de Adão e Eva e seus filhos,


em pensamento, não seriam Abel e Caim, mas Abel e Set.
Caim cometeu o primeiro pecado na terra, a inveja, e que
proliferou com tal intensidade que se tornou até hoje o
terrível mal dos homens. Diz a Bíblia que Adão durou
novecentos e trinta anos. João e Ada pediam a Deus lon-
gevidade, para verem os filhos no caminho da ciência e
do bem. Idealismos de pais que ao conceber um filho lhe
atribuem qualidades e profissões irrealizáveis, por ele um
dia conceder-se ao dom do livre-arbítrio e escolher o seu
caminho. Ideais do depois. No momento das águas revol-
tas permaneciam na quente areia, construindo a Arca de
Noé. Ideia de Ada, qual Eva, sempre inventiva e sedutora.
Acabado o transporte dos casais humanos e bichos, apare-
ceu uma menina gritando: – “Corram, corram para terra,
as águas aproximam-se, vejo um vão no mar, prenúncio
de ondas gigantes”.
A voz da menina foi pouco ouvida, traduzida em ima-
ginação infantil, espontânea em revelações.
Ada, porém, imediatamente, como fosse um anúncio
divino, pegou nos filhos e correu atrás das poucas pessoas
que seguiam o aviso anunciativo da fuga. João, não com-
preendendo a atitude, para ele, louca da mulher, seguiu-a
e foram para um lugar, bem acima da vasta praia.
O mar cresceu como bola de sabão em assopro de
criança e varreu os muitos turistas e nativos, dando im-
pressão de um dragão, lido nos contos, que engolia cida-
des e gentes.
Quando tudo amainou – o mar demolindo constru-
ções, árvores derrubando-se por elas próprias como se as
raízes fossem inconsistentes para suportarem tão pesado
tronco – o aspecto era desolador. O mar fora o monstro
devorador, engolidor de vidas, algumas delas, jogadas na
areia, sem anseios, sem ilusões.

373
Efemeridade da vida

A calma chegou, desconhecedora do terrível flagelo,


silenciosa, trazendo o sol à fria manhã de dezembro.
Ada e João, com os filhos ao colo, com caras de terror e
espanto, olharam o mundo novo em que se transformara
a praia. Um exemplo de insegurança que em tudo existe,
desde cidades, aldeias e vilas cujas intempéries poderão
jogá-las fora do mapa.
Todos quatro de mãos dadas, olhos fixos no céu, re-
zaram juntamente com os poucos restantes que os acom-
panharam a oração que Cristo ensinou: “Pai Nosso que
estais no céu...”.
Um sol forte desprendeu seus raios, aquecendo almas
e corpos como a dizer: – VIVEI, PRIVILEGIADOS DE
DEUS.

374
Franz Kafka voa de Zepelim
Leônidas Câmara

In memoriam: Pedro, o carpinteiro.


Nassira, a egípcia, ergueu os grandes olhos negros
para mim, sorriu, o que era raro, e disse:
– Cássio, pode me emprestar o seu caderno azul de
notas, pois faltei às duas últimas aulas?
A colega, no seu lado direito, comentou:
– Um milagre, Nassira riu, tem dentes lindos!
Um rapaz observou, com maldade:
– E as pernas, também...
Houve um riso geral. A egípcia baixou a cabeça, som-
bria.
– Claro que posso emprestar o meu bloco, mas são
apenas anotações de leitura, esquemas de possíveis aulas.
Do fundo da sala, um aluno perguntou:
– Cássio, está lembrado de falar sobre os aeroplanos
de Bréscia?
– É um texto um tanto negligenciado, recuado – res-
pondi. – Veremos, adiante.
Era uma turma pequena, cerca de doze alunos, rapa-
zes e moças. Prossegui:
– Pretendia conversar com vocês sobre a sentença sê
justo, que a máquina da Colônia Penal inscreve com letras
de sangue no corpo do supliciado.
O grupo de jovens sentava-se em semicírculo numa
pequena sala. Era uma aula noturna de um curso livre,
reunindo alunos que trabalhavam durante o dia, no co-
mércio, nas fábricas, nos escritórios. Ao todo, no começo,
Franz Kafka voa de Zepelim

eram doze, agora apenas dez, pois um casal não se en-


contrava mais entre nós. Rumores davam conta de que
o rapaz e a moça fugiram para uma grande aventura de
amor, outros falavam de prisão. Era um jovem silencioso,
moreno, de óculos escuros, atlético; a garota era franzina,
clara, como ele, também quieta.
Observo Nassira, a egípcia, nascida em Assuan, aqui
chegando com os pais aos dez anos de idade. Não deve
ter mais de vinte e dois ou vinte e três. Silenciosa, segu-
ra o meu caderno azul com as mãos morenas de dedos
longos, escutando com atenção as minhas palavras. O
detalhe mais evidente do seu rosto são os grandes olhos
negros, sombrios como se fossem misteriosas falenas da
noite. Terminada a aula, todos nos dispersamos para um
reencontro na semana seguinte. Prometo ao rapaz que me
questionou, que não vou me esquecer da narrativa sobre
Os Aeroplanos em Bréscia. Só no caminho de casa é que
me lembro que o caderno de notas será inútil para Nassi-
ra, pois é possível que ela não saiba alemão e nada ali está
escrito em português.
Moro num quarto de pensão no centro velho da cida-
de. Antes, vivi num quartinho de fundos da paróquia de
São João, por caridade. Não tenho mulher nem filhos.
Acabei de completar trinta anos e perdi o meu pai faz três
anos, minha mãe se encontra num asilo particular para
idosos enfermos, agora pago orgulhosamente por mim.
Vivo de aulas em cursos noturnos e faço traduções, ocasio-
nalmente escrevo para jornais sobre autores, resenhas de
livros, coisas assim. O meu quarto é pequeno, mas arejado
e com uma boa vista da avenida. Estou no cômodo faz
pouco tempo. Sinto-me bem entre essas quatro paredes
nuas, pintadas por mim de branco. Aqui recebo os raros
amigos e os agentes das editoras que me trazem textos
em alemão para traduzir, publicidade de lançamentos.

376
Leônidas Câmara

Ensinou-me o idioma o pároco da minha cidade natal,


um alegre alsaciano da Lorena de nome Friedrich Irmen,
quando eu contava doze anos de idade. Foi ele, também,
quem me tirou da indigência, recomendando-me a um
sacerdote seu amigo, da diocese da capital, quando me vi
sem pai e com a mãe doente. Dou raras aulas particulares
de alemão, mas não faço preço para o jovem terceiranis-
ta de Filosofia, quase imberbe, Tito Lívio, que serve de
mensageiro das editoras. No centro da parede dos fun-
dos, pendurei uma reprodução da Mulher no espelho, algo
assim, de Picasso. Com o tempo, a estampa me enfastia.
Devo mudá-la. Tenho, ainda, uma gravura da Virgem,
que conservo desde a infância, mesmo sem ser católico. A
dona da pensão Mourisca, dona Inês, fica satisfeita de ver
um seu hóspede tão piedoso da sua santa protetora. Falta-
me um canário para me despertar, pela manhã, com o seu
canto, como acontecia na minha infância. Não se pode ter
tudo, mas o que possuo já me deixa feliz, não que a minha
vida seja venturosa, pois é um tanto solitária, mas pelo
menos ela não é cruel, e até, sob certos aspectos, é agradá-
vel. Os hóspedes, em geral, não me apreciam, desconfiam
do meu jeito misantropo de ser, mas foi a pobreza que me
fez assim recluso. Ouço música numa velha radiola alemã,
herança paterna, tenho discos em variações do Noturno,
de Chopin, e várias sonatas de Mozart. Assim, posso dizer
que sou um homem feliz. Acendo um cigarro, tomo um
café forte e fico a olhar o incessante movimento de carros
no asfalto. Gosto de ouvir os gritos dos vendedores ambu-
lantes, a buzina dos veículos, ver os anúncios luminosos,
o colorido vibrante das luzes de néon, enfim, detesto o
silêncio, a solidão. Não foi fácil alugar este aposento sem
ter um emprego fixo. Agora, com as aulas nos cursos no-
turnos financiados por uma instituição do comércio e da
indústria, consegui pagar a vaga no coração da cidade ve-

377
Franz Kafka voa de Zepelim

lha. Comprei uma linda mesa de cedro, uma extravagân-


cia que me tirou até mesmo o sono, onde escrevo e onde
arrumo com esmero os meus livros. Pretendia colocar cor-
tinas brancas nas duas janelas, um luxo ao qual renunciei
com pesar. O abajur japonês foi um golpe de sorte. Estava
com uma rachadura insignificante no pedestal e o anti-
quário me cedeu pela metade do preço. No fundo, lê-se
Made in Japan – 1880. Legítimo, tenho certeza, com uma
bela cúpula de seda finíssima, azul com arabescos doura-
dos, e a base de porcelana pérola, delicada, translúcida.
Possuo, ainda, uma estatueta de bronze, o busto do poeta
Goethe, presente de despedida do padre Irmen. Na cabe-
ça do grande homem, vejam, coloquei o inseparável cha-
péu Panamá do meu falecido pai! Gosto de tecer fantasias
sobre a origem do meu abajur, penso na pequenina mão
da gueixa que ligava a sua luz violeta no ato de bailar para
algum potentado, seu amante. Esses objetos são a minha
fortuna nesta terra, e me bastam, sem falar na luxuosa e
complicada cafeteira que somente eu sei manejar, um caro
artefato sueco que recebi de presente. Não conheço ricos
e poderosos, sequer de vista. Certo dia, logo que aqui me
instalei, o diretor da minha instituição pediu para que eu
recebesse um seu sobrinho, pois ele precisava de alguém
que traduzisse uma carta do alemão. Tratava-se de um jo-
vem comerciante de vinhos, que recebera uma correspon-
dência de Munique, sobre negócios. O rapaz vem ao meu
quarto, na pensão Mourisca, com a sua noiva. Prometo
entregar o trabalho no fim da tarde seguinte. Vem a moça,
no seu lugar, na hora marcada. Olha ao redor, sorri. Ela,
com certeza, é rica. Usa um costume azul, muito simples
e leve, parece que de voile, que lembra um vestido, da
mesma cor suave, que minha mãe usava no auge da sua
beleza e juventude. Carla é o nome da moça. Pede-me
um cigarro. Está de costas para a janela e o sol do fim

378
Leônidas Câmara

da tarde bate nos seus longos cabelos louros. Ela parece


fazer parte, assim iluminada, de uma cena convencional,
lida em algum romance romântico ou vista num antigo
filme norte-americano qualquer. Dou o cigarro e acendo
um também para mim. Ela diz, séria, sem sorrir:
– Não deve fumar, é tão magro. Perdão!
Aquilo não me humilha, apenas me entristece. Ela,
por sua vez, é magra, esguia, mas parece vender saúde e
felicidade; logo, pode fumar.
– Não tem café? – pergunta, agora sorrindo.
– Não, não tenho café. Posso ir comprar, lá fora. – Ela
me diz que não tem importância. Deixa a janela e vai fo-
lhear os livros na mesinha, enquanto organizo os papéis
da tradução. Olha para a estampa, divertida:
– Veja, você tem um Picasso, rapaz afortunado! – sorri
ao encontrar alguns volumes de Kafka, mas em alemão.
Confessa que gosta de ler, um pouco, mas não sabe quem
é Franz Kafka, ou finge que não sabe. Nada explico. Fumo
em silêncio, com a tradução já enfiada num envelope.
Carla fica calada, fitando a fumaça. Tem olhos azuis, cer-
ca de vinte anos. Imagino o que faz nesta vida, mas nada
pergunto. Contudo, ela adivinha o meu pensamento e
se diz aluna de Arquitetura. Volta-se para o meu abajur
oriental e fica uns instantes admirada, talvez por encon-
trar tão rico e lindo objeto num quarto pobre de pensão.
Liga a luz azul, extasia-se, sorri. Comenta que aquilo é
uma verdadeira raridade e quer saber se é uma relíquia
de família. Anoitece, enfim, e ela se vai, deixando o che-
que pelo meu trabalho sobre a mesinha de cedro. Aperta
a minha mão com força. O seu perfume enche o quarto
inteiro e a sua beleza vai me perseguir por muitas noites.
Na saída, diz com um sorriso:
– Um dia vou voltar, assim como agora, num fim de
tarde, e então tomaremos um bom café! Quem sabe me

379
Franz Kafka voa de Zepelim

fará o favor de algumas aulas de alemão? Uma semana


depois desse encontro, um mensageiro vem me entregar
na pensão Mourisca a bela cafeteira sueca. Cartão algum,
mensagem alguma. Durante um tempo, espero a visita
de Carla, em vão e sem um motivo razoável. Ouço uma
batida na porta do meu quarto. Digo para mim mesmo:
“Enfim, é Carla!”. Mas é o zelador que me anuncia visitas.
Três sujeitos olham para a minha cara, desde o umbral.
O mais velho, um mulato magro, de óculos escuros, de
chapéu de feltro cinza, pergunta:
– Professor Cássio da Silveira?
– Sim.
– Venha conosco.
O camarada mais moço e corpulento segura o meu
braço com desmedida força. O terceiro, na penumbra do
corredor, não se apresenta, é uma figura comprida, esqui-
va. Diz, apenas:
– Sem perguntas.
Não tenho tempo para desligar a luz do abajur, nem
sequer fechar a porta. O velho zelador olha para mim,
espantado. Estacionado no meio fio, vejo um tintureiro
negro. O homem esquivo abre a porta traseira, para o
alto, e os outros dois sujeitos me jogam lá dentro, sob a
vista dos curiosos. A escuridão é completa no interior do
carro, sinto o rude atrito de metais nas costas e na cabeça,
fico um pouco tonto, vacilo, quando uma mão firme me
segura e me apruma, acomoda meu corpo naquilo que eu
julguei ser um assento de ferro. Digo:
– Obrigado.
– Nota-se que é a sua primeira vez, não é?
– Sim. Fui apanhado de surpresa, respondo, ouvindo
uma voz grave e um riso ao meu lado.
– Eu já estou acostumado desde os anos trinta, desde
os tempos do carroção. Sou um velho.

380
Leônidas Câmara

Ficamos em silêncio, ouvindo o ronco do carro em boa


velocidade. Pergunto, enfim:
– Quem é o senhor?
– Pedro, Pedro carpinteiro, assim me chamam. Estou
tão acostumado com isso, que minha mulher já tem uma
maletinha pronta com roupa de muda.
– Para onde vão nos levar, Pedro?
– Para uma guarnição militar qualquer. A mim já não
fazem mal, no passado sim. Não valho mais grande coisa.
Prendem-me pelo hábito. Como é mesmo o seu nome? O
que faz na vida?
– Cássio da Silveira. Dou aulas.
– Onde atua? Não me lembro do seu nome. Codino-
me?
– Não tenho. Apenas dou aulas de Literatura, faço tra-
duções.
– Quase sempre cometem enganos. Nunca pedem des-
culpas. Falou mal do regime?
– Eu? Não cuido de política.
– Vá ver, logo estará livre.
– Há mais alguém conosco, Pedro? Ouço ruídos.
– Não pude ver os rostos, Cássio, mas no subúrbio dois
jovens foram capturados. Apanharam muito, sobretudo o
rapaz, a moça, pelo menos, não gemeu como ele. Entre-
tanto, não querem falar comigo.
Penso no casal que desapareceu misteriosamente das
minhas aulas. Tolices! Pergunto a Pedro:
– Você é comunista?
Ouvi um riso no escuro:
– Que importância pode ter isso, meu Deus!
Os meus sapatos patinhavam no chão úmido do tintu-
reiro. Comentei:
– O piso está molhado. Para minha surpresa, ouvi uma
voz sumida responder:

381
Franz Kafka voa de Zepelim

– É que eu urinei. Acho que urinei sangue. Não sei.


Pedro disse:
– Bateram muito nele.
– Isto vai passar, rapaz! Jesus sofreu muito mais, por
nada…
Pedro começou a cantarolar, baixinho, mas logo subiu
o tom grave da sua voz. Acho que eram uns versos de
“Noches de ronda…”
De novo, o silêncio na pesada escuridão. Súbito, o car-
ro parou com um forte tranco. A porta traseira foi aberta
e um homem gritou:
– Pedro, pode descer!
O carpinteiro roçou o meu joelho com algo agudo, que
devia ser a sua maletinha, e disse:
– Boa-noite. Boa sorte para todos. Até mais ver.
Sem a leniente e breve companhia de Pedro, cujo rosto
sequer eu vi, o meu desamparo aumentava. Era uma es-
pécie de pátio escuro. Uma chuva fina e persistente cria-
va poças, aqui e ali, onde atolávamos os sapatos. Ao meu
lado, dois homens do carro; à frente, o sujeito esquivo,
um rapaz manquejando e uma moça alta, caminhando a
passos largos. Não conseguia ver os seus rostos e a minha
curiosidade me irritava.
O corredor mal iluminado parecia não ter fim. O resto
do grupo sumiu da minha vista. Eu seguia com dois solda-
dos. Afinal, abriram uma porta pesada, com uma vigia no
centro, e me empurraram para o interior da cela. Havia
um catre sem cobertores, uma cadeira sem braços, uma
latrina, no alto uma janelinha de grade de ferro. A ilu-
minação fraquinha escoava do longo corredor. Na pressa
com que me prenderam, fiquei sem os cigarros. Paciência.
Não pretendia deixar o vício? Com certeza, pela manhã
vão ver que prenderam o homem errado e estarei livre
para voltar ao meu quarto. Pouco dormi. Acordei com o

382
Leônidas Câmara

chilrear alegre e repetido de um pássaro. Julguei que era


um canário da terra. Conheço o canto. Padre Irmen me
dava aulas de alemão ao som do canarinho engaiolado na
janela. Arrastei a cadeira para junto da parede e consegui
ver um trecho de pátio batido pela luz do sol nascente.
De fato, numa gaiola pendurada numa aroeira havia um
canário da terra. Senti-me menos infeliz. Trouxeram-me
pão sem manteiga e café. Ao meio-dia, feijão e farinha,
sem carne. À noite, café e de novo pão sem manteiga.
Noite e dia a mesma coisa, quanto tempo? Eu sempre
julguei que nos presídios a vida era plena de atividades
diversas: futebol pela manhã, oficina depois do esporte,
biblioteca à tarde, à noite, palestras evangélicas, católicas
ou espíritas, aos domingos visitas e encontros conjugais...
Uma certa manhã, afinal, fui levado pelo longo corre-
dor para uma sala pequena, bem iluminada e limpa até
mesmo com cortinas brancas nas duas janelas, do modo
como eu queria fazer no meu quarto. Havia ali uma escri-
vaninha com uma cadeira e à sua frente um banco tosco.
Os meus dois condutores se foram. Fiquei só, de pé, um
pouco tonto e leve, olhando as paredes alvas. Um quarto
de hora se passou antes que um oficial entrasse na sala
e se sentasse à mesa, com gestos lentos, suaves, como se
estivesse representando uma pantomima num palco. Re-
tirou o quepe devagar, colocando-o sobre a escrivaninha,
alisou longamente os cabelos louros e compridos, levan-
tou a vista, olhou para mim com grandes olhos azuis de
criança e sorriu. Não era nada marcial o capitão da arma
de cavalaria. Disse, com voz suave, pausada:
– Sou o capitão Márcio Rodrigues Stein, da cavalaria.
Qual o seu nome?
– Cássio da Silveira.
– Ocupação?
– Dou aulas?

383
Franz Kafka voa de Zepelim

– Sobre?
– Literatura.
– Ah, sim. Já sabemos. Faz mais alguma coisa?
– Traduções do alemão. Aulas particulares, poucas.
– Ah, sim. Por parte de minha mãe descendo de ale-
mães. E o senhor?
– Pais brasileiros.
– Ah, sim. Como aprendeu o alemão?
– Com um padre amigo do meu pai, acho que o início
foi aos doze anos.
O capitão levantou-se e começou a percorrer a sala,
aos círculos, sentido horário, agitando no ar uma espécie
de relho.
– Quer o senhor caminhar, também? É bom para pen-
sar.
O oficial se deteve às minhas costas. Não me virei. Ele
bateu, de leve, com o relho no meu ombro direito. Sen-
tou-se e perguntou:
– Sabe por qual motivo se encontra aqui?
– Não, senhor. Não faço ideia.
– Como em Kafka, não é?
Surpreendi-me e sorri, respondendo:
– Exatamente, como em Kafka.
– O processo, não é?
– Exatamente, senhor!
Sorrimos. Ele acionou uma estridente sineta e logo
veio um ordenança:
– Lucas, quero café forte e quente e biscoitos de maise-
na. Sorriu, comentou:
– O pretinho Lucas, coitado, nada tem em comum
com o evangelista das gravuras ilustradas do meu velho
catecismo!
Houve um breve silêncio até a chegada do café com
biscoitos. O capitão serviu-se, com gosto:

384
Leônidas Câmara

– Adoro biscoitos de maisena, desde criança.


Comia os biscoitos lentamente, sorvia o café sem pres-
sa, olhando o teto. Disse:
– Não vai se servir? Não faça cerimônia.
Eu estava louco por um café de boa qualidade. En-
quanto eu bebia, o capitão me fitava, agora acendendo
um longo cigarro de papel azulado, com ponta dourada,
que eu apenas vira nos filmes americanos dos anos qua-
renta. É preciso dizer que ele usava luvas brancas de pe-
lica, retirando a da mão direita para fumar com estudada
elegância. Afinal, deu-me um cigarro azul, gentilmente
aceso. Fiquei um pouco tonto, mas logo me acostumei
com as longas tragadas. Então ele falou:
– Está aqui, meu amigo, por causa do caderninho azul.
Não sabia disso?
Fiquei deveras surpreso. O bloco de notas que Nassira
pedira emprestado? Meu Deus! Esboços de aulas, impres-
sões de leitura!
– Desculpe-me, senhor capitão, mas não entendi.
– Dizem que você é um sujeito importante, mas se faz
de modesto professor. Querem de você nomes e endere-
ços. O caderno azul não está em código? Por qual razão
emprestou um caderno escrito em alemão a uma moça
egípcia?
Sorri e expliquei:
– Deve haver um engano, senhor. O caderno azul ser-
via para as anotações das minhas aulas. Ao emprestá-lo a
Nassira, não me dei conta, com certeza, de que lhe seria
inútil. Creio que ela não sabe o idioma alemão.
O capitão ficou pensativo, alisando os longos cabelos
louros. Pareceu-me triste, decepcionado. Disse:
– Há enganos, é verdade, neste tipo de coisas. Informa-
ções equivocadas. Agentes confusos ou ignorantes. Nada
posso lhe dizer por conta do segredo de ofício. Alguém,

385
Franz Kafka voa de Zepelim

no entanto, foi feito prisioneiro algum tempo antes que o


senhor, alguém que sabemos, agora sem erro, pertencer a
uma perigosa organização.
– E então?
– Então, meu caro, ficamos sabendo do caderno azul
em código, mas ainda não o encontramos. Uma coisa tão
simples!
– Meu Deus!
– Tem razão em clamar pelo nome de Deus. Pessoas
inocentes correm perigo.
– Adiante algo mais, capitão, por favor.
– Vamos fumar, vamos controlar as coisas, rapaz. Vou
lhe revelar algo sem importância aparente, que vai lhe
provocar risos. Faz pouco tempo prenderam um casal de
guerrilheiros urbanos, eram seus alunos, um moço de
óculos escuros, sujeito sombrio, e uma garota magrinha.
Há quem use métodos arcaicos, contra os meus moder-
nos princípios científicos, é verdade, mas com resultados
eficazes e breves, pois logo o moço falou do caderno azul
com nomes, endereços e planos, em seu poder.
– Uma grande mentira, capitão!
– Pode até ser, não duvido, mas essa gente, quando em
situação limite, inventa qualquer saída para ganhar tem-
po, para obter algum alívio ou desafogo. Contudo, devo
admitir que eu mesmo não acredito que o senhor seja um
simples mestre-escola interessado em literatura e coisas
assim tão tolas ou inofensivas. Hóspedes da sua pensão o
olhavam com certa suspeita, pois disseram que o senhor
vivia o tempo todo metido no seu quarto, recebendo visi-
tas estranhas.
– Sou um misantropo, capitão. As visitas eram raras.
Empregados dos jornais, das agências de notícias ou das
editoras. Traziam material de trabalho.
– Tudo muito suspeito, enfim!

386
Leônidas Câmara

– Enfim?
– Entre essas suas visitas havia a de um jovem imberbe
extremamente perigoso, um estudante de Filosofia cha-
mado Tito Lívio. Tive o prazer de entrevistá-lo, faz algum
tempo, mas ele já foi transferido daqui. Usei a palavra
prazer por se tratar de um moço pobre, porém de boa
educação, muito ilustrado para a idade. Até mesmo joga-
mos umas partidas de xadrez.
– Não sabia do seu credo, capitão, ele apenas me leva-
va textos para traduzir.
– Credo? Material subversivo, explosivo e internacio-
nal. Por acaso, traduz sem ter consciência do que está es-
crito?
– Eu apenas traduzia propagandas de edições, cartas
comerciais, coisas assim.
– Nada disso. Tudo em código, meu rapaz.
– Como saber?
– Está metido numa grande encrenca. Pessoalmente,
lamento. Estou sendo transferido para outra unidade,
não me acham útil nesta guarnição. Dou ao amigo um
conselho: Cante os nomes, diga tudo o que sabe.
Ergueu o alto corpo com lentidão, aprumou o que-
pe na cabeça, empertigou-se, cumprimentou-me com um
aceno de mão, apenas um elegante gesto aéreo, e se foi,
julguei que para sempre da minha vida.
Não consegui conciliar o sono durante a noite. Pensa-
va em Nassira, a egípcia. Estaria presa, torturada, jogada
às feras por causa de um simples caderno de notas?
Pela manhã, ainda cedo, mesmo antes do café, logo ao
primeiro trinado do canário, já me encontrava numa sala
destinada à prática de ginástica. Sujeitos encapuzados
começaram um longo, doloroso e infrutífero interrogató-
rio. Não sei precisar a quantas sessões eu fui submetido.
A imagem de Nassira não saía do meu pensamento. Um

387
Franz Kafka voa de Zepelim

dia, quando eu era arrastado pelo longo corredor, cruzei


com um velho entroncado, de compridos cabelos brancos,
cabeça erguida, ladeado por dois esbirros. Vendo-me na-
quele triste estado, gritou:
– Coragem, companheiro, isso vai passar um dia!
Do fundo da minha fraqueza julguei já ter ouvido an-
tes aquela voz grave, mas não me recordava daquele rosto
vigoroso, dos grandes olhos azuis e da dignidade daquela
figura de ancião. Passado algum tempo, houve uma pe-
quena mudança na rotina da casa. Permitiu o seu coman-
dante, figura que jamais eu vi, que pela manhã, durante
uma hora, quando não houvesse sessão na sala de ginás-
tica, tomássemos, sem formação de grupos, em silêncio
absoluto, um pouco de sol e ar. No primeiro momento,
tonto pela luz, sobretudo pela fome e pela insônia que
me perseguiam, quase desabo no piso cimentado, quando
senti uma mão forte me erguendo pelo braço direito, logo
a voz grave:
– Levante-se homem, fique de pé!
Era uma voz duas vezes ouvida. Ergui-me e perguntei:
– Já nos conhecemos?
– Não que eu me lembre.
– Foi no tintureiro. O senhor não é Pedro, Pedro o car-
pinteiro?
O velho sorriu. Disse:
– Posso esquecer uma voz, estou velho, meio surdo,
mas um nome jamais esqueço. Cássio da Silveira?
– Pois sim! O senhor cantarolava “Noches de Ron-
da…”
Veio um cabra, com um cassetete erguido, afastando-
nos aos berros:
– Calem-se, cachorros!
Nos dias seguintes, não vi mais a figura do velho. Ar-
risquei perguntar ao soldado caboclo que nos custodiava:

388
Leônidas Câmara

– Por favor, o que é feito de Pedro, um velho a quem


chamam o carpinteiro?
O sujeito olhou para mim, logo nada dizendo. Em se-
guida, falou:
– Não converso com detentos. Mas o tal Pedro ou bai-
xou à enfermaria, ou foi transferido ou solto ou morreu...
O mais certo é que tenha morrido, o velho.
Afastou-se de mim, rindo com gosto. No dia seguinte,
não houve banho de sol, suspenso por tempo indetermina-
do. Também não me levaram à sala de ginástica. Fui conduzi-
do à saleta bem iluminada, com cortinas brancas, logo cedo,
e vi sobre a mesa uma bandeja com biscoitos e uma garrafa
térmica. Um ordenança postava-se ao lado. Não falou comi-
go, não me mandou sentar no banco tosco que usei da outra
vez. Um perfume de lavanda inglesa espalhou-se pela sala e
logo vi a figura esguia do elegante capitão Stein assomar sob
o umbral. O seu uniforme, novinho em folha, era impecá-
vel e agora ostentava no peito duas vistosas condecorações.
Sentou-se, cruzando as pernas com cuidado para não des-
manchar o vinco das calças novas. Logo não se dignou a me
olhar. Colocou o quepe sobre a mesa, com esmero, como se
depositasse ali uma taça de cristal. Examinou os biscoitos na
bandeja, as xícaras de porcelana branca, a garrafa de café.
Gritou, então, para o ordenança com uma voz de comando
que eu não ouvira antes, forte, até mesmo irada:
– Soldado Lucas, a bandeja não tem guardanapo, e
guardanapo branco! Não tomo café em garrafas térmicas,
mesmo no quartel. Vá no meu alojamento e traga o bule
de metal. As xícaras eu aprovo. Os biscoitos são de mai-
sena?
– Sim, senhor capitão!
O ordenança partiu e o oficial, afogueado, afinal le-
vantou os olhos para mim. Disse:
– Sente-se, homem!

389
Franz Kafka voa de Zepelim

Sentei-me, devagar, como ele o fez. O capitão olhou


detidamente para mim, balançou a cabeça penalizado:
– O que fizeram com você, rapaz? Métodos arcaicos,
cediços... Andei me informando a seu respeito. Cada vez
mais complicado com a justiça, isto é, com a justiça cas-
trense.
Sorria. Fez uma longa pausa, parecendo meditar, se-
riamente. Os seus belos olhos azuis alsacianos, tão pa-
recidos com os do meu velho protetor, padre Friedrich
Irmen, vagavam pela sala até que se detiveram no meu
rosto. Seria ele, por acaso, filho bastardo do padre Irmen?
Meu Deus! A sua melancolia era visível. Tive vontade de
lhe perguntar a razão da sua tristeza, como se fosse ele um
noivo apaixonado que tem rompida a sua aliança. Calei-
me. Exclamou, exultante, já sem abatimento:
– Eis o café, afinal! Uma estrela dos meus galões por
um bom café e um cigarro! Pode ir, Lucas. Serviu-se e ser-
viu-me. Tomando o café, disse:
– Temos, afinal, o seu caderninho azul, Cássio. Não é
esse o seu nome?
Surpreendi-me. Tanto tempo preso por nada. Pergun-
tei, receoso:
– Onde estava o meu bloco, capitão?
– Vamos fumar. Aceita um cigarro? É uma marca turca.
Não se recorda de Greta Garbo, deslumbrante num fil-
me preto e branco, fumando um longo cigarro azul numa
cena inesquecível de uma fita cujo nome não me lembro?
O filme era preto e branco, eu sei, mas o comprido cigar-
ro era azul com uma ponta dourada, tenho certeza. O que
vale é a sugestão da lembrança! – Sorriu. Acendeu o seu
cigarro e o meu já me entregou aceso, com um gesto qua-
se lânguido, não fora apenas uma impressão provocada
pela minha fraqueza. Então, falou:
– Pois é, o caderno de notas. Foi encontrado, graças a
Deus!

390
Leônidas Câmara

Pensei, de novo: tanto tempo perdido, tanta dor, por


nada. Receoso, perguntei:
– E onde ele estava, capitão?
– Eu não devia lhe dizer, mas não é segredo de Estado.
Logo foi encontrado com uma moça, estrangeira, acho,
não tenho certeza.
Interrompeu bruscamente o assunto e gritou com voz
de comando para Lucas, o ordenança:
– Lucas, deu você alpiste ao meu canário-da-terra, na
aroeira, mudou a água?
– Sim, senhor capitão, já fiz isso.
– Voltemos ao bloco de notas. Não é que a moça, a sua
aluna oriental, levou o seu caderno e desapareceu com
ele? Tudo por causa de uma pneumonia, viajou para um
lugar qualquer do interior com os pais, o que dificultou a
busca por algum tempo. Ei-lo:
– Retirou do bolso do dólmã meu velho caderno, agi-
tando-o como um troféu no ar. Disse:
– Ao analisar os seus manuscritos, logo vi que se trata-
va de um código, pois não sou eu um criptógrafo polígra-
fo, o único na região militar? O melhor! A chave estaria
na lista final, onde se encontram os títulos do seu adorado
Franz Kafka e a grande bibliografia anotada pelo amigo
com tanto carinho.
– Mas é uma bibliografia, sim, capitão.
– Não discordo, mas é também uma chave para o texto.
– Os nomes estão escritos em alemão.
– Eu sei e eu sei alemão, rapaz, como você. Não me
convocaram, de volta para ter o prazer de interrogá-lo?
Queremos as conexões internacionais.
– E a moça, capitão? O seu nome é Nassira, é egípcia.
– Soube que é bela, tem lindos olhos negros, lindas
pernas... Não a vi, não sei mais nada a seu respeito, se sol-
ta, se viva, se morta. Quanto ao senhor, nada mais posso
fazer, desde que não colabora espontaneamente. Lamen-

391
Franz Kafka voa de Zepelim

to lhe dizer, meu caro, mas sua mãe foi despedida da casa
de repouso que o senhor deixou de pagar e morreu num
asilo público, faz um mês. É só. Meus sinceros pêsames.
Não deixei que dissessem a ela que o senhor se encontra
aqui, entre nós...
Ficamos em silêncio. O capitão levantou-se, com ele-
gância cumprimentou-me, juntando os pés, apertando
a minha mão com suavidade, com suas luvas brancas de
pelica, dando-me um maço inteiro do cigarro azul cine-
matográfico, e se foi, a passos lentos, compungido, como
num grande plano de um filme dramático.
Noite e dia torturava-me a suspeita de saber Nassira sub-
metida a terríveis castigos corporais, quem sabe até mesmo
no limite da sua curta vida por causa de um simplório cader-
no de notas. Entristecia-me saber que a minha mãe morreu
com a grande mágoa por seu único filho tê-la abandonado.
Adoeci, não resisti aos interrogatórios, levaram-me para a
enfermaria. No meu delírio volto à infância, revejo a minha
mãe no seu vestido de voile, o capitão Stein numa grande
tela, travestido em Greta Garbo com seu longo cigarro azul
de ponta dourada, os aeroplanos de Bréscia volteando no
céu de estio, e na minha carne a sentença – Sê justo! Não
sei quantas noites e dias tenho atravessado, perco a noção
de tempo e espaço. Pioro muito. Decifro o código, do alto
de um pedestal na sala de ginástica e delato, por fim e ao
acaso, os nomes pelos quais tanto me fizeram sofrer: – Ed-
gar Allan Poe, Joseph Conrad, Arthur Rimbaud, Frédéric
Chopin, Federico García Lorca, Milena Jesenská, Joaquim
Maria Machado de Assis, Friedrich Nietzsche, Jorge Luis
Borges, Juan Rulfo, Ernesto Nazaré, Madame Satã... Omito
o nome de Franz Kafka. Pessoas encapuzadas concordam,
balançam a cabeça, assentindo com satisfação. O capitão
Stein grita com uma surpreendente voz viril aos seus subor-
dinados enfileirados no pátio:

392
Leônidas Câmara

– “Considerai isto:
– Estou inocente do sangue desse justo”. E ao orde-
nança Lucas, o evangelista:
– “Solte o homem que nele não vejo culpa alguma,
não quero manchar as minhas mãos com o sangue desse
inocente. Nem as mãos nem as luvas!”
Olho para o céu tão claro naquela manhã de dezembro,
sentindo a proximidade das festas de Natal. Vejo um ponto
cinzento entre as poucas nuvens, um ponto que se movi-
menta e que se amplia. Não, não é mais dia, é noite, uma
sombra comprida vem se deitar no quintal da minha casa.
Há uma guerra lá fora. Devo ter sete, oito anos. O gigan-
tesco balão, que ora me amedrontava, ora me fascinava, re-
gressa nesta justa estação difícil da minha vida. Agora, sim,
eu o vejo distintamente. Maravilhoso, todo iluminado. Vai
baixando, lentamente, e pousa sem ruído, com suavidade,
como uma grande nuvem de luz. Não sinto mais medo al-
gum. Só encantamento. Um jovem elegante e esbelto, ma-
gro e pálido, vestido com uma casaca negra, alvo colarinho
alto, chapéu negro, vem ao meu encontro. Sorri para mim,
vejo que é um tímido. Não diz nada, apenas segura com
leveza o meu braço direito e me conduz para o interior da
nave. Foi com grande alegria que pude ver no seu bojo,
ricamente iluminado, os objetos do meu antigo quarto da
pensão Mourisca: – meus livros bem arrumados na mesi-
nha de cedro, o abajur japonês com sua cúpula celeste e
a base de translúcida pérola, Made in Japan – 1880, minha
cafeteira sueca, meus cigarros, meus Noturnos, Goethe em
bronze, minha estampa de Picasso, a gravura da Virgem,
minha segurança anterior e meu caderninho azul. Olhei
em volta e vi que estavam reunidos, à minha espera, o meu
pai, ainda moço, com o seu terno branco de brim diagonal
e o seu inseparável chapéu Panamá; a minha mãe, no auge
da juventude e da beleza, com seu inesquecível costume

393
Franz Kafka voa de Zepelim

azul; Carla, sempre sorrindo, rica, perfumada e feliz com


o seu vestido celeste de voile idêntico ao de minha mãe; Pe-
dro, o carpinteiro, forte e digno com seus cabelos brancos
e sua voz grave de “Noches de Ronda”; Nassira, a egípcia,
com suas longas pernas, como sempre esplêndida como
uma falena da noite. O Zepelim começa a subir. Foi com
surpresa que vi no pátio, olhando para cima, solitário e com
ar melancólico, uma figura que me pareceu ser a imagem
esmaecida da artista Greta Garbo, com seu longo cigarro
azul. Gritei: “Venha, venha conosco, ainda é tempo!”. Mas
o balão já alcançava as primeiras nuvens e o capitão Stein
desapareceu para sempre da minha vida. Tudo ficou dis-
tante e sem significação, a terra deixava de me oprimir, e
eu era, simultaneamente, o mesmo e um novo ser, comple-
tamente livre, gerado no espaço infinito do céu.

394
Dela, Adina
Liana Ribemboim Feldman

Houve um grito na loja. Vinha do estoque; eram vozes


femininas, eram sons de alegria. Um grito tão entusias-
mado! Várias moças juntas, confraternizando, mas nada
conseguiam dizer além do barulho no sorriso. Foi engra-
çado, tudo tão rápido, sem tempo de questionar os moti-
vos, logo uma delas desceu e disse que deu positivo.
Adina se emocionou. Seus olhos brilharam e seus de-
dos cobriram as maçãs do rosto. Ela nem sabia para onde
olhar, só ficou feliz com a graça alheia. Uma colega estava
grávida e vibrando com a confirmação; as outras se abra-
çaram e esqueceram a polidez de um estabelecimento co-
mercial, pudera, parecia que um rei estava para nascer.
Sim, em tempos de dificuldades, quando uma mãe recebe
um filho assim, com tanto ouro em vida, é coisa de rei.
É uma pena que tamanha alegria cause surpresa e
estranheza. É triste notar que os gritos são atípicos e as
lágrimas de amizade são somente ideias. Ainda mais na
cabeça de Adina, moça humilde, sem muito trato nos sen-
timentos; saiu antes de cumprimentar a colega, quis an-
dar para ver se os pensamentos da cabeça se espalhavam
pelo corpo, até chegarem ao pé que lhe sustentava. E na
rua pôde enxergar melhor com os olhos cheios...
Saiu sem rumo nem hora, não pensava em voltar à
loja, tampouco à sua casa. Morava com seus pais e seus
irmãos num apartamento pequeno, porém organizado, só
que lá não havia espaço para sensibilidade sem lamentos
ou frescor de uma tarde sem vento. Isso ela só poderia
Dela, Adina

fazer sozinha, por aí, no lugar de ser qualquer coisa que


era parte dela, mas não muito.
Viu as outras vitrines, os cartazes, a poeira, o excesso.
Precisou olhar em partes, para não atacar ainda mais a
cabeça embaraçada, e foi selecionando. Parecia uma espe-
cialista em escolher visões, via apenas o que lhe interes-
sava com o detalhismo de um profissional. Soube receber
os estímulos de modo a aproveitá-los em sua síntese, que
deveria ser concluída até o anoitecer, pois retornaria ao
lar já segura de si.
Não ocorreu. Não dava para juntar tudo em um bal-
de, mexer, e tirar as frases limpas e enxutas. Impossível.
Adina voltou na hora do jantar com um meio sorriso tão
seco que sua mãe nem teve coragem de perguntar qual
era o motivo. Comer em silêncio não parecia comum, mas
ocorreu sem objeções.
Depois de dormir, acordou na beleza do sábado. Pensou
em dar uma volta enquanto o sol se mostrava discreto, e
foi. Para sua surpresa, era o início dos festejos de carnaval.
Em que mundo estava vivendo, se não sabia disso? Ima-
ginava que a data estava próxima, pois as ruas do centro
foram decoradas e o comércio ficou mais agitado, só não
articulou que estava acordada no dia do esperado dia.
Adina nunca havia brincado o carnaval. Sim, se diz
brincado, porque ela já tinha passado por alguns carna-
vais, mas sem tanta alegria. E nesse dito sábado resolveu
pensar a respeito, mesmo ainda chorosa de horas atrás.
Viu um mascarado passando com uma criança ao lado,
fantasiada de palhaço. Um mimo, uma graça de ver. Aos
poucos o dia foi se colorindo de tantas fantasias e confetes
pelas calçadas, gente comemorando a folga do trabalho
e o descanso dos dias que estavam por vir. Era uma festa
para todos, até as senhoras idosas tinham enfeites nos ca-
belos presos, até o brilho da purpurina estava mais nítido

396
Liana Ribemboim Feldman

que um cristal no sol. Eram vários pontos de cristais, cada


um com seus adereços fazendo risos pela rua.
Ela ouviu as músicas das pequenas bandas que passa-
vam, e conseguiu cantar algumas com um entusiasmo dis-
creto. Sentiu também uma dúvida, pois não entendia como
sabia as melodias e as letras se não brincava carnaval. Por
um momento esqueceu de pensar e dançou sozinha entre
os outros tantos sozinhos da rua, sem se preocupar com a
origem de todas as coisas desse mundo. No fundo, Adina
sabia que tudo de sua vizinhança era parte dela também, e
morando ali desde pequena, não tinha como ignorar tan-
tas músicas divertidas. Até mesmo em casa, sabia do resto
após a janela, e não planejava mais esconder.
Quando ficou cansada e com suor escorrendo no rosto
quente, resolveu entrar. Seus pais não entenderam como
ela pôde voltar naquele estado, quase uma foliã nata em
fim de festa, porém não fizeram comentários. Ali cada
qual tinha sua vida, e um não se metia na do outro, a me-
nos que alguém fosse pelo mau caminho. Não era o caso,
os valores da família eram firmes, e os caminhos alterna-
tivos aos modelos eram apenas divergentes no modo de
rea­lização, não no conteúdo. Um jeito de pensar diferente
não significa uma moral deturpada. Isso era confortável
para Adina, ela sabia de sua pequena liberdade para ser
outra pessoa que não uma sósia de seus pais.
Já no domingo, com a boca cheia de vontade de can-
tar, foi procurar uma das bandas. No caminho sentiu não
ter comprado ou preparado adereços para se enfeitar. Viu
todo tipo de gente, todo modo de fantasias, e quis a sua,
só não dava tempo. Cantaria sem nada mesmo, inclusive
sem a vergonha de sempre, que era o principal e mais
inútil ornamento.
Passou pipoqueiro, algodão-doce, vendedor de picolé.
E já perto da banda, passou também um rapaz com um
painel cheio de máscaras e enfeites diversos à venda. Foi

397
Dela, Adina

a alegria de Adina. Ela comprou a mais bonita, de papel


machê com pintura vermelha e azul, e penas de pavão
nas laterais. Um charme, parecia uma dama da sociedade
dançando com discrição entre os anônimos.
Viu vários blocos bailando na rua da sua casa. Adina
ficou encantada com todos eles, dançou e cantou as me-
lodias até cansar. Tudo isso sozinha, como tinha que ser.
Parece que aquele tempo era preciso para ela, estar sozi-
nha, ela e ela, foi bom. Estava entendendo sobre lazer e
sorrisos, coisa pouco comum até então.
Chegou cansada, mas ainda assim ela bordou uma blu-
sa para usar no dia seguinte. Escolheu as mesmas cores da
máscara, do bloco mais animado, das fantasias mais boni-
tas. Adina se sentia linda, cheia de lantejoulas na roupa e
brilho na maquiagem. Ficou enfeitada como as moças da
sua idade, cheirosa de lavanda e com cabelos na trança,
recheados com presilhas de contas coloridas.
Ela se divertiu como nunca, e percebeu que não preci-
sou de muito para isso, só dela mesma. Conseguiu alguns
grupinhos para se juntar e fazer amizade, mas o objetivo
de verdade era estar só. É difícil de entender isso, mas
Adina precisava saber se ela se aguentava contente, ou
se sua pouca felicidade vinha dos outros. Este foi um dos
questionamentos de sua caminhada após a notícia do rei
prestes a nascer: como poderia, um dia, ter filhos? Tinha
que entender que alegria é essa de uma pessoa que gera
outra, mas só conseguiria imaginar um pedaço disso se
ela se gerasse sozinha antes. Adina se viu inerte, depois
se viu suficiente. Sim, a colega merece aplausos, além do
barulho. E Adina por enquanto merece ela mesma, até se
cansar de ser tão pouco que se é nos dias correntes. Até
querer fazer um pedaço dela com o de outro, que se trans-
forma em mais além da parte de dois, o três, uma poesia
de viver ainda maior que as canções dos carnavais, e mais
e mais de tudo o que se sabe.

398
Sobreviventes
Lourdes Nicácio

Dezembro. O calor era intenso, mesmo àquela hora da


tarde, em que o sol estava quase desaparecendo. Algumas
crianças de rua tomavam banho no Rio Capibaribe, junto
da Ponte Princesa Isabel.
De repente, dois meninos afastaram-se do grupo:
– Tá na hora, bicho – disse um deles, coçando os olhos
avermelhados.
– Tô esquecido, não, veio. Vamos lá! – respondeu outro.
Nadaram ambos em direção à ponte. Ao atingi-la,
prepararam-se para o ataque. Estavam mascarados com
a lama negra do rio. Homens e mulheres assustaram-se.
Caminhavam apressados. Protegiam as bolsas e as sacolas
com as compras do final de ano. Olhos fixos nos meninos
que, em seguida, arrancaram uma carteira do bolso do
próprio guarda daquela área.
O pobre homem de botas, um tanto desgastadas pelo
trabalho diário, considerava-se a última pessoa a ser per-
seguida daquela forma. Na verdade, quem poderia ima-
ginar que pivetes como aqueles iriam atacá-lo? O povo
começou a agredir o guarda:
– Pega ladrão, molenga! Corre, incompetente, corre!
Entretanto ele não se movia. Estava surpreso. Humilha-
do. Observava os pequenos correndo, com sua carteira, ga-
nhando distância. Desapareceram. Deixaram apenas mar-
cas de pés enodoados pelas águas poluídas do rio.
Chegou, por completo, a noite. Havia lua cheia no céu
e lâmpadas acesas nos postes circunvizinhos. Mas não con-
Sobreviventes

seguiram iluminar aquele negro manto estendido: o rio, o


mangue e os meninos envoltos em névoas de fuligens.
Todos se foram. O guarda também, desertando a pon-
te. Um professor assistia à cena no calçadão da Rua da
Aurora, que ficava ali perto. Dos outros garotos que aca-
bavam de deixar a natação e ganhavam as ruas do centro
da cidade, um se aproximou:
– Me dá isso! – arrancou-lhe das mãos uma mochila.
Quando viu que se tratava apenas de livros, jogou-a
com tanta força nas águas, que se formou um grande cír-
culo de maretas ou ondas turvas.
– Paulinho, meu filho! – exclamou ao afastar a lama
daquele rosto adolescente, com os dedos, tentando defen­
der-se.
– Meu Deus, foi mal! – falou, reconhecendo seu profes­
sor de Matemática que, de olhos arregalados e queixo ca-
ído, imaginava-se diante do irreal.
Todavia o seu aluno estava ali. Fazia muitos dias que
não assistia às aulas. Deixou-se sentar na calçada. Na ver-
dade, deixou-se jogar como um saco de coisas quaisquer.
Não observava nem as alças da sua mochila jeans sinali-
zando despedida rumo à parte mais profunda do Capi-
baribe.
Cabisbaixo, o menino deu meia-volta. “Como pôde
acontecer isso? O professor não merecia... Vive ralando
tanto pra sobreviver... Foi mal... Agora que não volto mais
pra escola, pra ver a cara dele...” – pensava, afastando-se,
rapidamente, sem olhar para trás.
O professor levantou-se – o seu ônibus chegara na pa-
rada, ao lado, com a freada estridente de sempre. Subiu.
Tirou do bolso da camisa um vale-transporte. Entregou-o
ao cobrador, sem aquele costumeiro “oi” ao passar pela
borboleta. Sentou-se. Era um homem cansado. Desceu no
bairro de Águas Compridas, onde residia.

400
Lourdes Nicácio

Dormiu muito tarde naquela noite. Conversou com a


mulher, checou a vida escolar dos filhos. Orou em silên-
cio. Refletiu.
No outro dia, na sala de aula, o professor pediu que guar-
dassem os cadernos de Matemática durante alguns minutos.
Falou sobre direitos e deveres de todo cidadão; sobre a im-
portância do Rio Capibaribe para a cidade do Recife. Estava
preocupado. Falou com tanta emoção, que a turma o aplau-
diu de pé. Antes de sair, apertou a mão de Paulinho que o
ouvia atentamente, sentado na primeira fila.

401
O perdão
Lourdes Sarmento

Na Rua Florida, Nádia olhava uma figura distinta: um


homem-estátua com asas grandes e cinza assim como a sua
máscara, dentro da qual se moviam dois olhos negros.
Depois de algum tempo, a estátua transformava-se, e
os braços pintados de cinza, segurando uma vara de luz,
apontavam uma pessoa do grupo, da sua plateia organi-
zada.
Recebia moedas deixadas no seu bem cuidado chapéu
de cetim preto.
Nádia observava a plasticidade daquela figura imensa,
sobre um largo quadrado, colocado na calçada.
As pessoas iam chegando. Ele, em silêncio, olhava to-
dos como anjo ou demônio, às cinco da tarde, no vaivém
de transeuntes.
A vara de luz indicou um rosto de pele morena, cabe-
los negros, corpo franzino. Era ele, o marroquino que a
marcou com ferro em brasa à luz do dia.
Nádia baixou seu olhar para a mão esquerda com uma
enorme cicatriz. Segurou-a como se desejasse poupá-la
daquele demônio. Trêmula, sentiu medo dos persona-
gens do passado.
Ele não poderia reconhecê-la. Tinha vinte e oito anos
quando o viu pela última vez. Hoje, era uma senhora de
cinquenta e seis anos, embora com jovialidade no rosto,
desafiando o tempo e as tempestades vividas.
Não era uma mulher amarga – pensou.
Lourdes Sarmento

Lembrou-se do novembro, quando a cidade vestia-se


de trajes do Natal. As cores vibrantes dos enfeites, as luzes
iluminando ruas e praças anunciavam novas esperanças.
Para ela, entretanto, tudo fora indiferente, o momento
era de pânico e solidão.
Constatou que o marroquino havia desaparecido do
duplo círculo de curiosos, das pessoas que ocupavam as
horas, como ela.
“O que faria aquele homem em Buenos Aires, longe
do Brasil?” – indagou-se.
Em quase total silêncio, viveu toda sua vida, transfor-
mando dores em sucessos. Tinha a cicatriz na mão esquer-
da e na alma, porém era vitoriosa.
Escritora premiada em Nova York com um romance
que a distinguiu em vários concursos literários, não seria
neste outono argentino que temeria um senhor de setenta
e oito anos.
Não pensou sequer na possibilidade de arrependi-
mento daquele marroquino que, sem a menor piedade,
marcou-a como alerta.
Recebeu ameaças e na mão o revólver, instrumento do
poder. O poder de calar sua boca para sempre.
“Ou o silêncio ou a vida”. Nádia escolheu a vida.
Nasceu em Goiás. Filha única de pais holandeses, tinha
a graça da mulher brasileira e a suavidade de uma pele
branca e macia. Era uma mulher alta de tamanho e ideias.
Havia vencido profissionalmente e como mãe de família.
Amava os dois filhos pelo coração, uma escolha perfei-
ta. Filhos de pais desconhecidos, ambos ficaram parecidos
com ela, no físico e nos sentimentos.
A personalidade lógica de Daniel com 22 anos e os
sonhos de Henriqueta aos 18 anos.
Henriqueta é poetisa, estudante de Filosofia; Daniel,
economista.

403
O perdão

Possuía tudo para ser feliz, pensou alto, caminhando


pela Rua Esmeralda. Nesse março de 2006, havia concluí­
do um trabalho de pesquisas realizado na Universidade
de Buenos Aires.
Os filhos estudavam no Rio de Janeiro, local onde ha-
bitavam desde a morte repentina do marido. Numa tarde
de sábado, dormindo ao seu lado, partiu para o Infinito.
Daniel pai era biólogo, um estudioso e um chefe de fa-
mília extremoso. Deixou-a dentro do sono, machucando
os sonhos, exatamente num mês de novembro.
Era um casamento perfeito, se conseguimos achar que a
convivência conjugal permite uma chama acesa anos segui-
dos. Nádia lembrava o companheirismo de Daniel, o apoio e
a coragem do marido em todos os momentos difíceis.
Entrou no hotel, abriu seu quarto. As luzes foram ace-
sas e o leito era sempre vazio, nesses quatro anos.
Preparou-se rapidamente para ir ao espetáculo de tango,
na Casa Carlos Gardel. De negro, com um casaco vermelho,
desceu para esperar o guia de um grupo de turistas.
O tango arrancou-a das atividades culturais e nas mãos
da música entregou-se aos seus desejos e bailou. Bailou no
pensamento.
Da Casa de Tango à cama do seu quarto do hotel, per-
maneceu quieta, voltou ao passado, um interminável re-
gresso.
Na sala do advogado marroquino, conheceu o terror.
O estupro e a dor da ausência de afeto eram algo anor-
mal. A pele daquele homem suado, competente e maldito
que a esbofeteou várias vezes para saciar sua fúria sexual,
rasgava-lhe os sonhos impiedosamente.
Ele preparou tudo nos menores detalhes: absorventes
higiênicos nas gavetas e toalhas pequeninas. Ela sangrava
muito e saiu do escritório sem destino.
A boca seca, a dor na vagina, o sangue que deveria já ter
ensopado os dois absorventes, pararam seu pensamento.

404
Lourdes Sarmento

Sentou-se num banco do jardim e sentiu-se perdida.


Perdida e sozinha.
Não tinha com quem conversar, os pais eram conser-
vadores e não admitiam a liberdade sexual da década de
1970.
Humilhada e em silêncio, segurou fortemente a bolsa
com os seus documentos de identidade. Abraçou-a como
se fora a única coisa que teria sobrevivido.
Pensou: “não perdi a virgindade. Não perdi com aque-
le maldito!”. A sociedade humana havia colocado a virgin-
dade num lugar errado. O importante era todo o ritual
amoroso que havia ocorrido com o noivo gaúcho, sempre
parando na hora exata e deliciosamente vivido durante
muito tempo. O noivo era o primeiro homem da sua vida,
respirou.
Foi a um médico da família, para os curativos que se
faziam necessários. Estava muito machucada e sangrava.
O profissional foi insistente. Indagou-a o nome e a pro-
fissão do homem que a molestou. Nádia confessou tudo,
tendo certeza do sigilo profissional. O que não aconteceu.
Constatou após o telefonema que recebera do agressor,
obrigando-a a ir ao seu escritório. O cano do revólver era
uma ameaça quase todos os dias, até que Daniel a conhe-
ceu, soube de tudo o que ocorrera e começou a cuidar
dela até a morte.
Eram quatro anos sem Daniel, não saberia o que fazer
– pensou.
Quem sabe se não era outra pessoa na Rua Florida,
poderia ter sido um engano, mas nesses anos acompanha-
va o sucesso profissional do marroquino, através de notas
sociais e fotos nos jornais.
Apavorada, orou. Como se o anjo do bem descesse ao
seu leito, o Senhor foi apaziguando suas mágoas, seu ódio.
Estava liberta do ódio e vislumbrou o perdão pleno.
Retirou de si algo pesado, cinza como o homem-estátua.

405
O perdão

Adormeceu com o perdão nas mãos. Adormeceu sua-


vemente.
Na manhã seguinte, desceu para o pequeno almoço e
pegou o jornal El Clarín.
Estampada na primeira página estava a foto de um
homem morto.
Era um marroquino de 78 anos, com residência no Bra-
sil, assassinado na calçada do seu hotel, poderia ter sido
vingança pois os seus pertences não foram roubados.
Ali estava seu nome: Ramón Miguel, advogado, em
passagem de negócios na capital da Argentina.
A chuva caiu como cristais, na Rua Esmeralda.

406
Clóvis
Luce Pereira

Eu pensava que gato servia apenas para a gente se sentir


dona de alguma coisa, para reclamar, a cada espirro, de pe-
los espalhados pela casa inteira ou para destoar das amigas
que preferem cachorros. Até o dia em que Dolores apareceu
em minha vida, como se tivesse nascido e crescido ali, dian-
te dos meus olhos. Eu que nunca acreditei nessa história de
cara-metade estava na frente de uma, e disposta a esque-
cer de vez o significado da palavra separação. Não sei bem
como tudo aconteceu – porque paixão faz a gente perder as
medidas – mas entramos naquele mundo de algodão-doce
na boca e algodão branco sob os pés, que leva os casais a
buscar formas e formas de pôr cimento na relação. Cimen-
to que eu digo são coisas capazes de deixar as duas pessoas
mais presas uma à outra. Então Dolores sugeriu um gato.
Um gato? Aquilo não estava nos meus planos. Imaginei
logo o bicho se esgueirando pela casa inteira, acariciando
quantas pernas houvesse, com a mesma cara de Monalisa e
jeito de pidão. Abomino olhares que eu não sei decifrar e,
em se tratando de gato, tanto pior porque ele jamais se dig-
naria a explicá-los. Ponderei que mais tarde o bicho pode-
ria limitar nossa liberdade, tão preciosa naquele momento.
Ela então me fez jurar antecipando o nome que teria nosso
gato: Clóvis. Persa ou siamês, seria Clóvis, estava acertado.
Dormi pouco naquela noite. Já imaginando Clóvis entre a
gente, enchendo fronhas e lençóis com pelos, fazendo xixi
na minha poltrona predileta ou, acometido de incômodos
intestinais, nos levando a disparar para o veterinário às três
Clóvis

da manhã. Mesmo antes de comprar Clóvis, já era um ter-


ror admitir que gatos têm funções mais nobres, como man-
ter a chama das paixões acesa. E chegar à conclusão de que
um deles, mesmo antes de existir, já funcionava na cabeça
de Dolores como promessa de felicidade futura, me inquie-
tava. Seria ciúme? Ora, mas se a expectativa é de que o gato
fosse nos unir mais, como é que aquele já se anunciava como
uma ameaça? Tive pesadelos. Num deles, Clóvis estraçalha-
va, com olhar cínico, o livro que reunia as telas de Gauguin.
Enquanto eu me desesperava, paralisada diante da cena, ele
fazia cocô na cabeça de uma mulher do Taiti. Lembro que
enquanto o chamava de filho da puta seguidas vezes Dolo-
res descascava um dicionário inteiro de impropérios con-
tra mim, afirmando que em minha estrema brutalidade eu
não percebia o óbvio: gatos nunca foram bons apreciadores
de obras de arte. Acordei suando, como se tivesse passado
a noite no purgatório, e juro que cheguei a ouvir miados.
Não eram dele, eram dela, que, muito manhosa, pedia café
na cama. Eu sempre fazia aquilo com uma certa dedicação,
porque cafés na cama pesam na hora em que bate uma lou-
cura qualquer e a relação corre perigo. Duvido que alguém,
ao lembrar da mais perfeita tradução de aconchego – a me-
sinha posta sobre os lençóis – não pense duas vezes antes
de decidir arrumar as tralhas e bater as asas. Ainda mais os
nossos, aos quais se seguiam sempre deliciosas conversas e
um amor sem hora para acabar. Mas naquele dia fui até a
cozinha ainda sob impacto da noite de horrores. O que faria
com Clóvis se ele inventasse de lamber o croissant a caminho
de sua boca? Se, descuidado ou perverso, derramasse o café
sobre as nossas pernas? E se, carente, competisse com os
nossos gemidos, miando mais alto? Aquele foi o primeiro
café na cama monótono das nossas vidas. Só Dolores não
viu a imagem de Clóvis estampada no meu humor avariado
– pensava que era TPM. Muda, sem poder revelar a minha

408
Luce Pereira

inquietação para não criar desastres descabidos, eu só pe-


dia que o tempo passasse e ele passou, indiferente ao meu
pedido. Da primeira vez que briguei com Dolores havia um
motivo concreto, que eu não lembro exatamente; na segun-
da, o motivo era aparente e esse eu lembro menos ainda;
na oitava – ou décima? Não sei – acho que inventamos uma
razão qualquer para a briga fazer algum sentido. Como o
que inventamos não foi suficiente, ela ressuscitou Clóvis.
Sim, a culpa toda era minha, que, insensível, jamais cumpri
a promessa feita há dois anos. Naquela hora, fiquei pen-
sando como teria sido nossa vida se Clóvis morasse dentro
dela desde aquela época. Talvez gostássemos de levá-lo para
passear no calçadão e assim bebêssemos a água de coco que
adiamos tantas vezes por pura preguiça de nos agradar; tal-
vez ele ficasse quietinho, me vendo folhear junto com ela
o livro que tem as telas de Gauguin; ou talvez, por ter uma
alma feminina, passasse as sete vidas escondendo os sinais
do “cio”, só para não parecer inconveniente. Sim, talvez eu
não quisesse mais ficar perdendo Dolores por adiar Clóvis.
Será que ele, em algum lugar da cidade, me perdoaria por
ter subestimado tanto sua capacidade de unir? Não, agora a
missão já era outra, muito mais séria: resgatar. Quem diria
que gatos fossem responsáveis por atribuições tão nobres!
Constatando isso, soa até como ignorância tratá-los com
ração ou restos de boa comida, mereciam no mínimo filé
mignon ao ponto, feito por chef francês. Fomos ao pet. Àque-
la altura, não poderia mais reconhecer Clóvis facilmente.
Os três já éramos outros. Ele uma época fora vilão e tinha
virado salvador da pátria; Dolores já não recebia flores e
eu havia deixado de achar graça no livro das telas, embora
ainda sentisse uma vontade enorme de voltar aos cafés na
cama. Se conseguisse isso, depois pouco importaria aquela
situação incômoda que bate sempre que duas mulheres en-
tram numa loja de animais – todo mundo encara como se

409
Clóvis

dissesse “olha lá o casal querendo salvar o casamento!”. Dá


vontade de berrar que sapatão é o cacete. Dolores passou
os olhos devagar sobre as gaiolas e descobriu Clóvis, que
não era nem persa nem siamês, mas parecia os dois juntos.
Ainda tive dúvidas se não seria um filhote de lince, com
aquele tamanho descomunal, mas o rapaz da loja informou
que se tratava apenas de um Maine Coon. Pelo preço e pelo
porte, avaliei que a “operação resgate” tinha mais chance
de dar certo. Levamos Clóvis e todos os apetrechos compra-
dos para deixá-lo confortável em sua nova casa. A princípio
nos tratamos com uma certa cerimônia, porque a elegância
dele desconcertava. Supus logo que, fino daquele jeito, se-
ria uma boa companhia para ouvir as minhas óperas predi-
letas. Desconfiado, mal chegou e foi se aninhando perto de
umas revistas sobre filósofos do século. Um gato culto, por-
tanto. Só faltou pedir champanhe. Mas ao longo do tem-
po fui notando que os investimentos em Clóvis, com aque-
la intenção, não surtiram o efeito imaginado. É que ainda
não ensinaram aos gatos a reconstituir coisas idas. Eles não
devolvem cheiro de café, não podem reescrever cartões de
amor, não se importam se falta vontade de mandar flores,
não reclamam da ausência de conversas ao pé de ouvido.
Querem apenas o que lhes cabe como gatos. Tentamos, du-
rante um longo tempo, não entender que, quando Clóvis
chegou, já havíamos partido. E enquanto essa compreen-
são podia ser adiada, transformávamos o gato no último
fio a nos prender. Aí enchíamos o pobre de um carinho tão
exagerado que ele às vezes corria para baixo da estante de
imbuia, onde ficava horas a fio.
No instante em que Dolores afivelou a última mala, Cló-
vis se traiu e me lançou um olhar que não era de gato, mas
de cúmplice. E quando a porta bateu, simplesmente miou,
sem culpa, me pedindo seu prato predileto.

410
O chapéu de Gary Cooper
Lúcia Cardoso

– Scarlett O’Hara já reconquistou o Rhett Butler?


A pergunta feita pela velhinha miúda, escondida atrás
de óculos redondos e de um saco de pipocas, surpreendeu
o funcionário do cinema.
– O quê? Não conheço esses estrangeiros. Por favor,
acompanhe-me. A última sessão já terminou.
– Mulherzinha linda e danada, essa Scarlett: luta por
Tara, sua terra, e por tudo o que quer, mesmo em meio à
sangrenta guerra entre o Sul e o Norte. Grande Margareth­
Mitchel, escreveu só um livro que vale por cem! Grande
Clark Gable em um filme que o vento jamais levará!
– Senhora, o filme que acabou de assistir chama-se
“Central do Brasil”. É a história do encontro de um me-
nino pobre com uma professora que escrevia cartas por
encomenda.
– Nunca assisti a um filme com título que lembrasse
trens!
– Essa, não! Vejo-a sempre, nessa primeira fila. Hoje,
durante horas, ficou aqui sentada. Como pode dizer que
não assistiu ao filme?
Ela justificou-se:
– Meu rapaz, estou aqui somente esperando o chapéu
do Gary Cooper. Romeu disse que nos reencontraríamos
quando ele, o famoso caubói, me desse seu chapéu.
Aquele funcionário aprendera a ser paciente. Tinha
em casa uma complicada avó de 88 anos.
O chapéu de Gary Cooper

– Dona, meu expediente acabou. O cinema está fecha-


do. É tarde, preciso voltar para casa. Acompanhe-me, por
favor!
Como se nada tivesse ouvido, ela continuou a prosa:
– Você nem perguntou quem é Romeu... pois eu digo
mesmo assim: é o meu amante! Tudo começou num mês
de agosto, dia 20, 1953, Teatro de Santa Isabel, Rodolfo
Mayer estreia da peça As mãos de Eurídice. Ah, as mãos de
Romeu! Depois ele partiu. Para encontrá-lo, disse-me, te-
ria que lhe entregar o chapéu de Gary Cooper.
O homem perguntou, desinteressado:
– E para onde foi esse Romeu?
– E eu sei? Se soubesse, já teria ido ao seu encontro,
com ou sem chapéu. Pensa que é fácil para uma mulher
bonita como eu viver assim sozinha?
O homem não pôde conter o riso.
Ela agastou-se. Fez-se ereta na poltrona. Elevou a voz:
– Está rindo? Pois saiba que sou muito assediada. O
Cornel Wilde, quando fazia o filme À noite sonhamos, que
é a vida de Chopin, deixou a Merle Oberon sozinha, na
encantadora Palma de Majorca, e durante toda uma noite
tocou só pra mim! Também o Gregory Peck, o jornalista
plebeu, abandonou a princesa Audrey Hepburn para pas-
sear comigo, em Roma (ou foi Paris?). Não acredita?
– Acredito, acredito. Acompanhe-me até a saída, por
favor!
– Espere um pouco, ainda tem mais: O Burt Lancaster,
no filme A um passo da eternidade, o ganhador do Oscar em
1953 (ou foi 1954?), depois daquele beijo escandaloso com
a Débora Kerr, naquela praia deserta, veio refugiar-se em
meus braços, e contou-me tudo nos mínimos detalhes!
Com diplomacia, o homem comentou:
– A senhora tem mais vivência do que eu, mas agora
me dê a sua mão e vamos sair daqui bem devagar. Tem
alguém lhe esperando?

412
Lúcia Cardoso

– Claro! O Mel Ferrer! Por mim, esqueceu no palco a


pequena Leslie Caron. Certamente dançaremos até mi-
nha casa, cantando: Hi-Lili, Hi-Lili, Hi-lo...
O funcionário ajudou-a a levantar-se, ofereceu-lhe o
braço e se encaminharam para a saída.
Aliviado por ver-se, enfim, livre da vovozinha, galante,
beijou-lhe a mão. Comovida, ela acariciou a mão beijada.
– Você parece o Louis Jourdan beijando a mão da Grace
Kelly, no filme O cisne. Ele havia sido contratado para ser
professor da princesa, mas acabaram se apaixonando e…
– Boa-noite, senhora!
– Boa-noite, Louis…
Desapareceram nas malhas dos seus caminhos.
Na semana seguinte, era outro o filme em cartaz na-
quele cinema. O público, muito bom. Uma grande e desi-
nibida família – pais, crianças, moças, rapazes – sentou-se
na segunda fila. Imitando os seus ídolos, os seus moços
usavam os conhecidos chapéus das duplas sertanejas, os
quais, no emocionante final do filme, certamente, acaba-
riam sendo jogados para o alto.
O funcionário do cinema avistou a namorada do Ro-
meu. Falou-lhe gentil:
– Ainda há lugar na primeira fila. Então, veio assistir a
Os dois filhos de Francisco?
Reconhecendo-o, ela respondeu, firme:
– Não! Não estou interessada nos filhos de quem nem
conheço. Vim me encontrar com o Cary Grant. A Deborah
Kerr, muito parecida comigo, vai sofrer um acidente e não
chegará a tempo no Empire State Building (ou será Empire
Building State?), local que haviam combinado desde aquela
viagem de navio, há seis meses. Eu farei a cena em Tarde de-
mais para esquecer, com aquela música linda e tudo o mais.
O homem nada entendeu. Insistiu:
– Mas, depois, vai prestigiar o filme brasileiro, não vai?

413
O chapéu de Gary Cooper

– Não! Depois, vou esperar que termine o duelo a tiros


em Matar ou morrer, que o Gary Cooper saia da tela, passe
por mim e me dê o seu chapéu. Assim, afinal, poderei
junto com o meu amor entregá-lo a Romeu.
Terminada a última sessão, o funcionário foi fazer a
vistoria no auditório, recolhendo objetos esquecidos. Viu
a velhinha na primeira fila, quieta. Aproximou-se. Não
perguntara o seu nome, mas bem podia adivinhá-lo.
– Dona Julieta, o cinema já fechou. Por hoje, as sessões
terminaram. Vou levá-la para a saída.
Ela não respondeu. Cabeça inclinada, parecia profun­
da­­mente adormecida. Para despertá-la sem susto, ele
curvou-se e apenas tocou-lhe o ombro. Recuou, imedia-
tamente! Sobre o colo, pipocas espalhadas e, apertado ao
peito, seguro com ambas as mãos, um chapéu igualzinho
ao que o tal caubói famoso deveria usar...

414
A chuva de sábado à noite
Lúcia Moura

Era um sábado, quase dez da noite, quando, passando


de carro pela Navegantes, avistei Alex.
Poças de água denunciavam que havia chovido o dia
inteiro. O vento batendo forte, não deixava dúvidas. O
tempo não ia melhorar. Apenas uma trégua. Dei um to-
que na buzina: ele olhou.
– Ufa! Levei um susto…
– Desculpe, não foi por querer. Vou para o centro, quer
uma carona?
– Aceito, Seu Rui, moro perto da Rua da Conceição.
Destravei a porta e ele entrou. No meio do caminho,
aproveitando que estava distraído, dei uma olhada em
suas roupas, de combinações sempre interessantes. Desta
vez, não era diferente: calça colante preta, camiseta regata
vermelha, superjusta, com uma papoula bordada em pae-
tês. A sapatilha, também vermelha, gritava aos olhos. Bai-
xando a vista e olhando de lado notei uma pulseira presa
ao tornozelo, e dela pendia um coração de porcelana.
– Gostou da pulseirinha, seu Rui?
– Quem bola suas roupas?
– Eu mesma. Pego um monte de ideia folheando Caras
e Contigo. Essa bolsinha mesmo, eu copiei de uma soçaite.
E novela? Menino, é tanta novidade. Tenho uma echarpe
igual à de dona Haydê, da novela América. Aliás, essa no-
vela tem tudo de bom. Dona Irene, meu Deus do céu, é o
dez. Murilo Rosas também. Quando ele aparece, perco o
fôlego. Do outro Murilo eu não sou fã. Não suporto peão
A chuva de sábado à noite

de calça frouxa. Inda mais jeans. Um horror. Reparou?


Pois daqui pra frente preste mais atenção.
– Alex, cá pra nós, acho tudo muito espalhafatoso.
– O senhor já foi pro baile dos artistas? Ah! Precisa ver
minhas criações. Este ano me fantasiei de Gata Borralhei-
ra. Arrasei. O senhor pode até tá pensando: Não é meio
sem graça? Uma roupinha pobre, amarfanhada... Mas,
Santa! E a imaginação, não conta? Fiz uma gatinha bor-
dada de paetês coloridos com uma calda de ráfia. Todo
mundo pensava que era angorá. Coloquei botas de cano
alto. Sabe aquela cantora da Jovem Guarda?
– Wanderléa?
– A própria. E os adereços de mão? Pense na fofura – um
rodo e uma vassoura lilás com paetês prata e o balde pink,
cheio de flores de crepom colorido. Foi dona Regina quem
produziu. Dois anéis bem grandes, um em cada mão e no
pescocito, a coleira com o nome do bofe, que nem Luma de
Oliveira, minha deusa. Se eu pudesse, noutra encarnação,
nascia igual a ela sem medo de arrependimento.
– Você se inscreveu no desfile?
– Sim. E tem mais: ganhei um prêmio.
– De consolação?
– Não. De incentivo. No ano que vem, vou me fanta-
siar de deslumbrada.
– Essa aí é bem mais fácil. Basta...
– Stop. Detesto palpites quando estou criando. Puxa
vida, não para de cair água. Lá na rua onde moro não
deve ter uma alma penada...
– Você tem medo?
– Claro, mas não posso fazer nada. Meu santo é forte.
Olha lá, a estação do metrô.
– Onde é que você mora mesmo?
– Não precisa de se incomodar. Nada de mudar o ro-
teiro.

416
Lúcia Moura

– Deixe de besteira e vá dizendo logo pra não compli-


car.
– Dobre ali na Rua do Hospício. Isso. Siga em frente;
pronto, pode parar. Aqui está ótimo. O senhor faz o retor-
no logo mais adiante.
– Aquele ali não é o hotel São Domingos?
– Sim, criatura. Eu vou entrar na rua que fica ao lado,
depois caminho mais um pouco e dobro num bequinho.
É lá que eu moro. Um pulo daqui.
– Não tem perigo?
– Claro que não. Beijos.
Saiu correndo. Ao redor da praça não havia ninguém,
e muito menos na rua. Engatei a primeira, arrisquei um
último olhar em direção ao hotel: vi um homem. Mas
como? O desconhecido olhou em minha direção. Passei
uma segunda. Voltei a olhar. Não vi ninguém. No dia se-
guinte, saí para minha caminhada. A rua, um pouco en-
charcada, denunciava a chuva intermitente da noite pas-
sada. Parei na banca de revista como de costume.
– Bom-dia, seu Mário.
– Bom-dia! Viu o jornal, seu Rui?
– Ainda não. O que foi de tão importante?
Peguei o jornal. Engoli as letras que iam e vinham feito
lente de zoom. Reli: Faxineiro assassinado brutalmente.
Uma gota de suor escorreu pela minha testa.
– Seu Rui?
Enrijeci. Arregalei os olhos. O estômago revirou. Virei
o rosto para o lado e vomitei. Senti um arrepio. Passei a
mão na testa molhada de suor.
– Seu Rui, acorde. Já são sete horas. Pelo visto hoje o
senhor não vai caminhar. Também com essa ressaca.
– Nalva, feche a cortina e me traz um chá.

417
Detalhes no azul
Luciene Freitas

O azul tem sobre o


olhar um efeito estranho,
ele é a energia feito cor.
Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832)

Com o pensamento longe, Jaime desfrutava do frescor


da noite deitado no sofá. Chuviscava. As plantas orvalha-
das simulavam olhos atentos vigiando a casa. A luz forte,
do terraço, realçava o tom azul sombreado por silhuetas
de árvores.
Um vento frio o fez estremecer e virar-se para admi-
rar um estranho redemoinho. Tecidos finos voavam numa
dança incomum, numa versão que Boticelli não pintou,
nascia uma nova Vênus. Com uma das mãos segurava um
manto, com a outra desprendia feixes de luz. Por vezes
parecia que uma película muito delicada a isolava, fazen-
do-a criatura de um outro mundo.
Levemente como apareceu, a figura deslizava na pai-
sagem com intimidade. Aproximou-se do tronco da man-
gueira e confundiu-se com ele. Nas folhagens participava
de um bailado deslumbrante.
Perdida ou visitante? Pensava Jaime.
– Nasci aqui, cresci com o cajueiro e as outras plantas.
Desabrochei junto com as flores, fui fruto, fui semente, fui
sombra amiga onde viajores recobraram as energias.
O tempo nos empurra com a sequência das estações.
Agora me entristeço, a insensatez do homem não o permite
Luciene Freitas

ver que destrói a Natureza. Árvores magníficas são violenta-


das. As queimadas e derrubadas se tornam constantes. Faz-
se necessário um basta para que a vida não seja extinta.
Por tantas vezes o calor do fogo ressecou-me as folhas,
o caule, gemeu do sofrimento. As raízes, ansiosas por
vida, rasgaram as profundezas da terra na busca dos mi-
nerais necessários à cura. O vento me socorreu arrastando
a folhagem ressequida. As nuvens, cúmplices, mandaram
a chuva.
Diante da confissão e do pranto que rolava, Jaime sen-
tia a mesma dor. Estava vivo e, como racional que era,
podia bradar sua indignação. Ainda tonto, com a vista di-
fusa, não percebeu a visão confundir-se no éter. Os pingos
de chuva soavam feito melodia divina.
O tempo correu com as estações, a aparição não lhe
saía da lembrança. Com robustez a velha mangueira re-
nasceu. Novas folhas deram abrigo aos pássaros, as abe-
lhas deliciaram-se com o néctar das flores, a fome foi ali-
viada com os saborosos frutos. A vida se renovava, o riso
voltou à casa azul.
A alma da planta, essa fina transparência de cada ser
vivo, manifestara-se. Qualquer um poderia ver, bastava
decodificar os enrugados troncos cheios de preciosas his-
tórias. Bastava apreciar o encanto da Natureza para en-
tender a silenciosa comunicação dos seres da terra.

Recife, 14.03.2001

419
Duquesa
Lucilo Varejão

Trouxeram-na para a casa, pequena e frágil, tão pe-


quena e tão frágil que se tornou necessário aleitá-la à
mamadeira, como as criancinhas privadas da assistência
materna.
Arranjaram-lhe uma cama fofa, de panos quentes e
aconchegantes, mas apesar disso grunhia sem parar, lem-
brada que estava do regaço morno e cheiroso da mãezi-
nha de que a haviam tão insolitamente separado.
Dessa mãe sobretudo causava-lhe falta aquela língua
áspera que em incansada diligência a procurava, livran-
do-a dos bichos sugadores, envolvendo-a na sua proteção
e no seu afago.
Todavia o tempo, com a sua mão de seda, foi desar­
restando-a de tal constrangimento, soprando-lhe a possi­
bi­lidade de não saboreados confortos e prazeres.
Havia no lar quatro meninos que cedo se lhe afeiçoa­
ram e passaram a enchê-la de dengos e de manhas, in-
duzindo-a a esquecer um tanto sua árdua e irrecorrível
con­dição de órfã.
Com três meses apareceram-lhe a agilidade e a com-
preensão, de sorte que corria atrás das donas e atendia-
lhes os mandos, erguendo as orelhas e inclinando para
o lado a cabecinha, como a melhor entender o nome de
Duquesa, que lhe haviam posto.
Seu dono absoluto surgiu enfim no quintal, a examiná-
la.
Acompanhava-se da mulher que parecia uma alma
simples e terna.
– É bem bonita nossa cadela! – ponderou-lhe o marido.
E a senhora interveio com mansidão:
– Devias ter arranjado um cão. Com ele não haveria o
estorvo dos filhos.
– As cadelas são mais amorosas, criatura. Repara em
como anda atrás das meninas, intentando desempenhar
o que elas lhe pedem.
E a mulher achou prudente não intercalar nova adver-
tência.
Decorreu um pedaço de tempo.
O dono mandou construir uma casinhola bonita, pro-
veu-a de um colchão para os frios do inverno, e deu-se
por satisfeito.
E Duquesa crescia, entrava na adolescência.
Resolveram então prendê-la durante o dia, para dei-
xarem-na solta à noite.
Duquesa estava a esse tempo encantadora e no entan-
to não se presumia venturosa.
A idade trouxera-lhe, em concorrência, o feio vício da
reflexão, e ela levava perdido tempo com a cabecinha en-
tre as patas, a lucubrar: viera decerto à vida sob mau sig-
no, e que a privaria dos bens mais queridos.
Haviam-na, ao nascer, tirado da mãe que a rodeava de
tão derramados mimos, e agora subtraíam-na sem com-
paixão às meninas às quais tanto se apegava.
E contudo sabia-se pojada de amor, de nobre e desin-
teressado amor.
Foi quando uma noite notou que algum camarada,
com farejos e bufidos, teimava em empurrar o portão.
Apresentou-se a ver quem era e se encontrou com um
cão do seu porte, mas feio e preto, no desalinho desses
cães que à noite se empregam, por fome, a visitar os de-
pósitos de lixo.

421
Duquesa

Compensadamente esse cão, apesar de malcuidado,


tinha um olhar tão suasivo, que Duquesa a esse olhar se
rendeu.
E dimanaram daí seus ajustamentos com o novel e tão
prosaico amiguinho.
Tempos além aprendeu ele a pular o muro que não
era alto.
E provieram desse momento horas deliciosas para Du-
quesa.
Ele chegava alta noite e enchia-a de blandícias, lam-
bendo-a em igual zelo ao da mãezinha perdida.
E segredava-lhe carícias que ela nem supunha existirem.
Mas teria fatalmente de cumprir-se o que se vem cum-
prindo, desde que o mundo é mundo.
Duquesa percebeu que ia ser mãe, e ele, como também
sucede desde a origem das cousas, desapareceu para não
voltar.
Instalaram-se então na infortunada as agonias do novo
estado, os enjoos e as dores lancinantes da primeira ma-
ternidade.
O dono se apresentou desta vez irritado, sempre com
a companheira de banda. E decidiu:
– Vou mandar jogar esses cachorros no rio. São gozos.
A mulher, tímida, contraveio:
– A atirar n’água os inocentes, talvez fosse melhor sa-
ber de alguém que os quisesse criar...
Mas o homem, que era de poucas palavras, retroveio:
– Não e não.
E a mulher, consoante seu comum, nada de resistente
ofereceu.
Duquesa, por si, nem atinava em como as nuvens esta-
vam ficando pretas para o seu lado.
Nem na sua limitada percepção compreendia a que
ponto, pelos seus mesquinhos interesses e vaidades, po-
dem os homens ser tão impiedosos.

422
Lucilo Varejão

Gostava dos seus pequenos, catava-lhe as pulgas tal


outrora lhe fizera a mãezinha, deixava-os descansar à
vontade no seu tépido ventre.
Novamente porém tornou o senhor com um saco e nele
meteu os pobrezinhos, entregando-os a um portador.
E lá se foram, homens e bichos. Como estivesse escra-
va da sua compulsória corrente, não pôde Duquesa pene-
trar onde e a que iam.
E só à noite, quando a soltara, iniciou a procura de sua
prole.
Sentia-lhe a falta em tamanho assolamento que não
admitia a vida sem a recuperação dos seus pequenos.
Pesquisou-os primeiro nos cantos mais esconsos do
quintal, e não sendo possível reavê-los, galgou o muro, a
buscá-los lá fora.
Essa fadigosa investigação não lhe trouxe porém a ob­
ten­ção desejada.
Para onde – perguntava-se atarantada – teriam trans-
ferido os seus filhotes.
Tomou-a a suspeição de que os homens os houvessem
levado para muito longe.
E guiando-se pelo faro inútil, lá se foi estrada afora.
Quase corria, querendo com ânsia seus cobiçados bi-
chinhos.
Embora consumida, teimava na andada, aos tropeções
pelas pedras da estrada.
O sol começante subia, e o calor aumentava, forçan-
do-a a abrir a boca e deixar pender a língua.
A cauda por igual perdera a mobilidade e a conservava
para baixo, quase escondida entre as pernas.
Não obstante, Duquesa vencia com ativação a distân-
cia, bem que não reachasse seus rebentos.
Num trecho do avanço, desaconselhada pelo cansaço,
veio-lhe a instigação de voltar.

423
Duquesa

Mas afastou-a, antevendo não mais poder executá-la.


Depois, de que lhe serviria aquilo?
E prosseguiu sem fôlego, fariscando aqui e ali, paran-
do ao ladrido próximo ou distante de qualquer cão.
Estava desesperada, cambaleante, sedenta.
Foi quando, ao desembocar numa praça, entendeu al-
guém que bradava.
E esse brado era apenas:
– Cão danado!
Então, deu-se um excedido e alarmante batido de por-
tas e janelas, e de enfiada o aparecimento de homens de
toda idade que vinham à rua empunhando pedras e paus
e até armas de fogo.
Duquesa tinha medo, e esforçava-se por fugir a quanto
lhe permitiam as pernas.
Mas perseguiam-na sem comutação.
E de repente um tiro espocou e outros tiros se lhe se-
guiram, tão repetidos como pelo São João ela escutava e
de tantos medos a enchiam.
Até que uma bala a atingiu.
Caiu sobre si mesma, sem gritar, segura de que iria
ficar ali para sempre.
E só uma certeza – talvez para mais bem conformá-la
à morte – tomou-a: a de que, se permanecesse viva, nunca
mais teria seus adorados miudinhos.

424
Zero, zerinho
Lucilo Varejão Neto

Seu Alonso era um homem modesto e muito bem-aceito


pela vizinhança. Embora aposentado com pequena renda,
esta não alterou seu nível de vida, pois fora com ela que
criara os filhos e vivera sempre com a mesma mulher.
Às cinco da tarde lá estava ele na calçada, sentado
em uma cadeira de balanço, ao lado de Dolores, vendo o
vaivém­da rua. Não conversava muito, mas prestava aten-
ção e procurava ouvir todos os mexericos que as vizinhas
vinham trazer. Às vezes era até engraçado vê-lo antes do
escurecer, já de pijama, olhos fechados e os pés sobre um
banco. Fora desse hábito, seu Alonso só era visto ao nas-
cer do sol, regando seu jardim e podando alguns galhos
esparsos que por acaso surgissem.
Como tudo é possível, algo aconteceu e mudou por
completo a vida de seu Alonso. Seu bilhete de loteria lhe
rendeu alguns poucos milhares. Vale ressaltar que deram
para realizar um sonho que ele jamais confessara. Um au-
tomóvel zero. Zerinho.
E era engraçado ver, todas as manhãs, seu Alonso sair
com um instrutor em um carro de autoescola. Passados
dois meses, ele já dominava a estrada e, ao receber sua
habilitação, correu a uma revenda próxima de sua casa e
adquiriu um carro novo em folha.
Os vizinhos, alguns exultavam. Outros, talvez invejosos,
faziam nada perceber. E seu Alonso caíra na rotina da rua.
Esta manhã, porém, havia uma vozearia na calça-
da do seu Alonso. Ele estava indignado. Seu automóvel,
Zero, zerinho

com apenas três meses de uso, já apresentava vazamen-


to d’água na mala. Um de seus filhos, embora já casado,
com aspecto responsável, era ainda jovem, mas também
lá estava explicando que isso é normal. Poderia ser uma
falha da borracha ou algo mais insignificante. Seu Alonso
irredutível esbravejava. Sentia-se lesado. Basta dizer que
em seu primeiro automóvel ninguém encostava. Esse foi
seu sonho e ninguém poderia pegar nele. Nem os filhos.
Que andassem de ônibus como ele fizera toda a vida. Não
poderia arriscar um acidente.
Na calçada alguns vizinhos mais íntimos participavam
da cólera do novo proprietário. E nenhum argumento jus-
tificava o vazamento. Então, surge seu Alonso com um bal-
de com água. Lança-o sobre o carro, abre a mala e mostra,
revoltado, o molhado. Não é possível. Surgem justificati-
vas para minimizar o problema. Nada. Surge outro balde
com água. Seu Alonso pede ao filho que entre na mala. O
filho, após atendê-lo, diz ser impossível localizar a área do
vazamento. Seu Alonso esbraveja. Nem isso o filho era ca-
paz de detectar. E ainda pedia o carro para dar uma volta.
Imagine. Solicita então mais um balde com água, e agora
é ele mesmo quem vai observar. Um carro tão novo e tão
caro com tão grande problema. Seu Alonso entra na mala.
É jogada a água. Ouve-se a voz de seu Alonso:
– Podem abrir.
E agora? Onde estão as chaves? Seu Alonso sempre
conservou até a cópia no chaveiro. E com elas no bolso
entrou na mala do carro. Ouve-se novamente:
– Abram a mala.
– Calma.
– As chaves estão no seu bolso, papai?
– Sim.
Criou-se grande confusão. Chamar os bombeiros po-
deria ser muito tarde, pois seu Alonso já tinha idade avan-

426
Lucilo Varejão Neto

çada, e a demora... Arrombar a mala com um machado?


O que diria seu Alonso ao sair de lá e ver o seu “zero” todo
arrebentado?
Alguém teve a ideia de indicar a seu Alonso um buraco
existente sob o pneu de suporte. Escuta-se então a retira-
da do mesmo e a voz sumida do prisioneiro:
– Pronto.
Seguindo as instruções exteriores, ele tenta passar a
chave pelo orifício, mas é muito estreito. Por baixo do car-
ro alguém tenta com um alicate retirar a chave. Nada. A
solução é quebrar a cabeça plástica da chave para que ela
caia sob o carro. Feito isso, seu Alonso sai da mala. Tão
ensopado de suor que parece que os baldes com água fo-
ram lançados sobre ele. E a partir de então, não mais se
discutiu o vazamento da mala...

427
Joca do Boi
Lúcio Ferreira

Quem não gosta de ver os passos repenicados do balé


do boi-bumbá? Bailado maneiro, bem marcado pelo bre-
jeiro da toada. Martelo vadiado e miúdo. Quase a librar,
de tão leve.
Mas foi só Zé Fulo chegar pra tomar o privilégio da ge-
ral atenção. Dançarino de quaisquer folguedos, capoei­rista
dos bons, era a alegria do Brejo. Todos queriam apertar-
lhe a mão, bater-lhe nas costas, mostrar amizade.
A manhã acesa quase meava o dia. Sol tremulando até
onde o horizonte erguia os braços para roçar o azul de
ferro do verão.
Aí, a música parou. O boi pareceu hesitar, sem ritmo,
talvez à toa se visse. E tomou o rumo da mangueira do
quintal.
Pouco tempo depois, no terraço, a cachaça foi servi-
da, com animação. Faziam brinde a Zé Fulo, que ria todo
configurado.
Uma tigela de sarapós fritos corria de mão em mão.
Outra de farinha seca. Outra de cundunga no óleo.
O zum-zum era denso, alvoroçado.
Foi aí que se perguntou por Joca do Boi. Logo ele tão
chegado, assim arredio do calor da festa?
A pergunta correu olímpica os quatro cantos da casa.
E nada. A voz continuava insistente e coletiva. Vinda da
sala. Do corredor. Queriam o bumba. A música ergueu o
chamado, com os mesmos chocalhos, pífanos, zabumba,
pandeiro. Tudo reclamava a presença do boi.
Lúcio Ferreira

Então alguém se lembrou da mangueira, lá na entrada


da horta. E correu para o quintal. Zé Fulo seguiu-lhe os
passos.
O boi continuava agachado, preso a sua quietude de
papel machê. A chita da saia derramada no chão.
Zé Fulo adiantou-se rápido. Procurou levantar a folcló-
rica majestade, que pretendia assumir.
O espanto foi geral. E o grito:
– Virgem Maria! É o Joca!
– Jooocaaaa!
– Meu Deus! O boi morreu!

429
Ansiedade
Luís André Negrão

E foi quando os trovões ressonaram nos céus da cida-


de e reverberaram nas vidraças do escritório, que Flávio
olhou as horas no relógio de pulso dourado e de pulseira
de couro, presente dado pelo avô, pela enésima vez na-
quela tarde.
A água da chuva fazia sinistros desenhos momentâ­
neos realçados pela luz dos postes que se acenderam por
causa da escuridão provocada pela intensidade do nublar
do tempo e projetavam sua claridade nas pálidas cortinas
da pequena sala. As paredes acinzentadas denunciavam
a idade da construção e tornavam o ambiente ainda mais
antiquado. A velha alcatifa esburacada em pontos onde
era mais pisoteada causava a impressão de que tudo ao
redor era velho demais. E as coisas se tornavam mais si-
nistras por conta da palidez que a arandela de vidro da
luminária do teto projetava na sala.
Flávio chegara mais cedo do que combinara e como de
costume subornara o porteiro do prédio comercial do ve-
lho edifício que ficava incrustado no centro do antigo bair-
ro comercial da metrópole. Não era permitido o acesso de
ninguém naquele prédio nos dias de domingo, mas, pelo
conhecimento que tinha com o porteiro e uns trocados para
a cerveja, ele sempre conseguia ter acesso. Era assim que
ele se encontrava com ela, era assim que ela gostava. Depois
dos encontros e do sexo feito cheio de fantasias profissio-
nais, os dois iam a um cinema e em seguida terminavam a
noite num bar dançante de mesas de madeira, onde pou-
Luís André Negrão

cos casais se arriscavam a terminar a semana ouvindo um


cantor que subtonava em quase todas as músicas, mas sabia
dedilhar perfeitamente o violão de cordas de aço.
Chegou na parte da manhã, pouco antes do horário
do almoço, trazendo uma sacola com refrigerantes, cer-
vejas em lata e camarões sem cabeça como ela insistia em
pedir e ele sempre a atendera. Depois de varrer e arru-
mar todo o seu escritório de contabilidade, ele acendeu
incensos e tomou um banho no microscópico banheiro de
pouco mais de um metro de largura e uma janela mínima
no alto da parede que dava para a rua, deixando um for-
te e agradável cheiro de sabonete de erva-doce mesclado
com o desinfetante floral que ele despejara no ralo do
banheiro e no vaso sanitário.
Depois de trocar de roupas, ele sentou-se em sua ca-
deira e começou a pensar nela e em todos os fatos que a
mantiveram afastada dele nesses últimos dois meses, pen-
sara na frase que ela dissera marcando-o defini­tivamente
e que ainda ecoava em seus pensamentos: “Paulo não sig-
nifica nada, mas eu gosto de ficar ao lado dele, ele me
faz rir”. Então esse era o seu defeito, ele não era um cara
engraçado, ele não a fazia rir e isso foi o motivo de tanta
briga, de tantos desencontros e talvez tenha sido o moti-
vo para que ela mantivesse o telefone desligado nos dois
últimos domingos.
Ele imaginava sempre o pior, imaginava-a rindo com
Paulo num quarto de motel com os bicos de seus fartos e
rosados seios enrijecidos pelo frio do ar condicionado e
na felicidade e nos risos que ela poderia dar ao ser possuí­
da por aquele homem “engraçado”.
Depois de quase três horas de conversa ao telefone na
última sexta-feira em que ela o chamou de idiota, de tolo,
de egoísta e ciumento, eles combinaram de se encontrar
naquele domingo de chuva e que agora se tornava moro-
so devido ao arrastar das horas. A espera o fazia sentir um

431
Ansiedade

embrulho no estômago, onde ela estaria? Já estava quase


duas horas atrasada. Com certeza num maldito quarto de
motel com os mamilos duros de frio e um sorriso de pra-
zer no rosto. Por conta dessa angústia e do arrastar das
horas, ele não aguentou mais esperar, resolveu acabar de
vez com a incerteza e a dúvida. Apagou o cigarro no velho
cinzeiro de metal e abriu a gaveta encontrando a solução
para a sua angústia.
Auryane estava nervosa por causa do atraso, mas seu
celular havia quebrado numa queda que sofrera quando
correu para subir no ônibus. Tivera um dia difícil devido
aos cuidados em demasia com a mãe doente que deixara
em casa. Por isso não telefonara, além do mais tinha o
dinheiro contado para a passagem de ônibus.
Ela tinha uma vida difícil. Depois que sua mãe caíra
doente, vivia para o emprego, a mãe e para Flávio, o que
era na verdade seu único e real prazer em todos os sen-
tidos. As suas contas se amontoavam, o telefone de casa
bloqueado, o celular sem crédito, a dispensa vazia e a con-
ta astronômica da farmácia a faziam perder o sono e sor-
rir cada vez menos. Mas mesmo assim ela tinha a alegria
no final de semana de encontrar com o seu homem.
Aquele domingo fora atípico. Vários fatores contri­
buíram para o seu atraso. Logo pela manhã tivera de ir ao
supermercado comprar todos os itens que o dinheiro parco
lhe permitisse e que lhe faltavam em casa. Ela sempre fazia
isso na sexta, mas, em virtude da enxaqueca que tivera na
sexta e no sábado, não conseguiu livrar-se desse compro-
misso, sem falar que aos domingos o pequeno mercadinho
do subúrbio onde morava sempre se encontrava cheio, por
conta das cervejadas e churrascadas domingueiras. Ade-
mais, encontrar alguém além de Isa­dora, sua fiel vizinha,
para passar a tarde com sua mãe, foi impossível, o jeito foi
esperar que a amiga voltasse da praia com os sobrinhos

432
Luís André Negrão

para tomar conta da velha, que ela mesma se policiava,


quando a achava um estorvo em sua vida. Isso por conta
da velhice e dos problemas de saúde.
Ela saiu de casa às pressas e ao tentar subir no ônibus,
seu celular despencou do bolso raso de seu casaco. Agora,
mesmo se quisesse avisar a Flávio de sua demora e tentar
tranquilizá-lo, pois sabia bem como ele ficava quando ela
atrasava, seria impossível, ao menos poderia ligar a co-
brar para o seu celular. Flávio só atendia ligações a cobrar
dela e de mais ninguém.
Auryane desceu no terminal do ônibus com suas co-
xas nuas em uma minissaia jeans e sua calcinha de renda.
Seu casaco de couro sem a blusa por baixo – era assim
que ele gostava, era assim que ela fazia – deixavam seus
mamilos duros de frio por causa da chuva. Em sua mente,
as palavras duras de Flávio, que a magoara quando dis-
cutiram pela última vez, ainda ecoavam pela sua cabeça,
e a lembrança de desligar o celular para não falar com
ele a perturbava. Pensava consigo mesma que deveria ser
um pouco mais tolerante com ele. Passara rapidamente
pelo porteiro, que a cumprimentou com um sorriso ma-
licioso, e entrou no elevador chegando ao terceiro andar,
pensando que agora as coisas poderiam se ajustar e enfim
ela poderia dizer e provar a ele que Paulo nada era e que
sorrisos nunca foram sinais de amor. Na porta da sala,
respirou fundo e girou a maçaneta pensando em pular no
seu pescoço e desalinhar toda a sua mesa de trabalho com
o sexo louco que lhe passava pela cabeça e que poderia
colocar tudo em ordem novamente.
Seu grito ecoara por todo o prédio silencioso. Flávio
manchara de sangue a parede cinzenta atrás de si com um
tiro na cabeça.
– Meu amor, se você fosse menos ansioso... – ela disse-
lhe em lágrimas.

433
O homem que galopava
Luís Jardim

Do lado de dentro da venda, João Borrego disse a Ci-


priano:
– Lá vem o tal fulano!
– Ah! É aquele? Monta bem, e o cavalo tem boa pinta –
respondeu Cipriano, olhando o homem com curiosidade.
João Borrego insistiu baixinho:
– Repara bem os modos dele. Se não é ladrão de ca-
valo, eu me soverta! E se sair da casa de ladrão, cai na de
criminoso fugido. Lá isso eu juro!
O homem que galopava amarrou o cavalo castanho no
esteio defronte da venda de João Borrego, depois afrou-
xou a cilha, tirou o freio para descansar o animal.
Dentro de casa, nesse meio tempo, o vendeiro insistia,
sem despegar os olhos de cima do cavaleiro:
– É ladrão, Cipra! Você já viu gente esquisita sem enco­
brir marmota? Homem que não dá roteiro da vida que leva
é porque esconde alguma coisa. E quando esconde, como
você sabe, ou a coisa é muito boa ou então não presta pra
nada. Que mulher viva de melancolia, vá lá, é de saia. Mas
homem embezerrado fique certo que é coisa. Isso eu juro!
– Lá vem ele, homem, muda de conversa! – aconse-
lhou Cipriano.
João Borrego emendou a frase com jeito de mulher
enredeira:
– Fique certo que é coisa. Feira grande é coisa: ou sinal
de chuva ou de seca.
Luís Jardim

O homem que galopava ouviu-lhe o parecer, aproxi-


mou-se do balcão e deu um palpite, sem alterar o seu ar
tristonho:
– Feira grande, me desculpe o intrometimento, é sinal
de que não há dinheiro. Fartura só dá dum lado só.
Os outros matutos riram-se, alguns apoiaram o tino do
estranho, e João Borrego encafifou, sem resposta pronta
para o assunto imprevisto. Para não se dar inteiramente
por vencido, ponderou, quase gaguejando:
– É. Pode ser. Pode ser que assim seja. Mas...
– Por falar em cocoró-carne de porco, seu João, bote aí
uma bicada, pediu-lhe o homem, interrompendo-o.
João Borrego deu graças a Deus que o assunto se des-
viasse. Atendeu ao pedido, e, para animar a conversa, mas
noutro sentido, indagou:
– Pura ou concentrada?
– Que mistura é? – indagou o cavaleiro.
E João Borrego informou em carretilha, encarecendo
a cana com nomes de gosto:
– Fava-de-cheiro, angico e canela. Tem também da
axaropada. Mas se não quiser lambedor, se quiser da boa,
esquentante, queima-goela, uma que vale pólvora, espe-
cial pra cabra-macho, eu aconselho esta aqui: espevitada!
O que tem dentro é só isso: pimenta e gengibre. Embica?
– Homem, gabar eu não me gabo, mas pra embicar, fora
chumbo derretido, tudo serve. Bote a conta de sempre.
João Borrego encheu o copinho e o homem que galo-
pava ofereceu aos mais próximos:
– Quem é servido?
Cipriano aceitou:
– Vamos ver a fama da bichinha.
Bebeu, fez careta, retemperou a goela e declarou, as
palavras atrapalhadas saindo entre o fôlego sufocado:
– Só não é fogo porque derrama.

435
O homem que galopava

– Então redobre a dose pra mim, seu João, pediu o


pagante.
João Borrego encheu um copo maior, entregou-o ao
cavaleiro, elogiando-lhe a coragem:
– Gosto de ver uma disposição assim. Esse é dos
meus!
O homem que galopava bebeu, fez a careta de sempre,
cuspiu de banda e disse de pronto:
– Acho que foi engano. Essa não é concentrada. Rali-
nha que nem água de pote.
João Borrego protestou, achando que aquilo era exa-
gero. Todos falavam daquela concentrada. Um azougue.
Até diziam que a bichinha era chicote de tripa. E repetiu
a frase, rindo:
– Chicote de tripa é bem dito. Rasga a bicha por dentro.
Depois fechou um olho, pensou um instante, e falou
para o matuto, encarando-o:
– Aposto que onde o senhor mora não tem dessa! De
que bandas é o senhor?
– Quando andar três léguas pra lá do fim do mundo,
na primeira porta que encontrar pode bater que é a mi-
nha, respondeu o outro.
A risada estalou, o homem que galopava saiu, e João
Borrego virou-se depressa para Cipriano, exclamando:
– Não lhe disse! É um mistério dos seiscentos diabos!
Toda vez que pergunto é isto: moro na tábua lascada, sou
do oco do mundo, venho da terra onde feijão dá na raiz.
Não há quem me tire da cabeça, Cipra, esse bicho tem
coisa! Isso eu juro!
Caetano, negro velho conhecedor das redondezas, deu
a sua opinião:
– Por perto ele não mora. Do nome dele ninguém
sabe. Qualquer coisa há. Será bicho, pra viver enlocado,
escondido?
– Ora se há – confirmou João Borrego, indignado.

436
Luís Jardim

Cipriano indagou se já haviam perguntado o nome


dele, e João Borrego antecipou-se a Caetano que ia abrir
a boca para responder:
– Diz sempre do nome as coisas à toa que diz da mo-
radia: Bastião, Zebedeu, Eu da Silva, Fulano de Tal, Chico
dos Grudes. Sempre botando areia nos olhos da gente.
– E o pior, observou o cunhado de João Borrego, que
acabava de despachar um freguês e tinha os ouvidos aten-
tos à conversa, é que ele nem se vexa. Diz tudo no sério, de
cara trancada. Cá pra mim também acho que há coisa.
João Galindo, que ouvira a conversa sem se meter
nela, sem dar opinião, achava, a despeito desses escondi-
mentos, dessa manha toda, que o homem tinha boa figu-
ra: vermelhaço, bom tamanho, olho grande e ligeiro. Isso
de embezerramento, de melancolia era de natureza. Cada
um tinha a sua. Napoleão do Enforcado, por exemplo,
nunca abria a boca sem dar antes uma risada. Nem que
fosse para participar morte, falar de desgraça. Natureza.
Cada qual com a que Deus lhe deu. Mas nele, no homem
que galopava, duas indicações de valentia havia: unha
curta e venta acesa. Pela montaria tinha gosto: arreios tra-
tados, cavalo luzidio. Tacanho não era, porque oferecia
sempre com franqueza. E quanto a roubar cavalo, parecia
que não, pois o animal que montava era sempre o mesmo:
castanho, de frente aberta, calçado das mãos.
– Não, seu Galindo, em besta ele também já veio aqui
montado! – disse o caixeiro, arregalando os olhos, preten-
dendo ter descoberto o enigma.
– Bom. Isto não quer dizer nada – atalhou João Galin-
do, sem se voltar para o cunhado do vendeiro. – Sendo
homem de criação, como parece, há de ter besta de cria.
Por essa vereda não se dá no açude. Só sei que boa figura
ele é. O resto é arremate, e não é comigo.
João Borrego fez um gesto com a cabeça, mandando
que o cunhado despachasse um freguês que há tempo es-

437
O homem que galopava

perava, cheirando a gordura da carne de ceará. Encos-


tou-se depois na prateleira e ficou balanceando a cabeça,
remexendo os miolos. De vez em quando repisava no as-
sunto. O caso, na opinião dele, era realmente de intrigar.
Coisa havia, ele jurava. O danado do homem sabia o nome
de todo o mundo, mas o dele ninguém sabia. Não havia
lugar de que se falasse que o encantado não conhecesse.
Dava informações dos lugares mais longes, discorria so-
bre as coisas, referia-se a gente, a figuras de que nunca
se ouviu falar. Poderia não ser ladrão de cavalo, mas dele
tinha toda a pinta. Manhoso, desconfiado, embezerrado.
E o maior indício era aquele: bem informado de tudo,
conhecendo todas as paragens, sabendo o nome de toda
a gente. Só o dele ninguém sabia. Por que não dizer o
próprio nome? Por que dizer por gracejo que se chamava
isso, aquilo, e ao cabo não dizer de verdade como era?
E aquela mania de galopar? Sempre na carreira, como
quem tem a polícia no encalço!
– Credo em cruz – interrompeu o negro Caetano, que
escutava tudo muito atento, dando cachimbadas e cuspin-
do o tijolo vermelho da venda. – Até parece a figura do
diabo disfarçada em gente. O demo vira-se no que quer.
João Galindo achou besteira esse pensamento. Negó-
cio de diabo era para enganar menino.
– E beber daquela danada e por cima ainda fazer ca-
çoada, desfazendo dela? – disse um matuto, lembrando-se
das artes do diabo.
– Por isso não – respondeu Cipriano. – Meu velho so-
gro, quando era vivo, bebeu álcool puro com pólvora pra
ganhar uma aposta de dois cruzados. E nem careta fez.
Isso também é besteira.
– Mas aquela história de ninguém saber onde ele mora,
e ele aparecer sempre onde menos se espera, como coisa
encantada? – insistiu o matuto, pensando sempre nas ar-
tes do diabo.

438
Luís Jardim

A falta de resposta para o argumento do matuto ani-


mou João Borrego: tomou a palavra do outro e insistiu,
satisfeito:
– Sim, e essa? Essa história de aparecer nos lugares sem
se saber de onde vem? Como é isso? Lobisomem não é,
que lobisomem só anda de noite. Caipora é fêmea. Como
é isso, me digam!
João Galindo respondeu, achando que em alguma toca
ele morava. Se outra razão não houvesse, bastava lembrar
que até urubu tinha pousada.
– Terto Fragoso, aquele doidela, morava numa furna
de onça! – lembrou outro do grupo, apoiando a opinião
de João Galindo.
E João Borrego, desanimado, desencostou-se da pra-
teleira e proferiu a última palavra sobre o assunto, dando
um muxoxo:
– Seja o que for, quem vai desencantar esse bicho é o
sargento. Já estamos de acordo. Dois dias de pote, vinte
lamboradas, e o embezerrado bota o que tem dentro pra
fora. Trupesupe confessou, que tinha lombo, quanto mais
esse grelha!
João Galindo pediu uma caixa de fósforos, ficou por
um instante batendo com ela no balcão. Depois deu outro
parecer:
– Se o sargento não tiver ligeireza de gato, eu tenho
pra mim que o bicho pode estrepá-lo. Aquele olho gran-
de e ligeiro não engana ninguém. A unha curta confirma
tudo. E pra quando é isso?
– Pode ser até hoje – respondeu João Borrego, com um
risozinho manhoso.
– Então vamos ter furdunço na feira.
João Borrego achava, ao contrário, que se a coisa fosse
benfeita daria menos trabalho do que pegar nambu em
arapuca. De que valeria bater asas sem ter por onde es-
capulir?

439
O homem que galopava

João Galindo saiu duvidando, o grupo dispersou-se,


e o vendeiro ficou despachando a freguesia, atendendo a
um, a outro. Despachava a matutada meio distraído, er-
rando nos trocos, com os olhos cravados na rua.
Daí a pouco o sargento entrou afobado, suado, ajei-
tando a cartucheira pesada. A pistola de dois canos mal
se disfarçava sob o paletó de paisano todo aberto. E o
punhal ia além das abas, fino, longo, guardado na bai-
nha nova. Aproximou-se de João Borrego, curvou-se so-
bre o balcão e disse-lhe um segredo cochichado. O dono
da venda respondeu um “ótimo” arrogante, deu-lhe um
trago, e esfregou as mãos, de contente.
Da porta, de onde mandara, aos berros, uma mulher
acocorada arredar-se do caminho, o sargento virou-se
para ouvir a recomendação do amigo. E reproduziu, ba-
lançando a cabeça, o conselho dele:
– É isso mesmo, como bote de cobra em cima de sapo.
Tiro e queda!
No meio da feira acercou-se da tolda onde um soldado
tagarelava com a dona, deu-lhe uma ordem e indagou:
– E o soldado Peladinho, onde anda ele?
– Na feira dos cavalos, sargento.
– Então me acompanhe.
Debaixo de uma braúna velha, ramalhuda, os vende-
dores de cavalos faziam a feira. Por toda parte havia can-
galhas espalhadas, e caixões vazios de rapaduras serviam
de bancos aos que descansavam. Encerados velhos, esto-
pas, estendiam-se pelo chão. Viam-se aqui e acolá, sobre
eles, selas, sacos, mochilas de mantimento.
O sargento, acompanhado do soldado, procurava o
outro, chamado Peladinho. Pisava arrogantemente no
que encontrava sem pedir desculpas. A matutada ia abrin-
do ala, arredando-se desconfiada. Adiante uma criança
quase fica com a mão esmagada sob o sapatão do sargen-

440
Luís Jardim

to. Salvou-a a destreza do pai, dando-lhe um safanão no


braço. E ainda por cima o sargento bradou:
– Acorda, leseira! Quem quer cochilar vai pra beira do
fogo!
O menino enroscou-se nas pernas do pai, choramin-
gando com medo. O homem brigou com o filho e pe-
diu desculpas ao sargento. Outro matuto, amigo do pai,
apoiou passivamente o sargento:
– Também só vives escorado, coisa! És tapera ou gente?
Mais além o sargento divisou o soldado Peladinho con-
versando animadamente com um homem. Encaminhou-
se para ele, e, já perto, chamou-o:
– Peladinho!
Os dois interromperam a conversa, viraram-se na di-
reção do chamado, e o soldado atendeu, perfilando-se:
– Pronto, seu sargento!
Frente a frente com o sargento, o homem que galopa-
va indagou:
– Assustou-se, sargento?
O sargento franziu a testa, não deu resposta e ficou indeci-
so. Os dois soldados estavam admirados, olhando o superior.
Com a surpresa do encontro inesperado, ali, o sargento esta-
cou, o sangue fugira-lhe do rosto sanguíneo e ficara branco
como se fosse indício de desmaio. Os soldados olhavam-no,
o homem que galopava também o olhava, mas não podiam
compreender a razão da brusca palidez. O sargento deu um
passo à frente, mais branco ainda, e respondeu agressiva-
mente à pergunta esquecida do matuto:
– E um homem como eu se assusta, seu cabra safado?
Antes que o matuto se movesse, o sargento segurou-o
pela abertura do paletó e gritou para os soldados.
– Ajorja o cabra, pessoal!
O homem que galopava não fez um gesto de resistên-
cia. O sangue também lhe fugiu do rosto, a boca abriu-se

441
O homem que galopava

e os olhos grandes e ligeiros alargaram-se desmesurada-


mente. Fez força para se equilibrar, empurrado atrás pe-
las mãos dos soldados agarrados ao cinturão. Não deu
uma palavra e entregou-se mansamente.
Enfurecido, danado pela inércia do matuto, o sargento
arrastou o punhal da bainha e assentou-lhe com toda for-
ça na cara. O gume da arma pegou o osso da face, talhou
o couro, e o sangue espirrou, escorrendo de rosto abaixo.
O homem soltou um gemido surdo, cambaleou, mas um
soldado aprumou-o atrás com uma lamborada de sabre
no lombo. Deu outro gemido, curvou-se para frente, e
um soco violento endireitou-lhe o dorso. As bordoadas de
facão estalavam-lhe no espinhaço. Gemia, sem dar uma
palavra, já todo ensanguentado.
O grupo que se formava em torno, apavorado e abis-
mado, acompanhou a distância o preso que seguia entre
os dois soldados. Na frente o sargento esbravejava, de pu-
nhal na mão:
– Ladrão! Covarde! Hoje tu contas tudo! Roubo, e mo-
radia, e nomes, e tudo! Só se me cair a munheca! Mas
enquanto eu tiver força, peste, a peia come!
Pelo caminho surgiam curiosos de olhos arregalados,
perguntando em voz baixa o que havia acontecido. Res-
pondiam a esmo. Palpites. Cálculos. Ao certo ninguém sa-
bia. Talvez ladrão. Talvez assassino. A feira se alvoroçava,
a notícia tomou conta de Capoeiras.
No quintal da cadeia, debaixo do cipó, o homem que
galopava gemia, mas não dava uma palavra. Da rua se
ouviam os gritos do sargento:
– Confessa ou não confessa, seu peste?
O homem gemia, gemia, mas não proferia uma pala-
vra.
Ouvindo os gritos, os gemidos, a mulher do professor
teve um ataque. O comerciante Silveirinha se aventurou a
um protesto discreto:

442
Luís Jardim

– Também já é demais.
– Quem está preso está preso – admitiu o barbeiro
Bidu.
Do fundo do quintal chegava o barulho contínuo das
pancadas. Já não se ouviam os gemidos.
João Borrego apareceu na calçada da cadeia. A mulher
de outro vendeiro pediu:
– Diga ao sargento que basta, seu Borrego, também já
é judiaria.
João Borrego encaminhou-se para o fundo do quintal.
Os soldados na porta não deixaram ninguém entrar. O gru-
po dos curiosos aumentava cada vez mais, e discutiam, da-
vam palpites. Daí a pouco cessaram as pancadas, e o vendei-
ro apareceu, rindo, satisfeito, declarando para a multidão.
– Já dei o basta.
Afastou as pessoas que lhe tomavam o caminho, cum-
primentando a um, a outro. Atendendo à pergunta do
barbeiro, respondeu aos berros:
– Aparece lá na venda que te conto tudo, homem!
Do grupo diante da cadeia alguns seguiram o comer-
ciante, que se distanciava a passos largos, olhando para
trás de vez em quando; outros ficaram indecisos, rodando
por perto, espichando-se nas pontas dos pés para ver se
divisavam alguma coisa lá no quintal.
João Galindo, quando soube da história, confessou-se
decepcionado:
– O homem enganou-se. Pensei que fosse macho. De
bom todo sinal ele tinha. Enfim…
No domingo, ao meio-dia, João Borrego procurou o
sargento e perguntou:
– Contou direitinho, o manhoso?
– Nada. Morre e não conta. Uma palavra não diz. É
cada olho do tamanho duma rodeira de carro, cravado
num canto da parede, e disso não passa. Mas ele conta.
Na segunda ele desembucha.

443
O homem que galopava

O homem que galopava não desembuchou: não disse


quem era, não disse onde morava, não disse se matou ou
se roubava. Mudo, de olho arregalado, durante três dias se-
guidos apanhou surras danadas, já sem forças para gemer.
Depois de um mês de prisão, os soldados começaram
a familiarizar-se, a simpatizar com ele. Peladinho dizia-se
arrependido do que fizera. Na opinião dele, o homem pa-
recia inocente. E certo dia, por camaradagem, deram-lhe
um tamborete, porque no quarto da prisão só havia uma
esteira velha. Quando o homem viu o tamborete, trepou-
se nele, juntou as pernas como se montasse um animal, e
saiu danado numa carreira de mentira, gritando:
– A galope, a toda, meu Castanhinho!
Curvou-se, como se se livrasse de paus a cavaleiro,
e agitou o braço em gestos de pancada com um chicote
imaginário. Com os beiços, imitando os cascos do cava-
lo estalando sobre pedras, reproduzia o barulho de um
animal em disparada. Correu, correu, sacudindo-se no
lombo do tamborete, castigando o espaço entre as pernas
do móvel com esporas que não havia. De vez em quando,
com a cara alegre e feliz, animava o cavalo de mentira:
– A toda, bota o que tiveres, meu Castanhinho!
E o braço direito ia e vinha nos açoites. O homem que
galopava ria, abaixava-se, suspendia o dorso; balançava
o esquerdo na posição da rédea solta e tornava a gritar,
animando o cavalo:
– Isso, isso, por cima do paredão! A prumo no cami-
nho do fim do mundo! Lasca, seiscentos diabos!
Cambaleou de um lado, como se o cavalo tivesse dado
uma topada, e estacou de repente, fingindo aguentar as
rédeas, derreando-se para trás, igual a cavaleiro acostu-
mado a esbarrar em porta. Apeou-se, cansado, limpou a
testa onde o suor minava. Soprou forte, cuspiu de banda,
depois se virou para o tamborete, passando a mão onde
devia ser a anca, e falou:

444
Luís Jardim

– A puxada foi boa, Castanhinho! Amanhã vamos cor-


rer mais.
Os soldados contaram o fato ao sargento. E ele orde-
nou, rindo, indiferente:
– Então soltem o homem. Esse bicho é doido!
No sábado, quando o soltaram, o homem que galopava
saiu meio trôpego em direção à venda de João Borrego.
Quando o vendeiro o viu, sem esperar, frente a frente,
estremeceu de susto e ficou branco como papel. O matu-
to, de olhar vago, indeciso, indagou com indiferença:
– Viu alma do outro mundo, seu Borrego?
O vendeiro não deu resposta, trêmulo, encostado ao
balcão. E o homem que galopava continuou falando:
– Venho de longe, seu João. E ainda vou mais pra lon-
ge. Vou pra lá da tábua lascada. Boto-me pra terra onde
feijão dá na raiz. A estrada não tem curva, nem tem prin-
cípio nem fim. A propósito, seu Borrego, bote aí um tra-
go. Fiado. Mereço? Tou sem dinheiro. Demorei-me ali na
casa de um conhecido.
João Borrego mexeu-se, de pernas bambas. As mãos tre-
miam, o cérebro trabalhava: tudo era astúcia do homem.
Estava ali para vingar-se, matá-lo. De faca, que é arma cer-
teira. Talvez com a de cortar ceará, se ele pudesse apanhá-
la. Antes não tivesse combinado prendê-lo. E prender o ho-
mem por quê? Não havia apenas suspeitas? O homem vi-
nha vingar-se. Vinha matá-lo. E ele, João Borrego, ia deixar
viúva, três filhos, um ainda engatinhando. A venda ficaria
só, com Eduardo, o cunhado, tomando conta. Eduardo fica-
ria dono dela. Roubaria a irmã, a viúva dele, João Borrego.
Matar de faca. Foi como morreu Godói. Botando golfadas
de sangue, pedindo água pelo amor de Deus. Tiro também
dava sede. Ele já estava com sede, a goela seca. Antes tivesse
evitado a prisão do homem. Pelo menos evitado a surra.
Aquele estranho era um inimigo, e inimigo danado, com
sinais de valentia: olho ligeiro, venta acesa, unhas curtas,

445
O homem que galopava

como dizia Galindo. Homem valente mata de punhal. O


homem que galopava certamente tinha um punhal. Três
gumes. Enferrujado, fino como um compasso. Punhal não
deixa buraco nem faz correr sangue. O sangue corre por
dentro, nas tripas, no estômago, e ninguém escapa.
– Mereço ou não mereço, seu João, um fiadinho bes-
ta? Precisa tanto tempo pra se decidir por um tostão? Me
despache. Sim, sim; não, não! – falou o homem que galo-
pava, cortando o pensamento do vendeiro.
João Borrego mordeu o beiço, suspirou, como quem
acorda, e respondeu de voz embargada:
– Ora pois não, seu, seu... como é a sua graça?
– Basílio Pereira da Anunciação, um seu criado.
João Borrego pensou: mentira. É mentira. Nome in-
ventado, como Zebedeu, Eu da Silva, Fulano de Tal...
Não diz o nome de verdade para escapar melhor à justiça
quando cometer o crime. Basílio Pereira, mentira! Basílio
Pereira tem um punhal escondido para matar gente, Ba-
sílio Pereira!
– Mentira! Mentira!
– Mentira de quem, seu João? – indagou o matuto,
estranhando a atitude sem propósito do vendeiro.
– De nada, de ninguém! O que é que o senhor quer?
– Largue o mundo da lua, seu Borrego, eu quero é
cana! Fiado. Vende ou não vende?
– Vendo. Vendo o que o senhor quiser. O senhor tem
crédito. Sempre teve. Sempre não lhe vendi?
– Fiado, não, porque nunca precisei.
– Mas se quisesse era a mesma coisa. Tem todo o crédi-
to. Cachaça, ceará, cigarro, tudo. Tudo, o que quiser.
João Borrego afastou-se de costas para ir buscar a
garrafa. Tremia. E pensava: se desse as costas, morreria
à traição. Bom seria se o sargento chegasse. Pediria para
prender de novo o homem que galopava. Pediria para
dar-lhe outra surra. Muitas surras, até matar. Quem tem

446
Luís Jardim

inimigo é melhor livrar-se dele para sempre. Ficar sem


susto, ficar seguro. E a faca? Ou punhal? Se o homem
apanhado pulasse o balcão? Reagiria, tomar-lhe-ia a faca,
sangraria o homem que galopava. Mas talvez o homem
não tivesse punhal. Era tolice pensar que ele, covarde sem
reação, que apanhara no meio da feira, viera matá-lo. E
matar por quê? Que fizera ele, João Borrego? Era autori-
dade, tinha nada com a prisão dos outros?
– É pra hoje, seu João, essa cachaça! Ou não quer ven-
der fiado? – interrompeu-o o matuto.
João Borrego protestou, dizendo que a demora era
pouca, e todo o crédito ele tinha. E o homem que galopa-
va explicou-se, desculpando-se:
– É que vou embora, já, seu João. A puxada é boa.
João Borrego animou-se. O homem ia embora. E o
cavalo recolhido ao sítio de João Galindo desde o dia da
prisão? Entregou o copinho ao matuto, pôs a garrafa jun-
to dele, mandando que ele se servisse à vontade. Depois
pediu licença por um instante e desapareceu pela por-
ta do lado ligada à casa de moradia. Deu um recado ao
cunhado para João Galindo, recado urgente, e reapare-
ceu, esfregando as mãos. Tornou-se franco:
– Embique mais, seu... embique, à vontade.
– Então outra conta, fiado. Com essa chego na casa de
três.
João Borrego puxava conversa, falava sobre a chuva, a
seca, mas não tirava o olho da rua. Sem querer, interrom-
pendo a conversa que descambara para negócios, disse
um “felizmente” suspirando, como quem se alivia, mas na
aparência sem razão de ser. O matuto indagou o motivo
do desabafo.
– Nada, besteira – respondeu o vendeiro.
E o homem que galopava confirmou:
– E é de que está cheio o mundo, seu João: besteira.

447
O homem que galopava

João Galindo já vinha chegando na venda montando


o castanho do homem que galopava. Apeou-se, entrou, e
disse ao dono:
– Guardei o animalzinho como se fosse meu.
O matuto olhou o cavalo, não deu uma palavra, e de
um pulo escanchou-se nele. Sumiu-se na esquina num ga-
lopezinho descansado, ganhando a estrada larga. Adian-
te, descambando a serra, cortou um chicote de alecrim.
Fustigou o animal. A carreira animou-se. O cavalo puxa-
va, os calcanhares sem esporas castigavam-lhe o bucho.
No chão duro os cascos faziam o barulho que o homem
imitara na cadeia. E o homem gritou:
– A toda, pra lascar, meu Castanhinho!
O cavalo atendeu, espichou o pescoço e desembestou
no caminho pedregoso. Sacudindo os braços, num mo-
vimento de pássaro que vai voar, o homem que galopava
forçou-o numa vereda estreita. Subiu ao paredão do açu-
de, por onde montado ninguém passava. Deu forte puxão
na rédea, o cavalo resvalou no precipício, rolando por so-
bre o mato viçoso que vinha lá de baixo.
Por um instante o barulho da água que escorria do
sangrador foi abafado pela queda do animal e do homem.
Depois tudo serenou, as folhas se mexeram, lentamente.
O verde era intenso, e era bonito.

448
O remetente
Luiz Arraes

Eu odeio não ter feito nada.


Afinal de contas, somos muito mais aquilo que não fi-
zemos nem vamos fazer do que o contrário.
Somos muito mais o que não somos, mais vazio do que
plenitude.
Fazer e não fazer são a mesma coisa.
É por tédio que se faz; é por preguiça que não se faz.
Sempre quis ter influência sobre os acontecimentos,
participar deles.
Sei que isso não é um privilégio meu, mas no meu
caso.
Estranhamento, não era aos outros que eu queria apa-
recer como alguém que contasse.
Pouco me importavam os outros.
Era a mim mesmo que eu queria provar que tinha meu
dedo nas coisas ao meu redor.
Era uma maneira de sentir-me no leme do destino.
De alguns destinos, do meu próprio.
Quando essa necessidade se impõe, ação e inação to-
maram feições distintas, opostas e não mais como facetas
da mesma moeda, almas gêmeas.
A ideia de agir me veio soltar e escolheu-me como úni-
ca testemunha dessa ação.
O fazer anônimo tem mais força do que o fazer com-
partilhado.
Com ninguém, haveria de dividi-lo. Seria meu, ape-
nas.
O remetente

A ideia de escrever as cartas me surgiu aos poucos; não


tenho uma memória clara de sua formação.
A ideia de escrever cartas para mexer na vida dos ou-
tros.
Outros que eu escolheria e que com minhas cartas –
finas, certeiras – atingiria os pontos fracos.
A primeira carta teve destinatário óbvio e pouca ima-
ginação.
A carta foi na verdade um lacônico bilhete frio e dire-
to, informava ao síndico – figura detestável – sua condição
de traído, sem adjetivos.
Apenas a descrição resumida dos fatos.
Minha parte feita, não tinha como avaliar os resulta-
dos.
Na ocasião, não era isso que me interessava.
Importava-me como o veneno da carta ferira alguém,
vingar o mal que ele continha.
A segunda carta não veio pelo caminho de vingança.
O mal gratuito, se assim quisermos chamar.
Veio como um meio, não um fim em si.
Foi novamente sobre um vizinho que recaiu a escolha.
Desta vez um pouco mais de imaginação, um pouco
mais de perversidade.
Era um aposentado, um homem pacato e simpático.
Gostava sempre de puxar conversa se encontrava al-
guém.
Sua conversa era estereotipada, cheia de ideias defi-
nidas.
Tinha uma visão reacionária das coisas, como “pobre
só é pobre porque é preguiçoso” e “o Brasil é do jeito que
é porque foi colonizado pelos portugueses”.
Morava em seu apartamento com a mulher, uma fi-
lha que voltava para casa após um casamento desfeito e
o neto.

450
Luiz Arraes

Esse neto era sua grande paixão e assunto predileto.


Escrevi uma carta extensa, educada e carregada de
boas intenções.
Me fazia passar por uma mãe de um colega de seu
neto no colégio.
Mostrava minha preocupação pelo comportamento do
menino e justificava minha iniciativa pela solidariedade,
tão rara nos dias que correm, devida nesses casos.
Contava em detalhes, mas com misto de pudor e cons-
trangimento, que os colegas de seu neto o usavam para as
suas satisfações sexuais, valendo-se sobretudo da prática
de sexo oral. Pedia desculpas pela expressão e terminava
a carta com conselhos, com estímulos a coragem e fé.
As cartas se sucederam.
Inúmeras.
Incontáveis destinatários, ex-chefes, antigas namora-
das, velhos conhecidos.
Depois passei a usar o catálogo de telefones, escreven-
do uma atrás da outra, cartas para anônimos, desconhe-
cidos.
Foi um cansaço e não uma reflexão que me fez parar
aquela sanha missivista.
Hoje não escrevo mais cartas, ou melhor, escrevo sim.
Não posso mentir.
Mas descobri que o melhor é recebê-las.
Recebo-as aos montes.
Não por acaso, por não conseguir ou não me esforçar
o suficiente para disfarçar, reconheço nelas minha letra,
inconfundível.

451
O enterro de João
Luzilá Gonçalves Ferreira

Tinham marcado pra de tarde, por causa do irmão


da Paraíba. Mas quando o aviso chegou, todo mundo já
tendo dito o que tinha de dizer, ah, ele descansou, está
melhor do que nós que ficamos aqui sofrendo neste vale
de lágrimas, foi melhor pra ele, papo furado, descansou
vírgula, vai ver que entrou foi numa fria, com toda a des-
graça, esse mundo aqui é bom demais, e João era doido
pela vida e a prova disso é que estava morto ali, o médico
falou vai ter que se poupar ou não chega aos quarenta e
ele preferiu não chegar, e viver como queria, que adianta-
va uma vida economizada? Pois eu ia dizendo, quando o
aviso chegou o jeito foi apressar tudo e fazer a coisa assim
mesmo a toque de caixa, numa danação que só vendo.
Aliás é bom dizer, se do lado de lá se pode ver o lado de
cá, a alma de João deve ter se divertido às custas dos aper-
reios da gente e inda mais da mulher dele, cheia de nós
pelas costas e dos irmãos fricoteiros, uns chatos que nunca
deixaram João viver como queria e só botavam pregos
pelos caminhos dele.
Foi assim: já se estava naquela hora de silêncio sem jei-
to, todo mundo só esperando pra despachar o que restou
do homem quando a alma briga com o corpo e bate asas
para melhores paragens, se é quê. Todo mundo calado, só
vendo a hora de se livrar e sair pro sol lá fora e pra vida,
um suspiro de vez em quando por parte da viúva, só pelas
conveniências, só de amostrada ah fingida, doida que o
pobre esticasse as canelas vivia ela, e agora estava ali, de
Luzilá Gonçalves Ferreira

olho vermelho, vai ver que esfregou cebola. Pois no silên-


cio de repente Zefa veio correndo, berrou:
– Minha gente, a cheia.
Todo mundo se olhou sem entender direito. Cheia?
E ela:
– O rio tá enchendo.
Saiu tudo disparando, nem se pensou em João coitado,
preso no caixão, na roupa nova dele, sem poder acompa-
nhar o fruzuê. E o que se viu: o rio já era o calçamento da
rua, um rio avançando, uma água grossa e amarela. A gen-
te ficou olhando calado a água vindo. De onde, para onde
era o mistério, ela sem perna e sem barulho caminhando
pro lado de nós e do enterro de João.
– João! – a viúva gritou de repente.
A discussão começou, que que se faz, que que não se faz.
Deixar o enterro pra de tarde era perigoso, se corria o risco
de ficar ilhado um dia ou dois, quem sabia, e que fazer do
pobre do defunto? Apressar o enterro, chegar no campo
santo antes da água? Mas o irmão que vinha da Paraíba?
– Qué que se faz?
Alguém falou:
– Olha, a rua tá enchendo, daqui a pouco não se sai
mais daqui, o jeito é fazer o enterro já já.
Metade dos assistentes correu pra suas casas, outra me-
tade ficou num pé e noutro, a viúva disse vão cuidar de suas
coisas que a gente se encarrega de João. Conselho muito
direito, mas a gente que tinha sido unha e carne com João
podia lá deixar ele numa hora agoniada daquelas?
– Eu fico, falou Quimedes.
– E eu, e eu.
Quem devia sair saiu, ficamos eu, Tonho, Quimedes, a
viúva e um irmão de João, aquele mesmo que se fazia de
santinho numa irmandade e carregava imagem em procis-
são. A gente voltou pra sala, João dormindo indiferente.

453
O enterro de João

– Precisa telefonar pra o Caminho de Céu, eles fica-


ram de vir às três horas.
– Eu vou – disse o irmão da irmandade. – Já volto.
A viúva sentou num canto, com cara de inda mais essa.
Tonho tangia uma mosca que teimava em ficar no nariz de
João, Quimedes foi espiar da janela, doido pra estar lá fora.
– Gente, o negócio num está bom, não.
Um rato entrou na sala, escondeu-se debaixo da cortina.
Era mau sinal. A viúva fez que não viu, olhava pro chão.
O irmão da irmandade voltou:
– Respondem, não. Todo mundo deve ter saído pra
cuidar de suas coisas.
– Qué que a gente faz? – fez a viúva.
– Vamos sair agorinha. A gente mesmo carrega até o
cemitério.
O irmão falou pra viúva:
– Melhor você ir pra casa de sua mãe, ninguém vai
ignorar, não. A gente dá conta.
Ela não esperou o troco. Deu uma última espiada no
defunto feito quem diz te dana por aí e se mandou.
– Vocês fechem a porta antes de sair – inda falou.
– Tá.
Saiu com a saia arregaçada, nós quatro ficamos.
– Qué que se faz com essa armação da casa funerária?
– A gente vai ter que guardar, mas onde?
– Isso é coisa cara, se a água entrar na casa...
– Bota em cima da mesa.
O irmão da irmandade apagou as velas:
– Fecha a tampa.
Baixei a tampa, não sem olhar antes pro safado do João,
que parecia rir feito quem diz uma última eu ainda prego a
vocês, e eu falei no ouvido dele João tu vai ter um enterro
digno de tu mesmo, livre desse povo que só vem brechar
pra depois sair falando. Depois eu disse pro irmão:

454
Luzilá Gonçalves Ferreira

– O senhor não mora na Beira-Rio?


– É, falou ele, vai ver a casa tá enchendo. E eu ter que
ficar aqui...
– Por que não vai pra lá? Sua mulher deve estar aflita.
– É, mais eu tenho que cumprir com a caridade.
– A gente cuida de João.
– Quando a irmandade souber, eu tinha prometido,
vim dar meu testemunho.
– Que testemunho que nada, seu Severino, numa hora
dessa? O senhor vai, a gente entende e Deus perdoa.
– É, a mulher deve estar agoniada mesmo, ele falou
sem convicção.
– Deve. Vá logo.
– Vocês fazem tudo?
– A gente faz.
Saiu, voltou:
– Se apressem que a água tá no jardim.
Fomos. O jardim era uma água só, as margaridas e as
alegria-de-padre boiando, só as cabecinhas aparecendo.
O irmão da irmandade arregaçou as calças e saiu, os sapa-
tos na ponta dos dedos. A gente voltou pra dentro.
– Vai ser fuxico carregar esse peso a três.
Cada um tirou o sapato e as meias. Quimedes tinha
sandálias:
– Onde que a gente vai poder deixar os sapatos?
– No guarda-comida.
– E se a água entrar e virar tudo, feito na cheia de ses-
senta e sete?
Tonho propôs:
– A gente bota dentro do caixão. Na hora de enterrar
a gente tira.
– Enterrar? Tu pensa que vai encontrar terra? Tu devia
dizer era aguar.

455
O enterro de João

Todo mundo riu. De nervoso ou de riso? Mas se botou


dois sapatos ao lado da cabeça de João, dois nos pés. As
japonesas de Quimedes se aninharam junto do pescoço.
– Vamos lá.
A água já começava a entrar na sala. Tonho passou a
chave, enquanto a gente segurava.
– Tá pesado como o diabo.
– E o bicho era tão magro.
A água estava fria e barrenta, a gente andando deva-
gar, com medo dum esgoto aberto.
– Isso aí tem tanto micróbio...
– Só tem.
– Quando terminar, a gente vai ter que tomar uma
caninha.
– Se tiver bar aberto.
Na esquina a correnteza era forte. A gente dobrou fa-
zendo finca-pé, era preciso segurar o danado do caixão
bem firme, que era ele que mantinha a gente unido. A
água já estava mais alta que o joelho.
Descemos a ladeira devagar, qualquer escorrego e o
caixão se ia e a gente com ele. E adeus João e adeus nós.
As baronesas davam voltas, era até bonito, aquilo verde, as
flores azuis rodando no amarelo barrento da água.
– Oia uma cobra!
A peste era grande e nadava feito uma desesperada.
Viu a gente e o caixão, nadou pro lado de nós, acho que
pensando se salvar. – Agora sim – falou Quimedes. Bateu
na água com a mão, para assustar; a bicha deu meia-volta.
Um tronco de bananeira passou, ela se enroscou nele.
– Vai-te, Satanás.
– Ela também quer viver, Tonho. Nessa hora todo
mundo é irmão.
A Rua de Baixo era um rio só. As casas fechadas, todo
mundo já longe. A gente andava difícil, no pé das casas,
para evitar o grosso da corrente.

456
Luzilá Gonçalves Ferreira

– Que é isso preto aí?


De longe parecia uma galinha morta, a gente olhou, era
um cachorrinho. Tonho avançou o braço, pegou ele, falou:
– Inda tá vivo.
Dava pena, tremendo tanto. Tonho botou ele em cima
do caixão.
– Te segura aí mermão.
O bicho olhava pra gente sem entender a água, o cai-
xão balançando, ele de pata aberta, no equilíbrio. A força
da água era grande, a gente quase não saía do lugar. E
aquela impressão de tontura, a água correndo. No fim da
rua a água dava nos peitos, a gente teve que pousar João
nela, que ninguém aguentava mais suspender o caixão.
– A água vai entrar dentro, será?
A gente andou um pouco, o caixão ficou mais pesado.
A água entrava pelas brechas da tampa.
– João – falou Tonho – desculpa a água, mas é o jeito.
Na esquina da Rua da Saudade a água chegou no pes-
coço, o cemitério lá embaixo nem tinha mais muro. Aqui
e ali uns mausoléus mais altos, a copa dum jambeiro. O
caixão era de chumbo, o cachorrinho gemia.
– Dá pra continuar mais não – Tonho desanimou.
– Qué que a gente faz?
– Vamos voltar.
– Voltar pra onde?
– Pra trás.
– A enxurrada balançava o caixão quase coberto, pesa-
do como se o próprio diabo tivesse deitado nele. A gente
parou junto duma mangueira, o tronco forte, uns galhos
já encostando n’água. Quimedes falou:
– Gente, oia, eu num sei não...
– Pois eu sei – Tonho disse. – Mas tô sem jeito de dizer.
Deu um pigarro, ajeitou a garganta. Anunciou:
– Meus amigos, o jeito vai ter que deixar João seguir o
caminho dele sem nós.

457
O enterro de João

Era o pensamento dos três. Largar João sozinho na-


quele aguaceiro sem fim era uma sujeira muito da gran-
de. Mas e nós? Tinha lá outro jeito?
– É isso mesmo, gente. Em vez de enterro, vai ser ba-
tismo.
– Vamos lá?
– Peraí – falou Quimedes.
Largou o caixão, deu umas braçadas, quebrou um ga-
lho da mangueira, enroscou o dito numa aba do caixão.
– Assim se vê de longe. Vai fazer companhia a ele.
Tonho pegou o cachorrinho no braço:
– Tu vem com nós.
– Solta – ordenou Quimedes.
O caixão rodopiou, um, dois, três rodopios, encontrou
a corrente. E se foi rio adentro, flecha, barca, peixe. Pra
onde?
– Vai direto pro mar – falou Tonho.
– Tão ruim assim, não – falei. – João era doido por um
banho de mar.
Inda vimos o galho da mangueira dobrar a esquina
dando voltas.
– Adeus, João – falou Tonho.
A gente olhava, olhava, uma tristeza grande vinha de
dentro.
Quimedes gritou, de repente:
– Minha japonesa novinha.
– Mesmo – fez Tonho. – E os sapatos da gente. Que
merda.

458
O fantasma de Samoa
Majela Colares

No banco da praça, absorto, Juvêncio folheava calma-


mente um livro. Naquele resto de tarde, a brisa prenunciava
uma noite comum a todas as noites de sempre. Motivo al-
gum existia para vexames ou desatinos; nem mesmo a tarde
que findava assustadoramente vermelha rente aos edifícios.
Como em qualquer final de dia, a passos longos e rit-
mados, as pessoas levavam coisas em sacolas e um desejo
surdo de voltar para casa. No banco da Praça Vendôme,
Juvêncio, indiferente, lia, absorvido em palavras. Alguém
se senta ao seu lado. Distraído, mal chegou a perceber a
presença do estranho.
– O fantasma de Canterville? Sou fascinado por Oscar
Wilde, senhor Juvêncio.
– Como sabe meu nome? Não nos conhecemos.
– Está no livro. O meu é Robert. Aguardo um amigo.
– E o conto... Adivinho ou mágico?
– Sempre sei. Sempre… Num piscar de olhos.
– Hábil, hein!?
– Obrigado.
– Wilde é realmente fascinante, concordo – diz Juvên-
cio, desconfiado, voltando-se para o livro.
– Pobre fantasma! Quanta frieza…
Por instantes, Juvêncio para e questiona-se com o
olhar. Vira a página.
– Pobre fantasma! – insiste Robert.
– Neste conto Wilde ironiza, genialmente, essas histó-
rias de fantasmas. Ou você acredita nisso?
O fantasma de Samoa

– Claro, acredito sim e em momento algum, a meu ver,


Oscar Wilde ironiza histórias de fantasmas. Esse não é o
intuito dele, sua visão vai mais além.
– Não entendi.
– Ah, Juvêncio, eu tenho uma outra concepção. Penso
que a grande ideia, a intenção maior do conto, é demons-
trar o materialismo exacerbado e a frieza insuportável do
americano. Aí, sim, como sempre, Wilde foi genial.
– Não percebi isso. Uma observação sugestiva... insti-
gante.
– Esse povo, amigo, para além dos limites, é por de-
mais egoísta. Frio por natureza. Um inverno atípico, di-
ria. O fantasma de Canterville retrata muito bem essa insen-
sibilidade impiedosa e pífia do americano. Nem mesmo
um fantasma – tão humano – foi capaz de arrancar-lhes
um gesto mais afável.
– Mas na senhorita Virgínia o fantasma confiou e tor-
naram-se amigos.
– A senhorita Virgínia era uma outra pessoa; ao contrário
dos gêmeos e do irmão mais velho, demonstrava uma certa
consciência da realidade. Sensata e meiga, pensava por si;
possuía ideias próprias. Era diferente do resto da família.
Virgínia representa o lado bom e fraterno daquele povo.
– É, senhor Robert, um ponto de vista estritamente
político, não acha? – interroga Juvêncio, fechando o livro,
marcando a página com o dedo, num cruzar de pernas.
– Não só político, mas também cultural. Fundamental­
mente cultural. Os americanos se sentem os donos do
mundo. Ditam regras e querem que toda a humanidade
lhes obedeça. Sempre apoiados pela Inglaterra, a Rainha-
Mãe. É a minha pátria, mas discordo, em muito, do posi-
cionamento político inglês em relação àquele país.
– Não é uma opinião radical, Robert? Existem os laços
de consanguinidade. São nações que possuem o mesmo
código genético.

460
Majela Colares

– Não importa. Sempre pensei assim e quando estive


em Oxford sedimentei ainda mais esse posicionamento.
– Oxford?
– Sim, estive lá por seis meses aperfeiçoando meus co-
nhecimentos em Ciências Políticas. Saí antes de concluir
a tese. Perdi o estímulo. Abandonei tudo e fui viajar pela
Europa, América, Ásia e, finalmente, em Samoa, encon-
trei a minha paz. Dediquei-me à literatura.
– Há quanto tempo está refugiado naquelas ilhas soli-
tárias do Pacífico?
– Cheguei por lá no início dos anos setenta. Quanto
a você, Juvêncio, fez bem vir pra Paris aprofundar seus
estudos em literatura francesa.
– Não te falei nada. Como sabe que estudo literatura...
– Sempre sei. Sempre. No semblante... implícito.
Juvêncio, assustado, estranha a afirmação precisa de
Robert.
Com um olhar distante, indecifrável, Robert observa
as pessoas que passam pelas ruas, mas logo retoma a con-
versa, quando Juvêncio ameaça reiniciar a leitura:
– Pensava em Nova York, no 11 de setembro…
– Lamentei muito, Robert. O terrorismo é irracional,
estúpido.
– O terrorismo é repugnante. No entanto, os maiores
culpados são eles, os próprios americanos. A arrogância e a
prepotência também não se justificam, assim como a emo-
ção levada ao extremo. Mas isso terá um fim, tenho certeza;
está chegando ao fim. Essa nação hegemônica, dominado-
ra, um dia sentirá na pele a sua crueldade e suplicará a sua
morte, assim como o fantasma de Canterville.
– Pura ilusão, Robert. Jamais chegará esse dia.
– Penso já estar acontecendo. Essa mudança percebe-se
no ar. Isso não só em relação aos Estados Unidos, mas a
todos os países. Impõe-se a decadência do Estado vigente,

461
O fantasma de Samoa

baseado na teoria contratual defendida por Hobbes, Lo­cke­­,


Rousseau e, de certa maneira, por Marx. É a desconfigu-
ração da norma e do gesto instituídos. Caminhamos para
uma outra forma de Estado mais evoluída, mais sublime e
que melhor atenda aos interesses e necessidades materiais
e espirituais do homem.
– Você até parece estar em Oxford, defendendo uma
tese.
– Não, não... é que o 11 de setembro me fez repensar
as Ciências Políticas. Sem dogmas, é óbvio, sem academi-
cismo. Naquele dia me veio a ideia de uma nova forma de
Estado. O Estado virtual. O início de uma outra ordem... a
reumanização do homem. Esse suposto Estado teria ape-
nas comando, dirigentes. Dispensaria os outros elementos
fundamentais ao convencional estabelecido. Seu territó-
rio se restringiria à sala de um edifício em Paris, Londres,
Moscou, Rio de Janeiro, sua terra, ou Washington. Poderia
ser, sem maiores problemas, uma fortaleza subterrânea no
Novo México, na Pensilvânia, em Bagdá ou nas planícies
geladas da Sibéria... Quem sabe? Uma caverna no Norte
da China ou no Afeganistão, quem sabe?
– Absurdo!
– Parece absurdo, mas com a internet tudo é possível.
Enfim, é uma hipótese, uma simples hipótese. Esse espec-
tro, sim, atormenta e apavora aquele povo, os semideuses
americanos do norte. A hegemonia deles tem seus dias
contados. Sentir-se-ão o próprio fantasma de Canterville.
– Está ficando maluco, Robert? Impossível.
– Você que pensa!
Robert se cala. Juvêncio retorna ao conto.
Já é noite. Algumas lojas ainda permanecem abertas.
Os edifícios já estão iluminados.
– “A essa altura ele abdicou de qualquer esperança de
um dia assustar aquela família americana grosseirona...”

462
Majela Colares

– Lê pensamentos, Robert? Estranho! Estou passando


por essa parte do texto.
– Calma, calma, não se assuste, foi mera coincidência,
telepatia talvez. É que essa parte do conto vem só confir-
mar a minha tese da visão de Oscar Wilde sobre os ameri-
canos. Ele foi irônico e preciso.
Juvêncio, sobressaltado, fecha o livro com um certo
medo estampado no rosto.
– Mas a culpa é deles. Pessoas assim, como os ameri-
canos, nunca enxergam a dimensão das outras. São ce-
gas em sua prepotência e estupidez. Incapazes de sentir o
tempo confinando sonhos.
– Você diz coisas diferentes, Robert, mirabolantes.
Foge do senso comum.
– Tudo bem. Falemos de literatura. Esse assunto in-
teressa-me bem mais. Meus autores preferidos, além de
Wilde, são: Kafka, Defoe, Proust, Allan Poe... Adoro o fan-
tástico. E os seus?
– Poe era americano.
– A literatura e as artes como um todo, pairam acima
do convencional. Você sabe disso, caro Juvêncio, quis ape-
nas me provocar.
– O tempo em Proust é enigmático.
– Concordo, mas do tempo, verdadeiramente do tem-
po, poucos se dão conta. Em algum outro momento pa-
ralelo já conversamos sobre isso; noutro ainda iremos
conversar. Em um outro momento nunca nos encontra-
remos.
– Agora senti uns calafrios, uma sensação estranha –
diz Juvêncio, fechando o livro de súbito.
– Aquele homem de terno escuro que cruza a rua, com
uma pasta na mão, apressado, de gravata esvoaçante, me
assusta. Talvez seja esse, também, o motivo da sua estra-
nha sensação. Por que fechou o livro? Continue. Estava no

463
O fantasma de Samoa

trecho de minha preferência... quando a senhorita Virgí-


nia pergunta ao fantasma se está falando da morte, e ele
responde: – “Sim, da morte. A morte deve ser tão linda. Fi-
car deitado debaixo do fofo marrom da terra, com a relva
balançando acima de nossas cabeças, ouvindo o silêncio”.
– Nossa! Você é misterioso. Como sabia que parei nes-
se parágrafo? Confuso, Juvêncio volta ao livro, procuran-
do localizar a página.
– Quem é você realmente, Robert?
Uma voz distante e serena parece sussurrar em seu
ouvido: eu lia Oscar Wilde – O fantasma de Canterville – e
morri exatamente nessa passagem em que você se encon-
tra. Morri feliz, amigo. A morte é linda.
Juvêncio, atônito, se perde na penumbra... Naquele ins-
tante o mesmo homem de terno escuro e gravata esvoaçan-
te cruza a rua. O livro fica a desfolhar-se sobre o banco.

464
Soler, emoção e morte
Marco Albertim

Os dois chegaram a Tracunhaém num domingo de ja-


neiro, meados do mês. Não se via na praça dos artesãos
um rosto catando novidades no ano entrante; salvo meia
dúzia de aposentados trocando prosa miúda, a praça es-
tava deserta. Alguns turistas de pele brancosa visitavam
ateliês e lojas; pensavam que os artesãos, todos, viviam em
comunhão com musas saídas do barro escavado, sopran-
do ângulos e curvas para cada modelo de santo. Maújo e
Francis não sabiam se portar como turistas; desajeitados,
foram recebidos como vindos de outros países, ou de ou-
tras cidades do Estado, mesmo com a fala sem lesões.
A casa de Soler era um sobrado igual aos de Olinda, com
janelas mouriscas, varanda apoiada em cantaria. As escultu-
ras e quadros estavam no pavimento de cima; o acesso, uma
escada em caracol com degraus de madeira sobre três hastes
de ferro, Soler tivera o cuidado de ocultar com pinturas de
inspiração telúrica. O propósito era resguardar as pernas de
mulheres que subiam e desciam de saia.
Uma mulher de meia-idade, roupa florida, atendia os
visitantes no pavimento de baixo; indicava a escada e ad-
ministrava com zelo de hotelaria um livro de presenças
sobre um balcão com gravuras de santos; ali, quem saía,
tinha que apor a assinatura e a data da visita. No andar de
cima, outra mulher, dir-se-ia a irmã da primeira, recebia
pagamentos, dava trocos, conferia cheques.
No meio de estátuas e quadros, Francis portou-se como
se estivesse vendo pela primeira vez a obra de Soler. Mos-
trou a Maújo a estátua de São Francisco em que o artis-
Soler, emoção e morte

ta, bruxo matreiro, cheio de truques, escondia a liamba;


as pombas rijas, presas nos ombros e braços da estátua,
não tinham indícios de remoção recente nem cheiravam a
cânhamo. O velho aposentara costumes e emoções. Seus
trabalhos, muitos já conhecidos de Francis, do tempo em
que ela, inábil, enlameara o rosto no amanho do barro.
Pusera de lado, ele, o uso da liamba, sentiu-se incapaz de
moldar, riscar o traço de artista maduro; os braços se aca-
nharam, quadros e esculturas mostravam linhas incertas,
curvas imprecisas.
Francis procurou o quarto dos fundos, onde se tranca-
ra com Soler, puxara o fumo e posara nua. A porta estava
aberta. Sobre a velha bancada de trabalho, pincéis limpos
ao lado de latas pequenas de tintas; no cavalete, uma tela
em branco com pintas de mofo; estiletes, paletas, lâmi-
nas, espátulas, tudo lavado numa bacia de barro; costu-
me do bruxo antes de descer para as refeições ou para
dormir. No lugar onde havia a otomana, nenhum outro
móvel fora posto; só o biombo de tecido com quadrículas
escocesas, onde ela tirara a roupa, agora lhe parecendo
estranhamente transparente. Olhou para os quatro can-
tos do aposento velho; virou-se para trás, viu na parede
frontal à dos fundos, um lençol amarelado, poeirento, co-
brindo um quadro retangular. Descerrou o pano, viu seu
corpo aos vinte anos de vida, capturado com precisão por
Soler; para sua surpresa, não havia um rosto postiço, de
dublê. Ele não resistira, achara que colar outro seria tirar
o relevo do corpo que dera origem à tela; pusera um ros-
to estranho só para mostrar à modelo o quadro feito. Ela
não distinguira diferenças; quando viajou sem promessas
de volta, Soler apagou-o e pôs o de Francis. Traços vivos,
como sua mente capturara. Apreciara-os toda noite antes
de se deitar; depois, quando sentiu a marcha irreversível
do Parkinson, cobriu com um lençol com a recomendação
de que não estava à venda.

466
Marco Albertim

– Não está à venda, senhora. Nem à visitação pública.


Francis ainda não se recuperara do susto quando a
mulher, responsável pelas vendas, tocou em seu ombro
para dizer que ela havia entrado no ateliê de trabalho de
Soler, proibido a visitas, a estranhos.
– Desculpe!
Virou-se, saiu olhando para baixo; não queria ser reco-
nhecida como a mulher da tela.
– Espere... você é a moça que posou para Soler!
Francis segurou o lençol, recobriu a tela. A mulher aju-
dou-a puxando as pontas do pano para trás do quadro.
– Não sou eu. É um rosto parecido com o meu.
– Eu não me engano, moça. Quer ver Soler!?
– Quero comprar essa tela. Diga-me o preço.
– Provavelmente será sua. Não será preciso pagar. Des-
ça comigo, vamos ver Soler. Ele não fala, mas pisca os
olhos quando concorda com o que falamos.
– Quem é a senhora? O que é dele?
– Eu e minha irmã somos suas sobrinhas. Administra-
mos a exposição e as vendas. Uma enfermeira cuida dele o
dia todo. Ele está lá embaixo, no quarto vizinho à cozinha.
Espere na porta, do lado de fora. Eu digo que você está
aqui. Se ele piscar concordando, abro a porta e você entra.
Soler recebeu Francis sem se mover; estava deitado
com um ventilador ligado em sua direção, de lado, para o
caso de necessidades; o pijama listrado estava babado na
altura do tórax. Alimentava-se por via parenteral. Olhou-a
com dois olhos inertes, rosto inteiriçado, pálido, funéreo.
– Ela quer o quadro, Soler.
Ele piscou só uma vez, e deixou cair uma lágrima do
olho mais próximo do travesseiro.
Ela deu notícias da quitanda, das beatas da Sé que a
esconjuraram, do secretário no afã de interditar suas es-
tatuetas, da decisão favorável do Tribunal; não disse que

467
Soler, emoção e morte

agora tinha um parelho, par de teto, de cama; para quê?


O velho estava mesmo no fim; morreria com a lembrança
de tê-la visto nua, na otomana de veludo rutilante, com
o véu branco de bordado cobrindo o seio tenro, o ventre
ainda brotando.
Um odor de vegetal cozido veio da cozinha. Soler pen-
sou na fome que sentia à hora do almoço, do jantar; a me-
mória juntou ao cheiro o odor de terra virgem que ema-
nara do cânhamo que puxara com Francisca. Despediu-
se, ela, com um beijo mudo em sua cabeça de fios ralos;
subiu com Maújo, que ficara do lado de fora, para pegar a
tela. Sugeriu que não visitassem mais ateliês ou lojas. Na
viagem de volta, disse:
– Ele está morrendo.
Em casa, Maújo propôs comerem uma moqueca.
– Não tenho fome.
A tela foi pendurada em frente à cama dos dois, na ma-
nhã seguinte. Toda a semana ela regou zelosa, como de re-
gra, begônias, margaridas e açucenas. No domingo, depois
de enfeitar os jarros do ateliê e da quitanda, comprou o
jornal ao moleque de sua estima e leu o que esperava.
Mal de Parkinson mata Soler.
Suspeitou do fluido homicida que sua visita levara; es-
perou a morte do amigo na resignação de seu juízo cabalís-
tico. Quando o vira quase cadáver, não teve dúvidas de que
era a derradeira vistoria. A intuição fora o aviso do orixá
padrinho de artesãos, da iminente morte de um confra-
de da rede universal. O último suspiro, supunha, fora com
saudades felizes. Soler cumprira o ofício com tolerância,
morreu com a melancolia do desterro irreversível.
– Não está arrependida da viagem?
Maújo catava remorsos como se cata bicho-de-pé.
– Não. Soler só fez o que gostava. Não carregou ar-
rependimentos. Foi feliz do seu jeito e ensinou aos mais
novos. Não será mais esquecido.

468
Marco Albertim

Francis não pôs luto fechado nem aberto em suas rou-


pas; pôs uma tarja preta, retangular, numa das duas portas
de sua quitanda, a que se mantinha fechada. No portão
da oficina, na casa da tia, também pôs tarja. Na segunda à
noite, cozinhou feijão fradinho, assou inhame, dispôs em
panela de barro com velas azuis; foi à beira-mar de Maria
Farinha e depôs a oferenda a Ogum; não tirou a roupa
para Maújo, nem acendeu a liamba; dez minutos em pé,
sem chinelos ou sapatos, olhando a oferenda. Na volta,
pediu para parar no primeiro boteco à beira-mar. Tomou
cachaça em vez de daiquiri. Maújo bebeu cerveja, cisman-
do seu futuro ao lado de Francisca Dolores.
Dia seguinte, com o travo de cachaça na saliva, regou
as plantas; regou com animação nos braços. Experimen-
tou pela primeira vez mágoa, embrulhada a um desejo de
vingança contra a vidinha ordinária de toda a vizinhança.
Ficou na oficina, não foi à quitanda. Só viu no outro dia
que as lojas dos outros artesãos estavam de luto.

469
Valentia
Marco Polo Guimarães

Entre as histórias de valentia que povoaram o fabulá-


rio da nossa infância, havia uma clássica, dos dois irmãos.
Gêmeos – não necessária, mas preferencialmente –, eram
os mais fortes, mais corajosos e temidos do lugar. Eram
também os mais leais, lealdade esta que se cristalizava em
dogma, quando de um para com o outro.
Surge, entretanto, um elemento de discórdia. Graças
a uma mulher, os irmãos entram em conflito e, como não
poderia deixar de ser, o conflito se radicaliza em luta.
No meio da rua, os irmãos se enroscam ferozmente. Lou-
co de raiva, um agarra o pescoço do outro e o aperta. Em
revide, o outro esfaqueia o irmão. Eles continuam atraca-
dos, silenciosos, olhos nos olhos, um matando o outro ante
a assistência atônita. Ninguém ousa interferir. Na verdade,
esse pensamento sequer passou pela cabeça de alguém.
Por fim, os irmãos caíram, agarrados e mortos. E de tal
forma era o ódio – e o amor – que os unia, que ninguém con-
seguiu desvencilhar os corpos. Os dois homens mais valentes
da região foram enterrados juntos, abraçados à morte.
Como o Brasil, nesta época, já era o país do futebol,
surgiu uma outra versão dessa história.
Eram dois irmãos gêmeos. De tal forma parecidos que
ver um e outro era como ver um homem perante um es-
pelho.
Os dois, jogadores de futebol. Um, o mais fantástico
goleiro que já havia surgido. O outro, o mais completo ata-
cante de todos os tempos. Jogavam em times diferentes.
Marco Polo Guimarães

Final de campeonato. Disputam os times dos dois ir-


mãos. Por fora da luta entre os dois grandes times, uma
expectativa maior cerca o desempenho dos dois gêmeos.
O jogo começa. As equipes se esforçam ao máximo, a
performance dos irmãos leva as torcidas ao delírio. Mas o
tempo passa e o placar não se mexe.
Já no último minuto do segundo tempo, surge o pê-
nalti. Faz-se o silêncio absoluto.
O irmão goleiro vai defender. O outro vai cobrar. Seu
chute é conhecido pela violência. Um tiro de canhão é com-
paração insuficiente. Ele chuta. O goleiro voa e encaixa a
bola no peito. Curva-se para frente, cambaleia. Depois cai
para trás, morto. A bola desliza pela grama, lentamente,
ultrapassa a linha de gol. Ninguém ousa comemorar.
O sobrevivente, ali mesmo, abandonou o futebol. E
nunca mais foi visto.

471
Uma égua chamada Sua-Mãe
Marcus Accioly

1. OURO-FINO
O cavalo – chamado de Ouro-Fino –/era ouro fino mes-
mo, ou el dorado/de uma poeira, um pó de luz de ouro./
Alazão tão vermelho como aquele/cavalo que, no banho,
foi pintado/por Petrov-Vodkine, pelo russo./Recebi-o na
infância, ele corria/atrás de quem passava pela solta./Ho-
mens, bichos e pássaros voavam/das chamas que eram
crinas agitadas./“O cavalo é o cachorro do menino”/– di-
ziam – “rincha e late feito o cão!”/As mulheres, vestidas
de vermelho, fugiam do miúra cor de sangue./Ele havia
enfrentado outro cavalo/e partido, na briga, o seu pes-
coço./Manso ficava só quando me via,/pois me escolheu
por dono e cavaleiro./À escola me levava e me trazia,/to-
dos os dias, desembandeirado./Corria feito o tempo e a
tempestade,/os raios e os relâmpagos do inverno./Cres-
cemos juntos, éramos amigos,/irmãos – ditos siameses ou
xifópagos –/que os dois, em um somente, era o centauro./
Ele nadava quase feito um peixe./Atravessei o Rio Siriji/
agarrado ao seu rabo muitas vezes./Quando comigo foi
para o outro engenho/(chamado Jaguaraba) estava velho./
Envelheceu antes de mim – coitado! –/não aguentava o
tranco das viagens/de horas e léguas pela mesma estrada./
Estava acostumado ao outro engenho,/dele e meu – Lau-
reano – à Mata-Seca,/ou Norte, onde – encarnado contra
o verde –/flecha dos arcos dos canaviais,/era, acima da ter-
ra, o vento aceso./Ele – invejado pela própria inveja –/foi
Marcus Accioly

o que, sem ser ele, não havia./Debulhava o seu milho na


porteira,/dava o mel na cocheira – mel e milho/mantive-
ram do sol seu fogo sempre –/e eu cavalgava o incêndio
sob as pernas./Ah, depois veio a idade dos cavalos,/con-
tada pela conta dos seus dentes./Não era dono mais nem
dele mesmo/e, talvez, nem de mim, o dono dele./No novo
engenho havia outros cavalos/e, nas quatro estações, tudo
era chuva./Dava o frio um catarro que matava/os jumentos
e burros sufocados./Chuva da Mata-Sul, ou Mata-Úmida,/
era demais até para a lavoura./Ouro-Fino no pasto foi fi-
cando,/foi ficando no alpendre da cocheira,/foi ficando
(meu Deus, como isto dói!)/foi ficando sozinho de sauda-
de./Uma cobra o mordeu (eu vi das presas/a marca no seu
ventre) qual a espécie?/Foi encontrado morto no cercado./
Quis vingar sua morte e fui matando/– com cacete, com
pedra e de espingarda –/todas as serpes que encontrei no
engenho:/cascavel, salamanta, jararaca,/surucucu, coral –
as venenosas,/e as não – como a jiboia e a sucuri/(para
mim toda cobra tem veneno). Certa vez apontei para uma
víbora/e o dedo se negou contra o gatilho./Não, não pude
atirar, vi a serpente/ir se desenrolando, lentamente,/e, fei-
to um ramo nu, entrar nas folhas. Depois fiquei sabendo
que foi ela,/a má pupila, a escama ruim, a irmã-/perdi-
da desde o Éden, rastejante/caninana (a caim que “corre
mato”)/a raiz, o mimético cipó,/que adquire da presa, em
suas presas,/o arco-íris do jato da peçonha./Porém já era
tarde até demais:/a cobra que matou o meu cavalo/havia
adquirido a sua cor.

2. O CAVALO DE JOÃO
O cavalo de João não tinha nome,/era chamado apenas
de cavalo./Não de cavalo, como se qualquer,/mas do cavalo
de, cavalo do:/de João, ou do menino – era um corcel/que, em
vez de nome, tinha sobrenome./O cavalo de João era tão

473
Uma égua chamada Sua-Mãe

manso/que se deixava pôr a sela e o freio/sem murchar


as orelhas, nem bater/o casco sobre o chão, incomoda-
do./Era o contrário de Ouro-Fino, o meu,/o outro cavalo
que era amigo dele,/pois Ouro-Fino disparava às pressas/
para arrancar da boca o freio aos dentes,/cilha, rabicho,
manta, estribo, sela,/ou quem houvesse em cima do seu
dorso,/pois só levava nele o outro menino/que, sem ta-
bica e espora, nele andava,/às vezes nu – pelo com pelo
– como/nasceu, pernas compridas procurando,/no choro,
a montaria, antes da luz./O cavalo de João era outra coisa,/
era mansuetíssimo, segundo/disse o padre Saraiva em sua
missa,/pela alma de João e do cavalo./Eis a história mais
triste de Aliança,/ou, talvez, não a mais, mas uma delas:/
vindo da escola, o Grupo, um dia, à tarde,/João resolveu
comer um sanduíche/n’o cavalo de João, ou do menino,/que
era o cavalo dele e, lentamente,/desembrulhou o pão com
queijo e ovo./Como chovia, abriu o guarda-chuva/e o ca-
valo de João, que era tão calmo,/espantou-se com a coisa
e ele caiu,/porém ficou com o pé preso no estribo./João
seguiu arrastado pelo corte/de cana, feito a sombra do
cavalo./As rédeas do animal, absolutas,/jamais foram de-
tidas por ninguém./Só quando se partiu o loro esquerdo,/
João quedou-se mais morto do que vivo./Já havia perdi-
do um olho dele./Socorrido, morreu de hemorragia./Do
cavalo até hoje não se sabe./Uns dizem que voltou a ser
selvagem,/outros que criou asas, que virou/zumbi, mula de
padre. “Ele encantou-se”/– uma velhinha, já meio encan-
tada,/disse-me certa vez. Menino eu via,/quando a lua era
grande, ele passando,/com sela ainda e já livre do freio./
Às vezes era a nuvem que corria,/ou o vento que passava
com seu sopro./Não o vi nunca mais, sempre procuro./Já
faz tempo no céu não há cavalo./Dizem que passam bru-
xas, mas só vejo/estrelas e aviões. “Ele encantou-se”,/ou
talvez seja hoje a nebulosa/negra que existe na Constela-

474
Marcus Accioly

ção/de Órion – onde a Cabeça do Cavalo./Somente quando


cai a tempestade,/imagino o seu rincho nos relâmpagos,/
mas o trovão, mais alto, abafa tudo.

3. A ÉGUA SUA-MÃE
Fernando Moura apelidou, no engenho/Falcão, a sua
égua mais bonita,/de Sua-Mãe e assim era chamada./Ela
lembrava um verso do poeta/Jorge de Lima – no Invenção
de Orfeu:/“A garupa da vaca era palustre/e bela” (o verso ti-
nha 12 sílabas/e falava da vaca e não da égua)/mas mesmo
assim lembrava o outro verso:/“uma penugem havia no seu
queixo/formoso”. A égua era mais formosa./Era melada e
era lustrosa a égua./Tinha umas crinas (éramos meninos)/
que causavam amor e até ciúme!/Fernando Moura olhava
da varanda/olhava da janela a sua égua,/ficava impacien-
te, punha esporas,/apanhava a tabica – o cipó-pau./“Hoje
vamos tomar banho de açude,/lá do engenho Falcão, pois,
dentro d’água/podemos ver a égua Sua-Mãe/puxando os
nossos dedos” – nós, meninos,/nós, moleques, dizíamos
no rio/cheio de calda e sem as lavadeiras/que lavavam
as roupas nos lavando./De Falcão escutávamos histórias,/
ouvía­mos, talvez, Fernando Moura:/“Vá selar sua mãe” –
ele gritando/ao estribeiro – “eu quero montar nela!”/O es-
tribeiro saindo com o cabresto/e voltando com as mãos e
com a cabeça/abanando: “Impossível, seu Fernando,/não
há quem hoje pegue Sua-Mãe!/Está daquele jeito com os
cavalos/e jumentos e burros no cercado./Dá coice até no
vento e morde mais/do que cachorro quando pega raiva”./
Era assim todo dia, o dia todo./Todos riam e a égua Sua-
Mãe/vivia em liberdade, solta à solta,/sedutora, atraente,
perigosa,/limpa e sempre esperando outra barriga,/sem
dar no engenho nada de serviço,/por causa do seu nome:
Sua-Mãe./Quanta inveja dos burros, dos cavalos,/dos ju-
mentos, não tínhamos, meninos!/Namorávamos já com as

475
Uma égua chamada Sua-Mãe

bananeiras,/com as cabras, com as galinhas, nós, meninos,/


nós – ladrões de cavalo – certa noite,/intentamos roubar a
Sua-Mãe,/mas tudo deu errado, ora o cachorro,/ora o vigia,
ora a hora, o medo./Consegui-la arrastar até o banho,/era
uma empresa e estávamos dispostos./Porém, fôssemos vis-
tos, descobertos,/em cima da barreira e em Sua-Mãe?/“A
linda égua não me bate um prego”/– Fernando Moura às
vezes comentava/e o estribeiro ria: “Bater prego?/Mas a
égua não tem nem ferradura”./Fernando Moura não acha-
va graça/e dava um grito no estribeiro: “Não,/ela não usa
ferradura e nem/você usa sapatos sob os cascos!”/Nenhum
de nós sonhava-a de sela/e nem a imaginava de cangalha,/
com caçuás, cambitos, nada disso,/mas nuinha no pasto,
como andava,/com aquele rabo – a trança de cabelo –/
pendurada da anca até o chão./Fernando Moura resol-
veu chamá-la/de outros nomes, porém nenhum pegou./
Foi preciso vendê-la e foi vendida/a um novo dono, sem
dizer seu nome./O cercado ficou vazio e triste,/até as rãs
do açude e os caçotes,/sapos, calangos, lagartixas, cobras,/
sentiam falta dela – Sua-Mãe./Pássaros não cantavam, só
o anum,/preto ou branco, pousado sobre a estaca,/piava
– “sua-mãe” – mas era a nossa/mãe – complexo de Édipo
com a égua./Tentamos descobri-la em outro engenho,/tal-
vez na usina, na cidade, quem/sabia dos seus rastros, dos
seus cheiros/e como perguntar por Sua-Mãe?/A égua criou
asas – tanajura –/voou ao paraíso dos cavalos,/e nós, meni-
nos, estávamos no inferno,/no purgatório sem a Sua-Mãe./
Quando, uns tempos depois, Fernando Moura/foi visitar
o comprador da égua,/avistou-a no pasto e, arrependido,/
perguntou, disfarçando a emoção:/“Não é aquela a Sua-
Mãe?” O tal/(que não sabia a história) aborreceu-se./Não
queria perder, mas retrucou:/“É a sua mãe e a vai levar
de volta!”/Assim foi devolvida Sua-Mãe/ao engenho Falcão
onde viveu/para sempre feliz até a morte.

476
O retrato e as flores
Margarida Cantarelli

Véspera de Natal. Como sempre, Carmem vai ao ce-


mitério levar flores para os seus pais e irmãos que estão
no jazigo perpétuo da família. Nesse ano, Helena, sua
cunhada, viajou e pediu-lhe que também fosse ao túmulo
do seu marido colocar umas rosas amarelas que ele tanto
gostava. Até então tudo parecia muito simples e Carmem,
por índole muito solícita, cuidou de atender ao pedido.
Helena é uma pessoa entre ingênua e conformada. Não
teve filhos; o marido, Machado, já não morava em casa há
muitos anos, mesmo décadas. Mas ela não dava o braço a
torcer e falava sobre ele aos parentes como se fosse o mais
apaixonado dos esposos; não havia um presente que ela
oferecesse a alguém que não estivesse no cartão o nome
dos dois. Na sala da casa muito simples onde vivia (na rea-
lidade, sozinha), o retrato de Machado, em preto e branco,
com a farda de sargento, ficava em lugar de destaque, pen-
durado na parede numa daquelas molduras antigas ovais,
sendo venerado por ela como um verdadeiro santo.
Mas, verdade seja dita, contam que ele tinha sido um
bom marido. Nos trinta anos que Carmem convivia na fa-
mília Ramos, só vira Machado uma única vez, num almoço
que ela preparara para o seu sogro, que viera do interior
para um tratamento de saúde. Helena, convidada, com-
pareceu com o marido, para surpresa geral. Machado era
alto e forte, embora já um tanto quebradão, muito falante,
justificava as suas constantes ausências por motivo de via-
gens, dizendo ao sogro e demais presentes que trabalhava
O retrato e as flores

no serviço secreto e vivia caçando comunistas. Contava seu


método infalível para descobrir os “vermelhos”, pois se dis-
farçava em vendedor de livros e ficava puxando conversa
até que conseguia captar a ideologia do cliente para de-
nunciar ao Exército. Machado era militar reformado, mas
nunca alcançara o oficialato.
Carmem observava o rosto sério do sogro, velho co-
ronel do sertão, que parecia bastante incomodado com
aquela conversa claramente inverídica. Ela também não
gostava de passar por boba; resolveu, então, fazer uma
pergunta fatal. “Como é, Machado, você se apresenta
como vendedor de livros, sem ser, e se a pessoa quiser
comprar os livros, o que é que você faz?” Ele ficou atrapa-
lhado, todos riram muito, só a esposa não entendeu.
Mas, na hora da sobremesa, Machado serviu Helena
com um farto bocado do “pudim do céu” e, carinhosa-
mente, deu-lhe na boca às colheradas. Helena ficou mais
no céu do que o pudim! As senhoras presentes, com uma
pitada de inveja, mas encantadas, olhavam para os mari-
dos esperando em vão igual gesto de amor.
Mesmo restaurada a democracia no País, Machado
continuava perseguindo os comunistas! Até que morreu
na casa da outra e só comunicaram a Helena vários dias
depois do falecimento. Procurou, então, o cartório para
obter a certidão de óbito necessária para requerer a pen-
são de viúva junto ao Exército. Qual não foi a surpresa, lá
encontrou o filho de Machado, Robson, com 36 anos de
idade! Que decepção! Mesmo assim, o retrato continuou
venerado na sala porque a culpada foi aquela mulher que
tirou Machado do bom caminho.
Pensão dividida, mas Machado continuou recebendo
o carinho das duas até na ornamentação do seu túmulo.
Cada uma levava as flores que sabia (ou pensava que sa-
bia) serem da preferência do finado. Evidentemente flo-

478
Margarida Cantarelli

res diferentes – rosas amarelas levava Helena, gladíolos


brancos, a outra. Talvez a última opção decorresse do pre-
ço, os gladíolos são mais baratos.
Mas, voltando ao Natal, Carmem, com as rosas amare-
las, dirigiu-se ao túmulo de Machado. Andou toda a Rua
da Irmandade das Almas e não o localizou. Espantada, vol-
tou, procurando atentamente, quando se lembrou de um
detalhe. Helena mandara fazer uma casinha para proteger
as velas de sete dias que acendia regularmente, na certe-
za de bem iluminar os caminhos do amado no Além. Pelo
detalhe, achou o túmulo – aberto e vazio. Primeiro o sus-
to: Machado mudou-se sem avisar. Depois, a preocupação,
como dizer a Helena o desaparecimento do finado.
Imediatamente, dirigiu-se à Secretaria do Cemitério
para saber o que ocorrera. Foi atendida por um burocrata
de plantão, um tanto mal-humorado, talvez por ainda estar
trabalhando naquela data, afinal ninguém está obrigado a
morrer no horário do expediente e pode até acontecer um
infausto acontecimento em data festiva. Pediu-lhe, quase
rosnando, que apresentasse a certidão de óbito. “Ora, se-
nhor, retrucou Carmem, o morto não era meu marido,
nem certidão de óbito é documento que se ande na bolsa
numa véspera de Natal.” Sem o nome completo, nem a
data do sepultamento, nada poderia ser feito.
Com as rosas amarelas sem dono, resolveu depositá-
las num túmulo esquecido pelos vivos.
Chegando em casa, telefonou imediatamente para as
outras cunhadas no interior e obteve as informações, mas
pediu-lhes que não contassem à Helena o sucedido. Para
que estragar o seu Natal?
Passadas as Festas, volta Carmem ao cemitério e, na se-
cretaria, satisfaz as exigências do funcionário, até que en-
contraram o assentamento. Os ossos de Machado foram
retirados pelo seu filho Robson e levados para a Matriz
das Graças.

479
O retrato e as flores

Carmem conversou com alguns familiares e uma so-


brinha, Elza, lembrava-se que vira um certo dia, há muito
tempo, Machado muito contrito na mesma igreja, entre
os jazigos. Certamente ali não estaria procurando os co-
munistas! Sem que ele a visse, tão logo se afastou, curiosa-
mente foi ver por quem aquele ímpio estaria rezando. No
túmulo estava inscrito um nome feminino e pelas datas de
nascimento e óbito, teria morrido aos doze anos. Tudo le-
vava a crer que era sua filha que, alguém comentara, teria
morrido num acidente.
O círculo estava fechado. Carmem resolveu ir com
Elza à igreja indicada. Ao perguntarem à zeladora sobre
a possível e recente vinda dos ossos de Machado e onde
estariam, a velha senhora ficou reticente, não se lembrava
bem. Carmem clareou-lhe a memória dizendo que lera
o registro no cemitério de Santo Amaro e que constava o
filho do finado como responsável. Concluiu, com velada
ameaça, que se não encontrasse ali quem procurava, iria à
prefeitura para denunciar o desaparecimento dos ossos, o
que seria muito grave.
A zeladora, temendo ser envolvida num escândalo dos
ossos sumidos, resolveu ser cooperativa. Levou-as até o
jazigo que Elza já conhecia, o mesmo nome estava lá ins-
crito. Não havia lápide com o nome de Machado. A pia
senhora observou que o mármore ainda não havia sido
vedado e perguntou se as duas queriam ver se realmente
Machado estava ali.
Claro que tal oferecimento nada tem de agradável, mas
missão é missão. Constrangidamente aceitaram e logo as
argolas foram torcidas com um rangido de arrepiar, a pe-
dra removida e uma visão aterradora – uma enorme tíbia
bem comprovava que pertencera a Machado! Não refeitas
do choque, ouviram o comentário da zeladora, “deve ser
ele mesmo, ainda está cheirando a álcool”.

480
Margarida Cantarelli

Se não bebeu em vida, Machado ficou embebido de-


pois de morto. Finalmente conseguiram separá-lo da po-
bre Helena, para quem restou o retrato pendurando na
moldura oval, enquanto Machado dorme para sempre es-
condido num túmulo sem nome e sem rosas amarelas.

481
O bruxo de Santiago
Maria de Lourdes Hortas

Naquele mês de julho, em Braga, mal conseguindo res-


pirar, andava pelas ruas apressadamente como se cami-
nhasse num forno. Tinha hábitos de clima quente, desde
menina morava no Recife, mas o calor seco do verão lon-
ge do mar deixava-me inquieta, sentia-me fechada numa
campânula de vidro, nenhuma brisa que me afagasse os
cabelos. A cidade estava semideserta. Grande parte dos
seus habitantes havia se evadido para os lados do mar. Pe-
los bancos das praças, aqui e ali, divisavam-se apenas al-
guns velhos, recobrando o fôlego, à sombra das árvores.
Para mim, chegar à galeria era sempre uma delícia.
Ali, o ambiente mantinha-se fresco como em adega ou
claustro, por conta das grossas paredes de granito, exa-
lando frio e silêncio, armaduras contra o sol.
Ermelinda, minha sócia, havia partido de férias para
as ilhas dos Açores. Quanto às minhas, eram sempre em
Portugal. Há algum tempo aproveitava-as para dar um
pouco de atenção à Galeria de Arte que partilhava com
ela. Assim, com a animação de quem chega à terra, não
conseguia dar ouvidos aos conselhos de Ermelinda, que
sempre fechava as portas da Galeria nos meses de verão
– segundo ela, mau período para negócios, sem qualquer
movimento, raro o turista que ali aportava, pausa à som-
bra, refúgio breve em fuga ao sol escaldante, apenas para
mexer nas peças, dar uma vista de olhos aos quadros, cha-
tear e partir de mãos vazias.
Maria de Lourdes Hortas

Julho passava lento, com tardes imensas e redondas, a


caminho do pôr de sol vermelho, que me esperava à saída
e que era a melhor parte do dia inteiro. Depois de duas
semanas, começava a dar razão a Ermelinda. Pouca gente
entrava na loja. E os poucos que vinham, por vezes em bus-
ca de um presente, escolhiam alguma coisa, mas acabavam
adiando a compra para quando voltasse a outra senhora.
Assim, ao longo da tarde, acabava por me entediar, ora
folheando catálogos, ora deambulando pela sala, como se
andasse em via-sacra por corredores de museu, detendo-
me, passo a passo, nas telas expostas.
Daquele tempo, na lembrança, restou apenas uma tar-
de.
Sentada em frente à escrivaninha, folheava um livro
de arte quando, à minha frente, surgiu, sabe-se lá vindo
de onde, um estranho visitante, com dois galgos enormes,
presos por grossas e pesadas correntes, ruído que prolon-
gou o tilintar da sineta da porta, fazendo-me dar um sal-
to, assustada.
Parecia personagem de filme. Lembrava um cigano:
vestia-se todo de negro, era alto, belo, menos de cinquen-
ta anos, muito moreno, cabelos escuros, olhos fundos.
Sua voz ressoou breve. Seria um cumprimento ou um
mantra? Na verdade, tudo pareceu transformar-se, como se
a penumbra se acentuasse e outra dimensão fosse instaura-
da, apenas uma réstia de luz a focá-lo, como a uma visão.
– Vim fazer uma visita. A dona da Galeria não está?
– Uma delas, não. Foi de férias. Mas a outra, sim: em
que posso servi-lo?
– Ah, que interessante, uma brasileira…
– Quase. Na verdade, luso-brasileira.
Percebeu por certo o meu receio, talvez pelo olhar en-
viesado que eu atirava aos galgos, enquanto me entrin-
cheirava atrás da mesa.

483
O bruxo de Santiago

Com um gesto, ordenou-lhes que se deitassem, e os cães,


suspirando, prontamente se estiraram na frieza do chão.
Também eu suspirei, sorrindo aliviada e só então per-
cebendo o rolo de cartolina que o visitante trazia debaixo
do braço.
– Não vim comprar nada. Sou artista. Trago aqui uns
desenhos a nanquim para mostrar. Posso?
Sobre a mesa pesadamente atirou o rolo de papel: lâ-
minas com desenhos de cartas de tarô.
– Interessante…
– Gosta de tarô?
Disse que sim, eu acho. Não me lembro bem. Mas me
recordo perfeitamente do que ele, à queima-roupa, reve-
lou:
– Sou um bruxo!
Se o sujeito não fosse tão impressionante, eu podia ter
desatado numa risada. Mas tal não aconteceu. Para ser
sincera, tremi nas bases. Tentei mostrar serenidade, fingir
indiferença à revelação. Desde o início, captara nele algu-
ma coisa sobrenatural, que me intimidava, como se o seu
olhar fosse uma espécie de rede, malha invisível, pronta
a me tolher.
Os cães adormecidos sobre a laje do chão. A penum-
bra da loja. A réstia de luz incidindo sobre a cabeça do
estranho. Nós dois ali sozinhos.
Mantive-me em silêncio, peguei um catálogo sobre a
escrivaninha, abanei-me, trêmula. Vislumbrei no breve
sorriso do mago uma nuance de sedução, os olhos chis-
pando diamantes no rosto moreno. Que fazer para cortar
aquele encanto? Sentia-me estremecer, lânguida. Então
voltei a examinar os desenhos, passando as folhas deva-
gar. E foi aí que o bruxo escolheu uma carta:
– Esta é a sua. O carro. Representa o seu momento.
Muitas coisas se estão a desenrolar.

484
Maria de Lourdes Hortas

Os meus dentes quase se batiam, como se eu tivesse


febre ou frio. A boca, enrijecida e seca, mal me permitia
articular as palavras. Fiz um esforço para dizer:
– Talvez…
– Talvez? – repetiu ele. E riu alto, sonora gargalhada
ribombando entre as paredes. – Certamente, senhora, há
mudanças em andamento!
Os cães confirmaram, também eles mudando de posi-
ção, abrindo os grandes olhos e arrastando as correntes.
O bruxo encarou-me:
– Na verdade, Maria, eu sabia de si, compreende? Es-
perava-a. Hoje vim conhecê-la. Sei que no Brasil as pes-
soas são muito místicas. E por isso a minha conversa não
lhe soará com estranheza. Digo-lhe mais, aqui ninguém
sabe de mim.
Outra vez o silêncio se instaurou, apenas sublinhado
pela funda respiração dos cães, que voltaram a mergulhar
no sono.
Então, perguntou-me:
– Já ouviu falar no caminho de Santiago?
– Sim… vagamente… Acho que li algo acerca…
Respondia para ganhar tempo. Na verdade o pânico
me sufocava.
Acercou-se. Esticou as mãos e tocou as minhas, gesto
de inexplicável intimidade.
– Gostaria de acompanhar-me? – perguntou.
Impacientei-me. A estranha visita prolongava-se por
demais. Precisava dar-lhe a volta, pô-lo no seu lugar e eu
assumir o meu, com profissionalismo.
– Já fui a Santiago. De carro, obviamente. Não tenho
coragem para essas peregrinações...
– Pois olhe que é uma pena. Certamente gostaria. Há
coisas que só são possíveis uma vez na vida. E se as deixa-
mos escapar, adeus, jamais regressam.

485
O bruxo de Santiago

Decidi, de uma vez por todas, dar um fim à palestra.


Sorri polidamente:
– Além de artista e bruxo o senhor também parece
filósofo...
Tentei um tom social, precisava parecer despreocu­
pada:
– Desculpe, senhor, mas aceita água, ou um chá gela-
do...
Sem demonstrar qualquer tipo de sentimento, o ho-
mem apenas disse:
– Ah... Água, sim, por favor...
Para atendê-lo, dirigi-me à salinha contígua, espécie
de copa. De lá, disse:
– Deixe ficar os desenhos... Será um prazer mostrá-
los... Como é mesmo o seu nome?
De volta, com o copo de água na bandejinha de prata,
não encontrei ninguém. Bruxo e cães haviam sumido do
mesmo modo como surgiram.
A porta da galeria estava fechada. Sobre a mesa não
havia desenho algum.

486
Tio Zambelê
Maria Inêz Oludé

Era o segundo filho do seu Janu. Mestiço, de estatura


mais do que avantajada, muito magro, sempre sorridente
e desinibido. Arvorava um arzinho meio debochado no
canto dos lábios e uma ponta de desaforo no olho esquer-
do. Sempre olhava de soslaio, ficava um tempão mirando
os meninos, com os dentes de fora. Para vê-los melhor –
argumentava –, mangando da curiosidade deles. Às vezes
fixava o olho bem no meio da testa de um ou de outro, e
apostava pra ver quem piscava o olho primeiro.
Baixou à terra ninguém sabe direito em que ano, na
Fazenda Coqueiros. O sítio do avô Janu, melhor dizendo,
havia sido engenho, mas um dia houve uma enchente e
carregou tudo. As terras ficavam no Sertão de Pernam-
buco. Ficava, e diz que ficava, porque foi vendida, e terra
vendida é feito defunto, sempre se fala dela no passado.
Pode ser também porque Cão do Piutá tinha ido embora,
e quando se vai embora é como se tudo se adefuntasse e
virasse passado. Bem, sítio, fazenda ou engenho, o fato é
que era distante de uns trezentos e tantos quilômetros do
Recife. O que mais a impressionava era a cadeia de mon-
tanha paralela à estrada que levava aos sertões. A monta-
nha começava por Caruaru, descia, passava por Placas e
terminava na entrada de Sertânia.
Placas era um vilarejo onde seu pai, Zeca Diabo, traba-
lhava para o Ministério da Fazenda, ou seja, ele calculava
as cargas dos caminhões e aplicava o imposto. Bom, o vi-
larejo era um posto de gasolina, a casinha que represen-
Tio Zambelê

tava o prédio do imposto de rendas, um hotel que nem


merecia o nome, um restaurante na beira da estrada e
algumas casinhas de moradia. Pra dizer que nem cemité-
rio tinha, quem morria era levado pra ser enterrado em
Arcoverde onde o cemitério era de primeira, Placas era o
lugar onde Judas perdeu as botas, cruzamento das fron-
teiras entre Pernambuco e Bahia. Com estradas que iam
a Triunfo, Custódia, Recife, Algodões e Piutá. Piutá é a
famosa cidade do diabo do mesmo nome, conhecido em
todo o Estado. Daí veio seu apelido, Cão do Piutá, por ser
muito danada. Mas isso é outra história.
Talvez chamar de montanha seja exagero. Bem, era só
uma serra, não era nem tão alta, mas era longa, abarca-
va vários quilômetros, se perdia azulada no infinito e era
cheia de mistérios. No trajeto do Recife a Sertânia, de noi-
te, aí pelas madrugadas, quando se viajava de ônibus se
avistava a casa da fazenda de seu Janu, se podiam ver os
coqueiros enormes que separavam Cacimba de Cima e o
Rio da Baixa da Égua. Mesmo estando num sono ferra-
do, alguma coisa atraía a atenção no momento mesmo em
que se passava na frente das três casas que constituíam a
fazenda. Essa coisa acordava as pessoas. O viajante queria
fingir que não via, se impedir de olhar, mas era impossível.
O olho se abria teimoso e o jeito era olhar pela janela do
ônibus. Tentava se olhar, mas não se via nada, tanta era a
escuridão, a noite era escura que nem breu e assustadora.
Cão do Piutá ficava tentando perceber alguma sombra, o
coração saindo pela boca e a imaginação solta. O povo co-
chichava que tinha alma penada ou espírito de mungangá
que assombrava o lugar. Ninguém sabe! Uns diziam que
ali tinha morrido gente enforcada. Outros diziam que ou-
viam de noite os gritos dos negros que morreram no açoite
nas fazendas das redondezas. Isso fazia tempo, foi na épo-
ca dos escravos, seu avô nasceu naquela época.

488
Maria Inêz Oludé

Tio Zambelê contava que eles vinham chorar na fazen-


da porque seu Janu era muito bom com eles, falavam até
que ele era coiteiro de negro. Parece até que mais tarde
acoitava os cangaceiros que fugiam dos “macacos” de far-
da. Se contava muita história dos cangaceiros de Lampião
que se arranchavam na fazenda. O certo é que lhe metia
um medo danado. Mesmo até hoje, quando pensa nisso
lhe dá frio no espinhaço. Tio Zambelê afirmava que era
mesmo pelas judiações que fizeram aos negros, que eles
ainda estavam penando, desde a época da escravidão e
iam ficar ali chorando porque queriam voltar para a Áfri-
ca, mas sem saber direito para onde porque eles não sa-
biam nem de que parte os haviam arrancado. Ela ficava
com o coração apertado matutando sobre a maldade hu-
mana e nas tristezas que povoavam este lugar. A terra era
mal-assombrada mesmo, parece que havia até botija en-
terrada. Muita gente sonhava com estas botijas deixadas
pelos piratas holandeses e portugueses. Dona Julinha, ou
Corisco, como era mais conhecida por sua brabeza, tinha
sonhado que via dois paus-pereira e no meio deles a bo-
tija enterrada, mas nunca foi tentar desencavar o tesouro
dos flamengos que vagaram pelos sertões pernambucanos.
Cão do Piutá tinha o maior medo dessa escuridão quando
iam de férias, de noite não conseguia dormir, com medo,
e quando tinha vontade de mijar, não tinha santo que a fi-
zesse levantar para ir mijar naquele escuro. E se tivesse co-
bra no banheiro e mordesse sua bunda? Levantava nada,
quando não aguentava mais, ia fazer xixi debaixo da rede
de Lalai, a irmã mais nova. Ela que levava a culpa.
Tio Zambelê, o raizeiro, filho das brenhas do Sertão, co-
nhecia de cor os matos das caatingas e era amante de poesia,
sobretudo de cordel, além de puçangueiro. Seus dentes lon-
gos e perfeitos eram amarelados de mascar fumo de rolo e
cigarro de palha. No começo dos anos sessenta a família de

489
Tio Zambelê

Julinha Corisco morava em Sertânia e todos os sábados Tio


Zambelê ia à feira vender folhetos e puçanga, sempre leva-
va sua torradeira e se danava a cheirar torrado e a espirrar
muito para fazer rir os meninos. Aquilo ali era o ritual dos
sábados. Chegava cedinho, sempre com um sorriso nos den-
tes, a meninada corria aos gritos ao seu encontro, já com as
mãos estiradas pedindo um agrado: bença, Tio Zambelê! Ele
dava seu dinheiro mirrado a cada um, toma aí um “couro de
rato”. Saíam correndo alegres para comprar picolé ou puxa-
puxa. Quando Tio Zambelê não tinha dinheiro, abençoava a
todos, “Deus te dê fortuna”, “Deus te dê vergonha”, depois.
Ia até a cozinha, arriava o matolão no chão e se acocorava
nos calcanhares à maneira dos matutos do Sertão. Ficava ho-
ras assim contando histórias faceciosas e recitando folhetos.
Dona Julinha Corisco lhe dava café com queijo de coalho,
bolacha Maria ou Cream Cracker, ele adoçava o seu café com
rapadura e bebia fazendo um barulhão com os lábios. Tudo
isso para fazer graça. As piadas e histórias que ele contava
eram das brabas, e enxotavam a miunçaia pra rua para não
ficarem “sem-vergonhas”. Às vezes Cão do Piutá se escondia
no quarto ao lado da cozinha e escutava o que seu tio conta-
va: “Eu estava lá na feira e uma moça bonita e nova peitou
comigo no meio da rua. Ela pediu desculpa e eu disse: achei
foi bom, pode peitar de novo”. Caíam todos na gargalhada
com o enxerimento do Tio Zambelê, que já andava pelos
seus sessenta e tantos anos, com um magote de filhos já ca-
sados, avô há muito tempo e em vias de ser bisavô. Fim da
tarde, ia embora pra fazenda, deixava a todos com saudade
e com vontade que chegasse logo o dia da feira para vê-lo de
novo. Saía sempre cantando uma cantiga engraçada:

Eu fui pro céu fui


Aprender a rezar
Tinha tanto do pecado,
Que quiseram me pegar

490
Maria Inêz Oludé

Trajava roupa simples, calça cáqui, camisa vermelha e


preta de xadrez, alpercata de rabicho e chapéu de palha,
sertanejo legítimo. Não se separava de seu matolão, onde
carregava o seu maior tesouro: os folhetos que vendia na
feira e as raízes que receitava aos matutos, para curar todo
tipo de doenças: pereba, lombriga, panariço, espinhela
caída, dor de corno, coisa de mané-joão, ou seja, coisa
de mulher, menstruação. Tinha até um frasco cheio de
vermes e outras bruzundangas para demonstrar a eficá-
cia de suas puçangas. Num piscar de olhos curava com
reza mordida de qualquer cobra, da cascavel à jararaca,
passando pela coral e a cobra de bode, que segundo ele
se enroscava no pescoço da vítima e a enforcava até ma-
tar. As outras ele matava só com o pensamento, pra não
gastar reza à toa. Ferida braba, tuíta, ele tirava de letra,
bicheira nos animais desapareciam com o seu cuspe mi-
lagroso, igualzinho ao avô Janu, que também era curan-
deiro. Se pode dizer que a família toda tinha dons para
curar: quem não acreditar pode ir perguntar se Corisco
não curava até unha encravada dos doutores de Sertânia,
sem falar dos pés de atleta dos jogadores do futebol do
Clube América, entre outras curubas sem resolvência pela
Medicina. Tio Zambelê desenrolava seu verbo no meio da
matutada, que, embevecida, aplaudia tanta sapiência.
Bom, não se pode dizer que ele rejeitasse totalmente a
Medicina, se acontecia de ter uma dor de cabeça ia direto na
Aspirina, e pelo que falavam era muito pirangueiro, então
amarrava um cachete num cordão, engolia, quando passava
a dor de cabeça, desengolia a pílula, enrolava numa palha
de milho e guardava numa latinha para outras serventias.
Pois sim, era meio sovina, pão-duro, mão fechada.
Quando voltava da feira, botava os mantimentos em cima
da mesa, se sentava, pegava um canivete e cortava os pa-
litos de fósforos em quatro, sim, senhor, “a economia é a
arma do negócio” ironizava rindo.

491
Tio Zambelê

Chegava na cidade bem cedo, montado num jumento


e, em razão de sua estatura avantajada, ficava bem maior
do que o animal. Cavalgava lentamente pelas ruas, as per-
nas meio encolhidas para não arrastar no chão. “Bom-dia
dona Menina praqui, bom-dia dona Fulana prali, como vai
comadre Sicrana, sabe quem morreu? Beltrano! – de barriga
d’água. Não deu tempo de ir ao hospital, quando eu cheguei
com o chá de aroeira, já tinha morrido. Sem a bença do
padre, sem confissão, era um herege, nunca confessou seus
pecados, não gostava de homem de saia.” E cantava:

Nasceu, padeceu, morreu…


Sepultou, a terra come…
Isso é certo acontecê,
Seja muié, seja home
Mas cantadô dexa a fama
Sempre se fala no nome

Continuava sorridente e comunicativo, debaixo do sol


do meio-dia que assolava o Sertão, os olhos mareados, a
cabeça meio tonta. Mais adiante, passava uma moça de
minissaia, era o começo da moda de minissaia, ele abria
os dentes num sorriso debochado, largava um verso tira-
do dos folhetos que conhecia de cor e salteado:

Só nos falta vê agora


Dá carrapato em farinha
Cobra com bicho-de-pé
Foice metida em bainha
Caçote criar bigode
Tarrafa feita sem linha

A moça zangava-se e o esculhambava de velho safado,


enxerido: “Vai catar piolho em macaco, num tem vergo-
nha, não? Troço ruim! Tu é de nada, velho froxo!”.

492
Maria Inêz Oludé

Ele era casado com dona Dinha e morava na Barrigu-


da, fazenda vizinha aos Coqueiros. Terra quase sem nada,
seca e quente, só dava as mixarias para a subsistência pre-
cária: feijão, milho, melancia, alguns brebotes para tem-
perar a carne, e mel. Muito mel de uruçu! Era uma festa
quando iam com ele tirar mel dos troncos, ele lhes dava a
cera para chupar e ficavam horas ali, em torno dele, me-
lados até o caroço dos olhos.
Teve doze filhos com dona Dinha. A Mirandalva era a
mais velha, alta, seca e despinguelada como o Tio Zam-
belê. Morou um tempo na casa da Tia Julinha Corisco e
se enrabichou pelo Zeca-Diabo, só que a tia ficava ali de
olho e não dava brecha pra Mirandalva se enxerir. Tinha
arranjado um noivo vinte anos mais velho do que ela, um
bom partido, mas ela andou se fazendo de difícil e o re-
sultado é que o noivo pegou a estrada e casou com outra.
Terminou a Mirandalva ficando no caritó, mas fazia um
feijão temperado com nata que era de lamber os beiços.
Todos gostavam muito do primo mais velho, o Redival-
do, era gigante, quase dois metros, com umas mãos e uns
pés enormes. Calçava sapatos de encomenda, feito o Félix
Canoa, primo do Zeca-Diabo, pois não existia número para
o tamanho do pé dele. Redivaldo comia feito um regimen-
to, muito mesmo. Quando estava sentado à mesa almoçan-
do, a meninada começava a fazer graça com ele:
– Tio, cadê o Redivaldo?
– Num vi, não, já olharam detrás do prato? – respon-
dia perguntando o Tio Zambelê. Isso provocava a maior
risadagem na meninada, sobrinhos e netos, que se ani-
nhava pela casa na época das férias. A filha mais nova,
Generice, que foi pra São Paulo, um dia voltou moder-
na, era a época da tal da juventude transviada. Generice
era adoradora incondicional de Roberto Carlos. Se vestia
como ele: camisa branca de babado, muitos anéis, o cabelo
penteado espichado pro lado, calças boca de sino, cintu-

493
Tio Zambelê

rão larguíssimo com estrela prateada. Conhecia e cantava,


com voz anasalada, todas as músicas bregas do cantor. Po-
rém era bonita, com as pernas bem torneadas e cintura de
pilão. Isso atraía os rapazes de Sertânia. Eles ficavam ali
aperuando em volta da casa com caras de tarados. Minha
mãe ficava braba e botava eles para correr: “Cambada de
sem-vergonhas, vão pra baixa da égua, fora!”. O resto da
miunçaia de Tio Zambelê foi se espalhando entre uma ci-
dade e outra, vivendo vida besta e sem importância, sem
atropelos. Casaram, tiveram filhos e netos, sem alarido.
Quando descobriram que Tio Zambelê havia arran-
jado um “biraia” na qual emprenhou nove buchos, vira-
ram feras. A cabrocha era nova e morava nas brenhas da
Barrigudinha, um outro sítio nos limites da Barriguda.
Predestinado, ali se fez mais menino que roçado. O fato
é que ele sumia aos domingos de tarde para ir vê-la, e,
na volta das estripulias, para disfarçar as façanhas, trazia
imbu, seriguela e frutas de palma pra janta. Se sentava
no terraço, descascava os imbus e dava às crianças para
comer com feijão: “imbu é que nem carne”, e nos divertia
com seus repentes:

Hoje tá fartando de tudo


Da massa à mandioca
Da pasta à fruta seca
Da mucunã ao anum
Do melhor de todas elas
E o gosto do jerimum
Quem já comeu peixe assado
Carne, farofa e angu
Saiba que, hoje, aqui só come
Arroz e feijão com imbu

Numa tarde de domingo voltou no maior espavento,


teve que confessar esbaforido, a venta acesa, que a sua

494
Maria Inêz Oludé

“amásia” estava morrendo, e de parto! Morreu mesmo.


Tio Zambelê andava pelos setenta e seis anos. Foi aí que
os primos descobriram a façanha. Estourou o maior bu-
ruçu na fazenda, ninguém conseguia acreditar, ficaram
todos aterrados pela ousadia do velho. Dona Dinha ficou
muito arretada da vida e prometia que ia acabar com a
vida dele e da outra. Cão do Piutá e a garotada ficavam
nos cantos se espremendo pra não rir, pois se a mulher
tinha morrido, como ia acabar com a vida dela? Trocando
em miúdo, o fundo da questão era mesmo a herança das
duas fazendas do tio, que não queriam compartilhar com
a “mundiça de bastardos”. “A Barriguda e a Barrigudinha
pertenceriam pra sempre aos filhos legítimos”, vociferava
dona Dinha, pronta para fazer uma chacina. “Que velho
descarado, onde já se viu tamanha desfeita?”
O fato é que a “senhora-dama” morreu de parto e dei-
xou nove filhos, e o recém-nascido estava precisando urgen-
te de ama de leite. Alguns dos meios-irmãos mais caridosos
adotaram os pequenos desvalidos, o bebê foi parar em Ar-
coverde, adotado por Teraciana. O Tio Né ficou com pena
e levou o Marreta de quatro anos e a Mocinha de treze para
o sítio dele, situado perto de Custódia. Mocinha, ninguém
nunca soube o nome de batismo, era aleijadinha de uma
perna. Foi uma injeção na bunda mal dada, tocou no nervo
ciático. A perna encolheu e andava de muleta pra equilibrar
a miséria com o descaso. Pobre é assim mesmo, não pode ter
nada ruim, senão piora. Ela dizia que não tinha sorte, que
se estivesse num lugar onde tinha dez mil pessoas e se pas-
sasse um urubu por ali, ele cagaria bem no meio da cabeça
dela. Os outros foram levados para o Recife, para a Febem.
Ficaram lá oito meses aprendendo as coisas que servem pra
vida. Escolinha cruel. Nesses oito meses viveram e cresce-
ram mais rápido do que permitia a natureza, saíram de lá
tristes e meio encolhidinhos pela violência da qual foram
vítimas e pela própria dureza que receberam da vida.

495
Tio Zambelê

Enquanto isso, Tio Zambelê corria de um lado pra ou-


tro procurando salvar os filhos das garras da mulher e dos
filhos legítimos. Batia de porta em porta procurando um
amigo que cuidasse dos “bichinhos”. Dois foram adotados
por um fazendeiro no Ceará. Com os outros meninos não
sei o que aconteceu.
No ano de 1980, depois da anistia, Cão do Piutá voltou
ao Brasil, foi passar o São João em Custódia, a uns trin-
ta quilômetros de Sertânia. Essa é outra cidade cheia de
histórias, mas não dá pra contar aqui, não, fica pra mais
tarde. Conheceu o Marreta, de quatro anos, sabido que
só o cão, dotado de força incrível para os seus aninhos e
seu tamanho, pois era miúdo e raquítico, mas muito bo-
nito e com sorriso parecido com o do Tio Zambelê. Ti-
nha herdado sua capacidade de divertir muito os outros
por pouco dinheiro. A “Aleijadinha”, sua irmã, foi ficando
meio corcunda de estar horas no terreiro escorada na sua
muleta, olhando com tristeza os outros brincarem. O Mar-
reta, como já disse, tinha uma força descomunal, quebrava
tijolos com as mãos, e um soco dele no estômago deixava
qualquer um sem fôlego. Quebro até sua cara no caratê,
ameaçava a todos com orgulho do que tinha aprendido na
Febem para sobreviver. Assobiava feito passarinho e adivi-
nhava de olhos fechados igualzinho aos mágicos de circo, e
ganhava algum dinheiro da molecada assobiando. Algum
tempo depois lhe caíram dois dentes, logo os da frente, e
não conseguia mais assobiar. Ficou muito desesperado de
ser banguela, achando que seu futuro de passarinho-can-
tor estava comprometido. Um dia, cedinho, Cão do Piutá
andava pelos matos atrás de ovos de codorna e encontrou
o Marreta acocorado detrás de uma moita treinando o as-
sobio que saía feito chaleira fervendo. Aproximou-se e ten-
tou dissipar a angústia do menino, explicando que eram os
dentes de leite, que acontecia com todo mundo de perder
os primeiros dentes, era só um tempo, depois os dentes de

496
Maria Inêz Oludé

osso nasceriam e ele poderia assobiar de novo feito pas-


sarinho. Não entendeu bem de onde os dentes poderiam
sair, mas achou que podia acreditar. Como todo mundo
usava ele de mico de circo, o moleque andava alimentan-
do sonho de ser artista, fazer disso sua profissão: “Vou ser
mágico! Tirar pombo do chapéu, tirar anel do bolso do
povo e assobiar pras moças na rua, vou pra o Recife­traba-
lhar na praça pra ganhar dinheiro! Vocês vão ver”. A gente
morria de rir de tão esperto que era o menino. Ficou me-
ses sem vê-los, até que voltou a Sertânia e foi andar pela
feira, como gostava de fazer, jogar conversa fora, comer
doce de batata e rever os conhecidos. Encontrou-se com o
Tio Zambelê, isso já depois do terceiro casamento. Estava
vendendo um folheto no qual anunciava a própria morte,
cantava que tinha morrido de uma queda do seu jumen-
to, que encalhou numa poça d’água, entortou uma perna,
matando-o:

Estou aqui morto, caído


Numa perna torta escorado
Nuzinho, com as mãos nos bolsos
Lendo um folheto sem letras
Que anuncia morte pro povo:
Estou lascado morrido
Mas volto pra aperrear
Vou tirar meu burro d’água
E de novo vou casar
Fazer muito filho e deitar
Na rede pra namorar

E o título do folheto era este mesmo:


É melhor morrer do que perder a vida.

497
A decisão
Maria Lúcia Chiappetta

Os anos de espera finalmente coroariam o amor de


Joana, quando conheceu Ricardo, ambos dispostos a per-
manecer fiéis e unidos por laços de ternura.
Sempre atraente nos ambientes mais seletivos, Joana
encontrara finalmente o par e, segundo a opinião geral, a
sua escolha recaiu em um dos rapazes mais conceituados
do curso frequentado por ambos – Engenharia Civil.
Poucos meses de conhecimento e o ardor e a aprova-
ção do romance foram favorecidos entre as duas famílias,
tanto que as mães dos nubentes se uniram para que a ce-
rimônia do casamento estivesse à altura do amor, da apro-
vação e satisfação dos familiares.
A secretária do pai de Joana – Margot – foi a escolhida
para auxiliar nos preparativos e sempre atenta aos mí-
nimos detalhes que estavam sendo programados. Joana,
dias alternados, pela manhã, ia ao consultório verificar o
andamento das decisões tomadas.
Cercada dos cuidados que a vida lhe favorecera, com a
família estruturada, curso em faculdade onde predominava
a elite, de beleza estonteante, Joana sequer avaliava a carga
de responsabilidade que recaía nos ombros de Margot, fran-
zina e de origem humilde. Uma surpreendente delicadeza,
ao lidar com todos, possibilitara à secretária a permanência
no trabalho do consultório, atuando com lisura e compe-
tência na execução das tarefas que lhe eram impostas.
O doutor Arthur era médico, especialista em doenças
tropicais, e delegou à Margot a tarefa de atender aos en-
Maria Lúcia Chiappetta

cargos que Joana vinha lhe cumulando: entendimentos


com a modista para a confecção do vestido de noiva, de-
coração da igreja, local em que o coquetel ia ser oferecido,
entre outros detalhes.
Uma manhã em que Joana não pôde cumprir a visita
habitual, Ricardo se comprometeu a ajudá-la.
Tocando a campainha, foi atendido prontamente por
Margot. E o impasse aconteceu. Defrontando-se com Ri-
cardo, a atendente estremeceu e pensou: “Este, o moço de
quem Joana está noiva?”.
Os olhos de ambos se encontraram em um vislumbre e
algo de novo pairou naquela visita inesperada. Com cer-
to nervosismo, cumprimentaram-se e um quê de emoção
acendeu-lhes as faces, mas mesmo assim cumpriram os
assuntos que pediam encaminhamento.
À porta do consultório, na despedida, Margot dei-
xou a caneta cair das mãos e uma lágrima esquiva brotou
no seu rosto, sem entender se de alegria ou de tristeza.
Vieram-lhe à mente os momentos que a vida ultimamen-
te lhe trouxera: trabalho, subsistência, cansaço, nenhum
alento e amor à existência. Sentia-se ave alijada do ninho,
induzida – sem nenhum tempo de maturação – ao de-
serto inóspito, sedenta da água da ternura e sem alguém
que lhe abrandasse a sede. E o mais estranho, nunca lhe
acontecera antes, rever, observar os momentos que a vida
cruelmente impulsionara.
De modo semelhante, intrigado, Ricardo atravessou
a rua. O que lhe acontecera? Que olhos tão reveladores
– sem lhe dizer palavra – haviam tocado a sua sensibili-
dade? E iniciou-se um retrospecto: o que realmente sen-
tia por Joana? E, por que, à sua presença, o coração não
lhe batia forte, descontrolado? Um comprometimento
de amor e uma promessa devida a dois estavam sendo
obscurecidos por um olhar que, subitamente tremulando,
dava-lhe asas para o infinito? Tudo o que restava à concre-

499
A decisão

tização das bodas encontrava-se dentro das circunstâncias


de segurança, poder, boa companhia? E não havia intuído
antes? Talvez, o esgotamento do trabalho e os preparati-
vos o estavam conduzindo a tal “clima”, surgindo essas
estranhas emoções?
No dia seguinte, porém, pela manhã, um pretexto con-
duziu Ricardo ao consultório. E o surpreendente: o olhar
meigo, comovido de Margot o atraiu mais fortemente e o
levou a ficar parado, esquecendo os compromissos, pro-
curando documentos inexistentes na pasta de trabalho e
dando impressão de contratempo a solucionar. Margot,
de soslaio, a tudo observava. O timbre da voz de Ricardo
ressoava no seu íntimo. Tentou disfarçar as emoções qua-
se indisfarçáveis. Comunicou-lhe que os compromissos
com o consultório eram urgentes e precisava atendê-los.
O olhar de Ricardo cruzou o descontrole percebido em
Margot e, no embaraço que ambos sentiam, as mãos se
tocaram e houve um instante em que a sutileza do contato
formalizou o enlevo.
Desprendendo-se, por um impulso, Margot saiu da
sala, dissimulando agendar algumas consultas, deixando
Ricardo sem explicação.
Ouviu quando ele falou:
– Amanhã cedo, estarei aqui.
Na mesma noite, encontrando-se com a noiva, disse-
lhe ser mais conveniente intermediar um seu empregado
que trataria dos preparativos finais. Ela ficasse tranquila;
tudo estava se autodeterminando.
No dia seguinte, logo cedo, Ricardo assoma à porta do
consultório. E, em silêncio, espera. Com rapidez, Margot
lhe abre a porta. Conduzindo a uma sala reservada, Ricar-
do fala à Margot, na sua bela entonação de voz:
– Estou aqui conforme seu desejo.
Margot aguarda paralisada, enquanto ele anuncia:

500
Maria Lúcia Chiappetta

– Ficarei nesta sala, até compreender o que nos fasci-


na!
Desejando disfarçar o impacto, atingida no sentimen-
to, ela retruca com voz trêmula:
– É melhor o senhor vir em outro momento. Um pa­
ciente está prestes a chegar para marcar consulta.
Ele a prende nos braços e revela:
– Sou este paciente, cuja paixão me tortura e da qual
não posso me desvencilhar.
Ela, antes calada e estremecida, interroga-lhe aturdida:
– E eu serei a outra metade deste paciente, atingida
por sonho ou pesadelo?
Com a sofreguidão que o carinho e a força da ternura
desencadearam, os dois caem em um êxtase.
E de que modo solucionar o impasse? Os convites in-
dicavam a data nos próximos dez dias.
Sucederam-se oito manhãs com o encontro e a ardên-
cia incontidos, impelidos pelo impacto que o amor sem-
pre provoca.
E, na véspera da cerimônia, procurando o noivo e a se-
cretária, Joana encontrou um bilhete intempestivo, desola-
dor, escrito por Ricardo e alguns convites rasurados.

501
Luna
Mário Márcio

Antes dos acontecimentos de 1927, Luís Pedro salien-


tava-se entre os proprietários rurais de Garanhuns, pois
era exímio domador de cavalos. Morava só. Estava com
25 anos e cuidava das terras que herdara, uma pequena
fazenda de nome Varame.
Levava uma vida que pouco se diferenciava da dos de-
mais criadores. Pela manhã, tirava o leite das vacas e das
cabras. À tarde, chiqueirava o gado. Aboiava na porteira do
curral, tangia garrotes, apartava bezerros. Sobrando tem-
po, dava umas enxadadas nos roçados de milho e feijão.
Varame ficava em Brejo das Flores. Tinha bom pasto,
água perene e açude. A terra dava roça. Homem trabalha-
dor, o aceiro em torno da casa vivia limpo e as imburanas,
estacas seguras, rebentavam em galhos vivos e esparsados.
Ao entardecer, na hora de recolher o gado, parecia descer
um manto de paz a proteger as matas, os cercados, o açu-
de. Bandos de papagaios passavam, com destino a pousos
longínquos. As sombras começavam a cobrir os pontos de
luz que se filtravam entre as copas das árvores.
A casa, cercada de terraços, estava separada do chiquei-
ro das cabras por uma cancela que levava ao roçado.
Luís Pedro trabalhava de sol a sol, de segunda a sexta.
No sábado ia à feira de Garanhuns, vendia alguns garro-
tes e tomava umas cervejas na pensão de Pombinha. Do-
mingo, dia de descanso, nunca faltava serviço: remendar
alpercatas, botar cunha nas enxadas. Depois, de cócoras,
cuia d’água ao lado, amolava a foice na pedra encravada
Mário Márcio

nas raízes da burra-leiteira. Após afiar o gume, enxugava-a


numa estopa velha.
Fim de semana havia festa nas propriedades vizinhas:
buchadas, cachaça, enquanto os vaqueiros mais famosos
amansavam os potros. Luís Pedro era tido como o melhor.
Conquistara a posição na festa de Santana, ano anterior,
no sítio de João Barrego. Mais de vinte cavaleiros esta-
vam espalhados no pátio da casa-grande. Descansavam
do almoço à sombra das árvores, uns a conversar, outros
modorrando.
João Barrego esperou que fizessem a digestão e desa-
fiou-os a domar uma potra arisca.
– Quem não tem boa perna – avisou – não se atreva. A
putinha é tinhosa.
Dois dos mais afoitos tentaram e foram jogados ao
chão. Luís Pedro resolveu enfrentá-la.
– Não custa ver.
Montou a égua já selada e deu garra ao freio. Encostou
com força as esporas no vão do animal, que saiu aos coi-
ces, aos saltos, de pescoço arqueado. O chicote cobriu-lhe
a anca acompanhando o movimento do braço e chegando-
lhe sem piedade as esporas. Deu-lhe mais umas fortes chi-
cotadas e a potra encolheu-se toda, de rabo entre as pernas
feito cachorro espancado. Por fim, desmontou. Curvou-lhe
o pescoço e assentou-lhe os dentes numa das orelhas. Ela
deu uma popa e tomou a direção do curral. Estava pronta.
Luís Pedro tinha reputação de ser trabalhador e des-
temido.
Uma série de acontecimentos veio mudar-lhe a vida.
O que sucedeu – apesar de estranho, misterioso e de cer-
ta forma inexplicável – nada teve a ver com uma escolha
consciente ou alguma relação com o livre-arbítrio.
Segundo ele próprio veio a reconhecer, tudo começou
naquela noite fria de inverno, na viagem a Brejão. O céu

503
Luna

estava carregado e a temperatura caíra. As árvores se con-


torciam. Folhas rodopiavam empurradas pelo vento. Ao
norte, as serras arroxeadas pelo reflexo das nuvens, quase
não se distinguiam destas.
O cavalo vencia o caminho, a subir e descer lombadas,
passando do barro à areia. Na mata escura do Brejão, in-
trincada qual túnel estreito, de folhas e cipós, dificilmen-
te passava um raio de sol. Quando em vez, abria-se uma
clareira e descampados arredondavam-se nos plainos. So-
bre um declive escuro, a luz prateada da lua deixava cair
reflexos fantasmagóricos. O cavalo parou sem atender ao
leve toque das esporas. Luís Pedro puxou as rédeas, mas
ele arqueou o pescoço. Estava com medo e o pavor trans-
mitiu-se ao cavaleiro, que reagiu chegando-lhe as rosetas
ao bucho, enquanto o rebenque estalava na anca enxuta.
Próximo a um pé de quipapá, debaixo dos galhos de um
umbuzeiro, via-se uma silhueta quase diluída na obscuri-
dade e que aparentava pairar acima do solo. Tinha uma
forma alongada e parecia carregar uma tampa escura
onde brilhavam enfeites de metal. O vaqueiro sentiu um
frio nas entranhas. Quis retroceder. Uma vontade mais
forte do que o terror o reteve. Nesse momento, estalando
garranchos secos, viu que alguém levava um caixão mor-
tuário. Achou estranho, mas sentiu um alívio ao perceber
que não havia motivos de receio. Passado um instante, vol-
tou ao estado anterior ao examinar a face do homem. Os
olhos brilhavam numa cintilação sinistra, pele amarelada,
sem vida. Os lóbulos das orelhas, ao contrário, tinham um
vermelho quase cor de sangue. O mais terrível era a boca,
contraída num riso maligno, sombrio, porém aliciante, a
convidá-lo para seguir com ele. Os olhos amarelos lem-
bravam os de uma pantera e brilhavam com uma expres-
são de indescritível ódio. As mãos que seguravam o ataú-
de tinham uma cor esverdeada. O carregador e o esquife

504
Mário Márcio

logo desapareceram mata adentro. O cavalo aquietou-se e


Luís Pedro, apesar de leve arrepio, continuou viagem até
Brejão, onde pretendia vender meia dúzia de garrotes.
Não pôde esquecer o riso mau e o convite implícito. Nun-
ca vira nada semelhante. Por um instante sentiu penetrar
em outro universo, num mundo de sombras, perverso,
malévolo, outra dimensão.
Em Brejão, no dia seguinte, resolveu o negócio do
gado e foi tomar uma cerveja na pensão de Lola. Lola
tinha novidades. Aparecera um grupo de retirantes. Uma
moça ficara com ela, mas não queria “fazer a vida”. Era
bonita, esquiva, falava pouco, não se preocupava em agra-
dar. Luís Pedro ficou curioso. Quis vê-la. Lola o levou à
sala de jantar onde a jovem estava de pé, em frente à ja-
nela que dava para o quintal, a examinar as mangueiras e
os cajueiros. Tinha um porte altivo e uma fria indiferença.
Alva, de uns 18 a 20 anos, brincos nas orelhas, cabelos cas-
tanhos, compridos. O que mais chamava a atenção eram
os olhos rasgados, de um azul esverdeado, num rosto de
linhas suaves, a denotar um aristocrático desprezo.
Luís Pedro sentiu-se atraído e, ao mesmo tempo, in-
seguro em face daquele olhar que parecia devassá-lo com
gélida determinação. Confiante nas palavras de Lola de
que ela não queria “fazer a vida”, aproximou-se, e disse,
fitando-a no rosto:
– Soube que vosmecê não quer ser mulher-dama.
Ela o encarou, segura de si, como se medisse e pesasse
cada uma daquelas palavras. O exame parecia não mais
findar.
Encorajado pelo silêncio, continuou:
– Se é... – fez uma pausa. Tentou decifrar qual seria a
reação. – Quer morar comigo? Sou solteiro, vivo só.
Ela tornou a olhá-lo. Por fim, respondeu de forma sim-
ples e natural.

505
Luna

– Sim, quero.
Disse-lhe o nome. Luna. Não explicou de onde viera,
se tinha família ou se lhe restava algum parente. Tudo
quanto trazia estava numa trouxa de pano que colocou
nas pernas ao se sentar na garupa do cavalo.
A viagem até Varame só não transcorreu em silêncio
porque Luís Pedro falou sobre o tempo e as coisas que os
rodeavam. Ela se limitava a responder: sim, não. Ao ver
serem inúteis as tentativas de fazê-la conversar, calou-se.
Estava feliz. Luna era retraída, mas conformou-se. Me-
lhor. Quem gosta de mulher tagarela? A verdade é que
levava consigo uma moça bonita. Mais bonita que a do
calendário da fábrica Lafaiete: cabelos castanhos escuros,
pele suave. Estava apaixonado e tinha vontade de beijar
as mãos que o seguravam pelas costas para não cair da
montaria.
Entardecia quanto avistaram Varame. O azul profundo
do céu luzia por cima da copa das árvores e o chão cor de
telha tomava forma entre as sombras da mataria. Os pás-
saros cantavam. O ar estava cheio do tilintar alegre dos
chocalhos das vacas, que aqui, ali, nas encostas, pastavam
o capim curto e cálido dos prados. Mais adiante, avistaram
a porteira. Luís Pedro apontou mostrando a casa em que
ela ia morar. Neste momento, súbito, tudo mudou. Nu-
vens cinzentas surgiram por cima dos serrotes que circun-
davam as terras da fazenda. Um vento frio, cortante, an-
tecedeu a chuva que não tardou a cair, seguida de muitos
raios e trovões. Chegaram molhados. O vaqueiro levou-a
à camarinha. Havia pouca coisa. Um baú, um jirau cober-
to por um lençol de chita rosa, velho, puído. Na parede,
uma estampa de São Sebastião com o tronco transpassado
por dardos e flechas. Luna examinou sem nada comentar.
Ele saiu. Foi esquentar a água do café. Ela aproveitou para
trocar a roupa e livrar-se do vestido molhado.

506
Mário Márcio

A vida em comum do fazendeiro e da retirante passou


a transcorrer num plano de quase normalidade. A mulher,
boa cozinheira, cuidava da casa, mantinha-a limpa, arru-
mada. Nunca falou da vida que levara antes, dos parentes
ou de sua terra. Também não fazia perguntas. Tinha uma
sensualidade ardente, avassaladora, mas egoísta. Recebia,
não dava. Vibrava, de forma histérica, sem se preocupar
em retribuir. Gostava de ficar só. À noite tomava banho
no açude. Não deixava o amante acompanhá-la. Aos pou-
cos, delimitou seu espaço. Mesmo frustrado, Luís Pedro
teve de viver com uma criatura a quem realmente não co-
nhecia. Tentou estabelecer uma cumplicidade. Falava de
seus desejos e ambições. Ela ouvia com atenção, mas nada
dizia. Bastava-se a si mesma. Recebia a acolhida, os cuida-
dos e carinhos como coisas devidas, óbvias, naturais.
Luís Pedro, ao passar dos dias, ficava cada vez mais
apaixonado. Pior. Dependia dela, das promessas silen-
ciosas daqueles olhos profundos como abismos, daquele
corpo, do calor que recebia nas noites frias da camarinha.
Mas a paixão não lhe dava segurança ou felicidade. Ao
contrário. Em Luna parecia existir uma força potencial-
mente letal, que provocava uma reação instintiva de pa-
vor. Pavor absoluto, sem justificativa lógica, pois a aman-
te aparentava ser frágil, desamparada, sem parentes ou
amigos. O temor indefinível terminava por ganhar uma
forma crepuscular, quase onírica.
Certa vez, ao entardecer, quando ela ia tomar banho,
resolveu segui-la. Procurou não ser descoberto. Escondeu-
se por trás de uma touceira de bananeiras e viu-a despir-
se, colocar as roupas ao lado das chinelas. Subiu numa ro-
cha alta. Examinou cada margem antes de mergulhar. O
açude refletia a luz da lua cheia, a pousar límpida como as
fontes da montanha. Luna tinha um corpo perfeito, que
se delineava de perfil, a salientar os seios e os cabelos lon-

507
Luna

gos até os ombros. Depois mergulhou, formando círculos


que ondeavam suavemente as águas até a orla sombreada.
Embevecido, Luís Pedro voltou. Tentou não fazer ruído.
Uma hora depois, já deitados, ela comentou:
– Nunca mais me siga. Não quero ninguém me vigian-
do.
Perguntou como descobrira.
Luna acomodou-se no travesseiro antes de responder:
– Essas coisas, eu sei.
Virou-se. Não deixou que se aproximasse. Durante
muitos dias pouco se falaram. O silêncio os envolvia e do-
minava os pensamentos. Um triste silêncio. Desgastante.
Evitou segui-la ao açude. Resistiu muito tempo. Mas o
desejo de vê-la nua à beira das águas era forte. Certa noi-
te, não pôde se conter. Tomou os maiores cuidados para
não ser descoberto. Espreitou-a. A lua clareava por sobre
a mataria alta. Refletia-se na água e o paredão onde ela se
despia assemelhava-se a uma larga lâmina de aço polido.
Vaga-lumes salpicavam no céu pequenos riscos de luz. Por
mais que procurasse não a encontrou. Tinha se perdido
nas sombras negras da noite. Com cuidado, procurou evi-
tar o estalido das alpercatas sobre a garrancheira, atra-
vessou uma vereda perto do imbuzeiro. Logo em seguida,
avistou uma onça pintada, os dentes brancos, ameaçado-
res, a boca franzida num esgar hostil. Parecia esperá-lo.
Desarmado, Luís Pedro retrocedeu.
Mais tarde, na hora de se deitarem, ela voltou a adver-
ti-lo:
– Disse que não me seguisse. Da próxima vez, a onça
te pega.
E entrou na camarinha, altiva, orgulhosa, inacessível.
Surpreso, pediu um esclarecimento:
– Quem te falou da onça?
Limitou-se a dizer:

508
Mário Márcio

– Eu sei.
Deitou-se e afastou com firmeza a mão que tentava se-
gurar-lhe o seio. Apanhou o candeeiro. Quando ia apagar
a chama, Luís Pedro teve tempo de ver-lhe os olhos. A cor
deles combinava entre o azul esverdeado e o preto. Olhos
capazes de envolvê-lo em trevas misteriosas. Por uma fra-
ção de segundo, sentiu que eram frios e aquele verde es-
curo delatava a existência de uma outra vida à qual jamais
teria acesso.
Apesar de adestrar potros bravos, achava-se impotente
para se impor àquela mulher. Tinha certeza, se forças-
se, ela tornava a refazer a trouxa de roupa e ia embora,
da mesma forma decidida com que tinha vindo. Depen-
dia dela, mas Luna não dependia dele. Procurava-a uma,
duas, três vezes cada noite. No dia seguinte, ao vê-la na
cozinha a ferver a água do café, preparar o cuscuz ou co-
locar alpista nas gaiolas, tornava a desejá-la. Se pudesse
não saía de casa, deixava gado, roça, tudo. Deitaria a ca-
beça em seu ventre. Ficaria horas afagando-lhe o púbis,
alisando-lhe as coxas, beijando-a toda. Quando se afas-
tava de casa e abria a porteira, sentia-se dividido entre
o desejo de retornar à camarinha e a vontade de fugir,
libertar-se daquele sortilégio. Mudara muito. Aos poucos,
sentia perder a força, a energia, o ânimo. A continuar, daí
uns meses, o que lhe restasse de vitalidade seria consumi-
do na fornalha daqueles braços.
Emagreceu, ficou pálido. Fugia dos amigos, recusava
convites para festas e vaquejadas. Executava as tarefas
diá­rias com vagar, sem entusiasmo, só pensava no mo-
mento sofregamente aguardado, quando Luna, à luz do
candeeiro, despia-se, solta­va os cabelos, deitava-se a seu
lado. Como um avarento, guardava o que restava de vigor
para aquele instante. Temia que houvesse um descom-
passo entre o desejo e a impossibilidade de sustentá-lo.

509
Luna

Ainda assim, não se poupava nem se continha. Dava-se


todo. Fora a amante, nada mais lhe despertava o interes-
se. Apesar disso, por melhor que fosse o desempenho, no
dia seguinte, ao sair, percebia nela um riso irônico, como
se o achasse fraco, incapaz de satisfazer uma mulher.
As pessoas notavam que vivia triste, anêmico, na certa,
doente. Perguntavam se tinha maleita, mau-olhado, tísica.
Recomendavam que se benzesse, comesse carne sangrenta,
tomasse mastruz com leite de cabra. Luís Pedro agradecia.
Nada podia fazer. Era impossível afastar-se da fonte do
mal (se podia chamar de mal os prazeres que sentia todas
as noites), mesmo tendo de sofrer, depois, a depaupera-
ção que ia minando-lhe a resistência. Tinha de permane-
cer com ela. Um dia haveria de vencê-la, deixá-la saciada,
prostrada, à sua mercê. Como um jogador a arriscar as
últimas fichas para recuperar as que perdera; quanto mais
fraco, mais se sentia atraído e dependente. Ao chegar ao
orgasmo, este parecia não ter fim, prolongava-se, fazia-o
descortinar mundos voluptuosos, pondo-o ao alcance do
grande segredo. Percebia-o perto de si, ainda encoberto e
indecifrado, porém próximo, bem próximo.
Lutava, mas não conseguia vencer a tentação de ver
Luna no açude. Lembrou-se da onça. Desta vez ia arma-
do. Com arma mesmo, não garrucha de caçar mocó ou
galinha d’água. Pediu emprestado um rifle papo-amarelo
a João Barrego.
Começava a entardecer quando ela apanhou o sabão
de coco e foi tomar banho. Não se enxugava depois. Tor-
nava a vestir-se com o corpo molhado. Luís Pedro espe-
rou uns minutos antes de ir. Tirou o rifle, que escondera
embaixo do jirau, puxou o ejetor, soltou-o e remeteu uma
bala para a câmara. O caminho estava tomado pelas ervas
da­ni­nhas, que deixara de combater. Quase rente às ra-
mas de uma árvore alta, duas estrelas brilhavam, pálidas,

510
Mário Márcio

sumidas. Pouco depois, ao descer uma lombada, avistou


a onça. O animal, de pelo magnífico, de um amarelo-rui-
vo, rosetas pretas, examinou-o sem inquietação, com um
olhar adocicado quase terno. Não se moveu, ergueu os
dois fios de prata do bigode e mirou-o com olhos de um
azul esverdeado. Dava a impressão de esboçar um sorriso.
Com a firme determinação de prosseguir, ergueu a arma e
atirou. A onça contorceu-se de dor e volveu-lhe um olhar
meigo e grave. O vaqueiro desviou-se do corpo. Sentia-se
mal. Reconhecia que agira como um bruto. Talvez tivesse
cometido um erro.
Não encontrou Luna. As águas estavam paradas. Nin-
guém tomara banho. Procurou-a pelas imediações. Nada.
Voltou. Fumou vários cigarros. Tentou disfarçar o deses-
pero no ato mecânico de picar o fumo e enrolá-lo na palha
do milho. Nem pensou em comer. Perto de meia-noite,
retornou ao açude. A onça desaparecera. Entrou na mata.
Viu alguém ao longe. Lembrou-se do homem do Brejão.
Era ele. A mesma cor de defunto, o riso mau, os olhos de
fogo, o convite para acompanhá-lo.
Nunca mais soube de Luna.

511
Papéis sombrios1
Mário Rodrigues do Nascimento

Os sentimentos vastos não têm nome.


Perdas, deslumbramentos,
catástrofes de espírito,
pesadelos da carne,
os sentimentos vastos não têm boca,
fundo de soturnez, mudo desvario,
escuros enigmas habitados de vida
mas sem sons, assim eu neste instante
diante do teu corpo morto.
Hilda Hilst, Rútilo Nada

Começo de noite. Faz calor. O homem está deitado na


cama. Observa à sua frente uma mulher ruiva de costas
para ele. É a única mulher que conheceu que sem roupa
ficou mais bonita. Os curtos cabelos vermelhos brilham,
embora estejam na penumbra. As costas, sem espinhas.
Duas suaves concavidades acima dos glúteos. Coxas roli-
ças, com posteriores sem ondulações ou nódulos de celu-
lite. Panturrilhas perfeitas.
Ela pergunta: Pensou na minha proposta?
Ela está encostada à janela, olhando ao longe o mar.
Ele: Ainda não.
Ela: Vai esperar até quando? Até estarmos envelheci-
dos e acabados?
Ele: Já estamos velhos. Por dentro. E acabados.
Ela: Você pode estar – com seus trinta? Ou trinta e
um? – eu não...
1
Título original: Um dos papéis sombrios na gaveta do esquecimento.
Mário Rodrigues do Nascimento

(Ela, de fato, não. Nem velha. Nem acabada. Nem por


dentro. Nem por fora.)
Ela: ... Como é que é, vai se acovardar?
Alguns anos de relacionamento entre eles. Ela sabe
como conseguir as coisas dele, basta ferir seu orgulho ma-
chista.
Ele: Não é covardia, você precisa entender que o cara
é meu irmão! Não é uma barata.
Ela: Sim, ele é uma barata!
Ela dá as costas à janela. Seus olhos verdes encaram o ho-
mem. A janela, atrás dela, parece uma moldura de quadro.
Ela parece uma pintura que extrapolou a moldura. Uma
pintura perfeita. O olhar dele escorre pela pintura nua.
Ela começa a contar uma história para ele: Eram qua-
tro mulheres, as primeiras mulheres a atravessar a Amé-
rica do Norte numa viagem de automóvel. Tudo estava
tranquilo até que, no Estado americano de Nevada, elas
tomaram o grande medo. Seguiam por uma estrada de-
serta quando de repente, ao lado da estrada, surgiu um
bando de índios yokuts armados com arcos e flechas, ma-
chadinhas e gritos. Eles corriam na direção delas. Elas, de
tão apavoradas, sequer se mexeram. Os índios vieram em
direção a elas, mas nesse momento atravessou a pista um
grande roedor, era esse animal que os índios perseguiam.
O roedor perseguido e os índios perseguidores passaram
pelo automóvel sem darem a mínima. Depois, passado o
medo, elas riram.
Ela vem até a cama. Deita-se. Sussurra ao ouvido dele:
Os medos são erros que temos de desmascarar, agindo. E
talvez você vá até se rir no final.
Ele sente o corpo dela sobre o seu. Não é a primeira
vez. Seriam centenas? Milhares? Mas é sempre a primeira
vez. De perto, ela ainda é mais bonita. Amam-se.
Ela, antes de adormecer: Como posso amar tanto um
covarde?

513
Papéis sombrios

Ela está dormindo agora. Sua cabeça está recostada


sobre o ombro esquerdo do homem. Sua mão esquerda
está espalmada sobre o peito dele. O homem vê no dedo
anular da mulher a área esbranquiçada da aliança ausen-
te. Ela sempre tira a aliança antes de se encontrarem.
Ele liberta-se do abraço adormecido dela. Sai da cama.
Fica de pé ao lado do móvel por um longo tempo, pensa-
tivo. Abre a gaveta do criado-mudo. Lá está a arma que a
mulher trouxera.
Encosta a arma na têmpora da mulher mais linda do
mundo, segundo ele. Ela tem o sono pesado. Agora, pesa-
do demais – e eterno. O homem aciona o gatilho.
Ele, enquanto se senta na beira da cama, fala, baixi-
nho, para si: Sou mesmo um covarde. É pena que eu não
seja um necrófilo. Não, não rirei no final.
Ele pensa: Gosto estranho este que tem o cano quente
de uma arma.

514
Juros do coração...
Mário Sette

O jantar terminara com uma taça de champanhe que


todos beberam em honra dos quinze anos de vida conju-
gal do casal Senna Flores.
E para a espera do café, os íntimos convivas do lar em
festa foram conduzidos ao terraço lateral da vivenda que
olhava as recortadas serras do nascente.
Havia um quebranto de luar crescente, uma polvilha-
ção de luz, destacando as montanhas abelhudando uma
estrada que se perdia num longe de curva. A noite areja-
va-se com a brisa vinda do rio.
Dispuseram-se as cadeiras de vime. Pude apreciar tudo.
A oradora da turma de professorandas ia falar. Aplausos;
aplaudi também. Vi-a na tribuna. E, porque a vi na tri-
buna, procurei saber quem era, onde morava. O resto, é
natural, foi o namoro, o noivado, o casamento. E, hoje,
em consequência, este jantar.
O poeta Múcio Rosas sublinhou:
– A clássica estrada de rosas dos amores felizes...
Numa negativa expressiva de cabeça, doutor Senna
contestou:
– De rosas, depois, sim. Mas, de começo, espinhos,
muitos espinhos.
– De mandacaru... – reforçou dona Zulmira.
– O quê?!... – admirou-se dona Marietta Cordeiro. –
Foi assim atribulado o namoro?
– Se foi!… Eu que o sei…
Juros do coração...

Doutor Senna fez uma outra das suas pausas na con-


versação, ficando meio abstrato. E decidindo-se:
– O dia é próprio para eu contar a você essa história.
Os anos já correram, a harmonia já nivelou as asperezas...
O nosso amigo Múcio poderá fazer do assunto um poe­
ma... – Para os amigos: – Vamos fumar? – As senhoras
consentem.
Trouxe charutos. Acenderam-nos. Todos estavam
curiosos da história do casal.
– Nem sempre foi de paz o nosso amor, repito. Depois
do nosso encontro na Escola Normal, continuamos a nos
ver. Aproximei-me da casa de Zulmira. Ela morava com a
mãe viúva, e não tinha irmãos. Gente pobre, mas muito
conceituada na Bahia. Eu cursava o quarto ano. Correram
os tempos. Zulmira arranjara uma cadeira e eu, então, era
quintanista. Foi quando me lembrei de escrever a meu pai,
solicitando-lhe consentimento para pedir Zulmira em ca-
samento. Desejava com o título de noivo melhor explicar
a minha assiduidade em sua casa. Escrevi a carta, esperei a
resposta tranquilamente. Meu pai era doido por mim…
Veio a pausa. Limpou, com vagar, os óculos. Dona Lí-
via não se conteve:
– E a resposta, doutor Senna?
– A resposta negativa. Francamente negativa! Não me
desesperancei. O “velho” não conhecia Zulmira! Fiz outra
carta. Desta vez com pormenores. Dei notícias detalhadas
da família de minha escolhida. Pintei-lhe a educação, as
virtudes, o caráter. Procurei enternecer, vencer... A carta
foi. Os dias passaram. E, afinal, uma tarde, estando às vol-
tas com um ponto difícil, o carteiro bateu. Era a resposta.
– Que resposta?!… – declarou dona Zulmira.
– Além de me repetir categoricamente a negativa abso-
luta, meu pai ordenava-me que seguisse para o Rio a fim
de concluir o curso lá. Nesse dia, sofri os maiores embates

516
Mário Sette

morais. Vi claríssimo o dilema: ou deixar Zulmira, deixar


a Bahia, o que era atroz, ou desobedecer a meu pai, o que
me era pungente.
– Coitado! – lastimou, bondosamente, dona Marieta.
– Pensei até no suicídio, acreditem. Os miolos ardiam-
me. Não dormi, não fui ver Zulmira, não jantei. Um in-
ferno! No outro dia, porém, mais sereno, tomei resolução:
meu pai não tinha razão, eu ficaria na Bahia. Não era
justo que eu renunciasse ao amor de uma moça que só
tinha o defeito de ser pobre... E fiquei. Mas... a mesada
do “velho” nunca mais chegou. Era do que eu vivia. Ima-
ginem! Em terra estranha, e o dinheiro a se acabar. Procu-
rei emprego, debalde. Vendi livros velhos, pequenas joias.
Sempre caprichoso, altivo. Cheguei a lavar, a engomar, a
coser minhas roupas…
– Que boa engomadeira!…
– A situação, entretanto, era dificílima. A crise chegara
a maior agudez. Pensão em atraso, roupa envelhecendo,
exames perto. E dinheiro nenhum. Ia a pé para a escola.
Os sapatos cambavam... Afinal, ia-me dar por vencido. Es-
creveria a meu pai pedindo passagem para o Rio, embora
não esquecesse Zulmira. Ia fazê-lo. Não podia mais...
– O amor não mata a fome... – gracejou o doutor Mar-
tinho.
– Não mata?! O amor pode tudo, meu amigo. Escute o
resto. Nessa noite, disse a Zulmira a minha resolução, pro-
meti-lhe voltar. Ela foi ao interior da casa e volveu trazen-
do-me o que fosse muito escondido no côncavo da mão.
Vinha corada, contrafeita, receosa. Era dinheiro, eram as
suas economias, os seus ordenados de professora. Recu-
sei. Ela ofendeu-se. Convencia-me: uniríamos muito breve
as vidas, os destinos, os interesses. Aceitasse aquela soma
para ajudar “meus estudos”, para conseguir formar-me.
Todos os meses, ela me auxiliaria com o seu pequeno or-

517
Juros do coração...

denado. Trabalharia para mim, depois eu trabalharia para


ela... Pedia-me com os olhos molhados. Ainda relutei, po-
rém, afinal, aceitei sem escrúpulos, aceitei de consciência
tranquila. E hoje me orgulho de dever uma parte do que
sou ao trabalho modesto e digno de Zulmira…
A senhora Senna Flores, furtando-se aos elogios, le-
vantara-se e fora pôr na vitrola um outro disco.
– Toque a “Romanza Andaluza”, Zulmira.
– Espera um pouco, Mariah; vamos ouvir a nossa Guio-
mar Novaes na “Gavotta”.
– Oh! Sim. Esplêndido!
As teclas do piano de cauda, premidas pelos dedos da
pianista brasileira, derramavam numa sonoridade como
que umedecidas as frases musicais de Gluck.
Todos ouviam religiosamente.
Múcio Rosas, não esquecido da história que ouvira,
olhava através da larga porta da sala de visitas, uma foto-
grafia em ampliação: o velho coronel Senna Flores, numa
atitude de carinhosa admiração, diante do neto que lhe
está no colo.
E quando o disco terminou:
– Dona Zulmira, vendo aquele retrato estou me lem-
brando do seu ordenado de professora…
Houve um riso contagioso.
Depois, olhando também o retrato, numa comoção a
que a ausência paterna emprestava maior intensidade, o
doutor Senna Flores confessou:
– Meu pai, hoje, numa questão qualquer, seria capaz
de brigar comigo para dar razões a Zulmira... Que que-
rem? São os juros do ordenado...

518
Amanhã eu vou
Maurício Melo Júnior

Colonha, Usina Catende, Roçadim de seu Mende,


Piran­gi de seu Cando. Nesse mundo eu ando cumprindo
minha sina, que inté nas Usina eu já tô trabaiando... Can-
toria. Conto só o que vi. Coisas de um tempo antigo. Nas
horas da noite a Usina esquecida cuspe fogo. Luz amare­
la, baça arde lá dentro – não tem mais o quê alumiar, só
ruínas, rastros de calango, de cobra. Foge o clarão pelo
buraco do portão sem portas, das janelas sem tábuas. Cara
medonha luminando o mato. Os Donos Novos, acho, de
certeza querem clarear fantasmas. É de se crer que por ali
vadeiam – em alma – os Barões Destronados. Mor­rem de
rir vendo a Usina de fogo-morto. Vingança feita – ferro
fino ferindo ferreiro ferino. Muito banguê a Usi­na passou
no papo, agora era ela que tinha sido – e sabe-se lá por
que força dos infernos – papada. Morena quem foi que te
disse que bala de rifre matava ninguém? A bala que mata
é bala de revóve, é choque de automóve, é trombada de
trem... Cantoria. Trombada de trem... Os Donos Novos,
acho, sabem disso e acendem a luz prá não per­mitir que
os fantasmas reinem na santa paz de Deus. E lá se vão
passando os anos em que vida por ali é prá quem rasteja,
prá quem é mato. Partida... É hora da partida, meu bran-
co. Nada mais tenho que fazer no lugar. Já se foi em­bora
a flor da idade, cresceu o nó dos janeiros. Tenho que ir
antes que chegue o tempo do não se poder mais ir, quan-
do ficar chega a ser uma ordem. De meu só es­se corpo a
quem dar de co­mer. As mulheres se foram todas na passa-
Amanhã eu vou

gem. Filhos só os que dizem que botei no mundo – uns


dois ou três, dizem, sei lá. Acho tudo conversa do povi-
nho. Se nasceram foram de bucho de puta e filho de rapa-
riga não carece ter pai – filho de gaiamum. Se rebentaram
são do Tempo da Bonança quando o frege impava de ale-
gria, dinheiro e gonorreia. Tempo muito velho; nem os
domingos se guardava. Os matutos desciam dos engenhos
e, depois da feira, entravam na pouca-vergonha. O cabaré
minguou feito Lourdinha, a morena. Moça fina. Não sei
porque fazia a vida – Lourdinha. Bonita, alta, porte de
dama. Escolhia o homem com quem deitar – um ou dois
por noite, e só. Pouco bebia, dormia cedo. E sempre com
um jeito de tristeza no olhar. Coisa de desgosto. Quis dá
cabo de amigação com ela. Me despachou sem mágoas –
uma dama. Palmares, Ribeirão, Escada. Eu tenho uma na-
morada que me deu um broqué... A vorta é crué na namo-
ração. Num aperto de mão foi-se embora os ané... Canto-
ria. Ciúme e inveja não são coisas de Deus, meu branco – é
o cão quem cisca nesse terreiro. A Galega Desbocada – a
bicha não deu cabo da mesquinharia. Num dia de raiva e
bebedeira meteu uma garrafa quebrada no toitiço da mo-
rena. Vi o sangue correr sem poder aparrar. Foi enterrada
aqui mesmo. Não se conhecia sua história, não se sabia de
parente. A Galega mofou na cadeia. Saiu num tempo em
que o frege era só ontem e ela sem mais estampa pra fun-
ção. Os anos tinham lhe comido o viço; o desbocamento.
Se perdeu nesse balaio de miséria. E eu nunca mais subi a
ladeira do Engole-Homem. Fato é que até a Usina tava
ainda ali de boca aberta, mas já de boca seca, guela dura,
sendo abocanhada pela civilização mais moderna. Dizem
Os Que Querem Saber do Mundo que foi ordem do Go-
verno. Não se carecia mais de tan­to açúcar assim. Que se
desman­chasse tudo e se cuidasse, daí prá dantes, de ou-
tros tantos afazeres. Num me fio nessa conversa. Nunca

520
Maurício Melo Júnior

ouvi falar de Governo que­rer desgosto e encrenca com


potentado. Isso deve ter sido coisa dos Donos Novos.
Queriam outra paisagem, ganhos mais gordos. Sou do
tempo de outrora. Cresci correndo junto com o ronco da
Usina. Já meu pai vinha do banguê, do tempo dos Barões
ainda no mando. Me dizia ele que naque­la era se falava
de gente prá gente com os Barões. Eles, sim, pessoas de
carne e osso. Casavam e tinham filhos. Lidavam com cana
e moenda o dia todo. Cumprimentavam os cabras no eito.
Contava que seu Lula do Sacramento deu patente para
um cabra de quem tinha batizado o filho. Não peguei esse
tempo não. Já encontrei seu Lula encurvado, fornecen­do
prá Usina, com o paredão e o bueiro definhando os so-
nhos. Ali por trás se escon­dia a maquinaria da ganância.
Sem­pre tive medo daquilo, do mun­do de ferro gemendo.
Um mistério onde não se via a cara dos do­nos. Vez por
outra Os Que Querem Saber do Mundo che­gavam num
vexame, numa latomia e era um corre daqui, pega d’acolá.
Depois se ficava saben­do: Os Usineiros tavam por perto
– nunca topei com um na minha frente. Trabalhei toda
vida por aqui; somente sei mexer com usina. Sofri, penei,
fiz de tudo prá ganhar o necessário pro de comer. Deixei
o melaço entrar na veia; dentro de uma Usina mexi com
tudo. Na Usina fui cabo de esteira, trabalhei nas turbina,
dei luz no motor. Fui destilador do isprito de vinho, co-
nheço um pouquinho do cuzinhador... Cantoria. Cambi-
teiro, apontador, cozinhador, balanceiro. Só nunca que vi
Usineiro. Uma existência de dá murro prá estranho. Cá
comigo fico pensando na sabença de meu pai: patrão ami-
go é irmão. Morreu capinando um sitiozinho de milho e
feijão – o Capricho –, graça de seu Lula do Sacramento.
Seu Lula se fez finado e a Usina sempre pejada. Mas antes
já não tinha ânimo pros serviços da terra. Tanto que jun-
tou uns trinta mora­dores de sua preferência e dividiu me-

521
Amanhã eu vou

tade do Sacramento com eles. Meu velho tava aí. Certo


tempo se passou e se deu o burburinho. A Usina ia ser
vendida. E lá se vem o cor­re-corre, o medo pesado. Dava
prá cortar o ar à faca. Um gosto do que não presta na
boca. Uma certeza de coisa ruim se chegando. Os Grados
viviam numa reunião de dia todo, lá prá dentro da Casa-
Grande. Os Que Querem Saber do Mundo no fuxico; os
que trabalhavam no penar – ali tava a vida da gente. Re-
pare bem. A Usina era um tudo. Já tinha papado o resto
das terras do Sacramento e mais quase a metade dos sítios
distribuídos por seu Lula. Também era dona da cidade
toda. Hospital, trem, motor de luz, barragem, escola, ci-
nema. Uma grandeza. De repente, assim de uma hora prá
outra, o mundo quietou. Caladinha a vida seguia como
sempre. Ninguém saiu de seu lugar e tudo parecia ser
como dantes. Seu Carlinho ainda o gerente e tudo pareci-
do como sempre. Seu Carlinho gerente, Usineiro nin­
guém vendo, trabalhador no eito, açúcar jorrando das
caldeiras – tudo no jeito; parecia. Tenho receio de tempo
quieto. A novidade nessa calma era a conversa Dos Que
Querem Saber do Mundo. Espalhavam que a Usina tinha
Donos Novos – galegos como o povo do cinema; nunca vi.
Ah! Esse também mudou, o cinema. Depois de uns dias
fechado foi vendido pra seu Ivo. Sim também os trens fi-
caram parados no pátio. Agora o cambiteiro apanhava a
cana no corte – quando o corte tava nos altos – e descia
até a estrada. O resto do carrego ficava na conta do cami-
nhão. O ferro todo das linhas e das máquinas com os va-
gões vendidos pra ferro-velho; eu soube, não vi. Minha
cabeça dava tanta volta que já nem sabia se dava crença ou
não nessas conversas. Só tinha uma certeza: era da balan-
ça, balanceiro fiquei. Balanceiro da Usina – eu não meu
bem – É danado prá roubar – eu não meu bem – Tanto
rouba na balança – eu não meu bem – Quanto rouba no

522
Maurício Melo Júnior

olhar – eu não meu bem... Cantoria. Cheguei longe, né?


Dei começo de vida no cambito. Serviço pesado, sem cer-
teza de esperança. Não me dei bem. Cambiteiro não tem
nada, não dá presente a muié. Quem quisé casá com ele
tem que sê como ele é... Num iscuiambe cambiteiro. Cam-
biteiro é de famia. Se num fosse cambiteiro, a Usina num
moia... Cantoria. Meu pai ainda vivo foi se vê com seu
Lula – isso no tempo do Sacramento. Eu tinha certa ins-
trução. Passei prá cabo de eito – um cabo diferente. Tinha
pena daquele magote de camumbembe, tratava eles com
jeito. O patrão gostava, mas achou de se finar quando eu
já ganhava sua confiança. O filho, moço criado, vivido e
instruído na capital, não quis conversa com o Sacramen-
to. Preferiu vender prá Usina. Passei prá apontador. Já
tava babaquara, taludinho. Pouco depois foi pai quem
morreu. Fiquei só no mundo. Quis tocar o Capricho. Pen-
sei em pedir as contas na Usi­na. Depois achei que bem
podia servir a dois senhores. Não fui adiante. Colheita
minguada, ganho de miséria. Eu queria progresso. Não
tinha paciência para colher de pouco. Vendi o que já era
de meu prá Usina. Voltei de pini­co na mão. O apurado só
deu pra comprar essa casa de ponta de rua, pagar umas
contas. Usei o tempo no variar de função – já lhe disse;
até que me botaram pra balança. Balanceiro fiquei até o
dia final. As safras passavam sem susto, quando de uma
hora pra ou­tra, revirou o tempo. Tudo parado. Quando
digo parado, falo da Usina pois a escola e o hospital já de
muito que não atendiam ninguém. Quem tivesse dor que
seguisse pra Previdência; quem quisesse saber que se con-
formasse com burrice. Pois bem, seu Carlinho foi embora,
deu sumiço no mundo. A ordem veio não se sabe de onde:
era pra segurar o plantio da cana. Os empregados rece-
bendo as contas. Escapei por um cabelo de sapo. Como
tinha tempo, entrei no benefício. Os Que Querem Sabem

523
Amanhã eu vou

do Mundo an­davam de cabeça baixa, já não diziam nada.


Foi um dia de surpresa quando a Usina co­meçou a ser
desfeita. Peça a peça jogada num caminhão, ganhando
rumo ignorado. Dias e dias de trabalho. Assistimos a tudo
sem forças para reagir ou pra deixar o lugar. Vi homem
chorar. A gente pegou carinho por aquilo tudo. Mui­tos
foram os que ganharam a estra­da, outros, como eu, tei­
maram em ficar. Da Usina só carcaça. Pela primeira vez vi
a luz acesa, a cara de fogo e os bois. O pasto engoliu o
canavial. O mugido vindo da furna da ruína. Um assom-
bro pra quem teme a Deus. Num quis cobro de conversa
com esse mundo novo. O rico na sua cama, o pobre no seu
jirau. O rico com seu café, o pobre com seu mingau...
Cantoria. Nas­ci na bagaceira, ei de morrer na cana. Te-
nho cheiro de melaço na carne. E cana é o que não se vê
mais por aqui. Seguirei caminho. Ei de ir embora. Já na­da
tenho prá fazer nessas bandas. Dizem os Que Querem
Sabe do Mundo que lá pro fim das terras do Sul existe um
pé de cana. Vou achá-lo. Passo no peito a casinha e vou
receber o benefício noutras brenhas. Ando entojado do
cheiro de bosta de boi, tenho comichão da cara que me
olha na noite. Finda aqui meu prazo. Sou de outro tem­po.
E hoje só se vê o portão sem fim, as janelas pelos altos.
Vivem a­bertos vida a fora. Uma cara de fogo – de fogo-
morto – ferindo as altas da noite. No mais é tudo pasto.
Tudo pasto e um mugido.

N.E. Atendendo solicitação do autor, alguns termos não foram re-


visados.

524
O criador de passarinhos
Mauro Mota

Imita o corruchiado, estala os dedos diante dos caná-


rios de briga. Outra vez inspeciona as gaiolas na sala de
jantar e no alpendre.
Toneco apresenta-se. Já sabe:
– Mais água limpa na tigela do viveiro daqui a duas
horas. Derrame por cima. Hoje é dia de limpar as tábuas.
Puxe direto, sem abrir a porteira. Ah, moleque safado,
acho que estava com a mão dormente quando não te que-
brei a cara. Minha patativa chorona. Já tinha começado o
canto. Ia separar no domingo. Não minta. Diga a verdade:
soltou de propósito ou vendeu ao menino de Gabriel?
Basílio está pronto, a pasta com os processos informa-
dos, o recorte do Diário Oficial (ia ganhar dois níveis), a
garrafa térmica com laranjada fria. (Nada de refrigerantes
de fábrica, que todos possuem substâncias nocivas, parti-
cularmente às células hepáticas.) Sanduíche de carne de
porco, gordura transparente no papel da minuta, lápis de
ponta feita. (Gilete corta de banda. Só a maquinazinha. O
segredo é não deixar entupir de cavaco.)
Nesta manhã a mesma agonia. Medo que o seu mundo
ornitológico se transforme em duas asas, batendo no céu
do subúrbio, antes da esquina.
O grito de dona Lindalva:
– Ah homem tolo! Vai perder o ônibus e achar o ponto
riscado. O condutor não espera.
O relógio de bolso. Herança do pai, gravura do Grito
do Ipiranga.
O criador de passarinhos

– É mesmo – e diz adeus, meu bem, convencional. Sus-


pende Fernandinho, promete o disco voador do camelô
da Rua Nova. Mas a última atenção é para o curió, pre-
sente do compadre Raposo, de Goiana. Hoje vale muito.
Antes de ficar preto, dá todas as repetições. Muita raça.
Com a mão na taramela do portão, ainda grita:
– Olha, minha gente, todo cuidado é pouco. Cuidado
com esse gato branco da vizinha. Não tenho nada com
estimação dessa velha, nem que seja capado, nem com fita
de vassoura nele. (Aumenta a voz para ser ouvido defron-
te.) Cacete na cabeça pra matar, estás ouvindo, Toneco?
Ordens do dono da casa.
Olha a mangueira do quintal, a mão em concha no
ouvido pesquisador.
Afinal sai assoviando. Assovia de estalo, igual a Matra-
quinha, peito empinado; bico recurvo, garras de alicate,
estrela da espécie, com cinco meses de preparo.
– A questão é de tempo e paciência. E de casar com fê-
mea que ajude o fogo. Matraquinha invicto no bairro, três
surras numa semana. (Ai, meu Deus, ainda estou ouvindo o
chiado do Martelo, o campeão de doutor Rui.) Toda aquela
goga de canarista acabou-se em trinta minutos. As penas do
rabo voando, o pescoço sangrando beira do coxo. Fui besta,
devia ter dobrado as apostas, desmoralizando a canalha de
vez. (Major Canuto, só não lhe mando àquele lugar em ho-
menagem à sua patente. Não crio pra vender, o senhor sabe
disso. Agora, não há preço. Nem dez vezes mais a oferta.
O bicho vai refazer-se para liquidar outros. Topa qualquer
bulha. Isto é, se forem adversários conceituados, de catego-
ria. Depois, aposento e deixo morrer de gordo, pendurado.
Não troco nem vendo, major. Faça uma tentativa na feira.
Às vezes, aparece coisa boa. Depende da sorte.)
Entra no ônibus e muda o tom. Agora imita o concriz.
A cobradora ri, quase deixa o troco rolar no chão. O pa-

526
Mauro Mota

dre, conhecedor da mania e antigo dono de pássaro (cru-


zeiros diretos para o investimento nas obras paroquiais),
receia o pandemônio na linha. O concriz tem parentesco
com Satanás. Além da própria voz, usa a de vários mamí-
feros: mia, late, dá horas como o jumento da olaria.
Basílio fica em pé, junto de dona Bernardina, enfer-
meira, amiga da mulher. Dá bom-dia e a pasta para ela
botar no colo. Apalpa-se e apalpa os lábios. Ataca os bo-
tões e desataca. É mesmo o seu paletó de tropical.
Dona Bernardina puxa conversa sobre a eleição para
governador.
– Daqui a cinco dias. Está pegando fogo. Ouviu a no-
tícia do rádio? Ontem de noite, mataram um vereador no
comício de Jaboatão. A coisa precisa mesmo de mudar.
– É, é.
Ouvindo falar em mudança, Basílio deriva para as mu-
das de passarinho:
– Só mesmo no quarto escuro, em silêncio. Pessoal de-
sumano o meu, dona Bernardina. Abriram a janela. Com
a pancada de vento e o belga… (amarelo gema, toque de
campa, nascido a 2 de abril do ano passado, daquela ni-
nhada de três, dois machos etc.) ...amanheceu encoruja-
do. Com a sua experiência no posto, a senhora quer algu-
ma vitamina restauradora?
– Ora! Sei lá disso! Isso é negócio pra veterinário. E
eles agora andam muito ocupados com a hidrofobia em
Tejipió. É vacina que não acaba mais, sabe?
– Sei... (o estilo agora é o do burocrata, alto, para im­
pres­sionar os outros passageiros)... mas a campanha an-
tirrábica desenvolve-se de modo unilateral e cruel. Com a
simples suspeita levantada por leigos, a matança de cães
na via pública constitui espetáculo degradante. Papagaio
come o milho e periquito leva a fama. Mata-se cachorro
com veneno, pau e pedra. Mas deixam em paz os gatos,

527
O criador de passarinhos

terríveis felinos, assaltantes cotidianos e transmissores de


raiva em idênticas condições de periculosidade. Os gatos,
dona Bernardina.
Da Praça da República, vai direto ao elevador da Fa-
zenda. Registro do ponto, cumprimento largo ao doutor
Amâncio, aperto de mão ou bom-dia seco ao pessoal, con-
forme as simpatias. Menos a datilógrafa Alzira. (A briga
por causa do número da portaria.)
A meticulosidade passarinheira também na mesa da
repartição. As gavetas arrumadas. Os requerimentos em
dia, o cinzeiro em forma de nambu no choco. Tudo no seu
lugar. Tudo? Chama o contínuo:
– Miranda, mais atenção ao serviço, está ouvindo? O
que faz esta bola de vidro em cima da minha banca? O
meu peso de papel é a corujinha de metal. Se não sabia,
fique sabendo.
A voz revela a irritação, quebrando a cordialidade ha-
bitual. Sexta-feira, na hora do lanche, o escriturário Sim-
plício cochichou entre os colegas: pela primeira vez, em
mais de vinte exercícios, tinha saído com erro o balanço
da receita.
Havia qualquer coisa no ar.
Acertara. Era mesmo no ar. Os açoites do galo de cam-
pina na mangueira do quintal.
Basílio localizara-o certa manhã. Presente de Deus.
Mas, desde então, guarda a sua ânsia e o seu martírio.
Dizer aos outros, seria botar tudo a perder. O dia tomado
pelas guias de recolhimento, pelos ofícios. Cadê tempo
para enfrentar a concorrência? As chamas logo aparece-
ram em todas as árvores da vizinhança. Só havia um jeito:
agir como estava agindo: calado, valorizando as migalhas
das horas, recorrendo aos disfarces.
Com a sua experiência, afirmava a si mesmo: vale a
pena. Para galos de campina de canto de corrida, basta-
va chegar no oitão do Bacurau, no Mercado de São José,

528
Mauro Mota

no Cais de Santa Rita. Mas do bom, do verdadeiro, com


todas as notas dos açoites, em cem aparecia um. Que não
chegava para ele mesmo depois de tantos anos de procu-
ra. Pegados novos não valiam nada. Só adultos, de cabeça
e babador vermelhíssimo. (A falha na coleção, o insucesso
da capacidade selecionadora. Rara avis.)
E a nova esperança? Podia ir embora como as outras,
quem sabe lá? (Sim, a catarata do sabiá?) O galo de cam-
pina mesmo ia denunciar-se com a série dos açoites, canto
de alvorada ou desespero.
Talvez outras pessoas já soubessem. A desconfiança na
véspera, no encontro com o doutor Rui. O riso debocha-
do na porta da padaria. A expectativa da vingança, de
o rival tirar a desforra, com a posse do melhor, mesmo
noutra categoria. Mundo de traidores.
Levanta-se agressivo. O pontapé na porta do quarto.
Dona Lindalva estremece na cama.
– Quer ficar viúvo depressa, hem? Se não morrer desta
doença, morro de susto, qualquer dia desses. Basta a alga-
zarra desses passarinhos. Isto não é casa de gente. É mais
um bosque transviado.
Basílio amansa. Dá as pílulas do antibiótico, bota o ter-
mômetro. Já falou com dona Bernardina. De amanhã em
diante, ela vem aplicar as injeções na veia.
Volta à cadeira de lona, estica os dedos dos pés, fora
dos chinelos de couro de gato. (Todos os chinelos do mun-
do deviam ser feitos de couro desse bicho. Bicho safado
e macio.)
Nos diálogos noturnos com os duendes do subúrbio,
surge um alívio para a angústia: o territorial.
– O quintal me pertence. Logo, também o que nele for
descoberto.
Lembrou-se do petróleo de Lobato, das minas de Cur-
rais-Novos e Forno de Cal, do Procurador, dos mandados
de segurança.

529
O criador de passarinhos

– As leis, as leis do País.


De repente, cai em si. Ia caindo mesmo no chão do
alpendre:
– Galo de campina não é riqueza do subsolo. Embora,
sendo de açoite como esse, valha muito mais. Fringilídeo
volúvel, tanto pode morar nesta mangueira como, de um
momento para outro, mudar-se para a jaqueira do sítio
do Gabriel. E até para o cajueiro do doutor Rui. Não, não
admito essa afronta. Eu te pego, fringilídeo.
O importante é fazer o que estou fazendo: alimentar o
pouso. A comida certa num galho; no outro, a água fresca
para beber e para o banho. E não deixar esmorecer a téc-
nica de captura.
Saber exercê-la com tempo e paciência. Cinco chama-
dores distribuidores nos postos, como extranumerários
contratados. Fala com eles, faz recomendações secretas,
como um treinador de futebol, agrada com folhinhas ver-
des de couve suplementares, promete recompensas. Di-
reito de escolha ao vitorioso:
– Se quiser ficar no viveiro, boia de graça, fica. Se não,
a liberdade.
Astúcia para evitar suspeita de favoritismo e queda na
produção:
– Todos estão fazendo o serviço direito. Talvez falte
apenas um processo mais persuasivo de entendimento
com o companheiro solto. De um momento para o outro,
um de vocês descobre. Confiem no apoio dos instrumen-
tos auxiliares. Alçapões novos. (Chegou, ficou.) Visgo de
jaca no muro e na biqueira.
Basílio dá entrada à petição de justificativa das faltas. Por
conta de dona Lindalva. Quase todos os médicos da Previ-
dência e a doença prossegue. A hepatite, o emagrecimento.
O irmão, transferido da Alfândega, propõe levá-la
para o Rio. Vai decidir. Tem de vender o terreno de Jiquiá

530
Mauro Mota

para um sujeito qualquer fazer casa, embora com prejuízo


para a cultura de barba-de-bode.
Neste fim de expediente (onde andam os lápis de pon-
ta torneados?), tira do bolso a caderneta de notas:
– Miranda, faz favor, me empresta aqui sua caneta. Ia
me esquecendo: a cumbuca.
Confere o resto da relação: as injeções, o saco de alpis-
te, a seringa de dez centímetros, as drágeas para o fíga-
do, o xerém, a garrafa de álcool, ração balanceada, aveia,
osso de baleia, o remédio de dormir, pó de ovo, a gaiola
de arame.
– Passo o resto da tarde rodando pela cidade. E mais
este diabo do disco voador para atrapalhar. Desde o Na-
tal, e não se esquece. Menino chato!
– Um dinheirão, hem?
– É isso mesmo, Simplício. No fim da carreira, e o au-
mento nem adianta. Despesas e despesas. Só a farmácia
leva a metade.
Sente o esforço do atendimento a duas frentes.
Por que a mulher não fica logo boa? Por que não fun-
ciona com sucesso a sua técnica de captura?
Os açoites continuam como um desafio matinal na
mangueira. Quer transformá-los num bem pessoal. Esta
é agora a ambição de sua vida. Que peça está de parafuso
frouxo nesse campo estratégico e nessa atmosfera povoa-
da de armadilhas? Talvez seja necessário introduzir algum
elemento novo. Leu, ainda rapaz, a brochura sobre hábi-
tos de serpentes. Quem sabe lá? (A morte do sabiá cego.)
Arranjaria uma cobra treinada no Zoo de Dois Irmãos. O
galo-de-campina desceria hipnotizado. Não, não serve. O
perigo do bote ligeiro. Ofídios traiçoeiros. Não, não ser-
ve. A questão é de paciência.
– É de tempo, grita, escapando do solilóquio e quase
derrubando o balaio de seu Biu, fornecedor da turma da

531
O criador de passarinhos

comida mole. Maxixe velho, hem? A guriatã ia morrendo


empapada, com a sua banana podre. Toneco, cadê o leite
do xexéu? Moleque, o que andas fazendo quando saio? É
por isso, é por isso. O abandono. Quando tirei férias, a coisa
foi outra. Uma vez, por um triz. Ele chegou a botar um pé.
Depois tirou os dois. Mas com arte. Gesto e voz de quem
viajou pelo estrangeiro e fez curso em Conservatório.
Basílio condimenta o canto e a onomatopeia:
– A-lho... pi-menta... sal... a-lho... pi-menta... sal. Só
eu mesmo. De qualquer jeito, tenho de ficar no centro das
operações.
(Há motivo humano e legal.) Hoje recebeu o telegra-
ma do cunhado: “Mande pelo Banco. Melhora nenhuma”.
Vai mostrar a doutor Amâncio para reforçar o pedido de
licença-prêmio. Tolice guardar para contar em duplo na
aposentadoria.
– Dessa não escapa. Felizmente estou livre de horários
durante meio-ano.
Espalha no quintal as palhinhas finas e os restos dos
pacotes de algodão de cima do guarda-roupa.
– Material à vista, fácil e do bom. Trabalho, meu filho.
Eu não dizia? Questão de paciência e tempo. Manguei-
ra fiel. Toneco! Não deixe ninguém chegar perto, ouviu?
Ninguém aqui tira manga. Deixa apodrecer no pé. Sim,
senhor, bom gosto, hem? A fêmea é até bonitona. Agora é
esperar pelos ovos, pelo choco, pela penugem dos filhos
e pegar tudo no sono.
Estabelece a faixa de proteção, tranquiliza-se. Duas car-
tas a dona Lindalva, muitas saudade, beijos em Fernandi-
nho, esta casa continua deserta, o aumento de serviço na
repartição, mas iria buscá-la, sem dúvida. Iria buscá-la.
Tudo pronto para esta noite. A escada, a luz para en-
cadear. Sobe devagar, mais carícia do que apoio, sobre o
tronco. Afasta as ramagens. Devagarinho para não espan-

532
Mauro Mota

tar. Afinal, o envolvimento. Sacode a lanterna. O triun-


fo nas mãos e o desencanto dentro do lençol. Minuto de
azar. O pai fora do ninho.
O consolo: exemplar arisco, de boa formação moral.
Não iria abandonar a família.
Dito e feito. Logo de manhã, entra sereno, no gaio-
lão, como um verme no bico. Fecha-se a porteira sobre
ele. Depois a outra. A separação dos filhos, o desquite, a
transferência.
Bom sinal do pedigree. Brabo como convém. Derrama
a água e o alpiste, bate no poleiro, quer sair entre os ara-
mes. Vedete da zona. Enfarte desse doutor Rui.
É o dia inteiro nesta base de escuta e de expectativa.
Qualquer ausência e Toneco na espreita para dar a notícia
a qualquer momento.
– Não minta, moleque. Diga a verdade.
Basílio acolhe uma dúvida:
– A fase de ajustamento ao cativeiro passa dos limites?
Não, nada disso. Às vezes varia. Bicho caprichoso e vin-
gativo. Tem lá suas razões de ódio. Vai esquecer. Há indi-
víduos que demoram. Alzira datilógrafa nunca mais falou
comigo. Mas isso não quer dizer que tenha perdido a fala.
E essa piora de Lindalva? Não posso mais adiar para não
chegar tarde. Tenho de ir e tenho horror a avião. Mole-
que, não minta. Diga a verdade. Posso confiar?
– Foi de corrida.
Já ia pegando o táxi para o aeroporto quando Toneco
chega esbaforido. Já vinha gritando:
– Psiu! Psiu! Seu Basílio! Estalou, seu Basílio, está açoi-
tando!
– Não minta, diga a verdade! Posso confiar?
– É de açoite! É de açoite!
Basílio dá meia volta. Apressa o andar. Logo no terra-
ço, certifica-se. Assume um ar de suficiência, compreen-
são e paz:

533
O criador de passarinhos

– É de açoite! É de açoite! Eu não dizia? Questão de


tempo e paciência.
Chama Toneco:
– Bote esta maleta no quarto e traga meu chinelo.
Aquele de couro de gato.

534
Na estrada
Maximiano Campos

Fez-se no destino. A montaria era um quartau, com sus-


tança para aguentar viagem longa. Os arreios seguros, as
mãos firmes nas rédeas. Viu a boiada tomar o rumo certo,
sem rebeldias. Começou a subir uma poeira fina no chão,
pedaços de caminho que os cascos dos bichos arrancavam.
Um sol, raivoso de quente, estava encurralando os restos
de verde da paisagem. A terra parecia um grande bloco de
metal cinzento ou negro, enferrujado. Luís Jatinã olhou
em frente. Adiante dos bois, viu a estrada estendida no
mundo como um tapete longo e fino. Montado em cava-
los alazões, castanhos andrinhos, pampas, rodados apaca-
tados, gázeos sararás, rosilhos e melados caxitos, rasgara
muitos caminhos. Habituara-se à visão liberta nos horizon-
tes do mundo, aos descampados. Tirador de bois desde os
vinte anos de idade, tinha quarenta de profissão.
Ia levando mais uma boiada, tangendo, atalhando, se-
guindo atrás, ao lado ou adiante, sempre comandando.
Pendeu o corpo para um lado da sela. Olhou o gado, con-
tou as reses: eram trinta. Memorizou: vinte e duas fêmeas
e oito machos. Notou duas novilhas mochas; sete eram cas-
tanhas, nove brancas, duas tinham a cor preta, uma puxava
pelo avermelhado, uns castigavam a cor na semelhança de
sangue coalhado, outros eram arraposados. Quatro eram
garrotes novos, todos mestiços e meio magros.
Lembrou-se das primeiras viagens, tempos e caminhos
atravessados. A idade, denunciada nos cabelos brancos, no
rosto enrugado, em certos esmorecimentos do corpo, bri-
Na estrada

gava com a sua vontade. Sempre dissera que tirar gado era
profissão para ser conhecida e provada, senão era desvalia,
precipício e atropelo: morria gado, desgarravam e se per-
diam garrotes, vacas, bois ou bezerros. Quando fez vinte
anos, foi ao pai, velho vaqueiro, e disse que ia arriscar uma
das duas escolhas: o rifle ou a estrada. Queria estar lon-
ge dos gritos dos patrões, solto na natureza. “Era pobre,
mas ia ser desgarrado, não ficaria preso pelas cercas dos
fazendeiros.” A sua sina bateu na estrada, mas podia ter
sido o rifle o instrumento da sua profissão. Os vaqueiros
nas fazendas tinham todos os dias os mesmos trabalhos,
parecidos até nos imprevistos. Na estrada, era diferente, o
mundo corria ao seu lado. Por isso, fizera da sela-roladeira
o trono do seu reino. O pior, nem gostava de pensar: ia
ser quando o corpo afracasse de vez, o aboio e o braço
perdessem a força e o chão tivesse que ficar parado. Não
possuía nada além da montaria, os arreios, duas roupas de
couro. Um filho existindo longe, tinha sido uma pousada
mais longa. Nesse acontecer, Luís Jatinã quase para de vez.
Havia visto muitas coisas nas estradas, aprendera que o boi
é vivente, mais do que simples animal. Há os geniosos, os
malvados, os fujões, os bravos, os traiçoeiros, os brandos na
estrada, mas brabos de corda. Viu boi fazer coisas de pa-
recer mentira a quem não os conhecesse de muito tempo,
ver e lidar. Aquela viagem ia ser das maiores: de Belmonte
a Vitória, ida e volta. Na véspera, havia sido chamado pelo
Coronel Ribeiro Paz. O homem dava ordem como quem
ensina caminho a viajante perdido:
– Menino, você está vendo aquela chapada? Pois vá
lá levando uma corda boa. Sele o cavalo Corisco e cor-
ra um pouco mais do que puder. Não vá pelo caminho
da Pedra Serena, atalhe para encurtar distância, distraia
aquelas pedras e cercas de avelós, solte as rédeas do cava-
lo, pregue as esporas, ligeiro feito mau pensamento, que

536
Maximiano Campos

lá, onde tem aquele bairro grande, tem um boi lá solto,


estragando o algodão novo.
Qualquer ordem sua era dando o itinerário de cami-
nhos, estradas, veredas:
– Menino, pegue a primeira porta, ganhe logo o ca-
minho do curral das Braúnas, atravesse a porteira velha,
siga direto pela Vereda do Sapo, suba a ladeira da solta do
Novilho Malhado e chegue à casa de Feliciano para per-
guntar por que aquele danado não veio trabalhar.
O Coronel dera-lhe o rumo e o serviço:
– Jatinã, você me pegue esse gado e vá deixar lá no
Engenho Lajedo, em Vitória de Santo Antão. São trinta
cabeças. Depois de pegar a rodagem em Ibimirim, a via-
gem fica um passeio. Já sabe: atravessa Arcoverde. Bem,
antes de Caruaru, tem a fazenda do compadre Jerônimo
de Frexeira. Lá, você faz pouso para um dia de descan-
so. Entrou no negócio um boi velho, o vermelho lavareda
com uma estrela na testa, o bicho vai servir para fazer a
cabeceira do gado. Você...
O coronel foi dando o itinerário da estrada, mas não
precisava.
– Sei do caminho, coronel, viajei muito por ele.
– Não custa nada dizer. Você, em Gravatá, faz a última
parada na Fazenda Rio Manso, de Ezequiel Mendonça,
depois...
Ia no primeiro dia de viagem, mas já estava perto do
Cruzeiro do Nordeste. Teria que atravessar muito o Ser-
tão, todo o Agreste e ir lá para o Brejo, na Mata, que era
quase um canavial só. Avistou uma casa coberta pelo pó
da estrada; as telhas empoeiradas, há meses que não cor-
ria água. As casas, naqueles ermos, pareciam criação doi-
da da natureza. Parte da paisagem, castrada, aquela que
não se reproduz: pedras, lajedos, espinhaços. Luís Jatinã
não viu ninguém, mas percebeu um fio de fumaça saindo

537
Na estrada

da chaminé da pequena morada. Olhou a posição do sol.


Resolveu que ainda não era tempo de descansar, andara
apenas uma légua e meia. Teria ainda umas três horas de
claridade. Uma novilha branca saiu da estrada e tomou
por uma vereda. Jatinã botou o cavalo castanho andrinho
atrás da rês desgarrada. Atalhou, tangeu-a de volta para
o rebanho. O dia já ia esmorecendo das forças, quando
o velho sentiu a primeira pontada de uma dor que se fez
violenta. Parecia que um novilho de muitas arrobas estava
cravando as pontas no seu peito magro. Era como uma
punhada muito profunda. Estancou a viagem. Com muito
sacrifício, reuniu o gado fora da estrada. Desmontou na
sombra de uma jurema. Tirou o freio e a cortadeira da
montaria e a amarrou pelo cabresto no tronco da árvore.
Se seu cavalo Avoante fosse vivo, ele não necessitaria de
amarrá-lo. Muitas vezes, aquele animal, “melado caxito”,
o conduzira, bêbado, de volta para a casa. Mas isso fazia
muito tempo, fora na sua mocidade. Deitou-se no chão.
Sentiu uns pedregulhos fazendo uma incômoda pressão
nas suas costas magras. A dor foi desaparecendo como
se fora um bicho ruim, que, tendo pousado no seu peito,
depois voasse, indo embora. Mas ele sabia que ela estava
lá, guardada, podia voltar a qualquer hora. A escuridão
começou a cair do céu. “Abençoado seja tudo o que vem
de lá: chuva, luz, escuro, vento, o que Deus de graça nos
dá” – disse, baixinho, como se desejasse improvisar uma
prece. Adormeceu e, no descampo, o seu sono foi cheio
de sonhos. Sonhou que ia levando aquele gado quando,
então, viu duas onças negras e uma castanha se atraves-
sarem no caminho. Depois, as visões se confundiam e a
estrada virava um rio que o afogava, arrastando-o para o
mar. Um mar que não era verde, mas azul, à semelhança
do céu, bem azul. Aparecia um grande peixe de barbata-
nas grandes, feito enormes asas e ia engolindo o gado.

538
Maximiano Campos

Acordou com o dia agarrado em muita claridade. Dormira


demais. Foi logo contar as reses. Faltavam três: duas pretas
e uma castanha. Colocou depressa os arreios no cavalo,
montou rápido. Podia ser que as novilhas estivessem por
perto. Apurou o ouvido, mas não adiantava, aquelas não
estavam com chocalho. Aquilo nunca acontecera. “Estaria
velho demais?” – perguntava a si mesmo, com medo de
responder. O dia já tinha esquentado quando descobriu os
rastros. As garrotas desgarradas tinham tomado o cami-
nho de volta: já deviam estar chegando na fazenda. Teria
que voltar, mas isso nunca lhe tinha acontecido. “As coisas
acontecem, acontecem” – dizia, querendo se justificar. Ia
sofrer vergonha. “Abençoado seja...” Iriam rir dele. Aque-
las bocas habituadas ao amargor do fumo e do álcool di-
riam: “É um velho”. Pensou no resto do gado. Teve que ir
buscá-lo. A volta seria demorada. As novilhas estavam pre-
sas. Haviam chegado há poucas horas. O Coronel não se
mostrara zangado. Apenas repetia o itinerário da viagem.
“Você ganha a rodagem. Depois de chegar a Ibimirim...”
Teve que aceitar um ajudante, rapaz moço, filho de um va-
queiro. Partiram de manhã cedo, na barra da madrugada.
Tivera que esperar que Severino – assim se chamava o ra-
paz – aprontasse a sua montaria e os arreios. O gado havia
comido e bebido água. Luís Jatinã foi até o curral e foi tan-
gendo outra vez a boiada. Notou que alguns tiradores de
leite olhavam para ele. Parecia-lhe ouvi-los dizendo: “Está
muito velho”. Viu Severino, o seu sorriso largo e o gibão
novo, da cor de jerimum. Retomou a estrada que levava à
rodagem. O sol ia se levantando como um enorme pássaro
de fogo que estivesse preparando para voar. Jatinã olhou
o sol de frente e levantou a cabeça, vendo o mundo apa-
recer na luz do dia. A estrada ainda era vereda e ladeada
pelas touceiras fechadas dos gravatás e ananases bravos.
Um jua­zeiro florido exibia as suas flores douradas. Mais

539
Na estrada

adiante, flores alvíssimas de um umbuzeiro rivalizavam


com a claridade da manhã. Alguns marizeiros refronda-
vam, anunciando a aproximação do término de magrém.
Severino fez o cavalo galopar ao lado da boiada que se
espremia na vereda formando uma espécie de fila dupla.
Atalhou um garrote que ia se desgarrando da cabeceira do
gado e foi para junto de Jatinã.
– Vosmecê dormiu hoje?
– Pouco. Dormi quando não devia.
– É, acontece. Dessa vez chegamos, tenho fé.
– Fé em quê?
– Nisso, que chegamos.
– Pensei que fosse em santo.
– Também tenho neles. O senhor acredita?
– Acredito, mas nunca vi.
– O meu avô viu.
– Viu um santo?
– Viu.
Um boi pegou uma briga com um novilho labareda e
o garrote caiu. Luís Jatinã tocou o cavalo para junto do
animal caído. Tangeu o boi, tirou o pé do estribo e bateu
de leve com o bico da reúna de couro na anca vermelha da
rês deitada. Ela se levantou e abriu outra vez o caminho.
– Seu avô viu que santo?
– Santo Antônio Conselheiro. Tive um tio-avô que foi
jagunço de Canudos. Meu avô contou ao meu pai e ele
contou a mim. Pai viu Padre Cícero.
– Quando?
– Faz tempo, era menino muito novo. Mas se lembra
dele. Nessas viagens, o senhor deve ter visto muitas coi-
sas. Quero ficar tangendo gado com vosmecê. O mundo
lá de baixo do Brejo é mais bonito?
– É menor. Ali está a estrada! – fez um sinal apontan-
do. Duas léguas mais adiante fica a rodagem.

540
Maximiano Campos

– Ela passa lá depois daquela serra, não passa?


– Passa.
– O senhor quer que eu me cale?
– A boca não é minha.
Severino calou-se. O sol foi esquentando. No céu,
apareceram algumas nuvens. Ficou olhando para o alto,
vendo, no azul manso, manchas brancas que pareciam lãs
de carneiro. Às vezes, as nuvens formavam bichos, davam
palpites para o jogo, surgiam formas de dragões, peixes,
cabras e árvores frondosas. Sem se aperceber, foi dizendo,
baixo, o que foi transformando num aboio:

O cavalo misterioso
quem trata dele sou eu
o homem que montar nele
pode dizer que morreu
outro não pode existir
besta não há de parir
cavalo bom como o meu.

– Você leu esse folheto?


– Li, é o romance do boi mandingueiro e do cavalo
misterioso. Tem uma parte que diz assim:

Era uma coisa enorme


de muito longe se ouvia
grande nuvem de poeira
que todo o monte cobria
era Martins, Paulo e Sancho
folha seca e garrancho
subindo na ventania.

Luís Jatinã escutou, calado. Sabia que existiam coisas


assim. Cavalos e bois com mandingas e mistérios. O rapaz

541
Na estrada

moço falava mais do que devia. Olhou o gado, começou


a improvisar um aboio forte e nele colocou a tristeza que
inchava no peito:

Nesta estrada sou areia,


no chão sou grão pregado,
enfrentei casco, punhal e faca,
tive boi do chifre dourado.
Fiz correr água de rifle
Valente e açude parado,
Mas estou velho, guardei somente
O couro de um garrote malhado.

A dor insistia no castigo. “Abençoado seja tudo o que


vem de lá: chuva, escuro, vento. Tudo o que Deus de graça
nos dá.” Quis distrair a dor e puxou conversa com o rapaz:
– Você vai ver muita coisa na estrada.
– Pensei que o senhor não quisesse conversar. Caruaru
é grande?
– É grande.
– Onde é que o sertão acaba?
A gente nunca sabe. Mas quando a gente chega em
Vitória, ele não está mais lá. Sentiu uma leve tontura e a
vista escureceu. Pinicou o cavalo e deu um galope para
rebater um novilho. Segurava-se na maçaneta da sela, não
queria cair. Teria que ir até o fim. O rapaz, inexperiente,
não sabia levar a boiada ao destino. Chegaram na roda-
gem, e um caminhão passou carregado de gado.
– Seu Jatinã, aquele caminhão parece um curral cor-
rendo pelos ares.
– É gado baiano, vem da Bahia.
– Já foi lá?
– Nunca atravessei o São Francisco. Mas já entrei de
Ceará adentro tangendo boi.

542
Maximiano Campos

– O São Francisco é grande?


– Do tamanho que ninguém pode medir. Ah! dor mal-
vada!
– O senhor falou?
– Não.
– Está zangado?
– Não.
– Pensei! Quando é que a gente chega na estrada de
cimento?
– Se tudo correr bem, amanhã de tarde a gente come-
ça a andar nela. A escanizada é medonha pra estropiar
os bichos. Nessa boiada tem umas novilhas que tiveram
febre aftosa, ficaram com os cascos meio fracos.
Calaram-se. A silhueta de um mandacaru parecia for-
mar o vulto de um corpo humano, crucificado e cravado
de espinhos, fincado na terra pedregosa. A estrada parecia
uma grande e grossa corda que arrastasse a boiada para
um mourão invisível. Jatinã olhou para Severino, e vendo
a juventude do rapaz, imaginou a sua passada mocidade.
O pensamento largou-se nas lembranças, desembestando
na saudade.
Muito haviam caminhado quando fizeram pouso na
fazenda perto de Caruaru. Passaram apenas a noite. De
manhã cedo, deram de bebida ao gado e ganharam no-
vamente a estrada. O sol estava no centro do céu, mar-
cando meio-dia, quando avistaram as primeiras casas da
cidade. As casas, vistas ao longe, pareciam um gigantesco
rebanho, pastando por altos e baixos. De vez em quando,
uma rês se assustava com a zoada de um carro e tentava
desgarrar, mas era atalhada. O velho notou que o rapaz se
fizera casmurro. A dor voltou a insistir, violenta e prolon-
gada. Segurava-se na sela para não cair.
– Está sentindo alguma coisa, seu Jatinã?
– É uma dor enjoada no peito.

543
Na estrada

– Vamos parar naquela fazenda, ali adiante, na beira


da pista. O senhor deixa o gado pastando e nós vamos
até a cidade. O senhor, lá, toma um desses remédios de
farmácia.
O velho ia dizer que não ia, caiu da sela. Severino viu
quando ele deu uma golfada de sangue. O rapaz carregou o
velho até a sombra de uma árvore e tangeu o gado até uma
fazendola que se mostrava a distância. Teve uma certa di-
ficuldade de levar a boiada sozinho. Conseguiu permissão
para deixar os bois apenas por um dia. O dono, antes de
permitir que o gado ficasse, fizera perguntas. Queria saber
se os bichos eram sadios, tinha medo de contaminar o pas-
to, receio de febre aftosa. Pinicou o cavalo e correu para a
cidade, nem sequer parou para ver outra vez Jatinã. À me-
dida que ia se aproximando, admirava-se com o número
de casas, nunca havia visto tantas. Com receio, conseguiu
um lugar para guardar o cavalo e foi indo, a pé. Passou por
várias farmácias, mas o seu espanto fazia-o continuar an-
dando. De repente, a cidade pareceu se transformar numa
enorme feira. Barracas com roupas de todas as cores, qui-
bungos de barro imitando gente, bichos e objetos, mantas
de carne de sol, estendidas, esteiras, candeeiro e vasilhas
de latão, potes e jarras, chapéus e bolsas de palha, ho-
mens vendendo, aos gritos, ervas e vermífugo. Um leitor
de folhetos contava em voz alta a história de uma donzela
pobre que casara com um príncipe poderoso. Severino en-
trou noutra rua, e toda ela parecia uma enorme horta que
tivesse saltado do calçamento: pimentões vermelhos de
maduros, alfaces, jerimuns, goiabas, azeitonas, mangabas,
umbus, melões, ingás, jabuticabas, corações-da-índia. Ga-
linhas gritavam, presas em garajaus. Numa barraca, cordas
de cebolas e fumo estavam expostas, misturadas a cachim-
bos e facas peixeiras fora das bainhas. A sua admiração
cresceu quando viu mobílias no meio da rua: cama, mesas,

544
Maximiano Campos

cadeiras, tambores, bancos. Um homem passou com uma


enorme cobra enrolada no pescoço, oferecendo-se para
curar a mordida, fechar o corpo contra veneno. Codor-
nas depenadas e prontas para comer eram oferecidas em
algumas barracas que também vendiam cachaça, batidas
e ponches. Brinquedos de menino, caminhões, bonecas,
se estendiam numa calçada. Ao longe, Severino avistou
uma infinidade de gaiolas de passarinhos com destino de
voar, esbarrando em finas taliscas. Um grande número de
homens e mulheres passava entre os objetos, examinan-
do-os para comprar ou apenas vendo. Viu gente de todo
tipo, cegos e aleijados pedindo esmolas e algumas crian-
ças esmolambadas, no meio daquela fartura, imploravam:
“Uma esmola pelo amor de Deus para matar a fome de
um inocente!” Também passavam mulheres bem-vestidas
e homens que pareciam fazendeiros pelo modo de trajar.
Severino pensou que nem na procissão de Belmonte tinha
visto tanta gente. Um protestante lia a Bíblia em voz alta.
Mais adiante, um homem vendia molhos de uma erva que
dizia curar catarata, barriga inchada, quedas e pancadas,
vermes, reumatismo, dores no corpo: bastava mastigar, ou
tomar um chá todos os dias, para um velho de cem anos
casar com uma moça de quinze e não passar por decepção.
Foi então que atinou outra vez com o velho, abandona-
do na margem da estrada. Comprou dois molhos de erva
para Jatinã e, resistindo à enorme tentação de continuar
andando por ali, tomou o caminho de volta. Encontrou o
seu cavalo e montou rápido. Finalmente, vira um peda-
ço da feira de Caruaru. Na volta, demoraria um dia todo,
vendo tudo. O dia já estava esmorecendo nas penumbras
da tarde. Procurou o velho no local onde o deixara re-
costado, não o encontrou. Aflito, vasculhou os arredores
e nada. Ainda havia claridade, disparou para a fazendola.
O gado não estava no revezo em que o deixara. Perguntou

545
Na estrada

ao dono onde estavam os animais. O homem disse que um


velho tinha estado lá, dizendo que era pai do rapaz e que,
para ganhar tempo, iria levando o gado; se o rapaz o pro-
curasse, dissesse que ele estava no caminho. Severino fez o
cavalo disparar. Jatinã, do jeito que estava, não poderia ir
longe. Se acontecesse qualquer coisa com o velho, o gado
desgarraria, um carro poderia atropelar uma rês, haver um
desmantelo. Já cavalgava há algum tempo quando avistou,
na penumbra das cinco horas da tarde, o gado pastando
nas margens da estrada. Ficou tranquilo quando avistou
o vulto do velho em cima do cavalo. Ao se aproximar, viu
que o vulto estava curvado em cima da sela. Chamou-o e
não houve resposta. Desmontou rápido e foi até lá. O ve-
lho, morto, por um estranho equilíbrio, conservara-se na
sela. Não faltava nenhuma cabeça da pequena boiada. Na
cabeceira do gado, a rês guia, o velho boi vermelho, ru-
minava, deitado nas suas quinze arrobas. Severino, aflito,
pensava no que fazer. Teria que providenciar o enterro do
velho e prosseguir sozinho com aquele gado, até levá-lo
ao seu destino. Só então se lembrou de retirar Jatinã da
sua sela-roladeira. Teve dificuldade, porque as mãos esta-
vam crispadas na maçaneta. O velho morrera na estrada,
em cima da sela que o conduzira por tantos caminhos. E
Severino sabia apenas que tinha que tomar o seu lugar e
continuar na estrada. Na andeja sorte das travessias.

546
As calças do Raposo
Medeiros e Albuquerque

A entrada de um novo inspetor era sempre no inter-


nato em que estudávamos um dos maiores sucessos; a do
Raposo mais que nenhuma outra. Havia para isso razões
especiais. O inspetor que o precedera, o Gomes, tinha saí­
do depois de uma altercação violenta com a nossa classe,
altercação acabada em vias de fato.
O homem era um velhinho baixo e careca – escanda-
losamente careca. A calva luzidia estendia-se rubicunda
desde a testa até a nuca, onde havia alguns cabelinhos
brancos.
Inspetor de alunos durante mais de quinze anos, tinha
adquirido certas habilidades profissionais preciosas. O
que se precisa de diplomacia para lidar com meninos de
colégio nem todos podem avaliar! O Gomes era exímio.
Ninguém poderia melhor fingir-se distraído e apesar de
tudo seguir ao mesmo tempo os maneios de dois ou três
que estivessem tentando perturbar o silêncio.
Tinha mesmo uma ciência própria: sabia dormir... mas
dormir, parecendo vigilante.
Há nos contos de fadas a eterna história de uns leões­
prodigiosos que, durante o sono, estão com os olhos aber-
tos e, durante a vigília, com eles fechados. O Gomes che-
gara quase ao mesmo resultado.
Tinha uma posição favorita, os cotovelos apoiados na
mesa, segurando a cabeça com as mãos em pala diante
dos olhos. Quando estava assim, parecia, às vezes, que co-
As calças do Raposo

chilava. Era um engano. Não se passava nada na sala que


ele não visse.
Via e calava. À hora do recreio chamava os que tinham
estado brincando e, sem uma explicação, punha-os de
castigo.
Em compensação, dormia noutras ocasiões a bom dor-
mir e todos nós imaginávamos que ele estava com uma
vigilância de Argos. Fossem lá adivinhar! De resto, não
se pode imaginar cara mais neutra, mais impassível; nem
olhos, nem lábios, nessas faces – nada traduzia o que ele
estava sentindo.
Aos poucos, porém, nós começamos a estudar-lhe a
careca. Foi uma revelação!
Dizem os versos célebres do Bocage:

Os lábios incluem,
Os olhos não!

Nele, o que não mentia era aquela esplêndida calva,


brunida, lustrosa, espelhenta! Ali tudo refletia. É verdade
que no fim de contas as suas variações se reduziam aos
tons diversos, principalmente do vermelho, que ela assu-
mia. Mas que riqueza!
Ia da brancura lirial à rubicunda tonalidade dos to-
mates maduros. E, como há sujeitos que, pela letra, pelas
linhas das mãos, por outros sinais, pretendem decifrar as
emoções alheias, alguns havia entre nós que tinham che-
gado a fundar uma ciência nova: carecomancia. O 114, o
mais endiabrado de nós todos, tirava prognósticos segu-
ros, quer da nuança especial assumida pela careca, quer
do lugar por onde ela começava a colorir-se – porque,
dizia ele, a vermelhidão, ora vinha da direita, ora da es-
querda, ora de trás ora para diante... A cólera, a simples
contrariedade, a vontade de rir fortemente contida, ti-
nham manchas diversas.

548
Medeiros e Albuquerque

O 117 era o nosso mago, o nosso adivinho, meteoro­


lo­gista sagaz, que pressentia tempestades no céu cor-de-
rosa daquela calva.
Fosse como fosse, um belo dia, deu-se na classe um
charivari medonho. Na semana anterior tinha havido
dois dias feriados; naquela em que nós estávamos a folhi-
nha marcava outro. O Gomes, conversando com o diretor,
dissera-lhe que seria melhor não dar saída, ponderando
que se aproximava a época dos exames.
Quando a resolução foi tomada, quando principal-
mente nós soubemos que a iniciativa partira do Gomes,
ficamos furiosos. Organizamos o que o 117 chamou uma
“pateada muda”. Nem um grito, nem uma palavra, nem
um gesto de revolta. Todos, porém, deixariam os livros
nas carteiras sem abri-los e passariam as duas horas do
estudo a olhar a careca do Gomes.
Dito e feito. Éramos cento e vinte rapazes. Entramos
em ordem na sala de estudo, cada um sentou-se e o inspe-
tor tomou o seu lugar no alto do estrado. Não se abriu um
livro, não se mexeu uma folha de papel. Silêncio profundo.
O Gomes, admirado, examinou a sala, pressentiu qualquer
coisa de revolucionário e atirou à classe uma ordem seca:
– Estudem!
Ninguém se moveu. Todos, obstinadamente, fitavam-
lhe a cabeça. O que se passou naquela careca eu sinto que
não lhes poderei jamais dizer, com toda a verdade do caso!
Ondas vermelhas, ora a cobriam toda, ora afastavam-se...
Havia momentos de absoluta brancura: parecia, então,
uma bola de marfim. Logo após vinha, porém, uma vaga
de sangue que a vestia de escarlate... Que tempestades de
cólera haveria lá por dentro?
– Estudem! – berrou de novo o Gomes.
Mas, teimosos, duzentos e quarenta olhos verruma-
vam-lhe o crânio nu.

549
As calças do Raposo

Já, então, a vasta calva não empalidecia mais... Tinha


chegado ao vermelho fixo, ao ultravermelho. Passou ao
roxo – um tom absolutamente novo para a perspicácia
dos cento e vinte!
O inspetor ergueu a cabeça e fitou-nos. Estava conges-
tionado, com os olhos a saltarem das órbitas, furioso:
– Estudem! – rugiu colérico.
Jogar assim a sério por tanto tempo era empresa difí-
cil. Alguns, ao passo que a ira do Gomes ia crescendo, sen-
tiam desejo louco de rir. Quando, pela quarta vez, ele sol-
tou um murro na mesa e gritou um novo, um tonitruante,
um pavoroso – “Estudem”, o 63 não pôde mais se conter:
teve um frouxo de riso, alto, inconveniente, e de mais a
mais, contagioso. Ninguém conseguiu resistir... Nunca se
viu gargalhada mais epidêmica: sacudiu, de ponta a pon-
ta, a sala inteira.
O resto é que foi o diabo...
O Gomes, perdida a calma, absolutamente fora de si,
atirou-se a um de nós para dar-lhe. Em um momento,
todos estávamos em bolo a defender o colega, a socar, a
pisar, o desgraçado inspetor...
Houve um sarilho medonho. O desgraçado, tendo
apanhado tão monstruosa sova, foi, ainda por cima, des-
pedido do colégio.
É evidente que depois disso a entrada do Raposo assu-
mia uma importância especial.
Que homem seria o nosso novo inspetor? Poderíamos
com ele?
Mal o vimos, dissemos todos intimamente:
“Vamos fazer o que quisermos, vamos pintar a manta!”
Era um velho alto, magro, de cara comprida. Usava
barba toda, uma barba muito rala, que mal lhe vestia o ros-
to pálido, escaveirado. A testa era alta e larga, inteligen-
te. Os olhos pretos tinham, entretanto, uma expressão de

550
Medeiros e Albuquerque

humildade, como jamais eu vi igual; olhos súplices, olhos


de queixa e medo. Vestia uma sobrecasaca muito velha: ve-
lhíssimos eram também os punhos, o colarinho, a gravata
– tudo a desfiar-se. Tinha, contudo, um quê de homem de
boa sociedade; via-se que aquela roupinha surrada estava
escrupulosamente escovada, limpinha, direitinha...
Ao mesmo tempo em que o Raposo assumia o lugar
de inspetor, um novo aluno aparecia. Era um filho dele.
Tinha doze para treze anos, figura muito simpática, olhos
e cabelos bem negros, aspecto gracioso e de viveza inte-
lectual.
Apesar de tudo, foi acolhido com desconfiança. O 89
pareceu interpretar o pensamento geral, quando disse no
recreio:
– Vai ser um espião!
Nunca, entretanto, previsão alguma foi mais falsa!
Como se passou a vida desse menino, nos cinco anos em
que fornos colegas, mal se imagina.
O velho Raposo era homem de certa cultura. Quando
moço, fora na sua província político militante, ardente,
pronto sempre ao combate pelo seu partido. No jorna-
lismo, nos manejos eleitorais, mais tarde na Assembleia
Provincial, tinha sido dos mais ativos, dos mais inteligen-
tes. Começou, porém, ao cabo de certo tempo, a decair
consideravelmente. Não é que se lhe tivesse apagado a
inteligência, o merecimento. Quebrara-se nele a mola da
vontade. Um desânimo inexplicável o tinha ido arredan-
do das primeiras filas combatentes. Por quê? Quem o sa-
beria dizer? Talvez esses pequenos desgostos, pequenas
contrariedades domésticas, que não aniquilam de uma
vez, mas limam pouco a pouco, roem de mansinho toda
a energia dos que se julgam mais fortes... Um dia, os do
público, que não pressentiram a ação extremamente lenta
desse mal microscópico, veem com assombro, sem expli-

551
As calças do Raposo

cação alguma, o grande tronco que parecia tão robusto...


É um desabamento, um naufrágio.
Foi, de fato, um naufrágio, o do Raposo. Em um só
ano, deixou a política, deixou o jornalismo, morreu-lhe
a mulher, viu-se desempregado, desamparado, lutando
com a miséria. Tinha um filho: pôs nele todos os seus so-
nhos de futuro. Que futuro podia, entretanto, dar-lhe?
Certo dia, subiu as escadas do palácio, onde morava o
presidente da província, seu companheiro da Assembleia,
para pedir-lhe um lugar de porteiro.
– O que, Raposo!... Não é possível!... Você feito por-
teiro! Que se diria do nosso partido! Não, senhor, eu lhe
darei coisa melhor. Seria uma vergonha, não para você,
mas para nós...
O Raposo saiu desconsolado, sorrindo tristemente,
sem ânimo para dizer que comia apenas uma vez por dia
– e mal... muito mal!...
Passaram semanas; nem porteiro, nem a tal “coisa
melhor”... O presidente esquecera-se. Ele viu então que,
naquele acanhado meio provinciano, a mesma estúpida
objeção surgiria em todos os lábios.
Quis vir para o Rio. Aqui, ninguém o conhecendo, po-
dia até ser cocheiro ou varredor de ruas. Voltou ao palácio
e obteve duas passagens gratuitas. Trazia algumas apre-
sentações. De nada lhe serviram. Afinal foi ter ao nosso
colégio. Propôs ao diretor ganhar 25$000 por mês, con-
tanto que o filho aí estudasse. O diretor aceitou.
O Raposinho – corno nós lhe chamávamos – era real-
mente a mais meiga das criaturas. A despeito da primeira
prevenção, fez-se amar por todos.
Por todos, não. Havia um grupo de dez ou doze que o
detestava: a escória do colégio, os rebeldes, os de mau ca-
ráter. Um deles principalmente, o 69, a quem nós chamá-
vamos o Fuinha, multiplicava-lhe as picardias, as pilhérias
de mau gosto.

552
Medeiros e Albuquerque

Mas, assombroso de dedicação era o procedimento do


velho inspetor. Adorando o filho, chegava a privar-se de
falar com ele durante a semana inteira, só para não acusa-
rem o menino de ser o espião de seus colegas.
Dava-lhe apenas – pela manhã e à noite – a sua bênção
e acompanhava-a de um beijo; isto mesmo fazia-o bem
claramente, à vista de todos.
Quando um fato ocorria, digno do castigo e cujos au-
tores não eram conhecidos, o que obrigava a punir o gru-
po dos mais próximos, o Raposo incluía sempre o filho.
O velho ficava às vezes com os olhos cheios de lágrimas. A
injustiça revoltante era para ele, que praticava conscien-
temente, só para não o acusarem de proteger o pequeno,
uma dor de alma. Temia perder aquele emprego, inter-
romper os estudos do menino. Estava pronto a submeter-
se a tudo.
Certa vez, na classe, alguém, no meio do silêncio ge-
ral, pisou a cabeça de um fósforo de estalo. O inspetor
perguntou quem fora. Ninguém se acusou. Insistiu. Viu-se
então o Fuinha, cinicamente, levantar-se para dizer:
– Eu sei quem foi, seu inspetor, foi seu Raposinho.
Era a mais evidente das falsidades: o estalo partira da
outra banda da sala. Mas o velho teve apenas um momen-
to de hesitação. Voltou para o filho os olhos mansos, os
seus tristes olhos de cão batido, e mandou-o de castigo.
Houve em toda a classe um movimento de revolta. O 63,
um bom e leal companheiro, que estava ao lado do Rapo-
sinho, olhou para o Fuinha, como para dizer-lhe: “Tu me
pagas!”, e levantou-se:
– É mentira. Quem fez o barulho fui eu.
Todos nós compreendemos que ele se estava acusando
em falso, indignado pela infâmia do Fuinha. Mas o Ra-
posinho, que já se erguera para o castigo e viu também a
generosidade do colega, atalhou logo:
– Não, senhor, fui eu mesmo...

553
As calças do Raposo

O inspetor ficou perplexo. Logo, porém, o verdadeiro


autor confessou sua falta. Como, porém, saber qual dos
três que se acusavam fora, de fato, o responsável? Toda a
sala ansiava por ver como se decidiria o caso. O inspetor
voltou-se para o filho:
– Só uma pessoa pode ter feito o mal. Deve ter sido o
senhor, porque, além de se acusar, foi visto pelo seu cole-
ga, que o denunciou... Vá para o castigo.
Nós tremíamos de raiva – raiva do Fuinha. Minutos de-
pois, tocou a sineta do recreio. Descemos, em forma, dois
a dois, como um batalhão. Mas assim que chegamos ao
pálio, mal o inspetor dera ordem para debandar, ouviu-se
um formidável sopapo, que o 63 aplicava na bochecha do
Fuinha, e todos, com a fúria que estávamos, caímos-lhe
em cima, aos socos, aos pontapés...
O diretor, chamado, veio a saber a realidade do fato,
e, fingindo-se embora muito zangado, deu-nos um simu-
lacro de punição.
O Raposo tinha conquistado a estima geral. Fez-se res-
peitar pela brandura, pela delicadeza com que nos tratava.
Nos colégios, um dos motivos por que os inspetores não
infundem respeito aos alunos é pela sua habitual ignorân-
cia: são para os meninos um motivo de troça. Com ele,
porém, não sucedia isto. Era para nós um auxiliar, um tira-
dúvidas solícito, bondoso, instruído, que sabia explicar as
coisas claramente. Do seu antigo ofício de jornalista ficara-
lhe uma certa elegância de linguagem. Só havia um que
raramente o consultava: era o filho; o velho evitava que o
acusassem de preparar as lições do pequeno. Este, porém,
inteligente e aplicado, só tinha notas boas e ótimas.
Todas estas virtudes do Raposo não impediam que
nós brincássemos, que lhe déssemos sobejos motivos de
aborrecimento: travessuras naturais, que não podíamos
reprimir.

554
Medeiros e Albuquerque

O velho inspetor saía de quinze em quinze dias com o


filho. Guardava sempre um dinheirinho daqueles magros
25$000 para levá-lo ao teatro, para fazê-lo passear, para
vesti-lo com esmero. Quanto a si, era de uma avareza ina-
creditável: teve uma sobrecasaca que lhe durou três anos!
Não se encostava nem na cadeira nem em parte alguma,
para não gastar a roupa. Ao sentar-se, forrava a palhinha
com um jornal para assim poupar mais as calças. Chega-
va, às vezes, a ficar com a cabeleira de nazareno, a fim de
economizar, enquanto fosse possível, a despesa necessária
com o seu corte. Apesar de tudo, era asseadíssimo. Por
mais surrada que estivesse sua roupa, andava sempre sem
nem grão de poeira, limpinha, escovadinha. Mas a avare-
za que tinha para si era compensada com os milagres de
prodigalidade que fazia para o filho! Os magros 25$000
do seu ordenado cresciam, multiplicavam-se, chegavam
para tudo. Vestia o Raposinho com apuro, dava-lhe quan-
to precisava, desde os livros de classe até os brinquedos.
Meninos muito mais ricos do que ele – e quem não o era! –
não apresentavam o bem-estar que ele demonstrava. Era,
deveras, a pérola do colégio. Fomos de ano em ano até o
fim do curso. Fizemos os últimos exames, completamos os
preparatórios. O Raposinho teve excelentes aprovações.
Para comemorar a saída de cada turma, o diretor dava
uma pequena festa. Quem viu em qualquer parte uma
dessas festas escolares, já sabe qual é o seu padrão inva-
riável. A nossa foi como as outras. O diretor teve, porém,
uma ideia delicada: mandou fazer para cada um dos que
saíam uma espécie de fé de ofício, caderno de todas as no-
tas escolares. Era um livro de folhas de pergaminho. Cada
folha tinha sido consagrada a uma aula. Transcritas todas
as notas, havia em baixo a assinatura e uma frase de sau-
dação do professor respectivo. No frontispício, o retrato
do diretor. Na última página o da turma que completava

555
As calças do Raposo

o curso. O livro estava ricamente encadernado, fechado


em um estojo de marroquim. Seria mais tarde uma agra-
dável lembrança da vida colegial.
A entrega tinha de ser feita em uma sessão solene: mú-
sica, discurso do diretor e de um professor, resposta de
um aluno, a seguir a dádiva dos prêmios – primeiro aos
da turma mais adiantada, depois às outras.
Nesses dias, a vasta sala de recepções enchia-se com
as famílias dos alunos, era uma multidão de moças, se-
nhoras, de graves sujeitos encasacados e enluvados. As fa-
mílias dos que terminavam o curso tinham lugar a parte,
bem à frente. O secretário do colégio chamava o premia-
do, o diretor entregava-lhe o livro, dava-lhe com um falso
ar paternal um beijo na testa e o menino voltava para
junto do pai ou mãe, que o abraçavam ruidosamente.
Contava-se de um pequeno, estudioso, mas endiabra-
díssimo, o 72, que só para pregar uma peça ao diretor
quando o fosse beijar, esfregara na testa, minutos antes
de receber o prêmio, um dente de alho! Daí por diante
o diretor passou a dar uns beijos mais circunspetos, mal
roçando os lábios na testa de cada um.
Apesar do convencionalismo de tudo aquilo, apesar de
conhecermos, ponto por ponto, como correria cada um
dos detalhes da festa, ela nos punha num júbilo louco.
Demais, era para o resto dos colegas o momento das fé-
rias; para nós – uma turma de quinze – a saída definitiva.
O Raposo estava radiante de alegria. Tinha tido, dias
antes, uma preocupação; que faria do filho? Onde iria ele
morar, enquanto cursasse a Faculdade de Medicina?
Felizmente, tudo se resolvera do melhor modo. O di-
retor o aceitara como professor de História, tendo apenas
direito a casa e comida. Por outro lado, entretanto, os or-
denados do velho ficaram elevados a 60$000 – 60$000,
uma fortuna!

556
Medeiros e Albuquerque

Naquele dia, o inspetor inaugurou uma fatiota nova:


sobrecasaca e colete pretos, calças claras. Tinha uma gra-
vata elegante, botinas de verniz, estava pimpão, catita, ja-
nota... Mais do que isso: parecia ter arranjado uma cara
também nova... Não porque tivesse feito a barba e cortado
o cabelo, que estava aparadinho com toda a correção, mas
porque os seus mansos olhos de cão batido eram bem ou-
tros: rutilavam, tinham o desusado brilho de uma alegria,
de que ninguém os vira jamais revestidos: eram olhos de
triunfador!
A notícia de que o Raposinho ia ser professor divul-
gou-se logo no colégio. Todos olhavam sorrindo para o
futuro catedrático com apenas os seus dezoito anos de
idade. É verdade que ele fora um aluno distintíssimo. Mas
a transição não deixava de ser muito brusca. Demais, ele
aí estava franzino, pequeno, delicado –, e todos nós lem-
brávamos do antigo professor, um velho alto, corpulento,
sempre lambuzado do rapé que lhe pingava do grande
nariz rubicundo.
Tivesse embora, um mês depois, de vir a ser o senhor
Professor, o Raposinho seguiu, como nós, para a sala de
estudo. O diretor temia que os pequenos sujassem a rou-
pa, que os maiores se espalhassem fumando às escondidas
pelos cantos da casa, e mandou que todos ficassem ali sen-
tadinhos à espera da festa, que devia começar às 11 horas
em ponto.
Fomos. O Fuinha lá estava, desesperado com a notí-
cia de que o Raposinho ia ser um dos seus professores,
olhando-o com olhos perversos de cólera e inveja.
Na mesa, o velho Raposo tinha uma fisionomia cheia
de contentamento. Não havia quem não houvesse notado
as suas calças claras, absolutamente escandalosas, porque
até então ninguém o vira senão de preto. Na sala, o silêncio
não era grande: as conversas entre vizinhos tinham sido

557
As calças do Raposo

permitidas. De quando em quando, um menino, levantan-


do-se, aproximava-se da mesa do inspetor, a fim de pedir-
lhe, segundo a frase consagrada, “para ir lá dentro”.
Afinal chegou o momento da festa. O salão nobre en-
cheu-se. A música tomou o seu lugar numa saleta ao lado.
Havia um reboliço de leques, de plumas, de chapéus em
cabeças de moças... Aromas diversos espalhavam-se pelo
ar, já das flores, que se estendiam em festões, já dos pe-
queninos lenços femininos agitados a cada momento... A
música tocou em surdina uma valsa dengosa, que parecia
enroscar-se em meneios lânguidos... Houve uma pausa...
O rumor das conversas fazia-se mais alto... Todos nós to-
mamos lugares; entraram os professores. A música vibrou
de novo. Acabada ela, seguiu-se o discurso do diretor e
depois o do professor incumbido de saudar-nos. Era um
velhinho, lente de retórica, trêmulo e fanhoso. Começou
em latim com uma frase de légua e meia:
“Ha studia adolescentiiun alunt, senectutem oblectant­,
secundas res ornant, adversis solatium ac perugiunt
prebaent­, delectant domi, nom, impediunt foris, pernoctant­
nobiscum peregrinantur, rusticantur.”
Nós tínhamos ouvido isso dez vezes, vinte vezes, cem
vezes: nenhum ignorava essa apologia do estudo, sabía-
mos que era de Cícero, conhecíamos sua análise grama-
tical e lógica, estávamos fartos dela! O velho deu o seu
recado como pôde, teve palmas, a música tocou uns com-
passos de qualquer coisa e seguiu-se com a palavra, o Ra-
posinho.
Quero crer que tenha dito as banalidades naturais:
creio tanto mais, quanto no momento achei-o sublime.
A sua ênfase juvenil contrastava, porém, com o ramerrão
monótono do velho lente. Fizemos-lhe uma ovação. A or-
questra deu-nos mais uma fatia de música, para indicar o
intervalo, e começou então a distribuição dos prêmios.

558
Medeiros e Albuquerque

Fui eu o primeiro chamado. Ouvi ler a minha fé de


ofício – que por sinal não fora nos primeiros anos um
prodígio de brilhantismo.
O diretor disse-me as vagas frases paternais do esti-
lo, deu o beijo habitual e despachou-me com o prêmio
debaixo do braço. Saí como um conquistador comovido,
e caí nos braços de meu pai, que me esperava. Era de
praxe que “nesse momento solene” a música tocasse os
primeiros compassos do hino brasileiro. Assim se fez. A
cerimônia continuou.
Nisto, com um gesto discreto, vi que o diretor me cha-
mava.
– Olhe, meu filho, você tenha paciência, não está aqui
ninguém que me possa fazer este favor: vá lá dentro e
peça a seu Raposo que venha, porque é a hora de dar o
prêmio ao filho dele...
Estávamos no intervalo entre o segundo e o terceiro
aluno. O Raposinho era o quarto. A distribuição prosse-
guia. Corri todo o colégio. Perguntei a criados, a empre-
gados, a quantos encontrei pelos corredores, dos raros
que não estavam na sala. Ninguém sabia. Ouvi a músi-
ca voltar ao hino. Quando, porém, cheguei a uma porta
para verificar se o velho tinha entrado, o diretor pulara
o nome do Raposinho, chamara o imediato, que acabava
de receber o prêmio e estava nos braços do pai, abraçado,
afagado... O velho alisava-lhe os cabelos com um gesto de
meiguice maternal...
Saí de novo à procura do Raposo. Bati os dormitórios,
os refeitórios, até o recreio, até a cozinha! Duas ou três
vezes voltei à sala ao ouvir a música. Nada! O diretor ia
deixando o Raposinho. Os que saíam, lá estavam rece-
bendo os agrados de mães, de irmãs... Eram beijos, eram
risos, eram abraços...
Afinal descobri o Raposo.

559
As calças do Raposo

Como o descobri!
Espiei pelo buraco da fechadura do gabinete de Física
e lá o vi espreitando também pelo da porta, que comu-
nicava para o salão. A porta ficava justamente ao lado da
mesa do diretor: dali ele via tudo. O Raposo estava de
sobrecasaca e colete, mas sem as calças: as abas da sobre-
casaca caíam sobre as ceroulas. As calças, tinha-as ele de-
penduradas no braço.
O Fuinha, no momento em que saíamos da sala de es-
tudo, havia tomado uma pena molhada em tinta e sorra-
teiramente salpicado as calças claras do inspetor. Quando
o velho ia entrar no salão, um colega fez-lhe notar o fato:
sobre o fundo cinzento claro, cinco ou seis manchas pretas
destacavam-se bem na frente. Não podia assim assistir à ce-
rimônia. Ao perceber a coisa, as lágrimas saltaram-lhe dos
olhos. Fechou-se naquele gabinete, tomou uma escova e,
tiradas as calças, começou a lavar as nódoas para ver se elas
saíam. Não foi possível! Nisto, a solenidade começara.
No momento em que o surpreendi, nada era mais gro-
tesco do que ver aquele velhote, de sobrecasaca e ceroulas,
em um dos braços as calças e no outro a escova, espiando
por um buraco de fechadura!
Pobre diabo! Até naquele dia o caiporismo o perse-
guia! Todos tinham o direito de gozar o triunfo de seus
filhos, todos podiam abraçá-los, beijá-los... Só ele, ali es-
tava, preso, ridículo... O diretor foi dando os prêmios a
um por um. E era sempre o mesmo espetáculo, as mesmas
demonstrações de alegria dos parentes jubilosos!
Afinal, chegou a vez do Raposinho. O diretor tinha-o
reservado para o fim. Não vendo chegar, nem eu, nem o
velho, e não faltando mais ninguém, teve de chamá-lo.
Chamou-o, entregou-lhe o que lhe cabia e, em honra
dele, pronunciou um pequeno discurso, anunciando que
aquele rapazola ia ser um dos professores do colégio. Disse

560
Medeiros e Albuquerque

o seu mérito, o seu amor ao trabalho, o seu nobre caráter


– e abraçou-o com efusão. Houve palmas, muitas palmas...
A música, para dominá-las, vibrou mais forte... O pobrezi-
nho, entretanto, acanhado, esteve um momento perplexo,
no meio da sala, sem saber bem para onde devia ir... Nem
um só dos colegas deixara de ter dois braços a que se aco-
lhesse; só ele não os achava! Não compreendia a ausência
do pai. O coraçãozinho batia-lhe de emoção e susto...
E durante esse tempo, a olhá-lo pelo buraco da fe-
chadura, chorando de orgulho e pesar, o Raposo, cada
vez mais grotesco, estendia ao filho, em trejeitos mudos,
como se ele os pudesse ver, os braços era que o queria
apertar naquele momento! As lágrimas, que lhe caíam em
fio, ele as ia limpando distraidamente nas calças claras,
manchadas pelo Fuinha...

561
A menina do nome de flor1
Micheliny Verunschk

O nome de flor deveria ter servido ao menos para sua­


vi­zar a loucura, abrandar um pouco a menina louca que
era carne da mesma sua, a menina de delírio como ele, o
professor, homem de figuras de linguagem, preferia. Do
dia em que ela nascera, a parteira contava a todos, ain-
da repleta de pontos de exclamação, dos maravilhamen-
tos que se deram. Contava que vira o mar pela prima vez
saindo do meio das pernas da mulher do professor, ondas
e ondas, um horror de água azul-turquesa e uma enormi-
dade de algas e conchas carmesins e peixes estrambóticos
que, só cabe­ça e rabo fino, arengavam entre si por pérolas
muito moles. Contava ainda da demora de criança, só mar
e mar, como se aquela mulher de mar estivesse infeccio-
nada. Não ficaria espantada se a mulher parisse uma nau
ou fragata, jangada que fosse. E tudo ela contava cuspin-
do interjeições e merirmão, merirmão. De maneira que,
quando a menina de nome de flor apontou ou aportou no
mundo, os desandos e angústias já tinham sido tamanhos
de tão largos que ninguém deu fé do pássaro preto, que
dizem bacurau, ensimesmado no alto do camiseiro com
dois olhos de má lua espiando a recém-nascida.
A memória da cidade rezava desfiando um rosário sem
fim cujas contas eram os doidos que passaram: Tonha,
Mané da Gata, Esperança, Enviesado, Dióclos, Maria Diá,
Eulália de Francisquinha: glória ao padre eterno, ao seu
filho e ao santíssimo espírito, amém. Doidos coloniais, im-
periais, republicanos, um bornal cheio deles, todos mar-
cados no signo do pássaro preto, aquele outro que ferrava
1
Título original: Dia 30 – A menina do nome de flor (Lua penúltima).
Micheliny Verunschk

com seu bico quente de brasas vermelhas crianças que sãs


poderiam até ter sido, caso não fosse tempo da desova.
Que era o que também a memória da cidade contava, que
o haver por ali tantos desajuizados era obra do bacurau,
que depositava ovos luminosos nas bocas dos inocentinhos
mal saíam estes das entranhas de suas mães. E assim, sem-
pre que uma mulher engravidava, a apreensão se instalava
na casa, de malas e cuia na mão. Tomava assento, estava
presente no almoço e no jantar, no dormir e no acordar,
ia para a lida e armava rede, acampando com pais e pa-
rentada até que a criança crescida desse sinal de régua cer-
ta. Medo justo, pois que todos desconheciam os critérios
de escolha do grão-vizir noturno, o pássaro, aqueloutro,
o bacurau. Contava também que seu Zuquinha e a finada
mulher dele enfrentaram a ave por ocasião do nascimento
de Ednaldo, luta feia em que a mulher saiu sangrada de
bico, um olho vazado, mas o menino ileso. Ednaldo ins-
pirara cuidados, mas cresceu sem sinal ou sequela, apesar
do jeito triste de estrangeiro. Era homem de poucas falas,
mas isso seu pai e todos entendiam como virtude de seve-
ridade, que homem nenhum precisaria de se escorrer em
palavras e risos num escandaloso feminino de cacimbas.
E estes eram os orgulhos de seu Zuquinha e de sua finada
mulher, ter visto, pelejado e vencido o bacurau, embora
não percebessem bem ou não quisessem ver a cicatriz em
Ednaldo, que afinal toda terra em contenda de guerra
santa traz em si os despojos do vencido e do vencedor.
E a menina do nome de flor crescia e doida mansa
não era. Quebrava tudo. Bibelôs, espelhos, a paciência da
mãe. Mordia a madeira dos móveis. Se espojava na terra,
cadelinha nova. Babava palavrões e heresias, cadelinha
hidrofóbica. Jogava pedras em quem passasse pela frente
de sua casa e se abraçava com braços e pernas e cabelos
quando sentia medo. E medo sentia do apito doloroso do
trem, coração carpindo uma estranha música que só aquie-

563
A menina do nome de flor

tava nos braços do pai e do minha flor, minha flor que ele
dizia, remédio bom. Os médicos falavam palavras ácidas,
elétricas, internação, eletrochoques, coisas que desqueria
o pai veementemente, tirando do sobretudo engomado
de giz motivos e motivos, que era como chamava os seus
medos. Que ela era um bichinho incômodo, bem sabia,
mas como trancar a sua menina tão longe do seu amor?
Melhor que permanecesse em casa mesmo.
Entretanto, Deus fizera a mulher do professor de uma
costela impaciente, até intolerante e de sua boca sempre
saía a palavra detestada, internação. Palavra que ele fingia
e fingia não escutar. Muitas vezes em que ela estava com a
cabeça em seu colo, ele cismava em pensar de onde viera
afinal o quinhão da loucura: da família dele, se da famí-
lia da mulher. Muitas vezes era mesmo tentado a crer na
superstição do povo e do seu pássaro enlouquecedor de
crianças, mas a lembrança do parto difícil era mais aceitá-
vel como causa que essas invenções e crendices.
Um dia, a tempestade chegou por meio das mãos de
relâmpago da menina de nome de flor que as enterra-
ra com força no pescoço do irmão, pagãozinho ainda. E
Deus nos socorra que ela quase mata o pequeno, e não
conseguindo, quebra-quebra contrariado dentro de casa,
depois o uivo na rua e muito trabalho de homens para a
conter em sua fúria de 12 anos. A exigência da mulher,
dessa vez seria cumprida e ele, o professor, no gatilho de
concordar, levou a filha no primeiro trem para o sanatório
distante, cortante. Noites e noites escutava seu grito que
viajara trezentos quilômetros para encontrá-lo caído num
alçapão de saudades. Sempre que podia a visitava e se
espantava como diferente era a cada vez que a via, menos
ela, alheada, em que luas passearia agora?
Certa vez, numa visita, o professor sentiu que a mor-
talha da morte a cobria e decidiu levar a moça de nome

564
Micheliny Verunschk

de flor para morrer perto dele, em casa. Aninhou seu


medo no colo dentro do trem e afagou seus cabelos com
o minha flor, minha flor. Ela durou ano ou ano e meio,
até que, numa noite, grandes asas a cobriram e a levaram
flutuando para uma nau, onde todos os outros a espera-
vam: Bem-te-vi, Tonha, Mané da Gata, Cabelouro, Mãe,
Esperança, Enviesado, Pedro Berra, Eulália de Francis-
quinha, uma gata desgrenhada e hidrofóbica parindo ga-
tinhos mortos, contas do antigo rosário e outras contas
mais novas, como Ednaldo, que era quase um decalque
de desenho dos meninos da escola. Foi ele quem a ajudou
a embarcar e ele, misteriosamente, sorria. Antes de partir,
a nau, dita Catarineta, passou pela casa de seu Raimundo
e deixou por lá, empoleirado na linha do teto, o bacurau.
Daí a pouco, mais uma criança nasceria.

565
Os cinco reinos ganhos e o reino perdido
Milton Lins

O Mercedes-Benz, em baixa velocidade, derrapou no


asfalto molhado e bateu com a calota no meio-fio, sob o
viaduto que seguia por cima de sua cabeça, naquele tre-
cho da rua. Paolo Labanca parou alguns metros adiante, o
raciocínio entorpecido. Levou os dedos da mão direita ao
pulso esquerdo e percebeu os batimentos irregulares e di-
minuídos, desta vez mais acentuados do que pela manhã.
Provavelmente tinha chegado a hora de trocar a pilha do
seu marca-passo cardíaco; mas, naquela véspera de Natal,
sua agenda impunha compromissos inadiáveis que cessa-
riam somente com o jantar de confraternização com os
cinco supervisores dos seus colégios, acertado para as dez
da noite. No painel do carro, o relógio marcava 18h5min.
Mas o tempo estava escuro, chuvoso e frio, naquele final
de dezembro, com a frente gelada vinda do sul; diferente
do ano passado, quando, ao contrário, uma onda de calor
superaquecia a noite da véspera natalina.
Sabia, de experiência passada, que o aparelhinho não
se desativava de uma vez, tinha pequenas falhas e voltava
a trabalhar regularmente. Por isso resolveu esperar para-
do naquele local. Fez um pequeno inventário de sua vida
solitária, de seu casamento fracassado, da ausência de
filhos, do trabalho intenso que preenchia a sua jornada
diária. Fizera um grande patrimônio, a partir do curso
preparatório para candidatos às escolas superiores. No
princípio, sozinho, ministrando ele mesmo várias maté-
rias, inclusive línguas. Sem que sentisse uma “explosão”,
Milton Lins

como se costuma dizer, o progresso de seus cursos se deu


como uma avalanche, e agora o maior número de bancas
escolares do País pertencia a ele, com o melhor rendimen-
to de ingresso nas faculdades. Tinha os professores mais
capacitados em todas as áreas e uma imensa população de
alunos que pagava caro, sem a existência de bolsas ou des-
contos especiais. Era também uma indústria privilegiada
de fazer dinheiro.
Percebeu que o pulso se regularizara. Pensou em seguir
adiante, quando começou a sentir náuseas, que foram au-
mentando. Abriu a porta e dirigiu-se à calçada próxima,
sob o viaduto, onde havia numerosos tonéis dispostos
perto de um muro. Protegeu-se com as mãos contra um
deles e vomitou. Novamente sentiu-se desfalecer um pou-
co e teve que se sentar no meio-fio, encostado a um dos
cilindros.
Entre os tubos lixeiros, sentados sobre papelões es-
tendidos no chão, cinco garotos conversavam e comiam,
resguardando-se da chuva e da frieza. E Paolo Labanca
ficou a ouvi-los.
– Quando acabar de comer esse pão, vamos passar na
pizzaria. Seu Lorenzo disse que na véspera de Natal ia
guardar um saco cheio de pedaços de pizza. Tem freguês
que deixa até metade de uma.
– O bom mesmo é o queijo da pizza.
– Eu adoro queijo.
– Eu também.
– E eu.
– Todo mundo adora queijo. Quem é que não gosta?
– O melhor queijo que existe é queijo do reino. É tão
bom, tão bom...
– Você já comeu?
– Eu não, mas Zezinho, meu primo, me disse. Ele uma
vez quase comia. Provou na casca, que é vermelha, e até
sonhou comendo um sanduíche inteiro com aquele gosto.

567
Os cinco reinos ganhos e o reino perdido

Paolo Labanca voltou a ter engulhos. Os meninos


compreenderam que havia dificuldades e se levantaram,
todos.
Pernambuquinho, dez anos, que parecia o líder e era o
mais sagaz, aproximou-se.
– Posso ajudar, patrão? O senhor não está se sentindo
bem. Pode pedir qualquer coisa e eu... a turma aqui pode
fazer.
– Ali no meu carro; a porta está aberta. No meio do
painel tem um telefone encaixado. Puxe que ele sai. Não
tem fio. Traga-o aqui.
O pivete voou e em segundos estava de volta. Laban-
ca conseguiu falar com seu motorista, recomendando que
viesse até onde estava num táxi. Não se julgava em condi-
ções de dirigir.
Em menos de meia hora o motorista chegou. Laban-
ca, socorrido pelos baixinhos, já estava sentado no carro,
no assento de trás, com a porta aberta, conversando com
eles. Estava melhor, sentia-se bem.
– Dois de vocês entrem na frente. Três aqui atrás. Per-
nambuquinho, junto de mim. Vamos conversando. Man-
fredo, para o restaurante francês, aquele do jardim suspen-
so. Eu vou jantar com esses meus amiguinhos. Têm uma
conversa mais interessante que a dos outros cinco. Às dez
horas você vai ao La Terrace, diz que eu estou indisposto,
paga a conta, janta também por lá – longe dos professores.
Telefone para o Teletáxi para deixar um carro à minha dis-
posição, esperando no restaurante “Belle Époque”.
– Tudo bem, doutor. Mas o senhor já está se sentindo
bem? Não quer que chame o médico?
– Nada disso. Já estou tinindo. Foi uma pequena falha
no marca-passo. Depois de amanhã vou trocar a pilha.
Não se preocupe.
No restaurante ficaram numa espécie de estufa, com
telhado de vidro, flores e plantas por toda parte. Havia

568
Milton Lins

uma grande mesa redonda, bem no canto, utilizada para


almoços ou jantares de uma só família. Ficaram espe-
rando enquanto a távola era preparada. Paolo Labanca
afastou-se e mandou separar cinco queijos do reino em
sacolas com o nome do restaurante e colocou no centro da
mesa para que cada um os levasse após a refeição que se
aproximava. Perguntou se algum deles já comera lagosta.
Nem sabiam o que era. Todos, menos Pernambuquinho,
que esclareceu: “É como um camarão bem grande, com
umas patas de monstro, que só tem em casa de gente rica.
Meu pai dizia, quando era vivo, que lá na minha terra já
foi comida de pobre”.
– Isso mesmo, garoto. Pois vocês vão comer lagosta à
Thermidor. E vão tomar suco de mangaba, lá da sua terra,
o melhor do mundo, como aprendi com a Emília, uma
menininha muito sabida, de Taubaté. Ela esteve no monte
Olimpo e descobriu que a comida dos deuses, chamada
ambrosia, era pura mangaba...
Paolo Labanca pediu uma cadeira de braços, mais con-
fortável, um coquetel de camarão e um vinho branco fran-
cês. Os cinco guris estavam vestidos com camisas tricolores
do São Paulo e calções e tênis brancos, comprados numa
barraca na calçada externa do restaurante e mudados na
rua mesmo. O visual estava alegre e as crianças, à propor-
ção que os pratos iam chegando, soltavam a língua.
– Meu pai tinha uma camisa igual a essa da gente e
dizia que era do Santa Cruz, o melhor time do Recife. O
escudo era diferente, mais bonito.
Paolo Labanca escutava os diálogos e reavaliava a inu-
tilidade de sua vida sem colaterais e descendentes, com
um patrimônio colossal, sem ter para quem deixar. Fize-
ra-se sozinho. A mãe morrera no ano de sua formatura.
Continuou com o pequeno restaurante italiano, morava
no andar de cima. Tirou o primeiro lugar nos três vesti-
bulares a que se submeteu. Passou oito anos dando aulas

569
Os cinco reinos ganhos e o reino perdido

ou assistindo aulas. Até que iniciou o próprio curso que


desprendeu a bola de neve. Trabalho diuturno. Dinheiro.
Negócios. Imóveis. Aplicações. Algumas viagens, de curta
duração, à Europa e aos States. E o assédio dos bancos.
Ele mesmo acionista de alguns...
De repente, sentado naquela poltrona, a ideia surgiu.
Adotaria aquelas cinco crianças. A noite de Cinderela pas-
saria a ser destino do pequenino quinteto. Pô-los-ia em
escolas, as melhores, uma governanta inglesa, arte, músi-
ca, línguas estrangeiras, pesquisaria aptidões. Transforma-
ria aqueles pobres subdotados em crianças ricas, assistidas
por professores e tecnologia moderna, morando em apar-
tamento de luxo, viajando. Ele próprio observaria em casa
uma experiência de geografia humana e confronto entre o
Livre-Arbitrismo e o Determinismo do meio. Faria seguros
de vida e de educação para os cinco. Sonhava. A tagarelice
infantil se fazia ruidosa. O fundo musical trazia acordes de
hinos e canções natalinas. Cochilou.
O tempo correu. Agora eram os meninos que começa-
vam a cochilar. O maître aproximou-se, distribuiu os paco-
tes com os queijos. Relutou em despertar o doutor, cuja
cabeça pendera para o lado, com o corpo obeso também
derramado sobre um dos braços da poltrona.
Aproximou-se mais. O semblante, estático e pálido.
Segurou seu braço. Abalou-o. Sacudiu-o.
– Doutor! Doutor! Os pequenos estão com sono, impa-
cientes. É tarde!
Era muito tarde. Paolo Labanca estava morto.

570
A construção do tempo
Montez Magno

Não houve tempo nenhum


em que não fizésseis
alguma coisa, pois fazíeis
o próprio tempo.
Santo Agostinho

O estranho menino que foi Edgar Wanderley, seus pas-


seios solitários, aos nove anos, por campos despovoados,
a sua frequente procura de lugares altos, morros e colinas,
onde contemplava a natureza em silêncio, olhava o céu,
embevecido e intrigado, esperava o sair das estrelas, per-
corria o espaço infinito até onde pudessem os olhos e a
imaginação, tudo isso o fazia ser chamado de poeta, por
alguns, de “menino esquisito”, por outros.
Fascinante, o andamento do tempo, deixando-o curio-
so por saber como se processava o movimento dos astros,
o rendilhado das constelações, levando-o à curiosidade e
ao desejo de saber cursar o científico, aos dezessete anos,
preparando-se para o vestibular, em 1943, não o realizan-
do por ser convocado para o serviço militar, na cidade
de Timbaúba, onde nascera, e da qual seria enviado, um
ano após, para a Itália, com o Regimento Sampaio, onde
outros jovens como ele se preparavam para enfrentar as
batalhas cruentas, ceifadoras de juventude.
É lá que conhece um conterrâneo de Pernambuco, com
o qual faz amizade, e a quem expõe suas ideias e preocu-
pações a respeito do mecanismo celeste, do tempo e suas
implicações com o mundo. O companheiro de armas, coin-
A construção do tempo

cidentemente, manifestava as mesmas preocupações, mas


não tencionava se tornar cientista ou inventor: sua vocação
fazia-o preferir a carreira literária, à qual se dedicaria com
empenho e sucesso, logo regressasse à pátria.
Os dois conversavam muito, sempre que podiam, nas
horas de trégua, cada qual falando de seus projetos e am-
bições particulares. Numa dessas conversas, Osman Lins,
o companheiro de Edgar Wanderley, fala a propósito de
seu interesse por mecanismos de relojoaria, referindo-se,
naquela ocasião, ao célebre relógio de Julius Heckerthorn,
da sua complicada história, de como funcionava, às vezes
ao som da música de Scarlatti, em momentos intercala-
dos. Falou ainda da sua vontade de, algum dia, escrever
um livro, no qual descreveria o engenhoso invento.
Edgar Wanderley, impressionado com a história que
ouvira, anotou em uma caderneta todos os detalhes da
mesma, disposto, por seu lado, a criar algo parecido, se
escapasse vivo daquele horrível mundo de carnificina.
Passa o tempo disponível idealizando alguns inventos,
possivelmente influenciado pelo amigo. Durante uma pa-
trulha de reconhecimento, perde-se dos companheiros,
permanecendo três dias e três noites escondido em um
buraco no sopé de um monte, em pleno rigor do inverno
europeu, escapando, dessa maneira, de ser aprisionado
pelo inimigo.
Na segunda noite dessa terrível experiência, faminto
e com os membros entorpecidos pelo frio, adormecendo,
tem um sonho ou visão, na qual lhe aparece uma grande
bola esférica, dentro da qual dançavam números e horas,
minutos e segundos, os meses e os anos, em todos os sen-
tidos e direções.
Ferido na perna direita, perto de Verona, E. Wander-
ley é recolhido pela Cruz Vermelha ao hospital, onde, de-
pois de curado, encontra tempo para criar, com humor,

572
Montez Magno

as “Tartarugas SS”, utilizando capacetes de prisioneiros


nazistas. Distraía-se com essas coisas, esperando que tudo
aquilo terminasse, para, então, iniciar a concretização do
relógio que vira em sonho.
É promovido a cabo, ainda no hospital. Por sorte a
guerra termina e Edgar Wanderley consegue licença para
permanecer na Europa por mais três meses. Conhece
a Holanda, terra dos seus ancestrais. Visita Amsterdã e
Delft, adquirindo, nesta última cidade, A cosmologia da luz,
de Al Suhrawardi, e o notável Horologium oscilatorium, de
Christiaan Huygens, o “Arquimedes da Holanda”. Depois
vai a Paris, visitando o Museu do Homem, o Observató-
rio de Paris, e uma grande mostra de arte surrealista, fi-
cando encantado com uma tela de Max Ernst, “Éléphant
célèbre­”; compra alguns livros – entre eles, uma rara edi-
ção sobre Tantra e Locus Solus, de Raymond Roussel.
Volta ao Brasil, instalando-se novamente em Timbaú-
ba, onde pretende se dedicar ao estudo da mecânica e
iniciar a construção do seu relógio, baseando-se em no-
vas ideias sobre a mensuralidade do tempo. Passa alguns
meses apenas, convencido de que deverá isolar-se com-
pletamente. Vende uma pequena fazenda e compra uma
casa com cinco hectares em Triunfo, no meio do sertão
pernambucano, para onde se retira.
Em homenagem ao autor de Impressões da África, sua
propriedade recebe o nome de Locus Solus, saindo o in-
ventor de lá apenas para curtas viagens ao Recife e, mais
raramente ainda, ao Rio de Janeiro e a São Paulo.
Dotado de extraordinária habilidade manual, fabrica,
peça por peça, todo o mecanismo do relógio, entre 1946 e
1954. Escolhe a forma esférica, por ser a que se apresenta
em seu sonho, e por simbolizar a ordem universal dos
globos celestes.
O bojo esférico mede oitenta centímetros de diâmetro,
é transparente, de cristal, encimado por hastes em forma

573
A construção do tempo

de cata-vento, recolhedoras da energia necessária para o


seu funcionamento, saindo, de baixo, um tubo alongado,
como uma mangueira de plástico, presa a uma Caixa de
Ventos, ou Reservatórios de Ar, ou ainda, Depósito de
Eolo, como o chama, de preferência, Edgar Wanderley.
Sobre o globo transparente, exposto continuamente
ao sol e à chuva, uma numeração de 1 a 24, inserida em
linhas horizontal e perpendicular, rotativas, indicava, na
confluência dos números, o tempo, a linha da vida, re-
colhendo nuvens de vários tipos, ora distantes, ora pró-
ximas, cúmulos, cirros, estratos, nimbos. Suas formas e
contornos, pausa ou rápida passagem, influem no an-
damento das horas. Assim também a chuva e o sol, cada
qual de modo diferente, atuam sobre o relógio, surgindo
momentos de pontilhado júbilo ou estridente alegria. O
silêncio aparece em momentos inesperados, criados pe-
las longas ou breves passagens nubladas, cuja demora ou
rapidez alteram as funções de trabalho, ou se inserem,
placidamente, no ritmo natural das coisas.
Edgar Wanderley, contudo, pensa em situar o bojo es-
férico do relógio em uma tina de quatro metros de largura
por três de altura, semicircular, de bronze polido, girando
aquele, dentro da mesma, em um único movimento de
rotação, como a própria Terra, além dos outros, aos quais
estava naturalmente sujeito pelas leis que regem o plane-
ta sobre o qual, minusculamente, se apoiava.
Não querendo se afastar da força contida no signifi-
cado da origem dos mundos, em particular o seu, Edgar
Wanderley achava que, desse modo, a tina semicircular,
cheia de água, embora parada, simbolizava, em síntese,
os oceanos; o relógio esférico era a própria Terra, cada
vez mais invadida pela segunda natureza, a artificial, re-
presentada pelo próprio mecanismo interno do relógio;
finalmente, o vento, como força impulsionadora, simboli-

574
Montez Magno

zava simbioticamente o tempo que passa, célere ou lento,


empurrando no espaço as nuvens de vários portes, nas
quais podiam ser vistas inúmeras figurações de augúrios
arquetípicos, ou fulgurações fantásticas, estimulantes se-
renos de fantasias míticas, desejos de retomo paradisíaco,
contemplações poéticas sobre o transitório, imagens for-
talecedoras da imaginação criativa.
Ao redor da tina semicircular, Edgar Wanderley gravou,
em letras amarelo-ouro, a frase latina SATOR AREPO TE-
NET OPERA ROTAS, este palíndromo repetido várias ve-
zes, até fechar-se em si mesmo, como um friso contínuo, cuja
leitura, da esquerda para a direita, e vice-versa, dava, iluso-
riamente, ao leitor, a sensação pendular de um vaivém.
No entanto, E. Wanderley não se dava por realizado.
Baseando-se em um estranho desenho de Joahnnes Kepler,
publicado em 1596, na sua primeira obra, “onde pretendia
demonstrar a harmonia do Universo através da compara-
ção do sistema planetário com os cinco poliedros da geo-
metria, precisamente a concepção de Platão no Timeu”,
conseguiu introduzir novos elementos à sua invenção.
Aproveitando a energia solar, criou um sistema lu-
minoso que substituía os ponteiros como indicadores do
tempo. Uma vez que à noite a temperatura caía bastante,
influindo no andamento do relógio, construiu um depósi-
to de raios solares, batizado depois com o nome de Sola-
rium, que armazenava suficiente energia para a ilumina-
ção noturna da esfera de cristal.
Com isso uma nova informação foi acrescentada ao
invento: o desfile diurno de nimbos e cirros, repetia-se
à noite, graças ao processo da recorrência eterna, pro-
piciando apresentações coloridas e feéricas a nuvens de
contornos irregulares.
Entre 1954 e 1958, Edgar Wanderley realiza profundos
estudos de química celeste, convencido de que poderia re-

575
A construção do tempo

constituir certas condições naturais da passagem do tempo,


através da captação do segredo da lei do eterno retomo.
Passa os dias ora apegado aos livros, ora meditando silen-
ciosamente, nas noites frias do sertão, quando o céu limpo
abre-se em leque, de ponta a ponta, num convite místico
para o salto noturno. Sua inquietude leva-o a considerar
inacabado seu invento, sentindo que poderia introduzir no
mecanismo uma nova realidade, aparentemente metafísi-
ca, mas oriunda de experiências científicas concretas.
Lê o Tao ou O livro das mutações, ficando cativado pela
beleza de suas verdades dialéticas, mas não pode delas ser-
vir-se, a não ser no plano espiritual, por lhes faltar, a eles,
elementos e dados objetivos, como existem na mecânica.
Resolve ir ao Recife, onde passa cerca de duas sema-
nas, afastando-se de suas fatigantes pesquisas. Estamos
em 1958. Wanderley se entusiasma ao ver, recém-editado,
um livro sobre cibernética. Compra-o e, lendo-o, ocorre-
lhe a resposta para o seu problema.
Consistia em como excitar, pela radiação ultravioleta,
uma mistura de gases contida no bojo do relógio, a qual
reproduziria as condições da atmosfera primitiva.
Voltando a Triunfo, constrói um aparelho que permi-
te a circulação de um líquido em circuito fechado, tendo
por órgão principal o próprio bojo do relógio de oitenta
centímetros de diâmetro, sob um condensador, sendo de
alguns centímetros cúbicos por segundo a velocidade de
circulação do fluido.
Edgar Wanderley enche o bojo esférico de uma mistu-
ra gasosa, constituída de metano, amônia e hidrogênio,
sob as pressões, respectivamente, de vinte, vinte, e dez
centímetros de mercúrio. Levando em conta a sua vapo-
rização e a temperatura conseguida, próxima a sessen-
ta graus, a pressão total era quase de uma atmosfera. A
excitação, por outro lado, era assegurada por eletródios

576
Montez Magno

de tungstênio, enquanto uma bobina Tesla produzia faís-


cas diruptivas à semelhança de velas de automóvel. Edgar
Wanderley deixa o bojo esférico em funcionamento contí-
nuo por uma semana, tendo o cuidado de isolar as peças
mais delicadas, e, ao fim desse prazo, entrega-se a uma
análise sistemática dos compostos formados, graças aos
métodos cromatográficos.
O resultado foi sensacional: dentro do bojo se haviam
sintetizado compostos atmosféricos que representam a con-
secução do seu sonho mais recente: o controle, pela química
celeste, dos instantes primordiais do eterno retomo. Uma
nova dimensão fora acrescentada ao seu invento: o relógio
esférico, ao qual dera o nome de Timeu, não só marcava o
momento atual e o passado recente, mas ia além, trazendo
ao presente instantes atmosféricos do passado remoto, pri-
mitivo. Que mais faltava à sua invenção senão o reconheci-
mento? Assim não pensava o eterno insatisfeito Edgar, pois
lhe faltava ainda detectar, sob controle, o tempo futuro.
Durante todo esse período, E. Wanderley se descuidara
das finanças, percebendo subitamente que se encontrava
quase sem dinheiro. Resolve ir a Timbaúba e lá recebe do
pai, por conta dos seus direitos de herança, uma razoável
quantia que o deixa despreocupado, quanto a isso, por
cerca de dois anos. Superado o problema, volta novamen-
te aos estudos e meditações.
Em Locus Solus, cultivara um pequeno bosque e um jar-
dim, encontrando-se, este último, meio abandonado. Em
seus passeios diários, sente a necessidade de refazer o jar-
dim. Planeja e manda construir um lago, aproveitando uma
queda d’água existente em suas terras. Sente-se melhor com
as benfeitorias realizadas, chegando a convidar algumas
pessoas para uma visita à sua casa. Mas, precavidamente,
não lhes mostra o relógio, cobrindo-o com uma lona plasti-
ficada. Diz tratar-se de um simples reservatório de água.

577
A construção do tempo

Nos dias que se sucedem, o problema do tempo absor-


ve-o inteiramente.
Está quase desistindo de prosseguir no empenho de
completar o seu invento, faltando-lhe apenas incluir nes-
te a terceira e última etapa temporal: o futuro. Mas lhe
acontece receber pelo correio um livro, enviado não sabia
por quem, no qual, certo dia, sentado à beira do lago,
lê estes versos de Walther Von der Vogelweide, de quem
jamais ouvira falar: “Aquele que nunca teve um começo e
pode criar um começo, certamente poderá criar um fim
ou criar o futuro infinito”.
Evidentemente, o poema aludia a Deus, onipotente,
criador de todas as coisas. Apesar de não ser nenhum
deus, Edgar Wanderley achou que aquilo podia ser um
estímulo à sua inventividade, para que prosseguisse.
Se o presente, que implicava sempre na fluidez contí-
nua para o passado, determinava a detecção de duas esca-
las de tempo, como poderia, partindo do princípio inver-
so, obter a inserção do futuro, de modo antecipado? O fu-
turo lhe surgia como uma sombra mentirosa, e a verdade
do que iria acontecer, do devir, era problema que mergu-
lhava nas águas abissais da escatologia. Enredado em tais
dificuldades, ainda assim Edgar Wanderley compreendeu
uma coisa de relativa simplicidade: o presente e o passa-
do eram forças propiciadoras de uma outra força, eram
realidades temporais energéticas, e, como tais, poderosos
propulsores de uma terceira força. Assim pensava. A exis-
tência do futuro estava sendo provada a cada minuto do
presente, assim como o passado, que consistia, em termos
simples, em resíduos cumulativos do presente.
Do ponto de vista teórico, as elucubrações de Edgar
Wanderley se encaixavam, relativamente bem, ao seu modus
cogitandi. E poderia, coisa à qual estava inclinado, perder-
se em teorizações desse tipo, até a exaustão. O difícil era
conseguir materializar, no seu relógio, a detecção antecipa-

578
Montez Magno

da do que iria acontecer não só no futuro imediato, de um


a dois dias, como no futuro mais remoto, de vários anos.
Parado diante do complexo mecanismo do Timeu,
pôs-se a observá-lo, tentando vislumbrar a possibilidade
de uma resposta para o problema. Notou que na tina se-
micircular de bronze estampavam-se várias manchas es-
verdeadas, pondo-se a caminhar ao redor, olhando, como
em um mapa-múndi, formas recortadas de ilhas, conti-
nentes, oceanos, todo um mundo terrestre, espelhado e
grudado na tina, que há muito deixara de ser polida.
Quem as trouxeram senão o futuro? Se antes não exis-
tiam, não fora, pois, o passado que ali as depositara, mui-
to embora a ele também já pertencessem. Mas elas não
existiam no passado mais distante, quando construíra a
tina. Assim, se agora eram visíveis, com certeza, também
ontem ali se encontravam. E se ontem ali já estavam, antes
de ontem possivelmente já estariam. Então as manchas,
embora ali estivessem, visíveis aos seus olhos, eram sem
dúvida objetos do passado. Por outro lado, não tinham
vindo de antes, mas do depois, pois nada vem de uma coi-
sa que passou, portanto se elas vieram, vieram do futuro,
que é o que está sempre a se aproximar.
Desse modo, houvera uma transformação na tina, pois
aquilo que sempre é sempre não se transforma, sendo co-
nhecido pela própria inteligência. Se se transformara é
porque nem sempre fora.
Edgar Wanderley sentia-se estonteado com os malabaris-
mos da sua mente. Tratava-se de uma resposta insatisfatória,
pois se as manchas tivessem vindo do futuro, era aquele um
futuro recente. Era preciso que o relógio captasse coisas vin-
das do futuro longínquo, e, sobre isso, que ideia podia se
fazer de coisas que ainda não tinham sido?
Deveria mandar polir novamente a tina, apagando as
manchas de formas geográficas, ou conservá-las e esperar

579
A construção do tempo

pelos acontecimentos? Se as apagasse, estaria eliminando


dados visíveis do presente e do passado mais próximo.
Suas dúvidas e preocupações levaram-no por fim à
cama, lugar onde cessam todas as resistências, onde a
natureza, usando o bálsamo do sono, aplaina as tensões,
despedindo o cansaço.
Naquela noite, porém, as agitações do dia estavam de-
terminadas a não lhe dar descanso, e Edgar Wanderley
teve sonhos espantosos, sua mente transformava-se em gi-
gantesca tela panorâmica onde desfilavam, transportadas
da tina de cobre, as grandes manchas recolhidas pelo in-
consciente, agora ampliadas, movediças, e de várias cores.
Não havia tempo de detê-las e elas cresciam, invadiam
todo o espaço onírico, reservado às fantasias noturnas,
para sumirem depois, como se atraídas por um segun-
do espaço, paralelo ao seu mundo psíquico. Depois, pôde
observar que, perto de onde estava a tina por ele fabri-
cada, havia uma outra, suspensa, e em posição contrária,
cuja abertura ficava distante do chão uns quatro metros.
E lá estavam as manchas que vira sumir, como se recém-
vindas. Percebia algo distinto, alguma diferença, sem no
entanto atinar o que seria. Depois tudo fora se apagando
de sua mente e um grande hiato branco transpôs a ma-
drugada, até às cinco e trinta, quando acordou. Lembrou-
se imediatamente do sonho, encaminhando-se para o Ti-
meu, onde a tina permanecia muda e enigmática, haven-
do realmente alguma coisa estranha nela. Edgar rodeou-a
várias vezes até se dar conta de que todas as formas de
continentes, mares e ilhas, se haviam modificado, já não
eram iguais às que vira no dia anterior. Volta à casa, abre
em cima da mesa um grande mapa terrestre, e não lhe
é preciso muito tempo para perceber o que acontecera:
as formas e os seus contornos haviam, também, mudado
nas manchas da tina, era como se tivessem antecipado a

580
Montez Magno

concretização da teoria do afastamento gradual dos con-


tinentes. Aquilo que agora via bem poderia ser o nosso
mundo de aqui a quinhentos anos, ou mais. O futuro fora
captado de maneira estranha e aleatória, mas, quem sabe,
não fora o próprio tempo a interferir, num efeito de auto-
concentração intensiva, efetivando aquela mudança?
Edgar Wanderley estava atônito. Como pudera ser
aquilo? Racionalmente não podia aceitar aquele fenôme-
no, mas lá estava a realidade mostrada, como a lhe adver-
tir que nem tudo é programado, preciso, que o acaso age
por meios não matemáticos.
Vai ao banheiro, pensativo e incrédulo. Escova os den-
tes, fecha a tampa do armário, e assusta-se ao ver sua ima-
gem refletida no espelho: está diferente, como se hou-
vesse envelhecido vinte anos em uma noite. Estava com
quarenta e dois anos e parecia ter sessenta.
Caminha pelo jardim, depois de um café tomado de-
sajeitadamente, quase por condicionamento. Senta-se em
um banco de madeira, embaixo de um flamboyant florido,
a sua sombra coberta de pétalas carmins, espalhadas no
chão. Sente-se vazio, indagando-se se valera a pena tanto
esforço para construir o relógio, e agora saber que nada
fizera para terminá-lo. Que o tempo, como uma entidade
autônoma, um ser vivo e voluntarioso, agira por si mesmo,
fazendo por ele o seu trabalho. Via-se, ele mesmo, Edgar
Wanderley, como um homem que perdera o seu tempo, a
sua vida, para realizar um sonho do qual ninguém partici-
para; só ele, fechado em seu mundo privado, solipsista, ali
em Locus Solus, usufruíra de seu invento.
“A vida em si mesma é o tempo para o homem. Para
o homem, não há e não pode haver outro tempo fora do
tempo de sua vida. O homem é a sua vida. Sua vida é
o seu tempo”, recitou baixinho, Edgar Wanderley, como
uma oração, lembrando as palavras de Ouspensky.

581
A construção do tempo

Via o tempo desfilando em sua mente, em seu corpo,


como se ele mesmo fosse um relógio. Sabia do passado e
do presente. Agora, naquele instante, pensava o que seria
do seu próprio futuro.
Nunca havia pensado a respeito do seu próprio tem-
po, pessoal, ontológico. Agora, sente que deve dar outro
rumo à sua vida. Por isso vende à Prefeitura de Triunfo a
sua propriedade. Passa brevemente por sua terra natal,
onde se despede dos pais e irmãos. Um ano e meio depois,
seu pai recebe dele um cartão reproduzindo uma pintura
tantra do Mahâkâla – o Grande Tempo. No verso lia-se:
“Pai, finalmente envio notícias. Viajei por vários países
da Europa. Tudo mudado. Não consegui adaptar-me lá.
Em Londres, falaram-me de Auroville, onde me encontro.
Não sei quanto tempo fique. Talvez para sempre”.
Abraços afetuosos para todos. Do seu Edgar.

582
A última viagem do almirante Silva
Múcio Leão

Na antevéspera de o Princesa Isabel sair do Havre, o


comandante Granville comunicou-me:
– Isso é um aborrecimento dos diabos! Não há mais
viagem em que não tenhamos que transportar defuntos
para o Rio! Parece que esses brasileiros não fazem outra
coisa senão vir morrer em Paris!
– Quem é agora?
– É o almirante Alcino Silva. Estava em Paris, fiscali-
zando as encomendas para a Armada brasileira, quando
teve uma pneumonia dupla. Morreu em três dias. E agora
temos nós que levá-lo para o Rio!
Eu era, naquele tempo, primeiro piloto do Loide Bra-
sileiro, e estava trabalhando a bordo do Princesa Isabel.
O comandante Granville era um tipo desabrido de
marinheiro, gostando de dizer as coisas sem procurar eu-
femismos. Mas, sob aquela violência toda, que coração ge-
neroso se alojava!
Procurei consolá-lo, mostrando como era um nobre
dever, em nossa profissão de homens do mar, aquele ser-
viço de conduzir para a terra da pátria os conterrâneos
ilustres, mortos em outros torrões. Ele exclamou:
– Qual conterrâneos ilustres! Qual nada! Cavadores –
é o que eles são todos. Você ainda é criança, ainda tem
ilusões. Mas a verdade é que eles vêm para Paris, para a
Europa, gozar a vida. Depois, quando morrem, nós que
nos aborreçamos para levá-los!
A última viagem do almirante Silva

Não pude deixar de sorrir; e em minha alma expliquei o


mau humor do comandante Granville. Os senhores sabem
que viajar levando cadáveres é uma coisa profundamente
aborrecida; um navio que se especialize nesse fúnebre mis-
ter ficará facilmente inutilizado para gente viva.
No outro dia, véspera de o navio sair do Havre, eu
estive de folga. Fui a terra visitar velhas amizades, essas
amizades que a gente faz na vida errante de marinhei-
ro, sem saber se tornará a revê-las, cada vez que parte
numa viagem. Naquela noite, quando cheguei a bordo,
apresentei-me ao comandante. Ele estava no camarote.
Lia o número de uma revista inglesa, e fumava, irritado,
um havana – como sempre.
– Boa-noite, comandante Granville.
– Boa-noite, rosnou ele com toda a secura.
Tirou uma baforada do charuto. E depois, com uma
voz indignada:
– Já sabe da novidade? O defunto já está a bordo.
Dei-lhe os parabéns, arriscando-me a irritá-lo mais
com essa liberdade. Ele enterrou a cabeça na revista, e
deliberou deixar de me ver. Fui cuidar dos meus serviços.
Depois, tratei de dormir, coisa que me parecia bem inte-
ressante.
No dia seguinte, o Princesa Isabel saiu do Havre. Vi-
nha cheio de passageiros. De comum, aquele navio não
tinha luxo nem cerimônia. Os passageiros viviam lá como
viviam em terra. Jantavam em paletó-saco. E iam para o
salão, familiarmente, sem complicações de etiqueta. Mas
naquela viagem não sei que demônio de elegância assal-
tou os passageiros, que eles implantaram a bordo um apa-
rato, um cerimonial inglês. Cada noite os cavalheiros iam
para o salão de jantar empertigados em solenes smokings
e as damas usavam as toilettes mais formosas. Aquilo dava
a impressão das belas noites do Municipal.

584
Múcio Leão

Entre as passageiras, uma destacava-se pelo primor


singular da elegância. Cada noite, vestia uma toilette nova,
todas elas maravilhosamente belas; essas toilettes eram
também invariavelmente pretas.
Aquela senhora tinha interessado os passageiros todos.
E até nós, os oficiais, sofríamos a força magnética que ela
espalhava em torno de si.
Era misteriosa. E ninguém sabia quem ela era, de onde
vinha, para onde se destinava. O comissário Euclides, res-
pondendo a uma pergunta minha, dissera-me:
– Aquela senhora é madame Silva...
– Madame Silva?
– Sim.
– Ora, madame Silva é toda gente.
E tudo ficara nessa informação imprecisa.
Tive desejos de consultar o comandante Granville.
Mas desisti do intento, lembrando-me que ele odiava as
mulheres e que lançava a um desprezo perpétuo todos os
homens em que percebesse qualquer vestígio de paixão.
Quanto mais a mim, que era seu oficial!
Resolvi, portanto, amar em silêncio aquela suave e lin-
da mulher – amá-la sem esperanças de fazê-la minha. Era
o romântico destino de muitos; seria o meu romântico
destino também.
Ora, no Princesa Isabel viajava Paco Fernandez, um
argentino. Dizia-se grande fazendeiro e criador em Rosá-
rio. E, fosse que já se conhecessem de Paris, fosse que um
desses súbitos impulsos do coração os tivesse impelido um
para o outro, o fato é que madame Silva e Paco Fernandez
não se deixaram mais. Ele arranjou com o despenseiro de
bordo um lugar na mesa dela. Os dias e as noites ficavam
juntos, a passear no tombadilho, sob a doçura das estre-
las ou contemplando a imensidade do oceano. Eu sentia
o despeito crescer-me na alma. E durante longas horas,

585
A última viagem do almirante Silva

dentro da noite, quando não estava de serviço, ficava a


rondar o camarote dela – que era em cima, abrindo para o
mar. Os dois conversavam até altas horas da madrugada,
sentados nos recantos escuros. E, às vezes, indiscretamen-
te, as suas mãos se encontravam, os seus lábios se uniam –
e os olhos de ambos exprimiam, numa linguagem muda,
aquelas queixas insatisfeitas, cuja poesia ainda não houve
poeta que verdadeiramente cantasse. Não sei se, pelas al-
tas solidões da madrugada, Paco Fernandez não arranjaria
maneira de penetrar no camarote de madame Silva; meu
sentimento de cavalheirismo, abalado embora pelo ciú-
me, não me levou a esses extremos de espionagem. Creio,
porém, que eles realizaram os doces projetos de que os
seus olhos falavam, porque desembarcaram sozinhos em
todos os portos de escala, desde Lisboa até a Bahia – ela
sempre de negro, ele sempre mostrando aquele deslum-
brado êxtase que a sábia natureza distribui com os imbe-
cis e os apaixonados.
Assim – eu cheio de despeito, Paco e madame Silva
cheios de amor – chegou o Princesa Isabel ao Rio. Quan-
do o navio entrou na Guanabara, eu, que sou um fiel cum-
pridor dos meus deveres, abandonei as minhas melanco-
lias apaixonadas e fui chefiar as manobras da atracação.
Terminado esse serviço, nada mais tinha eu a fazer lá em
cima. Vim para o cais, e pus-me a fiscalizar as operações da
descarga. Aquela faina de passageiros que iam e vinham,
de estivadores que entravam e saíam, de carregadores que
passavam, procurando os donos das bagagens; aqueles en-
contros dos que chegavam com os que os iam receber, os
risos de alegria imoderada, as lágrimas dos que se torna-
vam comovidamente a ver, depois de ausências longas, to-
dos aqueles documentos humanos interessavam meu rude
coração de homem de bordo. E eu estava ali, infinitamen-
te distraído, a observar aquilo tudo.

586
Múcio Leão

De repente ouvi, atrás de mim, uma voz aflita de mu-


lher:
– Senhor oficial!
Voltei-me. Era madame Silva.
– Em que lhe poderei ser útil, minha senhora?
– O senhor não saberá onde se encontra meu mari-
do?
Fiquei estupefato, ignorando que ela tivesse viajado
com o marido. Acreditei que, no Recife ou na Bahia, ela
se tivesse casado com Paco Fernandez. Olhei em torno de
mim. E, por um acaso feliz, descobri Paco, que caminhava
ao nosso encontro.
– Ei-lo que chega, excelentíssima.
Ela volveu os olhos na posição indicada. E disse, colé-
rica:
– O senhor é um desaforado. Eu lhe pergunto onde
está meu marido e o senhor vem com uma pilhéria!
– Peço-lhe mil desculpas se a ofendi. Mas, sinceramen-
te, nada percebo do que está acontecendo.
Madame Silva replicou:
– Quero saber do meu marido. Ele viajou no porão.
Cheio de assombro, eu perguntei:
– No porão?! Com as bagagens? Será um clandestino?
– O senhor não entende nada do que eu lhe digo? Meu
marido é um defunto. É o almirante Alcino Silva.
Interrompeu-se um momento, talvez espantada diante
do meu ar idiota. Depois informou:
– Já fui até lá embaixo, procurando-o. Não houve ma-
neira de descobri-lo. O senhor não me poderia dar notí-
cias do caixão?
Prontifiquei-me a prestar-lhe esse piedoso obséquio, e
fui procurar, entre a bagagem do Princesa Isabel, o fúne-
bre caixão que conduzia o almirante.

587
A última viagem do almirante Silva

Como estivesse a fazer um mormaço insuportável, mada-


me Silva e Paco Fernandez afastaram-se, buscando a sombra
que o telhado do armazém lhes oferecia. Quando eu entrava
na abertura do convés, voltei-me para o lugar onde ficara a
bela viúva. Muito entretida, a conversar com Paco, madame
Silva sorria para ele o mais doce dos seus sorrisos!

588
A dama do lotação
Nelson Rodrigues

Às dez horas da noite, debaixo de chuva, Carlinhos foi


bater na casa do pai. O velho, que andava com a pressão
baixa, ruim de saúde como o diabo, tomou um susto:
– Você aqui? A essa hora?
E ele, desabando na poltrona, com profundíssimo sus-
piro:
– Pois é, meu pai, pois é!
– Como vai Solange? – perguntou o dono da casa.
Carlinhos ergueu-se; foi até a janela espiar o jardim pelo
vidro. Depois voltou e, sentando-se de novo, larga a bom-
ba:
– Meu pai, desconfio de minha mulher.
Pânico do velho:
– De Solange? Mas você está maluco? Que cretinice é
essa?
O filho riu, amargo:
– Antes fosse, meu pai, antes fosse cretinice. Mas o dia-
bo é que andei sabendo de umas coisas... E ela não é a
mesma, mudou muito.
Então, o velho, que adorava a nora, que a colocava
acima de qualquer dúvida, de qualquer suspeita, teve uma
explosão:
– Brigo com você! Rompo! Não te dou nem mais um
tostão!
Patético, abrindo os braços aos céus, trovejou:
– Imagine! Duvidar de Solange!
O filho já estava na porta, pronto para sair; disse ainda:
A dama do lotação

– Se for verdade o que eu desconfio, meu pai, mato mi-


nha mulher! Pela luz que me alumia, eu mato, meu pai!

A suspeita
Casados há dois anos, eram felicíssimos. Ambos de óti-
ma família. O pai dele, viúvo e general, em vésperas de
aposentadoria, tinha uma dignidade de estátua; na família
de Solange havia de tudo: médicos, advogados, banqueiros
e, até, ministro de Estado. Dela mesma, se dizia, em toda
parte, que era “um amor”; os mais entusiastas e taxativos
afirmavam: “É um doce de coco”. Sugeria nos gestos e mes-
mo na figura fina e frágil qualquer coisa de extraterreno. O
velho e diabético general poderia pôr a mão no fogo pela
nora. Qualquer um faria o mesmo. E todavia... Nessa mes-
ma noite, do aguaceiro, coincidiu de ir jantar com o casal
um amigo de infância de ambos, o Assunção. Era desses
amigos que entram pela cozinha, que invadem os quartos,
numa intimidade absoluta. No meio do jantar, acontece
uma pequena fatalidade: cai o guardanapo de Carlinhos.
Este curva-se para apanhá-lo e, então, vê, debaixo da mesa,
apenas isto: os pés de Solange por cima dos de Assunção ou
vice-versa. Carlinhos apanhou o guardanapo e continuou a
conversa, a três. Mas já não era o mesmo. Fez a exclamação
interior: “Ora essa! Que graça!”. A angústia se antecipou
ao raciocínio. E ele já sofria antes mesmo de criar a sus-
peita, de formulá-la. O que vira, afinal, parecia pouco. To-
davia, essa mistura de pés, de sapatos, o amargurou como
um contato asqueroso. Depois que o amigo saiu, correra à
casa do pai para o primeiro desabafo. No dia seguinte, pela
manhã, o velho foi procurar o filho:
– Conta o que houve, direitinho!
O filho contou. Então o general fez um escândalo:
– Toma jeito! Tenha vergonha! Tamanho homem com
essas bobagens!

590
Nelson Rodrigues

Foi um verdadeiro sermão. Para libertar o rapaz da


obsessão, o militar condescendeu em fazer confidências:
– Meu filho, esse negócio de ciúme é uma calamidade!
Basta dizer o seguinte: eu tive ciúmes de tua mãe! Houve
um momento em que eu apostava a minha cabeça que ela
me traía! Vê se é possível?!

A certeza
Entretanto, a certeza de Carlinhos já não dependia de
fatos objetivos. Instalara-se nele. Vira o quê? Talvez muito
pouco; ou seja, uma posse recíproca de pés, debaixo da
mesa. Ninguém trai com os pés, evidentemente. Mas de
qualquer maneira ele estava “certo”. Três dias depois, há
o encontro acidental com o Assunção, na cidade. O amigo
anuncia, alegremente:
– Ontem viajei no lotação com tua mulher.
Mentiu sem motivo:
– Ela me disse.
Em casa, depois do beijo na face, perguntou:
– Tens visto o Assunção?
E ela, passando verniz nas unhas:
– Nunca mais.
– Nem ontem?
– Nem ontem. E por que ontem?
– Nada.
Carlinhos não disse mais uma palavra; lívido, foi no
gabinete, apanhou o revólver e o embolsou. Solange men-
tira! Viu, no fato, um sintoma a mais de infidelidade. A
adúltera precisa até mesmo das mentiras desnecessárias.
Voltou para a sala; disse à mulher entrando no gabinete:
– Vem cá um instantinho, Solange.
– Vou já, meu filho.
Berrou:
– Agora!

591
A dama do lotação

Solange, espantada, atendeu. Assim que ela entrou,


Carlinhos fechou a porta, à chave. E mais: pôs o revólver
em cima da mesa. Então, cruzando os braços, diante da
mulher atônita, disse-lhe horrores. Mas não elevou a voz,
nem fez gestos:
– Não adianta negar! Eu sei de tudo!
E ela, encostada à parede, perguntava:
– Sabe de quê, criatura? Que negócio é esse? Ora veja!
Gritou-lhe no rosto três vezes a palavra cínica! Mentiu
que a fizera seguir por um detetive particular; que todos
os seus passos eram espionados religiosamente. Até então
não nomeara o amante, como se soubesse tudo, menos a
identidade do canalha. Só no fim, apanhando o revólver,
completou:
– Vou matar esse cachorro do Assunção! Acabar com a
raça dele!
A mulher, até então passiva e apenas espantada, atra-
cou-se com o marido, gritando:
– Não, ele não!
Agarrado pela mulher, quis se desprender, num repe-
lão selvagem. Mas ela o imobilizou, com o grito:
– Ele não foi o único! Há outros!

A dama do lotação
Sem excitação, numa calma intensa, foi contando. Um
mês depois do casamento, todas as tardes, saía de casa,
apanhava o primeiro lotação que passasse. Sentava-se num
banco, ao lado de um cavalheiro. Podia ser velho, moço,
feio ou bonito; e uma vez – foi até interessante – coinci-
diu que seu companheiro fosse um mecânico, de macacão
azul, que saltaria pouco adiante. O marido, prostrado na
cadeira, a cabeça entre as mãos, fez a pergunta pânica:
– Um mecânico?
Solange, na sua maneira objetiva e casta, confirmou:

592
Nelson Rodrigues

– Sim.
Mecânico e desconhecido: duas esquinas depois, já
cutucara o rapaz: “Eu desço contigo”. O pobre-diabo ti-
vera medo dessa desconhecida linda e granfa. Saltaram
juntos: e esta aventura inverossímil foi a primeira, o pon-
to de partida para muitas outras. No fim de certo tempo,
já os motoristas dos lotações a identificavam a distância;
e houve um que fingiu um enguiço, para acompanhá-la.
Mas esses anônimos, que passavam sem deixar vestígios,
amarguravam menos o marido. Ele se enfurecia, na cadei-
ra, com os conhecidos. Além do Assunção, quem mais?
Começou a relação de nomes: fulano, sicrano, beltra-
no... Carlinhos berrou: “Basta! Chega!”. Em voz alta, fez
o exagero melancólico:
– A metade do Rio de Janeiro, sim senhor!
O furor extinguira-se nele. Se fosse um único, se fosse
apenas o Assunção, mas eram tantos! Afinal, não poderia
sair, pela cidade, caçando os amantes. Ela explicou ainda
que, todos os dias, quase com hora marcada, precisava es-
capar de casa, embarcar no primeiro lotação. O marido a
olhava, pasmo de a ver linda, intacta, imaculada. Como é
possível que certos sentimentos e atos não exalem mau chei-
ro? Solange agarrou-se a ele, balbuciava: “Não sou culpada!
Não tenho culpa!”. E, de fato, havia, no mais íntimo de sua
alma, uma inocência infinita. Dir-se-ia que era outra que se
entregava e não ela mesma. Súbito, o marido passa-lhe a
mão pelos quadris: – “Sem calça! Deu agora para andar sem
calça, sua égua!”. Empurrou-a com um palavrão; passou pela
mulher a caminho do quarto; parou, na porta, para dizer:
– Morri para o mundo.

O defunto
Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de pale-
tó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrela-

593
A dama do lotação

çou as mãos, na altura do peito; e assim ficou. Pouco de-


pois, a mulher surgiu na porta. Durante alguns momentos
esteve imóvel e muda, numa contemplação maravilhada.
Acabou murmurando:
– O jantar está na mesa.
Ele, sem se mexer, respondeu:
– Pela última vez: morri. Estou morto.
A outra não insistiu. Deixou o quarto, foi dizer à em-
pregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refei-
ções em casa. Em seguida, voltou para o quarto e lá ficou.
Apanhou um rosário, sentou-se perto da cama: aceitava
a morte do marido como tal; e foi como viúva que rezou.
Depois do que ela própria fazia nos lotações, nada mais a
espantava. Passou a noite fazendo quarto. No dia seguin-
te, a mesma cena. E só saiu, à tarde, para sua escapada
delirante, de lotação. Regressou horas depois. Retomou o
rosário, sentou-se e continuou o velório do marido vivo.

594
A reforma
Nivaldo Tenório

Você entra no Banco e sente um arrepio percorrer a


espinha dorsal. Alguns olhares acompanham seus passos
como a um enterro e você se lembra do finado João. Não
fazia mal a ninguém, nem a uma mosca, e olha que as
moscas não merecem condescendência de ninguém.
O envelope está sobre o birô, e dentro dele a carta.
Nem ligue, você os ouvirá dizer, quinze dias, um mês, e
tudo se resolve. Mas você sabe, é tudo conversa fiada, pra
boi dormir. Um mês, dois, três...
Da indenização, ali pelo quarto mês, restam uns tos-
tões ou nem tanto, por isso você foi parar no casarão.
Ideia dos sogros, meio como que forçados. Menos mal,
você pensa, pior é a rua. A rua de noite; só calçadas forra-
das com jornal velho e gente pior.
O reboco caindo. Mas não há com o que se preocu-
par, a estrutura aguenta. Aguenta mesmo, você pergunta.
Uma ruga assim, forçando a careta mais feia no meio da
testa. O outro não responde, apenas olha. Diga uma coisa,
meu filho, você tem opção? Não? Então aprenda a lição
do adágio: “cavalo dado não se olha os dentes”.
O casarão fechado espera uma reforma enquanto o
mato toma conta do quintal. As dobradiças enferrujadas,
as portas rangendo, incomodando os fantasmas.
As rachaduras. Várias, largas de caber duas, quatro,
oito mãos. Sobreviveremos às paredes? Entre nós e as pa-
redes, a carne e o concreto, mais sofremos de temporali-
dade. Palavra grande; soa assim: tempo-na-cidade. Tem-
A reforma

po na cidade. Você fica repetindo e desde então passa a


olhar o relógio muitas vezes ao dia.
Sua família fica no casarão com você menos à vontade
do que os outros. A metade dos móveis dentro de caixas
e alguns cômodos fechados. Mas com tudo nos acostuma-
mos. Você também. Você não é exceção. No tempo quan-
do era exceção usava terno e gravata e estava satisfeito
com o Banco sugando até sua última gota de sangue. E o
que é que tem? Não é? Um homem tem que trabalhar.
Você também se casou. Um dia se surpreendeu dentro
de uma igreja católica ouvindo de um padre celibatário
dicas de como fazer andar um casamento nos trilhos.
Sua festa ganhou as colunas sociais; as fotografias e a fil-
magem só terminaram quando você e ela deixaram a todos
e foram dormir num hotel. Sua família compareceu, não
faltou ninguém nem mesmo aqueles primos que você não
sabia os nomes, filhos de uma tia de sua mãe, primos-se-
gundos-terceiros que nunca terão a mesma sorte que você.
O apartamento alugado parecia bom, tinha dois quar-
tos, varanda e boa vizinhança. Fizeram dois filhos num
intervalo de cinco anos. Terminaram de pagar o carro e
queriam conhecer a Argentina.
Mas para você, isso agora, parece apenas um sonho.
Você está no quinto mês depois da demissão e tem de con-
cordar com os avós que querem adotar os netos. Dizem
que é perigoso morar numa casa velha, ademais a escola
fica longe do casarão e, você sabe, deixar as crianças soltas
em ônibus é o mesmo que desistir delas.
Nessa semana sua mulher entregou os pontos. Não
conseguiu lidar com a fome. Ela, pobrezinha, sempre teve
tudo do bom e do melhor. Ainda tentou. Por menos tempo
do que supunha aguentar, é verdade, mas tentou e como
não conseguiu, passou a almoçar todos os dias na casa dos
pais. Em troca da comida assumiu obrigações de domés-

596
Nivaldo Tenório

tica, cozinhando, passando e arrumando. A mãe ficou tão


satisfeita que despediu a antiga empregada.
Mas você não pode reclamar. Tem um teto, a mulher
passa bem, obrigado, e as crianças estão na escola. O do-
mingo não fica longe um do outro – ao menos nas au-
sências evitam-se coisas como brigas e desgastes que en-
frentam os casais entre quatro paredes – duro, você sabe,
é aguentar-se de pé nas filas, esperando uma vaga nas
agências de emprego, sem tempo de poder capinar o
mato crescendo no quintal.
Você só chega ao casarão de noite, quando o quintal é só
breu. Não se pode capinar o mato e arriscar decepar os pés,
não é? Como se manter de pé? E as filas nas agências?
Um ano depois você continua frequentando as filas
e quando, ao término de uma tarde, chega ao casarão,
tem de ouvir um grande absurdo de sua mulher. Mamãe
é uma megera, quer tirar minhas folgas semanais. Nessa
época você ostenta uma barba ao mesmo tempo grande e
malcuidada e assim, vê-lo enfurecido, causa certo temor.
E por causa do medo de sua barba sua mulher aumenta os
espaços entre os domingos até riscar de vez tal dia de seu
calendário. Os meninos não fazem por menos, também se
assustam diante da barba, e você, preocupado e morto de
amor, concorda que o deixem de ver.
Uma noite – quantos anos depois? – você olha o mo-
vimento da janela mais alta do casarão quando pensa ter
visto sua mulher bem-vestida e de cabelos penteados, pas-
sar ao lado de um homem, mais velho do que ela, também
bem-vestido e de cabelos penteados.
Você não se lembra de quando jogaram sua primeira
moeda; foi talvez na mesma época dos piolhos. Havia de-
les em toda parte; pontinhos pretos sobre patas. Quantos?
Não sabia. Piolhos são parasitas, empestam nosso mundo,
assumem o governo de nossas vidas.

597
A reforma

Sentado na ponte entre as pernas que vão e vêm, você


sorri para quem deixa cair uma moeda; é seu jeito de di-
zer obrigado, nem tudo é ruim, por aí há gente pior, sem
poder educar os filhos nem alimentar a mulher...
Hoje você chegou mais cedo e notou o casarão fecha-
do por dentro. Você se aproxima – lá dentro um barulho
ensurdecedor –, seus dedos rijos e contraídos fecham-se
num nó – eeeiii – você grita, depois ergue a mão e o nó de
seus dedos contraídos desce sobre o portão maciço. Lá na
frente há um grupo de colegiais, são três moças, caderno
na mão e calça jeans, elas mudam de calçada; uma delas
fala ao celular enquanto as outras conversam e dão griti-
nhos de puro prazer. Um moleque corre na frente delas –
elas têm o maior susto – pés descalços, calção e camiseta,
continua correndo o moleque e desaparece debaixo dos
primeiros pingos de chuva.

598
Mestre João de Dão
Olímpio Bonald Neto

– Não é fácil ao estudioso apreender a concepção de


honra e moralidade do nordestino.
Dissertava o mestre para o seleto auditório, na ampla
varanda do apartamento de cobertura do desembargador
Fulgêncio. E todos bebiam as suas palavras, presos ao as-
sunto, enquanto bebericavam a água de coco com uísque,
dentro da luminosa tarde de primavera, à beira mar de
Olinda.
– É fato inconteste que o conceito de honra, tão grato
às sociedades semipatriarcais e ruralistas, ontem mais do
que hoje, com a difusão do pragmatismo neoliberal capi-
talista, emprestava à palavra empenhada um valor espe-
cial e cada vez menos presente nos meios urbanos de hoje.
A flexibilidade cordial das relações comerciais capitalistas,
as transigências sociais e as cotidianas negociações políti-
cas, quase sempre primícias das corrupções, criaram uma
elasticidade moral inteiramente estranha ao homem do
sertão de antanho, que primara pela retidão do trato e va-
lor da palavra empenhada. Mesmo quando fosse até um
profissional da morte, um assalariado do crime, jagunço,
cangaceiro independente ou a soldo de algum poderoso
latifundiário ou político.
A brisa morna do verão e as palavras sisudas do mes-
tre paulista, ecoando monótonas dentro da quietude da
tarde, faziam a mente vaguear e deixavam a imaginação
solta, vadiando pelas campinas e caatingas de outrora.
Mestre João de Dão

– São conhecidas as estórias do imaginário popular que


circulam em redor da lenda de Lampião e o seu respeito
aos tratos, em defesa dos amigos e dos fiéis coiteiros. A psi-
cologia criminal explica, por muitas teorias, esse palpitante
assunto, ainda tão vívido entre nós, brasileiros de todos os
recantos, e especialmente entre os nordestinos...
A sugestão provocada pela palestra atiçou-me a imagi-
nação, acordando memórias. E recordei-me de fato nar-
rado por um velho policial de Santana de Ipanema, anos
passados, quando eu advogava para o Sindicato Operário
dos Tecelões do Nordeste.

O trato
Naquele município alagoano, que já foi notícias de ho-
micídios famosos, sendo até o reduto do que os jornais da
época intitulavam “o sindicato do crime”, vivia, há muitos
anos, um célebre matador profissional.
Homem frio e decidido – Mestre João de Dão – carre-
gava fama de assassino assalariado, responsável por mais
de 15 mortes, o que não o impedia de circular livremente
pela cidade, admirado por muitos, respeitado e temido
por todos.
Um dia foi contratado por um poderoso fazendeiro de
cidade vizinha para liquidar um desafeto político, atrevi-
do e influente, que o vinha incomodando, com implicân-
cias e desacatos, chegando ao desaforo de soltar gado em
roçado de sua propriedade.
Como de costume, o matador recebeu as instruções
do que considerava o “seu serviço”, apalavrando o trato e
embolsando, por conta, a metade do valor.
Largando a sua tenda de sapateiro – profissão que
exercia regularmente – arreou o cavalo e dirigiu-se para
as terras da sua vítima, no município vizinho, a fim de
identificá-lo e, mais seguramente, poder agir.

600
Olímpio Bonald Neto

Tranquilo, como se estivesse a visitar um parente que-


rido, aproximou-se do copiar da pequena casa, onde
brincavam vários meninos, e perguntou pelo dono da
propriedade.
O mais velho, um meninote magro e alourado, de uns
13 anos, consertava uma gaiola de taquara e, solícito, tra-
tou de explicar ao desconhecido que o pai estava na vár-
zea, reunindo as vacas.
O homem estranho pediu que fosse chamá-lo, enquan-
to perguntava pela sua mãe e se havia outras pessoas em
casa. Inteirou-se de que a sua mãe estava no hospital há
várias semanas, muito doente, e que não possuíam outros
empregados senão uma velha ama, encarregada dos afa-
zeres domésticos.
E, enquanto o rapazinho corria pela campina atrás do
pai, sem saber que o chamava para a morte, o assassino
puxava conversa com os outros meninos, fazendo-se ín-
timo da família e chegando a colocar na perna uma das
crianças, brincando de cavalinho com a menina rosada,
de tranças amarradas com cordão encarnado, encantado-
ra na sua inocência.
Da conversa ficou sabendo da vida inteira de sua víti-
ma. Dos 11 filhos, da mulher doente desde o último par-
to, da trabalheira que todos tinham na casa para atender
às necessidades do lar humilde e da sua paixão política,
que o fez entrar em choque com o vizinho latifundiário.
A inocência de seus pequenos informantes ou o drama
da existência daquele camponês, viúvo de mulher viva,
sem mais contar com a companheira cercado de filhos e
de bichos, lutando de sol a sol para sustentar tanta gente,
ativou algumas ancestrais recordações, tocando a alma do
criminoso profissional. Comoveu-se como agricultor po-
bre que ele, um dia, também fora, criado em casa humilde
de família numerosa.

601
Mestre João de Dão

O respeito dos criminosos pelas crianças é fato regis-


trado na crônica dos piores bandidos. Poucos, raros, são
os casos de violência praticada contra menores nos ser-
tões nordestinos. A luta, a dor e a morte são coisas para
adultos.
Assim, à chegada do dono da casa, estabeleceu-se sin-
gular diálogo.

O negócio
O criminoso procurou afastar-se das vistas das crianças
dirigindo-se para os fundos do curral em companhia do
homem que chegava, suado e esbaforido, curioso do ines-
perado visitante.
– O senhor é seu Vital Silveira?
– Sim, senhor. E Vosmecê, a que vem? Com quem trato?
– Mestre João de Dão, da Vila de Dentro, e vim para
matá-lo. Estou com o “serviço” meio pago e queria conhe-
cê-lo antes de terminar o meu trabalho.
E, antes que o pobre agricultor pudesse esboçar um
gesto de defesa ou de fuga, o homicida, travando-lhe o
braço com energia, fê-lo encostar-se ao mourão querendo
não alarmar os pequenos, que de longe apreciavam o en-
contro. E continuou em voz mais baixa:
– Sossegue, homem de Deus! Não quero sua vida! Não
vou derramar seu sangue. Vi seus filhos. Conheci o aper-
reio que passa sua família e não posso fazer mais uma
desgraça, deixando no abandono tantas crianças. Volto
ao coronel Sizenando, devolvo os dez contos já recebidos
pelo adiantado. Desisto dessa empeleitada.
E, soltando o agricultor, prosseguiu calmamente:
– É a primeira vez que faço assim, desmanchando um
“serviço” apalavrado e meio pago. Mas não posso infelici-
tar a vida de tanta criança inocente. O coronel que procu-
re outro ou faça ele mesmo, seus acertos com o senhor.

602
Olímpio Bonald Neto

O camponês mal pôde expressar a emoção do passado


susto e da sua gratidão. Entre palavras soluçadas, amaldi-
çoou o desafeto covarde que, por questões sem valência,
discussões por causa de pastos confrontantes, chegava a
planear, friamente, a sua morte.
– Mestre Dão, a Virgem é quem lhe pagará o que faz
comigo! Se eu desapareço, aqueles inocentes vão é passar
fome. A mãe tá se finando no hospital da Santa Casa e
não temos um só parente nesta terra desgraçada. Somos
lá dos altos da Serra da Barbalha, de onde nunca devería­
mos ter saído. Cai nessa vida de agricultor e agora me
vejo nessa enrascada. Mas entendo que aquele desenfeliz
não pode é ficar sem um ensinamento, pagando pra ver
a desgraça alheia.
E continuou, exaltando-se:
– Pelo que me disse acertou este serviço contra mim
por vinte contos de réis. Pois bem, eu lhe pago outros vin-
te contos para dar um fim ao coronel Sizenando!

A virtude dos fortes


Mestre João de Dão, às palavras do agricultor, tomou-
se de profunda tristeza e teve uma reação inesperada.
– Seu Vital, vosmecês são da mesma laia, farinha do
mesmo saco. Apois não sabe que o coronel é pai de 8 fi-
lhos?
E, antes que o homem o interrompesse, continuou, to-
mado por súbita resolução:
– Mas eu vivo é disso mesmo! Não discuto coração dos
outros. Aceito o serviço! Mas quero dinheiro inteiro! Todo
e agora!
E quando o agricultor voltou correndo da casa, as
mãos cheias de notas, o criminoso, ali mesmo, ao pé do
mourão, com violento golpe, tão inesperado e certeiro a

603
Mestre João de Dão

não lhe deixar instante para a mínima reação, cravou-lhe


no vazio do peito o longo punhal de três quinas.
Antes do golpe de misericórdia, quando a vítima, ain-
da consciente, estrebuchava entre suas mãos, falou man-
samente, tranquilizando-a:
– Morra sossegado, seu Vital. Nosso trato será cum-
prido.
Na mesma tarde daquele dia, à boquinha da noite,
Mestre João de Dão retornou à fazenda do coronel Size-
nando.
Convidado, subiu à sala de visitas da casa-grande e
depois de lhe prestar contas do “trabalho” e de receber
o resto do pagamento, com o mesmo punhal, sangrou o
velho coronel, num canto da sala, à vista da mulher atô-
nita e das armas, paralisadas pelo horror. Não sem antes
explicar que assim agia porque aceitara um trato do agri-
cultor – o finado desafeto do coronel – de quem recebera
paga integral antes de ser morto...
Dizem que a mulher do agricultor, depois da missa de
sétimo dia, ainda chegou a receber, no hospital da Santa
Casa onde se findava com um câncer, a visita de um es-
tranho, portador de dez contos, dizendo ser para o luto e
conforto dos pequenos órfãos.
Um trato feito e pago não se desmancha. A palavra
dada é das honras a mais sagrada. E a piedade é a virtude
dos fortes.

604
Elegíada
Osman Lins

Esta é a verdade: agora eu estou só. Com mais um


pouco, chegará a madrugada. As velas ficarão pálidas, os
sinos dobrarão em tua homenagem; e quando o sol vier,
não iluminará teus olhos.
Mais algumas horas e nossos conhecidos te levarão
para o Campo. Estarão um pouco tristes, mas não podem
imaginar que imensa perda eu sofri. Dirão entre si: “Tinha
de ser. Um deles havia que ir primeiro…” E acharão que
já sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se ex-
tinguiu e que não tardarei a seguir-te. Não lhes ocorrerá,
talvez, que é justamente por ser velho que tua ida é mais
triste. Se fora moço, minha saúde afastaria a dor. Mas eu
estou velho. E muito só, abandonado – sou uma criança
aflita, querida. Meus filhos acham agora que os superio-
res são eles; que devem governar-me. Fazem recolher-me
cedo, não me permitem comer o que desejo e até ralham
comigo. É um modo de mostrar que me amam. Mas eu
não sinto grande profundidade nesse afeto. Há uma certa
rispidez na maneira como eles procuram preservar-me,
como se eu fosse meio tonto.
Também os netos, creio, não me querem como eu dese-
java. Sempre os imaginei como ingênuas crianças, as quais
eu levaria pela mão a maravilhosas viagens e para quem
inventaria histórias que ouviriam com prazer. Mas quase
nunca eu os levo a passeio; e quando o faço, não consigo
unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em língua
codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que muitas vezes
Elegíada

troçam de mim.) E se tento contar-lhes uma história, não


me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os
visito, pedem a bênção ao vovô e levam meu chapéu para
guardar. Observo, contudo, que não se sentem à vontade
quando me beijam a mão e que o júbilo deles se prende
muito mais aos brinquedos que lhes levo. E eu os olho sor-
rindo, com amargura, e penso nos anos que nos distan-
ciam e no afeto que eles mal supõem existir.
Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que não mais
os possuo. Uns morreram; outros acharam na velhice um
agradável pretexto para se tornarem brigões ou demen-
tes; e o resto me aborrece pela insistência em me fazer
acreditar ser bem mais velho que eles.
Só tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo,
sem temor de parecer ridículo. Eras tu quem tinha a cha-
ve do meu caráter e o dom de encantar-me. (Mesmo a tua
zombaria era uma forma de afeição.) E agora, um duro
silêncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mãos cruzadas, o
lençol que te cobre, tuas feições tranquilas. Sei que logo
mais eles te levarão. Talvez, então, eu te beije a fronte.
Não ignoro, porém, que me dói tua frieza de morta e é
mais provável que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus
cabelos – que eu vi, de abundantes e negros, rarearem
e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles não
mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais límpida, o
nariz mais fino, as faces se encovaram, a carne está rígida
e as pálpebras não as fechaste com a suavidade de sem-
pre. Teu cabelo, porém, continua intato; quando sopra o
vento, ainda esvoaça; está vivo, é o mesmo que penteavas
pela manhã e soltavas à noite, antes de dormir. E agora, se
bem não os houvesses despenteado, tu dormes. E eu me
sinto pesaroso e grave, como tantas vezes me senti junto a
nossos filhos, quando eles estavam doentes e o sono lhes
chegava pela madrugada, após uma noite inquieta e eu
ficava junto a eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas

606
Osman Lins

e punhas a mão em meu ombro e fazias com que me fos-


se deitar. Agora, eu não conhecerei mais a doçura desse
gesto. Talvez, daqui a pouco, venha alguém – um filho ou
vizinho – que me induza a afastar-me de ti e deitar-me.
Mas, quem quer que seja, virá com palavras. Tu, não: vi-
nhas com o teu silêncio, com a tua tranquilidade, e fazias
com que eu dormisse. Mas quando despertava, eras tu
quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles não saberão.
É íntimo demais, exige um nível de compreensão mútua
demasiado grande para ser revelado. Não lhes contarei.
Também não falarei a ninguém de certas coisas que
guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julga-
riam tonto. Não direi da emoção com que te vi, muitas
vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas. Durante anos,
quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te via, sem nada
de especial. Mas vinha um dia em que eu te descobria a
intimidade nesse trabalho. Via o cuidado com que afasta-
vas a poeira, a precisão com que punhas os jarros em seus
lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; escutava
teus passos e me comovia por ver como te entregavas a es-
ses afazeres. E descobria um extremado amor nisso tudo,
o que me fazia perceber como eras simples.
Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado mui-
to e te deitaste cedo. Eu fiquei lendo, e, quando o sono
veio, fechei as portas. Havia um silêncio tão grande! Os
móveis brilhavam, não havia pó no chão; tudo em ordem,
limpo, cuidado. Detive-me um instante à sala de jantar,
como se pressentisse avizinhar-me um mistério. Contem-
plei o jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhi-
do pela manhã. Senti tua presença diligente na limpeza,
nas flores, o carinho que depositavas em tudo. E percebi
que havia algo me envolvendo; cingia-me um princípio
de angústia. Na cozinha, olhei para o fogo: apagara-se.
Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava mor-
to. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tão ridícu-

607
Elegíada

lo e sutil, tão difícil de expressar, que nunca te contei. Eu


chorei, querida. Penso que sofri uma decepção obscura e
súbita, uma espécie de dor ante a pouca duração da vida,
da nossa vida – não sei; é possível também que houvesse
sentido, antes a simplicidade com que vivias, algo seme-
lhante à pena que às vezes nos aflige ante um folguedo de
criança. Mas é difícil explicar. Talvez o que eu houvesse
sentido, fosse o presságio disto: de que virias a morrer,
que nosso fogo não mais seria aceso pelas tuas mãos e que
nunca voltarias a colher flores para o nosso jarro? Seria?
Que me dizes?
Oh! mas eu estou delirando. Fitava-te tão intensamen-
te, com tanta saudade, que já te supunha viva. Se eles sou-
bessem disto, também sorririam de mim. Na minha ida-
de, já não se pode ter pensamentos estranhos nem fazer
confissões. Fica-se ridículo, querida. E eu tenho que apro-
veitar estes últimos momentos em que ainda estamos jun-
tos. É a última oportunidade de falar-te, mesmo sem abrir
os lábios, e contar as tolices que não contarei a ninguém.
Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma
coisa que não compreendo: os fatos culminantes de nos-
sas vidas, aqueles que nunca poderíamos chegar a esque-
cer, perderam hoje esse privilégio. Nosso casamento não
é mais importante que a lembrança conservada, como por
milagre, de quando te vi, pouco antes da cerimônia, em
teu traje de noiva. Tão bem me lembro como teus olhos
brilhavam e como teu riso era alegre! E no momento em
que fecharam a porta para teu primeiro parto, a que eu
não tive coragem de assistir? Antes, isso era um fato im-
portante! Hoje, não: está no mesmo nível de um gesto
teu ou de teu sorriso. Hoje ele é tão importante como a
tua alegria – esse resto de infância que nunca perdeste, a
tua alegria quando eu te presenteava com uma caixa de
bombons ou uma fruta. Às vezes, eu te trazia biscoitos. Tu

608
Osman Lins

os guardavas e eu te censurava, porque me parecias avara,


pois nem os comias de uma vez, nem os repartias com ou-
trem. Mas eu te censurava sem rancor, porque sabia que
a tua avareza era um modo de prolongar, ingenuamente,
uma lembrança minha. Também não poderei contar isto
a ninguém. Dirão que me preocupo com migalhas ou in-
vento qualidades que não tinhas.
E agora, querida, com quem repartirei estas memó-
rias? Tu te vais e o peso do passado é muito grande para
que eu o suporte sozinho. As palavras – todos sabem – são
mortalmente vazias para exprimir certas coisas. Quando
nos sentávamos, sós, a recordar nossa vida, não eram elas
que restauravam os fatos: éramos nós.
E agora, que já não existes, com quem poderei falar
de coisas triviais e amadas, como teu pesar por teres que-
brado involuntariamente um presente que eu te dera e
nossa alegria na primeira viagem de trem? Com quem
poderei falar disto? Com quem irei comentar teu hábito
de, quando eu me esquecia dos óculos, deixares que eu
chegasse à esquina para só então me chamar? E eu vi-
nha, ralhava contigo, perguntava quando deixarias de ser
criança. Mais tarde, lembrava-me do episódio e me ria,
disfarçadamente, com medo que me vissem e dissessem:
“Olha o velho rindo sem motivo…”
Mas eu não devia estar me lembrando dessas coisas.
Talvez alguém tenha visto meu sorriso e julgará que não
sinto a tua falta. “Ele não chorou” – pensará. “E agora, sor-
ri. Está maluco; ou então nem sentiu.” Decerto, minha dor
não é violenta. É cansada. Mas é tão vasta, tão desalentada
e profunda... Eu vou ficar tão sozinho, querida...”

609
Refresco de cajá
Paulo Caldas

As pessoas que o aguardavam voltaram-se para vê-lo,


ao se abrir a porta do elevador privativo. Circunspeto,
olhar indiferente por trás das lentes de grau, andar em-
pertigado, cenho cerrado, queixo reto. Atravessou o salão
de espera com sorriso sério, mecânico e, antes de entrar
no gabinete, dirigiu-se à secretária: “Boa-tarde, dona Ro-
berta. Peça para Waldemar trazer a pasta das requisições
e meu suco de cajá”.
Dizem que é um dos mais conceituados especialistas.
A secretária contou que no mês passado ele participou
de um congresso em Londres.
Vestia um terno que se destacava pela qualidade do
tecido e a perfeição do corte: gravata grená, em harmonia
com a camisa social rosa claro, o paletó cinza escuro. Tra-
ços de elegância de um homem bem-sucedido.
– Ele deve ganhar muito dinheiro.
– Também, com o preço que cobra pela consulta.
– Vai ver que já nasceu rico. Deve ser um desses filhos
de família abastada, que sempre teve tudo nas mãos, não
sabe o que é necessidade.
– Fale baixo, ele está ouvindo.
Um minuto depois, acomodado no amplo escritório,
olhos fixos no teto, reviu o passado. Logo ele, nascido e
criado no subúrbio, filho de uma costureira com um simples
servidor público, terceiro de uma prole de seis. Que desde
cedo se acostumara a vivenciar carências, a contar e recon-
tar tostões, à vida comprada a granel na venda da esquina:
Paulo Caldas

“Uma quarta de queijo de coalho, meio copo de azeite,


dois contos de charque, meia barra de sabão, cem gramas
de mortadela.”
– Seu Ernesto, mamãe mandou dizer que quando rece-
ber das costuras, a gente paga.
– É bom, já tem uma conta de vocês na caderneta des-
de o mês passado.
Eram tempos difíceis, relembra, mas felizes. Fez um ar
de riso ao recordar das brincadeiras de rua, doenças trata-
das com chás, rezas e remédios caseiros. Dos brinquedos,
ainda menino, brinquedos de pobre. Rói-rói, mané gosto-
so, carrinho de rolimã e de lata. A espiada pelas brechas
das lonas dos circos mambembes.
Saído dos bancos de uma escola pública, estudando
em livros usados e vestindo as fardas que passavam de
irmão para irmão. Dos sapatos gastos, lanche improvisa-
do – pão com manteiga e açúcar – levado de casa, não
conhecer dificuldades?
O ginásio fora cursado à noite, professores cansados,
turma desmotivada, mesmo assim obtinha notas altas.
“Quase todos trabalhavam durante o dia, Joca Macedo
dormia na classe.”
– Professor, tem gente cochilando na aula.
– Frescura, rapaz. Deixa de ser cabueta.
Os fins de semana se resumiam às peladas dos campos
baldios e ao bate-papo com os barrados na frente das ga-
fieiras.
– Sem dinheiro, não deixo entrar. É ordem do dono.
A juventude fora o tempo dos desejos frustrados. Um
por um. Quase todos.
Divagando, de olhos fechados, via a frente do cinema
do bairro. As matinês, a troca dos gibis e figurinhas. Marte
invade a Terra, E o vento levou. E voltava à quermesse da pa-
róquia, e as meninas lá estavam, minissaia, desfilando sob
as luzes das gambiarras que cruzavam o pátio da igreja.

611
Refresco de cajá

Girou a ampla poltrona de couro, como se estivesse no


carrossel dos parques de diversão a ouvir a voz impostada
do locutor: “Atenção muita atenção, Galega da Farmácia,
ouça essa linda gravação que alguém lhe oferece como
prova de amor: ‘Fracasso’, na voz de Núbia Lafayette”. O
som do baixo meretrício, a música das radiolas de ficha, o
burburinho dos cabarés, o lamento no cantar das rapari-
gas, chegavam aos seus ouvidos.
Com a ponta dos dedos sobre a madeira escura da am-
pla mesa de trabalho, tamborilou antigos boleros, baladas
dos Beatles e canções da Jovem Guarda: “Só quero que
você me aqueça neste inverno e que tudo mais vá pro in-
ferno”… Abriu os olhos e sorriu.
Aquelas pessoas da sala de espera, se o vissem naquele
tempo, cortando pano na loja, livros sob o balcão, a lei-
tura apressada entre e um e outro cliente, jamais iriam
acreditar.
– Aqui não é banca de estudo, rapaz. Bote sentido na
freguesia.
E o salário minguado ainda completava a renda da
casa. No início das noites, caminhando ligeiro, sapato fu-
rado com um papelão sob as meias, seguia do trabalho
para as aulas do pré-vestibular frequentado com o sacri-
fício da outra metade do ganho. E o jantar? Que jantar?
Quando o dinheiro dava, fazia lanche, no Beco da Fome:
um refresco de cajá e um bolo de bacia... Na volta, sempre
depois das dez, a viagem enfadonha num ônibus cheio.
Em casa, um café com pão e mais uma hora de estudo até
o sono lhe domar as forças.
Mais adiante, na faculdade, passava as poucas horas
de folga devorando livros na biblioteca. Tantos finais de
semana de lazer segregado, vontade de vencer. Assim, não
se abatia ante o descrédito do patrão ranzinza:
– Pobre querer ser doutor. É muita pretensão.

612
Paulo Caldas

Pura inveja, os filhos dele não deram pra nada. Quan-


do conseguiu o seu primeiro estágio remunerado, fruto
do bom desempenho nos estudos, enfim, deixou a loja de
tecidos. Na despedida, com ar arrependido, ao lhe dese-
jar boa sorte, ele desabafou”.
– Vai em frente, rapaz, faça o futuro e seja feliz, pois os
lá de casa tiveram tudo e nada fizeram.
A partir de então, a vida mudara. Passou a conviver
com pessoas bem formadas e, devagar, foi conquistando
seus espaços. O dinheiro dava para ajudar à família e ain-
da satisfazer pequenos desejos: sapatos decentes, roupas
apresentáveis e um velho sonho: possuir um paletó. Vive-
ra amargurado, tempos atrás, por conta de não ter um.
Até aquele momento só usara paletó uma vez, em toda a
vida, e assim mesmo emprestado.
Em quantas ocasiões ficara constrangido por não com-
parecer às festinhas de 15 anos, quando as mães, sempre
tão rigorosas, faziam questão do traje formal nos aniver-
sários das filhas.
– Tem que ser vestido igual para as mocinhas e pale-
tó para os rapazes. Quem não tiver, nem convide, minha
filha. Tem até graça. Já pensou no retrato do álbum, as
meninas todas direitinhas dançando a valsa com um ban-
do de jegues?
O mesmo acontecia com os bailes de formatura. Rea-
lizados nos salões dos melhores clubes sociais da época,
juntava gente jovem e eram animados por grandes or-
questras. De Medicina a datilografia, de Engenharia a
corte e costura, se exigia, com rigor, o traje passeio for-
mal. E, tantas vezes, sonhara com uma dessas festas, dan-
çando entrelaçado com musas suburbanas, dizendo coisas
de amor.
“E ainda pensam que sou bem-nascido, berço de ouro”.
Riu alto.

613
Refresco de cajá

“Nenhum deles aí da sala de espera pode imaginar


que o doutor Francisco de Assis Lima da Silva fora um
grandessíssimo pé-rapado” – gargalhou.
– Dona Roberta, eu acho que doutor Francisco está
maluco. Fui entrar na sala, para levar o suco e ele está lá
rindo sozinho. Ri tanto, tão alto, que não sei como daqui
de fora o povo não está ouvindo.
– Isso acontece, Waldemar. Ele deve estar estressado,
sequer atendeu as ligações que passei... Essas coisas só
acontecem com gente importante.
Lembrou-se que, na esperança de ir à formatura do
curso pedagógico do colégio Pinto Júnior, reunido com
amigos, na esquina da rua, fazia planos e lamentava.
“Queria me agarrar logo com a irmã de Vera Memeia, ela
está com um fogo da gota. E dança enfiada, roçando as
coxas na gente. Mas sem paletó, não dá pra entrar...”
“Eu não dispunha de um centavo. Mas isso a turma
dava um jeito. Mas como iria entrar sem paletó? Atento
à conversa, um garoto, três ou quatro anos mais jovem,
querendo ser agradável aos maiores, deu a solução.”
– Papai chegou do trabalho meio bêbado, pendurou o
paletó no armador da rede e está lá no terraço cochilando.
“Vai lá, Rubinho, tu entra de fininho e traz o abafa-ba-
nana do coroa pra mim. Na volta eu boto de novo no lugar.
Está todo mundo dormindo, ninguém vai perceber.”.
E em minutos, a noite se incensou. Cheirando a per-
fume barato, brilhantina no cabelo, pedacinho de espara-
drapo untado de Minâncora sobre a espinha mais recen-
te, Chico apareceu vestido com uma gravata qualquer e
o paletó do araque de polícia Rubem Gonçalves, sujeito
carrancudo e brabo que só um preá capado, conforme se
comentava na rua.
– Seu Rubem quando bebe dá em dona Luzinete e
quebra as coisas dentro de casa.

614
Paulo Caldas

Na lembrança, nitidamente surgiram os detalhes do


baile. Aromas de Avon, cabelos à Chanel arrumados com
laquê, a Orquestra de Fernando Borges e a hora da valsa:
primeiro o pai, depois os irmãos, padrinho, até a vez do
noivo ou namorado fixo. “E mulher no meio da canela.
A irmã de Vera Memeia não foi, mas me agarrei com a
filha de seu Eurico do enchimento. Feia que só um trem
virado, mas tinha uma lapa de bunda arretada.” Liso que
só muçu, mas feliz da vida, rodopiava no salão no maior
sarro com a filha do homem do enchimento. Sentia-se
feliz e orgulhoso. “Se não fosse a pirangagem de Gilberto
Timbu. Aquele filho da puta se negou a me pagar uma
merda de uma dose de rum. Mas isso foi o de menos. Ar-
lindo Topo Gigio, um garçom conhecido, me atenuou a
sede com umas pedras de gelo”, sorriu…
Finda a noitada, de volta à mesma esquina, como de
hábito, o grupo iria se gabar das peripécias até o sol apa-
recer. Mas quando o táxi – um Dauphine 65, estacionou,
assistiu a cena que jamais se apagou de sua memória. Além
de outros notívagos, estavam o dono do paletó, dona Lu-
zinete e as meninas: Letinha e Néa. O velho, pijama de
listras desbotadas, chinelos cambados e cara de poucos
amigos. A consorte, de maus bofes, cabelos enrolados em
bobes, trajando um robe outrora estampado com florzi-
nhas, sobre a camisola de pano comum, mãos nos quadris,
perna direita virada para o lado, batia ritmada a ponta do
pé na calçada.
As meninas, já mocinhas. “Eram duas enxeridas. Tou-
cas feitas com meias velhas, para amansar a rebeldia dos
cabelos, trajes simplórios, sandálias japonesas, remelas em
torno dos olhos e mingau das almas grudando os beiços.”
Quando percebeu que seria protagonista da cena, co-
meçou a suar frio. O dono do paletó, passos apressados,
a caminhar em sua direção. Pelo canto do olho percebeu

615
Refresco de cajá

a orelha de Rubinho toda marcada de vermelho, vestígios


de puxavantes e chapoletadas na cabeça raspada à Jack
Dempsey.
“Boa-noite, seu Rubem, quer dizer, bom-dia… Tudo
bem, dona Nete. Tudo bom, meninas? Elas me achavam
metido às pregas de Odete: Só quer ser Jerry Adriani, assim
diziam, pois eu usava uma franjinha com laquê, espichada
pro lado da testa. Era meio ridículo, mas tava na moda.”
“Eu nunca dei bola para elas. Também, uma troncha
outra guenza. A maior, conhecida como Perna de Creca,
a perebenta, unhas do pé descascadas, a cabeça cheia de
bobes. A menor, uma quizila, magra que só sibito baleado,
do cu se via os dentes. Duas merdas.”
“Quando ficamos frente a frente, tão próximos que
pude sentir sua inhaca de cachaça, fiquei gelado. O ho-
mem pôs a mão no meu peito, apalpou o bolso interno do
paletó, apalpou de novo e relaxou”.
A menos de um metro de Chico, a família suspirou
aliviada. O salário do policial estava intacto.

616
A grande reta
Pelópidas Soares

Zoá desfazia a curva na lombada do aclive. Descorti-


nava a planície – a estrada deitada cortando o verde ao
meio. Larga aos seus pés, estreitava-se até o final de fita
no encontro com o azul. Além, a estrada continuaria? Zoá
temia a reta e o pós após.
Parava. Ali Zoá parava.
Grande a atração da reta, chumbo imobilizava-lhe os
pés. Que encontraria depois, quebrada a barra do hori-
zonte? No fim da reta a estrada penetrava o infinito. Zoá
ouvia dentro dele o apelo imperativo: “Vá!”. Maior era o
medo do desconhecido. Tremor nas pernas, tumulto dos
sentimentos. “Vá!” Os pés paralisados não obedeciam. A
reta – o limite do medo. Zoá voltava lento.
Aquela estrada lhe pertencia até a fronteira da grande
reta. A partir de Pindoba, nela trabalhara palmo a palmo.
Vira-a surgir dos canaviais e estirar-se sobre os campos.
Havia antes uma estradinha poeirenta no verão, lamacen-
ta no inverno. Mais um caminho de carros de bois. Raros
veículos nela se aventuravam, sacolejantes sobre os pedre-
gulhos. Uma estrada que se enrolava nas curvas, os cami-
nhões de cana buzinando angustiadamente. Uma velha
estrada, indomada, perdida na memória.
Um dia chegaram os homens com guarda-sóis enor­
mes, olhando em tubos sobre tripés, medindo a terra, en­
fin­cando estacas de um e de outro lado.
Zoá, alvoroçado, foi trabalhar com eles.
A grande reta

Meses depois da ida dos topógrafos, Zoá assistiu as-


sombrado à chegada das máquinas. Pareciam dragões,
bichos dos começos do mundo. Calangos e gafanhotos
gigantes, ligeiros e barulhentos, cortando e removendo
a velha terra cinzenta e gretada, nos trabalhos de terra-
plenagem. A nova terra descoberta surgia vermelha, em
carne viva. No corte dos montes o massapê sangrava.
No serviço miúdo, de enxadeco em punho, Zoá era
uma põe-mesa entre as máquinas gigantes. Quando subiu
numa delas, auxiliar do operador, engrandeceu-se asso-
berbado. São Jorge fustigando a fera, riscando na terra o
árdego cavalo.
A mulher, Donina, inquietava-se, desconhecendo Zoá:
– Homem, volta pra palha da cana que é o teu lugar!
Zoá, ruivo, face sanguínea e sardenta, a cabeça em cha-
mas, pensamentos incendiados, dizia-se um fura-mundo,
o gato de botas, um papa-léguas.
As máquinas devastando o verde, descobriram a pla-
nície, quilômetros acima de Pindoba. Zoá parou, olhou a
paisagem, o horizonte de fim de mundo, nuvens paradas,
misteriosas, coando um sol de ermo. Quando as máquinas
repousavam, ouvia-se o silêncio profundo. Zoá não soube
explicar, teve medo, voltou para Donina.
O melhor caminho para Zoá ficou sendo a estrada.
Largando do trabalho, no canavial, para ela se dirigia,
sentindo nos pés a terra vermelha que ele ajudara a ras-
gar. Homem de indagações, para cima e para baixo, ao
longo da estrada, intricava-se no querer saber: por que o
mato era verde? Por que o céu era azul? Por que os pássa-
ros cantavam? Por que o Sol rodava sobre a Terra parada?
Por que a raposa tinha o instinto de ladrão? Ele mesmo
dava soluções: Deus era pintor daquelas cores, os pássaros
a banda alegre dos bichos, o Sol rodava para haver a noite.
A raposa não era ladrona por que só roubava para comer.

618
Pelópidas Soares

Da estrada afora Zoá remoía, remoía, ruminante. Na


grande planície acordava. Os pés detinham-no. Vendo a
paisagem, o coração inquieto. Voltava, Donina advertindo:
– Homem, deixa a mania de andar na estrada. Aquieta
o rabo em casa.
Tempos depois, outros homens e outras máquinas
acamparam em Pindoba. Instalaram-se na pedreira. Cava-
vam a pedra dura, colocavam no buraco a dinamite, o tiro
ribombava, levantando nuvens negras de nhambus das
touceiras. As pedras reduzidas a pedrinhas, que os cami-
nhões transportavam para a estrada. Na terra despejavam
água, máquinas socavam o barro com rolos de mil tentá-
culos. Ferros esquadrinhavam o chão, neles eram postos
areia e concreto. Zoá carregava material num carrinho de
mão. A estrada ressurgia linda e brilhante, acimentada re-
fletindo o aço do sol e o cobre da lua. Andrógina: feminina
nas curvas e máscula na penetração.
Atingindo o aclive da lombada, redescobriu a grande
reta. Zoá, mais uma vez, parou. A estrada, enorme língua,
aos poucos se estirava na paisagem. Zoá via o cimento
estendendo-se no verde da planície e tão longe foram os
homens e as máquinas, que Zoá os perdeu de vista.
Da pedreira restaram tão somente folhas de zinco, im-
prestáveis tábuas e as crateras das pedras dilaceradas.
Contudo, a estrada mais e mais, se povoava dos seus ver-
dadeiros habitantes: automóveis, caminhões, ônibus, jaman-
tas, jipes, camionetes. Os veículos passavam correndo pela
estada estática e caleidoscópica, porque uma estrada sucede
vertiginosamente a gente e paisagens – sem sair do lugar. E
quem nela transitava, muitas vezes encontrava Zoá.
Uma estrada é o centro do mundo. E no meio da estra-
da, na divisão das placas, Zoá caminhava.
Zoá, sarará – chama vermelha na estrada. O cabelo de
fogo, face ardente – Zoá, um tição. Não sentia o perigo

619
A grande reta

dos veículos zunindo aos seus ouvidos, o ar redemoinhan-


do, a lufada da morte, as palavras gritadas no desloca-
mento do vento:
– Seu merda!
– Doido!
– Cancão de fogo!
Zoá, em brasa, nada ouvia. A face imperscrutável, es-
condida a decisão do seu caminhar. A estrada era sua,
vira-a surgir do chão, nela trabalhara. Outros tinham ter-
ras, tinham lojas, tinham usinas, tinham o mar. Ele tinha a
estrada. E Zoá seguia pela sua estrada, indo e vindo.
Donina, desesperada, chorava:
– Homem, deixa a estrada, a estrada te endoidece!
Zoá tinha moucos os ouvidos para os roncos dos enor-
mes caminhões, as gaitas agudas dos ônibus, disparados,
Zoá entre eles, jogado perigosamente ao chão, pelo ar, dos
veículos cruzados. Quantos automóveis, caminhões, ôni-
bus, desgovernaram-se na pista por causa do inesperado
encontro com o homem no centro da estrada, aprumando-
se adiante entre gritos e impropérios dos seus ocupantes?
Do terror emergira Zoá: a impassividade do homem-
fogo no domínio do seu mistério. Impassividade que não
o abandonou e mais irritou os soldados que o levaram
preso, dele só arrancando as palavras:
– A estrada é minha.
O pau tiniu no lombo de Zoá. Pau contra pau. Fogo
contra fogo. Zoá quando falava repetia:
– A estrada é minha.
Não sabendo o que dele fazer, jogaram-no num quar-
to, misturado com outros homens, debochados. Zoá nu
da cintura para cima, salpicado de sardas, o cabelo de la-
baredas, Zoá calado. Libertaram-no de tarde no Recife,
Zoá tonto, apanhado, no emaranhado da cidade desco-
nhecida, homens e automóveis na agitação de ninho de

620
Pelópidas Soares

baratas, só uma visão o iluminava: reencontrar a estrada


do seu destino.
Quando a encontrou estabeleceu-se o equilíbrio – Zoá
no meio da estrada era o centro móvel do Universo.
Na noite os holofotes dos veículos o cegavam, Zoá en-
candeado não perdia o roteiro, marcado pela sequência
das placas de concreto.
Um automóvel freou bruscamente em cima dele, des-
viou-se, novamente tomou o impulso, invadindo o cana-
vial. Zoá ouviu o ronco e, depois, o repentino silêncio.
Não viu o homem e a mulher abraçarem-se desesperada-
mente antes de serem tragados pela noite. À meia-noite,
os faróis de um ônibus o encontraram numa curva – ho-
mem ou fantasma? Fogo-fátuo subitamente iluminado –
desviando-se para a esquerda: um estrondo e lamentos
na escuridão. Já no claro-escuro da madrugada, o cami-
nhão de bois apareceu, ziguezagueou, a cara do motorista
– relâmpago de pavor – a batida terrível na barreira, o
capotamento, um boi passando disparado por Zoá, para
cair adiante, no centro do seu caminho. Zoá não permitia
desvios, atravessou sobre o animal, despontando do outro
lado, na rota batida dos seus passos.
Ao amanhecer, o encontro em Pindoba, Zoá sentiu o
cheiro familiar, nunca antes lembrado, agora tão presente
daquele seu mundo, Donina tão perto e tão longe, Zoá no
imponderável, entre o ser e o não ser, andando, a lom-
bada da curva do aclive descobrindo a grande reta. Não
vacilou. Caminhou. A grande reta encontrando o hori-
zonte, Zoá diminuindo na distância, ponto de referência
transpondo o azul.

621
O carro vermelho
Perseu Lemos

“Deseja alguma bebida, cavalheiro?”


A jovem aeromoça era realmente bonita, e o convite
ficava mais simpático...
“Um suco de tomate, obrigado”.
Não bebia quando voava. A rotina diária era mais peri-
gosa: assaltos, colisões, tromboses e infartes tinham cura-
do o seu medo de viajar de avião. Hoje, na cabine confor-
tável, sentia-se completamente à vontade. O 727 era novo
e voava sereno como um pássaro de Deus...
A cabeça encostada na janela oval vibrava suavemente,
num sussurro hipnótico. Quase dormia. O suco de tomate
ainda restava no copo plástico. Sentia-se muito bem. O
congresso fora um sucesso e as suas palestras bem recebi-
das e admiradas. Valia a pena trabalhar e sentir o sucesso.
Às alfinetadas da inveja, respondia com o sorriso do que
sabe que é melhor. “E bom viver!”
Depois de afivelar o cinto, sentiu o avião mergulhar nas
nuvens e o azul do céu ser trocado pelo cinza. O Boeing
começara a perder altura, aproximando-se do Galeão.
Dez minutos ainda de voo. As nuvens sumiram e embai-
xo, rios, montanhas, vales, áreas cultivadas, num mosaico
fantástico, ofereciam-se à vista.
Lá estava a estrada: parecia também um rio – serpea-
va, subia, descia, atravessava montanhas perdendo-se nos
túneis. Ladeava montanhas e vadeava riachos.
As pontes pegavam-na de um lado e deixavam-na do
outro. As nuvens projetavam seus perfis inusitados tam-
Perseu Lemos

bém sobre ela. O caminho do homem na terra era tortu-


oso; o caminho do homem no céu, era simples e direto
– como a sua alma...
Os carros na estrada sempre o fascinavam. Pequenas
manchas coloridas, pareciam brinquedos vistos daque-
la altura. Mas não eram: dentro deles havia gente como
ele: felizes, infelizes, jovens, mulheres e crianças. Santos e
demônios... Costumava imaginar quem seriam as pessoas
que iam naqueles carros. Seu pensamento estava neles, e
eles nem imaginavam que, do alto, através de uma janela
de plástico, alguém os via, e muito menos, pensava neles.
Estaria o caminhoneiro cansado, em busca da mulher e
dos filhos? Ou a mulher daquele conversível iria se en-
contrar com o amante num motel de estrada? Tudo era
possível...
Veja, por exemplo, aquela mancha vermelha descen-
do a montanha... O avião baixara mais e era possível vê-
la melhor. Vinha segura e fazia as curvas com elegância.
Quem a dirigia? Os devaneios recomeçaram... Aquela
parte da montanha era sua conhecida, pois ali estava o
posto Trevo de 4 Folhas, onde se abastecia quando subia
para seu sítio em Petrópolis. O prateado do rio no fundo
do vale, parecia um fio de platina brilhando ao sol que
começava a declinar. (Eram 17 horas de um lindo dia de
verão.) Logo estaria em casa. Olhou novamente a estrada
e o carro vermelho.
Um cheiro forte penetrou-lhe as narinas. Era um per-
fume de flores sem dúvida. Mas quais? E por que o sentia?
O carro continuava a descida e logo o deixaria de avistar.
Ninguém à sua volta parecia ter se perfumado. O cheiro
aumentou ainda mais, quando ele viu o carro vermelho
oscilar na estrada e precipitar-se encosta abaixo, virando
e revirando-se no ar como nos filmes de dublês... Sua res-
piração quase parou, porque o perfume se fez ainda mais

623
O carro vermelho

forte quando não viu mais o carro... Tudo voltou à quie-


tude antiga, e lá na estrada muito longe, outros carros se-
guiam seus destinos, indo e vindo, procurando segurança
e paz. O carro vermelho não estava mais no jogo.
Os olhos abertos se fecharam num espasmo de horror.
Ele vira aquilo! Mas, quem mais? A estrada estava deserta
naquele trecho, e só sombras das nuvens passeavam nela...
O cheiro continuava muito forte, estranho e sem razão.
Aquela não era a sua colônia, nem a da aeromoça, que
mandava afivelar os cintos, bem perto dele, num sorriso
lindo mas absolutamente profissional. Devia ser chato ser
aeromoça: animar covardes, e “esfriar” todos os homens,
que naquelas alturas imaginavam fazer amor com ela...
Fantasias aeroeróticas...
O carro caindo no despenhadeiro... Quem iria nele?
Homem, mulher, velho, jovem; uma pessoa? Duas, três?
E que seria de quem o esperava? Quando saberiam? Es-
tariam vivos, mortos, sangrando, desmaiados, ilesos, car-
bonizados?... A angústia tomou-lhe o peito e o choro foi
escondido pelo saco de enjoo…
“O cavalheiro precisa de alguma coisa? Está passando
mal?”
“A aeromoça era mesmo linda!
Recuperou-se temporariamente, e sorriu o melhor
que pôde:
“Estou bem, obrigado! Uma náusea ligeira...”
O avião tocou o solo não muito suavemente e os freios
fizeram o seu barulho característico. “Graças a Deus che-
guei”... Mas o carro? O carro vermelho? O perfume não o
abandonava. Cheirou as mãos e viu que ele vinha delas...
Era como se tivessem despejado um vidro de colônia flo-
ral nas suas mãos...
Recebeu a mala e desceu com ela para o estacionamen-
to. Seu carro felizmente não era vermelho... Era branco,
“Branco Nevada”, como o rotulavam na fábrica.

624
Perseu Lemos

Ligou a máquina e partiu... O carro vermelho se mistu­


rava com o cheiro estranho, sempre muito forte. Tinha
que fazer alguma coisa. Por mais louca que fosse...
Manobrou seu carro para Petrópolis, como se fosse
para o sítio, e acelerou o máximo possível... Ia achar aque-
le carro, e socorrer aquela gente. Sendo médico, poderia
mesmo ser ainda mais útil...
Já não sentia o cheiro. Mas a determinação era firme.
Ia achar aquele carro de qualquer jeito...
As sombras começavam a aumentar quando passou no
Posto Trevo de 4 Folhas:
“Gasolina ou álcool?”, perguntou-lhe o jovem bom-
beiro. “Nada. Não é isto.” Perguntou, então ansioso, mas
pausadamente:
“Você viu um carro vermelho passar por aqui uma
hora atrás?”
“Ora, moço, como vou lembrar? Aqui passam carros
de todas as cores, de minuto a minuto...”
“Escuta, rapaz, houve algum desastre aqui por perto?
Algum carro despencou montanha abaixo?”
“Creio que não, patrão. Estou aqui desde depois do
almoço e não vi nada. Aliás a patrulha rodoviária passou
por aqui há uns dez minutos. Não comentaram nada. Por
que, hem? Por que pergunta?”
“Não é nada. Encha o tanque de álcool!”
Gratificou o bombeiro e continuou descendo. Fora por
aqui. Pouco depois do posto. Talvez ninguém tivesse visto
mesmo. Resolveu investigar mais.
Percorreu a estrada olhando para o precipício, mas
nada notou de anormal. A proteção de ferro estava ínte-
gra naquela curva perigosa e a vegetação nada apresenta-
va de irregular. Mas ele vira! Fora por ali... Não podia ter
sonhado... Ou fora um sonho? Um pesadelo horrível?
Parou novamente no posto e pediu uma Coca ao bom-
beiro, que ironizou:

625
O carro vermelho

“Viu alguma coisa, moço? Quer um conselho: vá para


casa bem devagar e com cuidado. Não é bom dirigir meio
alto...”
Olhou para o bombeiro, balançou a cabeça afirmativa­
mente, e foi embora sem uma palavra. O que poderia di-
zer? Era melhor julgá-lo bêbado, que louco.
Ligou o rádio para ouvir o noticiário: “quem sabe?”.
Só ouviu as últimas notícias políticas e esportivas.
Chegou em casa certo de que tivera uma alucinação
visual e olfativa. Desgostoso, com medo de estar ficando
esclerosado, tomou um hipnótico e dormiu...
Nos dois dias seguintes, o carro vermelho continuou
a persegui-lo incomodamente. Procurou um seu amigo e
colega da psiquiatria e contou-lhe.
“Excesso de trabalho! Muita preocupação, muita via-
gem, muito congresso. Estresse. Sabe o que é estresse? É
o que você tem...”
Os comprimidos foram úteis. Operou bem. Teve mui-
tos pacientes novos. Engordou sua conta no “mercado
aberto”.
Sentou-se para assistir ao noticiário na TV da sua clí-
nica. O último cliente fora atendido e agradecera mui-
to pelo resultado que obtivera. Era bom ganhar dinheiro
ajudando os outros... Terminara a novela, quando a TV
Repórter anunciava no próximo horário:
“Automóvel desgovernado precipita-se despenhadeiro
abaixo logo depois do posto Trevo de 4 Folhas. Mulher
que o dirigia está gravemente ferida na emergência do
hospital São Felício, para onde foi removida. O carro –
um Monza vermelho – está totalmente destroçado...”
Ficou completamente imóvel. O espanto parecia real-
mente que ia enlouquecê-lo.
Pegou as chaves do seu Voyage branco, e com um “de-
pois eu volto” guiou-o para a estrada de Petrópolis.

626
Perseu Lemos

Foi quando começou a subir a serra que sentiu nova-


mente o cheiro: o mesmo do avião, o mesmo que saíra das
suas mãos... Voltou a cheirá-las e, outra vez, delas emana-
vam ondas de perfume... Começou a suar e dirigiu cada
vez mais depressa.
Na emergência do hospital encontrou o doutor Carlos,
seu ex-aluno, e agora brilhante cirurgião:
“Professor, por aqui? Alguma anormalidade? Posso
ajudá-lo?”
Ele era também bem-educado e respeitador.
“Sim, sim, dê-me notícias da acidentada do carro ver-
melho.”
“Ah, vai ser operada logo mais. Suspeito de rotura do
baço e do fígado. Além de fratura dos ossos da perna di-
reita. Certamente há sangramento na cavidade abdomi-
nal. Estamos em dificuldade, porém, porque ela é sangue
O-Rh negativo e só dispomos de uma unidade. É preciso
mais...”
“Deixe-me vê-la enquanto chama o transfusionista. Eu
doarei o sangue. Também sou O-Rh negativo. O único
sangue que ela poderá tomar.”
Ela já estava entubada e anestesiada. Apesar de tudo,
dava para ver que era jovem e provavelmente bonita. Era
difícil avaliar, com a boca cheia pelo tubo de anestesia, e
os olhos cobertos por uma compressa. A anestesista tam-
bém era jovem, e certamente muito bonita. Sobretudo era
muito competente.
Sorriu para o professor. Ele desejou ser vinte anos
mais jovem... Por um momento quase esqueceu o carro
vermelho... Mas o cheiro floral voltou a tomá-lo, quando
o doutor Carlos sulcou o ventre descorado, numa longa
incisão à esquerda. O sangue era pouco e sem força, e mal
sujava as compressas com que os assistentes limpavam a
ferida.

627
O carro vermelho

Ele olhou o vidro de sangue que fora colocado agora.


O seu sangue: vermelho, generoso e sadio... Sentiu uma
estranha sensação de satisfação quando viu o seu sangue,
a sua vida, entrando veia adentro, confundindo-se com o
sangue da mulher do carro vermelho. Era como se ele pró-
prio estivesse penetrando aquele corpo... E não era? Não
era o seu sangue? Vivo, com plasma e glóbulos? Não esti-
vera circulando no seu coração e no seu cérebro minutos
antes? Alimentando sua alma, como alimentava agora a da-
quela mulher? Não era por acaso deus, o seu deus interior
que perfundia agora o corpo estático? Sim. Era sim. Deus
está dentro e fora de nós, no infinitamente grande e no in-
finitamente pequeno... Os seus pensamentos só foram dis-
persados quando, terminada a esplenectomia e suturado o
fígado, o doutor Carlos olhou o mestre e disse:
“Acho que a salvamos. A sua chegada foi providencial.
Sem o seu sangue ela não teria resistido.”
O professor sorriu enigmático, feliz, humilde: “Nada
mais fui que um instrumento de Deus”.
Retirou a máscara e o gorro. Desvestiu o capote, to-
mou um café e ficou aguardando.
“Posso vê-la, doutor Carlos?”
“Claro, professor, está acordando na UTI. O senhor
manda...”
A anestesista ultimava o preenchimento da ficha, quan-
do ele entrou.
“Sua conhecida, professor?…
“De um certo modo…”
Ele aproximou-se da maca e olhou a mulher. Devia ter
trinta e poucos anos. Quase tão bonita quanto a aneste-
sista. O perfume voltou a penetrar suas narinas, quando
ela se mexeu e abriu os olhos. Eram verdes e límpidos.
Fechou-os, e outra vez abriu-os, como se o reconhecesse.
Ele nunca a vira antes. Foi assim muito, muito estranho

628
Perseu Lemos

mesmo, quando ela esboçou um sorriso com os lábios ain-


da pálidos e disse-lhe num murmúrio audível e claro:
“Obrigada por ter vindo. Obrigada…”
O perfume desapareceu do ar... Vestiu-se, cumprimen-
tou os colegas pelo êxito da cirurgia. Tomou uma laranja-
da bem açucarada para compensar a doação do sangue.
Vestiu o paletó esporte; tomou o elevador e chegou
à portaria. Lá, muita gente procurava notícias. Parentes,
certamente, olharam-no com indiferença... Gente de te-
levisão empunhava filmadoras de tapes. Afinal a mulher
do carro vermelho era a esposa do magnata da lã. Bonita,
elegante e colunável. Grande benfeitora das crianças ex-
cepcionais. Também havia policiais fardados e à paisana.
Investigadores. Súbito, um deles dirigiu-se ao professor:
“Por favor, queira me desculpar, mas o senhor está
convidado a ir comigo à delegacia de polícia. Por favor”.
O policial fora bastante cortês e claro, mas ele ainda
não entendera.
“O quê? Eu? Ir à Delegacia? Acabo de doar sangue a
uma paciente! Os senhores devem estar enganados. Eu
sou professor de cirurgia. Boa-noite!”
A mão forte segurou seu pulso: “O sr. não entendeu?
O senhor está preso para averiguações. Queira me acom-
panhar. Não tomará muito tempo”.
“Mas por quê? Quer me explicar por quê?
“É que o senhor corresponde exatamente à descrição
que um bombeiro do Posto Trevo de 4 Folhas fez de um
homem que num Voyage branco, dois dias atrás, andou
indagando sobre um desastre que teria acontecido, na
curva do despenhadeiro. Há suspeitas de que o acidente
foi criminoso...”
Na Delegacia, ele conseguiu, mas não foi fácil explicar
ao delegado, que era um paranormal e que em certa di-
mensão o tempo não existe.

629
O louco
Pietro Galindo

Era uma ilha como qualquer outra. Com uma igreja e


suas bea­tas, jardins e suas flores, pessoas comuns a uma
cidade pacata de hábitos simples. Uma cidade, quase que
totalmente previsível, se é que isso possa ser possível. Pes-
soas que acordam, vão ao trabalho, comem, dormem e
morrem. Donzelas, debruçadas nos umbrais das janelas, a
esperar pelos seus amores, puras e imaculadas. De forma
mui especial Carminha, um exemplo de pureza! De uma
conduta irrepreensível, apesar do olhar devasso...
Um guarda chamado Lea, sempre a postos, impede
que os casais apaixonados enamorem-se nos bancos da
praça. Um verdadeiro ditador, mal-amado, cujo lema é:
disciplina. Fanuel, um barbeiro que sabe da vida de todo
mundo do lugar, sonhara em ser repórter um dia, e devia
ter sido. Dilaércio, o pipoqueiro melancólico, que almeja-
va ser circense e conhecer o mundo, mas como encontrara
a esposa que amava, decidiu por ficar na ilha. Dizia, repe-
tidas vezes: “fiz a escolha certa”. Havia também o vende-
dor de livros, Axel, um homem inteligente, de olhar pe-
netrante, seminarista às portas da formatura. Tinha como
principal característica o poder de manipular as pessoas,
queria ser pastor e viver para o social.
Enfim, são pessoas diferentes e de hábitos divergentes,
mas no tocante a um assunto tornavam-se iguaizinhas: O
MURO. Ninguém sabia quem o construíra ali. Era um mis-
tério! Cortava a pequena ilha de um hemisfério a outro.
Ninguém ousaria arriscar-se a transpô-lo – diziam os mais
Pietro Galindo

velhos – que era terra de loucos infelizes. E a pergunta que


não queria calar era: COMO SERÁ DO OUTRO LADO?
Temos que mandar alguém até lá. Mas quem? Reunidos os
cidadãos. Axel, o manipulador, encontrou a solução:
– Vamos mandar o louco da praça até lá, na volta, ele
nos conta tudo.
O louco morava na praça, ali comia e dormia. Nunca
saíra de lá. Passaria despercebido não fosse o comporta-
mento estranho, quando chovia. Deitava-se na areia, lam-
buzava-se com lama e grunhia de frio. Mas jamais acei-
tara doação de um cobertor, de uma proteção qualquer.
Parecia gostar daquilo! Conversava com os pássaros, deu
nome a todos eles. Nos dias de sol forte, deitava-se num
papelão e ficava exposto ao tempo. Retirava-se quando
ele e o papelão estavam totalmente molhados de suor. E o
mais intrigante era que no seu olhar havia uma satisfação
invejável... e no seu rosto um sorriso infinito...
Mas ficou decidido. “Vamos mandar o louco!” Prepa-
raram uma escada e disseram que a ele iria conhecer o
mundo dos sonhos. Fizeram o louco subir a escada, re-
comendando vá e volte para nos contar como é do outro
lado. O louco sem dizer uma única palavra foi...
E quando lá chegou, encontrou a mesma cidade, a
mesma praça, as mesmas pessoas, um cenário idêntico ao
lado de cá, salvo que a donzela Carminha estava transan-
do nos degraus da igreja com Axel, o seminarista, que
por sua vez afirmava que não era apenas o seu olhar que
era penetrante. O guarda Lea estava aos beijos e carinhos
com Dilaércio, recém-chegado de uma turnê com seu cir-
co, e contava estórias e aventuras das suas viagens pelo
mundo (pareciam muito felizes). Começou a chover e o
louco deitou no chão, lambuzou-se na lama, gritou, se-
guiu o mesmo ritual de sempre. Sentiu o gosto da chuva,
da areia, do ar, tinha o mesmo cheiro. Cessada a chuva, o

631
O louco

louco senta-se no banco da praça e começa a cantarolar,


quando se aproxima um rapaz que, percebendo sua in-
sensatez, se apresenta.
– Bom-dia! Meu nome é Fanuel. Sou repórter. Você
não é daqui, é?
– Não. Sou do outro lado!
O repórter fica frenético, e pensa, um furo de reporta-
gem. E torna a perguntar:
– Como é lá? Fale-me, por favor!
O louco começa a gritar, entra em transe como se esti-
vesse sendo transportado para outro mundo. Foram cenas
fingidas. Feitas de propósitos, para não ser incomodado.
Mas o repórter para e pensa: “que loucura, ninguém atra-
vessaria o MURO! É impossível, ainda mais para um louco
como este. Ele na verdade sempre esteve aqui e eu é que
não percebi, deve ter vários mundos fantasiosos, vive no
mundo de fantasias”. Frustrado dá as costas e sai.
O louco permanece com olhar de infinita satisfação... e,
com um sorriso infinito, diz baixinho, pra ninguém ouvir:
– É o meu mundo SURREAL.

632
Aika Tharina
Raimundo Carrero

Uma coisa inútil aquela de ficar passeando nos matos.


Imaginava que só os bobos passeiam entre pedras, plantas,
árvores, espinhos, água. Não suportava trabalhar. Não era
que não gostasse. Um vagabundo. Nunca pensava nisso –
lhe parecia inútil, apenas inútil, assim. Se ocupar com ser-
viços dos outros, suar pelo pão que não comia, fazer for-
tuna que não era sua, repousar aos domingos, feito dizia o
Senhor. O que também era outra inutilidade. Ir à missa e
ouvir o padre ditando as virtudes, às vezes ia, vestia terno
só para vestir terno. Os outros vestiam calça e camisa. Fa-
zia muito calor. O calor escorrendo nos braços. As virtudes
não prestam; os pecados, também. Fazer alguma coisa, im-
possível. Não fazer, bobagem. Uma coisa inútil as virtudes
e os pecados. Uma coisa inútil a inutilidade.
Não via televisão, nem escutava rádio. Mediocridade
demais, afirmava. E nem sempre lia: exigência de refle-
xão, meditação, atenção. Parado ou deitado, sentado no
balanço do terraço, o livro diante dos olhos, quase nun-
ca. Uma coisa inútil aquela. Às vezes ia à cidade, quando
conseguia passes emprestados. Colocava o gorro, vestia
calça desbotada, botas sujas de lama. Pegava o ônibus na
esquina, andava pelas ruas, visitava lojas, atravessava pon-
tes, desfilava com as mãos nos bolsos, no centro da cidade
verificava que era uma coisa inútil. Desapreciava. Tentava
ficar no quarto sem conversar com ninguém. Evitando os
pais, escondendo-se de olhos estranhos; houve um tempo
em que nem gostava de gente, para conversar ou para
Aika Tharina

ver, principalmente para ver. Não gostava de ver gente.


Aquelas pessoas suadas, dizendo asneiras, cantando – ora,
cantando. As pessoas cantam e são horrorosas. Ver gente
era, sem dúvida, uma coisa inútil.
Namorava. Todo o tempo nos abraços, o nervosismo
nas mãos, sangue injetado nas veias, cheiros de açucena e
bogari, tarde ou manhã ou noite – dia inteiro, possível –
entre seios e ventres femininos, sexo se aventurando nos
gemidos. Mas aí vinham as queixas, as reclamações, os
conselhos, os cuidados, os comandos. Escondia-se na ja-
nela para vê-la passar na rua. Fingiam que nem namora-
vam, só para espiá-la de longe, pelos cantos dos olhos, no
prazer de tê-la depois, ela percebia e fazia que não estava
percebendo, os olhos intrigando por cima do ombro, um
dia quem sabe os dois zelosos se encontrando.
Acariciava os peitinhos escondidos sob a blusa, as co-
xas que se mostravam lisas na saia e os joelhos roliços. Ela
também gostava, às vezes no sorriso leve: espiava-o pelas
frestas das portas: quando trocava de roupa, pelos buracos
das fechaduras, no banho, deitado sem roupa no reman-
so da tarde, também não era nada, ele sonhava, mesmo
vendo-a caminhando nos matos, o passeio de mulher no
sol posto. Os olhos testemunharam. Ele viu.
Os dois atirados no tronco da árvore, imensa e fria, o
chão batido expulsando raízes. Ela se debatia, presos os
braços e as mãos. Os joe­lhos do homem enfincados nas
coxas dela, a saia quase levantada. As veias e os músculos
cresciam no pescoço, tornavam o busto ainda mais cheio,
os ombros repuxados, a pele suada. A boca se contorcen-
do, torta para a direita e para a esquerda, procurando res-
piração na garganta, os pulmões tensos. O olho crescendo
demais no rosto.
Ele encostou os lábios nos dela. Não encostou, não; for-
çou, abafou, sem morder. Exigia silêncio. Aquilo se trans-

634
Raimundo Carrero

formou numa batalha de bocas. Densa luta de arranhões.


A saia inteira levantada agora. Com o antebraço no pesco-
ço forçou-a a se esparramar toda no chão. A estertorar. Ela
ficou vermelha. Roxa. Escura. Tentava espichar a cabeça.
Jogá-la para trás.
Sacudia as pernas, os joelhos se tocando, encontran-
do espaço onde não havia. Ele tomou a saia com a mão
esquerda, puxou-a, tentando rasgá-la, impossível. Jogou
a veste para cima. Para muito acima. Prendia a perna es-
querda dela com o joelho direito. Desnudou-a. Entre os
dois corpos ela enfiou o cotovelo e bateu na barriga do
homem. Ele pareceu abafar o grito. Abafou. Vergou o cor-
po. Distendeu a perna. Puxou a calcinha.
As unhas cortaram o ventre. Filetes de sangue escor-
reram, uma marca arroxeada desceu desde o umbigo. Ela
retorceu a face. Prendeu os dentes, espichou os músculos
do rosto, abriu os olhos e acreditava: os olhos do namorado
estavam ali, de longe. Tossia e urrava. Ele insistia no beijo
estrangulado, insistia. Ela procurava combater com o joe-
lho que se soltou. Agitava a perna no ar. A perna lutava so-
zinha. Calcanhar no chão, fez apoio, ergueu a parte direita
do corpo. A bunda inteira à mostra. Também arranhada.
Arrastou as tiras da calcinha, agora suspensa entre
as coxas separadas, a perna se mexendo, debatendo-se.
Deu um murro no queixo dele, bem no meio do queixo,
o murro. Ele sentiu a cabeça no salto, forçou ainda mais
os braços, ameaçava estrangulá-la. Ela batia com a mão
esquerda nas costas dele, enfraquecida. O sexo inteiro
à mostra. Escuro. Salpicado de suor. Tentava protegê-lo
com o ventre liso.
Prendeu o lábio inferior nos dentes. As mandíbulas
tensas. Sem respiração. Os olhos arregalados, enchendo-
se de sangue, empapados de lágrimas, ele atrás da árvore,
ela via. Estrias arrebentando-se, as sobrancelhas arquea-

635
Aika Tharina

das. Os músculos da cara retesados. Sombras adensando-


se nos cantos do nariz, espraiando-se no rosto. O sexo
despedaçado, invadido. O suor escorrendo na testa vinca-
da. O queixo levantado. A boca aberta. O grito estrangu-
lado no peito.
Foi só um segundo de tempo, quem sabe menos. Ca-
tarina apareceu no terreiro. As vestes rasgadas, a face
machucada, os cabelos assanhados, possuída de uma dig-
nidade que iluminava a face e os olhos. Caminhava sem
pressa, um gesto de quem conhece o destino nos ombros
arranhados. De quem desvenda o destino, Camilo conhe-
ceu, estava no balanço: voo alto, voo baixo, tocando ape-
nas com a ponta dos pés no chão. Ela parou nos degraus.
Passou a mão nos cabelos, ajeitou a saia. Não olhava, não
olhava para ele e não baixava a cabeça, talvez quisesse adi-
vinhar um sorriso pelo buraco da fechadura. Um instante
só. Empurrou a porta, desapareceu na sala. Deve ter ido
ao chuveiro. Precisava de tempo para se recuperar. Então
ficou de pé, tentando vê-la através da janela.
Impossível vê-la inteira. As sombras se formavam de
um tal encanto que os vultos se entrançavam entre lãs,
sumiam. Não havia mais ninguém na casa. Ninguém. Ele
tentou acompanhá-la. Queria tocá-la e tinha medo. Era
possível chorar, os dois juntos. E ela não estava, não es-
tava em lugar algum. Nos quartos, na sala, na cozinha.
Uma casa desabitada, parecia. Desabitada e tosca. Puro
deserto. Seguiu pelo quintal e vê-la não foi mais do que
uma obrigação: sentada no quarto de despejo. Pretendeu
respeitar o silêncio árido, o grave silêncio que o vento na
copa das árvores ainda tornava mais pesado.
Ao invés de entrar, se sentou na porta, no manejo firme
e seguro desse silêncio, os pés nos degraus. Não apenas
via, agora sabia e sentia: Catarina sem chorar, não tinha
um único soluço no peito. Diante da chama do candeeiro,

636
Raimundo Carrero

o rosto revelava beleza: a estranha beleza vinda do sangue.


Áspera e estranha beleza que se mostra no sofrimento.
Quando o silêncio se aprofundou ainda mais, cavando
abismos e gretas para sempre nas entranhas, Camilo ten-
tou compreender o que tudo aquilo significava. Os olhos
chamejando no quarto, fera acuada. Sem muito esforço
confessou a si mesmo que era melhor deixar o sangue
vagar nas veias e no coração. Procurava ruídos e barulhos,
alguma coisa que pudesse denunciar a luz. O casarão me-
lancólico. Melancólico e em ruínas.
Encostou-se na parede, a carne machucada. As unhas
roçando o joelho. Catava na noite as sombras que tornam
os homens ainda mais afoitos. Afinal, o dia começara páli-
do e gelado, com as marcas que a chuva da madrugada, in-
sistente e fina, deixaram: os caminhos enlameados, a mata
molhada, as folhas úmidas. Queria, desejava com sinceri-
dade, que também aquilo fosse uma coisa qualquer.
Não precisou de esforço, as pernas obedeceram: sem
erguer o corpo inteiro se aproximou. Sentou-se ao lado
de Catarina, beijou seus cabelos, os dedos escorrendo nos
fios suados, ela arriou mansa a cabeça no seu ombro. As
carnes trêmulas, a inquietação. Ele sentiu que ela só queria
confirmar – no clamor das veias, na lentidão da espera, os
olhos denunciavam, brilhosos nas chamas do candeeiro,
se era verdade que ele havia assistido a tudo. Agora nin-
guém podia testemunhar. O braço envolvendo o ombro,
abafou o beijo, logo. Beijo de esgar, beijo de lábios ofen-
didos. Os olhos arregalados. Penetrou, pela segunda vez
naquele dia sentiu a ofensa. Deitou a cabeça num urro.
Ainda que aquilo lhe parecesse uma coisa inútil.

637
Madeira perfumada
Rosa Lia Dinelli

Aproximadamente de 1940 a 1960, o pau-rosa atingiu


o seu ápice comercial.
Os cavacos perfumados indicavam, a distância, a loca-
lização de uma Usina de Pau-Rosa.
A margem esquerda do Rio Preto, aquela fora pri-
vilegiada pela Natureza. Juntavam-se ali o vermelho dos
cavacos, o negro das águas, a alvura das areias e os verdes
variados a compor um quadro de incrível embelezamento
e tudo isso acrescido da essência perfumada, produto des-
tilado do pau-rosa, madeira nativa.
O rio era o grande mentor dos homens, do tempo, das
possibilidades…
Nele singravam os barcos lotados dos extratores, com os
seus destinos à mercê das doenças, animais carnívoros, pe-
çonhentos, insetos e tantos outros perigos desconhecidos.
As usinas aguardavam a subida das águas para organiza-
rem as expedições em busca de suas matérias-primas.
A partida, transbordante de entusiasmo, igualava-se
àqueles rios que também se exacerbavam em águas, ofe-
recendo aos barcos melhores condições de acostamento, e
às madeiras, mais facilidades para os seus embarques.
As toras eram trazidas aos barrancos a custos inefáveis.
Uma verdadeira saga florestal.
Foi assim que um corajoso homem abandonou seus fa-
miliares e seus bens para embrenhar-se naquelas matas
em troca do enriquecimento e corroboração de uma fama
Rosa Lia Dinelli

que se delineava. Era um líder inato, destemido e forte,


com todas as possibilidades de vitória.
O barco São Tomé, atracado na usina, aguardava a
complementação de vagas. Depois de superlotado e mui-
tos dias de viagem, finalmente chegou à cabeceira do Rio
Preto onde se falava da existência de muito pau-rosa.
Na lembrança de Pedro ficaram apenas o rastro on-
dulado das hélices, a trepidação e o barulho constante do
motor. No mais, o cheiro de peixe fresco, cozido na água
e sal, porém de sabor agradável. Às vezes, um desfiado
de pirarucu transformava-se num raro banquete. Havia
ainda o vinho de castanha com o mesmo peixe assado na
brasa, mas isso dependia da disposição do cozinheiro para
ralar aquelas amêndoas numa pequena língua do peixe
referenciado, que depois de exposta ao sol, transformava-
se num afiado ralo, o qual ainda pulverizava o guaraná
em bastão, fabricado de forma artesanal pelos índios do
lugar. Era o afamado guaraná das terras, de uso geral, que
tanto aplacava a sede quanto a fome.
Havia um certo manejo no processo da castanha rala-
da. Precisava de muita paciência e assim a tarefa era divi-
dida. Ao final, colocava-se água e, depois de passar pela
peneira, o manjar estava pronto para ser saboreado com
um pouco de farinha e aquele peixe especial.
Com um facão na cintura, espingarda no ombro e uma
trouxa às costas, Pedro e seu grupo iniciaram a caminhada
rumo à floresta, e para evitar que se perdessem, cortavam
galhos com facilidade pois os terçados tinham o fio das
navalhas em suas lâminas.
Nessa primeira noite dormiram empoleirados nas
grandes árvores, para no dia seguinte construírem o bar-
racão que lhes serviria de morada provisória.
E assim foi feito: as madeiras, do local escolhido, fo-
ram aproveitadas para os caibros e cumeeiras; os galhos

639
Madeira perfumada

mais finos transformar-se-iam em jiraus para o agasalho


dos reduzidos pertences, e as palhas da cobertura seriam
colhidas ali mesmo.
As redes, amarradas perto do teto, impediam o ataque
dos animais, porém era inevitável a surpresa de alguma
cobra bamboleando com sensualidade e pronta para ofe-
recer, se fosse incomodada, umas gotas de veneno mortal,
quase sempre.
Pedro não se deixou abater por aquela visão assustado-
ra. Armou a rede, acendeu a lamparina e preparou-se para
descansar. Havia combinado uma espécie de plantão. Se
algum animal de grande porte cruzasse a fronteira, levaria
um tiro certeiro, deixando como herança o couro que valia
algum trocado. Se fosse uma cobra, o terçado cumpria as
suas funções. Pelo menos ali os perigos eram menores.
Alimentação, relativamente farta. O igarapé, que ficava
a alguns minutos do barracão, fornecia o peixe, e as matas,
a carne variada. Mais os carapanãs... esses, sim! Transmis-
sores da malária e uma terçã-maligna que não deixava nin-
guém tecer comentários a respeito. Os maxilares travados,
calavam a voz dos enfermos... para sempre.
Bem antes dos primeiros raios de sol, a turma já esta-
va a caminho. A primeira refeição do dia era um simples
caneco de café. Num saco de pano, a tiracolo, um pedaço
assado de pirarucu, farinha e água para o chibé e, poste-
riormente, matar a sede.
Saíam em número de seis pessoas, no máximo. Se a
distância entre o barracão e o pau-rosa fosse muito gran-
de, arranjavam-se ali por perto. Não faltavam palhas nem
varas para armar um tapiri, nem galhos secos para uma
fogueira. Escolhiam o tamanho da caça que fosse propor-
cional às suas necessidades diárias. Quanta fartura!
Iniciavam-se a derrubada das árvores e o corte, a ma-
chado, das toras, pois através de veredas abertas na mata,

640
Rosa Lia Dinelli

chegariam às margens dos rios. Quando havia algum aclive


as peças eram empurradas com estacas e naquela situação
todos cooperavam. No entanto, se ocorresse o contrário,
era como se falava: “pra baixo todo santo ajuda”.
Pedro, caboclo desenrolado, esperto e saudável, de vez
em quando falava de seus planos ao amigo Zé da Onça,
apelido que herdara por conta de uma patada que havia
levado do felino. Quase lhe tinha custado a vida. O couro
da cabeça já lhe cobria os olhos quando o animal recebeu
o castigo merecido. Levara pontos com agulha disponível
e linha comum. Os remédios do mato também operavam
seus milagres.
– Olha aí, mano velho! Dessa vez vamos arrumar um
bom dinheiro com essa quantidade de madeira que cor-
tamos.
– Que nada, Pedro! O lucro é dos brancos, fique certo.
– Eles também estão nas mãos das grandes firmas ex-
portadoras. Vê? É cobra engolindo cobra, Zé. Mesmo assim,
achamos um ninho das melhores peças do lugar e, pelo meu
cálculo, mais entranhadas de óleo. É só guardar segredo e o
ano que vem nos trará muita sorte, se Deus quiser.
– E por falar em sorte, você deixou a prenda com
aquela índia que virou pedra, lá na cabeceira do rio? Cos-
tumam oferecer diademas, broches, fumo, pentes, contas
e outros agrados. Em troca, ela protege as pessoas das do-
enças e outros perigos. Eu mesmo já vi coisas de arrepiar,
acontecidas aos que não deram crédito... Qualquer dia
lhe conto tudo isso.
– Afinal que conversa é essa de uma índia ter virado
estátua?
– Você já viu como a pedra é igualzinha a uma mulher
de joelhos? Dizem que foi uma silvícola que, ao ser perse-
guida por um branco, correu sem destino e não reparou
que se aproximava de um precipício. O filho, que a seguia

641
Madeira perfumada

de perto, nele caiu. A mãe nada pôde fazer. Desceu as en-


costas e postou-se de joelhos a pedir que Tupã a ajudasse.
A dor que lhe dilacerava o coração era o veículo impul-
sionante das lágrimas que deram origem ao rio das águas
negras, símbolo eterno da tristeza e luto daquela figura
enigmática, chamada “Mãe do Rio Preto”.
Finalmente chegou o dia da partida. Grande era o
amontoado de rolos de madeira à beira do barranco.
A maior parte, dos tantos passageiros do São Tomé,
encontrava-se ali: lugar e data combinados no dia do de-
sembarque.
Cumpriram-se, na íntegra, os contratos verbais de am-
bas as partes.
O motor se anunciava pelo barulho característico...
mas quanto esforço fora imposto àqueles homens que se
fizeram gigantes para cumprir o prazo estipulado, antes
que o rio iniciasse o seu período de seca.
Tristezas e alegrias no desfile mental de cada um deles.
Sob o chão alfombrado das florestas, as eternas mora-
das dos companheiros que não tinham atingido seus obje-
tivos. Vítimas até mesmo daquelas árvores que lhes davam
o sustento.
Se todos os seres vivos tinham o direito de defender
as suas vidas, por que não os vegetais? O que dizer das
urtigas, dos caules espinhosos, plantas venenosas e tantas
outras coisas ainda sob entrave científico?
Não era frequente, mas, algumas vezes, a Natureza
parecia cobrar seus preços... e de repente um daqueles
magníficos exemplares caía, sem explicação, para o lado
contrário do estabelecido, arrastando o algoz para os seus
potentes braços nos quais o infeliz encontrava a morte.
Árvore e homem, no mesmo instante, perdiam suas vidas
preciosas naquele duelo sem vencedor: A força da Natu-
reza sobrepunha-se à inteligência do ser racional.

642
Rosa Lia Dinelli

O batelão, com um pouco mais de dois palmos fora da


água, transportava o pau-rosa que, através das caldeiras,
alambiques e serpentinas, seria transformado em essên-
cia, de larga aplicação no mercado internacional.
Aproximavam-se da usina, de onde, havia alguns me-
ses, tinham partido esperançosos e saudáveis, para en-
frentar os mistérios das impenetráveis terras virgens. Era
ali a casa da malária em seu estado mais brutal. Muito
pouco valiam, os comprimidos de quinina.
No barco rebocador um passageiro, deitado na rede,
manifestava os primeiros sintomas da terçã-maligna. Pe-
dro se esquecera dos donativos devidos à “Mãe do Rio
Preto”, enquanto o amigo procurava reter na memória o
lugar exato do ninho de pau-rosa, as peças mais grossas,
ricas em óleo, e mais valiosas da cabeceira do Rio Negro.

643
Desfile na Dantas Barreto
Rubem Rocha Filho

La dernière innocence et
la dernière timidité.
Apprécions sans vertige
l’éxtendue de mon innocence.
Arthur Rimbaud1

Intervalo, interlúdio ou até mesmo, talvez, protofonia


de uma ópera que se comporá, quem sabe?, em muitos
atos e desdobramentos de fofocas, rancores, chamego, ca-
chorrada num arruado de periferia.
– Larga meu homem, frango!
– Não sabe segurar teu homem, quenga!
– Parem com isso, todos dois!
Mas, no momento, nada tão desventurado. Peça res-
trita a três vozes ou instrumentos: o marido, a esposa e o
garoto. Um trio, portanto.
Mas há um narrador convencional e estabelecido há
tempos, com recursos típicos de rubricas, legendas, um
vídeo complementa os áudios. Teríamos então um quar-
teto? Pois a entidade que narra vibra. E aí se torna perso-
nagem, fatalmente voyeur com suas escolhas do que nos
mostrar. O olho onisciente e imparcial (pois sim!).
Tudo com arpejos ou batuques de metalinguagem. Pode?
Para cada parágrafo – ou bloco, ou ala –, o apito do mestre
da bateria acorda o estonteado leitor na mudança do passo.

1
A última inocência e a última timidez./Apreciemos sem vertigem a
extensão da minha inocência. Arthur Rimbaud
Rubem Rocha Filho

Miroca, amiga, te escrevo para confirmar que o samba


dá de dez a zero no frevo. Isso sem falar na tal chatice do
caboclinho. Um horror! Era impressionante como as arqui-
bancadas iam se enchendo de gente na noite das Escolas.
Cem paus soava muito para aquela população supostamen-
te pobre, ainda mais para torcer por uma agremiação de
bairro carente, Água Fria. Turista nenhum põe o pé lá. Mas
tinham grana, a julgar pelas boyzinhas, as matronas, os co-
roas de bermuda e peito cabeludo. Todos com lata de cer-
veja e pernil no farnel, boné na careca e guarda-chuva se
chovesse. Gente fina não era, mas faminta ou sedenta, isso
é que não parecia mesmo. A torcida de Gigantes. Gigantes
do Samba que contava a história do cronista social da cida-
de, com ala de colunáveis e muita badalação nos jornais.
Também pudera, é covardia. Falando do Ibrahim daqui, tá
óbvio que influencia no júri, na certa. Assim é sujeira. Deu
gringo no samba. Mas o povão nem estava aí. Até ignorava
o tema. Gostava de sua Escola e pronto. Notei o casal por-
que ele era bonito e forte. Meio agalegado, tórax e bíceps
de quem fez muita musculação, a barriga já despontando,
uns vinte e cinco anos, mas o peso do machão prometen-
do um rápido final de apogeu; os traços do jovem indo
embora depressinha. Ela um pouco mais velha, ou só mais
madura, mais dona da situação em seu silêncio, em sua ma-
neira esperta de deixar seu homem à mostra, leão à luz dos
fortíssimos refletores, com gesto e aura de dono insolente,
e ela a patroa, na moita, de lado, quase atrás.
Agora que Galeria passou e foi uma merda, eu posso
dormir. Ou tentar apagar. Chega pra lá um pouco, Ceça.
Não tem problema essa gente aí. É uma velha, se encosta.
Vai. Dá licença. Pede licença. Eu deito só um pouco. Dor-
mir nem um surdo consegue. Mas me chama se Gigantes
vier. Tá pesada a cabeça? Não, não bato com o pé em nin-
guém. Que mania! A sacola está aqui embaixo. A Sukita

645
Desfile na Dantas Barreto

já deve estar quente a essa altura. Fica mexendo, fica, no


cabelo. Eu gosto. Mas é impossível dormir com um som
desses. E tem esse puto vendendo picolé, aqui em cima.
Que não se meta a querer atravessar por aqui, a passar na
minha arquibancada.
O herói escarrapachado nas coxas dela. Eu já não via
inteiro o fortão. Só o tórax à vista, sem camisa, que ele
pousara sobre os olhos. Ocupava o lugar de umas cinco
pessoas sentadinhas. Que país o nosso! Que falta de soli-
dariedade! Na entrada, na boca das escadas, dezenas de
pobres coitados se acotovelando em pé, sem ver nada. E
lá pra cima, nas extremidades, havia cesta, isopor, assen-
to que só, tomado por sacos plásticos. Até vendedor de
refrigerantes se abancava com depósito de mais de um
metro ocupando lugar de gente. E agora aquele machão
se espalhava com a cabeça no colo da mulher.
– Que pesada que fica, depois de cinco minutos. Houve
tempo em que o peso dele me deixava molhadinha. Mas
sei lá. Não é que não ame. Gosto de mexer nos cabelos
dele, fica meio neném, quase dormindo. Mas o peso vai au-
mentando. E acaba doendo. Fica dormente. E se eu mudo
a cabeça pra outra perna, ele reclama. É chato marido.
– Ih, a dona Ceça do 36. Será que eles já me viram? Aí
a gente voltava junto, no fim do desfile.
Não deu outra, queridinha. Foi a perturbação do vende-
dor atirando picolé pros fregueses, se espichando pra pe-
gar o troco e, mais embaixo, um engraçadinho fingindo de
bêbado que se esfregou no traseiro de uma mulher. Zorra
total. Ia dando pancadaria grossa. O nosso garotão que ten-
tava uma soneca teve de interferir. A sua companheira foi
perfeita. Figurante muda, discretíssima, deixando ele dar o
espetáculo, abrir espaço, com voz firme, cara feia e toques
enérgicos, os dedos ponteavam duros, afastando o intruso,
que contemporizava meio de pileque, meio cínico. Deixa

646
Rubem Rocha Filho

disso. Fique frio. Não foi nada. Mas a dona bolinada reclama
alto. Se compactuavam os outros chefes de família, estendi-
dos também em feudos de filhos, agregados, sogra, avó, di-
ques de bolsas e sacolas, preservados dos desconhecidos em
torno. Foi empurrão de cá, de lá. Um fiscal da prefeitura,
de crachá e nenhum moral, pedia calma. O garotão parecia
esquentado, como se lhe tivessem pisado no calo. Aliás, ele
estava com um par novinho de tênis. Tênis da moda. Per-
cebi de longe, tipo Nike, Topper, Adidas. Gastava dinheiro
o gatão pra se calçar bem. Por fim, expulsaram o incon-
veniente. Os clãs confirmados em seus limites. Vitorioso, o
machão viu que o chamavam dos degraus de cima. Sorriu.
Alguém conhecido da rua o apreciara em plena ação.
– Olha: o filho do seu Armando. Já vem sozinho pra ci-
dade, hem. Puxa, parecia um garotinho faz pouco tempo.
A bichinha desceu lá do alto, gazelinha juvenil, mas
contida, discreta. Uma colegial confiante por estar indo
ao encontro da proteção dos vizinhos, sem mais temer o
perigo de ataques da gente baixa. Não que bicha fosse
coisa inédita no pedaço. Mas as várias que brincavam por
ali estavam em grupo, bem-dispostas, sabendo se defen-
der. Ele veio saltitando, o calção preto bem justo, camise-
ta com alça pendendo do ombro, uma Lolita. A Brigitte
Bardot­ou a Kim Novak no terceiro ginasial.
– Humm, pelo menos ele fica conversando e não in-
venta mais de dormir no meu colo. A coxa ia acabar roxa.
Dá cãibra o peso da cabeça, e eu sem me mexer. Humm,
bonitinho, esse Valdo. Mas não me engana. Às vezes não,
é só o jeito educado, a madrinha pega nele um jeito de
mariquinha sem ser. Mas promete.
– Aqui você me protege, né? Tem tanta gente mal-educa-
da. Mas pra ver minha Escola, aguento qualquer mundiça.
Não, não quero beber, não. Pensei que fosse só pra segurar
pra você. Não estou com sede. Não é cerimônia, não.

647
Desfile na Dantas Barreto

– Bebe, cara. Tá calor. Mesmo de madrugada, com


essa gente toda, faz calor.
– Calor foi você mandando brasa. Uma fúria que nem
Rambo. Quase quebra a cara do homem. Expulsou ele da
arquibancada. Você é brabo. Não dá moleza. É fogo.
Com a Escola que entrou na passarela, o pessoal des-
pertou. Um samba quase marchinha, fácil de repetir o re-
frão. Foi aí que o garotinho escancarou. Ninguém poderia
ter mais dúvida. Saquei tudo dali de frente. Ele se soltou,
como se agora tivesse pra quem se mostrar e em seguran-
ça. Sentiu que o admiravam, ainda que discretamente. O
marido dispensava um sorrisinho de ponta irônica e um
mexer de sobrancelha para a mulher; como se comentas-
se, olha só, veja como rebola o estranho no ninho que o
vizinho chocou. Mas um comentário sem depreciar, uma
tolerância que beirava a ternura. O menino mandava bra-
sa. Um requebro de fazer gosto, a energia da pontinha
do pé até os braços, sem censura, nem medo de levar um
fora, baile de moleque, palavrão de recalcado.
(A que narrador, leitor que se esforça para perceber
os fios do enredo, se atribui o parágrafo anterior? Seriam
ainda observações do turista privilegiado? Ou já fala um
autor que tudo sabe?)
– Senta aí com a gente.
– Não aguento, dá vontade de sambar.
Elétrico, os passinhos miúdos, as cadeiras frenéticas;
com muita graça, porém. Ombro, nuca, olhos, a cabeça,
tudo volteando, mas sem desespero, só envolvente para
quem se deixava seduzir. E um adolescente de seus 13
anos? Quem ainda acha que libertinagem é o oposto de
ingenuidade?
(E esta última interferência? Seria ainda do mesmo
cara que, na abertura do conto, escrevia para o colegui-
nha do Rio? Ou ele já anda meio escanteado, seu posto

648
Rubem Rocha Filho

ocupado pelo observador quase divino, detentor do po-


der de nos conduzir pelas trilhas que pensa dominar?)
– Nunca me enganou. Coitada da mãe. E do pai, o seu
Armando, conferente de ônibus. Vão acabar sabendo. Nin-
guém tampa o sol com a peneira por muito tempo. Pra ter
um filho e dar uma frutinha dessas, porque ninguém es-
colhe, prefiro não ter. Ainda bem que o Neco não quer ter
filho mesmo. Por enquanto, ao menos. É verdade que, de
criança, já basta ele. Ainda bem que não pensou em se esti-
rar mais. Ficou distraído. Minha pernoca já estava doendo.
Com esse veadinho, ele se entretém. Puxam papo.
Já vem vindo Gigantes, como uma avalanche de ale-
gria, cor, bom gosto, um nível tão superior ao resto. Aí,
não se vê mais nada.
(Uma recaída do nosso correspondente inicial, antes
de se desmanchar no samba.)
Essa podia desfilar na Sapucaí. De aspirante, ao me-
nos. Pras daqui foi um arraso. As outras não chegam aos
pés. Não é à toa que vibram tanto. A arquibancada vai
despencar. Nem vejo mais o machão entre a bichinha e
a racha. Tanta gente pulando. Um arraso. Puxa, que bo-
nito! Ah, essa tem de ser a campeã. Mas olha que arras-
tão fantástico, no final! Ah, se eu me pego no meio dessa
massa toda. Aids não transmite com o suor, o médico me
garantiu. Ai que loucura.
(Foi a última intervenção do anônimo vidente. De ago-
ra em diante, garanto, só ouviremos o narrador distante e
oculto, igualzinho ao que empregava o Bruxo do Cosme
Velho.)
Foi o fim da festa. Pelo menos ali na Dantas Barreto. O
arrastão evidenciava a escolha popular. As arquibancadas
se esvaziavam em ordem. O sucesso da favorita do povão
garantia o bom humor. O cansaço também ajudava para
que ninguém brigasse. Devagar, todo mundo foi pra casa.

649
Desfile na Dantas Barreto

Ceça juntou os cascos vazios, jogou no chão os restos da


comida, os guardanapos de papel. O garotote ainda dan-
çava com o som da bateria, mal se ouvia o puxador. Neco
pegou a alça da sacola e brincou, leve para o braço mus-
culoso, bem torneado, só o peso das garrafas no exercício
de maromba. Na outra mão, a chave do carro.
– O cururu ficou guardado lá por trás do Santa Isabel.
Nessa hora quebra um galho. Vai dizer que não?
Tomara que pegue, aquele motor vive encrencando. É
pra se mostrar que ele teima em ter esse carro. Homem
é tão bobo com essas coisas de ter carro. Mas eu só quero
é chegar logo em casa. E cair na cama. Hoje de tarde a
loja abre e eu não posso faltar. Que besteira botar desfile
terminando na manhãzinha de cinzas.
– Que sorte voltar com eles. Ia que nem sardinha em
lata no transporte. O pessoal já deve estar quase acordan-
do, lá em casa.
O trânsito livre. Em dez minutos, estavam chegando.
– Agora fiquei ligado. Estou sem sono. Tem cerveja,
Ceça, na geladeira?
– Tem. Eu já vou pro quarto. Boa-noite. Ou melhor,
bom-dia. Fica aí, garotão, na tevê estão mostrando os bai-
les. No Sul, a sacanagem come solta.
A luz delicada já definia a calçada, o correr de casas pa-
rede e meia, algumas de quintalzinho atrás, outras um jar-
dim mínimo na frente. Ainda nenhum vizinho se levantara
e fora vistoriar da porta o movimento. Mas os barulhos ha-
bituais do despertar se mesclavam com o fim do carnaval.
Valdo foi entrando. Não gostava de cerveja, mas tinha
menos vontade ainda de encarar os pais rabugentos, os
irmãos se empurrando no colchão; pelejava para ter um
canto só dele, mas todo mundo se metia; nem carta, nem
retrato de artista podia guardar. Sentia a sensação da fes-
ta pelo corpo todo. Remexia os braços, os quadris, numa

650
Rubem Rocha Filho

música que vinha de dentro, mas logo ecoando na televi-


são ligada.
– Faz um sanduíche. Tem pão e queijo aí em cima.
O dono da casa abriu a cerveja.
Valdo se ajoelhou junto da mesinha de tampo de vi-
dro. Sambava com tronco, enquanto passava a manteiga e
olhava de esguelha para a peitaria de fora das odaliscas.
– A Luiza Brunet nunca me aparecia assim.
Neco tirou o tênis, jogou longe a camisa, se alongou
espreguiçando no sofá, os joelhos afastados, bebendo com
espuma e tudo, geladinha.
A Ilha Porchat, o Yacht Club, Quitandinha, Sírio Li-
banês, Olímpico, nomes mágicos e muitas carnes nuas,
quase. A câmara deitando e rolando.
O menino lhe passou o sanduíche. O homem pegou
como se não esperasse outra coisa. O visitante misterio-
samente para servi-lo, a seus pés, fascinado com o jeito
do dono de quem tudo partia. Na bermuda aper­tada, o
Monte de Vênus, de onde começava e para onde conver-
gia o mundo.
– Não tá alta a televisão? A dona Ceça quer dormir.
– Ela já deve ter apagado. Sorte tenho que de só tra-
balhar amanhã.
– Eu só vou pra aula na segunda-feira.
– Não quer um gole?
Segurando a garrafa, ofereceu. O mocinho curvou a
cabeça para trás, a boca entreaberta. O dono lhe encostou
o gargalo. Um fio escorreu do canto do lábio.
– Aposta como eu danço melhor que as cariocas?
A janela continuava fechada. A sala na penumbra. Neco
bebia, estalava os ossos, retesava a coluna e descansava mais
pesado na almofada. Seus olhos alternavam, seguros, dos
requebros lá no Rio para o vizinho adolescente, as coxas
sem cabelo, as cadeiras no ritmo redondo do pandeiro.

651
Decisão
Sérgio Moacir de Albuquerque

Estava, enfim, realmente decidido; não gastaria, de


modo algum, aquela manhã de sol, a refletir-se nas frutas
frescas, expostas no mercado, no frio e chato escritório.
Sentia, na flacidez da pele, a necessidade de andar um
pouco, variar aquela vida monótona nos roteiros casa-es-
critório, escritório-casa.
– Ô, Carlos, vê esse negócio...
– Carlos, aqueles papéis que procurei ontem?
Também não era de ferro, aquelas coisas bem que o
chateavam, a semana toda naquilo há vários anos. Relem-
brando a infância, esta lhe parecia divina, mesmo consi-
derando os pontos negativos. Jamais dera valor, então, ao
mundo encantado que sentia ao empinar os papagaios,
ávidos de campinas e bodoques.
– Vem cá, safado! Quem mandou cortar o lençol? Por
que não corta teu rabo?
Agora, até aquelas pancadas maternas lhe eram saudo-
sas. No final das contas, bem que a coisa valia, o bicho lá
em cima, valsando ao vento que lhe assanhava os cabelos.
O grande problema era a falta de vento, que procurava
resolver nos assobios rápidos.
– Besteira, menino. Já viu isso dar certo?
Talvez não, mas não deixava de ser uma esperança.
Havia o perigoso Zito, pondo giletes no rabo do seu
papagaio para cortá-lo. E não adiantava reclamar, o creti-
no era muito maior do que ele, fazia-o comer areia.
– Olha o bestão de calça curta!...
Sérgio Moacir de Albuquerque

Ah, bandido, ele bem que era homem, calça comprida


não é documento... Só que se sentia mesmo meio ridículo,
as canelas grandes e finas à mostra, um verdadeiro suplí-
cio, quando das gozações.
– Já disse que não, Carlos. Só quando entrar no ginásio.
O jeito que tinha era continuar sendo alvo dos risos,
das pisadas. Algum dia, envergando enfim as prometidas
calças compridas, mostraria àqueles malandros, ora se
mostraria!...
– Olha a senha!
Esses colaboradores, às vezes, são impertinentes, a gen-
te não pode nem relembrar as coisas passadas. Porcaria de
salário, não dá nem pra grandes necessidades, tendo que
tomar dinheiro a juros, quando algum filho adoece. Quan-
to mais para comprar automóvel, coisa de gente rica.
Longa, a distância do sonho à realidade. Onde, aque-
les planos de adolescente? Casa confortável, luxos, cria-
dos... A verdade gritante era o vizinho briguento, a te-
levisão berrando novelas, torneiras pingando, os garfos
perdidos, queixas, reclamações, as crianças impedindo-o
do simples prazer da leitura, nas correrias pela saleta, os
tiros insuportáveis nas bocas, dez índios (os do vizinho)
mortos pelo pouco espaço disponível.
Quando não, as intermináveis visitas da esposa, muito
zelosa em relação aos compromissos sociais, a voz metáli-
ca que às vezes o fazia tremer nos nervos.
– Deixa pra outro dia, estou muito cansado... Tá certo,
patroa, vamos! Mas, por favor, fale menos!
Ah! como as coisas mudam. Ela, antes tão frágil, tão
melosa, conformada, quem diria que mudasse assim, fi-
casse irritada com as maiores bobagens, se tornasse tão
sem graça, já sem o esguio das formas e o calor negro dos
olhos que o encantavam. Só queria mesmo era poder re-
nascer, com as experiências de vida que tinha, para trilhar
outros caminhos.

653
Decisão

Mas, francamente, há muito que não via uma manhã


luminosa como esta, predizente do verão próximo, já
sensível no calor úmido do vento. Foi sair de casa, gosto
de café quente ainda, e sentir-se jovem, os pássaros da
barbea­ria em frente nervosos, espargindo cantos.
– Espera só teu pai chegar, Carlos!
Estava mesmo frio, a mãe bem que o avisara. E soltara
logo aquele canário do império, do qual o pai era muito
ciumento... É verdade que não tivera tal intenção, o bicho
era manso que só vendo, apenas enfiando os dedos magros
na portinhola aberta, queria que ele viesse pousar. Tomou
um susto, notando que ele fugiu, as asas amareladas fla-
nando no espaço aberto pela janela. Só restava esperar a
concretização das ameaças, sentindo os pelos eretos à lem-
brança das inevitáveis pancadas em seu corpo franzino de
criança raquítica. As mesmas que levava em tempo de au-
las, o boletim delator amassado pelos dedos nervosos:
– Vem cá, malandro, que te ensino já!
Cheiro gostoso, esse que o mar desprende. Fazia muito
que não vinha aqui, já não se lembrava mais da sensação
provocada pela areia branca entre as dobras num dos bra-
ços. O olhar de conforto passeia agora pela massa verde
infinda, pouca gente vadia pelas imediações. Uma ou ou-
tra mocinha esquentando ao sol ou em rápidos mergu-
lhos, cabelos dispersos e fluentes sobre o cristal aquático.
Muito bonito e leve, o ventre da moça recortado pelo azul.
O próprio garoto que persegue a bola colorida, faces ro-
sadas e cheias, é bem interessante. Coitado, não sabe que
futuramente deverá, em vez de mover-se à vontade, per-
manecer várias horas sentado diante de chatíssimos pa-
péis, o cérebro lotado de problemas e, talvez, frustrações.
A essas horas, lá no escritório, o pessoal deve estar nas
ocupações de sempre, os telefonemas completando o des-
conforto, com suas campas irritantes. Uma pena, aquelas da-

654
Sérgio Moacir de Albuquerque

tilógrafas magras, olheirentas, bem que podiam estar aqui,


levando um pouco de sol, passeando seus corpos jovens.
Sente-se como se gazeasse aulas, o mesmo gosto de
aventura, a mesma dorzinha na consciência. Rigoroso
como era, o chefe descontaria a falta, na certa, em seu sa-
lário. Que descontasse, afinal, não perderia muito. Sentia-
se tão satisfeito que, mesmo se diminuíssem o equivalente
a dois dias, não se incomodaria.
Nem as praias, hoje em dia, são poupadas. Só alguns
coqueiros, o resto é tudo cimento armado, essas arapucas
superpostas em vertical. Custara a se adaptar ao aparta-
mento, que tivera quando solteiro toda uma vida de casa
com quintal e fruteiras.
Mas, que jeito, as casas de hoje custam muito, o negócio
era se acomodar o melhor possível, não obstante ter que
ouvir, à força, as brigas dos três vizinhos próximos. E não só
as brigas; também a infalível guitarra desarmônica da mo-
cinha do de cima, repetindo os mesmos trechos, as mesmas
notas, quando sua mulher, por fim, desligava o televisor.
Por isso que ele se sente tão bem, na praia quase de-
serta, soltando lento a areia que recolhe nas mãos, o mar
muito calmo na maré baixa, a mocinha, lá adiante, loura,
queimada de sol, espreguiçando-se sobre a toalha verde-
azul-branca.

655
Tal pai, tal filho
Si Cabral

Para o doutor Augusto, os homens estavam divididos


em duas categorias: os vencedores e os vencidos. Fora edu-
cado assim, na família, no colégio, e na faculdade. O mun-
do era dos vencedores. Os vencidos que se danassem!
Na juventude, fora campeão de natação e do time de
basquete. Sempre incentivado a ser o melhor, o primeiro
lugar. Além de tudo, a natureza lhe fora pródiga, era um
homem bonito. A sorte era uma velha aliada. Fizera um
bom casamento, a noiva era de família rica e tradicional,
a roda da fortuna girava rápido.
Era o poderoso chefe de uma empresa multinacional.
Centralizador, não delegava funções. Decidia tudo. As
reuniões serviam apenas para cobrar resultados e trans-
mitir novas ordens. Na confortável e ampla sala, cercava-
se de uma parafernália de instrumentos que facilitavam
suas ações. Respirava fundo, ali era seu reino. Mandava e
desmandava, absolutamente ninguém para o contradizer.
Na sala ao lado, uma secretária aterrorizada procurava
uma pasta que havia sido solicitada.
Exibir seus bens de consumo, tecnologia de ponta, aos
amigos, era o motivo maior da sua felicidade.
Esse homem forte, que comandava uma multinacional,
que sabia de tudo, sentia-se onipotente. Essa onipotência
conferia-lhe uma arrogância sem limites.
Na mesma empresa, trabalhava o vigilante Zé Silva,
o inverso em tudo do poderoso doutor Augusto. Era um
pobre diabo, sem estudos, seu maior feito fora conseguir
Si Cabral

aquele emprego de vigilante. Morava sozinho, num pe-


queno quarto numa periferia qualquer. A multinacional
era sua família. Talvez fosse esse o único ponto em co-
mum entre o topo e a base. A aposentadoria estava pró-
xima, tinha medo de enfrentar esse momento. Humilde,
tentava agradar a todos, no exercício da sua profissão.
Quando doutor Augusto veio comandar aquela empre-
sa, ele estava no seu posto. Nem sequer o cumprimentou
com um bom-dia, passou direto, como se não o enxergas-
se. Não sabia o que era, mas não gostou daquele homem.
Um pressentimento ruim.
O dia amanheceu cinzento, no início da tarde a chuva
caía com intensidade. O vigilante, Zé Silva, estava sozi-
nho, seu colega não viera trabalhar. Sentiu uma inespera-
da necessidade de ir ao sanitário. Foi o tempo suficiente
de aparecer um belo carro esportivo e estacionar na vaga
do carro do poderoso doutor Augusto.
Zé Silva retorna. Ao ver o carro, empalidece. Dá uma
olhada e não vê ninguém. Fica assustado. Será que o dou-
tor Augusto chegou de carro novo?
Se não foi ele, vai ser o fim do mundo.
Mal acabou de pensar o pensamento virou realidade.
Enfurecido, o doutor Augusto desce do carro, já aos gritos
com Zé Silva.
– Quem estacionou na minha vaga? Onde você estava
seu guardinha incompetente?
Trêmulo, Zé Silva responde:
– Doutor, eu não vi, mas tenha paciência que eu vou
descobrir.
– Como? Num prédio deste tamanho?! Você não tem
competência sequer para assumir um simples cargo nesta
empresa. Deve ser demitido.
– Doutor, eu já trabalho aqui há muito tempo, nin-
guém tem queixa de mim, por favor, me desculpe!
– Eu não suporto incompetentes!

657
Tal pai, tal filho

Antes que o doutor Augusto descarregue sua ira con-


tra o pobre Zé Silva, uma voz o interrompe:
– Oi, velho! Estava na tua sala até agora. Olha só que
carrão o Duda ganhou do pai dele. Eu quero um igualzi-
nho! O meu tem que ser vermelho. Estou dando umas vol-
tinhas com ele só para sentir a máquina! Eu vou arrasar!
Antes que o pai abra a boca, entra no carro, acelera e
grita:
– Não esqueça a cor: vermelho!
Parado, sem tempo de dar uma palavra, o arrogante
doutor Augusto parece uma folha murcha. Os ombros caí­
dos, uma expressão de tristeza na face.
Zé Silva comenta:
– A vaga está vaga, doutor Augusto.
E completa na sua humildade:
– Seu filho é igualzinho ao senhor! Tal pai, tal filho!

658
O voo
Telma de Figueiredo Brilhante

Ele falou: a vida é assim mesmo. Uns vão, outros fi-


cam. Sendo feliz ou não – que felicidade não é pra todo
mundo – o que importa é cantar, cantar os segredos da
vida até a hora do voo.
Simples, não? Disse dona Laura, enxugando as mãos
no avental. Se a vida se resumisse apenas no canto, a cigar-
ra, hoje, estaria feliz. Você precisa trabalhar, isso sim. Ficar
vagabundeando por aí feito carrapeta sem parar em lugar
nenhum, não é coisa que se faça, homem. Tome juízo.
Laura tem razão, Jorge. Como você consegue ficar as-
sim, apático, sem energia? Precisa sair dessa falta de gosto
pelas coisas. Você é tão jovem. Ô, meu pai. Estou bem.
Tudo isso é impressão, é cuidado exagerado de vocês. Não
sou mais criança, parem com isso. É o que você pensa, não
podemos deixar de nos preocupar vendo você desse jeito,
triste, sem ânimo.
Silencioso, Jorge se afastou em direção ao quarto.
Não posso falar do que aconteceu. De besteira em bes-
teira vou gastando a minha vida. Como dizer que estou
sendo ameaçado por causa de Maria Luísa, um namoro
que começou mal? Foi um visgo, um negócio que me pe-
gou... Ah, Maria Luísa... Morena, cabelos longos em ca-
racóis, pele de jambo, olhos amendoados, boca de lábios
cheios, fazendo meu sangue ferver, emergindo de todos
os poros, a pele incendiada, a dor e o gozo. Menina arre-
tada de quente. Cheia de artifícios, de dengos. Que lou-
cura, meu Deus, que loucura.
O voo

Nunca me falou que tivera um caso. E eu, feito bobo,


caí na rede. O homem é ruim, mau elemento. Ontem
quase apanho. Tive que correr. Mas não estou livre. Disse
que só sossegaria quando desse cabo de mim. Não posso
contar aos velhos, é muito forte para o cansaço deles. Não
é justo que lhes leve problemas, não é justo.
Levantou-se de um pulo. O movimento brusco, rápi-
do, provocou-lhe uma leve torção no pé esquerdo. Fez
uma massagem, a dor cedeu. Ainda mais essa, só faltava
isso mesmo para completar, resmungou.
Saiu ligeiro. Ainda escutou quando a mãe disse pra
onde vai? Vem almoçar? Não respondeu.
Caminhava apressado pelas ruas. Vou pegar o primei-
ro transporte que aparecer e cair no mundo. Pra São Pau-
lo, pra China, pra qualquer lugar.
Uma angústia fazia-o aligeirar os passos cada vez mais,
quase corria. Que sentido tem a vida com esta ameaça pai-
rando no ar? É melhor ser um covarde vivo de que um cora-
joso morto. Esse cara não vale nada, quer acabar comigo.
Tão absorto estava em seus pensamentos que não ouviu
a buzina. O carro jogou-o a alguns metros de distância.

660
Daniel
Urariano Mota

Da turma, Daniel era o mais gordo. Ainda que sob pro-


testos, ele crescera pelos lados, elastecendo um círculo de
carnes. Em seu rosto largo destacavam-se sobrancelhas
peludas, que se uniam simetricamente num ponto de in-
flexão, ficando a sobrancelha esquerda e a sobrancelha di-
reita ligadas como asas dum pássaro, movendo-se no espa-
ço da fronte. Essa união desairosa o incomodava. Tivesse
ultrapassado aquele momento crítico em que rapazinhos e
mocinhas se entreolham, pesquisam-se, em que as mudan-
ças no corpo, na face, são mudanças de revelação, Daniel
teria sobrevivido àqueles elos de siamesas. Mas as sobran-
celhas para Daniel não eram propriamente uma revelação,
porque há muito vinham sendo anunciadas. Se pudesse,
naquela quadra de sua vida, ter-lhes-ia dado uma cirurgia.
Uma nova face, de quaisquer outras sobrancelhas, finas,
raras, densas, espessas, não importava, desde que fossem
gêmeas cada qual a seu canto. Ele se sentia, ou melhor, a
turma o fazia sentir-se um rapaz anormal, em razão de
se acompanhar do que achavam anormais enfeites sobre
a testa. E enfeites muito salientes, cerrados, que se apre-
sentavam à sua frente, antes que dissesse “Eu sou Daniel”.
Enfeites incapazes de disfarce. A não ser que se colocasse
permanentemente de perfil.
Em outra pessoa aquelas sobrancelhas viriam a ser um
distintivo de elegância, mas em Daniel... Ele era gordo, car-
regava a fama de ser um quase idiota. Quem é tido como
insignificante já traz em si a sua zombaria. O grupo de alu-
Daniel

nos se tornava coeso, punha-se mais camarada na eleição de


Daniel para o divertimento. Que julgavam tão inocente:
– Daniel, tira essa máscara. Tira essa máscara, Daniel!
E num requinte de inocência, um do grupo virava-se
para as mocinhas:
– Quem quer, quem quer um quilo do cabelo das so-
brancelhas de Daniel?
Ele não se escondia, não descia para um buraco, por-
que era impossível sumir por entre os sinais do seu rosto.
A classe toda numa gargalhada geral estourava.
As meninas, a princípio tímidas, terminaram por ade-
rir a esse tipo de malhação. Porque era malhado, Daniel
transformara-se involuntariamente no contato entre mo-
ças e rapazes, que antes mal se relacionavam. A cada troça
as mocinhas dobravam a risada. Ruborizavam-se. Os ra-
pazes, sentindo a terra fértil, acercavam-se mais estreita-
mente. Um banquete.
Desse banquete Iara não participava. Entre a alegria
ruidosa ela estendia olhos silenciosos para Daniel. Ele
baixava a cabeça. Talvez ela fosse a única pessoa da tur-
ma que o olhava como um todo, inteiro. Ele furtava ain-
da mais o rosto. Isso deixava Iara indignada: por que em
meio a toda aquela zombaria era ele o envergonhado?!
Iara sentia uma indignação muda, apenas sentimento,
de sentimento que fere somente a quem o possui, porque
não encontra meios ou argumentos para se exteriorizar.
Como, com que palavras, com que forças levantar-se e fa-
lar mais alto que a selvageria? Como dizer, “turma, isso
não se faz”? Como argumentar, “não se acanham de zom-
bar de um colega, a quem vocês mesmos transformaram
num coitado? A vergonha que ele sente deveria ser nos-
sa”, como dizer? Para se expressar assim, era preciso que
Iara tivesse mais que catorze anos, e também um cajado,
forte, com poderes de bater e emitir raios de um profeta.

662
Urariano Mota

Impossível. Ainda que tais meios tivesse, ainda assim seria


derrubada. Pois não é próprio do grosseiro se comprazer
na grosseria? A grosseria não suporta qualquer alteamen-
to. Revolta-se, quando importunada.
Em verdade, nessa indignação muda, Iara possuía, ela
mesma, um quê de resguardo à troça.
Seu pai era um louco, um desequilibrado, que vivia a
falar sozinho, a pregar um evangelho raivoso nas ruas,
na praça, a todos e a ninguém. A causa imediata de sua
pregação era sempre uma pequena contrariedade, real
ou imaginária, mas de qualquer forma desenvolvida até
as raias da explosão. Que explodia, deixando um dilema
para as vítimas: ou concordavam com as suas palavras, e
nesse caso atingiam a salvação, ou caso contrário embor-
cariam de cabeça, atingindo as profundas, sem remédio
ou absolvição.
Ele não tinha nome, era o pastor do bairro. E tinha a
mania insuportável de ficar no portão do ginásio, à espe-
ra angustiada da filha. Calvo, de bigodes bastos, metido
sempre num casaco de frio, ainda que o sol infernizasse a
tarde. Vez por outra, ia até a porta da sala. Mergulhava a
cabeça de olhos grados, e perguntava somente a ela, por
cima de toda a turma: “já acabou?”. E voltava ao portão,
em passos miúdos, rápidos. Ah, que não lhe levassem a fi-
lha, sabia da fama do Ginásio, e daqueles meninos: taras,
tarados, demônios. Fincava os pés na vigilância do pátio,
dos muros, das janelas.
Não fosse a suave altivez de Iara, há muito ela teria
caído nas graças da zombaria. Tivesse ao menos um ar
resignado e ter-lhe-iam caído em cima, até arrancar-lhe o
pelo. Ao aparecimento do pai ela erguia o semblante para
o quadro-negro, surda, parecendo a Daniel com a mesma
expressão severa de Joana d’Arc. Risinhos abafados cor-
riam, mas não prosperavam.

663
Daniel

Ela era bela, suavemente bela. Pequenina, morena, de


olhos amendoados. A mulher que seria já estava aos ca-
torze anos organizada. Esta certeza vinha menos do corpo
que da expressão madura do rosto. Que banhava, essa ex-
pressão madura, todo o seu corpo. Ela era aquela menina
que se namorava, que se abraçava fortemente, degustável,
sem pressa, até o fim dos dias.
Daniel comia-a, com os olhos. Desastrado que era, ao
invés de soprar, quebrava o prato pelas beiras.
Como um acréscimo a seu natural, Daniel perdia defi-
nitivamente o senso da realidade, ao sentir pelo faro, pelos
ouvidos, pelo perfume, a presença de Iara. Inchava o pei-
to, girava nos calcanhares de modo a ficar de perfil, como
um Napoleão de hospício, para acintosamente demons-
trar que não a via. Mas aquele moreno hindu o atordoava.
Quando em casa idealizava seus próximos atos, prometia-
se que ela receberia a demonstração do seu afeto. Num
repente virava-se, lá, aqui estava ela, à margem de toda
agitação, quieta. Como um raio lembrava-se da própria
testa, mas era necessário demonstrar-lhe o próprio afeto:
cuspia-lhe um cumprimento, rápido, como uma bala, ar-
remessada por um aceno bruto de queixo: “Oi!”. E torna-
va à posição napoleônica, ouvindo, discutindo não sabia
o quê, porque nada ouvia, nada falava do que lhe vinha à
mente, que era a presença morena, loucamente morena,
daquela pele que um dia sonhava distantemente, perdi-
damente tocar com as mãos.
– Daniel, você está me ouvindo?
O colega, irritado, chegava-se ao pé do seu ouvido,
para baixá-lo do além:
– Você já viu uma boceta? Hem? De cabelo, bem cabe-
luda, você já viu uma boceta?
– Sim, claro... a ruiva não é como a morena.
Estremecia. Ia sentar-se a um canto, isolado. Era neces-
sário agir. Mas o que era o agir? As pernas suavam. Uma

664
Urariano Mota

algidez progressiva ia-lhe tomando os membros. Os pla-


nos de ação rápida, arquitetados lá dentro do cérebro, na-
quele lugar íntimo, no pontinho escuro onde o voo é livre
para todas as coisas ridículas, risíveis, burras, vaidosas, de
superstição, de crime, de vingança, roubo e vontade, en-
fim, naquela célula privatíssima onde o sonho não se en-
vergonha de sonhar, naquele pontinho que imagina, tudo
que ele gerasse era incompatível com a sua pessoa. Ele,
Daniel, sonhava para outro Daniel. O Daniel sonhado não
era para o Daniel materializado. Por que não fazia a corte
como os outros? Nem como os outros, qualquer corte que
fosse algo mais que recolher a cara envergonhada quando
Iara descia até ele os humaníssimos olhos? Haveria algu-
ma estrada, alguma ponte invisível, que ninguém visse, so-
mente eles dois, que o levasse até ela?
Se ele fosse magro, se não mangassem dele, se tivesse
dinheiro no bolso, se tivesse futuro, isto seria uma ponte.
Se ao menos tivesse sobrancelhas de gente. Suas calças não
guardavam vinco. A camisa não lhe descia, verticalmen-
te, por entre as calças. Ela apenas era puxada, repuxada,
naquela barriga. Se ao menos fosse como Gilvan, como
Aciole – eles são olhados, eles podem ter as meninas que
quiserem, num assobio. Elas abanam o rabo, como cade-
las. Eles têm um rosto bonito, de galã de cinema. Como
seria feliz se tivesse o corpo deles... eles têm músculos, são
atletas, pulam obstáculos, mostram-se num porte... Eles
têm peito de homem. Onde está a mulher que não con-
sigam? Por que a miséria não gosta da miséria? Isto fere.
Por que a miséria detesta e pisa a miséria?
Num belo dia, Daniel entrou no Ginásio de sobrancelhas
raspadas. Ou melhor, ele amputou o corpo, o ponto onde
se uniam as duas asas do pássaro. Ou melhor, pensando em
amputar o corpo, inabilmente foi mais longe, amputou tam-
bém pedaços à esquerda e à direita das asas, fez sumir os pe-
daços que a natureza fazia cair rumo a um encontro. Melhor,

665
Daniel

no que sobrou, diminuiu o volume, a espessura dos pelos,


ou das plumas. Melhor, finalmente, tirou plumas abaixo e
acima das articulações, reduzindo-as a finas linhas.
A cirurgia deu nascimento a dois pontos de interroga-
ção deitados, quase a dois acentos circunflexos incomple-
tos, sem acomodação.
O turno da tarde, o Ginásio inteiro se levantou. Daniel
não conseguia sentar-se em uma cadeira. Ficava rodando,
com sua cara gorda de palhaço, por entre a turba excita-
da. “Mulherzinha, mulherzinha”, vinha em gritos agudos,
vaias, risadas, de início uma passarada de praga, depois
uma massa compacta, “Mulherzinha!”. Estrondavam.
Num gesto reflexo, Daniel punha as mãos sobre o rosto,
protegia a cabeça, como um ser em queda, como um sui-
cida em arrependimento tardio que se lançou do alto de
um arranha-céu.
Não se pode dizer que pensava, mas seu arrependi-
mento tardio parecia tão somente dizer, “em que deu,
Daniel, em que deu o teu sonho impossível de se fazer
aceito”. Ao que outra voz respondia, na mesma escuridão,
por entre seu corpo aos soluços, “agora o teu sonho se vai,
Daniel. Antes houvesses feito do que era impossível uma
hemorragia”.
Com solenidade, os professores arrastaram-no para a
secretaria. Uma procissão de meninos seguia-os.
Na secretaria, diante daquele ser cabisbaixo, dona Au-
gusta mandou que ele erguesse o rosto. A medo obedeceu:
tinha o rosto úmido, inchado, com as inscrições esborra-
chadas na testa. A diretora então, em seu natural prosaico,
achou por bem ajeitar-lhe as interrogações deitadas sobre
os olhos, enfeixando-as numa única interrogação:
– Por que você nunca usou um boné, Daniel?
E assinou a sua expulsão.

666
Sanatório
Valdecir Freire Lopes

Roberto despertou com o barulho da campainha no


corredor. Agradável sensação de alegria, embora fingida,
ia tomando conta de todos. Sim, fingida, porque aqueles
que se mostravam contentes procuravam apenas enganar-
se a si próprios, esquecer que lá fora havia vida, movimen-
to, animação, um mundo diferente por eles deixado. Era
sempre assim aos domingos. Pôs o termômetro na boca,
ainda deitado. Trinta e seis graus. Não tinha mesmo “tem-
peratura”, e aquela maçada, todo dia: passar cinco minutos
com o termômetro embaixo da língua. Veio até a varanda.
A seriema passou gritando o seu gritinho de mulher his-
térica. Os urubus voavam baixo, fazendo acrobacias. Pare-
ciam um agouro, aqueles urubus. Viviam aproveitando os
restos de comida jogados perto dos eucaliptos e gostavam
de passear, aos saltos, pelo sítio. Tísicos... Urubus... Afinal,
talvez houvesse alguma ligação entre eles.
Chegou um carro levantando poeira. Eram “colegas”
de outros sanatórios e dos hotéis. Vinham passar o dia com
as namoradas. E Roberto pensou numa frase que era muito
repetida por todos: “Sem amor não se cura tuberculose...”
Só o amor podia mesmo encher o tempo naquela casa
silenciosa. Estava cansado daquilo. Todos os dias a mes-
ma coisa, invariavelmente. Pela manhã já pensava nos jor-
nais que chegariam ao meio-dia e no pôquer que jogaria
à noite. Não tinha sorte no jogo. Lembrava-me, às vezes,
de que perdia, à toa, o que a família mandava mensal-
mente. Mas, afinal, que importava isso? Alguém já havia
Sanatório

dito também que para curar tuberculose é preciso ser um


pouco egoísta. Ele talvez nem voltasse, e o jogo o ajudava
a esquecer. Quantas noites passara jogando, no tempo em
que era “curado”. Já aproveitara bastante a vida; tirara
tudo o que ela podia dar de prazeres. Sentia mais por
alguns dos companheiros mais jovens.
Como estranhara aquele ambiente nos primeiros tem-
pos! Lembrava-se ainda do dia da chegada. Aparecera no
seu quarto um jovem alto e coroado, de avental branco, a
empregar termos científicos. Devia ser o médico-assisten-
te. Falara de pneumotórax, em toracoplastia e em outras
coisas que ele não entendera. Depois, o interrogatório.
As perguntas habituais: – Tosse? Tem expectoração? Há
quanto tempo está doente? – Ele dissera algumas pala-
vras, meio seco:
– Não, tenho pouca coisa. O médico, no Rio, disse que
com três meses estarei bom.
O rapaz aplicara-lhe o ouvido às costas, mandara dizer
33, e depois, batendo-lhe de leve no ombro:
– Você está ruinzinho: só escuto 28...
Saíra do quarto às gargalhadas. De outra vez não cairia
naquela peça.
Quanto mudara naqueles meses! Aprendera até a en-
frentar a morte. Muitos dos que ali entraram no mesmo
tempo que ele, ou mesmo depois, já haviam deixado o sa-
natório pelo portão dos fundos, porque os tísicos morrem
sempre à noite, como que envergonhados de si mesmos,
segundo costumava dizer um companheiro mais antigo.
Sentia pavor, quando ouvia aqueles rumores caracterís-
ticos, altas horas, nos corredores desertos. Talvez fosse a
solidariedade que existia entre todos, aquela vida em fa-
mília, que o fizesse sentir tanto. Fora habituando-se aos
poucos, e já não estranhava quando as “quarteiras” tira-
vam furtivamente um colchão para ser queimado.

668
Valdecir Freire Lopes

Ria agora, olhando para a campainha pendurada na


parede e recordando o susto que levara, certa vez, quando
viera para o quarto ao lado do seu um rapaz do interior
de Minas. A tosse cavernosa denunciava quanto a doença
ia adiantada.
Acordara assustado; a campainha do quarto ao lado
tocava sem parar. Saltou da cama, ouvindo os passinhos
miúdos das irmãs. Pensou em sangue. Timidamente, abriu
a porta do quarto e olhou. Tote Casaca, seu vizinho, cer-
tamente não notara o armário que havia no quarto e pen-
durara a sua roupa no cordão da campainha de alarme...
Tudo isso ia longe. Perde-se aos poucos o medo da doen­
ça e começa-se a construir uma vida nova. Ele, um boê­mio,
contentava-se agora com umas farrinhas semanais. Tinha
que pular o portão, à entrada, e pisar com cuidado para
não ser visto pelas irmãs. Entrara para a Congregação Ma-
riana a fim de satisfazê-las; devia ter outras regalias...

As moças e os rapazes passeavam pelo jardim, aos gru-


pos. Olhou o relógio. A missa terminara e ele lá não fora.
Não fazia mal; arranjaria uma desculpa qualquer, quando
a madre viesse perguntar por que faltara.
No rádio, começaram a tocar um samba. Deitou o olhar
sobre o terno surrado, em cima da cadeira, e pensou em
dinheiro. O carnaval estava perto. Precisava arranjar um
“tratamento de dentes”, uma “planigrafia”, qualquer coi-
sa que fizesse aumentar a mesada.
Era preciso ir fazendo uns testes. Brincaria no domin-
go e na terça. O médico não precisava saber; seu estado
era bom e o divertimento uma necessidade. As irmãs sem-
pre diziam: “Os tuberculosos são os preferidos de Deus. É
preciso cuidar da alma”.

669
Sanatório

Viam-se ainda restos de serpentinas pelos corredores


e na frente do sanatório. Aquele prédio enorme parecia
mesmo uma sede de clube na quarta-feira de cinzas. Al-
guns doentes mais animados haviam enfeitado tudo, pro-
curando modificar, ao menos nestes três dias, o ambiente
onde só se falava em doença.
O carnaval traz sempre uma nova leva de tísicos, em
troca dos que se vão para sempre. Como acontecia naque-
la época do ano, os gaúchos começavam a chegar. Roberto
estava agora em repouso de voz, com a garganta afetada.
Mais aquela maçada, quando tudo parecia resolvido. Ago-
ra, o pulmão tomado, atacado da laringe, e o que era pior,
sem poder falar. Tudo por dois dias apenas de prazer e
uma garrafa de Old Parr. Quase não compensava, mas,
afinal, que adiantaria ficar adiando o inevitável? Tinha
que terminar assim, e os médicos, apesar do esforço, pre-
cisavam arranjar uma desculpa. Podiam ficar descansa-
dos. Ele é que não tinha vocação para tísico...

Quando o caixão descia, devagar, e o choro abafado da


família se confundia com o barulho das correntes, vinha
de um rádio, ao lado do cemitério, um samba do último
carnaval.

670
Ângelus
Valdi Coutinho

Bastava anoitecer para uma avalanche de sentimentos


invadir-lhe a mente. Era a hora preferida para ouvir mú-
sicas, quando não estava dormindo. Canções de passadis-
mo. Sim, porque a sonolência também gostava de chegar
neste mesmo entardecer, quando o dia começava a ir em-
bora, dando espaço para que as sombras da noite fossem
surgindo, vagarosas, melancólicas, envolventes.
Mais tarde, quando a noite fazia-se plena, à espera da
madrugada, perdia o sono para sonhar de olhos abertos na
negritude noturna. Da janela, olhava o turbilhão de luzes.
A paisagem era festa. Cada luz acesa era uma perspectiva
para o desejo insatisfeito. Quando a noite descer, bem sor-
rateira, quero ouvir histórias da madrugada ressuscitando
fantasia corriqueira provocando a libido desacordada.
“Ei, Teo, quer que eu lhe conte uma história nova?” O
negro perguntava por cima do muro do quintal, onde o
garoto de apenas dez anos de idade treinava com um cabo
de vassoura para ser equilibrista de circo. Quando meni-
no, sentia-se fascinado por aquelas cantoras já envelheci-
das, de vestido de veludo preto, com bordados de lante-
joulas contrastando com a lona de cor indefinida. Eram
cantoras dramáticas, com repertórios apaixonados: “Foi
pensando em você, que eu escrevi esta triste canção...”.
Quando o circo chegava, corria logo para ver a mon-
tagem da grandiosa tenda. Ficava atraído por aqueles ho-
mens fortes que fincavam as linhas de madeira para segurar
as lonas. Gostava de ver seus músculos retesados no árduo
Ângelus

fincar das estacas. O suor transbordando em sua pele negra


como se fosse óleo, dando um brilho fascinante no tronco.
Alguns pareciam com Zé Camisa Preta, o vizinho que co-
nhecia lendas que contava enquanto lhe acariciava no colo.
Gostava do colo dele, quente, latejante, buliçoso...
Ficava curioso com todo o rito carinhoso do rude con-
tador de histórias de Trancoso. As fantasias das histórias
e o movimento latejante do corpo dele. Sentia desejo de
ir embora com o pessoal do circo no final da temporada.
Mas não queria separar-se de Zé.
Todos saíam, de tardezinha, para a missa vespertina
da paróquia. Tanto a mãe como o irmão dele, que era
seminarista. A matriarca da casa vizinha também ia, com
as mulheres da família. Teo, não. Insistia em ficar no
quintal, treinando malabarismos. Pensava em ficar pronto
para seguir com o pessoal do próximo circo que chegasse
na localidade.
O corpo de Zé Camisa Preta estava sempre sujo de
óleo combustível. O cheiro dele era uma mistura de die-
sel com gasolina. Teo acostumou-se a gostar daquele per-
fume. Antes que as duas famílias retornassem da igreja,
fazia parte da cerimônia dar banho naquele corpão sujo
de tanto consertar carros na oficina. Primeiro tirava as
manchas de óleo com uma bucha ensopada com gasolina
para depois percorrer todas as partes do seu corpo, até
as mais íntimas e profundas, com um sabonete cheiroso e
escorregadio. Depois, ainda cheirava todas as partes para
comprovar se estavam limpas, com cheiro de sabonete.
Fazia parte do rito. Era estranha a cena reincidente no seu
pensamento, qual um filme que a gente vê muitas vezes.
Vários anos depois, quando passava pelo Mercado de
São José, vestido de executivo de um escritório, no final
da tarde, sentiu o mesmo cheiro vindo de um homem mu-
lato, que tomava cachaça num dos botecos em frente à

672
Valdi Coutinho

Igreja da Penha. Sem o mínimo pudor, o jovem Teo pediu


uma dose. Ficou perto dele e fez o convite:
“Você deixaria que eu lhe desse um banho?”
O sorriso meio cínico que acompanhou a indecisão do
desconhecido, já era uma quase certeza de toda possibili-
dade. Pouco depois, passou numa lojinha, comprou uma
toalha e um sabonete e foi para a pensão mais próxima,
onde lavou o corpo do desconhecido repetindo o mesmo
ritual da infância.
Não sabia por que lembrava do Zé Camisa Preta. Mais
tarde, alguém falou que a tesão era provocada pelo cheiro.
Era assim quando a cadela no cio passava distante não sei
quantos metros de um cão, deixando-o logo inquieto. O de-
sejo e a paixão vinham do cheiro, era uma coisa de cheiro.
Até hoje ainda concordava com esse fundamento.
Quando o irmãozinho mais velho contou que tinha uma
coleguinha de escola esperando um menino, quis saber
como era feita aquela barriga que ia crescendo. Ficou sa-
bendo, então, que tudo acontecia quando um homem co-
locava o negócio dele dentro da mulher. Apavorado, sol-
tou sem querer um brado de espanto:
“Zé colocou o negócio dele aqui dentro, quando eu es-
tava dando banho nele, será que minha barriga vai crescer
também?!”, exclamou, sem sentir a gravidade da dúvida.
O irmão ameaçou contar tudo a família, tirar aquela
história em pratos limpos.
Três dias depois soube que Zé Camisa Preta sumira da ci-
dade. Desaparecera. Quis saber o motivo. “Ele fez um roubo
na oficina, descobriram, e para não ser preso, ele fugiu!”
O irmão fechou a cara e mudou de assunto.
Teo percebeu que iria sentir falta do seu contador de
histórias. Cláudio ainda lhe chamou para dar banho nele.
Mas já não ficou mais sozinho em casa desde aquele dia
em que soubera que o irmão dele, Zé Camisa Preta, havia

673
Ângelus

fugido da pequena cidade. Mesmo que isso fosse possível,


jamais lavaria Cláudio, pois gostava mesmo era de dar
banho no outro.
Todas as vezes que o sino toca na hora do Ângelus, em
qualquer parte do mundo, que a noite vem escurecendo
o dia, com o horizonte sendo envolvido por nuvens cin-
zentas, seja lá onde o doutor Teodoro esteja, sente um
cheiro de óleo diesel misturado com gasolina. Lembra de
Zé Camisa Preta. Acha que todos os seus amores, todas as
suas paixões, todos os seus orgasmos, no fundo, vinham
do desejo de novamente dar aquele banho inesquecível
no vizinho. Era vontade de reencontrar o anjo da limpeza
que carregava dentro do seu peito para percorrer o corpo
suado do trabalho do mulato grosseiro, mais tão dócil e
fascinante contador de histórias. Tão terno e fino nas ce-
rimônias de iniciação do garoto Teo.
E ainda diziam que a pessoa escolhe a sua preferência
sexual. Mentira. Ele sabe que é mentira. Ele fora, ainda
criança, escolhido para usufruir de uma forma de prazer
que se tornou preferida. A única que sempre lhe propor-
cionava emoção a tal ponto que, se lhe fosse dado o direi-
to, repetiria tudo de novo.
Todas as vezes que faz sexo, sente-se um anjo, solene
e sensual. Um anjo de limpeza. Uma criança buliçosa e
libidinosa. Seja qual for a hora, meio-dia, de madrugada,
de noite, pela manhã, para ele, é sempre como se fosse
assim, na hora do Ângelus, dando banho em Zé Camisa
Preta, enquanto as famílias rezavam na missa vespertina
daquela cidadezinha do interior. A missa dele era o banho
no corpo cansado e sensual de um mecânico de oficina. Já
celebrou não sei quantas missas, mas a de Zé Camisa Preta
ainda continuava sendo a melhor, a mais solene, a mais
pura, cheia de mistérios gloriosos e gozosos.

674
O bem
Vanja Carneiro Campos

A chegada do verão me alegrava, ainda que a nature-


za se apresentasse tão resumidamente na janela daquele
quarto. O chão de terra batida, expondo as longas raízes
da mangueira infértil, era a única visão que os olhos con-
seguiam alcançar. Aprendi a gostar dessa paisagem sem
abundância e da arrastada claridade retida nos bancos de
cimento do pátio interno. Tudo seria para o meu próprio
bem, dizia a minha mãe, e toda a sua convicção me dei-
xava confiante no presente e no futuro. A voz do doutor
Benício lembrava a dela e ambas se pareciam com a do
doutor Pangloss de Voltaire.
As causas e os efeitos. Origens, decorrências e con-
sequências. Passei também a acreditar que as coisas são
como devem ser, são necessariamente feitas para os me-
lhores resultados. Talvez já tenha se passado um ano, não
sei precisar bem, pois a minha contagem sempre foi pre-
cária, sempre para menos. Menos um, menos dois, menos
aquilo, menos isso, menos um mês, menos uma semana,
menos uma noite.
Precisava urgentemente falar com Léo. Não havia dei-
xado o meu novo endereço, nem o telefone, nem o CEP. Na
minha última carta, sim, carta, o que é que tem? Aqui não
existe computador. Sei o quanto ele deve ter adorado rece-
bê-la pelos Correios. Disse-lhe da minha imensa saudade,
contudo, penso que sentiu ciúmes de Vicente. Por isso, con-
siderei que passaria um longo período em silêncio. Mesmo
quando Léo falava, não conseguia ouvi-lo, como se o seu
O bem

pensamento e as suas considerações, sempre tão caras a


mim, não tivessem som. Passei a interpretar os seus gestos,
a sua maneira de envolver o guardanapo no copo, quando
tomava uísque; a toalha enroscada na cintura, quando saía
do banho; o celular sempre no ouvido, quando o levava até
a porta do apartamento; e a distância com que estacionava
o seu carro, quase uma esquina antes, habitualmente em
frente a uma clínica ortopédica.
A proteção era para o meu bem, mesmo que aquela
prudência, aquele cuidado tão absoluto com as suas pró-
prias circunstâncias me deixassem insegura quanto ao seu
sentimento. Espantava-me a capacidade dele de pensar
em tudo, implacavelmente, sob todos os ângulos e dire-
ções. Nem a chuva, nem o breve tempo de que dispúnha-
mos, nem as tormentas do corpo amorteciam sua guarda.
A aguda vigilância soava como um adágio executado nas
cordas de uma guitarra.
Léo gostava de vaticinar: o que tiver de ser, será. Não
entendia o será, nem o tiver de ser. Será, para mim, se pa-
recia com o nunca, o imenso descampado território do
nunca, e o tiver de ser lembrava as aulas da irmã Teresa
sobre os desígnios de Deus. Acreditava nos bons propósitos
da madre e nos de Léo: o cuidado de não magoar pessoas
queridas deve guiar sempre os caminhos dos bons. Sendo
assim, passava tanto tempo longe de mim, “fora da área
de cobertura”, daí não atendia as minhas tímidas ligações.
Quando aparecia, era sempre reservado, alheio a tudo que
tivesse acontecido comigo durante os longos intervalos de
convivência. Talvez fosse o seu jeito de amar. Quem sabe o
amor provocasse nele um certo cansaço. Léo parecia não
gostar de tomar providências outras, além daquelas que di-
ziam respeito ao desfazimento de suas pistas. A cada novo
encontro, tornava-se necessária uma pausa, que durava o
tempo bastante, suficiente ao esquecimento do último ato.

676
Vanja Carneiro Campos

Passei a entender que toda a sua ação, seguramente,


seria para o meu próprio bem e os reflexos do bem só
se me apresentariam mais adiante, num final qualquer,
numa estação de trem. Entrei então nesse primeiro vagão
sem resistência alguma. No que depender de mim, a che-
gada do bem poderia ser antecipada.
O cheiro de café se espraiava nos corredores e pene-
trava nos quartos com a força de um novo dia. Logo todos
estariam no refeitório. As ocorrências da longa jornada
da noite seriam confidenciadas em assembleia, antes de a
manhã se estabelecer inteiramente, quando o sol deitasse
a sua estreita faixa luminosa nas tábuas corridas daquele
pavilhão. O quarto de Vicente fora escolhido a nossa sede.
Seria preciso contar tudo, não omitir nada, pois a partir
daí, do relato sincero das nossas verdades, combinaríamos
as nossas mentiras, e o roteiro do dia estaria planejado
sob a orientação do nosso mestre. A fiel representação das
mentiras asseguraria ao grupo, e a cada um, a sobrevi-
vência imediata. Tudo teria de ser avaliado e decidido em
apenas uma hora.
Quando o doutor Benício chegava, do alto da sua bata
branca e dos óculos pela metade, Vicente nos olhava com
um ar de vitória, que nos tranquilizava, significava que o
dia transcorreria sem imprevistos e o seu comando, mais
uma vez, apontava o caminho da nossa salvação.
Todos estavam espalhados no chão, numa espécie de
círculo, quando Cecília bate à porta, com aquele seu jeito
insone e incansável de chamar atenção. Senta-se, estrei-
tando-se, entre nós. O que ela mais queria era a oportuni-
dade de roçar o braço dela no de Vicente. Ele, no entan-
to, permanecia intocável, protegido pela barba densa que
encobria a boca e atenuava as covas profundas do seu ros-
to pálido e também pelos cabelos que desciam em ondas,
ultrapassando os ombros marcados em molde de cabide.

677
O bem

Os dedos longos e magros, amarelados pelo fumo, sus-


tentavam as pernas dobradas. Costumava ficar de cócoras
horas e horas. Os ossos do corpo se habituaram desde
cedo a resistir à exposição permanente das agruras, aos
desconfortos da fome, às grandes distâncias, ao sol incle-
mente do Sertão, onde, segundo ele, tudo é infinito.
Como havia chegado muito antes da hora, comecei a
descrever a minha noite. Não gostava de falar primeiro e o
olhar inteligente de Cecília me inibia. Dava-me a impressão
de querer sempre retocar ou mudar completamente as mi-
nhas palavras, como se tudo tivesse de ser incessantemente
inteligente e original, caso contrário o seu ar de cansaço e
os seus suspiros eram expelidos sem condescendência.
Quando estava tomando banho, às 19 horas, pensei
quantas vezes o sabonete branco havia feito o mesmo per-
curso e quantas vezes mais faria daquela maneira, a come-
çar do pescoço. Cada gesto repetia o anterior e o anterior
até o início da existência. Como entrar no apartamento e
distribuir as almofadas em cima do sofá, observando o ali-
nhamento, quadrado sobre quadrado, traço sobre traço,
essa providência precedia qualquer outra, fazia parte do
dia e de todas as noites. Depois largava a bolsa e estirava
as pernas na mesa de centro, e o olhar se perdia tutelado.
O silêncio parecido com o nada, um nada mais silencio-
so que o silêncio, atravessando a pele branca, como um
prêmio ou um açoite. Enquanto permanecia assim inerte,
incorpórea, confortava-me saber que muitos não dormem
e tudo poderia acontecer a toda hora da madrugada, a
cada segundo, a cada minuto, ali e no mundo inteiro, e
todos insones haveriam de me convocar ou pelo menos
estabelecer uma comunicação. Por essa razão mantinha
tudo ligado, tudo em vigília.
Para Léo, demonstrava estar em constante movimen-
to, como os carros que passavam naquela avenida, como

678
Vanja Carneiro Campos

todas as luzes dos edifícios, das pontes e viadutos, como o


néon dos letreiros. Esforçava-me por reproduzir a sono-
rização dos transeuntes, sendo eu mesma um deles, tão
disposta às intempéries, íntima da imprevisibilidade e tão
correspondente ao transitório. Léo precisava ter certeza
do meu interesse diversificado e nômade, do meu alhea-
mento, da minha desconcentração em sua figura. Parecia-
me pedir, veladamente, esse urgente desapego.
Ouvi um leve toque na porta do quarto. Quase como
quem se enganou de endereço ou se arrependeu intempes-
tivamente do gesto. Abri do jeito que estava, abrigada num
roupão branco, com os cabelos molhados e os pés descal-
ços. A cama permanecia forrada, os sapatos emparelhados,
os poucos livros perfilados na única prateleira, dividindo o
espaço com um som portátil e poucos CDs. Na cabeceira da
cama, sobressaía da moldura a Primeira Elegia de Duíno:
“Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouvi-
ria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente
em seu coração, aniquilar-me-ia sua existência demasiado
forte. Pois que é o belo senão o grau do Terrível que ainda
suportamos e que admiramos porque, impassível, desde-
nha destruir-nos? Todo Anjo é terrível...”.
Vicente entrou reverentemente, como quem pisa em
chão sagrado. Leu o poema de Rilke em voz alta e o ven-
do assim, humildemente, julguei ser dele a autoria. Não
havia terminado a carta. Pela primeira vez senti que tudo
podia esperar, ficar para depois, e a minha decisão na-
quele momento atendia aos módicos preceitos de Léo.
Aguardava Vicente com uma espera diferente. Espera se-
gura, morna, aquecida de certezas. Talvez, por não amá-
lo. Seria o conforto do meu desamor, de tudo poder sen-
tir sem dor. Notei uma certa preocupação no seu rosto,
maior do que de costume, depois de deter o olhar nos
seis copinhos de plástico transparente, fechando a circun-

679
O bem

ferência da bandeja em cima da mesa. Mas logo voltou-se


para mim. Olhando-me devagar, como a redesenhar com
o tato os traços do meu rosto. Como se a memória do
tato fosse mais fiel e permanente e como se as suas mãos
calejadas ainda pudessem interromper a engrenagem da
partida. Encostei a cabeça no seu peito e dormi. Esta foi a
minha última vontade. O que vocês ouvem agora é a voz
de Vicente, lendo-me em voz alta.

680
Separação por assassinato
Verônica Nery

Espero a compreensão dos que me ouvem, que não me


interpretem como uma precipitada, impetuosa, fria e vul-
gar assassina por tê-lo literalmente destruído. Agi dessa
forma, três dias atrás, sem arrependimentos. Vou contar
do meu jeito. Depois me julguem.
Mesmo quando um companheiro nos infelicita, é co-
mum a saudade, ao partir de junto da gente aquele com
quem se viveu tantos e tantos anos.
Eu, não. Não a tenho.
Nem saudade, nem pena. Nem guardarei lembranças.
Tanto tempo, falso, austero, ignóbil, por vezes, tornava-
se um traidor, chegando a me causar constrangimentos, ao
permanecer escondido. Quando eu confidenciava, a uns
muito poucos e seletos íntimos, sua existência, sempre me
reprovavam por deixá-lo permanecer a meu lado, a me
causar todo aquele sofrimento. Ou isso, ou não acredita-
vam em mim quando lhes falava dele, julgavam-no fanta-
sia em minha solidão, invencionice para dizer que tinha
alguém muito ligado a mim e possessivo. Ele tornava, aos
outros, assim, a minha desmesurada dor inacreditável.
Procurava acobertar-se da visão dos meus amigos. Era
arguto, muito inteligente. Modesto, permanecia fora da
vista de todos, deixando-me brilhar... Ele passava meses
ausente, ignorando-me, no entanto, era muitíssimo ciu-
mento, invejoso, mais do que isto: vingativo. Nos perío­dos
mais críticos, acompanhava-me aonde eu ia. Acho que era
a sua forma de gostar de mim... Esperava-me à porta, não
Separação por assassinato

se deixava ser visto, eu fosse aonde fosse. Quase sempre


calado, frio, às vezes até grosseiro, era um casca-grossa.
Fiz de tudo para ignorá-lo, por isso. E consegui. No mais
das vezes, permanecia quieto, em seu lugar. Quando ficá-
vamos a sós, entretanto, não continha a sua fúria: agredia-
me. Suportei-o vinte e sete anos. Eterno ir e vir... Uma
existência!
Eu sabia que podia, com coragem, “despachá-lo”, mas,
caso fracassasse na tentativa, temia uma reação... Até de
mim mesma... Tanto nossos corpos estavam viciados um
no outro!
Era um companheiro – rude, bronco, mudo ou gritador
– permanecia a meu lado. Era a típica solidão a dois. Ele, em
minha vida, era algo assim: meio como se a manifestação de
sua permanência, de tempos em tempos, me fosse indispen-
sável. Mórbida, mas ali. Como se fosse um elemento surpre-
sa, sua companhia se evidenciava a mim somente. Dorida,
marcante – nos mais inesperados momentos.
Nossa última discussão, intensa e duradoura, aconte-
cera havia oito dias. Persistiu horas no seu achaque, re-
pleto de espinhosas agressões, indiferente ao meu choro
– quando eu não mais resistia a tanto sadismo. Passei a
noite inteira sem dormir.
Como as nossas brigas e suas agressões se tornavam
mais e mais escassas, deixei pra lá... Um dia pensei em
procurar uma psicóloga que me ajudasse a ter força de
me libertar. Tinha vergonha até de falar da sua existência,
do meu resistir de implodir aquela relação doentia. Quase
trinta anos de sujeição me enraiveciam.
Fora por demais tolerante com aquele ignóbil. Fomos
nos acostumando nesta caminhada, nesta convivência es-
púria, por pura conveniência e conivência minha. Medo
que eu tinha de, se mexesse com ele, se tentasse ao menos
me ver livre dele em minha vida, me tornar insuficiente.

682
Verônica Nery

Nunca pensei que encontraria coragem. Minha tolerân­


cia chegou a zero. Vingança – era este o meu nome, a par-
tir daquela noite. Assim planejei a sua morte.
Nem queria saber, dessa vez, das consequências. Re-
solvi exterminá-lo, destruí-lo. Iria expulsá-lo da minha
vida aos pedaços.
Antes, planejei com uma profissional paga, de toda
confiança. Fotografei-o mostrei-lhe sem pudores, falei da-
quela relação espúria, tanto tempo escondida. Fiz assim
discreta e febrilmente. Desta vez, eu disse ao “falso” – fa-
ria questão de apresentá-lo, pouco me importando com
o constrangimento de suas presenças e ausências. Ficou
ufano. A proclamação final da sua existência ao mundo.
Ignóbil, adorou exibir enfim a nossa intimidade. Na ca-
lada da noite, combinara, por telefone, um encontro à
traição que o levaria à morte.
Há quatro dias implementei o meu plano. Tomei um
banho relaxante – precisaria parecer-lhe calma, vesti-me
como eu vestiria uma boneca de estimação, nos meus
tempos de menina. Perfumei-me, com um perfume fran-
cês. (Também tive meus momentos de sadismo cínico,
na revanche...) Convidei-o para aquele passeio, onde ia
encontrar a cúmplice (uma antiga colega – disfarcei...).
Como ele fazia sempre, ao julgar-se seguro, caminhou a
meu lado: falsamente modesto, mas libertino. Sei que se
faria ignorar bancando o puro, o bom, incapaz de qual-
quer maldade (cínico!).
Tomei um táxi e levei-o até o local de trabalho dela.
Que o conhecia apenas através de foto.
Feitas as apresentações, conversa-se um pouco. Con-
fesso, tive de agir com despudor, conforme o combinado!
Ele não entendeu quando o fiz deitar-se do lado esquerdo
do meu corpo sob a vista da amiga (agora, nossa – assim
a fiz passar...). Pareceu-lhe a glória. (Tarado!) O assumi-lo

683
Separação por assassinato

da minha parte, a ele, era um espetáculo no apogeu do


seu sadismo aceito e vivenciado a três...
Não imaginava o que pretendíamos, em termos de as-
sassinato sob torturas vagarosas e indescritíveis. Sei lá o que
o execrável pensou de nós! Exigi que, além da cumplicida-
de da parceira (a esta altura irreconhecível, com o uso de
uma máscara e enluvada para evitar as impressões), fôsse-
mos atrozes para com ele no seu momento derradeiro.
Ele, do meu lado, de início não entendeu, até que co-
meçou a espanejar-se violentamente, em ondas rítmicas.
Eu, olhos fechados, estremecia a cada metralhada que ele
levava. Ela era mesmo excelente profissional, conseguiu
não me atingir. Explodiu em mil o inimigo cruel. Pude
livrar-me dele, aos poucos, indiferente, já sem dor. (Inte-
riormente, confesso, fiquei ferida, sangrei, após deixá-lo
inerte, ainda morando, em pedaços, do lado esquerdo do
meu corpo.)
Acordei, como quem acorda de um longo pesadelo,
após a litotripsia. O raio laser fragmentara-o todo.
Era uma vez um cálculo renal.

684
Vida simples
(Ou trágico prélio de irmãos)
Vital Corrêa de Araújo

Hermeticamente profundos.
Os fossos da depressão são escuros, largos, circulares e
atentos. Estreitas só as portas do céu da normalidade.
Se ao menos eu fosse escritor, poderia curar-me por
alguns dias, aqueles em que mergulhasse no interior cau-
daloso do processo criador:
Enterrado nos unguentos vivos da palavra, libertaria
o mal que me alucina os dias, evitaria, sei-o, as suas gar-
ras antigas e precisas, aduncas como as de um lobo que
voasse.
A escritura, se não queria ordenar o mundo, quisesse,
talvez, esclarecer seus ângulos mais mundanos ou petu-
lantes.
A energia mental desprendida na escrita nasce do
dínamo da autoestima, de cujo bloqueio ou pane vive a
depressão. Assim, por omissão, nutre-se o pânico que se
move em minhas veias e assoma ao rosto.
Agora, imobilizado, na pasmosa rede de intrigas men-
tais, no pântano que me enloda o olho, na movediça som-
bra que me faz emergir, permaneço.
Sei – quem sabe?, que a ruína do meu ser progride,
lenta e avassaladoramente; a atenção voa como um papel
sujo ao vento árido do meio-dia; a percepção se inibe, os
focos das coisas multiplicam-se caoticamente.
Anuvia-se o ímpeto, ou cala-se.
E, para usar uma imagem cara a Styron, falham as co-
nexões da vida como em uma velha central telefônica.
Vida simples

Na memória, dorme a loucura, que sempre acorda.


A insânia, sempre próxima, me olha, com seus olhos
longos e vagos. Interroga. Puxa conversa. Tergiversa.
A loucura não é praticável. Nem confiável.
A autoconsciência do escritor ou intelectual, de modo
geral, gera fantasma, pressiona com os cadáveres das coi-
sas, com a lucidez extrema (que margeia o delírio), e im-
pele ao paroxismo ou à descrença, quanto mais a de um
mero empregado do setor de contabilidade de uma pe-
quena empresa do interior?
Às drogas antidepressivas, que a fisiologia do cérebro
exigia, pois a química cerebral dos deprimidos é caóti-
ca, acrescentam-se outras, as que se proclamam “ilegais”,
como se fossem menos compulsivas ou estruturalmente
diferentes em seus efeitos legítimos.
Acho que para a ressurreição dos neurotransmissores
tanto faz quanto tanto fez.
Vi na “visível escuridão” de mim que as hostes cerradas
da loucura estavam se aproximando, sorrateiras e preci-
sas, e eu, como aos bárbaros de Alexandria, as esperava,
fatalisticamente, na sala de jantar do demônio, enviuvado
do coração.
Afastava-as, só e paradoxalmente, o insumo das veias,
com as taças de vinho e doses caquéticas, nunca amáveis.
Mas, o desejo, maior do que a realidade, a feroz sin-
ceridade do desejo, a loucura erótica, tudo isso me acal-
mava o espírito (domado) e me sacudia o corpo inerme
(subvivo).
O claro objeto do desejo era minha irmã mais velha,
seis anos, dias que a evolução primou em sentar-lhe suces-
sivas camadas extremas de beleza (externa), primor, pepi-
ta, acepipe, atraindo mais olhares do que a lua cheia.
Era o tormento açucarado e ingente de amá-la, com
volúpia selvagem, que me isolava de mim mesmo, me

686
Vital Corrêa de Araújo

abrigava no medo, no abraço da depressão; dele me des-


vencilhava com sonhos (acordados ou não), em que mi-
nha irmã nua me cavalgava. E as poluções noturnas man-
chavam de tal forma disformes o lençol, que a lavadeira
reclamava, com autêntico nojo, das porcarias odorantes
e macias, dos unguentos nauseabundos e de aroma forte
(classificação dela, que eu desprezava).
Quando ela me correspondeu, e nossos corpos irma-
naram-se, comunhão de carne, alma e nome, a terrível
realidade, menos forte do que o desejo, me destruiu (o
que restava). Os últimos bastiões da certeza caíram, me
abandonaram as forças que me mantinham coeso, ruíram
princípios e alicerces, e o ritual das drogas cresceu, em
qualidade, frequência, na urgência do desespero.
O destino invertido que eu vivia apontava a uma única
certeza: o desencontro, a deterioração, a morte.
Liberdade é morte. Dependência ou morte!
Hoje vou suicidar-me, tenho dito!
Vou dar um fim a mim mesmo, a essa corrente sanguí-
nea de sofrimento sem fim, dar um basta a esse rosário de
dor, íntima, ávida, interior.
Ouvirei o cântico cego do não-ser.
Cães fortes forçarão a porta, e eu me entregarei à li-
berdade. Chau!

P.S.: Só sinto que não possa descrever, deixar escrito, para os outros,
meu pobre drama.

N.E. Três meses e doze dias depois do suicídio de Alfeu, sua irmã
mais velha, Ofélia, suicidou-se.

687
Excluídos
William Ferrer

Maria das Dores morava no engenho Tabocas, nas cer-


canias da Mata Sul. Tinha onze filhos – cinco mulheres
e seis homens – todos de menor idade, trabalhando na
palha da cana.
Acordavam às quatro e meia da manhã, tomavam uma
infusão de capim-santo, cidreira e hortelã e partiam para
o eito com a barriga encostada na espinha dorsal.
Das Dores lavava roupa das famílias dos funcionários gra-
duados da usina, que distava dois quilômetros de sua casa.
Contribuía assim para amenizar a pobreza em que viviam.
Vezes sem conta, passando ferro nas peças lavadas, borri-
fava com as lágrimas os uniformes escolares das crianças,
sentindo no fundo do coração a amargura de não encontrar
maneira de encaminhar os filhos a uma escola – doía, sim!
Seu grande sonho era ver as crianças lendo e escrevendo –
aptos para melhores conquistas. Certo dia foi ao barracão
e encontrou suas velhas conhecidas: uma Carta de ABC e
uma Tabuada. Pensou em comprar aquele achado, pois sa-
tisfaria em parte o desejo de ver os meninos aprendendo
alguma coisa. Comprou sacrificando algum mantimento.
Lembrou-se da frase sempre repetida do vigário, padre To-
lentino: “Feijão, farinha, rapadura ou carne alimentam o
corpo; os livros alimentam o espírito”. Não haveria pecado,
estava dando aos filhos uma outra alimentação.
Aos domingos pela manhã, Das Dores reunia no terrei-
ro da casa os alunos e vamos decorar o abecedário: b com
a, ba; b com e, be, assim por diante. Ensinava a tabuada
William Ferrer

valendo-se de um artifício. “Tenho duas mangas em uma


mão e na outra mais uma. Quantas mangas eu tenho?”. A
meninada respondia: “Três”. A caçula perguntava: “Onde
estão as mangas, mãe? Quero chupar uma”.
Apesar do sacrifício das horas de lazer, as crianças gos-
tavam daquela quase brincadeira; as lições duraram mais
ou menos uma hora. Desse modo, Das Dores realizou, em
parte, o seu sonho.
Nesses momentos, ela lembrava seu tempo de moci-
nha, até completar 18 anos, em seu interior. As escolas
abriam seis meses antes das eleições para alimentar a vai-
dade dos políticos. Enfim, alfabetizar significava mais vo-
tos. Realizado o pleito, as escolas eram fechadas. Já não
tinham utilidade.
Era uma vida dura. O casal curtido no sol e no sereno
aguentava, sem tugir nem mugir, a refrega do dia a dia.
Tinham fé em São Francisco: um dia as suas vidas muda-
riam de rumo.
Os meninos e o marido retornavam do eito pelas qua-
tro da tarde, esfomeados, esperando que na trempe de
pedra estivesse descansando uma panela com alguma
coisa para amainar aquela dor na barriga. Sempre havia,
sim. Das Dores passava pelo barracão, apanhava um naco
de carne ou peixe salgado para misturar com a batata,
jerimum ou macaxeira que uma família de bom coração
lhe dava.
A mulher rezava todos os dias, suplicando aos santos
que iluminassem seu caminho e a tirassem daquele deses-
pero – tinha vontade de dizer “inferno”, mas receava zan-
gar os milagreiros. Certo dia, em casa de um funcionário
da usina, conheceu doutor Germano, fiscal do Banco do
Brasil. Inquirida por ele, contou-lhe a vida da família e de
onde vieram. O fiscal nascera na mesma cidade. Condo-
endo-se da situação dos conterrâneos, ele mesmo filho de

689
Excluídos

retirante, prontificou-se a assegurar-lhes melhor espaço


no ambiente dos excluídos.
Tão logo os filhos e o marido retornaram da faina,
deu-lhes conta da decisão que já tomara: viajariam no dia
seguinte.
Zé do Carmo, sertanejo do Cariri, pacato, trabalhador
do eito, bom pai, foi ao barracão comunicar ao feitor do
engenho que estava de mudança; viera ali para acertar
as contas. Para sua surpresa, nada tinha a receber. Recla-
mou. A conta estava errada. Tinha quinze diárias dele e
dos filhos. O feitor disse-lhe que não era ladrão. Sacou da
garrucha e deu-lhe dois tiros no peito.

690
Aconteceu no Natal
William Porto

Os homens caminhavam calados, desanimados e tris-


tes. Haviam esperado o dia inteiro pelo pagamento do
“salário” da frente de emergência, mas o dinheiro não
fora liberado por um problema burocrático. Ao serem
informados disso, apenas baixaram a cabeça decepciona-
dos, mas resignados. O conformismo, herdado de gera-
ções de ancestrais, impedia qualquer tipo de revolta, mas
algo dentro deles remoía, sufocando, amargando, fazen-
do um nó em suas gargantas. As humilhações, mais do
que a fome e a miséria, doíam neles. Nesse mesmo dia,
um burguês passou por eles e os insultou, taxando-os de
preguiçosos e malandros. A raiva controlada não permitiu
um revide. Os versos de Luiz Gonzaga martelavam nas
suas mentes lembrando que os “benefícios” da emergên-
cia eram uma forma de dominação: “A esmola quando
não mata de vergonha, vicia o cidadão”. A cesta básica e o
“salário” da emergência eram uma forma de os governan-
tes mantê-los escravos do sistema, massa de manobra de
políticos demagogos e fisiológicos (a tal base de sustenta-
ção da elite dominante). Sabiam que estavam sendo usa-
dos, que ao sistema não interessava resolver o problema
das secas porque se os excluídos se libertassem dos seus
problemas poderiam romper os grilhões da dominação
acabando com os currais eleitorais e com a classe política
reacionária e elitista. Sabiam que as secas eram um fenô-
meno absolutamente previsível, que não se tratava, como
os antigos diziam, de um castigo de Deus. Mais: que as
Aconteceu no Natal

promessas de resolver o problema das estiagens não era


coisa nova: desde os tempos de dom Pedro II que os go-
vernantes prometiam resolver o problema. O imperador,
num rasgo demagógico que fez escola, prometeu vender
as joias da Coroa para acabar com a seca. Não fez nada.
Daí por diante todos os governantes sempre prometeram
a mesma coisa, mas apenas mantiveram as “escolas”.
Aqueles homens sofridos e simples seguiam o seu ca-
minho de volta com as mãos abanando, haviam engolido
a seco mais uma injustiça, mas estavam conformados, não
se desesperaram. Só lamentavam ser véspera de Natal e
não ter dinheiro sequer para comprar comida. Justino, o
mais moço deles, era o mais triste: a mulher estava pres-
tes a dar à luz e ele não pudera comprar nada para o
filho. Apesar do travo na garganta, eles acreditavam que
um dia seriam recompensados pelos sofrimentos. Não se
envergonhavam de sua pobreza. Para eles havia algo su-
perior à maldade humana e às desigualdades sociais. Eles
acreditavam no milagre da vida, achavam que a criatura
humana, apesar dos pesares, era viável. Mesmo aquela
seca inclemente, aliada à insensibilidade dos políticos e
governantes, não era capaz de abalar a sua fé em Deus.
Em verdade, o seu único patrimônio era a fé. Sem ela
nada lhes restaria.
Enquanto caminhavam, com fome (não tinham toma-
do nem café, madrugaram na fila do banco) e desanima-
dos, sem falar entre si, eles pensavam. Pensavam e diva-
gavam, às vezes sonhando com um mundo melhor. Um
mundo sem injustiças e nem miséria. Um mundo onde
todos pudessem viver com dignidade e sem medo de ser
felizes, como dizia aquele barbudo que eles um dia viram
falando no televisor de uma vitrine de loja: aquele mes-
mo que os poderosos diziam ser agitador. Não entendiam
por que os mais ricos queriam sempre mais poder e mais

692
William Porto

dinheiro, se caixão não tinha bolso; nem entendiam tam-


bém por que os latifundiários queriam tanta terra se no
final seriam proprietários apenas de uma mísera sepultu-
ra. Matutaram ainda, ao passar pelas terras da serra que
antes eram repletas de fruteiras, no porquê de os governos
permitirem que se invertesse a vocação natural daquelas
terras que hoje estavam devastadas pela seca e também
pela pangolização. Meditavam também sobre seus irmãos
excluídos da cidade, desempregados, esfomeados, humi-
lhados e ofendidos, e arriscavam uma pergunta proibida
até a seus botões: se eles, excluídos, eram maioria por que
não se levantavam e mudavam as coisas?
Quando atravessaram o atalho que separava a estrada
principal do caminho por onde se chegava a terra em que
moravam, era meia-noite. Os homens, temerosos, apressa-
ram os passos. As superstições antigas que falavam de as-
sombrações naquele local, naquela hora, fê-los abandonar
as divagações. Queriam chegar logo aos seus casebres. Justi-
no era o mais vexado, a esposa devia estar precisando dele,
estava prestes a descansar e ele temia algum contratempo.
Mas faltava ainda quase uma légua de caminhada rápida.
Nisso, sem que tivesse havido qualquer prenúncio, a
noite começou a ser iluminada por relâmpagos, os trovões
ecoaram nos céus anunciando a festa que mais alegra o
homem do campo e que, não raro, assusta o da cidade: a
chuva. A chuva que tanto ansiavam. A chuva bênção dos
céus. A chuva milagre de Deus. A chuva que sempre foi a
redentora dos campos. A chuva que significava água; água
que lhes daria condições para sobreviver. Então aqueles
homens simples e de muita fé, em cujas faces as lágrimas
se misturavam com a água da chuva, interromperam a ca-
minhada e, de joelhos sobre o lamaçal, rezaram agrade-
cendo a Deus. Depois, animados, recomeçaram a marcha,
debaixo da chuva torrencial, em direção às suas moradas.

693
Aconteceu no Natal

Já perto de casa viram, satisfeitos, iluminados pelos


clarões do céu, os barreiros enchendo. Isso significava o
fim da humilhação de ter que recorrer aos carros-pipas
dos políticos. A chuva era mesmo um fator de libertação.
Na sua alegria incontida já pensavam em plantar uma roça
para se livrarem da “esmola” da frente de emergência.
Quando chegaram ao povoado onde moravam, gran-
de era o número de pessoas na frente da casa de Justino:
elas riam, choravam e davam graças a Deus. Os homens
foram se aproximando sem aparentar nenhuma curio-
sidade, com seus semblantes tranquilos. Sabiam – e isso
lhes bastava – que havia acontecido uma vontade de Deus.
A chuva era uma prova disso, e o nascimento do filho de
Justino era uma bênção de Natal. Justino entrou na sua
casinha de barro batido. Ali num berço feito de um cai-
xote de sabão, enrolado nuns trapinhos, iluminado pela
luzinha de um candeeiro a querosene estava um menino,
seu filho. Nascido como Jesus, num mesmo lar humilde,
quase numa manjedoura. Justino pegou a criança nos
braços e a alegria que sentiu foi bastante para compensá-
lo de todas as injustiças sofridas. Segurando o menino,
ele compreendeu que se o Cristo nascesse de novo seria
exatamente como nascera seu filho: sem nenhuma mor-
domia, sem nenhuma assistência médica, sem nenhum
cuidado especial, mas cercado, louvado e amado pelo ver-
dadeiro povo de Deus: os excluídos.
O que Justino e seus companheiros não viram foi que,
quando a chuva amainou e todos já estavam recolhidos,
surgiu no céu uma grande estrela, quem sabe saudando o
aniversário de nascimento daquele que há 2 mil anos veio
ao mundo para sacrificar-se pela humanidade. E ela apon-
tava para a casa de Justino; talvez, quem sabe, repetindo a
de Belém que ensinou o caminho da manjedoura aos reis,
esta anunciasse a volta do Salvador para reviver a mesma

694
William Porto

História de amor e de solidariedade que, infelizmente, o


egoísmo e as ambições dos homens teimava em negar. Tal-
vez Ele estivesse voltando para dar ao mundo uma nova
oportunidade de construir uma nova sociedade onde to-
dos, sem exceção, pudessem viver com dignidade, sem as
chagas das injustiças e da exclusão social.

695
Mudando a vida
Zenaide Pedrosa

Ao ficar sozinha, depois da morte dos pais, resolvera


mudar de vida.
Era filha única, solteira, com três irmãos casados. Dois
deles morando em Salvador e o mais velho no sertão. A
primeira mudança foi desfazer-se da casa. A pequena he-
rança dividida irmanamente.
Com sua parte e mais umas economias, refez a vida.
No apartamento novo passou a viver do ordenado de di-
retora de escola pública.
Logo ingressou num pequeno clube social, passou a
frequentá-lo, fazendo novas amizades e participando dos
encontros festivos. Chegava sempre sozinha, dirigindo
seu fusca, e saía antes da madrugada, com receio da vio-
lência, apesar de residir num bairro próximo.
Um dia conheceu Alfredo. Quarenta e cinco anos, viú-
vo recente, pai de cinco filhos. Encontro casual, mas deci-
sivo para ambos. Sentiu por ele forte e imediata simpatia
seguida de confiança e esperança. Foi a segunda mudança
em sua vida.
Namoro rápido. Nem precisou de enxoval, aproveitou
muitos objetos e peças de cama e mesa de sua mãe... Luxo
mesmo foi só o colchão novo, acolhedor e ortopédico...
Não houve, propriamente, uma lua de mel.
– Quem ficaria com as crianças? E as despesas?
Não quisera cerimônia social. Apenas o rito sagrado
pela manhã, na presença de alguns parentes. Antônio, o
Zenaide Pedrosa

irmão do sertão, viera sem a família. Após a cerimônia,


almoçaram em um restaurante de luxo.
E dali fora para a casa de Alfredo, onde passara a con-
viver com as crianças. Desde antes do casamento procu-
rara se entender com os meninos, sem muito proveito.
O mais velho, Carlos, com onze anos, cumprimentava-a,
cerimonioso, de longe, mas não falava. Os outros dois,
Eduardo de nove e Gabriel de sete, nem se aproximavam.
Eram arredios, pelos cantos, educados, discretos. Com as
meninas fora mais fácil: Marina, de quatro anos, e Ger-
mana, de dois, sentavam-se em seu colo, brincavam com
seus brincos e sandálias. Satisfazia a todos os gostos com
carinho e zelo. Era só.
Nos primeiros dias de casada, meio sem jeito, tentara se
entrosar. Descobrindo as preferências, fazendo-os adorme-
cer, tentando conquistá-los, mostrando-se amorosa.
A rotina, apesar da nova luta, ia entrando nos eixos, já
era mais solicitada embora todos continuassem a chamá-
la por seu nome próprio, respeitosamente.
O marido, sempre ocupado, tudo deixava a seu crité-
rio: casa, carinho e educação.
Aos sete meses de casada, desconfiou estar grávida.
Na sua idade? Alarmou-se. Nunca nem cogitara o assunto
com Alfredo. Esperou a certeza e anunciou:
– Meu bem, parece que estou grávida! – Mais surpreso
que alegre, ele respondeu:
– Grávida? Não contava com essa... Mas, se veio, va-
mos em frente!
Quando a barriguinha começou a aparecer, preparou
os meninos:
– Tenho uma novidade. Acho que vão gostar!
Abraçando Marina, continuou:
– Vai chegar mais um irmãozinho! Vamos logo esco-
lher o nome?

697
Mudando a vida

Os garotos pararam a refeição e se entreolharam, in-


quietos, num silêncio hostil.
De noite, depois de botá-los nas camas, ouviu Eduardo
cochichando:
– Agora vai nos abandonar! – e Gabriel confirmando:
– É mesmo!
Aos seis meses, comprando o enxoval, foi ao centro.
Na volta, carregada de pacotes, tropeçou num buraco
e caiu de barriga. Sentiu a pancada com um estalo. Algo
se soltara dentro de si. Uma grande dor fê-la desmaiar.
Acordou a caminho do Hospital. Atendida de urgên-
cia, pois sangrava. No quarto, pediram-lhe o telefone do
marido. Logo Alfredo chegara acompanhado de Carlos
que, assustado, ficara ao lado da porta, de longe.
O marido, depois de lhe acariciar o rosto e acalmá-la,
disse:
– O doutor falou comigo. Você vai se submeter a uma
intervenção para retirar nosso bebê que não resistiu ao
acidente.
Nada conseguira dizer.
Sua garganta doía. Lágrimas escorreram por sua face.
Buscara a resignação.
O sonho da maternidade perdida aos 44 anos! Meu
Deus! Dá-me coragem!
Depois do beijo de Alfredo em sua testa, continuou de
olhos fechados, tentando aceitar a nova realidade.
Foi então que sentiu a leve e acariciante mão alisando
o seu braço e a vozinha emocionada, sussurrando:
– Chore não, mainha. Se perder esse menino, lá em
casa tem mais quatro lhe esperando.
E aí ela percebeu que a mudança da sua vida se com-
pletara.

698
Encanto
Zenilda Pinheiro Borges Santiago

– Dá licença, minha mãe, dá licença. Pedia, com ceri-


mônia, Dona Teté, sua filha.
– Dá licença, minha mãe, vou podá-la.
Uma aroeira morava numa casa antiga, ali residia no
quintal, descabelada, no coração dos seres viventes. Con-
trolava os monstros que rondavam telhados. O verde da
seiva minava vigilância, atenção, ordem. O porte não de-
notava o avanço temporal, a idade cronológica.
– É nova, é velha?
Ninguém nunca soubera, ninguém adivinhava. O que
se conhecia é que surgira por vontade de uma bruxa má,
enciumada pela beleza de Ísis, filha caçula do dono da-
quelas terras, e pelo desejo de posse da sua filha, ainda
bebê. Sua ambição foi tanta que a transformou no ser ve-
getativo de hoje.
Primeiro, o enraizamento dos membros inferiores.
O choro. Os gritos. A filha ao colo. A angústia. O so-
frer. O arrebentar do coração.
– Meu pai, minha filha será sua, Haustorina não terá
poderes para envolvê-la.
O pai, sem entender:
– Venha, minha filha.
– Não posso, meu pai, coloque a ametista com o cor-
dão no pescoço de Teté, e Haustorina a esquecerá.
Teté foi afastada do campo energético da bruxa. Quan-
to a Ísis, já não pode ser livrada.
Encanto

Mas com a ajuda dos trabalhadores, foi removida para


casa.
Quando seus pés tocaram novamente o chão, brota-
ram novas raízes que a fixaram no local. Caso tentassem
arrancá-las, a qualquer corte, sangrava, sangrava sangue
vermelho-esverdeado, que escorria em gotas cristalinas
pontiagudas.
Os músculos de Ísis enrijeciam tornando-se fibras le-
nhosas até atingir todo o corpo.
O coronel levou a filha a dermatologistas, fisiologis-
tas, anatomistas, angiologistas, a botânicos, a resposta de
sempre:
– Não há jeito... caso raro... problema jamais estudado
pelas ciências...
Quando o enrijecimento alcançou o rosto da moça, o
pai não resistira.
Enlouquecera, em desabalada carreira, de uniforme,
insígnias militares, elmo, espada à cinta:
– Mato. Mato quem transformou minha Ísis em aro-
eira...
Desde então, ela ficou plantada no quintal, cujo casa-
rão se encontrava em ruínas.
As folhas da aroeira usadas em infusões, chás, garga-
rejos, unguentos cicatrizavam feridas, serviam e servem
para temperar sopas, feijões, carnes. Sua madeira, pau a
pique, na construção.
A notícia correu mundo. Romarias. Milagres. O povo
se instalava, surgiu o vilarejo, vila, cidade: Aroeira.
Bem-vindos a Aroeira
E Ísis continua seu destino: salvar seres das mazelas do
mundo até que Dona Haustorina resolva libertá-la...
De cem em cem anos, a bruxa passa no quintal para
verificar se a aroeira envelheceu, se está coberta de para-
sitas para a árvore definhar até a mumificação.

700
Zenilda Pinheiro Borges Santiago

O desejo da bruxa jamais se realizará: os parasitas ve-


getais não conseguem atacar Ísis, cuja seiva não os ali-
menta.
A decepção de Dona Haustorina é grande, e possuída
de raiva, a aroeira a cada dia rejuvenesce e, altaneira, en-
frenta as procelas. Não se abala.
Os antigos e centenários moradores de Aroeira acredi-
tam que ela perdeu a memória antropológica, a qual foi
substituída pelas lembranças fitológicas.
Sabe-se, apenas, que a aroeira não suporta ser podada.
Sofre. Geme. Lamúrias de ventanias cortantes...
– Dá licença, minha mãe, dá licença. Pedia com ceri-
mônia, Dona Teté, sua filha.
– Dá licença, minha mãe, vou podá-la.
E Dona Teté aproveitou a poda e fez uma fogueira
para São João.
Ísis apagou o fogo várias vezes, e Dona Teté insistindo.
Insistindo. Insistindo... Por fim, conseguiu acendê-lo e,
quando se aproximou da fogueira, percebeu que, a cada
labareda que subia, centenas de gemidos e lágrimas a
acompanhavam, ecoando no ar com uma canção:

Não me chame aroeira,


Eu sou Ísis tua mãe.
Não me podes nunca mais.
E descansarás nas minhas ramas.

Nos céus, São João, olhos vermelhos, a chorar, choros


recíprocos, o carneiro nos braços do santo, Dona Teté e
Ísis.
Dona Teté em genuflexão:
– Dá licença, minha mãe, prometo por toda a vida,
nunca mais vou podá-la, nunca mais queimarei seus ra-
mos.

701
Encanto

Entre bacamarteiros e fogos, a canção se ouvia ao longe.


Não me podes nunca mais.
E descansarás nas minhas ramas.

– Dá licença, minha mãe, dá licença...

702
Nome
Zuleide Duarte

Rosário não conheceu os carinhos de família. “Lar


doce lar” era um lema das revistas e suplementos de jor-
nal. Receitas e bordados que as casadouras colecionavam
em pastas enfeitadas de decalques e caligrafia gótica. No
registro civil era Rosário do Amor Divino. Nem mais.
Uma vez por ano, no Natal, vinha a mulher bonita e
muito pintada. Dava presentes e deixava marcas de ba-
tom. Não ia ao colégio. O preceptor vinha buscá-la e o en-
contro acontecia no sítio de um conhecido da mãe. Sim,
porque aquela dama perfumada, sua mãe, materializava-
se no Natal. Quase Papai Noel. Até combinava. Bonecas
importadas. Vestidos bordados, finos. Biscoitos. Luxo.
A madame nunca vira o colégio. A filha protegida. O
trabalho não permitia remorsos. Meninas da idade da fi-
lha, menores até. Filhas de outras. Órfãs como Zarinha.
Só ela a chamava assim. Homenagem à santa. Desfiava as
contas depois do último cliente. No quarto, um altar sin-
crético. Entre Iemanjá, Xangô, N. S. do Rosário, S. José, a
Bíblia protestante, anjo da guarda, rosa vermelha, cachaça
e charuto, circulava quase feliz. Já perdera alguns clientes
por causa do clima devoto do ambiente. Onde já se viu
trepar rodeada de santo? Aos domingos ia com as meni-
nas à missa das onze. Horário escolhido de propósito. O
padre não podia negar um favor às grandes colaboradoras
das quermesses. Espórtulas dominicais. Bolos, presentes.
Assim também a cabeleireira. Sexta era dia das clientes
do chatô. Boas pagadoras. Serviço completo: manicure,
Nome

pedicure, cabelo, maquilagem. A garantia da semana. As


meninas resplandeciam. E os homens compareciam.
A cidade recebia profissionais que implantavam máqui-
nas, davam treinamentos, construíam estradas. Sozinhos,
o fim de semana era uma festa. Jogo e cabaré. Visita tu-
rística. Os chatôs rivalizavam em ambientação e material
de primeira. Meninas cheirando a leite, mal saídas dos
cueiros, sonhavam com os lindos vestidos, joias, carros,
quartos luxuosos. Muitas saíam de casa diretamente para
lá. Algumas “mãesdames”, pensando nas exiladas filhas,
arrastavam as postulantes para as casas dos pais. Surras,
gritos e expulsão eram um espetáculo comum. A chegada
de uma donzela na zona era motivo de festa e grandes
lucros, claro. Inscrições e filas para a iniciação. Antes, a jo-
vem tomava um banho de loja, pintava o cabelo e mudava
de nome. “Jaqueline”, no tempo da Kennedy, nomeava
putas novas. Brigite, Marilyn, Jeine e Greice disputavam
preferência. Mercado de nome, mercado de gente. Muitas
compravam as primeiras bonecas com o dinheiro ganho
nessa vida. Pois é, caíam na vida e na morte a um só tem-
po. Raras, raríssimas, tinham salvação.
Madame Eva, mãe de Rosário, engravidara do noivo
que depois a rejeitou. Expulsa pelos pais, mudou de nome
e cidade. Para sobreviver foi fazer salão. Ali conheceu um
velho.
Aos cinco anos Rosário já tinha licença especial para
frequentar o internato. A mãe era dona do mais popular
chatô da cidade. Da ama de leite para o colégio...
Mas não escapou à maldade do mundo.
As grossas paredes do internato abrigavam também a
perfídia, o descaramento, o desamor. O terço de ouro, seu
companheiro. Era uma jovem triste. Lia e rezava. Rezava
e lia. Sem vaidade, o corpo desenvolvia a despeito da sua
recusa. A escoliose escondia os seios. A franja disfarçava
os olhos que teimavam em se esconder.

704
Zuleide Duarte

– Precisamos pensar no seu futuro, Rosário. Este é o


último ano de colégio.
Aquela sentença doía. Não gostava do colégio. Acos-
tumara-se. Defendida. Pelo menos pensava. Futuro. Qual
futuro? Então ia conhecer pais e irmãos porque, claro, ela
também devia ter. Todas tinham. Avó, tia, avô também.
Primas. Para dividir problemas, rir.
Não tinha. Ninguém era seu parente. Na capital foi
continuar os estudos. Novo exílio. Pensionato e freiras. Só
os políticos conseguem vaga para as filhas. Mas o pai, que
não tinha, não podia ser político. Nem era. A mãe, mu-
lher política não existia naqueles idos. Então... Então.
Matrícula. “Preste atenção. Esqueceu de preencher
o nome do pai.” O nome? Nem ela sabia. Veja meu do-
cumento: onde está o nome? Não havia. A funcionária
olhou-a.
– Bote aí. Inexistente. Quer dizer, deve ter existido, se
você foi gerada. Desconhecido. Escreva: pai desconhecido.
Suava. Pai. Qual pai? Quando dona Socorro (afinal era
o nome da mãe dela. Eva era nome de guerra) viesse pa-
gar o pensionato ela perguntaria.
– Mamãe, quer dizer, dona Socorro, como era o nome
de meu pai?
– Era. Morto não tem nome. Parou ali. No pensionato,
solidão. Filha sem pai. É o mesmo que...
Naquela cidade do Sul continuou a luta pelo nome. Me-
nos dolorosa, mas sempre luta. Preconceito, exílio. Pergun-
tavam sobre a cidade natal. Não conhecia direito. Pessoas de
lá, não. Saí pequena, nunca voltei. Os pais. Mistério.
Dorgival (só podia ser nome de nordestino) também
era do Norte. Fora para o Sul para estudar e trabalhar.
Gostou dos olhos tristes de Rosário. Ela, das belas e habi-
lidosas mãos do doutor Dorgi. Conversavam no plantão.
Ansiavam por ele.

705
Nome

– Você não pode não ter família, Rosário. Todo mundo


tem.
Na cidade ninguém conhecia dona Socorro de quê?
Bom, pelo nome deve ser do Amor Divino. Família ine-
xistente no cartório da cidade. Fez amizade com a tabeliã.
Rosto familiar o seu, Rosário. Deixe-me examinar a cer-
tidão...
Não teve coragem para contar ao noivo. Vida de men-
tiras. Ela era mentira. E essa mulher, Eva/Socorro, com
que direito lhe deu a vida para negar o direito de viver?
Queria conhecer a poderosa que a pôs no mundo negan-
do-a. O taxista estranhou o endereço. Mas enfim. Aquele
lugar deserto nas horas mortas da manhã de terça-feira
incomodava.
A velhota que a recebeu causou-lhe arrepios. Enfrenta-
ram-se. “Não é lugar pra você.” ...Nem pra você...

.........................................

– Vovó, conte a história daquela moça que trocava co-


mida por boneca... e daquela que chorava com saudade
da vovó que contava história...
– Aquilo tudo, Eva, aconteceu numa cidade encanta-
da, com bonecas feito gente, luz, música, dança e muita
tristeza...
Naquele alto, que estranhamente se chamava do lou-
vor, meninas sem pai, sem nome, sem carinho, sonhavam
os impossíveis, Rosário encontrou amor, vida. Nem pai,
nem nome. Vida.

706
Revelação
Zuyla Cartaxo

O colégio ficava perto da praia. Do Carmo subia a la-


deira para buscar cesta básica quando a fome apertava.
Dava os filhos que arranjava para as irmãs. Nem via a cara
do bebê. Entregava a criança à parteira. Desviava o olhar.
Nunca havia feito aborto. Matar, não! Preferia doar. Que
Deus tomasse conta. Só considerava filha a primeira, que
fora feita com amor, pelo patrão. Eram horas maravilho-
sas que passavam no quarto dos empregados, enquanto a
patroa se divertia com as antigas amigas jogando cartas
no clube.
Quando lhe disse que estava grávida, ele falou cari-
nhosamente:
– Ora, beleza, a gente dá um jeito. Tenho um amigo
que é dono de maternidade. Você se interna um ou dois
dias e resolveremos isso com um aborto. Depois de pouco
tempo, estará em forma. Ninguém precisa saber.
Do Carmo ouviu calada. Arrumou os pertences e foi
para o barraco da favela. Disse à patroa que ia acudir a
mãe no interior e não sabia se voltava. Nunca mais en-
controu o patrão. O consolo da vida da mulher era a filha.
Só considerava filha, aquela. Os outros vieram por acaso.
Que Deus e as freiras tomassem conta...
A irmã olhou a barriga grande de Do Carmo.
– Devia ter vindo há mais tempo. Dava para arranjar
uma casa na Itália. Eles adoram crianças brasileiras. Desta
vez é de preto ou de branco?
– Mulato, irmã.
Revelação

– Sei não... vocês deviam levar em conta que criança


branca tem mais possibilidades. Mas, vamos lá: quando
sentir as dores, vá para a maternidade de sempre e pro-
cure Luzia, a parteira. Diga que foi mandada por mim. E
Paula? Ainda pode ser adotada...
– Não, Irmã. Ela é minha companheira.
– Vocês não pensam...
Do Carmo fez que não ouvia. Na praça, ali perto, Pau-
la esperava.
– Vem filha, ainda dá tempo da gente pegar o lixo fora
do hotel. Vamos rezar para ter coisa boa, porque o bebê
está mexendo com fome.
– Nem fale. Minha barriga está pregada no espinhaço.
Mas, no Natal, mãe, o lixo é sempre rico.
Andando pela orla marítima, mãe e filha sentiam a bri-
sa vindo do mar. O cabelo liso de Paula voava, caindo-lhe
no rosto cheio de sardas, onde dois olhos verdes atestavam
a miscigenação. Magra e alta parecia ter mais idade do que
dez anos. As pontas dos seios começavam a aparecer na
camiseta encardida. Acostumada a sair com a mãe toda ma-
nhã para catar latinhas, Paula sabia o itinerário dos lixos
da praia. A hora dos depósitos. A colheita no caminhão
da prefeitura. Viviam disso. Saíam de casa antes de o sol
nascer. Depois das sete, iam, com o rodo e detergente, para
o sinal da Avenida Boa Viagem, limpar os carros. Quando
davam dez horas e o sino da Paróquia chamava para as re-
zas, sentavam-se à sombra de uma árvore para o lanche do
que haviam catado no lixo. Na época de Natal sempre se
alimentavam melhor, principalmente quando conseguiam
chegar antes do caminhão nos hotéis.
– Mãe, por que você não fica com esse? Queria tanto
ter um irmão...
– Você está doida, menina? Não vê que não posso? Fi-
quei com você porque foi a primeira. E veja no que deu,
vivemos triste deste jeito.

708
Zuyla Cartaxo

– Mas mãe, eu lhe amo tanto! Passava a mão pelo rosto


de Do Carmo.
– É filha, eu também lhe amo. Mas vamos terminar
com isso que o sol está ficando quente. A barriga está pe-
sada.
Foram catando latinhas na orla marítima, enquanto
Paula preparava a garrafa com detergente.
Num edifício de luxo saiu da garagem um carro im-
portado com chofer. Paula dirigiu-se ao veículo ouvindo
o grito da mãe:
– Paula! Nãaooo!
Do assento de couro, um cidadão de roupa bem talha-
da, olhava para a menina exasperado:
– Saia da frente, vagabunda! Não vê que vai queimar a
pintura com essa porcaria?
Paula procurava enxugar o detergente que escorria,
enquanto o homem gritava:
– Saia! Vá procurar outro carro. Arranca chofer!
A menina quase colada ao muro viu passar a limusine
com violência.
– Mãe, que homem é esse? Por que faz isso com os po-
bres? Ele devia morrer.
As lágrimas escorriam quando Do Carmo falou:
– Não diga isso, filha. Ele é teu pai...

709
Dados Biobibliográficos
por Cyl Gallindo

ABDIAS Cabral de MOURA Filho, (“Natal com crimi­


nosos”), nasceu no Recife/PE (22.04.1930). Diplomado
em Direito (1954) e Sociologia (1964), romancista, en-
saísta, cronista, poeta, jornalista, atuou por longo tem-
po como editorialista do Jornal do Commercio, Recife.
Membro da APL, da Alane e da UBE-PE.
Convivo com Abdias há muitos anos, acompanhan-
do sua trajetória literária passo a passo, mesmo assim
não teria o poder de síntese que teve Olímpio Bo-
nald Neto, ao apresentar um dos seus livros, quando
afirmou: “A. M. possui rica fortuna crítica. Quem o
conhece o respeita. Mas, na verdade, lendo seus li-
vros é que nos encantamos diante da pujança da sua
criatividade literária”. Tanto isto é verdadeiro, que a
UBE-PE reuniu num livro os Depoimentos e comentários
de A a Z, sobre Abdias Moura, no qual figuram Gil-
berto Freyre, Barbosa Lima Sobrinho, Fernando Py,
Maria do Carmo Barreto Campello de Melo e quase
uma centena de outros críticos brasileiros e estrangei-
ros, como o poeta português António Salvado e os da
Argentina, citados adiante, que não economizaram
exaltação à sua obra.
Bibliografia: O sumidouro do rio São Francisco: origem
dos conflitos no Brasil, com três edições brasileiras,
1985, 1993 e 2002. Traduzido para o espanhol por
Jorge Ariel Madrazo e publicado pela Editorial Fran-
cachela, 2005, inaugurando a CICLA, sob a coordena-
ção de José Ezequiel Kameniecki, Argentina, e dire-
ção de Cyl Gallindo, Brasil; apresentação de Eduardo
Portela, Brasil; Norma Pérez Martín, Argentina, capa
de Luisa Osdoba e ilustração de Pablo Cattaneo. As
três faces do amor, Ed. FacForm, Recife, 2004. Este livro
contém, na íntegra, três romances de Abdias, publi-
cados em anos diferentes pelas Edições Tempo Brasi-
leiro, Rio de Janeiro: Os desamores de Benedicto, 1992,
A descoberta da harpa, 1988, e O segredo da ilha de pedra,
1995; Evangelho do subdesenvolvimento, Tempo Brasi-
leiro, Rio, 1990; A sociedade no planeta Terra, TB, Rio,
1997; Memórias do século XX, TB, Rio, 2000 e 12 Auto-
res em tempos diversos, hist. e crítica, 2007. Sexo, nação e
cor – Ensaio sobre o preconceito, 2008; Como a guerra
chegou à floresta amazônica, Recife, 2008.
Abdias Moura tem verbete na Enciclopédia de literatura
brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza,
2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

ADMALDO MATOS DE ASSIS, (“A menina”), nasceu


em Gravatá/PE (29.07.1945). Ficcionista. Diplomado
em Direito pela UFPE. Professor de Literatura Por-
tuguesa e Brasileira, do Curso Torres; de Literatura
Brasileira e História, do Curso Tuiuti; de Direito Tri-
butário e Instituições do Direito, da Unicap. Outro
segmento importante da vida de Admaldo foi a polí-
tica, na qual exerceu os cargos de chefe de Gabinete,
secretário municipal do Recife, secretário de Habi-
tação e presidente da Cohab/PE, secretário de Edu-
cação e Cultura do Recife, secretário da Fazenda do
Estado e do município de Jaboatão dos Guararapes,
culminando com a eleição para vereador do Recife,
por dois mandatos.
É membro da Academia de Letras e Artes de Gravatá
e da UBE-PE.
Bibliografia: Reflexões sobre a questão habitacional, en-
saio, 1983; O poder e a comunhão, discursos, 1992; Má-
gica do equilíbrio, artigos, 1995. O homem revalorizado,
discursos, 1996; O preço da missa, contos, 1997; Olhar

711
sobre a Rússia, viagem, 1999; Coerência, discursos,
2000; A máscara veneziana, contos, 2001; O dono do
girassol e outros contos, 2003, e Astúcias da imaginação,
contos, 2005; Sete dias na Terra Santa, Edições Bagaço,
Recife, 2008.

ALBERTO LINS CALDAS, (“O extermi­nador”), nas-


ceu em Gravatá/PE (19.12.1957). É mestre em Histó-
ria (UFPE) e doutor em Geografia Humana (USP),
sendo atualmente professor adjunto de Teoria e Fi-
losofia da História na UFRO. Poeta, ficcionista, con-
ferencista, ensaísta, crítico literário, artista plástico.
Como ensaísta, tem-se dedicado principalmente às
questões da Literatura e da História; como escritor,
ao conto e ao romance.
A obra de Alberto Lins Caldas é revolucionária nas
ideias, no estilo e na forma, revelando um espírito
inquieto diante do mundo. Ao lado da artista plástica
Cyane, sua esposa, lidera diversos movimentos artís-
tico-literários, do Recife a Porto Velho, onde leciona
Filosofia e História.
Bibliografia: É autor dos livros de contos Babel, Revan,
Rio de Janeiro, 2001; Wyk, Edições Bagaço, Recife,
2007; Gorgonas, Companhia Editora de Pernambuco,
Recife, 2008, e do romance Senhor Krauze, Revan, Rio
de Janeiro, 2009. Publicou livros de poesia: Cacimbas,
Edições Pirata, 1982; No interior da serpente, Pindora-
ma, 1987; de teoria literária como Oralidade, texto e
história, Loyola, São Paulo, 1999; Nas águas do texto,
Edufro, Porto Velho, 2001; Litera Mundi, Edufro, Por-
to Velho, 2002, Oligarquia das letras, Terceira Margem,
São Paulo, 2005.

ALBUQUERQUE PEREIRA, Francisco, (“A visita da


saúde”), nasceu em Canindé/CE (08.03.1930). Poe-
ta, contista, jornalista e autor, diretor e ator teatral.
Radicado no Recife desde 1955. Fez rádio, televisão

712
e jornal, em Fortaleza e no Recife. Produziu e cola-
borou com mais de uma centena de vídeos culturais
idealizados pela Fundaj.
Albuquerque Pereira foi laureado como contista no II
Prêmio Banco Real de Talento da Maturidade, 2002,
e conquistou o Prêmio de Poesia da APL, 2005.
É membro da Alane e da UBE-PE.
Ademais, este autor tem-se dedicado, com singular
talento, à adaptação para a poesia de obras que enfo-
cam temas das raças negras e indígenas. Ele próprio
explica essa tarefa:
“Quando escrevi o poema ‘Oração pelo negro’, Prê-
mio de Poesia da APL, 2005, pretendia falar sobre o
lado intelectual da raça negra no Brasil. Mas percebi
a desproporcionalidade em relação a outros aspectos
da saga da escravidão. Desmembrei o trabalho em
outro livro, a que dei o título de Cantares ao gênio afro-
brasileiro, onde entram autores, sem distinção, que
escreveram sobre os africanos e seus descendentes
no Brasil, indo do Padre Vieira a muitos outros pro-
sadores e poetas de ontem e de hoje. Assim, de Cyl
Gallindo versifiquei o conto ‘Milagre no jardim da ca-
sa-grande’. De Olímpio Bonald, os contos ‘Um negro
volta ao mangue’, 1957, ‘O Conde do Vira-Mundo’,
2003; e o poema ‘Dura e breve história da Ilha do
Maruim’, 1961. De Rosa Lia Dinelli, o conto ‘Cabo
velho’, e de Milton Lins, os contos ‘Depois do sumiço
no horizonte’, ‘O touro’ e ‘O cisne negro’”.

ALEXANDRE José Ferreira dos SANTOS, (“A histó-


ria de Bentinho”), nasceu no Recife/PE (11.11.1954).
Engenheiro civil, UFPE, tem cursos de especialização
em Transportes Urbanos e Trânsito e mestrado em
Engenharia da Produção.
Foi secretário adjunto de Transportes Urbanos e
Obras da Prefeitura do Recife. Comendador da Or-
dem do Mérito Capibaribe. Agraciado com a medalha

713
do Mérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais.
Diretor acadêmico da Aesupe. No magistério supe-
rior, especializou-se no ensino das disciplinas Teoria
Econômica, Matemática Financeira, Administração
Financeira e Administração de Materiais.
Casado com Deinha, pais do poeta Guilherme Wan-
derley.
Alexandre foi presidente da Alane, hoje com secções
no Ceará, na Paraíba e em Alagoas. É presidente do
Clube de Engenharia de Pernambuco e da UBE-PE,
formando com Waldenio Porto, presidente da APL, e
Jacques Ribemboim, presidente da ONG Civitate, a
linha de frente de um grande movimento para valori-
zação da Literatura e do escritor nordestino.
Bibliografia: Os retirantes, ensaio, CEPE, Recife, 1986;
A inefável primavera, ensaio, Editora Sol, Recife, 1991;
Teoria do valor, ensaio, Fundarpe, Recife, 1994; Solida-
rismo: o Brasil para todos, ensaio, Editora Sol, Recife,
1995; Economia & poder, IEPS – Sopece, Recife, 1995;
Curso básico de matemática financeira, didático, Sope-
ce, Recife, 1995; Subsidiariedade econômica: a opção
decisiva, ensaio, CPCP, Recife, 1997; Em debate, arti-
gos, CPCP, Recife, 1997; O fim do ciclo liberal, ensaio,
Recife­, 1999; O direito ao trabalho remunerado, CEPE,
Recife, 1999; O Attaché, comédia, Bagaço, Recife,
2002. G’Dausbbah, poesia, CEPE, Recife, 2005; O moi-
nho, romance, 3. ed. Bagaço, Recife, 2008 – traduzido
para o espanhol, Editorial Arte y Literatura, Havana,
2007; Um livro de contos, AJFS, Recife, 2009.

ALUÍZIO FURTADO DE MENDONÇA, (“Para


além dos campos semeados”), nasceu em Natal/RN
(09.12.1927). Diplomado em Direito. Advogado, jor-
nalista, poeta, escritor. Desde jovem atua na imprensa
como repórter de O Diário de Natal, depois na Rádio
Poty. Nas terras potiguares, publicou seus dois pri-
meiros livros, num dos quais constava o conto “Na

714
Luz Definitiva da Manhã”, apontado pelo Mestre
Luís da Câmara Cascudo como “um dos mais belos e
fortes contos que lera, entre autores de diversos paí-
ses”. Através de concurso foi nomeado fiscal aduanei-
ro, em Areia Branca/RN, depois foi transferido para o
Recife, onde permanece até os dias atuais.
Sobre a batuta de Esmaragdo Marroquim, ao lado de
Audálio Alves e Ladjane Bandeira, Aluízio teve gran-
de atuação como editor do Suplemento Literário do
Jornal do Commercio: onde acolhia os novos escritores,
que hoje são denominados de Geração 65. Ganhou
vários prêmios, entre eles o primeiro lugar no Prêmio
de Literatura do Ipase, 1956, com a novela O velho,
os gatos e a noite, que lhe assegurou reconhecimento
nacional. Atualmente, Aluízio Furtado dirige o jornal
Ponto de encontro, dedicado à divulgação e promoção
cultural. É membro da Academia de Artes e Letras de
Pernambuco e da Alane.
Bibliografia: O silêncio das horas, contos, 1952; O sol-
dado de ronda, contos, 1953; Contos inéditos, 2000; Ali,
do outro lado da maçã, nov., 2002. Participa de diversas
coletâneas de contos e poesias.

AMÍLCAR DÓRIA MATOS, (“Prelúdio”), nasceu e


faleceu no Recife/PE (24.01.1938–29.07.2010). Diplo-
mado em Direito pela UPE, com mestrado em Direito
Comparado pela Southern Methodist University, Te-
xas, USA. Técnico em Comunicação Social na Sudene,
onde também foi diretor administrativo do Conselho
Deliberativo dessa autarquia; atuou, entre outros, nos
jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Commercio e Dia-
rio de Pernambuco. Escritor, jornalista, poeta.
Conquistou inúmeros concursos literários, entre os
quais se destacam: Prêmio Recife de Humanidades,
1975; Prêmio José Condé, Recife, 1976; Clube do Li-
vro, SP, 1978; Prêmio Lucilo Varejão, Recife, 1979;
Concurso Nacional de Literatura de Goiás, 1979;

715
Prêmio Fernando Chinaglia, RJ, 1981; Prêmio Carlos
Pena Filho, Recife, 1984; Prêmio José Condé, 1988;
Prêmio Vânia Souto Carvalho, da APL, 1995.
É membro efetivo da APL, da UBE-PE e sócio hono-
rário da Alane.
E quando se imagina que Amílcar está assentado na
ficção romanesca, eis que surge com In(ter)venções,
poesia, Ed. do Autor, Recife, 2000, de tal sorte singu-
lar que leva crítico do porte de Caio Porfírio Carneiro
a proclamar: “É que ele não se prende a fórmulas e
se expande e se fecha conforme – para além do tema
– lhe dita a magia criadora do momento”. E Sebas-
tião Vila Nova arremata: “Amílcar é motivo, com a
sua prosa e a sua poesia, de orgulho para quem é do
Recife, de Pernambuco, do Nordeste, do Brasil”.
Para mim, que convivi décadas com Amílcar, como
colega de trabalho, como amigo, como admirador,
considero-o verdadeiro artista da palavra, na prosa
ou na poesia. O jornalista Amílcar enfoca qualquer
tema com natural desenvoltura; enquanto escritor,
com um bonito estilo requintado, mergulha fundo na
alma humana na busca de respostas às grandes ques-
tões da transcendentalidade.
Bibliografia: O sexo poupado, 1974, e O inconverso, con-
tos, 1975, Editora Universitária, Recife; A morte do papa,
Ed. Soma, SP, 1979; Os doze caminhos, rom., Ed. Clube
do Livro, SP, 1981; Os olhos da insônia, Ed. Universitá-
ria da UFPE, Recife, 1982; A trama da inocência, nov.,
Ed. Soma, SP, 1983; Cartas ao espelho, rom., Fundarpe,
Recife, 1989; O baú e a serpente, rom., 2. ed., 1995; Doze
janeiros e um dezembro, contos, Fundarpe, 1994; Os ar-
recifes nunca silenciam, contos, Coleção de Livros Aca-
dêmicos, Ed. Comunicarte, Recife, 1996; O mistério de
Olin, nov., Edições Bagaço, Recife, 2005.
Dória Matos participa das coletâneas O urbanismo na li-
teratura: contistas de Pernambuco, Ed. Livros do Mun-
do Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; e Contos de Pernambu-

716
co, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988, organizadas
por Cyl Gallindo. Tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

ANA MARIA Ventura de Lyra e CÉSAR, (“Inciden-


te ao meio-dia”), nasceu no Recife/PE (17.04.1941).
Diplomada em Direito pela Faculdade de Direito do
Recife­, UFPE, e em Letras Neolatinas pela Faculda-
de de Filosofia, Ciências e Letras da Unicap. Exerceu
toda a sua vida profissional no Senac e, hoje, aposen-
tada, ministra cursos de Comunicação em Língua Por-
tuguesa, em instituições ligadas à formação profissio-
nal e em empresas públicas e privadas. Romancista,
poeta, conferencista e ensaísta, iniciou sua trajetória
escrevendo sobre o próprio pai, o renomado desem-
bargador e poeta Amaro de Lyra e César. Tem-se re-
velado uma crítica literária de profunda visão sobre
ângulos inusitados das obras que se dispõe a estudar,
como a de Cecília Meireles e outras.
Ana Maria é uma destacada líder nos meios intelectuais
de Pernambuco, liderança que demonstrou como presi-
denta da Alane, biênios 1998–1999 e 2000–2001, e nas
suas participações como membro da UBE-PE, da ARL
e da Sobrames. Recentemente foi eleita para a APL.
Bibliografia: Lira e César, juiz de Caruaru, ensaio bio­grá­
fico, 1981; Gênesis, crônicas, 1884; A bala e a mitra, en-
saio/reportagem, 1994; Prêmio Vânia Souto Carvalho,
APL; 50 Anos do Senac em Pernambuco, hist., 1996; Versos
voláteis, poesia, 1998; O tom azul, rom., 1997; Prêmio
Dulce Chacon, APL; Habemus panem – Memórias de
uma época, memórias, 2001; No limiar do tempo, poe­
sia, 2005, e A faculdade sitiada, ensaio histórico, 2009.

ANTÔNIO Ricardo Accioly CAMPOS, (“O julga­


mento”), nasceu no Recife/PE, (25.06.1968). Diplo­
mado em Direito, pela UFPE. Advogado, especialista

717
em Direito Empresarial e Eleitoral, notadamente nas
áreas de consultoria, planejamento e contencioso tri-
butário e comercial, como também em Direito Públi-
co e Direito do Entretenimento. Associado a Noronha
Advogados, com atuação em diversos países. Cofun-
dador do Instituto de Direito Privado da Faculdade
de Direito do Recife; Membro e Sócio Benemérito da
UBE-PE; Conselheiro da AIP; Palestrante Honorário
da Escola Ruy Antunes da OAB-PE, na cadeira de Di-
reito Eleitoral; foi Conselheiro Titular da 1ª Câmara
do 2º Conselho de Contribuintes da Receita Federal;
autor de artigos jurídicos e literários publicados em
periódicos, revistas e jornais; detentor da comenda
“Dom Quixote” da revista Cidadania e Justiça.
Membro das Academias Pernambucana de Letras, e
de Artes e Letras de Pernambuco.
Antônio foi um dos fundadores do Instituto Maxi-
miano Campos (IMC), depositário do acervo literário
e artístico do escritor Maximiano Campos, seu pai,
prematuramente falecido, e também promotor e di-
vulgador da Cultura pernambucana e nordestina.
O IMC apresenta uma lista considerável de lança­
mentos de livros de outros escritores e produção dele
próprio, como a coletânea Pernambuco, terra da poesia:
um painel da poesia pernambucana dos séculos XVI
ao XXI, organizada pelo próprio Antônio Campos
e por Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras, SP, 2005, à
qual se junta esta Panorâmica do conto em Pernambuco,
lançada em 2007 e que agora aparece em 2ª edição.
Também são promovidos concursos, como o de con-
tos, que classificou dez novos escritores de diferentes
Estados e resultou no livro O talento com as palavras,
organizado pelo IMC/Edições Bagaço, 2006.
Além disso, o IMC realiza eventos culturais, como
participação com a “Casa das Letras” no I Festival de
Literatura de Garanhuns, 2006.

718
Antônio Campos assinou contrato para realizar, através
do IMC, a Fliporto – Festa Literária Internacional de
Olinda/PE. Sob a sua curadoria, a Fliporto aconteceu
em Porto de Galinhas, onde foi debatido o tema a Inte-
gração Cultural da América Latina; seguidos da Cultu-
ra Africana, da Cultura Hispânica e agora, neste ano de
2010, em novo cenário, enfocar a Cultura Judaica.
Presidente do Instituto Maximiano Campos (IMC),
sociedade civil voltada para a valorização da cultura
brasileira, especialmente dos valores literários, com
ampla atuação em Pernambuco e na região nordesti-
na, já apoiou a publicação de mais de 100 livros, cujas
atividades podem ser visualizadas no site abaixo.
Como escritor, além dos livros, Antônio Campos é ar-
ticulista, com coluna no Jornal do Brasil, RJ, e colabora-
dor dos jornais locais e conferencista, contista e poeta.
Estou consciente das dificuldades de reduzir uma
nota biográfica de Antônio Campos. Dizer o quê do
mentor, do dínamo de todos esses acontecimentos?
Antônio não limita sua atuação a Pernambuco, pois,
como foi noticiado, ele, acompanhado de Arnaldo
Niskier, Ivo Pitanguy, Gilberto Freyre Neto, visitou
Estocolmo para falar para acadêmicos suecos sobre o
nosso país: “O Brasil, que é um país mestiço, marca-
do pela mistura de raças, deve ser motivo de estudos
quanto à tolerância e ao convívio entre raças e cultu-
ras, quase uma ‘democracia racial’”. E conclui: “Resis-
tir contra a tentação fácil da xenofobia e do racismo
de toda espécie. Diálogo é a palavra-chave do mundo
contemporâneo: entre artes, etnias, religiões, cultu-
ras”. Visitar a Academia Sueca de Letras equivale a
dizer: O Brasil existe e tem escritores.
Antônio Campos traz de berço, no sangue, na alma,
o gosto pela Literatura e pelas Artes transmitido pelo
seu pai, o escritor Maximiano Campos. Assim como,
a marca da luta, do desbravamento, da transformação
do meio em que vive, herança de uma das maiores fi-

719
guras política deste país, seu avô Miguel Arraes. Sen-
do este um bem de família, não podemos deixar de
citar a figura do irmão, governador Eduardo Campos,
nem a obra que está realizando em Pernambuco.
Bibliografia: Mensagens, seleta de artigos, publicado
pelas Edições Bagaço, com 2ª edição, Recife, 2002;
Pense S.A., acerca de planejamento estratégico e me-
lhoria organizacional, Edições Bagaço, Recife, 2002; O
grande portal, seleta de artigos e ensaios, Edições Baga-
ço, Recife, 2003; Direito eleitoral – Eleições 2004, Edi-
ções Bagaço, Recife, 2004; A arte de advogar, Edições
Bagaço, Recife, 2004; Viver é resistir, Edições Bagaço,
Recife, 2005; Pernambuco, terra da poesia, Coletânea,
em parceria com Cláudia Cordeiro, Editora Escrituras,
SP, 2005; Território da palavra, Edições Bagaço, Recife,
2006; Panorâmica do conto em Pernambuco, em parceria
com Cyl Gallindo, Editora Escrituras, SP, 2007; Portal
de sonhos, poesias, Editora Escrituras, SP, 2008; [Em]
Canto – A voz do poema – leitura de Antônio Campos,
poesia CD, Atração Fonográfica/IMC, s.d.; Clarice Lis-
pector – uma geografia fundadora, palestra proferida
na APL, quando da comemoração do Dia Internacio-
nal da Mulher, 25.03.2010; Carpe Diem Edições e Pro-
duções, Recife, 2010; A reinvenção do livro, conferência
proferida na UBE-PE, em comemoração do Dia Inter-
nacional do Livro, 23.04.2010, Carpe Diem Edições
e Produções, Recife, 2010; Diálogos culturais no mun-
do pós-moderno, realizado em Estocolmo, março, 2010,
Carpe Diem Edições e Produções, Recife, 2010.
www.imcbr.org.br | www.antoniocampos.com.br

ARIANO Vilar SUASSUNA, (O casamento), nasceu


em Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa/PB
(16.06.1927). Após deixar o Governo da Paraíba, seu
pai, João Suassuna, volta para o Sertão, onde Ariano
passa a infância e parte da adolescência e aprende as
primeiras letras na cidade de Taperoá. Por questões

720
políticas, seu pai foi assassinado e a família, em 1942,
muda-se para o Recife. Matriculado no Ginásio Per-
nambucano, Ariano estuda também música e pintura.
Dois anos depois, no Colégio Oswaldo Cruz, publica
seu primeiro poema. Em 1946, entra na Faculdade de
Direito, onde encontra um grupo de atores, pintores,
romancistas, entre os quais Hermilo Borba Filho, com
quem fundam o Teatro do Estudante de Pernambuco
e anos depois fundam o Teatro Popular do Nordeste.
Diplomado em Filosofia e Direito, advogado, profes-
sor, ensaísta, poeta, teatrólogo, romancista, conferen-
cista, encanta o Brasil com as suas aulas-espetáculos.
Membro da ABL e das Academias Pernambucana e
Paraibana de Letras.
Casado comZélia de Andrade Lima, o casal tem seis
filhos: Joaquim, Maria, Manuel, Isabel, Mariana e
Ana, família ampliada, hoje, com muitos netos.
Escreveu diversas peças teatrais, encenadas, ou trans­
for­madas em filmes ou programas especiais da tele-
visão, além de lhe renderem muitos prêmios e fama
internacional, com destaque para O santo e a porca, A
pena e a lei, O casamento suspeitoso, Farsa da boa preguiça
e a mais divulgada de todas Auto da Compadecida.
Ao assumir o Departamento de Extensão Cultural da
UFPE, convoca os principais compositores do Recife­
para juntos procurarem uma música erudita nor-
destina. Além de músicos, aderiram à convocatória
poetas, escritores, teatrólogos, pintores, gravuristas,
resultando no lança­mento, no Recife, do Movimento
Armorial, em 1970, que mudou o rumo dos ventos na
cultura nordestina. Sem esquecer a contribuição que
oferece nos cargos ocupados em órgãos municipal,
estadual e federal, como atualmente é o secretário de
Cultura do Estado de Pernambuco.
É autor de um dos maiores romances brasileiros, o
Romance d’A pedra do reino, cuja primeira edição data
de 1971, trazendo o prefácio de Rachel de Queiroz e

721
posfácio de Maximiano Campos, onde afirmam, res-
pectivamente:
Rachel: “Picaresco o livro é – ou antes, o elemento picares-
co existe grandemente no romance, ou tratado, ou obra, ou
simplesmente livro – sei lá como é que diga! Porque depois de
pronto A pedra do reino transcende disso tudo, e é romance,
é odisseia, é poema, é epopeia, é sátira, é apocalipse”...
Ao que na mesma obra Maximiano Campos acrescen-
ta: “Isto faz desse livro de Suassuna um romance dentro
do qual existem outros romances, formando um mural onde
estivessem retratados o sertão e o mundo em cores fortes e re-
ais, apesar de todos os sonhos e loucuras de que está repleto.
Quaderna é uma espécie de Quixote que, não se contentando
em viver as suas aventuras, resolvesse também contá-la”.
Não busquei o que se disse de outras edições de A pedra
do reino. Preocupei-me apenas em transcrever a opi-
nião daqueles que apareceram na sua primeira edição,
Rachel e Maximiano, que são taxativos em classificar
a obra de Ariano como épica, no nível da Odisseia, de
Homero; da Divina comédia, de Dante; do Dom Quixote,
de Cervantes; de Guerra e paz, de Tolstói.
De minha parte, registro que estava na fila do lança-
mento para comprar o livro, quando Ariano pediu-me
para sair, porque o meu exemplar já estava oferecido
em sua casa. Saí e, dias depois, fui buscar o prometido,
com esta dedicatória: “Para Cyl Gallindo, que, como poe­
ta, tem direito a ganhar o livro, o abraço cordial de Ariano
Suassuna. Recife, 31.1.72”. Aqui guardo este troféu.
Bibliografia – teatro – Uma mulher vestida de sol, 1947;
Cantam as harpas de Sião ou O desertor de princesa, 1948;
Os homens de barro, 1949; Auto de João da Cruz, 1950;
Torturas de um coração, 1951; O arco desolado, 1952; O
castigo da soberba, 1953; Auto da Compadecida, 1955; O
casamento suspeitoso, 1957; O santo e a porca, 1957; O
homem da vaca e o poder da fortuna, 1958; A pena e a lei,
1959; Farsa da boa preguiça, 1960; A caseira e a Catari-
na, 1962; As conchambranças de Quaderna, 1987.

722
Romance – Romance d’A pedra do reino e o Príncipe do
sangue do vai-e-volta, 1971. O rei degolado, 1976. A his-
tória de amor de Fernando e Isaura e A história de amor de
Romeu e Julieta, 1996. Ainda tem O movimento armorial,
poesia, 1974; Iniciação à estética, teoria literária, 1975,
e Seleta em prosa e verso, antologia, organizada por Sil-
viano Santiago, 1975, e poemas, 1999.
Deixo de mencionar as muitas edições de cada uma
dessas obras, assim como artigos, entrevistas e ensaios
publicados tanto no Brasil como no exterior, onde
Ariano tem obras traduzidas para alemão, francês,
espanhol, inglês, italiano, polonês, etc.
Ariano participa da Pernambuco, terra da poesia, organi-
zada por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/
Escrituras, SP, 2006, e tem verbete em vários dicioná-
rios e enciclopédias, a exemplo da Enciclopédia de Lite-
ratura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, Fundação Biblioteca Na-
cional ABL – Academia Brasileira de Letras, SP, 2001.

ARNALDO José TOBIAS, (“Clarinha”), nasceu em


Bonito/PE e faleceu no Recife/PE (15.11.1939–19
.05.2002). Diplomado em Filosofia pela UFPE. Poeta,
contista, programador visual. É um dos integrantes
da Geração 65 de escritores pernambucanos.
Em 1981, criou e editou até o ano de sua morte, o
jornal alternativo Pró-texto.
Foi membro da UBE-PE e funcionário da Fundaj (au-
tor do seu logotipo); programador visual da Editora
Massangana.
O renomado poeta e crítico César Leal considera o
livro Passaporte, de Tobias, publicado em 2. ed., pela
revista Estudos Universitários, da UFPE, como “uma
das obras mais representativas da Geração 65, e não
apenas isso: ele representa a tendência de toda a poe-
sia brasileira nova, escrita nos últimos dez anos, o que
significa ser um antecipado. As gerações mais novas o
consideram um dos seus melhores representantes”.
723
Participou da Agenda poética do Recife – antologia dos
novíssimos – 1968, coordenada pela Editora de Bra-
sília, hoje Thesaurus, e Contos de Pernambuco, Edito-
ra Massangana, Recife, 1988, organizadas por Cyl
Gallindo; Álbum do Recife, homenagem aos 450 anos
da cidade do Recife, coordenada por Jaci Bezerra e
Sílvia Pontual; Antologia didática, para o 2º. Grau, de
Poetas Pernambucanos; Pernambuco, terra da poesia,
org. por Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/
Escrituras Editora, SP, 2005.
O poeta Jaci Bezerra está reunindo material de e sobre
Tobias, com vistas à publicação de uma obra completa.
Bibliografia: Pomar, poesias, 1979, Passaporte, poe-
sias, 1981; Ditador e outros contos, 1981; Quem sou eu,
infanto-juvenil, com apresentação de Gilberto Freyre,
1981; Nu relato, poesias, 1983; O ditador e outros contos,
contos, 1981; Tenda proibida, poesia, 1987, O gavião e a
coruja, infanto-juvenil, 2002; O ratinho órfão, infanto-
juvenil, 2002; Singular e plural, poesia, 2003.
Arnaldo Tobias tem verbete na Enciclopédia de litera-
tura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

ASCENSO FERREIRA Carneiro Gonçalves, (“O En-


gole Cobra”), nasceu em Palmares/PE e faleceu no
Recife/PE (09.05.1895–05.05.1965). Poeta, articulista
e declamador. Pelo que escreveu e pelo jeito de ser ele
mesmo, Ascenso foi essencialmente poeta, não tinha
preconceitos, não tinha ambições, maldade, vivia o
momento e com tal intensidade que desequilibrava as
pessoas que o cercavam. Do alto dos seus dois metros
de altura e quase 200 quilos, à sombra de um cha-
pelão, dominou emissoras de rádios, palcos e salões
residenciais, especialmente no Rio e em São Paulo,
declamando seus poemas e contando “causos” do co-
tidiano nordestino. Sob os efeitos dessas suas apre-
sentações, escreveu o poeta Manuel Bandeira: “Pois

724
quem não ouviu Ascenso dizer, contar, declamar, re-
zar, cuspir, dançar, arrotar os seus poemas, não pode
fazer ideia das virtudes verbais neles contidas, do mo-
vimento lírico que lhes imprime o autor”. Pelo fato de
também sermos amigos, Bandeira fustigava-me por
não conhecer Stelinha e Ascenso, embora vivesse a
declamar os seus versos em noites literomusicais pelo
Ministério da Educação e Cultura, Automóvel Clube,
Pen Clube do Brasil e outros lugares do Rio de Ja-
neiro. Redimi-me do pecado ao visitar o Recife, em
1964, e ir à residência do casal, onde ganhei autogra-
fados o livro Catimbó e outros poemas, Liv. José Olympio
Editora, 1963, e o disco duplo: Ascenso Ferreira – 64
poemas escolhidos e 3 histórias populares, oferecidos
com “carinhosa homenagem do poeta do povo”. As-
censo colaborou com jornais e revistas do Brasil e foi
líder inconteste nos meios literários do Recife, como
registra Souza Barros, no seu A década de 20, em Per-
nambuco, 1972, ensaio enfocando especialmente o
Café Lafayete.
De volta para o Recife, os laços de amizade amplia-
ram e perdurou até os últimos instantes do poeta e
de dona Stela Griz. Dias depois, escrevi o poema “As-
censão de Ascenso”, publicado na revista Letras, da
FNFi, Rio, 1965, como apêndice de um Ensaio sobre
Ascenso Ferreira do professor Clécio Quesado.
Muito há o que se dizer da trajetória de vida de As-
censo Ferreira, de sua original poesia, que mereceu
estudos de expoentes como Manuel Bandeira, Sérgio
Milliet, Mário de Andrade, Luís da Câmara Cascudo,
Roger Bastide, Luiz Luna, Souza Barros, João Ribeiro,
Tristão de Athayde e muitos outros e ainda hoje des-
perta críticos e estudiosos da Literatura Brasileira.
Aqui devo acrescentar o empenho de Jessiva Sabino
e Juareiz Correya, no sentido de conservar, promover
e divulgar a obra do autor de Cana caiana, em que o
poeta prefere cantar o gênio da raça, não o de Rui

725
Barbosa, mas aquela mulatinha chocolate, fazendo
passo do siricongado, na terça-feira de carnaval.
Uma das ternas referências do poeta era quando fa-
lava da filha Maria Luísa, nascida em 1948, fruto do
relacionamento com Maria de Lourdes, a quem co-
nheci anos depois.
Bibliografia: Catimbó, 1918; Cana caiana, 1939; Poesias,
1951; Poemas, 1922/1953; Xenhenhém, 1953; Catimbó e
outros poemas, 1963; Eu voltarei ao sol da primavera, edi-
ção póstuma, org. Jessiva Sabino e Juareiz Correya,
1985; Maracatu, presépio e pastoris, ensaios, 1986; Bum-
ba meu boi – ensaios folclóricos, 1986.
Ascenso Ferreira tem verbete na Enciclopédia de literatu-
ra brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sou-
za, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

AUGUSTO José de Souza FERRAZ, (“Bestas pie-


dosas”), nasceu em Vitória de Santo Antão/PE
(07.01.1953). Diplomado em Direito, contista, elogia-
do por Clarice Lispector e Hermilo Borba Filho.
Bibliografia: O branco fatídico, Editora Livros do Mun-
do Inteiro, RJ, 1974; Lição para viver, 1981; Memória
dos condenados, 1983, todos de contos.
Augusto Ferraz tem verbete na Enciclopédia de litera-
tura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

BARBOSA LIMA SOBRINHO, Alexandre José, (“A su-


premacia feminina”), nasceu no Recife/PE e faleceu no
Rio de Janeiro, RJ (22.01.1897–16.06.2000). Diploma-
do pela Faculdade de Direito do Recife, 1917, promo-
tor, advogado, jornalista emérito, historiador, político,
contista. A partir de 1924, passou a residir no Rio de
Janeiro, onde entrou para a redação do Jornal do Brasil
e aí permaneceu até os últimos dias de sua vida. Foi
deputado federal, por várias legislaturas, e governador
de Pernambuco de 1948 a 1951; professor de Ciências

726
Sociais e Econômicas, RJ; presidente da Associação
Brasileira de Imprensa; sócio benemérito do Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil; do Instituto Históri-
co Arqueológico e Geográfico de PE; Doutor Honoris
Causa pela UPE; membro do Pen Clube; da Academia
de Ciências de Lisboa, Portugal; da Fundação Getúlio
Vargas e da ABL, 1937, da qual foi secretário-geral, di-
retor da Revista da Biblioteca e presidente.
Esta é uma biografia difícil de ser resumida pelo que
Barbosa Lima foi como homem e como cidadão nos
seus 102 anos de existência ativa e lúcida. Barbosa
Lima Sobrinho é um nome que enobrece Pernambu-
co e engrandece a Cultura Brasileira.
Bibliografia: A árvore do bem e do mal, ensaios, confe-
rências e contos, Gráfica do Jornal do Brasil, 1926.
Desse livro, que se encontra reservado em espaço pró-
prio na Biblioteca do Estado, extraímos o conto parti-
cipante desta Antologia. Pernambuco e o rio São Francis-
co, hist., 1929; A Bahia e o rio São Francisco, hist., 1931;
A ação da imprensa na primeira constituinte, hist., 1934;
O vendedor de discursos, ensaio, 1935; O centenário da
chegada de Nassau e o sentido das comemorações pernam-
bucanas, hist., 1936; Recepção na ABL, discurso, 1938;
Recepção de Carneiro Leão na Academia, discurso, 1946;
O devassamento do Piauí, hist., 1946; A verdade sobre a
Revolução de Outubro, hist., 1946; A Revolução Praieira,
hist., 1949; A comarca do rio São Francisco, hist., 1950;
A questão ortográfica e os compromissos do Brasil, filologia,
1953; Artur Jaceguai, hist., 1955; A língua portuguesa e
a unidade do Brasil, filologia, 1958; Os precursores do
conto no Brasil, introdução da antologia, 1960; Desde
quando somos nacionalistas, hist., 1963; Alexandre José
Barbosa Lima, hist., 1963; Capistrano de Abreu, s.d.; Pre-
sença de Alberto Torres, hist., 1968; Oliveira Lima, obras,
1971; Pernambuco: da Independência à Confederação
do Equador, hist., 1979. Além de muitas outras obras
sobre Política, Economia, Administração, Direito,

727
conferências, ensaios, discursos e combativos artigos,
que escreveu até as vésperas de sua morte.
Barbosa Lima Sobrinho tem verbete na Enciclopédia de
literatura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

BARTYRA SOARES da Silva, Maria, (“Estradas do


mar”), nasceu em Catende/PE (07.06.1949). Contis-
ta e poeta. Fez seu primeiro poema aos seis anos de
idade, publicado no suplemento infantil do Diario de
Pernambuco. Estreou em livro em 1976 com Enigma,
poesia concreta, linha que abandonou no livro se-
guinte, optando por uma orientação marcadamente
intimista, confessional e telúrica. Participou de 18
antologias, entre elas Poésie du Brésil, org. Lourdes
Sarmento, editada em Paris, França. Seus poemas
são publicados frequentemente em revistas e jornais
da imprensa recifense, e também da imprensa das
regiões­ Centro-Oeste e Sudeste do país; seu poema
“Provavelmente Máquina” foi publicado no Japão.
Nos anos subsequentes publicou mais cinco livros,
quatro de poesias e um de contos, este último uma
edição coletiva com mais três contistas.
Em 1980, foi uma das ganhadoras no Concurso de
Contos do Diario de Pernambuco com o trabalho “Azul/
Vermelho/Verde”. Em 1983, Prêmio Edson Régis de
Poe­sia do Pen Club do Brasil-PE. Em 1989, foi igual-
mente premiada no III Concurso Carlos Pena Filho,
promovido pela Nordestal Editora/Bar Savoy. Em
1991, conquistou o Prêmio Ladjane Bandeira de Poesia
(Diario de Pernambuco). Em 1993, Menção Honrosa com
o livro Estrela em trânsito, Concurso Literário do Gover-
no do Estado de Pernambuco. Ainda com Estrela em
trânsito, mereceu Menção Especial no Concurso, para
obras publicadas, Carlos Drummond de Andrade, da
UBE-RJ. Em 1996, foi premiada pela ULAC, em Lima,
Peru, com o conto “Los Hilos Vivos” e, em 1998, com

728
o trabalho “Estradas do Mar”, conquistou o 1º lugar
no III Concurso de Contos Um Livro é um Amigo, em
Coimbra, Portugal. Com o livro Arquitetura da luz, foi
uma das premiadas em 2001 no concurso Prêmios Li-
terários Cidade do Recife, promovido pela FCCR. Esta
obra foi publicada em 2004, pela Editora Baraúna, PE.
Bartyra Soares pertence à Alane e à UBE-PE.
Bibliografia: Enigma, poesia, 1976; Sombras consolida-
das, poesias, 1980; O primeiro quadrante, poesia, 1985;
No rosto do tempo, poesia, 1987; Da permanência e da
temporalidade, um tempo de Catende, ensaio, 1987; Vere-
dictos, poesia, 1995; Estrela em trânsito, poesia, 1997;
Arquitetura da luz, poesia, 2004. Oratório da paixão,
poema dramático escrito em parceria com Maria do
Carmo Barreto Campello de Melo, foi encenado di-
versas vezes na capital e no interior do Estado; Silên-
cio das velas vivas, contos, Editora Novo Horizonte,
Recife, 2008.

BEATRIZ Lopes BRENNER, (“O sono”), nasceu em


Maceió/AL (27.08.1955). Diplomada em Arquitetura
pela UFPE e em Terapia Transpessoal pela Escola Di-
nâmica Energética do Psiquismo, Salvador/BA.
Contista participa da Oficina de Criação Literária de
Raimundo Carrero, desde 2004. Desde então, seus
trabalhos vêm sendo incluídos nas Antologias de con-
tos do grupo, Contos de oficina, editados pela Edições
Bagaço. Em 2005, o conto Reprise ganhou o terceiro
lugar no Concurso Literário promovido pela Festa
Literária de Porto de Galinhas – Fliporto e faz parte
dos Anais da Fliporto-2005; em 2005, o conto Além do
palco foi selecionado entre os dez primeiros lugares
no Concurso Literário de Cordeiro, RJ; em 2006 o
Clube de Engenharia, em parceria com a UBE-PE,
outorgou a Menção Joaquim Cardozo, pela sua par-
ticipação nesse Concurso Literário; em 2006, Men-
ção Honrosa do Concurso Literário Josepha Máximo

729
Ferreira de Poesia pelo poema Flamboiã do Recife; em
2007 foi concedido ao livro infantil-juvenil Voo da fe-
licidade o Prêmio Elita Ferreira de Literatura Infantil
da Academia Pernambucana de Letras, editado pela
Edições Bagaço; em 2010, organizou o livro Antologia
poética do poeta Geraldino Brasil ao qual foi concedi-
do o prêmio do Sistema de Incentivo à Cultura (SIC)
da Prefeitura do Recife, que também recebeu edições
em braille (produzido pela Biblioteca Pública do Es-
tado – PE) e livro falado (através do Programa VIVO
Voluntário – Instituto VIVO).
Outro prêmio de destaque que coube a Beatriz é ter
nascido filha do poeta e pensador Geraldino Brasil.
Isso lhe garante um princípio de poesia, de literatu-
ra, vindo do berço.
Em 2010, o livro Voo da felicidade foi adotado pela Rede
Municipal do Recife e faz parte do acervo – Pacote Ma-
nuel Bandeira, 2010 – que inclui 58 títulos de litera-
tura e didáticos. Essa iniciativa faz parte do Programa
Manuel Bandeira de Formação de Leitores.

BENITO ARAÚJO, (“O rio”), nasceu em Viçosa/AL


(14.05.1930). Aos quinze anos, em Garanhuns/PE,
onde estudava, escreveu os primeiros sonetos. A partir
de 1950, publicou trabalhos na Folha da Manhã, Diario
de Pernambuco, Jornal do Commercio, Correio do Povo, Diá­
rio da Noite e Revista do Nordeste, PE; Jornal de Alagoas,
AL; Diário de Notícias, Diário Carioca, Semanário, Jornal
de Letras, revistas Cigarra Magazine (um conto premia-
do) e Cláudia; TVE e Rede Manchete, RJ, e jornal O
Estado de S. Paulo, SP. No Correio do Povo, CE, na página
literária que dirigiu com Augusto Boudoux, manteve
uma seleção de contos e um rodapé de crítica.
Com Osman Lins, seu compadre e amigo, represen-
tou Pernambuco no I Congresso Brasileiro de Contis-
tas em São Paulo. É membro da UBE-PE.
Estudou contabilidade, informática, piano, prestidigi­

730
tação e astronomia. Disputou e conquistou taças em
torneios de xadrez. Elaborou esquemas matemáticos
para ganhar na Loteria Esportiva e fez os 13 pontos
em cerca de sessenta (60) apostas. Com isso, tornou-
se empresário e se distanciou da Literatura por mais
de 25 anos. Mesmo assim, escreveu, organizou e pu-
blicou livros, exceto Futuros congelados e A semente, pela
sua editora ED-Micro. Por essa mesma editora, Beni-
to já organizou e publicou oito antologias de poesia
e conto. A fortuna crítica de Benito Araújo envolve
expressivos nomes da Literatura, como Osman Lins,
Mário Hélio, Dirceu Rabelo e outros.
Bibliografia: Futuros congelados, rom., 1956, depoi-
mentos de Osman Lins, Olímpio Bonald Neto e
outros; A semente, fábula, 1982, 2000, 2002 e 2003.
Prefácio de Flávio Chaves e 36 depoimentos de escri-
tores, artistas e religiosos; Via-Láctea, poemas, 1995,
Menção Honrosa em concurso nacional; em 2001,
com prefácio de Dirceu Rabelo; 7 Temas para estórias
de felinos e fantasmas, 1995; Do Coliseu à Torre Eiffel,
uma leve maratona, 1995; Beco da fome, fábula. Parti-
cipou do 18º Salão de Livros em Paris, 1998. Prefácios
de Edmir Domingues, Mário Hélio e Vital Corrêa de
Araújo, em 2005; Fábula marinha, em versos, 1999;
Mintaka, ficção juvenil, 2001; Larissa e a gata Mimosa,
2002; O turfista, rom., 2003, com prefácio de Mário
Márcio. Prêmio Vânia Souto Carvalho, da Academia
Pernambucana de Letras; Retalhos, poesia e prosa,
2004. Publicou ainda a Trilogia do Beco da Fome, 2006,
e O mundo além do quintal, fábula, em 2009, ambos
pela ED-Micro, Recife.

CARLOS NEWTON de Souza Lima JÚNIOR, (“Re-


gresso”), nasceu no Recife/PE (07.09.1966). Diplo-
mado em Arquitetura e em História, com mestrado e
doutorado em Literatura. Professor da UFPE, poeta,
ficcionista, ensaísta e crítico literário. Sua poesia já

731
foi publicada em antologias no Brasil, em Portugal
e na Espanha (Galícia). Na condição de ensaísta, é
considerado um dos maiores conhecedores da obra
do escritor Ariano Suassuna. Com um detalhe: C. N.
na mesma linha do Mestre, já revela um profundo co-
nhecimento. Seu conto é um exemplo, mergulhando
na Odisseia traz descendentes de Zeus para abrilhan-
tarem a sua narrativa, ao embalo do canto do rouxi-
nol, nesta segunda edição.
Seu trabalho no campo da crítica inclui a seleção e
organização dos poemas de Ariano Suassuna, para a
editora universitária da UFPE, poemas, 1999; dois
ensaios do mesmo autor, para a editora José Olym-
pio, Almanaque armorial, Rio, 2008; da poesia reunida
de Paulo de Tarso Correia de Melo, para a editora
universitária da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, Talhe rupestre, UFRN, 2008; e a organização
do álbum iconográfico Portal da memória, 2005, publi-
cado pelo Senado Federal por ocasião do cinquente-
nário da UFRN.
Bibliografia: No campo do ensaio, publicou, entre
outros, A ilha Baratária e a ilha Brasil, UFRN, Natal,
1996; O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de
Ariano Suassuna, UFPE, Recife, 1999; O quinto nai-
pe do baralho, Artelivro, Recife, 2002. No campo da
prosa de ficção, publicou Honorato, o bom-deveras, Ba-
gaço, Recife, 1998; e Vida de Quaderna e Simão, Arte-
livro, UFPE, Recife, 2003). Estreou na poesia com O
homem só e outros poemas, edição do autor, Natal, 1993;
seguindo-se: Canudos: poema dos quinhentos, UFC,
1999; Nóstos, Bagaço, Recife, 2002; Poeta em Londres,
Bagaço Recife, 2005; De mãos dadas aos caboclos, Baga-
ço, Recife, 2008; e O cangaço na poesia brasileira – reu-
nindo a produção de poetas eruditos sobre o tema,
Escrituras, São Paulo, 2009.

732
CARLOS Severiano CAVALCANTI, (“O teco-teco”),
nasceu em Campina Grande/PB (31.07.1936). Ra-
dicado no Recife há 45 anos. Bacharel em Relações
Públicas e Comunicação Social pela Escola Superior
de Relações Públicas de Pernambuco, Esurp. Poeta,
declamador, palestrante, contista.
Integra instituições culturais como: Instituto Históri-
co de Olinda; Sociedade dos Poetas Vivos de Olinda;
Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda (pre-
sidente); Academia Olindense de Letras; Academia
Recifense de Letras; Alane, Sobrames, União Brasi-
leira de Trovadores (UBT) e UBE-PE.
Participa das seguintes coletâneas de poesias e con-
tos: Poetas vivos de Olinda; Letras e Artes da Alane.
Colabora com as revistas: Oficina de Letras da Sobra-
mes e Revista Letras e Artes, da Alane, e tem poemas
publicados em Francachela, Revista Internacional de
Literatura e Arte, dirigida por José E. Kameniecki,
Buenos Aires, Argentina.
Bibliografia: Caminhos da vida, Edições Bagaço, Recife,
1997; Prêmio “De Lyra e César”, de poesias, da Acade-
mia Pernambucana de Letras, 2000; Reflexos de terra e
sol, CEPE, Recife, 2001; Sertanidade, Gráfica Fac-Form,
Recife, 2004, Menção Honrosa da Academia Pernam-
bucana de Letras, ano 2006, e Tema de Mestrado em
Língua Portuguesa: O popular e o erudito na poesia bra-
sileira na UFPE; nome de mesa na Festa Literária de
Paraty, RJ, 2007. Sertanidade foi também editado em
linguagem Braille pelo Instituto São Manoel para es-
tudantes invisuais da cidade do Porto, Portugal, 2010.
Seus poemas foram gravados em DVD, com ilustra-
ções elaboradas por estudantes das escolas Rodrigues
de Freitas, Porto, e Diogo Bernardes de Ponta da Bar-
ca, ambas ao Norte de Portugal.
Técnicas de metrificação poética, Recife, 2007, em par-
ceria com Salete Rêgo Barros e Terezinha Acioli; Na
ponta da língua, guia do escritor, Novo Estilo, Recife,

733
2008; A gênese do tempo, poesias – Menção Honrosa do
Prêmio Edmir Domingues, da APL; Histórias sertane-
jas, contos, Edições Edificantes, Recife, 2009; Tresafio,
motes e glosas, Editoração Eletrônica e Impressão,
Recife, em parceria com Paulo Camelo e Rosa Lia Di-
nelli; Trovalizando a redondilha, trovas; e Retrospectivas,
crônicas, inéditos. Carlos, Telma Brilhante e Lourdes
Nicácio e Silva organizaram a antologia Paisagem da
memória, com trabalhos de 73 autores, lançada re-
centemente no Recife pela Novo Horizonte e, como
afirma a jornalista Raphaela Nicácio, “é livro que traz
inquietantes e brandas lembranças”.

CLARICE LISPECTOR, (“Felicidade clandestina”),


nasceu em Tchetchelnik/Ucrânia, faleceu no Rio de
Janeiro/RJ (10.12.1925–09.12.1977). Romancista,
contista, cronista, jornalista. Seus pais, exilados da
Rússia, chegaram ao Recife com Clarice recém-nas-
cida. Aqui ela viveu a infância, fez os cursos primário
e secundário, e rabiscou os seus primeiros trabalhos
literários. Clarice Lispector tinha o coração com a
geo­grafia do Recife, suas praças e ruas, as casas e seus
quintais, as pontes, sorveterias, suas gentes com seus
hábitos e costumes e suas festas, especialmente os
carnavais. A alma pernambucana ponteia toda a obra
dessa artista da palavra.
A fortuna crítica de Clarice é imensa, mas a 19.07.2006,
o jornalista Schneider Carpeggiani fez uma matéria
com a professora Maria Aparecida Ribeiro, da Uni-
versidade de Coimbra, Portugal, que ressalta a im-
portância dos “quintais da infância” da autora de
A maçã no escuro, em que afirma taxativamente: “a
aprendizagem que Clarice teve no Recife continuou
por toda a sua obra futura”. E completa mais adian-
te: “Como a própria (Clarice) escreveu numa crônica
que está em A descoberta do mundo: só não nasceu no
Recife por dois meses. Mas, na realidade, digo eu, ela

734
nasceu para o mundo no Recife. No Recife ela perdeu
o olhar da inocência.”
Para mim, e creio que também para psicólogos e psica-
nalistas, o homem psicológico forma-se até os 10 anos
de idade. É exatamente por isso que são considerados
pernambucanos escritores como Clarice, Graciliano
Ramos, Cláudio Aguiar, Ariano Suassuna e muitos ou-
tros de formação intelectual pernambucana.
Aos 19 anos, casa-se com o diplomata Mauri Gurgel
Valente, e passa a residir no exterior por muitos anos,
até voltar para o Brasil e se fixar no Rio de Janeiro.
A escritora Clarice Lispector, que viveu sua infância
no Recife, e que tem admiradores em todo o mun-
do, vai ganhar uma fotobiografia. A professora Nádia
Gotiblib, da USP, prepara-se para o lançamento. A
publicação reúne 600 imagens colhidas durante anos
de trabalho. Alguns cliques serão da escultura que
a homenageia na Praça Maciel Pinheiro, no Recife,
feitos pelo jornalista e fotógrafo Marcus Prado, a pe-
dido da autora. Clarice é a grande homenageada na
Fliporto-2010.
Bibliografia: Perto do coração selvagem, rom., 1944; O
lustre, rom., 1946; A cidade sitiada, rom., 1949; Alguns
contos, 1953; Laços de família, contos, 1960; A maçã no
escuro, rom., 1961; A legião estrangeira, contos e crôni-
cas, 1964; A paixão segundo G. H., rom., 1964; A mulher
que matou os peixes, 1968; Uma aprendizagem ou O livro
dos prazeres, rom., 1969; Felicidade clandestina, con-
tos, 1971; A imitação da rosa, contos, 1973; Água viva,
prosa, 1973; Lazos de família, contos, Ed. Argentina,
1973; A via-crúcis do corpo, contos, 1974; Onde estives-
te de noite?, contos, 1974; De corpo inteiro, entrevista,
1975; Visão do esplendor, crônicas, 1975; Seleta, con-
tos, rom., 1975; Contos escolhidos, 1976; A hora da estre-
la, rom., 1977; Para não esquecer, crônicas póstumas,
1978; Um sopro de vida, prosa póstuma, 1978; A bela e
a fera, contos póstumos, 1979; A descoberta do mundo,

735
crônicas, 1984. Clarice participa de centenas de an-
tologias e motivou milhares de críticos e estudiosos
a escreverem sobre sua obra, no Brasil e no exterior,
sempre apontada como uma das altas expressões da
Literatura Brasileira.
Clarice Lispector tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

CLÁUDIO AGUIAR, Luiz, (“O comedor de sonhos”),


nasceu em Poranga/CE (03.10.1944). Radicado no
Recife desde 1962. Contista, romancista, teatrólo-
go, musicista. Diplomado pela Faculdade de Direito
do Recife e doutor pela Universidade de Salamanca
(Espanha). Ganhou vários prêmios literários nacio-
nais e internacionais, inclusive o prêmio internacional
pelo conjunto de sua obra, concedido pela Cátedra
de Poética Fray Luis de León da Universidade Pon-
tifícia de Salamanca, Espanha, em 1994. Traduzido
ao espanhol, francês e russo, teve seu livro Caldeirão
publicado em 2005 pela prestigiosa editora francesa
L’Harmattan, na coleção A outra América, sob o título
Complainte nocturne. Cláudio pertence à APL, à Alane,
à UBE-PE, ao Pen Clube do Brasil e ao Instituto Histó-
rico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Rio de Janeiro.
Bibliografia: Caldeirão, 1982. Prêmios: José Olympio
de Romance, de 1981, e Nacional de Literatura do
MEC/INL, de 1982, está na quarta edição 2004; A vol-
ta de Emanuel, Fundarpe, 1989. Prêmio Osman Lins
de Romance, GPE, 1988; Lampião e os meninos, rom., 3.
ed., 1990; Os anjos vingadores, rom. Menção Especial,
Prêmio Fernando Chinaglia e UBE-RJ, 1981, 1994;
A corte celestial, rom., Prêmio Lucilo Varejão, FCCR,
PMR, 1996; Somba, o menino que não devia chorar, nov.,
2000; Exercício para o salto, contos, 1972; Flor destruída,
drama, 1976; Suplício de frei Caneca, oratório dramáti-
co, 2. ed., 1981. Menção Honrosa no Concurso Nacio-

736
nal de Dramaturgia do Governo de Goiás, 1977, 3ª ed.
2002; Antes que a guerra acabe, drama, 1985. Prêmio de
Teatro Valdemar de Oliveira, promovido pelo Gov. de
PE, 1982; Brincantes do Belo Monte, auto. Prêmio de
Teatro Hermilo Borba Filho, 1981, promovido pela
UFPE e Funarte; Os espanhóis no Brasil, ensaio, 1991;
Literatura e emigração, ensaio, com José Rodrigues de
Paiva, 2001; Teatro de Franklin Távora, ensaio, Coleção
Dramaturgos do Brasil, vol. VI, org. Cláudio Aguiar,
2003; Franklin Távora e o seu tempo, biog., Coleção Afrâ-
nio Peixoto, vol. 72, da ABL, 2005; O comedor de sonhos,
narrativas, 2007; Medidas & circunstâncias – Cervantes,
Padre Vieira, Unamuno, Euclides e outros, 2008; O monó-
culo & o calidoscópio – Gilberto Freyre, escritor, 2010.
Obras publicadas no exterior: Viento del Nordeste: Home-
naje Internacional al Escritor Brasileño Cláudio Aguiar.
Cátedra de Poética Fray Luis de León, Universidade
Pontifícia de Salamanca, Espanha, 1995; Complainte
nocturne, L’Harmattan, Paris, 2005. (Edição francesa de
Caldeirão, traduzido por Gaby Kirsch e introdução de
Sylvie Debs); A volta de Emanuel, rom., Editora Vagrius,
Moscou, 2006. (Traduzido por Natália Konstantinova).
Cláudio tem verbete na Enciclopédia de literatura bra-
sileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2.
ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

CLOVES MARQUES da Silva, (“A dama do paço”),


nasceu em Delmiro Gouveia/AL (10.09.1944). Di-
plomado em Engenharia, fotógrafo, poeta, escritor.
Reside no Recife desde 1966. Exerce liderança nos
meios intelectuais pernambucanos. Membro (secretá-
rio-geral e coordenador da revista Letras e Artes) da
Academia de Letras e Artes do Nordeste; da Acade-
mia Recifense de Letras e da UBE-PE.
É detentor dos seguintes prêmios e comenda: 1º lugar
em concurso fotográfico para funcionários CHESF,
em 1992; Comenda Delmiro Gouveia: concedida pela

737
Prefeitura da Cidade de Delmiro Gouveia, AL, 1996,
nos 80 anos de falecimento de Delmiro Gouveia;
Menção Honrosa no Concurso de Causos CHESF 50
Anos, 1998; Menção Honrosa do Prêmio Eugênio
Coimbra Júnior, de Poesia, no Concurso Literário
Cidade do Recife, Conselho Municipal de Cultura,
2005; Menção Honrosa, Prêmio Edmir Domingues,
de Poesia, no Concurso Literário da APL, 2005; 1º
lugar: no 3º Concurso de Contos Luís Jardim, 2005,
Biblioteca Popular de Casa Amarela, com o conto “A
dama do paço”, que faz parte desta Coletânea; um
dos 10 vencedores do Concurso Literário Menção
Joaquim Cardozo, 2005 do Clube de Engenharia de
Pernambuco, 2005; 3º Lugar no Concurso Literário
Josepha Máximo Ferreira, 2005, UBE-PE.
Bibliografia: Pra não morrer de amor, poesia, 1990; É
eterno, mas é preciso, poesia, 1992; Crônicas do encontro,
1994; Umareru, instantâneos de Natal, haicais, 2001;
Haicai ao Recife, fotos e haicais, 2002; Máscara em
haicai­, pesquisa, fotos e haicais, 2005; 365 Haicais de
sol e chuva, poesia, 2006; Prêmio Eugênio Coimbra
Júnior e Prêmio Edmir Domingues, 2005; no prelo:
100 Tancas de amor amado, poesia, 2006.

CRISTOVAM Ricardo Cavalcanti BUARQUE, (“Os


dois corações”), nasceu no Recife/PE (20.02.1944).
Diplomado em Engenharia Mecânica pela UFPE,
1966; doutor em Economia pela Sorbonne, Paris, em
1973. Professor, economista, político, conferencista,
romancista, contista. Entre 1973 e 1979, trabalhou no
BIRD, em Washington, e desde 1979 é professor da
Universidade de Brasília, da qual foi reitor de 1985
a 1989. Entre 1995 e 1998 governou o Distrito Fe-
deral e em 2002 elegeu-se senador pelo PT com a
maior votação dada a um político no Distrito Federal.
Filiou-se ao PDT em setembro de 2005. É membro do
Instituto de Educação da Unesco.

738
Durante o mandato de governador, ficou conhecido
como administrador que cumpriu seu compromisso
com a inclusão social, transformando em lei o que es-
creveu nos 20 livros que publicou. Entre as diversas
soluções criativas para combater a pobreza imaginada
pelo professor Cristovam e implantadas pelo governa-
dor Cristovam, a mais conhecida no Brasil e no exte-
rior é o Bolsa-Escola, responsável por uma revolução
na educação e na luta pela erradicação da pobreza.
De 1999 a 2002, Cristovam Buarque dividiu seu tempo
entre a UnB, seus escritos e a organização não governa-
mental Missão Criança, criada por ele para promover
o Bolsa-Escola, ideia que mantém mais de mil famílias
com bolsa escola financiada com recursos privados.
Assumiu o Ministério da Educação em janeiro de 2003
e permaneceu no cargo até janeiro de 2004. Nos treze
meses em que atuou como ministro, disseminou a no-
ção de que a educação não é mero serviço ou direito
assistencial, e sim a única maneira de construir um
país moderno, solidário e eficiente.
Ao longo de sua carreira, Cristovam publicou mais de
20 livros e colaborou por mais de 20 anos com jor-
nais e revistas de larga circulação. Também trabalhou
como consultor de diversos organismos nacionais e
internacionais do sistema das Nações Unidas. Foi
presidente do Conselho da Universidade para a Paz
das Nações Unidas, membro do Conselho Presiden-
cial que elaborou a proposta de Constituição (Cons-
tituinte, 1987) e integrante da Comissão Presidencial
para a Alimentação, dirigida por Betinho. Em Bra-
sília, Cristovam sempre esteve presente e prestigiou
a Casa de Pernambuco, como amigo, aconselhando,
dando sugestões.
Ao receber exemplar da primeira edição deste Panorâ-
mica..., o senador Cristovam Buarque honrou os seus
organizadores com as seguintes palavras: “O livro ficou
ótimo. Não sei se o meu conto está à altura. Sugiro um

739
lançamento em Brasília, com frevo e tudo, para a co-
munidade recifense. Abraços, C. B. Estendendo-se um
pouco mais, declarou: “Gostei do seu conto. É uma obra de
ficção e um ensaio sobre o casamento e a vida (morte)”.
Bibliografia: Sinandá, rom., 1981; Ressurreição do ge-
neral Sanchez, Astrícia, rom., Editora Civilização Bra-
sileira, 1984; A eleição do ditador: uma conspiração
perpétua, rom., Paz e Terra, 1988; A segunda abolição,
Paz e Terra, 1999; A fronteira do futuro: o projeto da
UnB, 1989; A desordem do progresso, 1990; O colapso da
modernidade, 1991; A revolução na esquerda e invenção
do Brasil, 1992; Os deuses subterrâneos, 1994; Admirável
mundo atual, Geração Editorial, 2001; Os tigres assusta-
dos: uma viagem pelas fronteiras dos séculos, viagem,
1999; Um livro de perguntas, Garamond, 2004. Várias
obras de Economia e Política. Cristovam Buarque
conquistou o Prêmio Jabuti de 1995 e tem verbete
na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Cou-
tinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora,
FBN/ABL, SP, 2001.

CYL GALLINDO (Cícero Amorim G.), (“De como


descobri que não existo”), nasceu em Buíque/PE
(28.05.1935). Diplomado em Ciências Sociais pela
UFPE, escritor, poeta, jornalista, conferencista.
Trabalhou na Assessoria de Comunicação do Senado
Federal e de outras repartições públicas, foi repórter,
redator, editor e colunista de jornais de Pernambuco,
Brasília, e Mato Grosso, além de correspondente do
Jornal de Letras, RJ. Produziu e apresentou o progra-
ma Síntese na TV Universitária, Recife, e colaborou
com o jornal Gazeta do Povo, Paraná.
É membro da APL e da Academia de Letras do Brasil,
do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Fede-
ral, da ANE, Brasília, DF, e da UBE-P. Foi membro
(fundador) do Conselho Municipal de Cultura do
Recife­e foi secretário-geral da Alane.

740
Gallindo privou e priva da amizade de grandes no-
mes da Literatura Brasileira, como Manuel Bandeira,
Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes,
Gilberto Freyre, Mauro Mota, Nélida Piñon, Anderson
Braga Horta, José Santiago Naud e muitos outros.
Atualmente representa no Brasil a Francachela, Re-
vista Internacional de Literatura e Arte, editada na
Argentina, e é diretor da Coleção Integração Cultural
Latino-Americana (CICLA) destinada a tradução e
publicação de obra de autores brasileiros contempo-
râneos, na Argentina, e faz parte do Conselho Edito-
rial da revista Encontro, do GPL, PE.
Proferiu conferências em mais de uma dezena de uni-
versidades de norte a sul do país, e instituições outras
como a Casa de Cultura Euclides da Cunha, São José
do Rio Pardo, SP, durante dez anos, da qual recebeu
placa comemorativa pelos 100 anos de publicação de
Os sertões; e nos I, II, III Congresso Nacional de Es-
critores em Pernambuco. Foi agraciado com inúmeras
placas de entidades culturais. A 18.11.2004 recebeu o
título de Cidadão do Recife e a Medalha José Mariano,
concedidos pela Câmara Municipal do Recife, sob pro-
posta do Vereador Paulo Dantas.
Bibliografia: Agenda poética do Recife: antologia dos no-
víssimos, prefácio de Joaquim Cardozo, coordenada
pela Editora de Brasília, 1968; A conservação do grito-
gesto, poesia, Imprensa Universitária, UFPE, 1971, Prê-
mio de Poesias da APL; As galinhas do coronel, contos,
Recife, 1974; Prêmio Revista Equipe, Recife; O urba-
nismo na literatura: contistas de Pernambuco, antologia,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976;
Um morto coberto de razão, contos, Livraria Francisco
Alves Editora, Rio de Janeiro, 1985. Prêmio de Fic-
ção da APL; Contos de Pernambuco, antologia, org. Cyl
Gallindo, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988; Livro
para minha idade/O menino e o peixe, infanto-juvenil, em
parceria com sua filha Guajassy – Casa de Pernambuco

741
– Centro Gráfico do Senado Federal, Brasília, 1989;
Quanto pesa a alma de um homem – Quanto pesa a alma de
uma mulher, contos, Edições Bagaço, Recife, 1994; Os
movimentos, poesia, Fundarpe, Recife, 1996; 20 Poemas
escolhidos – Por Waldemar Lopes, Ed. Livros de Ami-
gos, Recife, 1999; Cadeira de Dinah, Discurso de posse
na Academia de Letras do Brasil, Editora Comunicar-
te, Recife, 1999; Em defesa da língua portuguesa, ensaio,
Edição da ARL, 2000; Milagre no jardim da casa-grande,
conto, B & B Projetos Culturais, Recife, 2003; De como
descobri que não existo, contos, CEPE, 2007, traduzido
para o espanhol por Jorge Ariel Madrazo, Editorial
Francachela, Buenos Aires, 2007.
Gallindo escreveu prefácios e apresentações de deze-
nas de obras de outros escritores, entre as quais Ca-
nudos e outros temas, de Euclides da Cunha, 2ª 3ª e
4ª edições do Senado Federal, Brasília, 1992, 2002,
2003, em comemoração aos 90 e aos 100 anos de
publicação de Os sertões. Escreveu ainda artigos, re-
portagens, críticas, crônicas, entrevistas, poesias e
contos publicados em antologias, jornais e revistas
de diversos Estados do Brasil, e no exterior, onde foi
traduzido, respectivamente, para espanhol, alemão e
francês, em Francachela, Argentina; Xicóatl, Áustria;
Rampa, Colômbia; Poésie du Brésil, org. Lourdes Sar-
mento, França; e Prismal, org. Regina Igel, University
of Maryland, Estados Unidos.
Gallindo participa da coletânea Pernambuco, terra
da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem verbete na
Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Cou-
tinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora,
FBN/ABL, SP, 2001.

DIOCLÉCIO Ferreira da LUZ, (“O dançarino de bo-


lero”), nasceu em Cabrobó/PE (03.01.1953). Mora
em Brasília desde 1983. Diplomado em Engenharia

742
Elétrica e em Jornalismo. Professor, agricultor, fotó-
grafo, produtor de audiovisuais, ator e diretor teatral,
radialista, ficcionista. Reside em Brasília, DF, desde
1983, onde trabalha na imprensa local. Faz parte da
diretoria do Sindicato dos Jornalistas do DF. É as-
sessor parlamentar, atuando com meio ambiente e
democratização da comunicação. Durante oito anos
produziu e apresentou o programa Canta Nordeste de
música e informações, na Rádio Cultura FM, Brasília.
Tem artigos publicados em diversos jornais e revis-
tas impressas ou eletrônicas sobre meio ambiente e
comunicação (rádios comunitárias). Foi repórter do
Jornal da Semana Inteira (Brasília), e da Folha do Meio
Ambiente (Brasília). Foi roteirista e repórter no vídeo
Brasília, mistério e magia.
Brasília é centro místico do Brasil, berço do Vale do
Amanhecer, A Cidade Eclética, afora terreiros de um-
banda, centros espíritas, sinagogas, pagodes, igrejas e
templos de tudo que é religião do mundo. Dioclécio
fez-se porta-voz desse universo na imprensa do Distri-
to Federal. O que já produziu de reportagens, vídeos,
livros e fotografias dá um museu. Realiza seminários,
encontros, missas, cultos e todo tipo de manifestações
religiosas que se possa imaginar. E casa, batiza, dá
extrema-unção, consagra, perdoa, amaldiçoa, exorci-
za, desce espírito, sobe, vira e mexe. É magistral o seu
trabalho como roteirista e repórter no vídeo Brasília,
mistério e magia, no qual se tem uma amostra genuína
de que a sua especialidade é a multiplicidade de ações.
Foi assim que o encontrei e ficamos amigos.
Comigo, agnóstico confesso, Dioclécio sofreu para
me convencer sobre a existência dos poderes sobre-
naturais. Compareci a tudo o que promoveu e me
convidou, socialmente.
Hoje, Dioclécio trata-me de “poeta e doido, como
eu”. Tem sete livros publicados de forma indepen-
dente, abordando múltiplos temas:

743
Bibliografia: Roteiro mágico de Brasília, reportagens,
vol. I, 1986, e II, 1989; A máfia dos agrotóxicos e a agri-
cultura ecológica, ecologia, 1995; Ladrões de natureza
– uma reflexão sobre a biotecnologia e o futuro do planeta,
ecologia, 1998; O diabo modernista, contos, 1992; Gente
sobrenatural,contos, 1996; Trilha apaixonada e bem-humo-
rada do que é e de como fazer rádios comunitárias, na inten-
ção de mudar o mundo, 2001, 1. ed. e 2. ed.,comunicação,
2004; O diabo modernista, contos, Brasília, 1992; e Gen-
te sobrenatural, contos, Brasília, 1996; Meio ambiente: a
máfia dos agrotóxicos e a agricultura ecológica, 1995,
e Ladrões de natureza: uma reflexão sobre a biotecnolo-
gia e o futuro do planeta, 1998. Os dois em parceria
com Sebastião Pinheiro; Vida e obra do acaso, crônicas,
Casa das Musas, Brasília, 2010.

DJANIRA SILVA Rego Barros, (“Teodora”), nasceu


em Pesqueira/PE (25.07.1930). Diplomada em Direi-
to. Poeta, romancista, ensaísta, crítica literária, contis-
ta, cronista. Iniciou-se nas letras em Pesqueira, através
dos jornais A Voz de Pesqueira e a Folha de Pesqueira. No
Recife, colaborou para o Diario de Pernambuco, Jornal
do Commercio, Diário da Noite e Folha da Manhã.
Prêmios: P. de Poesia Gervásio Fioravantti, da Acade-
mia Pernambucana de Letras, 1979; Diario de Pernam-
buco, monografia, A influência da infância de Graciliano
Ramos em sua obra, 1980; Álvaro Lins – uma interpre-
tação, ensaio, Prêmio Leda Carvalho – da Academia
Pernambucana de Letras, 1981; e também Menção
Honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife,
1990; A grande saga audaliana, ensaio, Prêmio Antô-
nio de Brito Alves, da Academia Pernambucana de
Letras, 1999; Raízes da solidão, ensaio, Prêmio Antô-
nio de Brito Alves, da Academia Pernambucana de
Letras, 2000. Antologia pernambucana – reescrevendo
contos de fadas, 2001; Olho do girassol, ficção, Prêmio
Vânia Carvalho, da APL, 2001.

744
É membro da Academia de Artes e Letras de Pernam-
buco; da Academia de Letras e Artes do Nordeste
Brasileiro; da Academia Recifense de Letras (ARL);
da Sociedade de Médicos Escritores, da qual também
é colaboradora; da Academia de Artes, Letras e Ciên-
cias de Olinda; da AIP e da UBE-PE, da qual partici-
pa da Diretoria.
A quem desejar conhecer Djanira Silva, já que o es-
paço aqui é resumido, recomendo ler De dentro do co-
ração, Edições Edificantes, Recife, 2010. A obra, orga-
nizada por Edvaldo Arlégo para homenagear a escri-
tora nos festejos dos 80 anos, reúne 90 depoimentos
saídos do coração para enaltecer essa menina sabida
de mais da conta.
Bibliografia: Em ponto morto, poesia, 1980; A magia
da serra, crônicas, 1996; Maldição do serviço domésti-
co, contos e crônicas, 1998; Olho do girassol, contos e
crônicas, 1999; Memórias do vento, crônicas e contos,
2004; Pecados de areia, crônicas memorialistas, 2005;
Do quintal para o mundo, crônicas, 2006. Deixe de ser
besta, narrativas, 2006; A morte cega, narrativas, 2009.
Participa de várias antologias e revistas culturais.

EDNA Maria Cabral de ALCANTÂRA, (“Corina”),


nasceu no Recife/PE (17.12.1944). Diplomada em
Engenharia Civil pela Escola Politécnica da UPE. In-
tegrou o quadro técnico da UFPE até 1998, quando
se aposentou. Poetisa e contista. Fez parte de várias
antologias de contos. Participou das oficinas literárias
dos escritores Raimundo Carrero, Lucila Nogueira e
do professor Sebastien Joachim. Tem pronto para pu-
blicação Canção para Brunna (poesias) e Lua fria (con-
tos), este último recebeu Menção Honrosa do Conse-
lho Municipal de Cultura, Ficção 2004, Prêmio Lucilo
Varejão. Com o conto “Na Hora da Sesta”, recebeu
Menção Honrosa da Prefeitura do Recife; com o con-
to “O Presente” recebeu o Prêmio Luís Jardim, 2005,

745
e Menção Honrosa do Prêmio Joaquim Cardozo, do
Clube de Engenharia de Pernambuco, 2005. É mem-
bro da diretoria da Alane e da UBE-PE. Faz parte do
Café Literário de Pernambuco.

EDUARDO Augusto Carneiro de LUCENA, (“O jar-


dim”), nasceu no Recife/PE (24.04.1955). Diplomado
em História. Poeta, contista, novelista. Começou a es-
crever aos 14 anos de idade e, aos 19, lançou o seu
primeiro livro de contos, com apresentação de Ariano
Suassuna: “Eu lia e não deixava de me perguntar de
vez em quando: O que foi que a vida e o mundo fize-
ram com esse rapaz para ele se sentir assim, com uma
raiva tão sacrílega de Deus e da humanidade?”
Bibliografia: Casa do eterno, contos, capa de Abelardo
da Hora, Editora Livros do Mundo Inteiro, RJ, 1974.
Eduardo participa da antologia O urbanismo na litera-
tura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo, Ed.
Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976.

EVERALDO MOREIRA VÉRAS, (“Pião na unha ou


o campeão”), nasceu em Parnaíba/PI (17.08.1937).
Diplomado em Engenharia Civil, poeta, ficcionista,
mora no Recife há anos.
Gosta de explicar que tem dois ofícios: o da Razão e o
da Paixão. O primeiro, engenheiro, sustenta o outro,
psicólogo e contador de histórias. Justifica que vive
dos números e não das letras. E mais: “De literatura
não se vive. Ao contrário, morre-se”. “Muitos são os
filósofos que questionam: quem faz livros não é feliz.
Comigo se dá o contrário, sou feliz exatamente por-
que escrevo livros”. Lourdinha, a esposa, é quem lhe
dá, além dos cinco filhos, muita força para continuar
nos seus caminhos. Submete-se à rigorosa disciplina
como escritor. Lê tudo, mas diz “só estudar autores
nacionais”. Os estrangeiros, com poucas exceções,
nada lhe ensinam. Acredita no ser humano, na verda-

746
de do Bem e no aqui e agora, por isso vive de forma
intensa o momento presente. Eis a razão do seu terrí-
vel medo da morte.
Everaldo é campeão em concursos literários, em nível
nacional e internacional. Pertence à Academia Bra-
sileira de Literatura Infantil e Juvenil-SP; à Alane; e
também à UBE-SP.
Bibliografia: O menino dos óculos de aro de metal, nov.,
1977; Fissuras, poesia, 1978; A hora anterior, nov.,
1979; Os olhos do túnel, nov., 1979; Autópsia, ando,
nov., 1980; Desordem, contos, 1980; Pião na unha e
outras estórias, contos, 1981; O homem e as barbas do
homem, contos, 1982; As sete taças da ira, nov., 1982;
Camas separadas, poesia, 1982; Adriana e outras estórias
mentirosas, contos, 1982; Os brinquedos de agora, con-
tos, 1982; A reviravolta, contos, 1982; O canto de sal,
nov., 1984; Do jeito que os inocentes e as pessoas senti-
mentais fazem, contos, 1986; O circo dos horrores, contos,
1987; Maurício de Nassau: feitos e farsas, ensaio, 1989;
O incêndio no conjunto vazio, rom., 1990; O segredo do
pincel mágico, infanto-juvenil, 1998; O vulcão submerso,
nov., 1998; A justiça dos assassinos, nov., 1998; A insônia
do mar, poesia, 1999; Tabocas e casa forte: dois gritos
de liberdade, ensaio, 1999; Ler e revisar, ensaio, 2000;
Contos descontados, ficção, 2000; A noite é circular, rom.,
2001; Conversa de menino, contos, 2001; Deus não per-
doa os pecadores, contos, 2001; O terral, nov., 2002; Os
pecados de Deus, histórias, 2003; Contos mal-entendidos,
ficção, 2003; Estórias sem rancor, ficção, 2004; A oficina
do medo, rom., 2004; P Salvador, rom., 2005; Eu, tam-
bém?, contos, 2005; Um tempo – sim. Outro – não, nov.,
2006; Depois eu conto, histórias, 2007.
Everaldo tem verbete na Enciclopédia de literatura bra-
sileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2.
ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

747
FÁTIMA de Andrade QUINTAS, Maria de, (“De pro-
fundis”), nasceu no Recife/PE (28.02.1944). Diplomada
em Ciências Sociais pela UFPE, fez pós-graduação em
Antropologia Cultural, pelo Instituto de Ciências So-
ciais e Política Ultramarina, Lisboa, Portugal; mestra-
do em Antropologia Cultural, pela UFPE e pós-gradu-
ação em Museologia, pelo Museu das Janelas Verdes,
Lisboa, Portugal. Professora de História do Brasil, de
Antropologia Cultural. Pesquisadora da Fundaj, onde
exerceu a função de diretora do Departamento de An-
tropologia; coordenadora do Fórum Permanente Fa-
mília & Gênero; pesquisadora e secretária executiva
do Núcleo de Estudos Freyrianos e coordenadora do
Grupo de Trabalho Gilberto Freyre e a Contempora-
neidade, da Fundação Gilberto Freyre; superintenden-
te adjunta do Seminário de Tropicologia; articulista do
Jornal do Commercio; coordenadora da Oficina Literária
Clarice Lispector do Centro Cultural Brasil-Espanha;
escritora, articulista, contista, romancista. Faz parte da
APL, ARL, Sobrames e UBE-PE.
Assinale-se que Fátima Quintas tece com versatili-
dade e talento os fios das obras de Gilberto Freyre
e Clarice Lispector, sendo ela própria dona de uma
original linguagem atual e bela, tanto numa simples
crônica como nas obras de maior fôlego, como o ro-
mance, por exemplo.
Bibliografia: Sexo e marginalidade: estudo sobre a sexua­
lidade feminina em camadas de baixa renda, 1987; O
cotidiano em Gilberto Freyre, org. 1992; Mulher negra:
preconceito, sexualidade e imaginário, org. 1995; O
negro: identidade e cidadania, org. 1995; Manifesto re-
gionalista, Gilberto Freyre, org. 1996; De névoas e bru-
mas, 1999; A obra em tempos vários, org. 1999; A mulher
e a família no final do século XX, 2000; Novo mundo nos
trópicos, org. 2001; Frevo no pé, 2001; Prece confessional,
2002; Segredos da velha arca, 2003; Evocações e interpre-
tações de Gilberto Freyre, org. 2004; O silêncio das horas,

748
2004; Oficina literária Clarice Lispector, org. 2005; As
melhores frases de Casa-grande & senzala: a obra-prima
de Gilberto Freyre, 2005. Opúsculos: Educação sexual­:
um olhar adiante, 1992; Discurso de posse para a Aca-
demia Pernambucana de Letras, 2003; A ilustre casa dos
fantasmas, rom., 2007, e mais dezenas de artigos pu-
blicados no Jornal do Commercio.

FERNANDO Antônio de Barros MONTEIRO,


(“Stromboli”), nasceu no Recife/PE (20.05.1949). Di-
plomado em Ciências Sociais e estudou Comuni­cação
em Roma, Itália. Romancista, cineasta, teatró­logo, po-
eta e crítico de arte. Conquistou prêmios de âmbito
nacional e internacional como romancista, poeta e di-
retor de filmes documentários, modalidade em que já
produziu 15 obras, todas com a classificação Especial
do Concine, entre os quais Visão apocalíptica do radinho
de pilha, 1970, representante do Brasil no Festival de
Guadalajara, México; Filme de percussão mercado adentro,
1974, representante do Brasil no Festival de Karlov-
Vary, RDA; Saideira, 1980, representante do Brasil no
Festival de Varsóvia; Cultura marginal brasileira – Leilão
sem pena, 1981; Prêmio de Melhor Roteiro no Festival
de Cinema de Aracaju/SE, entre outros.
Fernando Monteiro conquistou os seguintes prêmios
literários: Prêmio Othon Bezerra de Mello da APL:
O rei póstumo, teatro; Prêmio Nacional de Poesia da
UBE-RJ: Ecométrica, 1983; Prêmio Funarte para obras
de crítica de arte: Brennand sumário da oficina pelo ar-
tista; Prêmio Bravo de Literatura: A cabeça no fundo do
entulho, além de outros. Em 1997, seu romance Aspa-
des, ETs etc., Editora Campo das Letras, de Portugal,
foi considerado “a melhor obra de ficção em língua
portuguesa, lançado por editoras nacionais e estran-
geiras naquele ano”.
Conheço Fernando desde a sua juventude e sempre o
admirei pelo seu talento e versatilidade.

749
Bibliografia: A banda, rot., 1969; Se essa rua fosse minha,
rot., 1970; Memória do mar sublevado, poesia, 1973; O
rei póstumo, teatro, 1974; Simetria terrível ou mecânica
de João Câmara, 1974; Escuriais rústicos, rot. 1975; Ca-
chaça uma mitologia popular, rot., 1975; Arquitetura ru-
ral nordestina, rot., 1975; Brennand sumário da oficina
pelo artista, rot., 1977; Saideira, rot., 1977; Bumba meu
boi da vida, rot., 1977; Cinema ou televisão, pensamento e
prática em torno, ensaio; Leilão sem pena, poesia, 1980;
Leilão sem pena, rot., 1980; Econométrica, poesia, 1982;
A senda da surata, nov., 1990; Aspades, ETs etc., ficção,
1997; A cabeça no fundo do entulho, rom., 1998; A múmia
do rosto dourado do Rio de Janeiro, rom., 2001; O grau
Graumann­, rom., 2002; Armada América, contos, 2003.
Fernando Monteiro participa da coletânea Pernam­
buco, terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia
Cordeiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem
verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrâ-
nio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global
Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

FERNANDO PESSOA FERREIRA, Antônio, (“Nin­­


guém ouve os sabiás”), nasceu no Recife/PE (13.01.1932).
Poeta, jornalista, contista. Conquistou, em 1954, o Prê-
mio Fábio Prado de Poesias. Aos 18 anos mudou-se
para Curitiba/PR. A distância, porém, não ofuscou a
imagem deixada nos círculos literários do Recife, Gera-
ção 50, compostos, entre outras, de figuras como Car-
los Pena Filho, Felix de Athayde, Edmir Domingues,
Carlos Garcia e Audálio Alves, que nos falava com en-
tusiasmo do amigo, lendo seus versos e contando suas
façanhas sociais e de articulista com trânsito livre na
imprensa local e do Centro-Sul do país. Ao encontrar
Fernando na Bienal do Livro de PE, dirigi-lhe a palavra
como se falasse com um velho conhecido, embora não
me conhecesse. Fui informado de que ele trabalhava na
Assessoria de Comunicação da USP.

750
Bibliografia: Os instrumentos do tempo, poesia, 1958;
Em redor do A, poesia, 1968; Os fantasmas da gaveta,
contos, 1968; O umbigo do anjo, contos, 1999.
Fernando Pessoa Ferreira tem verbete na Enciclopédia
de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

FLÁVIO Ricardo CHAVES Gomes, (“O sonho de Ul-


piano”), nasceu em Carpina/PE (17.10.1958). Escri-
tor e poeta, crítico literário, professor de Português e
Literatura, consultor de empresa, de comunicação e
de comercialização. Iniciou na Literatura com o livro
Digitais de um coração, poesia, 1983. Tem publicado re-
gularmente em jornais e revistas do país. Participa dos
movimentos artísticos e literários a fim de difundir e
incentivar a preservação dos bens culturais de Pernam-
buco. Idealizou e organizou, no Recife, com a Fundar-
pe e a Unicap, a I Caminhada Poética Brasileira, con-
tinuadas pela segunda e terceira edições, movimento
que reuniu pelas ruas históricas da cidade os maiores
nomes da poesia nacional.
Flávio Chaves é membro das seguintes academias:
APL, Alane, AALP, Recifense de Letras e da Maçônica
de Letras. Pertence também à Ordem dos Jornalis-
tas do Brasil, à Sociedade de Médicos Escritores, à
ABI, à Fenai e Faibra, à ANE e ao Instituto Histó-
rico e Geográfico de Carpina e à UBE-PE, da qual
foi presidente, nos biênios 1995–1996, 1997–1998,
1999–2000, reeleito para o biênio 2001–2002. Na
sua gestão dinâmica, reconstruiu a sede da Entidade,
criou a Biblioteca Esmaragdo Marroquim, instalou a
estação cultura, num vagão antigo de trem; implan-
tou o Projeto Trem das Letras, para edição de livros
a custo mínimo em convênio com a CEPE (da qual é
diretor atualmente), e realizou o I, II e III Congresso
Nacional de Escritores, em Pernambuco.

751
Na sua fortuna crítica, Flávio Chaves conta com no-
mes como Alberto da Cunha Melo, Mário Hélio, César
Leal, Lucila Nogueira e outros de expressão nacional.
Bibliografia: Digitais de um coração, 1983; Ofício de exis-
tir, 1985; Vocabulário das sombras, 1990; Alvoroço do in-
visível, 1992; Aragem do subterrâneo, 1994; Território da
lembrança, 1999; todos de poesias. Tem inédito Lua
azul, poesia, e Rosto no escuro, romance.
Participa, entre outras, das seguintes antologias: Ál-
bum do Recife: 450 anos de fundação da Cidade do
Recife, PCR, 1987; Poesia viva do Recife, 1996; Poésie
du Brésil, org. Lourdes Sarmento, edição bilíngue da
Vericuetos – Chemins, Paris, 1997; Mormaço e sargaço,
1998; Poemas de sal e sol, 1999; Amor nos trópicos, 2000;
Água nos trópicos, 2000; Fauna e flora nos trópicos, 2002,
org. Beatriz Alcântara e Lourdes Sarmento; I e II An-
tologias de poetas nordestinos, 1998 e 1999; e Antologia de
academias de poetas nordestinos, 2000.

FLÁVIO da Mota GUERRA, (“Rua do Encanta­men­


to”), nasceu e faleceu no Recife/PE (24.12.1910–29
.08.1989). Diplomado em Ciências Contábeis, com
cursos de especialização em História, Documentação,
Paleografia, Conservação e Restauração de Docu­
mentos. Historiador, jornalista, biógrafo, romancista,
contista. Foi secretário da Educação e Cultura da Pre-
feitura do Recife; presidente do Conselho Municipal
de Cultura; presidente do Colégio de Curadores da
Fundação Universitária de Olinda; diretor (interino)
do Arquivo Público Estadual; diretor administrativo
da Cagep. Redator dos jornais: Diário da Manhã, O
Estado, A Noite, Jornal do Recife, Folha da Manhã, Correio
da Manhã, Jornal do Commercio; colaborador do Diário
da Noite e do Jornal do Commercio; diretor da revista
Nordeste; e fundador e diretor da revista Região.
Pertenceu às seguintes entidades culturais: APL; Aca-
demia Olindense de Letras; Instituto Histórico e Geo-

752
gráfico Brasileiro; IH-SP; IH de Olinda; IH de Goiana;
IH de Igarassu; IH de Petrópolis; IH-MG; IH-PB e IH-
RN; Instituto de História, Etnologia e Folclore de Tu-
cumán, Argentina; International Society of Historians,
de Chicago, USA; foi um dos fundadores da UBE-PE.
Flávio Guerra foi o presidente (fundador) do Con­
selho Municipal de Cultura do Recife, ao lado dos
conselheiros escritores Olímpio Bonald e Cyl Gallin-
do, maestros Nelson Ferreira e Mário Câncio, teatró-
logo José Carlos Cavalcanti Borges; artista plástico
Wilton de Souza e o professor Alfredo Schmauch.
Prêmio Joaquim Nabuco da ABL; Prêmio Joaquim
Nabuco da APL; Prêmios Literários Cidade do Recife
e Prêmio Pero Vaz de Caminha, Portugal.
Bibliografia: Pernambuco e a comarca do S. Francisco e
Os caminhos do São Francisco, hist., 1951; A questão reli-
giosa do II Império brasileiro, hist. 1953; Arrecifes de São
Miguel, hist. 1954; Lucena: um estadista de Pernambu-
co (Prêmio da APL), hist., 1958; Um programa de silos
e armazéns, ens., 1959; O último capitão-general, rom.,
1962 e 1972; História colonial do Nordeste, 1963 e 1966;
A guerra da restauração, 1964; Rondon: o sertanista,
biogr., 1965; Idos do velho açúcar, hist., 1966; História
de Pernambuco, dois vols., 1966; Vinte anos de atividades,
memória, 1966; De Friburgo ao Campo das Princesas,
biogr., 1967; Atualidades de 1817, hist., 1968; Alguns
documentos de arquivos portugueses de interesse para a his-
tória de Pernambuco, hist., 1969; Velhas igrejas e subúrbios
históricos, hist., 1969; Evolução Histórica de Pernam-
buco, ensaio, 1970; Crônicas do velho Recife, 1972.
Flávio Guerra participa da antologia O urbanismo na
literatura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976,
e tem verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de
Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Glo-
bal Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

753
FRANCISCO Austerliano BANDEIRA DE MELLO,
(“Crônica de uma tarde de domingo”), nasceu no
Recife­/PE (29.04.1936). Bacharel em Direito, advo-
gado, jornalista, poeta, contista. Entre as diversas
funções públicas que exerceu ressaltam-se a de presi-
dente da Empetur, secretário de Turismo, Cultura e
Esportes de Pernambuco, em dois governos consecu-
tivos. Foi colunista político e literário dos jornais do
Recife e, atualmente, publica um artigo por semana
no Jornal do Commercio.
Recebeu prêmios de poesia da revista Cigarra, do Jor-
nal de Letras e do Estado de PE. É presidente do Con-
selho Deliberativo do Instituto Frei Caneca, membro
da UBE-PE e da APL.
Bibliografia: O pássaro Narciso, poesia, 1959, Prêmio de
Poesia do Estado de PE; A máquina de Orfeu e o sol amar-
go, poesia, 1961; Poemas didáticos, 1968; Convergências:
cadernos de procura I, crônicas e ensaios, 1994; Através
da vidraça: cadernos de procura II, crônicas e ensaios,
1997; Livro de sonetos, 1999; Baú de espelhos, 2000.
Bandeira de Mello participa de diversas antologias,
como Poésie du Brésil, coletânea bilíngue, org. Lourdes
Sarmento, Paris, 1997; O urbanismo na literatura: con-
tistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo, Ed. Livros do
Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976, e Pernambuco,
terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cor-
deiro, IMC, 2005, e tem verbete na Enciclopédia de li-
teratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

FRANCISCO JULIÃO Arruda de Paula ou simples-


mente Julião, idealizador e líder das Ligas Campo-
nesas, (“As escravas”), nasceu em Bom Jardim/PE e
faleceu no México (16.02.1915–10.07.1999). Diplo-
mado pela Faculdade de Direito do Recife, advogado,
professor, escritor.

754
Aos 13 anos, foi mandado para um internato no
Recife­, do qual se lembraria como uma verdadeira
prisão. Aos 18, comprou, em sociedade, um colégio
para meninas pobres em Olinda/PE. Posteriormente,
trabalhou como professor particular de Português e
Matemática, o que o levou à casa da aluna Alexina
Lins Crêspo, com quem se casou.
Em 1934, na Faculdade de Direito do Recife, conhe-
ceu a primeira prisão na vigência do Estado Novo,
acusado de trocar correspondência com um amigo
sobre ideias marxistas. Graduou-se aos 24 anos.
Ao deixar a faculdade, Julião já alimentava a ideia de
dedicar-se à causa da Reforma Agrária, atuando como
advogado de camponeses. Causa a que se dedicou quan-
do deputado estadual, eleito para duas legislaturas.
Em 1954, moradores do Engenho Galileia, em Vitó-
ria de Santo Antão, PE, o procuraram para auxiliá-lo
na criação de uma entidade, que passou a se chamar
Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Per-
nambuco, embrião da primeira Liga Camponesa, que
deu origem a muitas outras, em vários Estados brasi-
leiros, assim como à criação de sindicatos rurais.
Em julho de 1957, conseguiu a desapropriação do Enge-
nho Galileia, cujas terras foram divididas entre os cam-
poneses ali residentes, no que se considera o primeiro
ato formal de Reforma Agrária na América Latina.
Em 1962, chegou à Câmara Federal, de onde conti-
nuou a defender os pobres do campo através de ações
já então conhecidas nacional e internacionalmente.
Sua atuação à frente das Ligas Camponesas, assim
como sua defesa da Revolução Cubana e outras po-
sições similares contribuíram para torná-lo alvo fácil
da ira de latifundiários e de outras categorias sociais,
entre elas as Forças Armadas, o que lhe valeu ameaças
de morte, de sequestro, atentados contra a sua vida e
dos familiares. Após o golpe militar de 1º de abril de
1964, seguiram-se a cassação de seu mandato de de-

755
putado federal, a clandestinidade, a prisão e o exílio.
Como exilado, viveu 15 anos na cidade de Cuernava-
ca, capital do Estado de Morelos, no México, em cuja
zona rural muitos dos camponeses, já idosos, haviam
combatido ao lado de Emiliano Zapata. Com eles, Ju-
lião desenvolveu uma interessante pesquisa mediante
entrevistas cujas gravações estão preservadas.
Anistiado, Julião regressou ao Brasil em 1979. Rein-
tegrou-se à vida política na Executiva Nacional do
Partido Trabalhista Brasileiro, que havia ajudado a
fundar ainda no exílio, e que passou a ser denomina-
do de Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Em 1995, voltou ao México, onde, sobrevivendo de
maneira extremamente modesta, escrevia suas me-
mórias, que intitulou Utopias de um homem desarmado,
que não concluiu devido ao seu falecimento. Seu cor-
po foi cremado, e suas cinzas permanecem naquele
país, aguardando o retorno desse novo desterro. No
entanto, a sua memória está viva no coração de quan-
tos, como eu, viveram os tenebrosos dias da ditadura,
alentados na esperança de retorno de Julião e len-
do Até quarta, Isabela, carta, escrita na prisão para sua
filha recém-nascida, mas repleta de lições éticas de
cidadania a quem se propusesse lutar pelo seu país e
pela dignidade humana.
Julião podia ter realizado uma grande obra, mas ele
próprio justifica a produção de apenas três livros: “Eu ti-
nha certas pretensões literárias, que abandonei para me
dedicar exclusivamente ao problema do camponês”.
Mesmo assim, resumir biografias de pessoas na es-
tatura de Francisco Julião, Barbosa Lima Sobrinho,
Graciliano Ramos é um martírio, por isso encerro
esta nota com um agradecimento a Anatailde Julião,
que cedeu o trabalho do seu pai para engrandecer e
constar desta coletânea.
Bibliografia: Até quarta, Isabela, carta-testamento, Edi-
tora Vozes, 1986; Cachaça, contos, prefácio de Gilber-

756
to Freyre, Editora Universitária, UFPE, 2005; Irmão
Juazeiro, romance.

GASTÃO DE HOLANDA, (“Josias e a Imperatriz”),


nasceu no Recife/PE e faleceu no Rio de Janeiro
(11.02.1919–1997). Contista, romancista, novelista,
ensaísta, poeta, professor, editor. Diplomado em Di-
reito, pela Faculdade de Direito do Recife. Em 1951,
ao regressar de Paris, onde estudou Literatura Con-
temporânea, na Sorbonne, encontrou o seu livro de
contos Zona de silêncio editado pelo grupo de Teatro do
Estudante de Pernambuco (TEP). Em 1954, conquista
o Prêmio José de Anchieta, instituído pela Comissão
do IV Centenário de São Paulo, com o romance Os
escorpiões, que se esgota no Recife, ficando a 2ª edição
por conta da Livraria José Olympio Editora. A novela
Macaco branco, 1955, foi editada pela prensa manual
d’O Gráfico Amador, ao lado de mestres tipógrafos
como Orlando da Costa Ferreira, Aloísio Magalhães,
Laurênio de Melo e Ariano Suassuna, a partir do que
Gastão de Holanda dedica-se às artes gráficas, che-
gando a ser considerado um dos pioneiros do design
gráfico brasileiro, porque além da experiência com “O
Gráfico Amador”, foi o primeiro a ter um escritório
especializado na área em Pernambuco. Lecionou Tea-
tro Brasileiro e Português no curso de arte dramática
da EBA da Universidade do Recife. Em 1972 mudou-
se para o Rio de Janeiro, onde viveu até 1997.
Bibliografia: Zona de silêncio, contos 1951; Os escorpiões,
rom., 1954; Macaco branco, nov., 1954; O burro de ouro,
rom., 1960; Eu te previno, poesia, 1969; Capibaribe, o “ice-
berg” do ar, poesia, 1977; O atlas do quarto, poesia, 1978;
Corpurificação, poesia, 1979; O jornal, poesia, 1981; O
dragão encurralado, poesia, 1983; A breve jornada de dom
Cristobal, rom., 1985; Roberto Burle Max: uma poética da
modernidade, ensaio, 1989. A obra de Gastão de Ho-
landa foi sempre muito bem-aceita pela crítica especia-

757
lizada, destacando-se estudos de Osman Lins, Manuel
de Souza Barros, Wilson Martins, e outros.
Gastão de Holanda participa da coletânea O urbanis-
mo na literatura: contistas de Pernambuco, antologia,
org. Cyl Gallindo, Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio
de Janeiro, 1976, e tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

GERALDO da Rocha FALCÃO, Luís, (“Osteopatia”),


nasceu em Carpina/PE (20.07.1931). Diplomado em
Direito. Poeta, crítico literário, contista. Colaborou
em todos os suplementos literários do Recife. Publi-
cou artigos na revista Leitura, editada por Barbosa
Melo, e no suplemento de O Estado de S. Paulo. Se-
gue escrevendo para o Diário do Nordeste, Fortaleza/
CE. Foi assessor de governador e diretor do Tribunal
Regional Eleitoral/PR.
Falcão foi premiado várias vezes pela APL e conquis-
tou, com poesias, o Prêmio Estado de Pernambuco
de 1998.
Bibliografia: Estação da angústia; poesia, 1995; O via-
jante anônimo, poesia, 1997; e Inscrições na chuva, po-
esia, 1998, Prêmio APL e Governo do Estado; Signos
errantes, poesia, 2006.
Geraldo Falcão participa da coletânea O urbanismo na
literatura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976.

GERUSA Barbosa LEAL, (“Os brincos prateados”),


nasceu no Recife/PE (02.02.1954). Diplomada em Psi-
cologia, pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília
(CEUB). Aposentada pelo Banco Central, onde exer-
ceu o cargo de analista, psicóloga e implantou o pro-
grama de diagnóstico, prevenção e recuperação de
alcoolistas. Exerceu a função também em consultório

758
particular. Contista e poeta, participa, desde 2003, da
Oficina de Criação Literária de Raimundo Carrero
e foi incluída nas antologias de conto do grupo em
2004/2005, Edições Bagaço.
Conquistou Menção Honrosa no concurso promovido
pela Biblioteca Pública dos Afogados, Recife. Seu conto
“Aracy” classificou-se em 5º lugar no Concurso de Con-
tos de 2005, da Prefeitura de Cordeiro, JR; constando
de antologia organizada por Jacques Ribemboim. Em
2006, Gerusa angariou o 3º lugar de poesia no Con-
curso Literário da Fliporto, Porto de Galinhas, PE, e
arrebatou o 1º lugar no Prêmio Maximiano Campos,
promovido pelo IMC, organizado por Leila Teixei-
ra, que resultou na coletânea O talento com as palavras,
Apresentação de Antônio Campos e Prefácio de Luiz
Carlos Monteiro, Edições Bagaço, Recife, 2006.

GILBERTO de Melo FREYRE, (“Fred, o Tio Coman­


dante”), nasceu e faleceu no Recife/PE (15.03.1900–
18.07.1987). Sociólogo, antropólogo, conferencista,
político, poeta, escritor, Gilberto Freyre é o brasileiro
mais premiado e condecorado no Brasil e no exterior.
Como deputado constituinte, 1946, criou o Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), hoje
Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Com centenas
de títulos publicados, muitos deles traduzidos para o
espanhol, francês, inglês, alemão e italiano, tornou-se
mundialmente conhecido especialmente como autor
de Casa-grande & senzala, Nordeste e O novo mundo dos
trópicos. Embora tivesse outras obras de ficção, “Fred,
o Tio Comandante” era o único conto escrito por Gil-
berto Freyre que permaneceu inédito até 1988, quan-
do eu tive a honra de publicá-lo na coletânea Contos
de Pernambuco, pela Editora Massangana. Outro ato
me liga a esse autor: em Brasília, DF, propus à Câ-
mara dos Deputados a publicação dos perfis parla-
mentares de Barreto Campelo e de Gilberto Freyre,

759
indicando os nomes de Sebastião Barreto Campelo e
do professor Vamireh Chacon, respectivamente, para
a execução dos trabalhos. Anos depois, saiu o perfil
de Gilberto Freyre, mas com os nomes de outros idea-
lizadores. No entanto, Fernando Freyre declarou-me:
“Eu vi de quem foi a ideia”. Um terceiro momento
marcante deu-se quando promovi o encontro de Gil-
berto Freyre com Cristiano Cordeiro, um dos nove a
fundar o Partido Comunista Brasileiro, na década de
1920. Não posso omitir que trabalhei no IJNPS, onde
me relacionei com Gilberto Freyre e, por meio dele,
conheci outros grandes nomes da cultura brasileira.
Bibliografia: Casa-grande & senzala, ensaio, 1933; Ar-
tigos de jornal, 1934; Guia prático, histórico e sentimen-
tal da cidade do Recife, 1934; Nordeste, ensaio, 1937;
Conferências na Europa, 1938; Assucar, receitas, 1939;
Olinda: 2º Guia prático, histórico e sentimental de ci-
dade brasileira, 1939; O mundo que o português criou,
ensaio, 1940; Um engenheiro francês no Brasil, 1940;
Região e tradição, 1941; Ingleses, 1942; Problemas bra-
sileiros de antropologia, 1943; Na Bahia em 1943, 1944;
Perfil de Euclydes e outros perfis, 1944; Sociologia, ensaio,
1945; Interpretação do Brasil, ensaio, 1947; Ingleses no
Brasil, ensaio, 1948; Quase política, 9 discursos e 1 con-
ferência, 1950; Aventura e rotina, ensaio, 1953; Ordem
e progresso, ensaio, 1959; A propósito de frades, ensaio,
1959; O velho Félix e suas “Memórias de um Cavalcanti”,
1959; Uma política transnacional de cultura para o Brasil
de hoje, 1960; Arte, ciência e trópico, 1962; Talvez poesia,
1962; Vida, forma e cor, 1962; O escravo nos anúncios de
jornais do século XIX, 1963; Dona Sinhá e seu filho pa-
dre, seminovela, 1964; Retalhos de jornais velhos, 1964;
Vida social no Brasil nos meados do século XIX, 1964;
Seis conferências em busca de um leitor, 1965; O Recife,
sim! Recife, não!, 1967; Brasis, Brasil e Brasília, 1968;
Oliveira Lima, don Quixote gordo, 1968; Nós e a cultu-
ra germânica, 1971; Além do apenas moderno, 1973; A

760
presença do açúcar na formação brasileira, 1975; O outro
amor do doutor Paulo, seminovela, 1977; Heróis e vilões
no romance brasileiro, 1979; Poesia reunida, 1980; Modos
de homem & modas de mulher, 1987; Três histórias mais ou
menos inventadas, 2003.
Gilberto Freyre participa de Pernambuco, terra da poe-
sia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/
Escrituras Editora, SP, 2005; de Contos de Pernambuco,
antologia, org. Cyl Gallindo, Ed. Massangana/Fundaj,
Recife, 1988, e tem verbete na Enciclopédia de literatura
brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza,
2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

GILVAN de Souza LEMOS, (“Ex-noite”), nasceu em


São Bento do Una/PE (01.07.1928). Nesta cidade vi-
veu toda a infância e parte da juventude, fez a escola
primária, mas não prosseguiu nos estudos por não ha-
ver ginásio no município. No entanto, virou o intelec-
tual da cidade ao ter um conto seu publicado pela re-
vista Alterosa, de Belo Horizonte/MG. Com 22 anos de
idade mudou-se para o Recife, publicou seu primeiro
romance, Noturno sem música, com o qual conquistou o
Prêmio Vânia Carvalho, 1956, da APL. Hoje Gilvan é
reconhecido com vários prêmios literários, estaduais e
nacionais, e se dedica exclusivamente à Literatura – já
publicou 14 livros entre romances, contos, novelas e
crônicas. O conto “Ponte da Boa Vista” integra uma co-
letânea de autores brasileiros publicados na Alemanha;
o romance Emissários do diabo encontra a disposição da
Society for the Promotion of African, Asian and Latin
American, com sede em Berlim, para publicação; en-
quanto O anjo do quarto dia está em mãos do diretor do
Colégio Internacional de Tradutores, em Arles, para
publicação em francês, pela Metallié, de Paris. Isso é
o máximo que se pode resumir da extensa biografia
dessa imensa figura humana conhecida internacional-
mente por Gilvan Lemos, o escritor pernambucano.

761
Bibliografia: Noturno sem música, rom., 1956; Jutaí me-
nino, 1968; Emissários do diabo, rom., 1968; O defunto
aventureiro, contos, 1974; O mar existe, nov., A noite dos
abraçados, nov., 1975; Os olhos da treva, rom., 1975; Os
que foram lutando, contos, 1976; O anjo do quarto dia,
rom., 1981; Os pardais estão voltando, rom., 1983; Mor-
te ao invasor, contos, 1984; A inocente farsa da vingança,
contos, 1991; Espaço terrestre, rom., 1983; Enquanto o
rio dorme, nov., 1993; Cecília entre os leões, rom., 1994;
Neblinas e serenos, nov., 1994; A lenda dos cem, rom.,
1995; Morcego negro, rom., 1998; Vingança de desvalido,
rom., 2001; Onde dormem os sonhos, contos, 2003.
Gilvan Lemos participa de O urbanismo na literatura:
contistas de Pernambuco, antologia, Ed. Livros do
Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976, e Contos de Per-
nambuco, antologia, Ed. Massangana/Fundaj, Recife,
1988, ambas org. Cyl Gallindo, e muitas outras, além
de citações em dicionários da Língua Portuguesa e
tem verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de
Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global
Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

GRACILIANO RAMOS, (“Dois dedos”), nasceu


em Quebrangulo/AL e faleceu no Rio de Janeiro
(27.10.1892–20.03.1953).
Inicio esta Nota a lembrar que Graciliano Ramos viveu
a sua infância no município de Buíque, isto porque ao
ler o que escrevem sobre ele, ao assistir aos filmes ba-
seados nos seus livros ou mesmo documentários televi-
sivos, fala-se de um “Sertão” indefinido, como se fosse
um local qualquer do Sertão, da caatinga nordestina.
Na realidade, o que falta a todas essas gentes é conhe-
cer o Sítio Pintadinho, no distrito de Guanumbi, e de-
pois a própria cidade sede do município de Buíque,
onde o velho Graça viveu a sua Infância. O mesmo não
acontece com Guimarães Rosa, nem com Euclides da
Cunha. Baseado nessa assertiva, escrevi uma palestra

762
intitulada Buíque – geografia literária de Graciliano Ra-
mos. Aqui mesmo, trazemos a extraordinária figura de
Clarice Lispector a dizer com todas as letras que não
é do Recife por apenas dois meses, mas seu coração,
sua formação intelectual é recifense. Afora Clarice, a
humanidade está fadada de saber que a formação mo-
ral de um indivíduo se faz até os dez anos de idade. O
livro Infância de Graciliano revela cabalmente que Buí­
que está gravada em sua alma e sai num processo de
lembra-esquece. Seus críticos encontram essa herança
psicológica em todos os demais livros.
Ao participar da Semana Euclidiana para os festejos
dos 100 anos de publicação de Os sertões, de Euclides
da Cunha, São José do Rio Pardo, SP, encontrei o es-
critor tradutor holandês August Willemsen (recente-
mente falecido). Uma calorosa simpatia nos uniu e se
ampliou com sua esposa Janna McCurdy. Soube que
estava ali por ser o tradutor de Euclides da Cunha,
como o era também de Drummond, de Guimarães
Rosa e de mais algumas grandes expressões da Lite-
ratura Brasileira. Tradutor de Graciliano, que livros?
Esclarecido, vi que faltava Infância e logo fiz a cobran-
ça, revelando-lhe que eu era de Buíque. Claro que
Infância estava nos seus planos de tradução, mas pre-
cisava de uma edição atualizada e de alguma ajuda
para termos regionalistas. A Editora Record ofereceu
os dois exemplares e a tradução está concluída.
Ao visitar a Holanda, em julho de 2010, encontrei
nas livrarias o livro Infância, traduzido por August
Willemsen­, publicado pela editora Arbeiderspers, sob
o título Kinderjaren. Fato que eu desconhecia, devido
ao falecimento prematuro do meu amigo tradutor.
Buíque instituiu a Biblioteca Graciliano Ramos, e
muitas coisas acontecerão para festejar o autor de Vi-
das secas buiquense.
Esgotar o assunto Graciliano Ramos numa simples
nota, nem com o poder de síntese e a precisão do

763
mestre, conseguiria. Limito-me, pois, a registrar es-
ses fatos novos, que justificam por si só a divisão da
glória de naturalidade de um dos mais expressivos
nomes da Literatura Brasileira, entre Quebrangulo,
AL, e Buíque, PE.
Bibliografia: Caetés, rom., 1933; São Bernardo, rom.,
1934; Angústia, rom., 1936; Vidas secas, rom., 1938; A
terra dos meninos pelados, conto infanto-juvenil, 1939;
Infância, memórias; 1945; Insônia, contos, 1947; Memó-
rias do cárcere, 1953; Viagem – impressões sobre a Tche-
co-Eslováquia e a URSS, 1954; Contos e novelas, coletâ-
nea dos melhores contos de todo o Brasil, dividido por
regiões, 1957; Linhas tortas, crônicas, 1962; Alexandre
e outros heróis – “Histórias de Alexandre”, “A terra dos
meninos pelados” e “Pequena história da república”,
1962; Viventes das Alagoas, crônicas, 1975; Cartas – cor-
respondências íntimas, 1980; O estribo de prata, conto
infanto-juvenil, 1984; Dois relatórios ao governador de
Alagoas, na comemoração dos 100 anos de nascimento
de Graciliano Ramos, apresentação de José E. Min-
dlin, 1992. (Foram estes relatórios que revelaram a A.
Frederico Schmidt o escritor Graciliano).
Graciliano Ramos tem verbete na Enciclopédia de li-
teratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001,
e tem obras traduzidas para os seguintes idiomas:
alemão, búlgaro, dinamarquês, espanhol, finlandês,
flamengo, francês, húngaro, holandês, russo, inglês,
italiano, polonês, romeno, tcheco, turco.

HERMILO BORBA FILHO, (“O almirante”), nasceu


em Palmares/PE e faleceu no Recife/PE (08.07.1917–
02.06.1976). Diplomado em Direito, estudou Medi-
cina e Química Industrial. Professor, escritor, crítico
de Teatro e Literatura, conferencista. Fez o curso pri-
mário e iniciou suas experiências no teatro, em sua
cidade natal. Transferiu-se para o Recife e, em 1943,

764
dirige o Teatro de Ópera do Recife; dois anos depois,
com Ariano Suassuna, fundou o Teatro do Estudante
de Pernambuco – TEP. Em 1961, com Ariano e Paulo
Freire, fundou o Movimento de Cultura Popular, que
ganhou todo o Brasil através da UNE.
Hermilo, ao lado de J. J. Veiga, é a expressão mais
forte da literatura fantástica do país, sem arredar, em
nenhum momento, das raízes culturais do Nordeste,
com todas as suas verdades.
Tenho inúmeras lembranças da sua amizade, de sua
maneira de incentivar o jovem na vida literária, tra-
tando-o de igual para igual, do seu jeito de laçar meu
pescoço, juntar sua cabeça à minha, para fazer per-
guntas de cunho obsceno. Ele sabia, antecipadamen-
te, qual seria o efeito; ríamos disso. Conservo esse ca-
rinho, esse respeito à sua memória através de sua mu-
lher, a atriz Leda Alves, detentora do seu patrimônio
cultural. Por designação de Esmaragdo Marroquim,
cobri o falecimento de Hermilo Borba para o Jornal
do Commercio e agora, convidado por Leda, participo
da comissão de comemoração dos 90 anos de nasci-
mento deste autor.
Bibliografia: Soldados em retaguarda, comédia, com Wal-
demar de Oliveira, 1945; Duas conferências, 1947; Auto
da mula do padre, teatro, 1948; História do teatro, ensaio,
1950; Teatro, 1952; Electra no circo, teatro, 1953; A barca
de ouro, teatro, 1953; Agá, rom., e Os caminhos da soli-
dão, rom. 1957; Diálogo do encenador, teatro, 1964; Sol
das almas, rom., 1964; Um paroquiano inevitável, teatro,
1965; Espetáculos populares do Nordeste, folclore, 1966;
Apresentação do bumba meu boi, folclore, 1967; A donzela
Joana, teatro, 1966; Fisionomia e espírito do mamulengo,
1966; Um cavalheiro da segunda decadência, rom., 1968;
Margens das lembranças, rom., 1968; A porteira do mundo,
rom., 1968; Henry Miller – vida e obra, ensaio, 1968; O
cavalo da noite, rom., 1969; Sobrados e mucambos, teatro,
1971; Deus no pasto, rom., 1971; O general está pintando,

765
nov., 1973; Sete dias a cavalo, contos, 1975; As meninas do
sobrado, contos, 1976; O cavalo da noite, rom., 1976. Tem
obras traduzidas para o francês, espanhol e inglês.
Hermilo participa da coletânea Contos de Pernambu-
co, org. Cyl Gallindo, Ed. Massangana/Fundaj, Recife,
1988, e tem verbete na Enciclopédia de literatura brasi-
leira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2.
ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

HUGO de Moraes VAZ, José, (“Desempregado”),


nasceu no Recife/PE (04.09.1933). Bacharel em Di-
reito pela UFPE, jornalista, advogado, inspetor fede-
ral do Trabalho, assessor de Imprensa credenciado
como repórter da Folha da Manhã junto ao Governo
de Pernambuco, redator e editor do Jornal Pequeno e
da Última Hora do Recife; redator, copidesque e edi-
tor-nacional do Jornal do Commercio e do vespertino
Diário da Noite, Hugo tem uma extensa folha de ser-
viços prestados, como advogado, aprovado em con-
curso pelo DASP, inspetor federal do Trabalho no
Fórum do Recife e de diversas capitais brasileiras, e
como jornalista, atividade que começou aos 14 anos
de idade, tanto no batente como credenciado junto
ao Palácio do Governo, como assessor de Imprensa
da repartição em que prestava serviços.
Numa junção da sensibilidade com a experiência ad-
vinda das múltiplas atividades que exerceu, resulta a
sua obra literária, útil e agradável.
Bibliografia: Da prisão do devedor civil, monografia, 1968;
Do registro de jornalistas, 1976; Esboço para um projeto de lei
(Alteração e consolidação dos textos legais sobre a pro-
fissão de jornalista), 1978; Da regulamentação profissional
do jornalista, 1979; Bestiário da imprensa, 4 vol., 1984/95;
Resgate de Afrodite, rom., 1996; O pesadelo de Svetevena,
rom., 1998, premiado pela UBE-PE e Conselho Muni-
cipal de Cultura do Recife e o livro Memórias de um sábio,
rom., recebeu Menção Honrosa da APL, 2006.

766
IRAN GAMA de Araújo, José, (“O rosário”), nasceu
no Recife/PE (25.09.1943). Diplomou-se em Direito.
Funcionário público, poeta, contista, artista plásti-
co. Com Vital Corrêa de Araújo e Paulo Bandeira da
Cruz, Iran Gama criou o movimento Poetas da Rua do
Imperador, para dinamizar a cultura, cujo resultado
foi o livro com a mesma denominação do movimen-
to, organizado por Eduardo Freyre de Magalhães e os
organizadores do movimento. Iran, que iniciou sua
carreira literária no Suplemento Literário do Jornal
do Commercio, criou e editou os jornais Cultura e Tempo
e Fandango, jornal alternativo de poesia.
Bibliografia: Canto mural, poesia, 1975; Fragmentário,
poesia, 1982; Rota sigma, nov., 1983.
Iran Gama tem verbete na Enciclopédia de literatura
brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza,
2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001, e partici-
pa da coletânea Contos de Pernambuco, org. Cyl Gallin-
do, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988.

JACQUES Alberto RIBEMBOIM, (“Essa mosca mor­


de”), nasceu no Recife/PE (29.04.1960). Diplomado
em Engenharia Mecânica, UFPE, 1983, pós-graduado
em Engenharia de Petróleo, UFBA/Petrobras, 1984.
Bacharel em Ciências Econômicas, UFPE, Recife­,
1995, mestre em Economia Ambiental, University of
London, 1994, doutor em Economia, UFPE, 2001.
Entre 1999 e 2000 tomou parte no Governo do Es-
tado de Pernambuco, como diretor de Defesa Agro-
pecuária e obteve o grau de doutor em Economia,
pela UFPE. Professor, escritor. Iniciou a sua vida pro-
fissional como engenheiro de petróleo, chefiando
campos da Petrobras no Rio Grande do Norte. Em
seguida, após licenciar-se, morou em Israel, onde tra-
balhou como voluntário no Kibbutz Maabarot. Depois
disto, viveu em Londres, onde fez Mestrado em Eco-

767
nomia Ambiental pela University College London.
Retornando ao Brasil, atuou como Assessor Especial
do Ministro do Meio Ambiente, em Brasília, DF, en-
tre 1995 e 1997. Durante esse período, representou
oficialmente o Brasil junto às Nações Unidas, Nova
Iorque; OEA, Santiago do Chile, OCDE, Paris, e em
cidades como Londres, Washington, Santiago, Viena,
Halifax, México, Luanda, Oslo, Portsmouth etc. Foi,
ainda, relator oficial dos encontros internacionais
acerca do tema “Padrões de Produção e Consumo
Sustentáveis”, nas cidades de Seul, na Coreia do Sul,
e Brasília.
Em 1997, foi nomeado membro da Comissão Nacio-
nal de População e Desenvolvimento, ligada direta-
mente à Presidência da República.
Publicou inúmeros artigos, ensaios, crônicas, contos,
etc. Desde 1990, colabora como articulista nos jornais
Diario de Pernambuco, Jornal do Commercio, Correio Bra-
ziliense e Folha de S.Paulo. Dentre os trabalhos publica-
dos como autor ou organizador, destacam-se:
Bibliografia: Mudando os padrões de produção e consumo,
1997; Nordeste independente, 2002; Em defesa do livro
pernambucano, 2005; Economia da pesca sustentável no
Brasil, 2006 e O fim da velhice e a superação bem-humo-
rada de um conceito, 2006.

JAYME TORBAN, (“João sem Pernas e Maria dos


Jornais”), nasceu em Natal/RN (10.12.1933). Filho
único de imigrantes judeus do Leste Europeu, seu pai
tornou-se um ativo membro do Partido Comunista
do Brasil, razão pela qual a família mudou-se do Rio
Grande do Norte para Pernambuco, Paraíba, Espírito
Santo e Minas Gerais, até se instalar finalmente em
Botucatu, no interior de São Paulo, no ano de 1939.
Em 1954, após a morte de seu pai, fixou residência
junto com a mãe no Recife, onde se dedicou ao ramo
de ótica e relógios e vive até o presente.

768
Leitor voraz desde criança, sempre destacou Jacob
Wasserman como um dos autores que mais o impres-
sionaram na juventude. De outro lado, seu interesse
pela pintura foi despertado pelo grande físico Mario
Schenberg, tendo sido o primeiro no Recife a criar
uma galeria de arte, a qual foi inaugurada com uma
exposição de Wellington Virgolino, do qual se tornou
amigo próximo, sempre rodeados de artistas, como
José Cláudio, Montez Magno, Luciano Pinheiro, João
Câmara, Corbiniano Lins e outros.
Ainda nos anos 1970, dá início a um processo de re-
clusão voluntária, insuficiente, contudo, para impedi-
lo de frequentar a famosa livraria Livro 7, ou de afas-
tá-lo do convívio de intelectuais como Tarcísio Perei-
ra, Cyl Gallindo, Celso Marconi, Fernando Spencer,
Renato Carneiro Campos e Tomás Seixas.
Em 1973, foi publicado seu primeiro romance, Re-
dondel, cujo prefácio é uma carta de Cyl Gallindo para
Luiz Luna e a respectiva resposta, que incendiaram a
curiosidade do escritor editor Moacir Lopes, e o le-
vou a imprimir o livro sem vacilação. Dez anos de-
pois, publica o seu segundo livro.
Atualmente, compartilha seu tempo entre a família e
seu gabinete de trabalho, em sua sala de estar, escre-
vendo sem parar, sempre ao som de seus antigos dis-
cos de 33 e 78 rpm, ocasionalmente um ou outro CD,
da música clássica à popular, além das velhas canções
em iídiche.
Bibliografia: Redondel, rom., Ed. Cátedra, Rio de Ja-
neiro, 1973; Agonia da imagem, rom., Editora Guara-
rapes, Recife, 1983; tem inédito outro romance.

JOAQUIM Maria Moreira CARDOZO, (“Brassávola”),


nasceu no Recife e faleceu em Olinda/PE (26.08.1897–
04.11.1978). Engenheiro, calculista, tradutor, profes-
sor, profundo conhecedor de Matemática, Ciências,
Filosofia, Linguística (lia e escrevia 17 idiomas, entre

769
os quais, latim, grego, hebraico, chinês, e japonês; tra-
duzia muitos deles) e Literatura; desenhista, poeta,
contista. Como o próprio poeta ressaltava: “Criei-me
no bairro do Zumbi”, zona oeste da cidade. Estudou
no Ginásio Pernambucano, onde conheceu Benedito
Monteiro e fundaram o jornal cultural O Arrabalde. Aos
17 anos, trabalhou no Jornal do Commercio como cari-
caturista. Frequentava o Café Lafayette e fez amizade
com José Maria Albuquerque Melo, Ascenso Ferreira,
Souza Barros. Em 1924, a Revista do Norte, da qual
dois anos depois se torna um dos diretores, publica o
seu primeiro poema: “As Alvarengas”.
Expulso de Pernambuco, por perseguição política no
Governo de Agamenon Magalhães, transfere-se para
o Rio de Janeiro em 1939, indo trabalhar no SPHAN,
ao lado de Rodrigo de Andrade, Lúcio Costa e Burle
Marx. Convidado por Oscar Niemeyer, fez os cálcu-
los para o conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte/
MG. Em 1956, Niemeyer convida Joaquim Cardozo
para fazer os cálculos de estrutura na construção de
Brasília, o que resulta em prédios como os do Con-
gresso Nacional, do Itamaraty, da Catedral de Brasí-
lia, do Ministério da Justiça, e outros, considerados
verdadeiras obras de arte arquitetônicas.
Fui apresentado ao poeta por Luiz Luna na década de
1960. Tornei-me visitante habitual do seu escritório
no Rio de Janeiro. Foi ele quem prefaciou o meu pri-
meiro trabalho, organizado em 1965: Agenda poética
do Recife: antologia dos novíssimos. Senti o respeito
que lhe devotavam Manuel Bandeira, Carlos Drum-
mond de Andrade, Rubem Braga, Cristiano Cordei-
ro e tantos outros importantes intelectuais brasilei-
ros, que o tratavam de Mestre. Ao ser eleito para o
Instituto Histórico e Geográfico do distrito Federal
(IHGDF), na década de 1980, disseram-me o nome
do patrono da cadeira que eu deveria ocupar, na Ins-
tituição. Por carta, pedi a substituição pelo nome de

770
Joaquim Cardozo, “especialmente por ser ele, ao lado
de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, o terceiro nome
mais importante na construção da Capital Federal”.
Proposta aceita. Era propósito meu também reveren-
ciar o intelectual e a figura humana de Cardozo, cujo
único pecado que praticou foi o de ser exagerada-
mente “humilde e frágil”, no dizer de Evandro Lins
e Silva. Vinha-me à mente a famigerada condenação
pela (in)justiça mineira no acidente do Pavilhão da
Gameleira, sobre o qual me enviou o Poeta um ex-
tenso relatório. Pessoalmente, disse-me ter sido uma
condenação política, para acobertar “a perfídia e a as-
túcia de adversários sem escrúpulos”, ainda Evandro
Lins. Indagado se Niemeyer não se manifestou em
sua defesa, o poeta, triste, muito triste, respondeu:
“Não! Fica na retaguarda, nem contra nem a favor”. A
tristeza desse fato definhou e acompanhou Joaquim
Cardozo ao túmulo.
Joaquim faleceu, mas deixou sua obra, sua memória,
sua estatura moral, seu exemplo de dignidade huma-
na, que ninguém jamais sepultará. Sempre existirão
pessoas sensíveis para prestigiar Joaquim Cardozo,
como Maria da Paz Ribeiro Dantas, que já escreveu
O mito e a ciência na poesia de Joaquim Cardozo; Joaquim
Cardozo: ensaio biográfico e Joaquim Cardozo: contem-
porâneo do futuro; e Everardo Norões que preparou
para a Editora Nova Aguilar as Obras completas de Joa-
quim Cardozo, na qual define o poeta como “Homem
Universo”.
Bibliografia: Poemas, 1947; Prelúdio e elegia de uma
despedida, 1952; O signo estrelado, 1960; O coronel de
Macambira, 1963; Mundos paralelos, 1970; Poesias com-
pletas, 1971, (reúne livros anteriores a Mundos parale-
los); De uma noite de festa, 1971; Os anjos e os demônios
de Deus, 1973; O capataz de Salema, Antônio Conselheiro
e Marechal boi de carro, teatro, 1975; e Um livro aceso e
nove canções sombrias, edição póstuma, titulada e pu-

771
blicada por Audálio Alves, 1975; Um livro aceso, 1981;
Poemas selecionados, org. César Leal, 1996; Obras com-
pletas, preparada por Everardo Norões, no prelo da
Ed. Nova Aguilar/Ed. Massangana, lançamento pre-
visto para 2007.
Joaquim Cardozo participa das coletâneas Contos de
Pernambuco, org. Cyl Gallindo, Ed. Massangana/Fun-
daj, Recife, 1988; e Pernambuco, terra da poesia, org.
Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras
Editora, SP, 2005, e tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

JOSÉ CARLOS CAVALCANTI BORGES, (“Coração de


dona Iaiá”), nasceu em Goiana/PE e faleceu no Recife/
PE (15.03.1910–11.01.1983). Diplomado em Medicina,
livre-docente em Psiquiatria. Médico, professor, ensaís-
ta, teatrólogo, ator e contista. Começou seus estudos no
Ateneu Goianense, continuou no Rio de Janeiro e veio
concluir na Faculdade de Medicina de Pernambuco.
Com a pesquisa A personalidade de menores do Recife, na
área de psicologia social, ingressou como professor da
Faculdade de Medicina do Recife, em 1937, dedican-
do-se ao ensino da Psiquiatria. Foi também professor
de Psicologia da Escola de Belas Artes de Pernambuco.
Publicou as teses “Investigação Psicológica sobre a Per-
sonalidade dos Epiléticos”, além de numerosos traba-
lhos científicos divulgados em revistas especializadas.
Fundou junto com Ulysses Pernambucano a revista
Neurobiologia, para a qual escreveu durante muitos
anos. Colaborou com revistas e suplementos literá-
rios dos principais centros culturais do país, entre os
quais o Jornal do Brasil, Diario de Pernambuco, Jornal do
Commercio (Recife), Correio da Manhã, Revista do Brasil,
A Voz de Goiana.
José Carlos Cavalcanti Borges é membro (fundador)
do Conselho Municipal de Cultura, do Recife; e é

772
membro da APL. É também um dos fundadores do
Teatro de Amadores de Pernambuco. Participou do
primeiro elenco do TAP, estreando no Teatro de Santa
Isabel em 1941. Em seguida, atuou em diversas peças,
todas sob a direção de Valdemar de Oliveira, o ideali-
zador do TAP. Trabalhou como ator nos filmes Riacho
do sangue (1966) e A Compadecida (1969), baseado na
peça homônima de Ariano Suassuna, ambos produzi-
dos em Pernambuco pela Aurora Duarte produções.
Conquistou prêmios de contos e teatro estaduais e na-
cionais, entre os quais, o Prêmio Dom Casmurro, 1939;
da Secretaria de Educação de Pernambuco, 1955; da
Escola de Belas Artes, 1960; da UBE-PE, 1964; França
Júnior, SP; Cláudio de Souza, 1970; Recife de Huma-
nidades, 1975; Menção Honrosa no Concurso Orlan-
do Dantas, do Diário de Notícias, 1957.
Entre as suas peças, classificadas por ele como co-
médias municipais, destacam-se: Acima do bem-querer,
Figuras de gente e O eclipse; de maus costumes, Meu
querido ladrão, As urnas vão rolar, Tempestade de água
benta e Pé de vento, esta premiada pela Escola de Be-
las Artes de Pernambuco, em 1960, e com o Prêmio
Silvino Lopes, patrocinado pela UBE-PE, 1964. Sob
o título de comédias adaptadas estão O caso do colar,
baseada no conto de Maupassant, O adereço, Fogo mor-
to, do romance de José Lins do Rego, Casa-grande &
senzala, de Gilberto Freyre e A flor e o fruto, baseada no
romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, pela
qual obteve o Prêmio Cláudio de Souza, de Teatro,
da ABL, em 1970. Outra peça muito importante e de
grande repercussão nos meios literários do país foi A
comédia de Balzac, sobre o romancista francês.
Bibliografia: Neblina, contos, 1940; Padrão G, contos,
1948; Contos vários, 1975, Prêmio do G-PE; Contos do
céu e da terra, 1978; Os assassinos, contos, 1980; Acima
do bem-querer, teatro, 1964; Tempestade em água benta,
teatro, 1964; Mão de moça e Pé de vento, teatro, 1965;

773
Casa-grande e & senzala, teatro, tentativa de uma co-
média de costumes do século XVIII, como se fosse
dramatização da obra de Gilberto Freyre, 1970; A flor
e o fruto, teatro, segundo o romance Dom Casmurro, de
Machado de Assis, 1971.
Cavalcanti Borges participa das coletâneas O urba-
nismo na literatura: contistas de Pernambuco, org. Cyl
Gallindo, Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janei-
ro, 1976; Antologia de contos de escritores novos e con-
tos e novelas, org. Graciliano Ramos, 1957; Panorama
do conto brasileiro, org. R. Magalhães Júnior, 1959; e
Modern­Brazilian short stories, com tradução de William
L. Grossman­, USA; e tem verbete na Enciclopédia de li-
teratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

JOSÉ CLÁUDIO da Silva, (“Lucky, mártir da Copa”),


nasceu em Ipojuca/PE (27.08.1932). Desenhista, pin-
tor, gravurista, escultor, crítico de arte, escritor. Aban-
donou o curso na antiga Faculdade de Direito do
Recife­, para se dedicar às artes plásticas. Participou, ao
lado de Gilvan Samico, Guita Charifker, Reynaldo Fon-
seca, entre outros, da fundação do Atelier Coletivo da
SAMR, dirigida por Abelardo da Hora. Depois, viajou
para a Bahia, onde frequentou o ateliê de Mário Cra-
vo, Carybé e Jenner Augusto. Seguiu para São Paulo,
trabalhou com Di Cavalcanti e Lívio Abramo, e fez sua
primeira exposição individual de desenhos, em 1956.
Participou do Salão Nacional de Arte Moderna, do Sa-
lão Paulista de Arte Moderna e de várias Bienais de
São Paulo, obtendo o Prêmio de Aquisição da IV Bie-
nal. Ganhador de uma bolsa de estudos da Academia
de Belas Artes de Roma, zarpou para a Europa onde
estudou nos anos 1957/1958. Fez, também, esculturas
em granito e painéis em pedra cerâmica.
De volta ao Brasil, foi ser auxiliar de diagramação do
jornal O Estado de S. Paulo, função que continuou no

774
Jornal do Commercio, do Recife. Em 1962 arrebatou o
Prêmio Leirner de Arte Contemporânea para desenho.
Em 1969, iniciou o ciclo de grandes esculturas em gra-
nito, em Fazenda Nova, interior pernambucano, hoje
suas obras constituem o Parque das Esculturas, além
das inúmeras peças monumentais em Petrolina, Lagoa
Grande, Aracaju, Recife. Sendo que a sua maior obra,
de cunho social, encontra-se no pelotão de agricultores
e homens humildes que José Cláudio pacientemente
transformou em escultores, espalhados por esse Sertão
afora. Em meio às incontáveis capas de livros e ilustra-
ções, José Cláudio ilustrou o conto de Edilberto Couti-
nho, constante do livro por mim organizado: O urbanis-
mo na literatura: contistas de Pernambuco, 1976.
Mas nem só de artes plásticas vive o homem. José Cláu-
dio é tão escritor quanto artista plástico. Indomável na
escolha da temática, que a princípio tem como medula
a liberdade humana, suas narrativas contam as experi-
ências adquiridas nos caminhos do mundo, essenciais
às artes e aos artistas do pincel ou da caneta.
Bibliografia; Viagem de um jovem pintor à Bahia, 1965;
Ipojuca de Santo Cristo, 1965; Bem dentro, 1968 (obras que
formam a trilogia das suas “Memórias do Norte”). Os
dias de Uidá, 1995; Meu pai não viu a minha glória, crô-
nicas, 1995. José Cláudio ainda tem catálogos, artigos,
contos, críticas, publicadas em vários órgãos da impren-
sa nacional, especialmente no Suplemento Cultural do
Diário Oficial de PE, onde mantém uma coluna e de onde
tiramos o conto que participa desta Coletânea.

JOSÉ Ferreira CONDÉ, (“O regresso”), nasceu em Ca-


ruaru/PE e faleceu no Rio de Janeiro/RJ (23.10.1918–
27.09.1971). Diplomado em Direito. Advogado, jorna-
lista, procurador, escritor. Em 1930, após a morte do
pai, muda-se, com o irmão Elísio, do Recife para o Rio
de Janeiro. Vai estudar, em sistema de internato, no Co-
légio Plínio Leite, onde inicia suas atividades literárias,

775
com a fundação de jornais e o Grêmio Literário Alberto
de Oliveira. Forma-se em Direito, exerce a profissão de
advogado por um curto período, chegando a ser pro-
curador do Instituto dos Bancários. Dedicou-se, a par-
tir de então, ao jornalismo como cronista social. Após
publicar o seu primeiro livro, os irmãos Elísio, João e
José Condé fundaram, em 1949, o Jornal de Letras, que
se tornou o meio de divulgação mais importante da Li-
teratura Brasileira, durante anos, tanto pelo elenco de
colaboradores, como pelo nível das notícias a cada edi-
ção. Com o crítico e conterrâneo Álvaro Lins, José Con-
dé dirigiu o Suplemento Literário do Correio da Manhã,
onde assinava as colunas “Vida Literária” e “Escritores
e Livros”. Conquistou os Prêmios Fábio Prado e Afon-
so Arinos da ABL. Trabalhos seus foram levados para
televisão, com grande sucesso de audiência, e para o
cinema, como é o caso de Um ramo para Luisa, 1965.
Fui amigo de Elísio, José Condé e a sua amada Luísa.
Trabalhei para o Jornal de Letras durante três anos,
como correspondente em Pernambuco; sei o peso e
o fascínio que a Cultura Nordestina exerciam sobre
suas almas, impondo-lhes hábitos e costumes, embo-
ra morassem há anos no Rio de Janeiro. Nas suas vi-
sitas ao Recife, algumas delas em companhia de Ênio
Silveira, tomamos memoráveis pileques nos barracos
das praias de Olinda.
Bibliografia: Caminhos na sombra, nov., 1945; Onda sel-
vagem, rom., 1950; Histórias da cidade morta, contos,
1951; Os dias antigos, nov., 1955; Um ramo para Luisa,
nov., 1959; Terra de Caruaru, rom., 1960; Vento do ama-
nhecer em Macambira, nov., 1962; Os sete pecados capi-
tais, nov., 1964; Os dez mandamentos, nov., 1965; Noite
contra noite, rom., 1965; Pensão Riso da Noite: Rua das
Mágoas (cerveja, sanfona e amor), nov., 1966; Como
uma tarde em dezembro, rom., 1969; Tempo vida solidão,
nov., 1971; edições póstumas: As chuvas, rom., 1972;
e Obras escolhidas, 1978.

776
José Condé participa de dicionários e da antologia O
urbanismo na literatura: contistas de Pernambuco, org.
Cyl Gallindo, Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Ja-
neiro, 1976. Tem verbete na Enciclopédia de literatura
brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza,
2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA, (“Como as nuvens que


passam”), nasceu em Coimbra/Portugal (30.10.1945).
Diplomado em Direito. Advogado, professor univer-
sitário – mestre em Teoria Literária –, ensaísta, poe­ta,
contista. Fez do Recife o seu domicílio literário des-
de 1951; aqui, participa com destaque da Geração 65
de escritores pernambucanos, com poesias e artigos
publicados nos suplementos literários do Jornal do
Commercio e Diario de Pernambuco. Foi o inspirador na
criação da revista Encontro, do GPL, PE, dirigida por
Maria de Lourdes Hortas, destinada a promoção e
divulgação de autores portugueses e brasileiros.
Bibliografia: Três noites no sobrado, contos, 1969; O cír-
culo do tempo, poesia, 1972; Memórias do navegante, poe-
sia, 1972; Poesia portuguesa contemporânea, ensaio, 1978;
Vozes da infância, poesia, 1979; Os frutos do silêncio, poe-
sia, 1980; Mudança: romance-limite, tese, 1981; Eros no
verão, poesia, 1983; Cantigas de amigo e de amor, 1987;
Florbela Espanca – estudos sobre, org. 1995.
José Rodrigues participa das coletâneas Pernambuco,
terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cor-
deiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem ver-
bete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Edito-
ra, FBN/ABL, SP, 2001.

JUAREIZ Barbosa CORREYA, (“O dia em que a cida-


de endoidou”), nasceu em Palmares/PE (19.09.1951).
Poeta, ficcionista e editor. Aos 20 anos de idade rumou
para São Paulo, onde trabalhou como revisor do jornal

777
Diário do Grande ABC, e chegou a ser incluído numa
antologia paulista, da série Poetas da Cidade. De volta
ao Nordeste, cheio de ideias e planos, publicou poe-
mas que trouxe na bagagem, escritos para chicotear o
mundo burguês, capitalista, desumano.
Em Palmares, fundou a Casa de Cultura Hermilo Bor-
ba Filho, da qual foi presidente. Organizou antologias
de poetas de Palmares, e promoveu a sua revolução
maior: reacendeu a obra de Ascenso Ferreira, há 18
anos amofumbada no baú do esquecimento. Inicial-
mente editou o livro Eu voltarei ao sol da primavera,
poemas parnasianos, organizado por Jessiva Sabino,
então diretora da Biblioteca de Palmares. Foi aplau-
dido pela sua obra e pelas suas ações, por Hermilo
Borba Filho, Pelópidas Soares, Mauro Mota, Geneton
Morais Neto, Jaci Bezerra e muitos outros escritores e
críticos. Radicou-se no Recife, fundou a revista Poesia
e a Nordestal Editora, continuou as edições das obras
de Ascenso Ferreira, e de tantos outros.
Em 2005, criou o projeto “Dia de Criação da Poesia”,
em que escritores fazem depoimentos sobre sua vida
e sua obra, com apoio da escritora Maria de Lour-
des Hortas, diretora do Departamento de Cultura do
GPL, PE/revista Encontro, que conta com Juareiz no
Conselho Editorial.
Bibliografia: [Sem título], poesia, 1971; Americanto
amar América, poesia, 1975; Um doido e a maldição da
lucidez, ficção, 1975; O amor é uma canção proibida, poe­
sia, 1979; A clara história de Preta, O futuro presidente do
Brasil e Coração portátil, poesia, 1999. Vários livros de
poesias, contos e novela, inéditos.
Juareiz Correya participa da coletânea Pernambuco,
terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cor-
deiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem ver-
bete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Edito-
ra, FBN/ABL, SP, 2001.

778
LADJANE BANDEIRA de Lira, Maria, (“Um gesto
ancestral”), nasceu em Nazaré da Mata/PE e faleceu
no Recife/PE (05.06.1927–24.03.1999). Artista plás-
tica, jornalista, teatróloga, poeta, crítica de arte, es-
critora. Juntamente com Hélio Feijó e Abelardo da
Hora, fundou, em 1948, a Sociedade de Arte Moder-
na do Recife (SAMR), que se tornou um movimen-
to de grandes transformações das artes plásticas, em
nosso Estado. A Literatura pernambucana também
deve muito a Ladjane, pelo seu trabalho, ao lado
de Esmaragdo Marroquim e Audálio Alves, no Su-
plemento Literário do Jornal do Commercio, que lhe
valeu, merecidamente, homenagens como “Persona-
lidade Cultural do Ano” em Pernambuco, de 1963 e
1967 e “Personalidade Cultural Nacional”, concedida
pelo Jornal de Letras, de Elísio Condé, Rio de Janeiro,
1972. Foi também contemplada, em 1981, com “Me-
dalha de Ouro” pela Academia de Artes e Ofícios, de
Parma, na Itália. Diversos prêmios foram instituídos
em sua homenagem.
Pertenceu às seguintes instituições: AIAP; SAMR;
AAPPE­; ABCA; AIA; Academia de Ciências de Pernam-
buco; Alane; GPL; Fundaj e ao Pen Club do Brasil.
Seus trabalhos estão em diversas coleções particulares
do Brasil, Estados Unidos, Europa e Israel. Está ci-
tada em diversas publicações nacionais e internacio-
nais, a exemplo do Who is who in the world (Inglaterra
e Estados Unidos), Quem é quem, no Brasil; Art in Latin
America today (Luís A. Cunha – Washington), Profile of
the new brazilian art (Pietro Maria Bardi), Tesouro da
juventude, Dicionário crítico da pintura brasileira, Dicio-
nário brasileiro de artistas plásticos, Enciclopédia Delta
Larousse­e várias outras publicações.
Hoje, sua família mantém, no Recife, sob a direção da
sobrinha Márcia Miranda Lira, o Instituto Cultural
Ladjane Bandeira.
www.ladjanebandeira.org.br.

779
Bibliografia: Cantigas, poesia, 1955; Viola do diabo, tea-
tro, Prêmio Vânia Carvalho, 1963, e Sammuel, 1964,
da APL, encenado em diversos teatros pernambucanos.
Tem inéditos livros de poesias, romances e contos. Lad-
jane participa da coletânea Contos de Pernambuco, org.
Cyl Gallindo, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988.

LAILSON DE HOLANDA CAVALCANTI, (“A casa


do velho Cirilo”), nasceu no Recife/PE (26.12.1952).
Cartunista, membro fundador da Associação dos Car-
tunistas do Brasil; membro fundador e primeiro pre-
sidente da Acape, musicista, escritor.
Do Lailson, cartunista internacionalmente conhecido
e premiado, recebi um currículo de causar inveja até
a quem inventou a charge, não só pela quantidade
de trabalhos produzidos, mas, e principalmente, pela
excelência da qualidade do desenho e das ideias en-
focadas. Do musicista, foi ele um dos líderes do mo-
vimento musical pernambucano no início dos anos
1970, lançando, em parceria com Lula Côrtes, o disco
Satwa, primeiro LP independente gravado no Brasil
e que se tornou uma das referências mundiais do folk
psicodélico daquela década, sendo relançado em vinil
e CD em 2005, nos Estados Unidos, pelo selo Time-
Lag Records. Já o Lailson contista, escritor, que rele-
gou a um segundo plano belíssimas narrativas, como
é o caso do conto inserido nesta coletânea, eu tenho a
impressão de que pouca gente o conhece. Eu mesmo,
que o conheço e admiro desde o início de sua carreira
de cartunista – cruzamo-nos pelos batentes do Diario
de Pernambuco e Jornal da Semana, naquele tempo em
que, feito o fotolito, seus trabalhos ficavam largados
por cima das mesas, dos quais eu guardo um exemplar
–,quando Lailson aceitou fazer parte desta Coletânea,
com a escrita dele, foi uma descoberta da pólvora.
Aos 17 anos, Lailson começou a publicar suas charges
no jornal The Pine Cone (Arkansas, EUA) recebendo

780
por uma delas o Award for Best Original Artwork, atri-
buído pela Arkansas High School Press Association.
Em 1975, estreou na imprensa pernambucana no
Jornal da Cidade sendo um dos fundadores da página
de humor O Papa-Figo no Jornal da Semana. Publi-
ca charge diariamente no Diario de Pernambuco desde
1977. Em 2001 criou e administra a empresa LHC
Associados, voltada para a Comunicação Especializa-
da, atendendo a empresas e órgãos da administração
pública e do setor privado.
Exposições individuais: 1994, Tondela, Portugal;
2001, Pindorama – A Outra História do Brasil, Ob-
servatório Cultural, Torre Malakoff, Recife; 2002,
Pindorama La Otra Historia de Brasil, Madri, Espa-
nha; 2002, La Risa de Brasil, Madri, Espanha; 2003,
Três Vezes Humor – Plaza Shopping, Recife. Além da
participação em quase uma centena de exposições co-
letivas sobre a Amazônia, o fim do século, em comba-
te à aids etc., realizadas no Recife, em São Paulo, em
Teresina, no Rio de Janeiro, e no exterior: Portugal,
Espanha, Alemanha, Itália, Bulgária e Turquia,
Prêmios: 1º Lugar no Concurso de Desenho de Humor
na Paraíba, 1976; 1º Lugar no Salão Internacional de
Humor de Piracicaba, São Paulo, 1977. 2º Lugar em
Charge no Salon Internacional de la Caricature de
Montreal, Canadá, 1983; 1º Lugar em Charge no Sa-
lão de Belo Horizonte, 1985; 1º Lugar em Charge no
Salon Internacional de la Caricature de Montreal, Ca-
nadá, 1985. Prêmio Imprensa no Salão Internacional
de Humor de Piracicaba, 1985; 1º Lugar no Concur-
so de Cartoons do Projeto CumpliCidades, Portugal,
1994. Prêmio HQ – Mix, melhor livro teórico – Hu-
mor Diário, 1997; Prêmio HQ – Mix como Curador
do melhor Festival de Humor – Festival Internacional
de Humor e Quadrinhos de Pernambuco – FIHQ-PE,
1999; Prêmio HQ – Mix pela melhor Minissérie na-
cional – Pindorama a outra História do Brasil, 2001;

781
Prêmio HQ – Mix como Curador do melhor Festival
de Humor – IV FIHQ-PE, 2002.
Criação e curadoria: Salão Nacional de Humor de
Pernambuco, 1983 e 1984. Festival de Humor do
Recife­, 1986. Salão de Humor na Imprensa, 1991. O
Riso na Rua – Cartuns em Outdoor, 1995. Seminário
– Humor na Imprensa do Ano 2000, 1998. Festival In-
ternacional de Humor e Quadrinhos de Pernambuco,
1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005.
Um dos grandes momentos de Lailson Holanda
neste ano foi quando ele recebeu de Fernando Lira,
presidente da Fundaj, o primeiro exemplar do livro
Joaquim Nabuco – a voz da abolição, que conta, em qua-
drinhos, a história do abolicionista. O lançamento
da obra será no encerramento das atividades do Ano
Joa­quim Nabuco. A obra destina-se à distribuição
gratuita nas escolas secundárias do Estado.
Bibliografia: O que vier eu traço, charges, 1981; Democra-
cia pra mim é grego, charges, 1983; Esta vida é um circo,
cartuns, 1989; Cartas de Pindorama, charges e quadri-
nhos, 1989; Humor diário, pesquisa histórica, 1997; Pin-
dorama: a outra história do Brasil (12 fascículos), 2001;
Retrato oficial: 25 anos de charges, 2002; Pindorama: a
outra história do Brasil, livro, 2004; Historia del humor
gráfico en el Brasil, Universidade de Alcalá, Espanha; O
livro do bom humor, 2005; e Lusíadas 2500, vol. I, uma
versão em quadrinhos da epopeia Os lusíadas, de Luís de
Camões, transposta para o século XXVI, Recife, 2006;
Joaquim Nabuco – a voz da abolição, história em quadri-
nhos, Editora Massangana, Fundaj, Recife, 2010.
www.lailson.com.br | lailson@lailson.com.br

LAURA AREIAS, (“Efemeridade da vida”), nasceu na


cidade do Porto/Portugal (14.12.1923). Diplomou-se
em Pedagogia, no Porto, e no Recife, para onde se
mudou em 1949, cursou Jornalismo e Licenciatura
em Letras. Detentora dos Prêmios Carlos Rios, 1962,

782
e Frei Caneca, 1961–1962, conferidos pela Cia. de
Tecidos Paulista e pela Sanbra. Homenageada com a
Medalha de Bronze Comemorativa dos 125 anos do
GPL, PE, 1994, e em 2000 com a Medalha do Ses-
quicentenário também do GPL, PE. Recebeu o Tro-
féu “Prestígio e Dedicação” pelos relevantes serviços
prestados à comunidade portuguesa, por meio da Re-
vista Portugal. Agraciada no ano de 2000 com o Diplo-
ma “Personalidade Cultural da UBE-RJ”. Pela UBE-
PE, onde ocupou o cargo de diretora de Imprensa,
foi agraciada, por três períodos consecutivos, com o
troféu “Escritora de Portugal 2000”. Diretora social
do Gabinete Português de Leitura, 1999–2001. Dire-
tora secretária, 2001–2002, e vice-presidente, biênio
2003–2004. Vice-diretora de Comunicação do RHPB
desde 2004, foi condecorada por essa mesma institui-
ção com a Medalha de Prata dos 150 Anos do Real
Hospital Português em Pernambuco. Conselheira Edi-
torial da AIP. Membro do Conselho Deliberativo do
Gabinete Português de Leitura.
Produtora do Projeto “Retratos – a poesia feminina
contemporânea em Pernambuco”, 2004.
Bibliografia: Cantares da minha terra, 1962; Cristina,
1962; Mais um crime, 1996; Por onde correm os ventos,
1996; Eu e o profeta, 1998; Quem matou Rodolfo?, 1999;
Os dois Cristóvãos, 1999; Despertar de uma vida, 1999;
Emigrar foi preciso, 2000; Nas passagens desta vida, 2000;
Samuel – o judeu, 2000; Ensimesmando, 2000; Contos de
Laura, 2000; Filosofias de um guarda noturno, 2001;
Quem é Beatriz?, 2001; Os homens bons, 2002; Manuel,
o emigrante, 2003; D. Pedro, imperador do Brasil e rei de
Portugal, 2003; João Fernandes Vieira e a restauração per-
nambucana, 2004; A saga dos desencontros, 2005; Três
homens, três nomes, três ideais; cartas, 2005; e mais, iné-
ditos: Sala dos espíritos; A estrela do mar; Viver é começar
no dia a dia.

783
LEÔNIDAS CÂMARA, (“Franz Kafka voa de Zepe-
lim”), nasceu no Recife/PE (06.01.1933). Fez estudos
primários nesta cidade e secundários com os Maristas,
em João Pessoa. Diplomado em Direito pela UFPE e
em Letras Neolatinas pela Unicap. Advogado, profes-
sor, ensaísta contista, crítico literário.
Exerceu a função de diretor Administrativo da Justi-
ça Federal e de professor de Teoria da Literatura na
UFPE e Literatura Brasileira e Estética na Unicap, na
Faculdade de Filosofia do Recife e na Universidade
Federal Fluminense. Por diversas vezes substituiu Cé-
sar Leal na direção do Suplemento Cultural do Diario
de Pernambuco, e foi secretário de Redação da Revista
Ensaio, da Secretaria de Educação e Cultura de PE.
Em 1996, participou do simpósio organizado pela
Fundaj, quando da comemoração dos 60 anos do livro
Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre, com a pales-
tra: “Tempo e Imagem em Sobrados e mucambos”.
Bibliografia: A técnica narrativa na ficção de Graciliano
Ramos, ensaio, 1967; O princípio da autenticidade em seis
personagens à procura de um autor, ensaio, 1985; A poesia
de Manuel Bandeira, ensaio (reproduzido na Coleção
“Fortuna Crítica”, da Civilização Brasileira, 1980); Vi-
tória e derrota em Fernando Pessoa, ensaio, 1983; (publi-
cado nos “Cadernos de Literatura”, da Universidade
de Coimbra); Literaturas do Brasil e Portugal: limites de
comparação, ensaio, Coimbra, Portugal, 1983. Leôni-
das enfatiza nos seus dados que é filho do poeta João
Landelino Câmara e irmão do pintor João Câmara.
Leônidas Câmara participa das coletâneas O urbanis-
mo na literatura: contistas de Pernambuco, antologia,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976, e
Contos de Pernambuco, Ed. Massangana/Fundaj, Recife,
1988, organizadas por Cyl Gallindo.

LIANA RIBEMBOIM FELDMAN, (“Dela, Adina”),


nasceu no Recife/PE (14.06.1983). Diplomada em

784
Psicologia pela Unicap, atualmente faz mestrado em
Psicologia Clínica. Psicóloga, ensaísta, contista.
Num lançamento de livro da escritora Sara Erlich, na
Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira das Américas,
aproximou-se de mim uma delicada jovem muito bo-
nita e entabulamos um diálogo descontraído. Descobri
que Liana é neta do meu amigo, o escritor José Ale-
xandre Ribemboim, pesquisador incansável da pre-
sença judaica em Pernambuco e, pelo lado Feldman,
neta de Luiz Sabat, comerciante vizinho da relojoaria
do meu pai, no Largo da Paz, Recife. As coincidências
nos deixaram à vontade e Liana não se fez de rogada
para indagar se eu podia ler um trabalho de sua au-
toria. Dias depois o recebi pelos correios: “Psicanálise
e Arte: uma relação terapêutica” – monografia para
conclusão do curso de Psicologia, supervisionada pela
professora Tereza Batista. Dei minha opinião, sincera
como sempre. Meses mais tarde, chega-me o trabalho
da menina, com essa declaração: “Tive a honra de re-
ceber a nota máxima”. De lá para cá, já li ensaios, crô-
nicas, contos, com cada observação sutilíssima sobre a
vida, que poucos velhinhos sabem fazer. Pelo jeito de
escrever, num quase estilo pronto, pela temática, pela
revelação de uma experiência milenar sedimentada
nesse espírito jovem, nada nos impede de dizer que
estamos diante de uma verdadeira escritora.
A Unicap, pela primeira vez na sua história, resolveu
publicar um volume com os melhores trabalhos de
suas alunas e encarregou o professor Janilton Andra-
de de cuidar dessa tarefa. No fim do ano, saiu Arte e
cultura: um diálogo sob múltiplos olhares, com a par-
ticipação de Liana R. Feldeman: Salvador Dali: o sur-
real em análise, ensaio, 2005, e mais nove colegas. A
escritora Maria de Lourdes Hortas, seguindo o exem-
plo da Unicap, publicou um conto de Liana na revista
Encontro, 2005, do Gabinete Português de Leitura.

785
LOURDES NICÁCIO da Silva, Maria de, (“Sobre-
viventes”), nasceu em Belém do São Francisco/PE
(13.09.1947). Poetisa, ficcionista, professora. Pro­prie­
tária da Editora Novo Horizonte, com importantes
obras publicadas, de diversos autores. Mantém na in-
ternet, sob a responsabilidade da jorna­lista Raphaela
Nicácio, sua filha, o Portal do Escritor Pernambucano.
Fez curso de Letras na Paraíba e pós-graduação em
Pernambuco, além de outros cursos. Lecionou na Fa-
culdade de Formação de Professores de Belém do São
Francisco; na Escola Superior de Relações Públicas do
Estado de Pernambuco; na Fundação de Ensino Supe-
rior de Olinda e em outras escolas de seu município
de origem e do Recife. Coordenou diversos projetos
culturais, como o “Academia/Escolas” (da APL); “Gi-
násio Pernambucano: Seus Autores e Suas Obras” (do
Ginásio Pernambucano). Foi vice-coordenadora-geral
do “Primeiro Encontro de Cultura Recifense” (UFPE/
Nupec/ARL). Quando à disposição da Fundarpe,
atuou em projetos educativos e culturais da Casa de
Manuel Bandeira – Espaço Pasárgada.
Recebeu várias homenagens, Menção Honrosa no IV
Concurso Nacional e Internacional de Contos e Poe-
sias da Editora Valença, Rio de Janeiro. Membro da
UBE-PE e da ARL. 2010 tem sido um ano de consa-
gração para Lourdes Nicácio: Foi homenageada pela
UBE, na Livraria Cultura, com depoimentos de vá-
rios escritores a exaltar a escritora e a figura humana
dessa guerreira sertaneja e o seu livro Os dois mundos
de Madalena, em 5ª. edição, comemorativa do cente-
nário de Madalena, sua genitora. A obra é utilizada
em estudos, debates, pesquisa e encenações teatrais
nas escolas e universidades do estado. Afora sua con-
tribuição através da Editora Novo Horizonte.
Bibliografia: Cantos da ordem do sol, poesia, 1985; Rit-
mo das águas vivas, poesia, 1992; O rio Canabrava e os
homens, contos, 1994; Almeida Cunha, ensaio, 1996;

786
Ocultos na paisagem, poesia, 1998; Os dois mundos de
Madalena, rom., 1999, e 5ª. edição, 2010; João Suas-
suna de Melo Sobrinho: um educador exemplar, biogr.,
1999; Os rios e seus poetas, antologia, org. coautoria,
2003; Os caminhos da palavra, gramática e literatura,
2005. Tem trabalhos publicados em várias antologias,
em revistas e na internet.

LOURDES Maria Mendonça SARMENTO, (“O per-


dão”), nasceu no Recife/PE (15.02.1944). Poeta, es-
critora, pesquisadora, biógrafa, conferencista e jorna-
lista. Editada por Vericuetos, Chemins Scabreux, em
Paris, e por Editorial Francachela, em Buenos Aires.
Faz parte do Conselho Editorial de Francachela, Revis-
ta Internacional de Literatura e Arte.
É autora de 20 livros publicados em português, in-
glês, francês e espanhol. Participação em 68 antolo-
gias nacionais e internacionais, com trabalhos lite-
rários e jornalísticos apresentados em Washington e
Miami, USA; Lima, Peru; na Cidade do México e em
Lisboa, Portugal.
Organizou a antologia Poésie du Brésil, publicada em
Paris, 1997. Segundo a professora Anne-Marie Quint,
da Sorbonne “foi o primeiro livro sobre poesia brasi-
leira, publicado em Paris, após trinta anos de silên-
cio” e o Projeto Literatura dos Trópicos, em parceria
com Beatriz Alcântara, reunindo 205 poetas do Norte
e Nordeste do Brasil, que resultou na publicação de
três livros: Amor nos trópicos, 2000; Águas dos trópicos,
2000; e Fauna e flora nos trópicos, 2002. Lourdes Sar-
mento é poeta premiada em Pernambuco, no Rio de
Janeiro, em Minas Gerais e detentora de numerosas
homenagens no Brasil.
Pertence à Alane, da qual é secretária; à Academia de
Artes e Letras de Pernambuco; de Poesia de Petrópo-
lis, RJ; Carioca de Letras, RJ; Recifense de Letras;
de Estudos Literários e Linguísticos, Anápolis, GO.

787
Pertence ainda à Associação Internacional de Escrito-
res e Jornalistas, México; ao Centro de Estudos Ame-
ricanos de Fernando Pessoa, São Paulo; à UBE-PE e
UBE-RJ, à AIP; ao SinjoPE; ao Conrerp e ao Rotary
Club Encanta Moça (fundadora), Recife.
Bibliografia: Poemas do despertar, poesia, 1965; Explosão
das manhãs, poesia, 1973; Pequena história da telefonia em
Pernambuco, pesquisa, 1980; Primórdios da comunicação,
pesquisa, 1981; traduzido para o inglês; Janela, crôni-
cas, 1984; A palavra e as circunstâncias, ensaio, 1985; Ta-
tuagem da solidão, poesia, 1991; Sedução da arte em Vera
Bastos, ensaio biográfico, 1993; Vingt-cinq poèmes­de pas-
sion, poesia, 1994; Alcides Lopes: nas estações do tem-
po, biogr., 1994; Poésie du Brésil – Panorama da poe­sia
brasileira, org., Paris, 1997; José de Souza Alencar: Alex: o
artesão da palavra, biogr., 1998; Amor nos trópicos, Água
nos trópicos, 2000 e Fauna e flora nos trópicos, 2002, em
parceria com Beatriz Alcântara; Olhos de Tigre, poesia,
2001 – Prêmio Dulce Chacon da APL e Prêmio Ale-
jandro Cabassa hors-concours da UBE-RJ; Guardiã das
horas, poesia, 2003; A poesia é eterna, em parceria, 2003;
7 Cartas e uma confissão de amor, prosa e poesia, 2004;
Rituales del deseo: Rituais do desejo, edição bilíngue:
espanhol-português, Editorial Francachela, Buenos
Aires, 2005; 50 Poemas escolhidos pela autora, Edições
Galo Branco, Rio, 2009. Afora dezenas de trabalhos
publicados, das 68 antologias, escreve em periódicos
do Brasil e do exterior.
Lourdes participa da coletânea Pernambuco, terra da
poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem verbete na
Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Cou-
tinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora,
FBN/ABL, SP, 2001.

LUCE de Lucena PEREIRA, (Mariluce), (“Clóvis”),


nasceu em Belo Jardim/PE (26.10.1959). Diplomada

788
em Jornalismo pela Unicap, 1988, inicialmente foi
correspondente “Voice of America”. Creio que foi nes-
sa época que se tornou amiga de Luiz Amaral, chefe do
setor Brasil na Voz da América. Foi ele quem nos apro-
ximou, tecendo elogios à Luce e ao seu talento. No
início dos anos 90, Luce passa a escrever nos jornais do
Recife e, hoje, assina no Diario de Pernambuco a coluna
“Diário Urbano”. Espaço que Luce sabe usar com ob-
jetividade. Para exemplificar, cito a conquista do Par-
que Dona Lindu, no bairro de Boa Viagem, Recife. Na
hora da entrega do Parque ao povo, as autoridades não
lhe negaram elogios pelos méritos de abraçar a causa,
pela defesa sistemática da causa. Seu medo, como de
toda a população, era de que surgissem os malditos
arranha-céus sombreando mais ainda a única praia da
cidade, sem esquecer o fato de que o Recife é uma ci-
dade pobre de área verde e livre.
Sem apresentações informais, conheci a Luce Pereira
escritora através de um dos seus contos publicado na
revista Entre Livros, Ano I, nº 9. Em seguida, veio o
lançamento do seu primeiro livro Essa febre que não
passa, em razão do qual a minha temperatura nunca
mais foi a mesma: graças ao vigor narrativo, de inteli-
gente tensão entre o Ser e o Não Ser. Mas ela é, como
uma deusa, forte e definida. A obra foi lançada no
Teatro de Santa Isabel, Recife, com leitura dos textos
por Matheus Nachtergaele.
Bibliografia: Essa febre que não passa, contos, 2006.

LÚCIA Maria de Almeida CARDOSO da Silva,


(“O chapéu de Gary Cooper”), nasceu no Recife/
PE (05.07.1936). Passou a infância no interior de
Pernambuco e de Alagoas, e a adolescência em São
Paulo, para onde a família se mudou e residiu du-
rante 35 anos. Concluiu os estudos na Escola Álvares
Penteado e trabalhou como secretária em multina-
cionais. Ao retornar à terra natal, aderiu ao mundo

789
literário, acreditando que “escrever é uma forma de
tocar a eternidade”. Eternidade advinda das leituras,
das músicas, dos filmes e das danças que Lúcia colheu
“um pouco de cada um dos bons e belos momentos
que esses seres especiais me proporcionaram”, como
relata no seu último livro.
Bilbiografia: Pelos quartos da lua, 2000; Zigue-zague do
tempo, 2003; Antes que o juriti se mude, 2004; Miçangas
– textos escolhidos, 2006; Luzes do zodíaco, 2008; e On-
tem, ao entardecer... (lembranças do século passado),
2009. Participa das seguintes antologias de poesias,
crônicas e contos: Afluentes de versos, 1977; Agenda do
poeta, 1999 a 2008; Os rios e seus poetas, 2003; Cartas de
onze mulheres, 2004; O fim da velhice, 2006; Seleções do
século XXI, 2007; Antologia das águas, 2007; Vozes – a
crônica feminina contemporânea em Pernambuco, 2009; O
planeta feito quintal, 2009.

LÚCIA de MOURA da Veiga Pessoa, Maria, (“A chuva


de sábado à noite”), nasceu no Recife/PE (14.01.1948).
Diplomada em Biblioteconomia. Professora. Parti-
cipou do Conselho Regional de Biblioteconomia e
do Conselho Federal, na qualidade de presidente do
Conselho Regional. Aposentou-se como bibliotecária
em 2000, depois de exercer as funções na Unicap, em
cargos de chefia. Também na Unicap, ministrou aulas
de formação específica e implantou serviços e desen-
volveu manuais normativos.
Passou três anos “hibernando”, ou melhor, “vivendo
um período de ruptura”, como ela própria confes-
sa. Esse período foi quebrado numa tarde de sábado,
quando, a convite de uma amiga, visitou a Oficina
Literária ministrada por Raimundo Carrero na UBE-
PE. Aí nasceu seu primeiro conto e aí permaneceu.
Amadureceu. No ano seguinte participou de coletâ­
neas Contos de oficina 2 e 3, 2005; Pimenta rosa, poesias
e contos, 2006. Foi selecionada entre os dez primei-

790
ros classificados no Concurso de Contos do IMC, que
resultou no livro O talento com as palavras, org. Leila
Teixeira, IMC/Edições Bagaço, 2006.

LUCIENE de FREITAS e Silva, Maria, (“Detalhes


no azul”), nasceu em Caruaru/PE (02.02.1945). Di-
plomada em Letras, fez pós-graduação em Língua
Portuguesa; The Short – Term Program in Intensive
English Language Instruction. University of South
Florida, USA; Elementary English and Intermedia-
te English pelo Senac-Recife, além de outros cursos
complementares. Possui trabalhos publicados em jor-
nais do Brasil, de Portugal e da Argentina, participa-
ções em inúmeras antologias e conta com alguns prê-
mios literários. É membro da UBE-PE; da UBT-PE;
da Academia Irajaense de Letras e Artes, Irajá, RJ;
da Alane; da Academia Vitoriense de Letras, Artes e
Ciências da Vitória de Santo Antão, nas quais defen-
de a escritora Martha de Hollanda Cavalcanti, por
ela biografada; do Instituto Histórico e Geográfico da
Vitória-PE; do Grupo Celina de Holanda e da Socie-
dade dos Poetas Vivos de Olinda.
Bibliografia: Explosão, poesia, 1995; A dança da vida,
parábolas e contos, 1997; Mil flores, poesia, encenado
no Teatro do SESC, Recife, 2004; O sorriso e o olhar,
parábolas, contos e crônicas, 2000; Meu caminho, refle-
xões, 2001; Uma guerreira no tempo, pesquisa, resgate
de uma época, de 1903 a 1950, e da vida da escritora
Martha de Hollanda, primeira eleitora pernambuca-
na. Premiado pela APL, em 2005; Viagem dos saltim-
bancos escritores pelos recantos do Nordeste, cordel, [s.d.];
Mergulho profundo, pensamentos, 2004; Brincando só,
2005; Brincando de faz de conta, poesia, 2007, e O espe-
lho do tempo, rom., 2006.

LUCILO Ramos VAREJÃO, José, (“Duquesa”), nas-


ceu e faleceu no Recife/PE (28.02.1892–27.11.1965).

791
Funcionário público, teatrólogo, romancista, jorna­
lista, cronista, contista, professor. Toda a sua vida vi-
veu entre o Recife e Olinda, cenário permanente da
sua obra romanesca, dividida em romances recifenses
e romances olindenses. Tanto nos romances como nos
contos, Varejão expressa profunda preocupação com
a sua terra natal, ressaltada nas descrições dos hábitos
e costumes, das cores, das festas, da fauna e da flora,
sem, contudo, abandonar o lado psicológico, captado
nos defeitos e nas virtudes do nordestino e aflorado
através das personagens.
Lucilo Varejão viajou duas ou três vezes à Europa, de-
morando-se, sobretudo, em Paris, especialmente para
aperfeiçoar as suas atividades de professor de francês
de vários colégios recifenses. Exerceu, ainda, o cargo
de jornalista, escrevendo principalmente para A Pro-
víncia, quando assinou uma coluna sobre pintura. Nes-
se mesmo jornal também atuaram Aníbal Fernandes e
Sílvio Rabelo, escritores de sua geração. Posteriormen-
te escreveu para o Diario de Pernambuco, Jornal do Com-
mercio e, finalmente, durante muito tempo, foi redator
de uma coluna no Diário da Noite, jornais sediados no
Recife. Foi membro efetivo da APL, sucedendo com
propriedade ao historiador F. A. Pereira da Costa.
Seguindo os caminhos do pai, no que diz respeito ao
amor pela terra e dedicação à Cultura, Lucilo Varejão
Filho, também acadêmico da APL, está desenvolvendo
um dos mais importantes trabalhos de documentação
da cultura pernambucana, sempre apontada como ri-
quíssimo celeiro de poesia, mas pobre na produção
romanesca. Através da Coleção “Os Velhos Mestres
do Romance Pernambucano”, Lucilo Filho organizou
e publicou romances dos seguintes autores: Teotônio
Freire, Carneiro Vilela, Manuel Arão, Faria Neves,
Mário Sette, Lucilo Varejão, Luiz Delgado e Nilo Pe-
reira. Como se pode ver, constam deste livro de três
Lucilos, o pai, o filho e o neto, o que significa que está

792
se formando no Estado uma dinastia dos Lucilo Vare-
jão, todos eles bons escritores, dignos e respeitados
em Pernambuco.
Bibliografia: O destino de Escolástica, rom., 1920; De
que morreu João Feital, rom., 1923; A mulher do pró-
ximo... e outras mulheres, contos, 1924; Adão, contos,
1924; Teia dos desejos, contos, 1924; Boa gente, contos,
1925; O lobo e a ovelha, rom., 1935; Passo errado, rom.,
1946; Visitação do amor, rom., 1958; e Sonata a qua-
tro mãos, com acompanhamento, 1962; Baile das más-
caras, contos, 2001; Paisagem e figura, crônica, 1956.
Tea­tro: Muralhas de Jericó, 1921; Nossos filhos, 1938; D.
João III, [s.d.]; O bom ladrão, [s.d.]; Golias, [s.d.]; Casa
de Gonçalo, [s.d.]; Beco das almas, 1976; Viagem de volta,
coisas do passado, autobiog., inédito.
Lucilo Varejão participa da coletânea org. Cyl Gallin-
do, Contos de Pernambuco, Ed. Massangana/Fundaj,
Recife­, 1988, e tem verbete na Enciclopédia de litera-
tura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

LUCILO de Medeiros Dourado VAREJÃO NETO,


(“Zero, zerinho”), nasceu no Recife/PE (24.09.1946).
Licenciado em Letras, Bacharel em Direito, curso de
aperfeiçoamento em Teoria da Literatura, mestre em
Letras Modernas, Diplomado em Estudos Aprofun-
dados pela Universidade Clermont-Ferrand, França,
professor adjunto de Línguas e de Literatura France-
sa, tradutor. Foi chefe do Departamento de Letras da
UFPE e diretor-geral do Núcleo de TV e Rádio Uni-
versitária da UFPE, advogado, membro do Conselho
Municipal de Cultura do Recife. É presidente da ARL
e do Conselho de Preservação dos Sítios Históricos de
Olinda, acadêmico da Alane e Academia Olindense
de Letras, da Academia de Letras, Artes e Ciências de
Olinda, e outras instituições voltadas para a promo-
ção e divulgação cultural.

793
Bibliografia: A alienação em Sartre, ensaio, 1967; Cha-
péu de palha, ensaio, 1991; Rimbaud: precursor da hu-
manidade, ensaio, 1992; Albert Camus: oitenta anos,
ensaio, 1993; Na rede pode, contos, 1993; Um escritor
atual, ensaio, 1994; Nossos poetas, nossos profetas, ensaio,
1994; De Mersault a Meursault, ensaio, 1994; Olinda e
vida literária, ensaio, 1996; Um século com Lucilo Varejão,
ensaio sobre o avô, 1997; 85 Anos de absurdo, ensaio,
1998; Tia Zezinha, ensaio, 1998; Janeiro e o absurdo,
1999; Amar é menos do que ter amado, ensaio, em par-
ceria com Cláudio Aguiar, 1999; Um novo humanismo,
ensaio, 2001; O conto literário, ensaio, 2002; Da Argélia
à França, ensaio, 2003; Britannicus, ensaio, 2003; Mais
que sete gatinhos, 2004; Da poesia ao drama em “A Casa de
Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, ensaio, 2004;
Duas leituras: a morte feliz de Olga, ensaio, 2004; Fa-
lando de poesia, ensaio, 2005. Lucilo Neto tem artigos,
contos e ensaios publicados em diversas antologias.

LÚCIO Roberto FERREIRA, (“Joca do Boi”), nasceu


no Recife/PE (29.04.1930). Bacharel em Ciências Eco-
nômicas, funcionário aposentado do Banco do Brasil,
poeta, contista.
Pertence às seguintes entidades culturais: Alane (pri-
meiro vice-presidente), Academia de Artes e Letras
de Olinda, ARL, Sociedade dos Poetas Vivos de Olin-
da e UBE-PE (tesoureiro-geral).
Como membro da UBE-PE, desenvolveu intenso traba-
lho, do qual participaram a esposa, Elza, genro, filhos,
netos. Todos lutam em prol da cultura e dos escritores.
Elza é a musa da vida inteira: “Cada ser tem uma estra-
da/ Elza é o meu caminho/ minha trilha de regresso”.
Ele integra o grupo da Francachela, Revista Internacio-
nal de Literatura e Arte, editada na Argentina.
Lúcio tem sido muito festejado no patamar dos 80
anos. Duas coisas prevalecem no seu reino: a Paz e a
Poesia. Com esses dois instrumentos, Lúcio edifica a
sua catedral, não há como não acreditar nele.
794
Bibliografia: Um olhar para cada coisa, poesia, 1999;
Exercício do sentir, poesia, 2000; As duas extremidades da
luz, poesia, 2001; Reescrevendo contos de fadas, coautoria,
contos, 2001; Linhas do tempo, haicais, 2002; Uma porta
para dentro da pedra, poesia, 2003; As reticências dos sonhos,
poesia, 2003; Estas coisas cá de dentro, poesia, 2004; Um
corte além do fio, poesia, Novo Horizonte, Recife, 2008.

LUÍS ANDRÉ NEGRÃO (L. A. Silva Bezerra), (“Ansie-


dade”), nasceu em Olinda/PE (24.07.1970). Desenhis-
ta gráfico e diagramador. “Não possuo formação aca-
dêmica, mas me interessei desde cedo pela Literatura
através da leitura, na escola, de contos e crônicas. Aos
quatorze anos escrevi minha primeira ficção e só aos
trinta o meu primeiro romance: A história de An@.”
Espero que esse depoimento de Luís André chegue
aos governantes, mestres e escritores, aos pais de alu-
nos e a todos aqueles interessados ou ligados à Edu-
cação deste país.
“Depois comecei uma série de contos que pretendo
publicar sob o título de Contos na primeira pessoa e ou-
tros contos, do qual faz parte “Ansiedade”.
“Possuo ainda Daniel na cova dos leões (em andamento)
e Diário de bordo (romance policial em construção a
quatro anos). Sou também apaixonado por cinema e
nutro o sonho de ver um de meus trabalhos adapta-
dos para as telas.”
Como se pode ver, Luís André Negrão foi um dos iné-
ditos, lançados pelo IMC. Agora, saio da condição de
inédito e o empurrão inicial, como ele mesmo confes-
sa, foi dado pela escritora Lourdes Nicácio.
Bibliografia: O cara que queria se dar bem, rom., ilus-
trado por Juliana Fonseca e Tatiane Bastos Lins de
Melo, Editora Baraúna, Recife, 2007.
luisandreb@yahoo.com.br

795
LUÍS Inácio de Miranda JARDIM, (“O homem que
galopava”), nasceu em Garanhuns/PE e faleceu no
Rio de Janeiro/RJ (08.12.1901–01.01.1987). Cursou
apenas o Primeiro Grau. Aos 17 anos mudou-se para
o Recife, trabalhou no comércio, e dedicou-se aos li-
vros e ao desenho. Fez amizade com Gilberto Freyre,
o pintor Cícero Dias, o poeta Joaquim Cardozo, reco-
nhecido desenhista nos meios intelectuais da cidade.
Junto com esses amigos revolucionou os meios cultu-
rais da capital, com ideias que culminaram no Movi-
mento Regionalista do Recife.
Muda-se para o Rio de Janeiro em 1936 e, no ano se-
guinte, a convite da Sociedade Felipe de Oliveira, faz
exposição de quadros e passa a colaborar na impren-
sa carioca. Com a conquista do Prêmio Humberto de
Campos, concedido pela ABL, com o livro de contos
Maria Perigosa, atrai também a atenção da intelec-
tualidade do então Distrito Federal, principalmente
porque um dos membros da Comissão Julgadora é
o implacável Graciliano Ramos. E a cotação de Luís
Jardim sobe mais ainda quando se revela que seu li-
vro conquistou o Prêmio concorrendo, entre outros,
com Sagarana, de Guimarães Rosa.
Quer como desenhista, cujos bicos de pena estão
presentes em centenas de livros editados pela José
Olympio Editora, quer como escritor, Luís Jardim
deixou uma grande e expressiva obra, composta de
romances, contos, literatura infanto-juvenil. No ano
passado, Garanhuns realizou, sob o patronato do seu
filho ilustre Luís Jardim, o I Festival de Literatura,
reunindo mais de 600 participantes.
Bibliografia: Maria Perigosa, contos, 1938; O boi aruá,
lit. infantil, 1940, Prêmio de Lit. Infantil do Minis-
tério da Educação, 1937; Nala e Damayanti (poema
hindu), tradução, 1944; O tatu e o macaco, lit. infantil,
1940, traduzido para o inglês, com duas edições: uma
em Nova Iorque, outra em Wuscibsub; As confissões do

796
meu tio Gonzaga, rom., 1949; Isabel do sertão, teatro,
1959; Proezas do Menino Jesus, lit. infantil, 1968; As
aventuras do menino Chico de Assis, lit. infantil, 1971.
Luís Jardim, ilustrado por Brennand, faz parte do li-
vro O urbanismo na literatura: contistas de Pernambu-
co, antologia, org. Cyl Gallindo, Ed. Livros do Mundo
Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; e tem verbete na En-
ciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho
e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/
ABL, SP, 2001.

LUIZ Cláudio ARRAES de Alencar, (“O remetente”),


nasceu no Recife/PE (31.01.1959). Diplomado em
Medicina, doutorado em Infectologia e pós-doutora-
do em Imunologia. Especialista em doenças infeccio-
sas. Trabalha como médico, é professor universitário
e pesquisador. Publicou seu primeiro livro de contos
em 1990 e desde então já publicou outros sete livros,
além de diversos contos em revistas e jornais e pela
internet. Exceto o primeiro e o segundo livro, que
saíram respectivamente pela Inojosa e pela Fundar-
pe, todos os demais foram publicados pela 7 Letras,
incluídos na Coleção Rocinante, ao lado de nada
mais nada menos do que Rainer Maria Rilke, Anton
Tchekhov, entre outros do mesmo naipe, estrangeiros
e brasileiros. O que mais chama atenção é uma espé-
cie de trama da editora com o autor: Luiz Arraes, o
mais obstinado cultor do miniconto que conheço, pa-
rece ter o propósito de um dia escrever uma história
com apenas sete letras. Ou, quem sabe, Luiz Arraes,
nessa busca obstinada pela concisão, pela brevidade,
não tenha, como o mestre Carlos Drummond de An-
drade, “um continho em branco, de enredo singelo,
passado todo ele na antena esquerda de um gafanho-
to”? Raimundo Carrero, ao apresentar um dos seus
livros, ao tentar esclarecer para o leitor “A complexa
narrativa de Luiz Arraes“, termina declarando que

797
“Os silêncios me levam ao inevitavelmente doloroso”.
E eu creio que já falei demais sobre esse discípulo do
guatemalteco Monterroso, roubando o direito de o
leitor saborear a realidade do autor. Atualmente está
com dois livros no prelo. Começou, enfim, a escrever
seu primeiro romance. Luiz Arraes é filho de uma das
maiores expressões políticas brasileiras: o governador
e estadista Miguel Arraes de Alencar. Sobre quem es-
creveu comovente biografia, revelando o homem/pai/
chefe de família amoroso e o político que deseja legar
esse traço humano à sociedade, ao mundo.
Bibliografia: Palavra por palavra, 1990; Rastejador,
1991; O desaparecido, 1997; O que faz um homem rir,
1998; Anotações para um livro de baixa ajuda, contos,
2005; Tentando entender Monterroso, contos, 2005; O re-
metente, 2005; O que faz um homem rir, contos, 2005; O
desaparecido, contos, 2005; Todo diálogo é possível: con-
versas com meu pai, Miguel Arraes, todos lançados
pela Editora 7 Letras, Rio de Janeiro. Tem ainda con-
tos publicados em revistas e blogs literários.

LUZILÁ GONÇALVES FERREIRA, (“O enterro de


João”), nasceu em Garanhuns/PE (19.11.1936). Di-
plomada em Letras, mestra em Teoria da Literatura,
doutora em Estudos Literários pela Université Paris
VII. Poetisa, ensaísta, biógrafa, romancista, crítica
literária, professora universitária, pesquisadora de
história das mulheres em Pernambuco, professora de
Literaturas Francesa e Brasileira na UFPE.
Com o romance Muito além do corpo conquistou o Prê-
mio Nestlé de Literatura Brasileira, 1988; e com Hu-
mana, demasiadamente, humana, biogr., e Lou e Salomé
conquistou os Prêmios da FCCR e da APL; Rios tur-
vos, Prêmio Joaquim Nabuco da ABL. Voltar a Palermo
foi classificado entre Os Dez Mais do Ano, no Prêmio
Portugal Telecom; No tempo frágil das horas ganhou
o Prêmio Lucilo Varejão da FCCR e com os ensaios

798
sobre A imprensa feminina e sobre Joaquim Cardozo
arrebatou o Prêmio Jordão Emerenciano, por duas
vezes, da mesma FCCR. O ensaio sobre Mauro Mota
foi premiado pela APL e pelas suas pesquisas e histó-
rias das mulheres recebeu o título Woman of the Year,
pelo American Biographical Institute.
Muito mais se teria a dizer sobre a autora, mas ao re-
clamar o resumo, resumidíssimo, dos dados forneci-
dos por ela mesma, Luzilá respondeu com ironia, di-
zendo que acrescentar dados seria demais “para esta
pobre marquesa”. No entanto, o título de Marquesa
da Literatura é o mínimo que se pode dar à autora de
Muito além do corpo, livro em que Luzilá unifica todo
o sentimento humano no amor, enfatiza a força inte-
rior da criatura e deixa o lado externo para os olhos,
como a face sem mistério. Ao ler esse livro, saltou-me
à memória o romance Djamiliá, do russo Tchinguiz
Aitmatov, que o poeta francês Louis Aragon conside-
rou “A mais bela história de amor do mundo”. Muito
além do corpo é isto, escrito em português!
Felizmente, no fim da carta ela nos alenta com sua
opinião sobre este trabalho: “O livro será representa-
tivo e ademais admiro muito o trabalho de Antônio
Campos, eficiente, discreto, ausente de igrejinhas: al-
guém que de fato ama a literatura”.
Bibliografia: O espaço do teu rosto, contos, 1981; O tem-
po sem remédio na farmácia, ensaio, 1982; Muito além do
corpo, rom., 1988; Dentro da vida: à margem da histó-
ria, ensaio, 1989; Em busca de Thargélia: poesia escrita
por mulheres em Pernambuco no segundo oitocentis-
mo, 1870–1920, ant. org., 1991; A fala roubada: cem
anos de imprensa feminina em Pernambuco, 1991;
Ênio Silveira, 1992; Os rios turvos, rom., 1993; A garça
mal ferida: a história de Anna Paes d’Altro no Brasil
holandês, rom., 1995; Humana, demasiadamente, hu-
mana, biogr., e Lou e Salomé, ensaios.

799
Luzilá tem verbete na Enciclopédia de literatura brasilei-
ra, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed.,
Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

MAJELA COLARES Maia, Geraldo, (“O fantas-


ma de Samoa”), nasceu em Limoeiro do Norte/CE
(26.07.1964). Diplomado em Direito, assessor jurí-
dico do TRF – 5ª Regional, poeta e contista. Reside
no Recife desde 1992, cidade onde deu início a sua
trajetória literária. Faz parte do Conselho Editorial
da revista Calibán.
Bibliografia: Confissão de dívida, poesia, 1993; Outono
de pedra, poesia, 1994; O soldador de palavras, poesia,
1997; A linha extrema, poesia, 1999; Confissão de dívida
e outros poemas, 2001; O silêncio no aquário (Die stille
in aquário), 2004, edição bilíngue português-alemão;
Quadrante lunar, 2005, edição bilíngue português-
alemão, ambos com tradução de Curt Meyer-Clason.
Tem participação em antologias no Brasil e no exte-
rior, assim como colabora em diversos periódicos.
Majela Colares tem verbete na Enciclopédia de litera-
tura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

MARCO Aurélio Costa de ALBERTIM, (“Soler, emo-


ção e morte”), nasceu em Goiana/PE (15.06.1950). Ra-
dialista, jornalista, diplomado pela Unicap e escritor.
Começou a escrever como noticiarista de emissora de
rádio. Mas teve o ofício interrompido, por persegui-
ção policial à época do regime militar. Embrenhou-
se nos sertões de Pernambuco, Alagoas e Ceará. Tem
uma linguagem muito própria, mas a temática, deci-
didamente, é social, o que lhe assegurará um lugar
na galeria dos combatentes contra as injustiças e as
desigualdades sociais.
Reapareceu com a anistia, e foi correspondente do
semanário paulista Movimento, em seguida da Tribu-

800
na Operária. Voltou às ondas do rádio como produtor
e apresentador de programas de defesa de direitos
humanos, junto com o também jornalista e escritor
Urariano Mota.
Seus primeiros contos foram publicados pelo site
espanhol La Insignia (lainsignia.org). É um dos dez
agraciados do Concurso Osman Lins de Contos, de
2006. Participou do painel Leituras de Ficção, do IV
Festival Recifense de Literatura. Tem um romance
inédito: Marx e Ogum no Alto da Sé, saga de quatro
militantes com atividades clandestinas em Olinda.

MARCO POLO GUIMARÃES Martins, (“Valentia”),


nasceu no Recife/PE (31.03.1948). Diplomado em Di-
reito pela UFPE. Jornalista, poeta, escritor, contista,
musicista. Começou a escrever aos 12 anos de idade.
Antes já fazia música. Ainda garoto, levou 400 poemas
manuscritos a Ariano Suassuna, que o encaminhou a
João Alexandre Barbosa, do Suplemento do Jornal do
Commercio, que não titubeou em publicar os poemas
do garoto. Em seguida, César Leal publica-o no Su-
plemento do Jornal do Commercio. Marco Polo integra-
se à Geração 65, como um dos mais talentosos poetas
e músicos, como, mais tarde, atesta o companheiro de
Geração Alberto da Cunha Melo.
É um dos participantes da Agenda poética do Recife: an-
tologia dos novíssimos, org. Cyl Gallindo, em 1965, e
publicada em 1968, com prefácio de Joaquim Cardo-
zo e nota de Aguinaldo Silva, que o classifica de “exce-
lente”. Sua excelência usava o pseudônimo de Marco
Santander. Em 1967, publicou uma plaquete com cinco
poemas, diagramação e ilustração de José Cláudio. Par-
ticipou da coletânea Lírica, de Elói Editor, ao lado de
Alberto da Cunha Melo, Ângelo Monteiro, Jaci Bezer-
ra, Tarcísio Meira César e Gladstone Vieira Belo.
Em 1969, abandonou a escrita e dedicou-se integral­
mente à música. Produziu com seu grupo o LP “Ave

801
sangria”, também consta das coletâneas 1 e 2, deno-
minadas “Asas da América – Frevo”. E tem músicas
gravadas por Teca Calazans, Zezé Motta, Ney Mato-
grosso e Elba Ramalho.
Foi editor do Caderno Cultura do Jornal do Commercio e
é um dos editores da revista Continente Multicultural.
Bibliografia: Voo subterrâneo, poesia, Edições Bagaço,
1986; Narrativas, contos, 1992; Memorial, memórias,
1996; Brilho, poesia, 1996; Canto de Sol e de Lua, poe-
sia; Palavra clara, 1998; A superfície do silêncio, 2002; e
Caligrafia, 2003.
Marco Polo Participa da coletânea Pernambuco, terra
da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005. Tem verbete no
Dicionário biobibliográfico de poetas pernambucanos, org.
Lamartine Morais, 1993.

MARCUS Moraes ACCIOLY, (“Uma égua chamada


Sua-Mãe”), nasceu em Aliança/PE (21.01.1943). Passou
a adolescência dividido entre o engenho Jaguaraba, em
Barreiros/PE, e o Recife. Diplomado em Direito pela
Unicap, e pós-graduado em Letras, Teoria da Litera-
tura, pela UFPE. Advogado, professor, conferencista,
poeta. Corri léguas para ouvir Marcus e seu irmão Nes-
tor Accioly e eles correram mundo declamando suas
próprias poesias: Argentina, Cuba, Estados Unidos,
onde foram gravadas pela Biblioteca do Congresso e
pela Voz da América, hoje musicadas por uma dezenas
de grandes músicos, como Cussy de Almeida e Capi-
ba, com passagem por uns tantos Festivais de Música.
Marcus integrou, como apresentador e declamador, o
Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna.
Exerceu, entre outros, o cargo de diretor do Departa-
mento de Extensão Cultural da UFPE e do Centro de
Produção Científica e Cultural do Engenho Massan-
gana, onde nasceu Joaquim Nabuco, da Fundaj; foi
coor­denador cultural do Nordeste/MEC (Ministério

802
da Educação e Cultura); chefe da 4ª Superintendência
Regional da Secretaria de Cultura da Presidência da
República e secretário executivo do MinC, tendo por
diversas vezes substituído o ministro Antônio Houaiss.
Pertenceu aos Conselhos Federal de Cultura e Nacional
de Política Cultural. É conselheiro e, atualmente, presi-
dente do Conselho Estadual de Cultura de PE e do Con-
selho Municipal de Cultura do Recife. Além de Íxion,
tem outros livros adaptados para o teatro. Foi agraciado
com os seguintes Prêmios nacionais, por obras isoladas
e pelo conjunto de suas obras: Recife de Humanidades,
1971; Fernando Chinaglia, 1979; Láurea “altamente
recomendável para o jovem/1980”, Luiza Cláudio de
Souza, 1980; Mário de Andrade, 1983; Jorge de Lima,
1983; Carlos Pena Filho, 1983; Ass. Paulista dos Críticos
de Arte, 1985; Olavo Bilac, 1985; Leandro Gomes de
Barros, 1996. Participa de duas dezenas de antologias
e seis dicionários de Literatura; além de dissertações,
teses de pós-graduação sobre a sua obra, mereceu en-
saios, críticas e referências nos mais destacados veículos
da mídia brasileira e do exterior, especialmente reco-
nhecendo a importância para a Literatura do continen-
te do épico Latinomérica. Coincidindo com os analistas
deste livro, especialmente Eduardo Portela que diz que
“Quando tantos haviam decretado a morte da épica, a
poesia obstinada de Marcus Accioly nos mostrou que se
tratava de um assassinato prematuro, despropositado.
Esta é a nossa América, para a qual a nova épica de
Marcus Accioly, enraizada e vital, pede passagem”. Na
Francachela, nº 27, depois de mostrar os novos rumos da
humanidade com o aparecimento da Odisseia, da Divina
comédia, de Os lusíadas, afirmei que “Latinomérica, essa
junção de América Latina com Homero, não é só um
poema épico de que a Literatura Brasileira necessitava,
como, para mim, é uma obra clássica, pelo que se apre-
senta de modelar na linguagem, na forma e no ritmo”.
Quanto aos novos rumos, aguardemos, pois o livro saiu

803
da fornalha recentemente. Os efeitos virão, disso estou
certo, e colocarão Marcus como um dos maiores poetas
do continente.
Bibliografia: Todos os livros de poesia: Cancionei-
ro, 1968; Nordestinados, 1971; Xilografia, 1974; Sísifo,
1976; Poética: pré-manifesto ou anteprojeto do realis-
mo épico, 1977; Íxion, 1978; Ó(de)Itabira, 1980; Guria-
tã: um cordel para menino, 1980; Narciso, 1984; Érato:
69 poemas eróticos e uma ode ao vinho, 1990; O jogo
dos bichos, 1990; Latinomérica, 2001. DaguerreÓtipos, so-
netos, Escrituras, 2008.
Mais nove livros inéditos, dos quais Um ato de cordel
para Canudos, o qual faço questão de citar pelo simples
fato de ser a obra que mais cobro do amigo poeta, a
fim de o levar a São José do Rio Pardo, SP, onde há um
século se festeja a obra de Euclides da Cunha. É a festa
cívica da cidade, da qual participei durante dez anos.
Marcus Accioly participa da coletânea Pernambuco, ter-
ra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordei-
ro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem verbete
na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Cou-
tinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora,
FBN/ABL, SP, 2001.

MARGARIDA CANTARELLI de Oliveira, (“O retra-


to e as flores”), nasceu no Recife/PE (28.03.1944).
Bacharela, mestra e doutora em Direito, com espe-
cialidade em Direito Internacional, estudou música
(violão clássico) e teatro na Escola de Belas Artes da
UFPE. Exerceu advocacia, vários cargos públicos e
atividades políticas. Profere conferências no Brasil e
no exterior. Hoje é desembargadora do Tribunal Re-
gional Federal, da 5ª Regional/PE.
Como ela própria revela, sempre amou os livros, pois
sua irmã Mariinha lia e relia os seus livros e ela aten-
tamente os escutava. Depois não se contentou com
os livros da vasta biblioteca do seu pai Júlio Alcino

804
de Oliveira e passou a frequentar bibliotecas públicas,
especialmente a da Encruzilhada, onde, com amigas
do bairro, fez um “jornalzinho” e aí passou a publi-
car as suas peças que eram representadas pelo mesmo
grupo. Além de prefácios e apresentações de livros
de outros autores, Margarida publica frequentemente
artigos na imprensa pernambucana.
Ao nos encontrarmos num evento cultural, a amiga
indaga-me o que ando fazendo. Contei-lhe desta mis-
são que me conferiu Antônio Campos para o IMC,
e indaguei: “Quem sabe a Desembargadora não tira
da gaveta um conto e abrilhanta a nossa coletânea?”
“Quem sabe!” – respondeu-me. O resultado está aí
com “O Retrato e as Flores”. E muito mais virá quan-
do Margarida, casada, três filhos, avó de Anna Clara,
de talento sobejamente comprovado nos meios cultu-
rais brasileiros, baixar a guarda dos inúmeros afazeres
e ceder lugar ao seu espírito artístico e clarividente,
para que nos revele o muito que sabe dos poderes,
das artes e da vida.

MARIA DE LOURDES Mateus HORTAS, (“O bruxo


de Santiago”), nasceu em São Vicente da Beira, Beira
Baixa, Portugal (04.12.1940). Diplomada em Direi-
to pela UFPE, curso de Língua e Civilização Portu-
guesa, Faculdade de Letras, Lisboa, Portugal, bolsista
da Fundação Gulbenkian, para pesquisa sobre Poesia
Contemporânea Portuguesa, Lisboa, 1965. Licencia-
tura em Letras, Fafire, 1976. Empresária, poetisa, en-
saísta, artista plástica.
Participou da coordenação do Movimento das Edi-
ções Pirata, Recife, de 1980 a 1986, que, juntamen-
te com a Livraria Livro 7, revolucionou o panorama
cultural do Recife. Lourdes Hortas, ao lado de Jaci
Bezerra, revela-se grande promotora cultural, como
permanece ainda hoje, pensando mais nos outros que
em si mesma.

805
Lourdes Hortas detém vários prêmios, entre os quais,
o do Secretariado Nacional de Informação, Lisboa,
pelo livro Aromas da infância, 1964; Prêmio Fernando
Chinaglia, UBE-RJ, para o romance Diário das chu-
vas; Prêmio Mauro Mota (Fundarpe) para Outro cor-
po, poe­sia, 1988; Prêmio Jorge de Lima, da Acade-
mia Mineira de Letras, para Fonte de pássaros, poesia,
2001; Prêmio José Cabaça da UBE-RJ, para o roman-
ce Caixa de retratos, 2004.
Fez parte do conselho editorial do jornal literário Cul-
tura & Tempo (1981–1983) e da revista Pirata Edições
(1983–1984). Diretora da revista Encontro, do Gabine-
te Português de Leitura de Pernambuco (1991–1997;
2005–2006), épocas em que desempenhou o cargo de
diretora Cultural da referida instituição.
Foi coordenadora das Galerias de Arte Belo Belo, no
Recife e em Braga, Portugal, de 1989 a 1995, época
em que divulgou as artes plásticas pernambucanas.
Atualmente, como artista plástica, faz parte do Ate-
lier 167, no Recife.
Bibliografia: Aromas da infância, poesia, 1965; Relógio
d’água, poesia, 1965; Fio de lã, poesia, 1979; Giestas,
poesia, 1980; Flauta e gesto, poesia, 1983; Outro corpo,
poesia, 1989; Adeus aldeia, rom., 1990; Recado de Eva,
poesia, 1990; Dança das heras, poesia, 1995; Diário das
chuvas, rom., 1995; Fonte de pássaros, poesia, 1999; Caixa
de retratos, rom., 2003. Organizou as antologias de poe­
sia: Palavra de mulher, poesia, 1979; A cor da onda por
dentro, 1981; Poetas portugueses contemporâneos, 1985.
Tradução: Caja de retratos para o espanhol por Jorge
Ariel Madrazo e Cecília B. Madrazo, publicado pela
CICLA, Editorial Francachela, coordenada por José
Kameniecki e dirigida por Cyl Gallindo, Buenos Ai-
res, Argentina, 2008; Rumor de vento, poesias, Pana-
mérica Nordestal Editora, Recife, 2009.
Lourdes Hortas participa da coletânea Pernambuco,
terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cor-

806
deiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem ver-
bete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Edito-
ra, FBN/ABL, SP, 2001.

MARIA INÊZ OLUDÉ da Silva, (“Tio Zambelê”), nas-


ceu em Betânia/PE (26.01.1953). Artista plástica, po-
etisa, professora de francês, pesquisadora do período
escravagista do Brasil e editora da Revista Brasil na
Europa. Reside em Bruxelas desde 1976, aonde che-
gou como exilada política depois de breves passagens
pelo Chile (1973) e pelos refúgios e prisões argenti-
nas (1974–1976).
Iniciou-se na pintura e desenho em 1993 e já desen-
volveu uma técnica própria de desenho espontâneo e
expressionista. Seus traços rápidos e vivos, com temas
ligados à poesia, mostram um enorme prazer no diá­
logo com o seu inconsciente. A bem da verdade, os
trabalhos de Inêz nos atacam pelo jogo (ou embate)
entre consciente e inconsciente. Deixam-nos perple-
xos, mas com pura certeza de que, tanto na pintura
como na escrita, expõem-se uma vigorosa força nor-
destina, mística e racional, um misto de revolta e de
amor, quase paixão pelo que é e pelo que faz.
Tem muitas histórias e poemas no baú e algumas pu-
blicações de contos pela Ed. francesa Harmattan; no
Portal da Unesco, Bruxelas 2006 e pela internet.
Bibliografia: As águas da memória; A rota do escravo,
pinturas e textos; Negros e brancos em cores, pinturas e
humor negro sobre a colonização brasileira; Tumbeira
Kalunga, poemas e pinturas sobre os navios negrei-
ros no Atlântico; Aurora boreal de lembranças, poemas e
pinturas. Todos à espera de editor.

MARIA LÚCIA Lauria CHIAPPETTA, (“A decisão”),


nasceu no Recife/PE (01.05.1934). Descendente de

807
italiano com raízes nordestinas. Diplomada em Le-
tras Neolatinas e Orientação Educacional pela UFPE.
Poeta e também contista. Foi professora, técnica em
Programação Educacional da Sudene, com curso de
especialização no exterior.
Lúcia conquistou diversos prêmios, entre os quais, o 1º
lugar com Destinos e dragrões, Conselho Municipal de
Cultura da Cidade do Recife, 1978; 2º lugar com Corcéis
da espreitada noite, do 8º Concurso Nacional de Poesia,
Fac. Integradas Augusto Motta, RJ, 1980; e Menção
Honrosa no Concurso Literário do CMC, Recife, 1973.
Lúcia Chiappetta foi a única mulher a participar da
Agenda poética do Recife: antologia dos novíssimos, org.
Cyl Gallindo, 1965, com orelha de Audálio Alves e
depoimentos de Pessoa de Moraes, Mauro Mota e
Aguinaldo Silva. Além da particularidade da presen-
ça de Lúcia no livro, que pela primeira vez reunia
dez poetas e dez desenhistas daquela que mais tarde
veio a ser classificada de Geração 65, o livro trouxe
o prefácio de Joaquim Cardozo, agora incluído por
Everardo Norões nas suas Obras completas. O mestre,
que traçou um perfil futuro para cada participante,
disse: “Lúcia Chiappetta: é a poetisa do grupo; poeti-
sa e não poeta como querem alguns... Chiappetta es-
creve versos sempre confrontando os dois princípios:
o YANG e o YIN, como Ângela Aymerich e Carmem
Conde ou, mais recentemente, a portuguesa Natércia
Freire, e a galega Luz Pozo Garza“.
Bibliografia: Destinos e dragões, poesia, 1978; Corcéis
da espreitada noite, poesia, 1980; A colheita do silêncio,
poesia, 2004.
Maria Lúcia participa das antologias: Águas nos trópi-
cos e Fauna e flora nos trópicos, org. Beatriz Alcântara e
Lourdes Sarmento, 2000 e 2002. Além de outras, com
poesias e contos. Tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

808
MÁRIO MÁRCIO de Almeida Santos, (“Luna”), nas-
ceu no Recife/PE (22.08.1927). Passou a infância em
Bom Jardim e Garanhuns/PE. Diplomado em Direito
e em Filosofia pela UFPE. Tem mestrado em História
e é doutor e livre-docente em Filosofia Política pela
UFPE, com a tese “Nascimento Feitosa e a Revolução
de 1884”, considerada “a primeira das quatro melho-
res apresentada, até aquela data”, no referido curso.
Doutor em Filosofia Política, aprovado com distinção
pela tese: O stalinismo. Tem 235 artigos sobre Política,
História e Filosofia, publicados no Jornal do Commercio
entre 1973–1978. Professor, escritor, crítico literário,
teatrólogo, filósofo. Ele não posa como tal, mas a sua
figura serena, observadora, sábia, assim como seus es-
critos, denuncia que a vida de Mário Márcio é pauta-
da fundamentalmente pela filosofia. Ele é um filósofo
dos nossos tempos.
Mário Márcio faz parte da APL, UBE-PE, Sobrames-
PE, Instituto Histórico de Olinda, Academia Olin-
dense de Letras, Associação dos Amigos do Arquivo
Público Estadual Jordão Emerenciano, Sócio Corres-
pondente da Academia Paraibana de Letras.
Foi agraciado com as seguintes comendas: Grau de
Comendador da Ordem do Mérito dos Guararapes,
Governo de Pernambuco, 1986; Museu da Cidade do
Recife, 1999, outorgou-lhe o título de “História Viva
do Recife”; ganhou a Medalha Marechal Trompo-
wsky, Exército Brasileiro, 2003; Medalha Pinto Fer-
reira, Sopece, 2000; Medalha Centenário, da APL,
2001; Medalha do Sesquicentenário, da Biblioteca
Pública do Estado de Pernambuco; Diploma Mauro
Mota, Conselho Estadual de Cultura, 2006.
Bibliografia: Nascimento Feitosa e a Revolução de 1848,
ensaio, Ed. Universitária da UFPE, 1978; O stalinis-
mo, ensaio, Ed. Universitária da UFPE, 1978; As car-
neiradas, revista Clio, Mestrado UFPE, ensaio, 1980;

809
A setembrizada, revista Clio, 1988; Um mito chamado
Olga, ensaio, Sobrames-PE, Prêmio Guilherme Mon-
tenegro, 2004; Noções de metodologia, filosofia, 1991; O
aprendiz de alquimia, ensaio fil., Editora Tempo Brasi-
leiro, 1995; Um homem contra o Império: vida e lutas de
Antônio Borges da Fonseca, ensaio, Fundarpe. Prêmio
Joel Pontes, 1993; e Prêmio Othon Bezerra de Melo,
da APL, 1995; Anatomia de uma tragédia: a hecatombe
de Garanhuns, CEPE, Prêmio Othon B. de Melo, da
APL, 1993; O mito do martírio de Galileu e outros mitos,
ensaio, Ed. Lume, 2006; As sete colunas da sabedoria, fil.,
Lume Edições, 2004. Crítica literária: A grande poesia
de Edmir Domingues, Ed. Bagaço, 1997; Dr. Marcolino,
Ed. Bagaço, 1997; Vida e luta de Aurino Dantas, Ed. Ba-
gaço, 2001; O voo dos carcarás, Ed. Bagaço, 2002; A poe­
sia de Paulo Cardoso, Ed. Micro, 2002; De poetas e de poe-
sia, Ed. Micro, 2004; A arte literária de José Nivaldo, Ed.
Bagaço, 2005; A poesia de Waldemar Lopes, Comunigraf
Editora, 2006; Quarentena, rom., Ed. Bagaço, 1999;
Diário de um hipocondríaco, contos, Ed. Bagaço, 1999;
A face oculta, rom., Ed. Micro, 2004; Sob o signo de Alde-
barã, rom., Ed. Micro, 2004; Iniciação, teatro, peça em
seis quadros e um introito, Ed. Micro, 2004; Honestas
traições: comédia em três atos, Ed. Micro, 2004; O livro
dos meus livros, antologia, Ed. Lume, 2005.

MÁRIO RODRIGUES DO NASCIMENTO, (“Papéis


sombrios”), nasceu em Garanhuns/PE (22.08.1977).
Romancista e contista, articulista do Informativo Cul-
tural u-Carbureto, editado por Nivaldo Tenório. Má-
rio foi uma das grandes vozes, ao lado de Raimundo
Carrero e Waldenio Porto, no I Festival de Literatura
de Garanhuns, 2006, organizado pela Academia de
Letras de Garanhuns, sob a direção do escritor João
Marques, enfocando o tema “Preparação do Escritor”.
Não obstante o seu comportamento arredio, Mário
Rodrigues compõe a vanguarda intelectual da Região,

810
ao lado de Luzinette Laporte, Paulo Gervais e uns pou-
cos mais, desfrutando elevado conceito de escritor.
Bibliografia: A Suíça Pernambucana, rom., 2002; A ma-
drugada dos anjos, rom., 2003.

MÁRIO SETTE, (“Juros do Coração...”), nasceu e


faleceu no Recife/PE (19.04.1886–25.03.1950). Auto-
didata em nível de pós-graduação universitária, pro-
fessor catedrático, funcionário público, folclorista,
romancista, contista, ensaísta.
As rodas literárias do Recife comentavam os contos
escritos por Mário Sette sobre a I Guerra Mundial e
foi dentro desse espírito que ele lançou o seu roman-
ce de estreia: Ao clarão dos obuses, que não obteve o
sucesso das narrativas curtas. O autor voltou-se para
a realidade brasileira, dentro, talvez, dos ditames do
Pré-Modernismo, na linha de um Simões Lopes e que
por isso mesmo encantou Monteiro Lobato. Apare-
cem, então, contos e ensaios, depois novelas, roman-
ces e obras de investigação histórica, que traçam perfis
singulares dos tipos humanos mais característicos do
povo e as tradições do Recife Antigo, com suas cren-
ças, seus hábitos e costumes. Do Recife apenas, não,
também as paisagens canavieiras de Tracunhaém, as
praias e ladeiras de Olinda e da lendária Carua­ru,
princesa do Agreste, ficaram gravados para sempre.
O melhor exemplo dessa linha é o livro Arruar: his-
tória pitoresca do velho Recife, editado pelo seu ex-
aluno Arquimedes de Melo Neto, com o selo da Casa
do Estudante do Brasil.
Muitos dos seus livros, lançados por Monteiro Loba-
to, permitiram a Mário Sette, sem sair do seu Estado,
tornar-se um nome nacional e internacional, através
de revistas e periódicos franceses, portugueses e ar-
gentinos. E seus contos foram incluídos em coletâne-
as organizadas por R. Magalhães Júnior e Graciliano
Ramos. Críticos afirmaram que Senhora de engenho, de

811
Mário Sette, antecedeu a José Américo de Almeida na
regionalização da literatura, com A bagaceira. Crono-
logicamente isso é uma verdade.
Mário Sette viveu a infância e a juventude meio con-
turbadas; morou em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Apesar de injustiçado e perseguido chegou à direção
dos Correios e Telégrafos em Maceió, onde morou
quatro anos, separado do Recife. Morou também em
Caruaru. Aliás, ao escolher este conto, que é da fase
dos escritos de Caruaru, Leonardo Dantas Silva foi
quem, em conversa, me revelou que ele havia sido es-
crito em homenagem ao seu tio Adolpho Silva Filho,
“narra o início do seu romance na Bahia com minha
tia, Carmozina Fernandes Silva“.
Este é o pernambucaníssimo Mário Sette que, no leito
de morte, no Rio de Janeiro, adquiriu forças para pe-
dir à mãe e ao filho Hoel Sette: “No São João Batista,
não!” “No São João Batista, não!” E hoje repousa no
Cemitério de Santo Amaro, no Recife, como era a sua
vontade.
Foi professor de História do Brasil em educandários
recifenses, e na Faculdade de Filosofia do Recife. Via-
jou pela Europa sem dificuldades, pois dominava a
língua francesa. E foi escritor renomado, ganhador
do Prêmio de romance da ABL, com o livro O vigia
da casa-grande.
Bibliografia: Ao clarão dos obuses, contos, 1918; Rosas
e espinhos, contos, 1919; O palanquim dourado, rom.,
1921; Senhora de engenho, rom., 1921; A filha de dona
Sinhá, rom., 1923; O vigia da casa-grande, rom., 1924;
Sombras de baraúnas e João Inácio, contos, 1927; Seu
Candinho da farmácia, rom.; As contas do terço, rom.,
1929; A mulher do meu amigo, nov., 1933; Os Azevedos
do Poço; Anquinhas e Bernardas; Por onde os avós pas-
saram e Barcas de vapor antecederam Arruar: história
pitoresca do Recife Antigo, crônicas, 1948–1949 e
1978; Didáticos: Velhos azulejos e Terra pernambucana,

812
coleção de episódios históricos, bravuras, lendas, fol-
clore, década de 1920.
Mário Sette participa da coletânea O urbanismo na li-
teratura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976.

MAURÍCIO de Albuquerque MELO JÚNIOR, (“Ama-


nhã eu vou”), nasceu em Catende/PE (28.11.1961).
Diplomado em Comunicação Social. Jornalista, pro-
fessor universitário, crítico literário, contista (espe-
cialmente contos infanto-juvenis), novelista e cronis-
ta. Foi crítico literário e repórter de cultura do Correio
Braziliense entre 1989 e 1999. Atuou em assessoria de
imprensa e foi professor universitário. Escreveu rese-
nhas literárias para o Jornal do Brasil e outros jornais
e revistas do país.
Maurício Melo Júnior é jornalista da TV Senado, onde
dirige e apresenta o programa Leituras, dedicado à
Literatura Brasileira. (É uma lista imensa de grandes
nomes da cultura nacional que já lhe concederam en-
trevistas). Foi chefe de telejornalismo da Radiobrás.
Ajudou a fundar a Edições Bagaço (hoje a mais for-
te expressão editorial da Região) pela qual publica
a maioria dos seus livros. Maioria porque Maurício
Melo. já publicou pela AGE e tem contos publicados
em várias antologias e crônicas e artigos publicados
na imprensa nacional.
Bibliografia: Os hóspedes de antanho, 1986; A construção
do mito, 1988; A revolta do Cascudo, 1992; O palhaço que
perdeu o riso, 1993; O vaqueiro misterioso, 1993; A lenda do
Pé-de-Espeto, 1994; As mangas de jasmim, 1995; A cidade
encantada de Jericoacoara, 1995; História da inteligência
nacional, crônicas, AGE, 1995; Fernando de Noronha:
instrução para uso e preservação – viagens, Edições
Bagaço; No país dos caralâmpios – a história das nossas
Alagoas, Edições Bagaço, 2006; Andarilhos – caminhos
só de ida: volta à seca, novelas, 2007; Paranã-puca – e

813
o berço da pátria: passeio histórico e sentimental pela
nação pernambucana, Edições Bagaço, Recife, 2008.
mmelo@senado.gov.br .

MAURO Ramos da MOTA e Albuquerque, (“O cria-


dor de passarinhos”), nasceu e faleceu no Recife/PE
(16.08.1911–22.11.1984). Diplomado pela Faculdade
de Direito do Recife. Poeta, jornalista, professor, cro-
nista, ensaísta, memorialista. É um dos poetas mais
representativos da Geração 45, o que lhe assegurou
uma cadeira na APL, da qual foi também presidente,
e na ABL. Catedrático, por concurso público de Geo-
grafia do Brasil, lecionou no Ginásio do Recife e em
diversas escolas particulares. Colaborou na imprensa
desde a juventude e chegou a secretário, redator-che-
fe e diretor do Diario de Pernambuco, colaborador lite-
rário do Correio da Manhã, do Diário de Notícias e do
Jornal de Letras, no Rio de Janeiro. Durante 15 anos
foi diretor executivo do IJNPS, que o homenageia
com a Sala Mauro Mota, espécie de minimuseu, com
livros e objetos pessoais. Membro do Seminário de
Tropicologia, da UFPE e Fundaj. Diretor do Arquivo
Público de Pernambuco de 1973 a 1983. Foi membro
do Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco e
do Conselho Federal de Cultura.
O livro Elegias recebeu o Prêmio Olavo Bilac da ABL,
o Prêmio de Poesia da APL e o Prêmio Jabuti da Câ-
mara Brasileira do Livro. Já o livro Itinerário, poesia,
arrebatou, em 1975, o Prêmio Pen Club do Brasil. Três
coletâneas reúnem obras de Mauro: Antologia poética,
1968; Antologia em verso e prosa, 1982, e aquela que foi
considerada a mais completa, organizada pelo casal
de escritores Sônia Lessa e Everardo Norões: Mauro
Mota, 2001. A obra e a personalidade de Mauro Mota,
contudo, não serão resumidas em poucas linhas. Um
perfil seu mais amplo encontra-se no livro Bê-a-bá de
Pernambuco ou apontamentos para uma biografia do Esta-

814
do, com uma biobibliografia de Mauro Mota, que for-
nece maiores detalhes sobre suas inúmeras atividades
intelectuais e executivas, distinções, honrarias, associa-
ções a que pertenceu. Mauro é patrono da Cadeira nº
XXXV, da Academia de Letras do Brasil, Brasília/DF,
atualmente ocupada pelo poeta João Carlos Taveira.
Trabalhei com Mauro Mota no IJNPS, tendo como
colega o seu filho e também poeta Maurício Mota,
criando verdadeiros laços de amizade, ampliada mais
tarde para a família, com destaque especial para sua
esposa, a pintora Marly, por quem ainda hoje perdu-
ra com a mesma fraternidade e admiração. Isto não
é privilégio devotado a alguém, é um traço marcante
da família.
Bibliografia: poesias: Elegias, 1952; A tecelã, 1956; Os
epitáfios, 1959; O galo e o cata-vento, 1962; Canto ao meio,
1964; Antologia poética; 1968; Poemas inéditos; separata
de Cahiers du Monde Hispanique et Luso-Brésilien,
1970; Itinerário; 1975; Pernambucânia ou cantos da co-
marca e da memória, 1979; Pernambucânia dois, 1980;
Antologia em verso e prosa, 1982; prosa: No roteiro do
Cariri, 1952; São João do Nordeste, 1952; Cajueiro nor-
destino; e Recife, província literária precursora, 1954;
Itinerário da escola 1956; Cadeira vinte; e Paisagem das
secas, 1958; Estrela de pedra e capitão de fandango, 1960;
Geografia literária e imagens do Nordeste; 1961; Fitofobia
e dietas; 1962; Terra e gente; 1963; A casa: habitação
rural, 1964; História em rótulos de cigarro; 1965; Quem
foi Delmiro Gouveia?, 1967; O criador de passarinhos; O
pátio vermelho; Votos e ex-votos, 1968; Os bichos na fala da
gente, 1969; Amor no Recife, O navegante Gilberto Amado,
discurso de posse e recepção na Academia Brasileira de Le-
tras, 1970; Pernambuco sim, 1972; Cara e c’roa; Igarassu
e a Escolinha de Arte; A gênese de “Casa-grande & senza-
la”, 1974; Virtudes e virtualidades, 1974; Modas e mo-
dos; 1975; Diário de um soldado da Companhia das Índias
Ocidentais; 1976; Gervásio Fioravanti; Manuel Bandeira;

815
Mercados e feira; 1978; Igarassu, outra civilização, 1980;
A estrela de pedra e outros ensaios nordestinos, 1981; For-
talezas de Pernambuco; Do banco de Amintas à cadeira da
Academia, 1982; Barão de Chocolate & companhia; 1983,
Alfinetes e bombons, 1984.
Mauro Mota participa das antologias O urbanismo na
literatura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976;
Pernambuco, terra da poesia, org. Antônio Campos e
Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005,
e tem verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de
Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Glo-
bal Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

MAXIMIANO Accioly CAMPOS, (“Na estrada”), nas-


ceu e faleceu no Recife/PE (19.11.1941–07.08.1998).
Diplomado em Direito pela Unicap, 1966. Pesquisa-
dor, advogado, poeta, romancista, cronista, contista.
Redator da revista Ciência e Trópico, conselheiro da
Fundação Gilberto Freyre.
O Instituto, hoje Fundaj, acolhia, na década de 1960,
um grupo de jovens estudantes universitários, interes-
sado pela Cultura, que, nas horas vagas, reunia-se nos
jardins ou numa sala do casarão colonial para falar
sobre Literatura, Artes Plásticas, Teatro, Cinema, Mú-
sica, ou simplesmente contar piadas e anedotas. Eram
Maximiano Campos, Arnaldo Tobias, Sérgio Moacir
de Albuquerque, Maurício Mota, Sílvio Soares e eu.
Com direito a visitas de Tarcísio Meira César, Renato
Carneiro Campos, e até de figuras importantes como
Vicente do Rego Monteiro, Abelardo Rodrigues, e do
animador da juventude Luís da Câmara Cascudo. En-
contros espontâneos de colegas que trabalhavam na
mesma repartição. Daí, cinco nomes participaram da
Agenda poética do Recife: antologia dos novíssimos, or-
ganizada em 1965 e editada três anos depois. Mauro
Mota, então diretor do Instituto, e Gilberto Freyre,

816
seu idealizador, dispensavam atenção muito especial
aos jovens poetas e escritores. Maximiano Campos já
era o destaque, pelas crônicas e artigos publicados no
Jornal do Commercio e pela vocação para a narrativa,
fato comprovado com a produção do romance Sem
lei nem rei. Seu jeito introspectivo, observador, formal,
não o distanciava do grupo. Ao contrário, ele fazia
questão de estar no meio, com seu sorriso maroto
para os momentos hílares.
No correr dos anos, Maximiano foi secretário de Tu-
rismo, Cultura e Esportes de Pernambuco, na gestão
do Governador Miguel Arraes, 1987–1998, período
em que desenvolveu a política de interiorização da
Cultura, com projetos como Trem da Cultura; Festival
de Cantadores Populares, afora concursos literários
de diversos gêneros e categorias. Republicou autores
de relevância cultural como Deolindo Tavares e As-
censo Ferreira. Pela brilhante atuação como escritor
e como gestor público, recebeu a Medalha do Mérito
da Fundaj, por “relevantes serviços prestados à Cul-
tura Brasileira” especialmente como superintenden-
te do Instituto de Documentação da própria Fundaj;
Medalha Rodrigo de Melo Franco de Andrade “por
relevantes serviços prestados ao Patrimônio Artístico
e Histórico Brasileiro”. Para coroar o reconhecimento
que a Cultura Pernambucana lhe devota, afora a for-
tuna crítica que é extensa com nomes como Gilberto
Freyre, Ariano Suassuna, Raimundo Carrero e outros,
seu filho, o também escritor Antônio Campos, fun-
dou o IMC, com finalidades de preservar a obra do
pai e promover e divulgar a Cultura de Pernambuco,
por todo o Brasil e também pelo exterior.
Impossível citar tudo o que já foi escrito sobre Maxi-
miano desde o início de sua carreira de escritor até o
presente. Também não posso omitir a publicação da
Revista de Cultura e História, de Vitória de Santo Antão,

817
sob a batuta de Marcus Prado, pela narrativa feita sobre
o quadro dramático do escritor, a partir do golpe de
militar de 1964, quando exercia a função de Oficial de
Gabinete do Governo de Miguel Arraes, seu futuro so-
gro. Em agosto de 1964, casa-se com Ana Lúcia Arraes
de Alencar numa capela da Base Aérea do Recife, para
cuja cerimônia o Governador foi trazido sob escolta e
sem permissão de pronunciar uma única palavra. Um
ano depois nasce o filho Eduardo e o casal refugia-se na
fazenda Três Marias, em Vitória. Aí, sempre velado, es-
creve poemas e prepara-se para concluir o bacharelato
em Direito. Em 1968, nasce o segundo filho, Antônio
Campos, ele publica Sem lei nem rei, romance.
O outro fato que detalha toda a sua existência, foi
a publicação do livro Para ler Maximiano Campos, de
Luiz Carlos Monteiro, Edições Bagaço, 2008.
Bibliografia: Sem lei nem rei, rom., 1968; As embosca-
das da sorte, contos, 1971; As sementes do tempo, contos,
1972; As feras mortas, contos, 1975; O major Façanha,
nov., 1975; A loucura imaginosa, nov., 1985; Cartas aos
amigos, ensaios, 2002; Do amor e outras loucuras, poesia,
2003; Os cassacos, nov., 2003; Na estrada, contos, 2005.
Maximiano Campos participa das coletâneas O urba-
nismo na literatura: contistas de Pernambuco, Ed. Li-
vros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; Contos
de Pernambuco, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988,
organizadas por Cyl Gallindo; e de Pernambuco, terra
da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005. Tem verbete na En-
ciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho
e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/
ABL, SP, 2001.

MEDEIROS E ALBUQUERQUE, José Joaquim


de Campos da Costa, (“As calças do Raposo”), nas-
ceu no Recife/PE e faleceu no Rio de Janeiro/RJ
(04.09.1867–09.01.1934). Diplomado em História

818
Natural. Romancista, poeta, teatrólogo, jornalista,
crítico literário, conferencista, professor, orador, en-
saísta, memorialista, contista, inventor e político. De-
putado federal por Pernambuco, abolicionista e repu-
blicano, e membro fundador da ABL.
“Pelo volume de títulos, parece o dono do mundo,
não?” Quem indaga e simultaneamente nos dá a
resposta é o poeta mineiro Anderson Braga Hortas,
uma das maiores expressões da Literatura Brasileira
Contemporânea, que se dispôs a elaborar um ensaio
sobre a figura do nosso conterrâneo Medeiros e Albu-
querque, o qual inaugura seu estudo com este título:
“Medeiros e Albuquerque – Ou o dono do mundo”,
para logo adiante justificar:
“Não, amigos, não vamos falar de um grande indus-
trial, de um megainvestidor, nem de algum rico her-
deiro de lendárias fortunas. Medeiros e Albuquerque
merece o epíteto de dono do mundo ou, talvez me-
lhor, dono da vida não por ter sido senhor de fabuloso
patrimônio ou mirabolantes contas bancárias, mas tão
só pela inteligência e liberdade de espírito, pela cul-
tura e coragem de viver, pela atuação no mundo das
letras e no mundo dos fatos, na política e na educação,
cheio sempre de combatividade e de alegria”.
É lamentável não podermos transcrever todo o traba-
lho do Anderson, tão rico de informações, tão analí-
tico, esclarecedor da personalidade marcante que foi
para Pernambuco e para o Brasil, o escritor Medeiros e
Albuquerque, o primeiro contista pernambucano. Fato
este que enfatizei no livro O urbanismo na literatura.
Começou suas atividades de pedagogo no Recife.
Transferiu-se para o Rio de Janeiro, estudou no Colé-
gio Pedro II, dessa cidade, e na Escola Acadêmica, de
Lisboa, Portugal. Notabilizou-se como pedagogo, foi
vice-diretor do Ginásio Nacional, presidiu o Conser-
vatório Dramático, lecionou no 2.º grau e na Escola
Nacional de Belas Artes, foi nomeado diretor-geral

819
da Instrução Pública do Distrito Federal. É autor do
Hino da República.
Deputado Federal por Pernambuco por duas vezes,
atuou na oposição, teve de refugiar-se, também por
duas vezes, na Embaixada do Chile e do Peru e viver
em Paris de 1912 a 1916.
Como deputado, coube-lhe a iniciativa de propor a Lei
nº 493, de 1898, a primeira a definir e garantir os di-
reitos autorais para obras impressas literárias, científi-
cas e artísticas. Ele próprio comenta parte da sua atua-
ção: “Eu fiz votar a primeira lei sobre direitos autorais,
a primeira lei sobre expulsão de estrangeiros, fui quem
apresentou o primeiro projeto sobre acidentes do tra-
balho, propus a criação do Ministério da Instrução Pú-
blica, tive numerosas outras iniciativas. Mas o regime
presidencial é uma miséria: o poder do presidente ab-
sorve todos os outros. Por fim, me convenci de que o
melhor meio de fazer triunfar certas ideias era sugeri-
las a amigos do Governo, que as apresentavam como
suas e as faziam passar”. É uma pena ele não ter vivido
nos tempos atuais, quando tudo é diferente.
No terreno das invenções, Medeiros e Albuquerque
criou um “cinema estereoscópico” e uma “máquina de
escrever para cifrar e decifrar textos” patenteados na
França e, finalmente, em 1911, diz ele: “eu li a descri-
ção dos motores de aviões”. “Neles se produzem ex-
plosões de gases, que impelem os pistões dos motores
e é esse movimento que é aproveitado para fazer girar
as hélices”. “Eu perguntara: Para que motor?”
Acudiu-lhe a ideia de que seria possível suprimir os
motores: fazer com que as explosões dos gases moves-
sem diretamente a hélice. Em 1918, interrogou-se: E
para que hélice?
Como se pode ver, se Santos Dummont tivesse ouvido
Medeiros e Albuquerque, em vez do 14 Bis, a aviação
já teria começado com o avião a jato.
Jornalista renomado, abolicionista e republicano his-

820
tórico, Medeiros e Albuquerque fundou O Fígaro e O
Clarim, foi diretor de A Tarde e colaborador da Gazeta
de São Paulo e de outros jornais do Rio de Janeiro.
Como comentarista político ou crítico literário, eletri-
zava os leitores e dominava a opinião pública na sua
época, dizem, inclusive, que foi ele a chave que abriu
as portas da Academia.
Um dos fundadores da ABL, da qual ocupou a Secre-
taria-Geral até 1917. Fez parte da Comissão do Dicio-
nário, participou dos debates e redigiu a primeira re-
forma ortográfica, aprovada em 1907, e ainda propôs
o fardão à Academia. Usou vários pseudônimos. E foi
no memorialismo que mais brilhou.
Bibliografia: Pecados e canções da decadência, poesia,
1889; Diálogos de cidades, poesia, 1889; Um homem
prático, contos, 1884; Mãe tapuia, contos, 1900; Poe-
sias, 1994; Contos escolhidos, 1907; Em voz alta, confer.,
1909; O escândalo, teatro, 1909; Pontos de vista, ensaios,
1913; Literatura alheia, trad., 1914; O silêncio é de ouro,
confer., 1916; O perigo americano, confer., 1919; Mar-
ta, rom., 1920; O mistério, rom., com Afrânio Peixoto,
Coelho Neto e Viriato Correia, 1920; Páginas de crí-
tica, crítica, 1920; Fim, poesia, 1922; Graves e fúteis,
diversos, 1922; Teatro… Meu e dos outros, 1923; Lau-
ra, rom., 1923; Poemas sem versos; 1924; O assassino do
general, contos, 1926; A arte de conquistar as mulheres,
1931; Se eu fosse Sherlock Holmes, contos, 1932; O um-
bigo de Adão, contos, 1932; Laura, rom., 1933; Quan-
do eu falava de amor, poesia, 1933; Homens e cousas da
Academia, 1934; Surpresas, contos, 1934; Pensamentos,
1935; Pequena história da literatura brasileira, 1919; Re-
talhos e bisalhos, poesia completa de Pedro II, 1932.
Medeiros e Albuquerque participa das coletâneas O
urbanismo na literatura: contistas de Pernambuco, org.
Cyl Gallindo, Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Ja-
neiro, 1976; Pernambuco, terra da poesia, org. Antônio

821
Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras Editora,
SP, 2005; e tem verbete na Enciclopédia de literatura
brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza,
2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

MICHELINY VERUNSCHK Pinto Machado, (“A


menina do nome de flor”), nasceu no Recife/PE
(10.07.1972). Mestra em Literatura e Crítica Literá-
ria, pela PUC-SP, professora de História do Brasil,
poeta, ensaísta, contista, crítica literária e articulista.
Micheliny criou-se na cidade de Arcoverde, PE. Foi
de lá que recebi alguns dos seus poemas e me assus-
tei: Numa linguagem imprevista e deslumbrante ela
revela a “Geografia íntima do deserto”. Até aí, pensei
“tudo bem, é do Sertão que fala”. Mas pela sucessão
de imagens que explode dessa intimidade, onde há
um corpo “suave e doloroso como as areias cortantes
dos desertos”, e através de metáforas outras, concluí
que era de um deserto além de qualquer Saara. Des-
crito por um poeta de alma antiga e desaforadamente
lírica. Mas de um lirismo carnívoro, capaz de arran-
car pedaços da nossa carne e nervos e músculos.
Repus os poemas nos correios e os enviei para Enaldo
Cândido, diretor do Jornal de Arcoverde, com a reco-
mendação de publicar tudo que fosse possível dessa
artista, da sua Arcoverde, pois “é uma voz mais alta
que se alevanta”. Antes de respirar, recebo o convi-
te para o lançamento de dois livros seus, na Bienal
do Livro de Pernambuco. Nesse evento, encontro-me
com Micheliny rodeada de um pelotão de Galindo e
descubro que as gavinhas dos nossos clãs entrelaçam-
se através de Lourdinha Galindo/Ateniense Macha-
do. As surpresas continuam ao tomar conhecimento
de que Micheliny era uma das finalistas do Prêmio
Portugal Telecom 2004, ao lado de nomes como Au-
gusto de Campos, Décio Pignatari, Manoel de Barros
e Chico Buarque de Holanda.

822
Micheliny escreve desde os dez anos de idade. Seus
trabalhos foram publicados no Jornal do Commercio,
Cadernos Populares, O Pão, Cult, Poesia Sempre e Conti-
nente Multicultural. Participou da mostra EXPoesia, em
Vila do Conde, Portugal, e da antologia Na virada do
século – Poesia e invenção do Brasil. Estreou como con-
tista na revista L’Ordinaire Latino American, da Univer-
sidade de Toulouse II-Le Mirail, França.
No mesmo espaço de tempo, Micheliny migrou para
São Paulo, onde se casou e produziu seu maior poe­
ma: “Nina”, que se encontra, na íntegra, no blog
<www.oquartodenina.zip.net>.
Bibliografia: Geografia íntima do deserto e O observador
e o nada, 2003. Micheliny participa da coletânea Per-
nambuco, terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláu-
dia Cordeiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005.

MILTON Felipe de Albuquerque LINS, (“Os cinco


reinos ganhos e o reino perdido”), nasceu em Cabo de
Santo Agostinho/PE (20.07.1927), residiu no Recife­,
Gravatá, Carpina, no Rio de Janeiro, em São Paulo
e, no exterior, em Paris e Houston, até voltar para
o Recife. Médico cirurgião. poeta, contista, tradutor.
Membro da APL, Alane, UBE-PE, Sobrames.
A obra de Milton Lins é muito singular. Ele é um da-
queles autores que dão “nó em pingo d’água”: qual-
quer tema ele adapta à Literatura, sem no entanto
cair no lugar-comum. O ponto alto da obra de Milton
está na tradução. Tenho dito a ele e a quantos me
ouvem que, para mim, no Brasil, existem duas tra-
duções: a da Divina comédia, de Dante Alighieri, feita
por Cristiano Martins, e a de Ulisses, de James Joyce,
realizada por Antônio Houaiss. Agora aparece a ter-
ceira tradução: Rimbaud – em metro e rima, de Milton
Lins. Traduzir uma obra literária é transpor de um
idioma para outro, ideias, formas, ritmos, harmonias
e conotações da língua original para o idioma que

823
se está traduzindo. Em outras palavras: traduzir é
recriar uma obra num determinado idioma sem fe-
rir as suas qualidades na língua original. Não estou
afirmando que todas as traduções feitas no Brasil são
ruins, embora as livraria estejam abarrotadas de lixos
traduzidos. Refiro-me, aqui, às obras estruturais da
Literatura Universal. A ABL confirmou minhas defi-
nições sobre o trabalho de Milton Lins concedendo-
lhe o prêmio de tradutor do ano de 2010.
Bibliografia: Prestação de contas, contos, 1993; Recon-
tando histórias, 1995; O sino escarlate, 1996, prêmio
de ficção da APL; Livro preto, anotações de viagem, e
ABC, contos, 1997.
Traduções: Rimbaud – em metro e rima, UPE, 1998; Es-
pólio poético de André Chénier, Ed. do tradutor, 2002, e
Pequenas traduções de grandes poetas, vol. 1, 2006, vol.
2, 2007, e Alcoóis, poemas, de Guillaume Apollinaire,
Edições Bagaço, 2008.

MONTEZ MAGNO de Oliveira, (“A construção do


tempo”) nasceu em Timbaúba/PE (27.07.1934). Poe­
ta, artista plástico, tradutor, conferencista, ensaísta,
contista.
Começou a escrever poesias aos 16 anos de idade,
quatro anos depois começou a publicá-las no Jornal
do Commercio, e a escrever artigos neste mesmo jornal
e, ainda, no Diário da Noite, PE, e no Jornal do Brasil,
RJ. Em 1962, muda-se para São Paulo, onde ganha
bolsa de estudos do Instituto de Cultura Hispânica e
vai para Madri cursar História da Arte, ministrada por
José Almagro. Transfere-se para Milão, Itália, estuda
com Gianni Brusamolino e faz amizade com os poetas
Murilo Mendes e Vinicius de Moraes. Em Paris, visita
os Ateliês de Cícero Dias e Di Cavalcanti. De volta ao
Brasil, é convidado pela UFPB, para lecionar Arte.
Participou quatro vezes da Bienal de São Paulo, tendo
recebido o Prêmio Itamaraty de Aquisição, 1967. Par-

824
ticipou, como convidado, das Bienais da Bahia; Valpa-
raíso, Chile, e de Havana, Cuba. E ainda de Salões de
poesia no México, Portugal, Austrália e Croácia.
Traduziu poesias de expressivos nomes da Literatura
Universal, como Rimbaud, Baudelaire, Verlaine, W.
B. Yeats, Hölderlin, entre outros.
Bibliografia: Floemas, poesia, 1978; Narkosis, poesia,
1979–1981; Pequenos sucessos, poesia, 1981; Dentro da
caixa, cinza, poesia; 1980; As estações visionárias, poesia,
1962; Divân de Casa Forte, poesia, 1992; Notassons: nota-
ções musicais e visuais aleatórias; Câmara escura, poesia,
2002; A véspera metálica, poesia, 2005; e mais uma deze-
na de livros inéditos, e muitos contos produzidos.
Montez Magno participa da coletânea Pernambuco,
terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cor-
deiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem ver-
bete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Edito-
ra, FBN/ABL, SP, 2001.

MÚCIO Carneiro LEÃO, (“A última viagem do almi-


rante Silva”), nasceu no Recife/PE e faleceu no Rio
de Janeiro/RJ (17.02.1898–13.08.1969). Diplomado
pela Faculdade de Direito do Recife, servidor público,
professor, poeta, crítico literário, romancista, contis-
ta, ensaísta e jornalista.
Muito jovem, transferiu-se para o Distrito Federal,
onde foi fiscal geral das loterias e agente fiscal do im-
posto de consumo.
Múcio Leão iniciou sua carreira literária com a publi-
cação do livro Ensaios contemporâneos, RJ, 1923, após
o que esteve sempre devotado às letras, ao jornalis-
mo e ao ensino, catedrático da Faculdade Nacional
de Filosofia. Trabalhou no Correio da Manhã, Jornal do
Brasil e, em 1941, com Ribeiro Couto e Cassiano Ri-
cardo, fundou o jornal A Manhã, que provocou verda-
deira revolução na imprensa da época, especialmente

825
nos meios literários, graças ao suplemento Autores e
Livros. Desse suplemento, Múcio Leão colheu sub-
sídios para a vastíssima obra crítico-historiográfica,
composta de onze volumes, com o mesmo título do
suplemento, publicada a partir de 1950. E contribuiu
para sua eleição na ABL, à qual prestou também ines-
timáveis serviços.
Bibliografia: Ensaios contemporâneos, crítica, 1923; Te-
souro recôndito, poesia, 1926; A promessa inútil e outros
contos, 1928; No fim do caminho, rom., 1930; Prêmio de
pureza, contos, 1931; Castigada, rom., 1934; João Ri-
beiro, crítica, 1934; Os países inexistentes, poesia, 1941;
Poesias completas, de Raimundo Correia, org. e pref.,
1948; Poesias, 1949; Nabuco, estudo crítico, 1950;
Emoção e harmonia, ensaio, 1952; Crítica de João Ribeiro,
org. e pref., 1952–1961; O romance de Machado de Assis,
In: ABL, ed. Curso de Romance, 1952; Os modernos,
1952; O frade estrangeiro e outros escritos, de Carlos de
Laet, org. e pref., 1953; Lindolfo Rocha, crítica com
outros, 1953; A poesia brasileira na época colonial, In:
ABL, ed. Curso de Poesia, 1954; João Ribeiro, ensaio
bibliog., 1954; José de Alencar, biogr., 1955; Salvador
de Mendonça, ensaio bibliog., 1955; A crítica de Araripe
Júnior, In: ABL, ed. Curso de Crítica, 1956; O contista
Machado de Assis, In: ABL, ed. Curso de Conto; 1958;
João Ribeiro, trechos escolhidos, org., 1960; Autores e
livros, 11 vols. 1941–1950.
Múcio Leão participa da coletânea O urbanismo na li-
teratura: contistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo,
Ed. Livros do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976;
Pernambuco, terra da poesia, org. Antônio Campos e
Cláudia Cordeiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005,
e tem verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de
Afrânio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Glo-
bal Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

826
NELSON Falcão RODRIGUES, (“A dama do lota-
ção”), nasceu no Recife/PE e faleceu no Rio de Janei-
ro/RJ (23.08.1912–21.12.1980). Jornalista, cronista
esportivo, romancista, contista, dramaturgo. Seu pai,
Mário Rodrigues, jornalista e ex-deputado federal,
para se livrar de perseguições políticas, mudou-se
com a família para o Rio de Janeiro, então Distrito
Federal, quando Nelson ainda era criança, indo resi-
dir na zona norte da cidade. Mário Rodrigues empre-
ga-se no Correio da Manhã. Deixa este jornal e funda
A Manhã, que não prosperou, e então ele funda A Crí-
tica, ambos jornais sensacionalistas. Nelson, aos treze
anos de idade, seguiu com seus irmãos Milton, Mário
Filho e Roberto para trabalhar na redação do novo
jornal. Ali, o jovem Nelson presencia o assassinato de
seu irmão Roberto. Esse fato, somado a uma tubercu-
lose, contraída em seguida, deixariam marcas para
sempre na sua personalidade e na sua obra. Em 1942,
estreou a primeira de suas peças, A mulher sem pecado.
No ano seguinte, Zbigniew Ziembinski montou, no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Vestido de noiva
– “texto fragmentário apresenta ações simultâneas
em tempos diferentes e a coexistência de três planos
(realidade, memória e alucinação)”. Nelson alcançou
fama e passou a ser considerado pela crítica o funda-
dor do moderno teatro brasileiro.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1958, habituei-me
a ler no jornal Última Hora a coluna “A vida como ela
é”, de Nelson Rodrigues. Virou vício. Tornei-me fã do
autor. Sentimento que se converteu em ódio, após o
golpe militar, tão defendido pelo autor de Beijo no as-
falto. Anos depois, soube que Nelson Filho era um ati-
vista de esquerda. Até aí, tudo bem. Mas no momento
em que Nelson Rodrigues declarou que na sua casa
podiam conviver pessoas de pensamentos diferentes,
ele continuaria de direita, o filho de esquerda, porque
se praticava a democracia, voltei a admirar, respeitar

827
e a assistir a peças, filmes, tudo que fora produzido
pelo grande escritor brasileiro. Meu problema não é
alguém pensar diferente de mim, é que interfira à
força na ideologia de alguém. Se o filho tem pensa-
mento próprio, contrário ao do pai, é prova cabal de
que nessa família se praticou a liberdade de pensa-
mento e de expressão.
Além do teatro, do romance, do conto, Nelson Rodri-
gues foi um cronista esportivo dos mais conceituados
da imprensa brasileira, campo que nada me diz, por
ser apático a essa indústria.
Bibliografia: Peças: A mulher sem pecado, 1941; Vesti-
do de noiva, 1943; Álbum de família, 1946; Anjo negro,
1947; Senhora dos afogados, 1947; Doroteia, 1949; Val-
sa nº 6, 1951; A falecida, 1953; Perdoa-me por me traí-
res, 1957; Viúva, porém honesta, 1957; Os sete gatinhos,
1958; Boca de ouro, 1959; O beijo no asfalto, 1960; Otto
Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, 1962; Toda
nudez será castigada, 1965; Anti-Nelson Rodrigues, 1973;
A serpente; 1978. Romances: Meu destino é pecar, 1944;
Escravas do amor; 1944; Minha vida, 1944; Núpcias de
fogo; 1948; A mulher que amou demais, 1949; O homem
proibido, 1959; A mentira, 1953; Asfalto selvagem, 1959
(também conhecido como Engraçadinha); O casamen-
to, 1966. Contos: Cem contos escolhidos: A vida como ela
é..., 1972; Elas gostam de apanhar, 1974; A vida como ela
é: O homem fiel e outros contos, 1992; A dama do lota-
ção e outros contos e crônicas, 1992; A coroa de orquídeas,
1992. Crônicas: Memórias de Nelson Rodrigues, 1967; O
óbvio ululante: primeiras confissões, 1968; A cabra va-
dia, 1970; O reacionário: memórias e confissões, 1977;
O remador de Ben-Hur, 1992; A cabra vadia: novas con-
fissões, 1992; A pátria sem chuteiras: novas crônicas de
futebol, 1992; A menina sem estrela, memórias, 1992; À
sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol, 1992;
A mulher do próximo, 1992. Telenovelas: TV Rio: So-
nho de amor, 1963; O desconhecido, 1964; TV Globo: O

828
homem proibido, 1982. Filmes: Somos dois, 1950; Meu
destino é pecar, 1952; Mulheres e milhões, 1961; Boca de
ouro, 1963; Meu nome é Pelé, 1963; Bonitinha, mas ordi-
nária, 1963; Asfalto selvagem, 1964; A falecida, 1965; O
beijo, 1966; Engraçadinha depois dos trinta, 1966; Toda
nudez será castigada, 1973; O casamento, 1975; A dama
do lotação, 1978; Os sete gatinhos, 1980; O beijo no asfal-
to, 1980; Bonitinha, mas ordinária, 1980; Álbum de famí-
lia, 1981; Engraçadinha; 1981; Perdoa-me por me traíres,
1983; Boca de ouro; 1990; Vestido de noiva; 2006.
Nelson Rodrigues tem verbete na Enciclopédia de lite-
ratura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de
Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

NIVALDO TENÓRIO de Vasconcelos, (“A reforma”),


nasceu em Garanhuns/PE (06.02.1970). Diplomado
em Letras pela UPE. Poeta, contista, editor do jornal
literário u-Carbureto. Nivaldo, Mário Rodrigues do
Nascimento, que estão presentes nesta coletânea, e
Paulo Gervais formam a turma de choque da literatura
jovem de Garanhuns. Realizam encontros literomusi-
cais e publicam jornais que trazem contribuições de
Luzilá Gonçalves Ferreira, Ronaldo Correia de Brito,
Raimundo Carrero e outros consagrados das letras
nacionais. Nivaldo estreou na Literatura com livro de
contos, publicado pela Fundarpe.
Nivaldo e a sua Dorvalina, ele servidor público e ela
professora, são severos batalhadores pela valori­zação
da cultura interiorana e, dizem, presença em pratica-
mente todas as manifestações culturais da cidade.
Bibliografia: A grande torre, contos, 2002, além de ou-
tras obras inéditas.

OLÍMPIO BONALD da Cunha Pedrosa NETO,


(“Mestre João de Dão”), nasceu em Olinda/PE
(17.10.1932). Diplomado pela Faculdade de Direito
do Recife, 1957; técnico em Planejamento do De-

829
senvolvimento Turístico (Cicatur, OEA, México, em
1974); pós-graduado em Jornalismo Político pela
Unicap na década de 1980; curso de Artes Plásticas,
na Escola Livre da Ribeira. Poeta, ensaísta, articulista,
conferencista, professor, pintor, contista.
É membro da APL, do Instituto Histórico de Olinda
e de Goiana. Foi presidente da UBE-PE. É sócio fun-
dador do Centro de Estudos de História Municipal,
da Fiam; da Academia Olindense de Letras; da con-
gênere do Recife; da Alane e da Sociedade dos Poetas
Vivos de Olinda. É vice-presidente da Comissão Na-
cional do Folclore e membro do Conselho da AIP.
Militou como advogado trabalhista e civil e procura-
dor autárquico federal. Foi membro do CEC-PE e de
órgãos congêneres de Olinda e do Recife, consultor
de Cultura e Turismo da Empetur. Fez parte do Con-
selho de Preservação dos Sítios Históricos de Olinda,
do Conselho Editorial da Fundarpe, da Comissão In-
ternacional das Organizações de Festivais Folclóricos
da Unesco; foi presidente da FCCR entre 1994/1995
e representou as instituições literárias de Pernambuco
no Conselho da Lei de Incentivo à Cultura do Gover-
no do Estado de Pernambuco. É pintor, participou do
Movimento de Artes da Ribeira, Olinda, na década
de 1960, com várias exposições e obras em coleções
particulares, estando incluído no Álbum editado pelo
governo estadual: intitulado por José Cláudio Artistas
de Pernambuco, 1982. É professor fundador do curso
de Turismo da Unicap. Dirigiu, quando era ainda es-
tudante, o Olinda Jornal e colabora nos jornais da re-
gião desde a década de 1950. Está citado no Dicioná-
rio biobibliográfico de poetas pernambucanos, Fundarpe,
1993; na Bibliografia pernambucana do folclore, 1999.
É detentor da Comenda da Ordem dos Guararapes
do Estado de Pernambuco e de vários prêmios literá-
rios, entre os quais, o de Contos, conferido pela Se-
cretaria de Educação e Cultura do Estado de Pernam-

830
buco, 1957; o de Poesia, da UBE-PE, em 1966; o de
Ensaio, da APL, 1976, e o de Antropologia Cultural,
da Fundaj, 1990.
Bibliografia: Contos: Um negro volta ao mangue, 1957;
O homem que devia ter morrido há três anos, 1966; Uma
noite no castelo, 1985; A loba e os faisões, 1992; Seresta em
tempo de caju, 1996; Antologia do conto nordestino e con-
temporâneo, 1998; e Antologia do conto nordestino 2000;
Antologia contistas no 3º milênio, 2002; Uma lembrança
de flor: contos olindenses, 2003; Antologia de história
curtas, 2006. Poesia: Dura e breve história da Ilha do
Maruim, 1971; Da lúcida visão do homem de pouca fé,
1965; Tríptico: vida, paixão e canto, 1968; Hinapino,
1974; Estudo de cor na zona da mata sul pernambucana,
1976; Cantoria, 1980; Poética olindense, 1981; Balada
bacamarteira no Alto do Bom Jesus, 1983; Praxis amandi,
1984; O livro da poesia de Olímpio Bonald Neto, 1990;
Sangue e sonhos reinventados, 2003. Antropologia cul-
tural: Os bacamarteiros, 1965; Bacamarte, pólvora e povo,
1976; Palco e palanque, 1963/88; Apresentação da Via-
sacra do mestre Nosa, 1969; Folclore, 1975; O homem
da meia-noite, 1978; A arte do entalhe, tradição artísti-
ca olindense, 1985; Os caboclos de lança, 1987/1978;
Turismo, folclore e artesanato, 1982; Gigantes foliões em
Pernambuco, 1992; Modernismo e integralismo: A ideo-
logia dos anos trinta, 1996; Culinária popular, turismo
e região, 1998. Ensaios literários, técnicos e didáticos:
Guias turísticos de: Olinda, Nova Jerusalém, Itamara-
cá e PE-2, 1973; Introdução ao estudo do turismo, 1975;
Turismo e trópico, 1977; O verbo e a voz, em colabora-
ção com Nelson Saldanha, 1981; Aspectos turísticos de
Pernambuco, em colaboração com Marinalva Coelho,
1983; Potencial turístico do Nordeste, em coautoria com
Zenaide Bonald Pedrosa, 1986; e Elementos do plano e
do projeto em turismo, 1999.
Olímpio Bonald participa, entre quase uma centena
de outras, das coletâneas Pernambuco, terra da poesia,

831
org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, IMC/Escri-
turas Editora, SP, 2005; O urbanismo na literatura: con-
tistas de Pernambuco, org. Cyl Gallindo, Ed. Livros
do Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; e tem ver-
bete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Edito-
ra, FBN/ABL, SP, 2001.

OSMAN da Costa LINS, (“Elegíada”), nasceu em Vi-


tória de Santo Antão/PE e faleceu em São Paulo/SP
(05.07.1924–08.07.1978). Diplomado em Ciências Eco-
nômicas e Dramaturgia. Professor, romancista, ensaís-
ta, contista, um inventor incansável na técnica e forma
de narrar, tanto pela manipulação dos vocábulos como
pela inclusão de símbolos pictográficos. Sua obra tem
merecido estudos de críticos e professores de universi-
dades brasileiras e estrangeiras, como é o caso da pro-
fessora Regina Igel, University of Maryland, USA, que
escreveu: Osman Lins: uma biografia literária, biogr.,
1988; e de Odete Pena Coelho, que produziu Poéticas em
confronto: nove, novena e o romance, ensaio, 1987.
Osman fez o curso primário na sua cidade natal e,
em 1941, transferiu-se para o Recife, conheceu Mário
Sette, que incentivou o autor de Avalovara a publi-
car o seu primeiro conto no Jornal do Commercio. Em
1946, Osman Lins escreve o primeiro romance e o
submete à apreciação de Mauro Mota e Luiz Delgado,
de quem recebe críticas e orientação. Calado, como
era do seu temperamento, Osman reaparece com O
visitante, conquistando o Prêmio Fábio Júnior, 1955.
Seguiram-se o Prêmio Especial, da APL, e o Prêmio
Coelho Neto, da ABL, com repercussão nacional do
seu nome. Muda-se para São Paulo, onde leciona Li-
teratura Brasileira na Faculdade de Marília. Casa-se
com a também escritora Julieta de Godoy Ladeira.
Travei amizade com Osman ao preparar a coletânea
O urbanismo na literatura: contistas de Pernambuco e

832
solicitei autorização sua para incluir um dos seus tra-
balhos. Osman respondeu-me que não era de partici-
par de empreendimentos dessa natureza, “conquanto,
acho a sua ideia simpática e concordei com a inclusão
de um trabalho meu”. Pessoalmente, ele completou
que a ideia de estudar o urbanismo numa literatura,
tida como essencialmente ruralista, “é tema de semi-
nários e teses nas universidades”.
Bibliografia: O visitante, rom., 1955; Os gestos, contos,
Prêmio Monteiro Lobato, SP, 1957; O fiel e a pedra,
rom., 1961; Lisbela e o prisioneiro, teatro, 1961, levado
ao cinema; A idade dos homens, teatro, 1963; Marinheiro
de primeira viagem, relato de viagem, 1963; Nove no-
vena, narrativas, 1966; Um mundo estagnado, ensaio,
1966; Capa-verde e o Natal, teatro infantil, 1967; Guer-
ra do Cansa-Cavalo, teatro infantil, 1967; Avalovara,
rom., 1973; Guerra sem testemunhas, ensaio, 1974, so-
bre o escritor, sua condição e a realidade social; Santa,
automóvel e soldado, teatro, 1975; Lima Barreto e o espaço
romanesco, ensaio, 1976; A rainha dos cárceres da Grécia,
rom., 1976; Do ideal e da glória: problemas inculturais
brasileiros, ensaio, 1977; La paz existe?, relato de via-
gem, 1977; A missa do galo: variação sobre o mesmo
tema, antologia, da qual foi o organizador, 1977; O
diabo na noite de natal, infantil, 1977; Casos especiais de
Osman Lins, contos, 1978; Evangelhos na taba: outros
problemas inculturais brasileiros, ensaio, 1979; Osman
Lins: uma biografia literária, biog., 1988; A ilha no es-
paço, org. Telenia Hill; Relato de Santa Joana Carolina,
teatro, 1991, teatralização de Maria José de Carvalho,
pref. de Julieta de Godoy Ladeira.
Osman Lins participa das coletâneas: O urbanismo
na literatura: contistas de Pernambuco, Ed. Livros do
Mundo Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; e Contos de Per-
nambuco, Ed. Massangana/Fundaj, Recife, 1988, orga-
nizadas por Cyl Gallindo, e tem verbete na Enciclopédia

833
de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante
de Souza, 2. ed., Global Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

PAULO Fernando Lins CALDAS, (“Refresco de


cajá”), nasceu no Recife/PE (15.12.1945). Diplomado
em Economia pela UFPE, possui curso de pós-gradu-
ação em Engenharia de Produção. Poeta, ficcionista,
contista. Milita na Literatura pernambucana desde o
início dos anos 1980, devotado especialmente à pro-
dução de literatura infanto-juvenil. Foi vencedor dos
Prêmios 50 Anos da AABB, gênero conto, e 25 Anos
da Celpe, em poesia. Paulo é um dos sócios funda-
dores da Edições Bagaço, editora que essencialmente
promove e divulga, com o mais alto padrão editorial
do mercado brasileiro, o autor nordestino. Registre-
se o projeto da editora de visitas sistemáticas aos edu-
candários da região, com vista à introdução do estudo
das obras dos nossos autores.
Bibliografia: No tempo do nosso tempo, crônicas, em par-
ceria com o cronista Evaldo Donato, 1980; Era uma
vez um quintal, infanto-juvenil, 1982; Anatomia do baixa
renda, crônicas, 1982; infanto-juvenil, 1983; Asas pra
que te quero, infanto-juvenil, 1985; Reflexões sobre a ter-
ceira idade, ensaio, 1987; República dos bichos, infanto-
juvenil, 1989; Esses bichos maravilhosos e suas incríveis
aventuras, infanto-juvenil, 1988; O fascínio da caixa
preta, infanto-juvenil, 1992; Destino cidade, infanto-ju-
venil, 1993; A tecla sigma, infanto-juvenil, 1995; Flores
para Cecília, infanto-juvenil, 1996; As faces do escorpião,
infanto-juvenil, 1997; A cor da pele, nov., 2000; O sol
além da minha rua, nov., 2003; Um anjo chamado alegria,
nov., 2005. Quase todos com selo da Edições Bagaço.
Paulo Caldas participa da coletânea Pernambuco, terra
da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, também de Fauna
e flora nos trópicos, org. Beatriz Alcântara e Lourdes
Sarmento, 2002.

834
PELÓPIDAS SOARES, (“A grande reta”), nasceu
em Catende/PE e faleceu no Recife/PE (27.03.1922–
10.05.2007). Comerciante, político, poeta, teatrólo-
go, contista.
Embora sua vocação literária tenha se manifestado
desde cedo, ingressou no comércio e na política, dei-
xando as letras para as horas vagas. Ocupou em duas
legislaturas o cargo de presidente da Câmara Muni-
cipal de Catende.
Como comerciante, presidiu o Sindicato de Comércio
Varejista e, decorrente dessa atividade, foi eleito presi-
dente da Federação do Comércio Varejista de Pernam-
buco e presidente do Senac-PE, ocupou várias funções
na CNC-RJ e CNC/RJ/DF. Foi conselheiro do SESC-PE,
do Sebrae e da ACP, e vogal da Junta Comercial-PE.
Essas múltiplas atividades levaram-no a dizer, em tom
de brincadeira, que, dividindo-se tanto, não consegue
ser bom em nada... Mas Pelópidas conseguiu ser bom
cidadão, esposo, pai (Bartyra Soares, presente neste
livro, que o diga), amigo e um excelente intelectual,
campeão de conquista de prêmios e de honrarias ga-
nhas. Entre outras láureas e homenagens, recebeu o
troféu “Cultura Viva de Pernambuco” da (Fundarpe),
o título de Sócio Honorário da Sobrames-PE, a meda-
lha de Colaborador Emérito do Exército, a Medalha
João Alfredo de Oliveira, na categoria Mérito Judiciá-
rio, do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, a
Medalha de Ouro Mérito Judiciário Desembargador
Joaquim Nunes Machado, do TJPE-PE. O Conselho
Deliberativo do Senac-PE denominou de Pelópidas
Soares, o prédio do seu Centro Administrativo. Em
sua cidade fundou colégios, clubes culturais e recrea-
tivos, bibliotecas e revistas, ao tempo em que publica-
va artigos, contos e poemas em jornais do interior e
da capital e em outros Estados brasileiros.
Foi membro da APL, da Alane e da UBE-PE. Tem poe­
mas traduzidos para o espanhol por Gaston Figueira,

835
do Uruguai, e por Leopoldo Gaston Oliver, de Porto
Rico. Foi detentor de onze prêmios literários.
Bibliografia: A outra e outros, contos, 1976, Prêmio Othon
Bezerra de Melo, da APL, 1972; Cordão dos bichos, con-
tos, 1980, Prêmio Cidade do Recife, do Conselho Mu-
nicipal de Cultura, 1974; Alaursa, contos, 1998; A nau
do cata-vento, 2004; Outro sol se levanta, rom., 2007.
Pelópidas Soares participa, entre outras, das seguin-
tes antologias: O urbanismo na literatura: contistas de
Pernambuco, org. Cyl Gallindo, Ed. Livros do Mundo
Inteiro, Rio de Janeiro, 1976; Nova literatura brasilei-
ra, vol. II, 1987; Seleta de autores pernambucanos, 1990;
Conto nordestino e contemporâneo, 1999; Poemas de sal e
sol, 2000; Conto nordestino – ano 2000, 2004.

PERSEU Castro de LEMOS, (“O carro vermelho”),


nasceu em Vitória de Santo Antão/PE (13.08.1925). Di-
plomado em Ciências Médicas, UFPE, 1948, com espe-
cialidade em Cirurgia Plástica, disciplina que lecionou
depois na UPE e na Children’s Medical Relief Interna-
tional, Saigon, Vietnã do Sul. Professor, escritor.
Perseu tem um brilhante currículo no terreno da Me-
dicina, considerado, nos anos 1950, o único especia-
lista em todo o Norte-Nordeste do Brasil. Pertence à
Sobrames, à Academia Pernambucana de Medicina,
às Sociedades Brasileira e Latino-Americana de Ci-
rurgia Plástica e foi um dos fundadores da Sociedade
Internacional de Cirurgia Plástica-Estética.
Igualmente, Perseu Lemos orgulha o Nordeste escri-
tor e, como tal, pertence à Alane e à UBE-PE, com
cinco livros, afora as publicações em revistas e órgãos
da imprensa. Como ele diz de si para si: “Valeu. Só va-
lem as coisas que acompanham a gente a vida toda...”
E a Literatura é uma dessas coisas que estão no imo
de Perseu, pedindo, exigindo, mandando; portanto,
muito ele ainda tem a nos oferecer, especialmente
agora que está aposentado da Medicina.

836
Bibliografia: José de Castro: um pintor de Pernambuco,
no virar do século XX, ensaio, 1984; O 2º quadrante,
contos, com participação de Ana Maria César, Zil-
da Crisóstomo e Ana Maria Feitosa, 1986; Foi assim,
contos 1989; Pelos caminhos da cirurgia plástica, ensaio,
1994; Foi mesmo, contos, 1997.

PIETRO GALINDO da Silveira, (“O louco”), nasceu


no Recife/PE (08.03.1972). Estudou até o 2º grau nos
colégios Americano Batista e Agnes. Iniciou Admi-
nistração de Empresa, mas abandonou o curso, por
constatar que nada tinha a ver com sua vocação. É
empresário e acadêmico de Direito.
Conheci Pietro no dia do seu nascimento: ele é meu
sobrinho-neto. Criou-se misturado com meus filhos
Pablo e Guajassy. À medida que crescia, destacava-
se dos demais sobrinhos, pelo interesse pela leitura,
pelo grude comigo e pelas coisas que escrevia e me
pedia para ler e opinar. Virou meu mascote no dia em
que, aos 11 ou 12 anos de idade, trouxe-me o conto
“O esquecido”, narrando as façanhas de um menino
meio acanhado e meio cínico. Não havia mera coin-
cidência: era autobiográfico mesmo. Satírico, irônico,
realista e muito bem escrito. Daí em diante, Pietro vez
em quando me traz novas narrativas e uma delas é
este “O louco”, que vai arrancar o autor da condição
de inédito, já que seu tio Olbiano Silveira, Comuni-
graf Editora, ainda não se dispôs a editar a sua obra.
Atualmente, Pietro, casado com Edvânia, tem dois fi-
lhos, Eduarda, dez anos, e Pietro Filho, seis, e mora
em João Pessoa, PB, mas mantém negócios em Per-
nambuco. Revela cheio de entusiasmo que descobriu
seu verdadeiro caminho cursando Direito.
No lugar de bibliografia, Pietro traz uma relação de
autores e obras que leu e que o marcaram na juven-
tude, motivando-o, talvez, a escrever: Luis Fernando
Verissimo, Jorge Amado, com destaque para Capitães

837
de areia e Quincas Berro d’Água; James C. Hunter, Ru-
bem Braga, Zé da Luz, Brasil caboclo, e Cyl Gallindo,
“pela exatidão com que define as diferenças compor-
tamentais entre homens e mulheres”.

RAIMUNDO CARRERO, (“Aika Tharina”), nasceu


em Salgueiro/PE (20.12.1947). Jornalista, romancis-
ta, crítico literário, conferencista, teatrólogo, contista.
Estudou em regime de internato e externato no Sa-
lesiano, no Arquidiocesano e Estadual de sua cidade
natal.
Mudou-se para o Recife e dedicou-se ao jornalismo.
Entrou no Diario de Pernambuco, onde exerceu vários
cargos, e assinou uma coluna de crítica literária. Tra-
balhou também na televisão e no Rádio. Foi assessor
de imprensa da Fundaj e no Departamento de Ex-
tensão Cultural da UFPE, sob a orientação de Ariano
Suassuna. Nessa época, ao lado de Marcus Accioly,
Ângelo Monteiro e Maximiano Campos, integrou o
Movimento: Armorial e escreveu a novela A história
de Bernarda Soledade: a tigre do sertão, considerada
por Odylo Costa Filho “uma obra-prima”. Essa no-
vela encerra a trilogia “O inferno somos nós”, que
inclui As sementes do tempo, O semeador e A dupla face
do baralho. Nessa mesma época estreou no teatro com
a peça “Anticrime”, encenada pelo Grupo Otto Pra-
do. Escreveu ainda para o teatro: O misterioso encontro
do destino com a morte, na qual, seguindo a linha de
Ariano e Hermilo Borba Filho, procura reunir a tra-
dição teatral nordestina com as técnicas do roman-
ce moderno, tendo alcançado bons resultados. Hoje
Raimundo Carrero é matéria de estudo em colégios e
universidades brasileiras.
Prêmios Governo do Estado, PE, 1985; APCA, 1995;
FBN, 1995 e Jabuti, 2000.
A maior obra desse autor está no âmbito social e ain-
da vai lhe render um monumento em Pernambuco;

838
trata-se da “Oficina de Carrero”, que funciona nas
dependências da Livraria Jaqueira. Repetida diaria-
mente na CBN, programa de Aldo Vilela. É um tra-
balho de oficina, na qual Raimundo ministra aulas de
Literatura, desmistifica o processo criativo baseado
no “dom de Deus”, na “inspiração divina” e mostra
que escrever é um trabalho como outro qualquer, que
exige disciplina e empenho. E conclui: “Não há gran-
de obra literária, por melhor que seja, sem que o au-
tor apresente uma ampla visão do mundo, capaz de
gerar discussão e debates”. Hoje já existem centenas
de pessoas que perderam o “acanhamento” ou a “ver-
gonha”, jogaram-se sobre o papel e passaram a pro-
duzir suas próprias obras, ou simplesmente tiraram o
que estava engavetado e começaram a publicar livros.
A isso eu chamo de “o milagre da multiplicação de
Raimundo Carrero“, num país de analfabetos, como
o Brasil. Mas esse sertanejo salgueirense não fica por
aí, ele arrebatou o Prêmio São Paulo de Literatura-
2010, com o livro Minha alma é irmã de Deus, Editora
Record. Ao seu lado estava como estreante Edney Sil-
vestre com o livro Se eu fechar os olhos agora.
Carrero chega a 2010, arrebatando o Prêmio de Es-
critor do Ano, do Governo de São Paulo.
Bibliografia: Anticrime, teatro, 1971; A história de Bernarda­
Soledade, rom., 1975; As sementes do sol – o semeador, rom.,
1981; A dupla face do baralho, rom., 1984; Viagem no ven-
tre da baleia, rom., 1986; Sombra severa, rom., 1986, Prê-
mio GPE; O senhor dos sonhos, rom., 1986; Maçã agreste,
rom., 1989; A inocência vem das sombras, rom., O pequeno
pai do tempo, nov., Somos pedras que se consomem, rom.,
1995; As sombrias ruínas da alma, contos, 1999; Minha
alma é irmã de Deus, Editora Record, SP, 2010.

ROSA LIA DINELLI, (“Madeira perfumada”), nas-


ceu em Maués/AM (01.08.1933). Reside há 49 anos
em Pernambuco, dos quais 43 anos no Recife. Poeta,

839
contista, professora, crítica literária. Na Alane, ocupa
a cadeira 533, é secretária-geral da UBT-Recife, inte-
grante da diretoria da UBE-PE, membro da Socieda-
de dos Poetas Vivos de Olinda.
Seu livro Policroísmo poético foi apresentado por Carlos
Severiano Cavalcanti e Vital Corrêa, que proclama:
“Alguns escritores tornam-se uma civilização como
Gilberto Freyre; outros, onde se inclui Rosa Lia Di-
nelli, são uma escola. Escola de sensibilidade, ímpeto
e beleza de expressão, de ritmo e cor melodiosa, ele-
mentos que ela transmite às palavras que engendram
engenhosamente seus poemas”.
Bibliografia: Policroísmo poético, poesia, Comunigraf
Editora, Recife, 2005; Individual poético e instituição
transfigurante, no prelo. Tem participação em 17 an-
tologias.

RUBEM ROCHA FILHO, (“Desfile na Dantas Barre-


to”), nasceu no Rio de Janeiro/RJ e faleceu no Recife/
PE ([?] 1939–28.05.2008). Professor, teatrólogo, dire-
tor teatral, roteirista, declamador, contista. Formou-
se com o grau de Master of Arts, na University of
Wesleyan, USA. Lecionou no Conservatório Nacional
de Teatro, RJ. Produziu para o cinema o roteiro de
Ganga-Zumba.
A convite de Hermilo Borba Filho, chegou ao Recife
em 1968 para dirigir o Teatro Popular do Nordeste,
daí em diante, como ele próprio declara, “tornou-se
mais pernambucanizado do que do Rio”. Passou a
década de 1970 na Europa, principalmente em Lon-
dres, onde redigiu e produziu programas para a BBC
e ainda ensinou Cultura Brasileira no King’s College.
De 1979 para cá, o Recife foi seu território. Ganhou
uma dezena de Prêmios Literários: Fundarpe, APL,
FCCR, Nelson Chaves, Fundaj, Universidade do Rio
Grande do Norte, Bienal Nestlé, UBE-Nacional.

840
Bibliografia: Tilico no meio da rua, [s. d.]; A batalha dos
mamulengos, infantil, 2004; As aventuras de um guia-
mirim, [s.d.]; Os segredos do mar tenebroso, [s. d.]; todos
publicados pela Edições Bagaço, Recife.
Rubem Rocha participa de diversas antologias nacio-
nais.

SÉRGIO MOACIR DE ALBUQUERQUE, (“Deci-


são”), nasceu e faleceu no Recife/PE (21.04.1946–31
.08.2008). Diplomado em Ciências Sociais, UFPE.
Poeta, crítico literário, romancista, pintor, contista.
Começou a escrever na imprensa artigos com estru-
tura de ensaios, sobre grandes nomes da literatura,
aos 15 anos de idade. Trabalhou no IJNPS, sob a
direção de Mauro Mota, ao lado de Arnaldo Tobias,
Maximiano Campos, Sílvio Soares, Cyl Gallindo, de
quem também era condiscípulo na Fafipe/UFPE.
Nessa época participou da Agenda poética do Recife:
antologia dos novíssimos, que mereceu o prefácio
de Joaquim Cardozo, 1986, e o tornou participante
da Geração 65. Escreveu o prefácio da 4ª edição do
Manifesto regionalista modernista do Recife, lançado por
Gilberto Freyre, mas que permanecia inédito, em li-
vro, 1967. Após concluir o curso na Faculdade, para
fugir da repressão e da censura do golpe militar de
1964, mudou-se para a França, onde fez mestrado na
área de Sociologia da Literatura, sob orientação de
Jacques Leenhardt, e doutorado, tendo com mestre
Rolland Barthes, do qual se tornou amigo, na Ecole
Pratique des Hautes Etudes de Paris.
Os poemas de Murais da morte integram a bibliografia
de sua pós-graduação em Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG. Como pintor, realiza
individual na Galeria de Tiago Amorim, e foi assessor
de artes plásticas da Fundarpe.
De volta ao Brasil, casa-se com a também escritora
Lucila Nogueira, com quem viveu quase trinta anos.

841
Da união, tiveram três filhas. A Fliporto de 2008 ho-
menageou Sérgio com Painel, do qual participaram,
além de Lucila e as filhas Marina, Natália e Alme-
nara, os escritores Lucilo Varejão Neto, José Mário
Rodrigues, Ângelo Monteiro e Cyl Gallindo.
Bibliografia: Murais da morte, poesia, ilustrado por
Vicente do Rego Monteiro; 1968; Irene, rom., 1975;
Sinfonia, poesia, 1990; Cantos da definitiva primavera,
poesia, 1998. Deixou inéditos romances, novelas e
poemas e uma monografia sobre Osman Lins.
Sérgio Albuquerque participa da coletânea Pernam-
buco, terra da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia
Cordeiro, IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem
verbete na Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrâ-
nio Coutinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global
Editora, FBN/ABL, SP, 2001.

SI CABRAL (Severina C. Martins), (“Tal pai, tal fi-


lho”), nasceu em Camaragibe/PE (07.03.1949). Di-
plomada em Serviço Social. Trabalhou durante 24
anos na CHESF, aposentando-se em 1999. Participou
da oficina de Cinema e Literatura com o escritor Rai-
mundo Carrero. Faz parte do Grupo Literário Celi-
na de Holanda, coordenado por Maria Pereira. Tem
crônicas publicadas em jornais da CHESF, Aposchesf
(Assoc. dos Aposentados) e Fachesf. Ocupa a cadeira
nº 2 da Academia Camaragibense de Letras, tendo
como patronesse a poeta Celina de Holanda. 1º Lu-
gar no Concurso nacional da Margarina Primor com
“Meu jeito de ser versátil é...”.
Bibliografia: A grande roda da vida, poesia e prosa,
2006.
Si Cabral participa da antologia Os rios e seus poetas,
org. Lourdes Nicácio; do livro Cartas de 11 mulheres e
da Agenda do poeta, 2004, 2005 e 2006, 2007. Além de
outras como: O que as mulheres estão escrevendo, 2004; e
Diário do escritor, 2007.

842
TELMA de Figueiredo BRILHANTE, (“O voo”), nas-
ceu em Crato/CE (18.10.1941). Diplomada em Letras,
com especialização em Língua Portuguesa e Litera-
tura Brasileira, pela UFPE. Poetisa, crítica literária,
contista, professora. Iniciou-se no magistério em sua
cidade natal e continuou em Pernambuco, para onde
se mudou em 1966.
Embora escreva desde a adolescência, veio a publicar
seu primeiro livro Contos chão depois de se aposentar,
vitorioso no Concurso de Contos UBE, sendo indica-
do para publicação pela CEPE, PE, 1999. O segun-
do livro de ficção, Aflição de pássaro, recebeu Menção
Honrosa da APL, em 2005. Conto da terra arrebatou
o 1º lugar no Concurso Luís Jardim, promovido pela
Biblioteca do bairro de Casa Amarela, com apoio da
Prefeitura do Recife.
É correspondente da revista A Província, CE, e pu-
blicou trabalhos em alguns jornais e revistas, como
Letras e Artes, da Alane; Literatura Brasileira, Ed.
Scortecci, SP, 2006; e da antologia Oficina de Letras,
da Sobrames-PE, 2004.
Telma foi eleita para a Alane, substituindo o poeta
Waldemar Lopes, na cadeira 7. Também faz parte da
UBE-PE, da Sociedade dos Poetas Vivos de Olinda, do
Grupo Literário Celina de Holanda, da Associação do
Café Literário de Pernambuco e do Projeto Quarta às
Quatro, da UBE-PE, onde é diretora do Núcleo de Li-
teratura infanto-juvenil. Atuou no Fórum em Defesa
do Livro Pernambucano, Fundaj, 2004; do II Festival
Recifense de Literatura, PE, 2004; da V Bienal Inter-
nacional do Livro em Pernambuco, 2005; do Fórum
de Leitura – Biblioteca do bairro dos Afogados, 2005;
III Festival Recifense de Literatura, 2006; I Festival
de Literatura de Garanhuns, PE, 2006. Telma, Carlos
Severiano Cavalcanti e Lourdes Nicácio organizaram
a antologia Paisagem da memória, com 73 participantes

843
de diferentes localidades do país, Ed. Novo Horizon-
tes, Recife, 2010.
Tem trabalhos publicados em Francachela, Revista In-
ternacional de Literatura e Arte, editada na Argenti-
na, 2005.
Bibliografia: Contos chão, contos, 1999; Destino do pla-
neta Terra, infanto-juvenil, 2003; Aflição de pássaro,
contos, 2004; Pequeno pescador, infanto-juvenil, 2005;
Arabela e o camaleão infanto-juvenil, 2005; Magia do
instante, 2006, Sendas do Oriente, poesias, Ed. Novo
Horizonte, 2009.
Tem verbete no Dicionário crítico de escritoras brasileiras,
org. Nelly Novaes Coelho, Ed. Escrituras, SP, 2002,
e em mais de 30 antologias de poesias e contos, em
Pernambuco e no Ceará.

URARIANO MOTA de Santana, (“Daniel”), nasceu


no Recife/PE (29.09.1950). Diplomado em Jornalis-
mo, atuou como radialista, é escritor por vocação.
Este autor é típico exemplo do jovem brasileiro, dos
anos 50: iniciou num curso de Direito, desistiu; de-
pois no curso de Matemática, desistiu. Fez Jornalismo,
para não dizer que não tinha formação universitária,
porque com o correr do tempo constatou que quase
nada lhe era ensinado. É o tal jogo do “ele faz que
ensina, e eu faço que aprendo” e o que se vê são ba-
charéis que mal sabem assinar o próprio nome. Não
é o caso de Urariano, que se salvou graças à paixão
nutrida pela Literatura, desde criança.
“Estou na literatura desde a década de 1970. Publiquei,
no jornal Movimento, o conto ‘Pensão Paraíso’, com apoio
de Hermilo Borba Filho que, na época, fazia parte do
Conselho Editorial desse periódico. Ainda nessa déca-
da, em abril de 1977, publiquei o conto ‘Uma Noite
na Bahiana’, num número especial de Ficção Humor, ao
lado de Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Stanislaw
Ponte Preta. Cujo editor era Fausto Cunha.”

844
No radialismo, Urariano começou no “Sábado Som”,
da Rádio Capibaribe, junto com Rui Sarinho, Marco
Albertim, Mariana Arraes, fizeram o “Viramundo”.
Mudou-se para a Rádio Tamandaré e fez o programa
“Violência Zero”, sob o patrocínio do Ministério da
Justiça. Na mesma emissora realizou o “Acorda Cam-
ponês”, que se tornou líder de audiência, pelos co-
mentários da semana e boas crônicas apresentadas.
“Do meu trabalho na internet”, diz Urariano, “desta-
caria um texto sobre o assassinato do brasileiro Jean
Charles de Menezes, que corre o mundo, em portu-
guês, espanhol, inglês e em italiano. Outro, sobre o
violonista Canhoto da Paraíba, divulgado pela Rede
Globo de Televisão, sem nenhuma solicitação”, e com-
plementa “mas gerou uma pensão do Governo, que
hoje suaviza o sofrimento desse gênio.” E acrescenta:
“parti para publicar fora das nossas fronteiras, porque
em Pernambuco não me dão mais nenhum espaço”. E
conclui com ironia: “deve ser porque os editores locais
são mais exigentes que os europeus”. A escritora Inês
Oludé, presente nesta Panorâmica, diretora da revista
Brasil na Europa, da qual Urariano é um dos colabo-
radores, diz que “ele é sim do nosso lado, fazia parte
dos estudantes rebeldes de Pernambuco, que lutavam
contra a ditadura e, ainda hoje, não usa panos quentes
para dizer suas verdades sendo, por isso, esquecido”.
Bibliografia: Os corações futuristas, rom., Edições Bagaço,
Recife, 2000; apontado pela crítica como “o mais im-
portante livro lançado no Brasil, depois de 1985”.

VALDECIR FREIRE LOPES, (“Sanatório”), nasceu


em Quipapá/PE (17.03.1921). Escritor, professor.
Nasceu e viveu até os 14 anos na Fazenda Novo Ho-
rizonte, distrito de São Benedito, então município
de Quipapá, e hoje município emancipado, na Mata
Sul, PE. Estudou o curso médio no Recife e aos 16
anos transferiu-se para o Rio de Janeiro, ingressou

845
no IBGE como auxiliar e chegou a dirigir a Diretoria
de Levantamentos Estatísticos. Lecionou na PUC-Rio
e trabalhou na OEA/Cienes – Centro Interamericano
de Enseñanza de Estadística, Santiago, Chile, como
professor de Técnicas Estatísticas. Em 1968, ingres-
sou no Centro Latino-Americano de Demografia
(Celade), das Nações Unidas, vinculado à Cepal. No
Celade, fundou e dirigiu a revista Notas de Población
e exerceu o cargo de diretor-assistente, 1973 e 1980,
ano em que se aposentou e voltou para o Brasil; resi-
de em Teresópolis, RJ.
Bibliografia: Pedaços de vida: relembranças, 1995; Mé-
todo y técnicas de encuesta, Celade, Santiago do Chile,
1978; Lunfardo nas letras de tango, 1998; Manuel Be-
larmino e outras histórias, contos e crônicas, 1999; Vere-
das, contos, crônicas e ensaio, 2005. Organizou o livro
As histórias de Trancoso, justificando por que divulgar
Gonçalo Trancoso, baseado numa obra adquirida por
acaso, em Portugal.

VALDI José COUTINHO, (“Ângelus”), nasceu em


Aliança/PE (25.10.1943). Diplomado em Ciências So-
ciais, UFPE. Jornalista, poeta, contista, artista plásti-
co, professor de dramaturgia, teatrólogo, encenador,
ator, crítico teatral e de artes plásticas, editor de TV.
Foi repórter esportivo, com cobertura de quatro Co-
pas do Mundo de Futebol.
Participante ativo da Geração 65, Valdi Coutinho ilus-
trou um dos poemas da Agenda poética do Recife: an-
tologia dos novíssimos, organizada por Cyl Gallindo,
prefácio de Joaquim Cardozo, com notas de Aguinaldo
Silva, Audálio Alves, Mauro Mota e Pessoa de Moraes.
Conquistou Menção Honrosa, do Prêmio Recife de
Humanidades, com a peça Os coronéis morrem tarde,
Paulete, 1975; e ganhou o Prêmio Talentos da Matu-
ridade, 7ª edição, do Bando Real, com o conto “Ân-
gelus”. Escreveu ainda Danação, teatro, adaptado e

846
encenado pelo grupo Marcus Siqueira Produções Ar-
tísticas, sob o título de Por amor… Eu me aniquilo.
Prefaciou ou apresentou vários livros de escritores e po-
etas pernambucanos. Foi até pouco tempo supervisor
do Espaço Pasárgada, Casa do Poeta Manuel Bandeira,
desde 2001. Coordenou o Prêmio Manuel Bandeira,
2005, que resultou na publicação do livro Aprendiz de
poeta, reunindo os 50 melhores poemas, iniciativa da
Secretaria de Educação e Cultura do Estado, PE.
Há cinco anos, é o editor do jornal Ribalta, do Sindi-
cato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diver-
sões no Estado de Pernambuco.

VANJA (Evangelina) CARNEIRO CAMPOS, Maria,


(“O bem”), nasceu no Recife/PE (25.02.1956). É gra-
duada em Ciências Sociais pela Faculdade de Filoso-
fia do Recife e pesquisadora da Diretoria de Pesquisas
Sociais da Fundação Joaquim Nabuco. Foi Assessora
Parlamentar, Assessora Especial E Chefe de Gabine-
te do Governo Miguel Arraes, 1984/1987/1990. Foi
Chefe de Gabinete do Tribunal de Contas do Estado
de Pernambuco, 1999-2001. Foi Chefe de Gabinete
da Fundação Joaquim Nabuco, 2003/2005. Publicou
o livro de contos O inferno dos bons, e crônicas no Jor-
nal do Commercio e Diario de Pernambuco. Participou
da antologia de Contos da Editora Brasiliense, por
concurso nacional – edição de 1994, e da antologia
Recife conta o São João, patrocinada pela Prefeitura do
Recife­/Secretaria de Cultura/Fundação de Cultura Ci-
dade do Recife, 2008.
Vanja Campos organizou, em homenagem póstuma
ao seu pai, o livro Sempre aos domingos, crônicas (publi-
cadas semanalmente no Diario de Pernambuco), de Re-
nato Carneiro Campos, Recife, 1984. Livro que, em
2006, foi lançado numa segunda edição, prefaciado
por Jaci Bezerra, acrescido com ensaios do seu irmão
Maximiano Campos, da própria Vanja e dos escrito-

847
res José Paulo Cavalcanti e Marcus Accioly, com capa
do pintor João Câmara, a retratar a Ponte Maurício
de Nassau, no Recife. Assim como organizou o livro
Miguel Arraes: pensamento e ação política, com par-
ticipação de Raimundo Carrero, Juareiz Correya, e
dos jornalistas Jair Pereira e Ricardo Leitão, Editora
Topbooks, Rio de janeiro, 1997.
Bibliografia: O inferno dos bons, contos, Editora Inojo-
sa, Recife, 1990.

VERÔNICA NERY Palhano Freire, (“Separação por


assassinato”), nasceu em Araripina/PE (27.01.1948).
Diplomada em Medicina pela Faculdade de Ciências
Médicas de PE, especializou-se em Pediatria. Sanita-
rista, poetisa, romancista, cronista, contista. No pe-
ríodo de estudante editou o jornal O Esculápio, para
assuntos literários. Tem duas monografias sobre as-
suntos médicos. Conquistou três prêmios literários,
um deles em Salvador, BA.
Verônica faz parte da Sobrames-PE, da UBE-PE e da
Alane.
Bibliografia: Por causa das estrelas, poesia, 1996; A
criança que mora em mim, poesia, 1997; Quatro mulhe-
res na primeira pessoa, poesia prosa, 1998; Uma noite
como nenhuma outra, teatro, 2000; Aceita um cafezinho,
romance-memória, 2001; A criação da caixinha de phos-
phoros e outros contos, 2004; e mais um romance e um
livro de poesias, inéditos.

VITAL CORRÊA DE ARAÚJO, (“Vida simples”), nas­


ceu em Vertentes/PE (29.12.1945). Diplomado em
Direito, História e Filosofia. Poeta, escritor, professor,
conferencista, tradutor, especialista em Jorge Luis
Borges, coordenador-geral dos Congressos Brasileiros
de Escritores em Pernambuco, realizados pela UBE-
PE, entidade da qual é o atual presidente, é também
jornalista e tesoureiro da AIP.

848
Ao lado de Paulo Bandeira da Cruz e Iran Gama, Vi-
tal foi um dos idealizadores dos movimentos Poetas
da Rua do Imperador, Geração do Pátio, Clube dos
13 e Quarta às Quatro. Este último, atualmente sob a
coordenação de Geraldo Ferraz, talvez seja o mais im-
portante de todos: consiste em reuniões de escritores
para debates e leitura dos seus próprios trabalhos, o
que tem revelado surpreendentes valores de todas as
idades, além do congraçamento e da promoção social
resultantes desses eventos. Válido para revelação de
valores literários, para congraçamento social, e até
mesmo como terapia ocupacional.
É pouco enquadrar o espírito hiperativo de Vital Cor-
rêa de Araújo como simplesmente poeta, quando ele se
expõe como elemento de vanguarda e com uma trans-
formação da linguagem poética que, sem dúvida, se
projeta para tempos imprevisíveis. No prefácio do seu
último livro Só às paredes confesso, pelo qual a APL lhe
outorgou o Prêmio de Poesia Edmir Domingues, 2006,
o professor e crítico canadense Sebastien Joachim afir-
ma que “o trabalho de Vital assemelha-se aos de Bau-
delaire, Rimbaud e Mallarmé, pelo confronto dos va-
lores morais dos nossos dias”, no que recebe o aval de
Cláudio Veras Toledo, quando justifica: “V.C.A., como
poeta, no meu modo de sentir e no âmbito do meu
conhecimento poético, usufruente solícito da poesia
que sou, deu o salto de qualidade que, em definitivo,
também o distancia, por léguas e metáforas, de todas
as gerações após o modernismo de 22”.
O poeta conquistou importantes prêmios, entre os
quais: Jornal da Cidade de Bauru, SP, 1975; Otoniel
Menezes, RN, 1976; Escrita da Poesia Falada, SP, 1983;
Prêmio Nacional de Poesia e Poeta Chagas Freitas, SP,
1983; Bandepe Valor Pernambucano, 2002; Eugênio
Coimbra Jr., PE; Escrita, SP; Academia Pernambuca-
na de Letras; Edson Régis, do PEN Clube, PE. Como
narrador, o seu conto dá por si só o recado.

849
Bibliografia: Título provisório, 1978; Poemas com endere-
ço, 1980; A cimitarra e o lume, 1981; Burocracial, 1983;
Cesta pernambucana, 1986; Coração de areia, 1994; 50
Poemas escolhidos – pelo autor, 2004 e Só às paredes con-
fesso, 2006, todos de poesias. Tem ainda inéditos li-
vros de poesia em igual quantidade.
Vital Corrêa participa da coletânea Pernambuco, terra
da poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro,
IMC/Escrituras Editora, SP, 2005, e tem verbete na
Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Cou-
tinho e J. Galante de Souza, 2. ed., Global Editora,
FBN/ABL, SP, 2001.

WILLIAM FERRER Coelho, (“Excluídos”), nasceu em


João Pessoa/PB e faleceu no Recife/PE (06.10.1924–
10.10.2006). Diplomado em Direito, contista, poeta,
jornalista.Foi presidente emérito da Academia de Le-
tras e Artes do Nordeste e membro da UBE-PE, da
qual foi vice-presidente em dois mandatos; sócio ho-
norário da Sobrames-PE. Sócio emérito da Academia
de Letras, Artes e Ciências de Olinda, Mérito Cultural
conferido pela Academia Paraibana de Letras, sócio
correspondente da Academia Norte-rio-grandense
de Letras. Acadêmico emérito da ARL, membro da
comissão de Direitos Humanos da AIP. Foi presidente
por dois mandatos da Câmara Pernambucana do Li-
vro e representante no Estado da Editora Vozes, desde
1965. A liderança de William nos meios intelectuais
do Nordeste era um dos pontos altos do seu caráter,
do seu espírito altruísta, que o fez mais atento aos va-
lores dos amigos do que aos seus próprios valores.
Bibliografia: Poemas na noite, 1986; Poemas verticais,
1995; 10 Contos – um real, 1996; Histórias que me conta-
ram, 2000; Poemas outonais, 2002.

WILLIAM Wilson PORTO, (“Aconteceu no Natal”),


nasceu em Arcoverde/PE (04.05.1943), mas se consi-

850
dera um privilegiado por ter duas pátrias: Arcoverde
e Pesqueira, cidade adotiva. Tudo que escreve é in-
fluenciado por essas duas mães. É bancário, trabalhou
30 anos no Banco do Nordeste (BNB). Foi cronista
diário da Rádio Jornal de Pesqueira, por 20 anos, mi-
grando para a Rádio Urubá FM, na mesma cidade,
onde está até o presente. É colaborador permanente
do Jornal de Arcoverde e do Pesqueira Notícias. Tem dois
livros publicados: Baú de Arcoverde e Combate popular
(Crônicas pesqueirenses) e inédito Recuerdos de Ca-
naã, romance, à espera de um editor. William Porto
assegura não ter nenhuma vaidade e nem veleidades,
mas tem consciência de que é um modesto jornalista
matuto. (Com muita honra.)
Quem leu Esses repórteres, de Luiz Amaral, que traça um
rigoroso perfil da imprensa e dos seus profissionais no
Brasil, entende a importância desses “jornalistas ma-
tutos”, na defesa da liberdade, da dignidade e dos mí-
nimos direitos que restam às gentes interioranas. Para
mim, que conheço e sou leitor assíduo de William Por-
to, tanto no Jornal de Arcoverde como no Pesqueira Notí-
cias, presto-me de testemunha da sua bravura, do seu
combate incansável, não contra pessoas, mas contra
um irracional sistema anacrônico que nos governa há
séculos. William Porto é daqueles cidadãos que moti-
varam Euclides da Cunha a declarar que “o sertanejo
é antes de tudo um forte”, pela bravura com que, ao
lado de Enaldo Cândido e Francisco Neves, defende a
verdadeira nacionalidade. Li também o seu “catatau”,
como ele diz, Recuerdos de Canaã, que é indiscutivel-
mente romance, pela sua condição de ficção, pontilha-
do de poesia, mas é também uma obra antropológica,
pelo que revela da História de um povo reprimido,
esmagado, sofrido, que a história dos poderosos não
enxerga. Foi fácil ser socialista de Copacabana para
se exilar numa embaixada, depois voltar ao país e se
eleger deputado, senador. Mas aqueles que viveram

851
no interior, que só tiveram as caatingas de macambira
e facheiros para se refugiar ou se tornaram sacos de
pancadas, a exemplo de Gregório Bezerra, ou não fo-
ram reconhecidos. William Porto conta-nos essa triste
realidade no seu romance.
Bibliografia: Baú de Arcoverde, crônicas, 1986, e Com-
bate popular, crônicas pesqueirenses, 1987.

ZENAIDE Monteiro Bonald PEDROSA, (“Mudando a


vida”), nasceu no Recife/PE (12.05.1934). Diplomada
em Turismo, pela Unicap, onde lecionou, posterior-
mente. Ex-instrutora do Senac no curso de Guias e
Recepcionistas de Turismo. Participou do Movimento
de Arte da Ribeira, Olinda, 1965, como aluna de Adão
Pinheiro e Guita Charifker, e da equipe de fundação da
Escolinha de Arte de Olinda, no Alto da Sé.
Trabalhou no Museu de Arte Contemporânea de Olin-
da, até se aposentar, como funcionária pública. Partici-
pou da Equipe do Condepe/Empetur como pesquisa-
dora da Demanda Turística do RN e PB para o Plano
de Turismo de Pernambuco em 1977. Ex-secretária de
Turismo da Prefeitura de Olinda, na gestão do profes-
sor Germano Coelho. Coautora do livro Potencialidades
turísticas do Nordeste, coleção Nordeste em Evidência nº
16, 1986, com Olímpio Bonald Neto, seu esposo. Tem
contos publicados na antologia da UBE-PE e na revista
Letras e Artes do Nordeste, ambos em 2004. Artigo no Su-
plemento Cultural em julho de 1993. Sócia da UBE-PE
e presença constante e ativa nas reuniões do projeto
“Quarta às Quatro”, idealizado pelo ex-presidente Vital
Corrêa de Araújo e coordenado pelo escritor Geraldo
Ferraz, com o intuito de incentivar, promover e divul-
gar autores jovens (dos 8 aos 80). Zenaide é também
membro honorária da Alane.

ZENILDA PINHEIRO BORGES SANTIAGO, (“En-


canto”), nasceu no Recife/PE (10.08.1933). Diploma-

852
da em Farmácia (UFPE), Direito e Pedagogia pela
Universidade Federal Fluminense, na qual lecionou
Química e por onde se aposentou.
É membro correspondente da Academia Petropolita-
na de Poesia Raul de Leoni, da Associação Nordestina
de Arte de Educadores e da UBE-PE.
Zenilda participa de várias antologias de poesias e
contos, entre elas a coletânea Contos de oficina 3, 2005,
fruto do trabalho da Oficina de Raimundo Carrero.

ZULEIDE DUARTE de Souza, Francisca, (“Nome”),


nasceu em Areia Branca/RN (03.01.1941). Diploma-
da em Letras pela UFPE, com doutorado em Litera-
tura Brasileira pela UFPB. Professora, crítica literária
e escritora. Leciona Literatura de Língua Portuguesa,
com destacada atuação na Sociedade Eça de Queiroz,
do Recife, tanto pelos seus estudos sobre o autor de
Os Maias, como pela valiosa contribuição na organiza-
ção dos Encontros Ecianos.
Zuleide Duarte defendeu a tese de Doutorado em Lite-
ratura Brasileira baseada nas análises dos romances da
escritora Maria de Lourdes Hortas Adeus aldeia e Diário
das chuvas, com ênfase em A impossível ubiquidade: Uma
Representação Melancólica da Diáspora Portuguesa,
como ela denominou a sua tese. Tem trabalhos publi-
cados em revistas nacionais e internacionais.
Bibliografia: Travo, rom., 1990, distinguido, no mes-
mo ano, com Menção Honrosa do Prêmio Othon Be-
zerra de Melo, da APL. Leituras luso-brasileiras, 2002;
D’Eça e d’outros, 2004; Áfricas de África, 2005; Da arte de
maternar e outras artes, 2006.

ZUYLA CARTAXO Candisani, (“Revelação”), nasceu


em São João do Cariri/PB (10.03.1934). Transferiu-se
para o Recife com a família em 1970, onde vive até
hoje. Licenciou-se em Letras pela UFPE. Cursou Li-
cenciatura em Língua Portuguesa e Literatura Brasilei-

853
ra e fez curso de Extensão em Literatura com a profes-
sora e escritora Luzilá Gonçalves Ferreira, participante
desta Coletânea. Também fez curso de Poesia, ministra-
do pelo poeta Marcus Accioly, na UFPE. Nessa mesma
Universidade participou do curso “Lendo e conviven-
do com poetas pernambucanos”, na UnATI/UFPE.
O conto de Zuyla conduziu-me à juventude, na escola
secundária, a ler o soneto “A Esmola”, do cantagalense
Correia de Azevedo e, como se o tempo tivesse parado
no campo social, reencontro-o adaptado a uma narra-
tiva dos dias atuais, mas com toda a força dramática
daquela época. Mudara de gênero, do cenário de uma
escadaria para os sinais de trânsito das grandes cida-
des. Bem elaborado o trabalho de Zuyla.
É sócia efetiva da UBT – Seção Recife; da UBE-PE,
da Sociedade dos Poetas Vivos de Olinda e do Grupo
Literário Celina de Holanda.
Bibliografia: Com os olhos do amor, poesia, Ed. Novo
Estilo, 1993, Prêmio Dante Milano, da Biblioteca
Pública de Niterói, RJ; Ser tão sertão, memórias, Ed.
Edificante, Recife, 2003; apresentação de Antônio
Corrêa de Oliveira e Olímpio Bonald Neto, prefácio
de Nicolino Limongi; Uma face da vida de Bandeira,
ensaio, ed. particular, 2006; A força da Terra, rom., no
prelo da Ed. Novo Estilo.
Zuyla participa das antologias Afluentes poéticas; Cami-
nhos das palavras; Poesia e vida; Canta Sertão, I, II e III;
Antologias dos poetas vivos de Olinda; Os rios e seus poetas,
entre outras.

854
855
856
Abreviaturas e Siglas

AALP - Academia de Artes e Letras de Pernambuco


AAPPE - Associação dos Artistas Plásticos Profissionais de
Pernambuco­
ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte
ABI - Associação Brasileira de Imprensa
ABL - Academia Brasileira de Letras
Acape - Associação dos Cartunistas de Pernambuco
ACP - Associação Comercial de Pernambuco
Aesupe - Associação de Ensino Superior de Pernambuco
AIA - Associação Internacional de Arte
AIAP - Associação Internacional de Artistas Plásticos
AIP - Associação da Imprensa de Pernambuco
Alane - Academia de Letras e Artes do Nordeste
ANE - Associação Nacional de Escritores
APCA - Associação Paulista de Críticos de Artes
APL - Academia Pernambucana de Letras
ARL - Academia Recifense de Letras
Aposchesf - Associação dos Aposentados da CHESF
BIRD - Banco Interamericano de Desenvolvimento
biogr. - biografia
Cagep - Companhia de Armazéns Gerais do Estado de Pernambuco
CEC-PE - Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco
Celade - Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia
Cepal - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CEPE - Companhia Editora de Pernambuco
CHESF - Companhia Hidro Elétrica do São Francisco
CICLA - Coleção Integração Cultural Latino-Americana
CNC - Confederação Nacional do Comércio
Concine - Conselho Nacional de Cinema
confer. - conferência
Conrerp - Conselho Regional de Relações Públicas
Empetur - Empresa de Turismo de Pernambuco
ensaio bibliog. - ensaio bibliográfico
Fachesf - Fundação Chesf de Assistência e Seguridade Social
Fafire - Faculdade Frassinetti do Recife
Faibra - Federação das Associações de Imprensa do Brasil
FBN - Fundação Biblioteca Nacional
FCCR - Fundação de Cultura Cidade do Recife
Fenai - Federação Nacional de Imprensa
Fiam - Fundação de Desenvolvimento Municipal do Interior de
Pernambuco
Fliporto - Feira Literária de Porto de Galinhas
FNFi - Faculdade Nacional de Filosofia
Funarte - Fundação Nacional de Arte
Fundaj - Fundação Joaquim Nabuco
Fundarpe - Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco­
GPE - Governo de Pernambuco
GPL - Gabinete Português de Leitura
hist. - história
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IHGDF - Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal
IJNPS - Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais
IMC - Instituto Maximiano Campos
INL - Instituto Nacional do Livro
Ipase - Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do
Estado­
MEC - Ministério da Educação
MinC - Ministério da Cultura
nov. - novela

858
OCDE - Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA - Organização dos Estados Americanos
org. - organização
pref. - prefácio
PUC - Pontifícia Universidade Católica
rom. - romance
SAMR - Sociedade de Arte Moderna do Recife
Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas
Senac - Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial
SESC - Serviço Social do Comércio
SinjoPE - Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Pernambuco
Sobrames - Sociedade Brasileira de Médicos Escritores
SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
Sudene - Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
TAP - Teatro de Amadores de Pernambuco
TEP - Teatro do Estudante de Pernambuco
TJPE - Tribunal de Justiça de Pernambuco
trad. - tradução
UBE - União Brasileira de Escritores
UBT - União Brasileira de Trovadores
UFPB - Universidade Federal da Paraíba
UFPE - Universidade Federal de Pernambuco
UFRO - Universidade Federal de Roraima
UnATI - Universidade aberta à Terceira Idade
UnB - Universidade de Brasília
UNE - União Nacional dos Estudantes
Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência­e a Cultura
Unicap - Universidade Católica de Pernambuco
UPE - Universidade de Pernambuco
USP - Universidade de São Paulo

859
860
Índice Onomástico

A Albuquerque Pereira 5, 42,


43, 45, 47, 712, 713
Abdias Moura 5, 25, 27, 29,
Alceu Valença 22
710, 711
Aldo Vilela 839
Abelardo da Hora 746, 774,
Alexandre Santos 5, 48, 49,
779
51, 53, 713, 714
Abelardo Rodrigues 816
Alexina Lins Crêspo 755
Adão Pinheiro 852
Alfredo Schmauch 753
Admaldo Matos de Assis 5,
Aloísio Magalhães 757
31, 33, 35, 711
Aluísio Azevedo 22
Adolpho Silva Filho 812
Aluízio Furtado de Mendon-
Afrânio Coutinho 711, 717,
ça 5, 54, 55, 714, 715
723, 724, 726, 728,
Álvaro Lins 776
736, 737, 740, 742,
Amaro de Lyra e César 717
747, 750, 751, 753,
Amílcar Dória Matos 5, 56,
754, 758, 761, 762,
57, 59, 61, 63, 715,
764, 766, 767, 772,
716
774, 777, 778, 788,
Ana das Carrancas 22
793, 797, 800, 804,
Ana Lúcia Arraes de Alencar
807, 808, 816, 818,
818
822, 825, 826, 829,
Ana Maria César 5, 64, 65,
832, 834, 842, 850
717, 837
Afrânio Peixoto 821
Ana Maria Feitosa 837
Aguinaldo Silva 14, 801,
Anatailde Julião 756
808, 846
Anderson Braga Horta 741,
Albert Eckhout 19
819
Alberto da Cunha Melo 22,
Ângela Aymerich 808
752, 801
Ângelo Monteiro 22, 801,
Alberto Lins Caldas 5, 37,
838, 842
39, 41, 712
Aníbal Fernandes 792
Ann Blokland 20 Augusto de Campos 822
Anne-Marie Quint 787 Augusto dos Anjos 22
Antônio Campos 5, 9, 13, Augusto Ferraz 5, 99, 101,
14, 67, 69, 717, 718, 103, 726
719, 720, 723, 724, Augusto Frederico Schmidt
742, 750, 754, 759, 764
761, 772, 777, 778, August Willemsen 763
788, 799, 802, 804, Aurélio Buarque de Holanda
805, 806, 816, 817, 15
818, 822, 823, 825,
826, 832, 834, 842,
850
Antônio Cândido 15 B
Antônio Conselheiro 20 Barbosa Lima Sobrinho 5,
Antônio Corrêa de Oliveira 11, 14, 105, 107, 710,
854 726, 727, 728, 756
Antônio Houaiss 803, 823 Barbosa Melo 758
António Salvado 710 Barlaeus 19
Ariano Suassuna 5, 10, 13, Bartyra Soares 5, 109, 111,
14, 17, 21, 71, 72, 74, 728, 729, 835
76, 78, 80, 82, 84, 86, Baudelaire 825, 849
88, 90, 92, 94, 720, Beatriz Alcântara 752, 787,
722, 723, 732, 735, 788, 808, 834
746, 757, 765, 773, Beatriz Brenner 5, 113,
801, 802, 817, 838 115, 729, 730
Arnaldo Niskier 719 Benedito Monteiro 18, 770
Arnaldo Tobias 5, 95, 723, Benito Araújo 5, 117, 119,
724, 816, 841 730, 731
Arquimedes de Melo Neto Bento Teixeira 19
811 Betinho 739
Artur César Ferreira Reis 18 Burle Marx 770
Ascenso Ferreira 5, 17, 21,
22, 97, 724, 725, 726,
770, 778, 817
Astrid Cabral 18 C
Ateniense Machado 822 Caetano Veloso 22
Audálio Alves 14, 715, 750, Caio Porfírio Carneiro 716
772, 779, 808, 846 Canhoto da Paraíba 845
Augusto Boudoux 730

862
Capiba 22, 802 Cláudia Cordeiro 10, 14,
Carlos de Laet 826 718, 720, 723, 724,
Carlos Drummond de 742, 750, 754, 761,
Andrade 15, 16, 728, 772, 777, 778, 788,
741, 763, 770, 797 802, 804, 807, 816,
Carlos Garcia 750 818, 822, 823, 825,
Carlos Heitor Cony 16 826, 832, 834, 842,
Carlos Newton 13 850
Carlos Newton Júnior 5, Cláudio Aguiar 5, 10, 133,
121, 731, 732 735, 736, 737, 794
Carlos Pena Filho 750, 803 Cláudio Veras Toledo 849
Carlos Severiano Cavalcanti Clécio Quesado 725
5, 126, 127, 734, 843 Cloves Marques 5, 138, 139,
Carmem Conde 808 141, 737
Carmozina Fernandes Silva Coelho Neto 821
812 Corbiniano Lins 22, 769
Carneiro Vilela 792 Correia de Azevedo 854
Carybé 774 Cristiano Cordeiro 760, 770
Cassiano Ricardo 825 Cristiano Martins 823
Castro Alves 10, 22 Cristovam Buarque 5, 143,
Caymmi 22 738, 739, 740
Cecília B. Madrazo 806 Curt Meyer-Clason 800
Cecília Meireles 15, 717 Cussy de Almeida 17, 22,
Celina de Holanda 842 802
Celso Marconi 769 Cyane 712
César Leal 10, 723, 752, Cyl Gallindo 6, 11, 13, 154,
772, 784, 801 710, 713, 717, 720,
Chico Buarque de Holanda 722, 724, 740, 741,
822 742, 746, 753, 754,
Cícero Dias 21, 796, 824 758, 761, 762, 766,
Cícero Romão Batista, Padre 767, 769, 772, 774,
20 777, 780, 784, 793,
Clarice Lispector 5, 11, 14, 797, 801, 806, 808,
129, 726, 734, 735, 813, 816, 818, 821,
736, 748, 763 826, 832, 833, 836,
838, 841, 842, 846

863
D Euclides da Cunha 11, 20,
23, 24, 742, 762, 763,
Dalton Trevisan 16
804, 851
Damião, Frei 21
Evaldo Cabral de Mello 19
Dante Alighieri 722, 823
Evaldo Donato 834
Darcy Ribeiro 18
Evandro Lins e Silva 771
Décio Pignatari 822
Everaldo Moreira Véras 6,
Deolindo Tavares 817
184, 746, 747
Di Cavalcanti 774, 824
Everardo Norões 771, 772,
Dila 21, 22
808, 814
Dioclécio Luz 6, 163, 165,
167, 169, 742, 743
Dirceu Rabelo 731
Djanira Silva 6, 170, 171, F
744, 745
Faria Neves 792
Fátima Quintas 6, 190, 191,
193, 748
E Fausto Cunha 844
Felix de Athayde 750
Edilberto Coutinho 775
Fernando Chinaglia 803
Edmir Domingues 731,
Fernando Freyre 760
750, 849
Fernando Lira 782
Edna Alcântara 6, 173, 745
Fernando Monteiro 6, 194,
Edney Silvestre 839
195, 197, 199, 749,
Eduardo Campos 720, 818
750
Eduardo Freyre de Magal-
Fernando Pessoa Ferreira 6,
hães 767
200, 201, 203, 205,
Eduardo Lucena 6, 175,
207, 209, 750, 751
746
Fernando Py 710
Eduardo Portela 711, 803
Fernando Sabino 844
Edvaldo Arlégo 745
Fernando Spencer 769
Elba Ramalho 802
Ferreira Gullar 22
Elísio Condé 775, 776, 779
Flávio Chaves 6, 211, 731,
Emiliano Zapata 756
751, 752
Enaldo Cândido 822, 851
Flávio Guerra 6, 217, 219,
Ênio Silveira 776
221, 752, 753
Erico Verissimo 15
Floro Bartolomeu 21
Esmaragdo Marroquim
715, 751, 765, 779

864
Francisco Bandeira de Mello Gilberto Mendonça Telles
6, 223, 754 14
Francisco Brennand 22 Gilvan Lemos 6, 22, 270,
Francisco Julião 6, 233, 235, 271, 273, 275, 277,
237, 239, 754, 755, 279, 281, 761, 762
756 Gilvan Samico 774
Francisco Neves 851 Gladstone Vieira Belo 801
Franklin Távora 10, 22 Gonçalo Trancoso 846
Frans Post 19 Gonçalves Dias 22
Franz Kafka 6 Graciliano Ramos 6, 11, 14,
17, 22, 282, 283, 285,
287, 289, 735, 756,
762, 763, 764, 774,
G 796, 811
Gaby Kirsch 737 Gregório Bezerra 852
Gastão de Holanda 6, 241, Guajassy Gallindo 837
243, 245, 247, 249, Guilherme Wanderley 714
251, 253, 757, 758 Guillaume Apollinaire 824
Gaston Figueira 835 Guimarães Rosa 23, 24,
Geneton Morais Neto 778 762, 763, 796
Georg Marcgrave 19 Guita Charifker 774, 852
Geraldino Brasil 730
Geraldo Falcão 6, 254, 255,
257, 259, 758
H
Geraldo Ferraz 849, 852
Germano Coelho 852 Hélio Feijó 779
Gerusa Leal 6, 261, 758, Hermilo Borba Filho 6, 22,
759 291, 721, 726, 764,
Gianni Brusamolino 824 765, 766, 778, 838,
Gilberto Freyre 6, 14, 18, 840, 844
22, 24, 264, 265, 267, Hilda Hilst 512
269, 710, 724, 741, Hildeberto Barbosa Filho
748, 749, 757, 759, 14
760, 761, 773, 774, Hiroito 18
784, 796, 816, 817, Hoel Sette 812
840, 841 Hölderlin 825
Gilberto Freyre Neto 719 Homero 722, 803
Gilberto Gil 22

865
Hugo Vaz 6, 293, 295, 297, J. Galante de Souza 711,
299, 301, 766 717, 723, 724, 726,
728, 736, 737, 740,
742, 747, 750, 751,
753, 754, 758, 761,
I 762, 764, 766, 767,
Inês Oludé 845 772, 774, 777, 778,
Iran Gama 6, 303, 305, 788, 793, 797, 800,
307, 309, 311, 313, 804, 807, 808, 816,
315, 767, 849 818, 822, 825, 826,
Ivo Pitanguy 719 829, 832, 834, 842,
850
J. J. Veiga 765
João Alexandre Barbosa
J 801
Jaci Bezerra 724, 778, 801, João Cabral de Melo Neto
805, 848 22
Jacob Wasserman 769 João Câmara 769, 784
Jacques Leenhardt 841 João Carlos Taveira 815
Jacques Ribemboim 6, 316, João Condé 776
317, 714, 759, 767 João Ferreira de Lima 21
Jair Pereira 848 João Landelino Câmara 784
James C. Hunter 838 João Marques 810
James Joyce 823 João Paulo II 18
Janilton Andrade 785 João Ribeiro 725
Janna McCurdy 763 João Suassuna 720, 787
Jayme Torban 6, 319, 768 Joaquim Cardozo 6, 14,
J. Baptista Chabot 16 324, 325, 327, 329,
J. Borges 21, 22 331, 333, 741, 769,
Jean Charles de Menezes 770, 771, 772, 796,
845 799, 801, 808, 841,
Jenner Augusto 774 846
Jessiva Sabino 725, 726, Joaquim Nabuco 802
778 Joaquim Nunes Machado
835
Johann Wolfgang von
Goethe 418
Jorge Amado 22, 837

866
Jorge Ariel Madrazo 710, Julieta de Godoy Ladeira
742, 806 832, 833
Jorge de Lima 22, 803 Júlio Alcino de Oliveira 805
Jorge Luis Borges 848
José Alexandre Ribemboim
785
José Almagro 824 L
José Américo de Almeida Ladjane Bandeira 6, 357,
22, 812 359, 361, 363, 715,
José Antônio Gonsalves de 779, 780
Mello 19, 22 Lailson de Holanda Caval-
José Carlos Cavalcanti Borg- canti 6, 364, 367, 369,
es 6, 334, 335, 337, 371, 780, 782
339, 341, 753, 772 Lamartine Morais 802
José Cláudio 6, 342, 769, Laura Areias 6, 372, 373,
774, 775, 801, 830 782
José Condé 6, 16, 345, 347, Laurênio de Melo 757
775, 776, 777 Leandro Gomes de Barros
José de Alencar 22 803
José E. Mindlin 764 Leandro Tocantins 18
José Kameniecki 710, 733, Leda Alves 765
806 Lêdo Ivo 23
José Lins do Rego 10, 22, Leila Teixeira 759, 791
773 Leonardo Dantas Silva 812
José Maria Albuquerque Leônidas Câmara 6, 375,
Melo 770 784
José Mário Rodrigues 842 Leon Tolstói 722
José Paulo Cavalcanti 848 Leopoldo Gaston Oliver
José Rodrigues de Paiva 6, 836
349, 351, 737, 777 Lia de Itamaracá 22
José Santiago Naud 741 Liana Ribemboim Feldman
José Veríssimo 18 7, 15, 395, 397, 784,
Josué de Castro 18 785
Juareiz Correya 6, 353, 355, Lívio Abramo 774
725, 726, 777, 778, Louis Aragon 799
848 Lourdes Nicácio 7, 399,
Judith de Jong Andrade 401, 734, 786, 795,
Oliveira 20 842, 843
Juliana Fonseca 795

867
Lourdes Sarmento 7, 402, Luiz Arraes 7, 449, 451,
728, 742, 752, 754, 797, 798
787, 788, 808, 834 Luiz Berto 22
Lourdinha Galindo 822 Luiz Carlos Monteiro 759,
Luce Pereira 7, 407, 409, 818
788, 789 Luiz Delgado 792, 832
Lúcia Cardoso 7, 411, 789, Luiz Gonzaga 22
790 Luiz Luna 725, 769, 770
Lúcia Moura 7, 415, 417, Luiz Sabat 785
790 Lula Côrtes 780
Luciano Pinheiro 769 Luzilá Gonçalves Ferreira
Luciene Freitas 7, 418, 419, 7, 452, 798, 799, 800,
791 829, 854
Lucila Nogueira 745, 752, Luzinette Laporte 811
841, 842 Luz Pozo Garza 808
Lucilo Varejão 7, 420, 423,
791, 792, 793, 794
Lucilo Varejão Filho 792
Lucilo Varejão Neto 7, 425, M
427, 793, 794, 842 Machado de Assis 15, 16,
Lúcio Costa 770, 771 392, 773, 774
Lúcio Ferreira 7, 428, 429, Magalhães Júnior 811
794 Majela Colares 7, 459, 461,
Luís A. Cunha 779 463, 800
Luís André Negrão 7, 430, Mallarmé 849
431, 433, 795 Manoel Camilo dos Santos
Luisa Osdoba 711 21
Luís da Câmara Cascudo Manoel de Barros 822
22, 715, 725, 816 Manuel Arão 792
Luís de Camões 782 Manuel Bandeira 15, 17,
Luis Fernando Verissimo 21, 22, 724, 725, 741,
837 770
Luís Jardim 7, 434, 435, Manuel de Souza Barros
437, 439, 441, 443, 758
445, 447, 796, 797, Márcia Miranda Lira 779
843 Marco Albertim 7, 465, 467,
Luiza Cláudio de Souza 803 469, 800, 845
Luiz Amaral 789, 851
Luiz André Negrão 15

868
Marco Polo Guimarães 7, Mario Schenberg 769
470, 471, 801, 802 Mário Sette 7, 515, 517,
Marcus Accioly 7, 22, 472, 792, 811, 812, 813,
803, 804, 838, 848, 832
854 Marly Mota 815
Marcus Prado 735, 818 Martha de Hollanda Caval-
Margarida Cantarelli 7, 11, canti 791
477, 479, 481, 804, Matheus Nachtergaele 789
805 Maurício de Nassau 19
Maria Aparecida Ribeiro Maurício Melo Júnior 7,
734 519, 813
Maria da Paz Ribeiro Dantas Maurício Mota 815, 816
771 Mauri Gurgel Valente 735
Maria de Lourdes Hortas 7, Mauro Mota 7, 14, 525,
482, 483, 485, 777, 741, 778, 799, 808,
778, 785, 805, 853 814, 815, 816, 832,
Maria do Carmo Barreto 841, 846
Campello de Melo 22, Maximiano Campos 7, 9,
710, 729 10, 11, 14, 22, 535,
Maria Inêz Oludé 7, 487, 537, 539, 541, 543,
807 545, 718, 719, 722,
Maria José de Carvalho 833 816, 817, 818, 838,
Maria Lúcia Chiappetta 7, 841, 848
498, 807, 808 Medeiros e Albuquerque
Mariana Arraes 845 7, 15, 547, 549, 551,
Maria Pereira 842 553, 555, 557, 559,
Marinalva Coelho 831 561, 818, 819, 820,
Mário Câncio 753 821
Mário Cravo 774 Micheliny Verunschk 7,
Mário de Andrade 16, 725, 562, 822, 823
803 Miguel Arraes 14, 720,
Mário Hélio 731, 752 798, 817, 818, 847,
Mário Márcio 7, 502, 731, 848
809 Miguel de Cervantes 722
Mário Rodrigues 827 Millôr Fernandes 844
Mário Rodrigues do Nas- Milton Lins 7, 566, 567,
cimento 7, 512, 810, 569, 713, 823, 824
829 Moacir Lopes 769
Monteiro Lobato 16, 811

869
Montez Magno 7, 571, 573, Olbiano Silveira 837
575, 577, 579, 581, Olímpio Bonald Neto 8,
769, 824, 825 599, 601, 603, 710,
Múcio Leão 7, 583, 585, 713, 731, 753, 829,
587, 825, 826 831, 852, 854
Murilo Mendes 824 Orlando da Costa Ferreira
757
Oscar Niemeyer 770, 771
Osman Lins 8, 14, 22, 605,
N 607, 609, 730, 731,
Nádia Gotiblib 735 758, 832, 833, 842
Nascimento Feitosa 809 Oswald de Andrade 15, 16
Natália Konstantinova 737
Natércia Freire 808
Nélida Piñon 741
P
Nelly Novaes Coelho 844
Nelson Chaves 18 Pablo Cattaneo 711
Nelson Ferreira 22, 753 Pablo Gallindo 837
Nelson Filho 827 Pablo Marcyl Bruyns Gallin-
Nelson Rodrigues 7, 589, do 20
591, 593, 827, 828, Padre Vieira 713
829 Paulo Bandeira da Cruz
Nelson Saldanha 831 767, 849
Nestor Accioly 802 Paulo Caldas 8, 610, 611,
Ney Matogrosso 802 613, 615, 834
Nicolino Limongi 854 Paulo Camelo 734
Nilo Pereira 792 Paulo de Tarso Correia de
Nivaldo Tenório 8, 595, Melo 732
597, 810, 829 Paulo Freire 765
Norma Pérez Martín 711 Paulo Gervais 811, 829
Nosa 22 Pelópidas Soares 8, 617,
619, 621, 778, 835,
836
Pereira da Costa, F. A. 792
O Perseu Lemos 8, 622, 623,
Odete Pena Coelho 832 625, 627, 629, 836
Odylo Costa Filho 838 Pessoa de Moraes 14, 808,
Olavo Bilac 15, 803 846

870
Picasso 21 Rui Facó 21
Pietro Galindo 8, 15, 630, Rui Sarinho 845
631, 837 R. W. Emerson 15
Pietro Maria Bardi 779
Portinari 16
S
Salete Rêgo Barros 733
R
Santiago Ramón y Cajal
Rachel de Queiroz 22, 721, 133
722 Santo Agostinho 571
Raimundo Carrero 8, 9, 22, Santos Dummont 820
633, 729, 745, 790, Sara Erlich 785
797, 810, 817, 829, Schneider Carpeggiani 734
838, 839, 842, 848 Sebastião Barreto Campelo
Raimundo Correia 826 760
Raphaela Nicácio 734, 786 Sebastião Pinheiro 744
Raul Bopp 16 Sebastião Vila Nova 716
Raul Pompéia 10, 15 Sebastien Joachim 745, 849
Regina Igel 742, 832 Sérgio Milliet 725
Renato Carneiro Campos Sérgio Moacir de Albuquer-
769, 816, 847 que 8, 652, 653, 655,
Reynaldo Fonseca 774 816, 841, 842
Ribeiro Couto 825 Si Cabral 8, 656, 657, 842
Ricardo Leitão 848 Sílvia Pontual 724
Rimbaud 644, 794, 825, 849 Sílvio Rabelo 792
Rodrigo de Andrade 770 Silvio Romero 10
Roger Bastide 725 Sílvio Soares 816, 841
Rolland Barthes 841 Simões Lopes Neto 15, 811
Ronaldo Correia de Brito Sivuca 22
829 Sônia Lessa 814
Rosa Lia Dinelli 8, 638, 639, Souza Barros 725, 770
641, 643, 713, 734, Stanislaw Ponte Preta 844
839, 840 Stela Griz 725
Rubem Braga 770, 838 Sylvie Debs 737
Rubem Rocha Filho 8, 644,
840, 841
Rui Barbosa 726

871
T Vanja Carneiro Campos 8,
675, 847, 848
Tarcísio Meira César 801,
Verlaine 825
816
Verônica Nery 8, 681, 683,
Tarcísio Pereira 769
848
Tatiane Bastos Lins de Melo
Vicente do Rego Monteiro
795
21, 816, 842
Tchinguiz Aitmatov 799
Vinicius de Moraes 741, 824
Teca Calazans 802
Viriato Correia 821
Telenia Hill 833
Vital Corrêa de Araújo 8,
Telma de Figueiredo Bril-
685, 687, 731, 767,
hante 8, 659, 734, 843
840, 848, 849, 850,
Teotônio Freire 792
852
Tereza Batista 785
Vitalino 22
Terezinha Acioli 733
Thiago de Mello 18
Tiago Amorim 841
Tobias Barreto 10 W
Tomás Seixas 769
Tom Jobim 21 Waldemar Lopes 742, 843
Tristão de Athayde 725 Waldenio Porto 714, 810
Wellington Virgolino 769
William Ferrer 8, 688, 850
William L. Grossman 774
U William Piso 19
William Porto 8, 691, 693,
Ulysses Pernambucano de
695, 851, 852
Melo Sobrinho 772
Wilson Martins 758
Urariano Mota 8, 661, 663,
Wilton de Souza 753
665, 801, 844, 845

Y
V
Yeats, W. B. 825
Valdecir Freire Lopes 8,
667, 669, 845
Valdemar de Oliveira 773
Valdi Coutinho 8, 671, 846 Z
Vamireh Chacon 22, 760
Zbigniew Ziembinski 827

872
Zé da Luz 838
Zélia de Andrade Lima 13,
721
Zenaide Bonald Pedrosa 831
Zenaide Pedrosa 8, 696,
697, 852
Zenilda Pinheiro Borges
Santiago 8, 699, 701,
853
Zezé Motta 802
Zilda Crisóstomo 837
Zuleide Duarte 8, 703, 853
Zuyla Cartaxo 8, 707, 853,
854

873
874
Ficha técnica - 1ª edição

Copyright da edição© 2007 Escrituras Editora

Organizadores
Antônio Campos | Cyl Gallindo

Editor
Raimundo Gadelha

Coordenação editorial
Camile Mendrot

Digitação
Iraneide Gomes

Apoio operacional (IMC)


Andreza Santos Vera Cruz

Preparação e revisão de texto


Norma Baracho Araújo

Revisão de texto
Vanessa Santos Spagnul | Antonio Paulo Benatti

Projeto gráfico e capa


Herbert Junior

Editoração eletrônica
Ingrid Velasques

Impressão
Gráfica Edições Loyola

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Este livro foi composto e editado eletronicamente na fonte New Baskerville,
com tiragem de 1.500 exemplares.
Impressão em papel Chamois Fine Dunas, 67g/m², para o miolo e
Triplex, 250g/m², para a capa.
Produzido pela Gráfica Santa Marta.
João Pessoa, Brasil, outubro de 2010.
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