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Caminhadas

na Bruma
Um conto de
Simone de Fátima Gonçalves

Ilustrações de António Serer


Caminhadas
na Bruma

Um conto de

Simone de Fátima Gonçalves


Título Caminhadas na Bruma
Texto Simone de Fátima Gonçalves
Ilustrações António Serer
Autores da ideia Maria Antónia / Manuel Cordeiro
Governador do Distrito Rotário 1970

Design Gráfico Minfo Gráfica, Lda


Impressão Minfo Gráfica, Lda
Tiragem 2000 exp
1ª Edição Novembro de 2009
2ª Edição Dezembro de 2009

isbn 978-989-8211-04-0
Depósito Legal 301897/09

Edição
Garça Editores, Lda
Av. da Galiza – Edifico Miradouro
Centro Comercial – Loja 22
5050-251 Peso da Régua
telf.: 254 321 020
email: publicacoes@garcaeditores.com
À minha filha Maiara,
um raio de sol que ilumina os meus dias
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Aquela era uma vila típica dos anos sessenta, que
se movia numa lentidão harmoniosa, de gente rica e
gente pobre, cada qual com as suas rotinas. Rotinas de
desafogo para uns. Rotinas de trabalho penoso para
outros. Assim era com os Albuquerques, família
brasonada, de boas rendas e mordomias, e assim era
com os Moreiras, família humilde, de pobre e árida
lavoura.
Embora com pouco ou nada em comum, por
jornadearem em universos distintos, o certo é que os
destinos destas famílias iriam cruzar-se no mesmo
enredo, na mesma fatalidade.

***

– Menino Pedro, levante-se da cama que o café


está servido e a hora da escola já se aproxima! – dizia,
de forma suave e generosa, a governanta da casa.
E o menino, nos seus gestos matinais, inocentes,
espreguiçava-se longamente e, sempre vagaroso, lá ia
obedecendo à velha serviçal, a demonstrar bem o
cansaço próprio do final do ano lectivo.

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– Já falta pouco, menino, e então poderá dormir
e brincar, fazer tudo o que mais deseja – consolava-o
ela.
O menino, que começara muito cedo os seus
estudos, não entendia por que tinha de deixar de lado a
diversão para se embrenhar numa rotina tão intensa,
que incluía as aulas da escola, mas também aulas de
língua estrangeira, piano, e tantas outras formações que
não lhe pareciam nada úteis. O que ele mais queria era
brincar. E quando reclamava, seu pai logo lhe dizia:
– Terás muito tempo para brincar, meu filho,
agora é hora de te preparares para o futuro. Bem sabes
que és o meu único herdeiro!
Diante de tão forte argumento, o menino já não
reclamava mais. Mesmo que o desencanto às vezes
doesse. E como doía, quando avistava pela janela as
crianças que brincavam pelas ruas e estas sempre lhe
sorriam e correspondiam aos seus acenos…!

***

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Não muito longe dali, Luis, que tinha a mesma
idade de Pedro, levantava-se ao ritmo do sol, mas não
para ir à escola. A escola era sempre para mais tarde.
Àquela hora, com a luz do dia a lançar os primeiros
fogachos pelas frinchas da porta, também ele se movia
vagaroso, mostrando bem o desconforto da chamada:
– Anda, meu filho, são horas de ordenhar as
vacas!
A rotina era sempre a mesma. O menino tinha de
ajudar na lida. E depois tinha ainda muito para
caminhar até chegar à escola. Por fim, ao entardecer,
quando o cansaço já era muito, as outras crianças
ainda o desafiavam:
– Então, Luis, tu não brincas nunca?
E ele:
– Hoje estou cansado demais, tenho de ir para
casa.
Quando chegava a casa, o que mais lhe apetecia
era sentar-se a escutar as histórias contadas por sua
mãe, enquanto afagava o estômago com uma sopa
bem recheada de legumes. E era seu pai, quem depois

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o carregava, adormecido, para a cama que ficava no
mesmo quarto do casal.

***

Na casa dos Albuquerques, a noite era reservada


a recepções de pessoas ilustres e jantares de negócios,
que nada diziam aos anseios de Pedro. Por isso, à
primeira escapadela, lá se refugiava no seu quarto,
onde a velha governanta, antes de o deitar para
dormir, sempre perguntava:
– Então, menino Pedro, hoje quer viajar de novo
pelo mundo das histórias infantis?
O menino abria logo um grande sorriso e sacudia
a cabeça positivamente. Dolores, a governanta, sabia
que mais uma vez o menino não chegaria ao final da
história que lhe iria ler. Logo, logo, estaria
mergulhado no mundo dos sonhos.
– Pobre menino! – exclamava Dolores,
lamentando-se por ver a infância daquele pequeno tão
privada de alegrias.

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O tempo foi passando e as tão esperadas férias de
1962 já se aproximavam, quando Albuquerque
chegou a casa trazendo novidades. Diz para a esposa:
– Fala-se por toda a parte de uma doença que está
atingindo as crianças. Chama-se Poliomielite. É uma
doença já muito antiga, mas que agora está a espalhar-
-se como um rastilho de pólvora.
– Espalha-se por onde tem de espalhar – reage a
esposa. – Com o nosso menino, estou em crer que não
há preocupações.
– Não há porque, felizmente, também existe já
uma vacina para combatê-la, a Sabin. E a prevenção é
a única arma que existe, uma vez que a doença é
irreversível.
– Do que falas, marido? Vacinar o meu Pedro?
Isso nunca! A minha mãe nunca quis nada com
vacinas, e ela bem sabia porquê. Por isso nunca nos
vacinou e olha se algum mal nos aconteceu!
O Albuquerque ouvia a esposa e percebia como
as suas palavras arrastavam ainda os temores de sua
mãe. Ela, que por ouvir dizer que as vacinas são
produzidas a partir do vírus da doença, nunca

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permitiu que seus filhos fossem vacinados. Achava
que, dessa forma, estaria injectando doenças no corpo
das crianças. Assim como ela, muitas pessoas mal
informadas, compartilhavam este mito.
– Ah, mulher teimosa, Deus queira que não te
venhas a arrepender! – lamentou-se o marido, já
cansado da conversa.
O tempo continuou, as discussões também… mas
a esposa acabou vencendo: o menino não foi
vacinado.

***

Na casa dos Moreiras, quem trouxe a novidade


foi uma vizinha, que servia em várias casas da vila.
Diz ela para a mãe de Luis:
– Ainda não vacinaste o menino? Olha que anda
por aí toda a gente a vacinar as crianças contra uma
malvada doença, a Poliomielite…!
– Não vacinei, não. Sabes como nossa vida é,
sempre a correr. Não há tempo para nada. Pode ser

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que para a semana que vem eu consiga um tempinho
para levá-lo.
– Então não te descuides! Dizem que esta doença
é tão perigosa, que deixa as crianças paralíticas!
– Credo, mulher! Nem me venhas falar em
doenças dessas! Sabes bem que o meu Luis tem a
protecção de seu Anjo de Guarda!
– Protecção do Anjo da Guarda também os meus
a têm! Mas ainda assim, já os levei a vacinar e sei que
por toda a vizinhança estão fazendo a mesma coisa!
Entretanto os dias foram passando, e… vou hoje,
vou amanhã, vou depois, o certo é que o menino
acabou por não ser vacinado.

***

– Menino Pedro, vamos lá levantar! Chegaram as


férias, são horas de brincar! – assim falou a
governanta Dolores, amorosamente como sempre,
mas agora em tom alegre, como quem vem para dar a
maior novidade do mundo.

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– Não quero, Dolores – respondeu o menino, –
sinto a minha cabeça rodando e muitos tremores de
frio.
– Santo Deus, o menino está a arder em febre! –
exclamou ela.
E logo gritou para a patroa:
– Acuda, minha senhora, que o menino não está
bem!

***

Enquanto isto, na casa de Luis as coisas tinham


um rumo semelhante. O pai selou a jumenta e foi,
muito satisfeito, dizer ao filho que agora poderia
cavalgar livremente. Por fim, tinha tempo para brincar.
– Como agora já não tens escola e o trabalho não
é muito, pega na burra e vai dar uma volta. Junta-te
com a outra rapaziada e podes brincar à vontade!
No entanto, o menino deixou-se estar mudo e
quedo. Não se levantou da cama. Dali a pouco, voltou
o pai:

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– Então rapaz, olha que o sol já se cansou de
esperar por ti e já vai alto!
O menino tentou mover a cabecita para lhe
responder, mas a dor era tanta e tantas náuseas ele
sentia que mal podia balbuciar uma palavra.
Estranhando a falta de reacção do pequeno, o pai
chamou a mãe ao quarto.
– Não sei o que se passa com ele! Será que
comeu alguma fruta verde? Não me parece nada bem!
Mal a mãe tocou no pequeno, logo desata a
gritar:
– Santo Deus, homem, o nosso menino está a
morrer! Temos de o levar já para a cidade!
Assim fizeram. E no meio da angústia em que se
encontravam no hospital, enquanto aguardavam pelo
resultado dos exames, puderam perceber, que, ali ao
pé, estava também uma família, de aparência distinta, a
passar por desespero igual.
Eram os Albuquerques.

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O que ali se escutava eram lamentos de uma
mulher que dizia:
– Não pode ser! Como pode esta doença maldita
chegar até ao meu Pedro! Nunca me perdoarei por não
o ter vacinado!
Ao escutar estes lamentos, a mãe de Luis
aproximou-se para saber o que se passava também com
aquele menino. Não conversaram por muito tempo,
mas foi o suficiente para perceberem que seus filhos
sofriam do mesmo mal e que as duas, embora por
razões bem diferentes, haviam cometido o mesmo erro.
O resultado dos exames veio confirmar que as
crianças estavam mesmo com Poliomielite. Correr nas
ruas e nos campos, subir às árvores, espreitar os
ninhos, jogar ao eixo e à bola… iria ser, desde agora,
uma miragem para eles. Claro que os outros meninos
os rodeavam de todos os agrados, incitando-os à
alegria, e sempre as casas de ambos se enchiam com o
som das suas risadas. Ou não sentisse toda a
comunidade, por eles, um misto de solidariedade e
gratidão. Afinal, eram um símbolo vivo da luta travada
contra a Poliomielite.

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Em momentos assim, os dois pequenos lá
conseguiam esquecer as sequelas deixadas pela doença.
Já as mães, essas, nunca esqueceram, nem tão pouco se
perdoaram. Em seus olhos, podia ver-se estampado o
apelo para que mais nenhuma criança deixasse de ser
vacinada contra esta doença que ceifa de forma
impiedosa os sonhos de tantos meninos e meninas,
independendo de raça ou condição social. Este apelo
foi prontamente aceite por todas as famílias das
redondezas que, com muita responsabilidade, jamais
deixaram de vacinar os seus filhos. E assim essa
doença, tão cruel, não vitimou mais ninguém por
aquelas bandas.

***

Hoje, uma boa soma de anos passados, Pedro e


Luis são dois homens grandes. Grandes Homens.
Sublimaram com coragem a bruma dos seus dias e há
sempre horizontes de esperança nos seus olhos. Ambos
dão o rosto, o saber e o esforço por uma Associação de
cuidados de saúde para a comunidade, que ajudaram a

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fundar. Sabem bem que esta doença traiçoeira está
sempre à espreita, pronta a atacar. Por isso, no posto de
saúde local, a vacina nunca falta.
E não se cansam de avisar que são sempre
necessários muitos anos para a Poliomielite ser
erradicada de um país, e que, enquanto ela existir em
algum lugar do planeta, qualquer um, estando
desprevenido, pode ser sua próxima vítima.

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O Rotary e o porquê
de não desarmar nesta luta…
A Pólio é uma doença altamente contagiosa que ainda mata
crianças, em geral menores de cinco anos, em certos países da Ásia,
África e Oriente Médio. Pode causar paralisia, sendo fatal em alguns
casos. A melhor protecção contra a doença é a prevenção, pois, uma
vez contraída, não tem cura. É historicamente a doença que mais
deficiências físicas causou nos seres humanos.

Se não for erradicada, o mundo continuará a viver sob a sua


ameaça, e estima-se que mais de 10 milhões de crianças serão
vitimadas por ela nos próximos 40 anos.

Rotary criou, em 1985, o programa Pólio-Plus, considerado o


mais ambicioso da sua longa história de mais de 100 anos. É mesmo
o expoente máximo dos trabalhos voluntários na campanha global
para erradicação da Pólio. Rotary soube chamar para este programa
parceiros do sector público-privado dos mais de 200 países onde
existe. Hoje, o programa é reconhecido mundialmente como modelo
de cooperação pela conquista de uma meta humanitária, a erradicação
da Pólio.

Tenhamos esperança de que num futuro muito próximo possamos


“cantar vitória”.

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Peço aos pais e avós que leiam esta história a seus filhos ou
netos e assim vivam um momento de prazer, e que lhes transmitam o
quanto importante é a vacinação contra a Pólio ou outras doenças.

Cabe-nos reconhecer a generosidade de Simone de Fátima


Gonçalves, autora do belíssimo conto aqui publicado, e do seu
talentoso ilustrador António Serer, bem como da Garça Editores, na
pessoa do nosso companheiro rotário Mário Mendes, que acolheu
o projecto. Um reconhecimento especial é ainda devido ao Prof.
Doutor Alexandre Parafita, ilustre escritor, pelo seu acompanhamento
e sugestões oportunas, e, obviamente, ao benemérito empresário
Carlos Peixoto (REALVITUR) que patrocinou a edição.

Bem haja a todos.

Maria Antónia Cordeiro


Rotary Club de Vila Real - Distrito 1970, 2009 – 2010

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C
aminhadas na Bruma é a narração de
duas histórias de vida que se cruzam
no mesmo drama: a Poliomielite.
Um drama que só a ternura, a coragem e a
inteligência podem atenuar.

O Movimento Rotário, que jamais baixou


os braços perante a ameaça desta doença,
pugnando pela sua erradicação no mundo
inteiro, pretende que este projecto editorial
seja uma das “machadadas finais” no flagelo.
A venda do livro reverterá para a vacinação
preventiva nos países que ainda sofrem esta
ameaça.

Simone de Fátima Gonçalves nasceu no Es-


tado do Rio Grande do Sul (Brasil), vive na
cidade de Canoas e trabalha na Escola ULBRA
São Marcos / Rede de Escolas da Universidade
Luterana do Brasil. É bibliotecária e animado-
ra de leitura junto do público infantil e juvenil,
com trabalho meritório de recreação e divul-
gação dos contos tradicionais portugueses em
busca de uma matriz comum entre as culturas
portuguesa e brasileira.

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