Cinza Do Tempo

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Daniel Sampaio

A Cinza do Tempo

2ª edição

CAMINHO
Nosso Mundo

A Cinza do Tempo
(2ª edição)
Autor: Daniel Sampaio
Design gráfico: José Serrão
Revisão: Secção de Revisão da Editorial Caminho
C Editorial Caminho,
SA, Lisboa -- 1997
Tiragem: 4000 exemplares
Composição: Secção de
Composição da Editorial Caminho
Impressão e acabamento:
Tipografia Lousanense, Lda.
Data de impressão: Junho de 1997
Depósito legal nº 108.520/97
ISBN 972-21-1121-3

O Autor

Daniel Sampaio é médico psiquiatra, Professor Associado da


Faculdade de Medicina de Lisboa e Assistente Hospitalar
Graduado do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria,
onde coordena o Núcleo de Estudos do Suicídio (desde 1987
organizado para o atendimento diário de adolescentes em risco
de suicídio).
Foi um dos introdutores da Terapia Familiar Sistémica em
Portugal, a partir da Sociedade Portuguesa de Terapia
Familiar.
Tem os seguintes títulos publicados:

-- Droga, Pais e Filhos (em colaboração), Bertrand, Lisboa,


1978
-- Terapia Familiar (em colaboração), Afrontamento, Porto,
1985 (2ª ed., 1992)
-- Que Divórcio? (em colaboração), Edições 70, Lisboa, 1991
(2ª ed., 1992)
-- Ninguém Morre Sozinho, Editorial Caminho, Lisboa, 1991 (7ª
ed., 1997)
-- Vozes e Ruídos -- Diálogos com Adolescentes, Editorial
Caminho, Lisboa, 1993 (8ª ed., 1996)
-- Inventem-se Novos Pais, Editorial Caminho, Lisboa, 1994
(9ª ed., 1996)
-- Voltei à Escola, Editorial Caminho, Lisboa, 1996 (3ª ed.,
1996)
-- A Cinza do Tempo, Editorial Caminho, 1997 (2ª ed.,1997)
Prefácio

Neste livro agrupam-se pequenas crónicas escritas entre


1993 e 1997, publicadas anteriormente nas revistas Sábado,
Forum Estudante e Notícias Magazine. Foram os leitores
habituais dos meus textos na imprensa que me entusiasmaram a
juntá-los num único volume, com o argumento de que muitos
textos se perderiam de outro modo e que, assim reunidos,
poderiam constituir bases úteis de trabalho, sobretudo no
contexto escolar.
Aparece assim em 1997, com o apoio da Editorial Caminho, um
conjunto de pensamentos sobre temas muito diversos, alguns
provavelmente datados e outros a necessitarem de uma
elaboração mais aprofundada. Preferi, apesar disso, não lhes
introduzir alterações, limitando-me a excluir à partida as
crónicas irremediavelmente ultrapassadas pela evolução dos
acontecimentos ou já tratadas de algum modo noutras
publicações. As que ficam valem por testemunho daquilo que
penso e procuro transmitir, na minha prática como docente e
como terapeuta.
Não esqueço a minha condição de professor universitário.
Para além do ensino da Psicopatologia e da Psiquiatria aos
estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa, sinto ser minha
obrigação reflectir sobre a escola e o processo de
aprendizagem. Muitos dos textos seguintes dizem assim respeito
ao ensino e aos seus actores, na perspectiva de uma permanente
reconstrução da experiência de ensinar e de aprender. Não
penso ser possível algum professor continuar a pensar que
ensinar é apenas fornecer informação referente ao programa.
Quando ensino a depressão, vejo-a diferente consoante a etapa
do ciclo de vida e influenciada pelo contexto onde se vai
desenvolver, sem que isso lhe faça perder o seu significado
biológico. E para compreender a personalidade de um indivíduo
psicologicamente perturbado é-me útil compreender a sua
história pessoal e o modo como interagiu na família, na escola
e na profissão. Dedico, por isso, muito do meu tempo e da
minha atenção às questões que hoje circulam nas nossas escolas
do 2º e 3º ciclos e secundárias. A minha experiência diz-me
que a maioria das crianças e dos adolescentes contêm o
potencial necessário a uma aprendizagem, mas nem sempre somos
capazes de o pôr em marcha ou de lhe facilitar o caminho.
Piaget costumava dizer que sempre que ensinamos alguma coisa a
uma criança, proibimo-la de inventar. As minhas reflexões
sobre o ensino não esquecem esta frase: quer como docente
universitário quer como interventor no sistema de Ensino
Básico e Secundário, procuro potenciar as possibilidades
criativas dos mais novos e responsabilizá-los pelas mudanças
necessárias. Estou firmemente convencido de que para aprender
é preciso ter um mínimo estável de auto-estima, alguma
capacidade de pensar e de querer conhecer e ainda certa
capacidade para estabelecer relações afectivas. Poderão
argumentar que muitos estudantes dos primeiros anos,
provenientes de ambientes familiares desorganizados e de
bairros degradados, não conseguem o mínimo de estabilidade
necessária à aprendizagem. Direi que a solução terá de ser
encontrada pela escola, com o apoio de outras estruturas de
suporte social -- certamente todos serão capazes de evoluir,
se calhar noutro modelo de ensinar e de aprender. Algumas
crónicas analisam a escola e os seus alunos, professores e
pais, com a intenção de contribuir para uma reflexão conjunta.
Se pudesse resumir numa palavra, diria que na escola é
necessário um contrato-programa que responsabilize todos os
intervenientes no processo educativo, estabelecido no início
do ano num ambiente de descoberta e cooperação. Trata-se,
afinal, de contribuir para a organização democrática da
escola, a base da prevenção do absentismo e das perturbações
psicológicas.
Outro tema muito tratado é o da família. Desde há vinte
anos que investigo esta área, primeiro centrado na Sociedade
Portuguesa de Terapia Familiar -- que fundei em 1979 com
outros colegas --, depois no contexto da ligação à escola e à
comunidade, em muitas acções de formação em todo o país. É um
dado adquirido que a família muito mudou nas últimas décadas.
A minha convicção, contudo, é que está ainda a mudar mais nos
últimos anos, pois estou certo de que é crescente o
associativismo familiar e a participação de muitos pais na
resolução dos problemas. Dedico algum espaço à discussão de
temas que preocupam os agregados familiares e que estão
relacionados com a minha actividade, como é o caso da droga e
do suicídio, no campo patológico, e os relacionamentos
pais-filhos e interadolescentes, no contexto da adolescência
normal.
Alguns textos sobre a droga já não traduzem completamente o
meu pensamento. Nesta fase, estou convencido de que a política
de total proibição das drogas tem os dias contados. Continuo a
apostar numa prevenção que estimule a auto-estima e a
afirmação dos jovens, numa óptica de desenvolvimento de
competências sociais, possibilitadoras de escolhas livres e
responsáveis perante os dilemas do quotidiano. Mantendo a
necessidade de exigirmos mais consultas e centros de
recuperação que permitam tratar pessoas em sofrimento de uma
forma digna e eficaz. Reafirmo a urgência de repressão sobre
tantos traficantes infelizmente impunes. Quero dizer agora, no
entanto, que é preciso fazer algo mais. Sabemos que em muitos
casos a recuperação é difícil, com pessoas doentes a andarem
de centro para centro durante anos, sem perspectivas de
melhoria. Sabemos também que cada vez se abrem mais consultas,
mas também se aumenta o consumo. Por isso, sou favorável a uma
política de "redução de prejuízos", com distribuição da droga,
ou derivados, a adultos, com controlo médico e vigilância
apertada. Esta intervenção, já praticada em muitos países,
permite baixar o preço da droga, diminuir o crime e melhorar a
saúde de muitos utilizadores crónicos.
Noutra linha de análise, precisamos de pôr termo a esta
cruzada contra os toxicodependentes, que parecem transformados
nos bodes expiatórios de todos os males deste fim de século.
Se perseguirmos pessoas em dificuldade não iremos a lado
nenhum e contribuiremos para a exclusão daqueles que tantas
vezes já se encontram marginalizados. A liberalização das
drogas, proposta por alguns de uma forma pouco clara, não
parece assim possível neste ambiente de perseguição, mas será
certamente um tema de discussão urgente em Portugal e em todo
o mundo.
O meu livro Ninguém Morre Sozinho, publicado em 1991 e
diversas vezes reeditado, constitui um estudo teórico e
experimental sobre a tentativa de suicídio juvenil, tema de
outras crónicas. Mantêm-se algumas preocupações por mim
expressas: a venda de pesticidas continua livre, há pouco
apoio a professores na detecção de casos de risco nas escolas
e a população só parece preocupar-se com o problema quando ele
surge, em regra de forma sensacionalista, na comunicação
social falada ou escrita. Nunca é de mais, portanto, voltar ao
tema, para que ninguém o esqueça.
A adolescência é central na minha reflexão. Sempre houve
problemas de comunicação entre pais e filhos, dizem alguns
críticos de tonalidade pseudoliberal ou bem-falante. É
verdade, só que o contexto mudou muito. Muitas famílias não
conseguem hoje fornecer amor e promover a esperança nos seus
filhos, porque as dificuldades do quotidiano que sofrem na
pele impedem um mínimo de suporte afectivo necessário ao
desenvolvimento dos seus membros. Os pais são confrontados com
problemas que não viveram em novos, como a droga e a SIDA. Os
vínculos sociais são inexistentes ou frágeis e os subúrbios
das grandes cidades são zonas onde dificilmente uma criança
pode crescer em paz. A família, contudo, continua a ser a
influência mais decisiva para os nossos adolescentes. Numa
investigação que coordenei em 1996, com uma amostra de 9608
estudantes de Portugal Continental, dos 13 aos 19 anos e do
8º ao 11º ano (média de idades 14,96 anos), 60,6% dos alunos
respondem que o grupo de amigos nunca é mais importante que a
família e 43,5% dos estudantes declaram que a família os
influencia muito, mais do que os amigos, os namorados, os
professores ou a televisão. A família é assim um sistema
emocional da maior importância e a comunicação pais-filhos, ao
longo das etapas do desenvolvimento, é essencial para a
formação da identidade e para a conquista de autonomia dos
adolescentes. Nem sempre, contudo, o diálogo é fácil. As
grandes mudanças dão-se em vários domínios, sendo talvez os do
amor e da sexualidade os mais sensíveis. O inquérito a que
anteriormente fiz referência diz-nos que é frequente ser
através dos amigos que se esclarecem as dúvidas sobre a
sexualidade (46% dos estudantes respondem às vezes e 26% quase
sempre), o que atesta bem a importância do grupo de pares
nesta questão. E também não é possível, como tantas vezes se
observa, falar em conjunto, como se rapazes e raparigas se
comportassem do mesmo modo. A verdade é que são bem nítidas as
diferenças: enquanto 75,7% dos rapazes dos 16 aos 19 anos
consideram que o início da sua vida sexual pode acontecer a
qualquer momento, só 32,8% das raparigas são da mesma opinião;
apenas 3,4% dos alunos acham que o começo das experiências
sexuais deve ser adiado para depois do casamento, mas a
percentagem das raparigas que responde do mesmo modo sobe para
15,9%. A sexualidade adolescente necessita de um diálogo
responsável que implique os jovens, apoiado na referência dos
adultos, do seu universo relacional e na construção, talvez
possível, de um novo romantismo.
São estes alguns dos temas que enchem as páginas deste
volume. Chamei-lhe A Cinza do Tempo. Crónicas são narrativas
históricas segundo a ordem dos tempos ou conversas sobre a
vida, que os anos se encarregarão de apagar. A minha esperança
é que da sua leitura fiquem fragmentos úteis, ou cinzas
dispersas que levem estas mensagens para bem longe.

Lisboa, Fevereiro de 1997

Daniel Sampaio

Agradecimentos

Agradeço às direcções da antiga revista Sábado e das


actuais Forum Estudante e Notícias Magazine todo o apoio com
que sempre acolheram as minhas crónicas. E a Lídia Ramos e a
Paula Gomes o cuidado que sempre tiveram com os originais.
A adolescência é um sonho social

Diz uma professora minha amiga que há professores e agentes


de ensino. Dadas as condições difíceis das escolas
portuguesas, infelizmente os últimos têm aumentado de número.
Mas numa escola secundária do Porto há uma professora que está
disponível para os jovens que ensina. Pediu aos seus alunos
que escrevessem o que quisessem sobre a adolescência e foi
nessa altura que a Teresa, de 16 anos, escreveu assim: "a
adolescência é um sonho social. Não há nada melhor do que nos
deitarmos no meio do nada à espera que algo aconteça".
Nesta etapa do ciclo da vida há avanços e recuos, sonhos e
fantasia, distância e proximidade e uma turbulência por vezes
intensa. Mas convém desde já dizer que a "crise da
adolescência" é uma expressão que por aí circula, cheia de
pressupostos errados e de convicções absurdas, porque na
realidade a maioria dos jovens ultrapassa esta fase sem
sobressaltos graves.
É assim importante saber o que é normal e o que é
patológico na adolescência de hoje. Distinguir o que devemos
aceitar no comportamento de um jovem resultante das
modificações que está a sentir a nível físico e psicológico.
Saber o que deve constituir sinal de alarme em relação ao seu
futuro. Conhecer quais as características dos jovens de hoje,
quais os seus valores e expectativas, quais as suas
dificuldades e êxitos.
Impressiona ver como há tanta gente a falar sobre
adolescentes sem nunca se ter sentado ao pé deles simplesmente
a conversar. Como se criam serviços, se fazem projectos e
cartões, se pagam técnicos, tudo sem a mínima experiência
prática de trabalho com jovens.
A verdade é que o comportamento juvenil deve ser analisado
de uma forma relativamente prolongada no tempo. É importante
ver se uma determinada acção que nos parece desajustada se
mantém e está a bloquear o processo de desenvolvimento do
jovem, impedindo-o de progredir. Por exemplo, é normal que um
adolescente passe por momentos depressivos transitórios, em
que se isola, anda triste e preocupado e tem ligeira quebra
escolar. Mas se esses momentos se prolongam e acentuam, são
acompanhados de profunda angústia, com desinteresse marcado
pelos estudos e pelo convívio, então deverão preocupar-nos. Do
mesmo modo, uma agressividade momentânea com os familiares,
embora intensa, está dentro da evolução normal; um
comportamento continuamente agressivo na escola, em casa ou
com os companheiros deve merecer atenção.
A adolescência passa por diversas fases. A primeira, que no
adolescente urbano escolarizado vai dos 13 aos 15 anos, é
caracterizada por certo isolamento e preocupação face ao corpo
a transformar-se.
A terceira fase vai dos 18 até ao fim da adolescência,
caracterizada pela formação da identidade e do carácter.
A fase média é a do sonho social. O adolescente luta pela
sua autonomia face à família e continua a construir o seu
espaço privado. E a fase do grupo de jovens.
Antes da adolescência, os amigos-conhecidos eram recrutados
entre os companheiros da escola ou em encontros ocasionais ao
pé de casa. A festa de aniversário era o paradigma do
convívio. Agora os amigos são sobretudo companheiros de saídas
à noite, parceiros de jogos nem sempre lícitos, confidentes de
rituais que levam à idade adulta.
Para a família, as primeiras saídas do filho em grupo são
momentos difíceis. Os pais inquietam-se com razão sobre os
perigos da noite e com aquele jovem que deixou de ficar em
casa a ver a telenovela e suspira com a sexta-feira à noite. É
essencial neste período aumentar o diálogo familiar, receber
em casa os amigos dos filhos, evitar comentários desajustados
sobre roupas, brincos e cabelos, mas ser firme nas regras
familiares. É importante negociar dias e horas de saída e no
dia seguinte falar sobre o que sucedeu. As proibições de sair
que alguns pais determinam parecem desconhecer um facto
indesmentível; a juventude urbana actual está estimulada por
uma organização social que fomenta a saída e o consumo
nocturno. Sem alternativas na escola, sentida quase sempre
como uma enorme "seca", com pouco tempo em família para um
diálogo consistente, o grupo de jovens desempenha uma
importante função de catalisador da autonomia individual e de
espaço para sucessivas identificações.
Como psicoterapeuta de adolescentes, considero que muitas
experiências negativas surgidas a partir do grupo ganham
especial dimensão se o jovem não for capaz de as partilhar
minimamente com os pais e irmãos. Uma cena com um segurança de
uma discoteca (quando começaremos todos a denunciar estes
gorilas?) pode ser especialmente traumatizante se no dia
seguinte o adolescente não puder contar aos pais, ou por
quebra anterior do diálogo ou por indisponibilidade recíproca.
Que fazer?, perguntam muitos pais. Combinar horários,
evitar excessos, suscitar uma conversa a partir de uma notícia
do jornal ou de um acontecimento da véspera. Na adolescência é
preciso discutir tudo. Nada pode ser definido a priori, todas
as coisas podem e devem ser negociadas.
Se a adolescência é um sonho social, vamos sonhar em
conjunto. Acordados, vamos discutir o sonho. Então poderemos
deitar-nos no nada, porque certamente alguma coisa importante
acontecerá.

19/2/93
Há neve em Massamá

Os pais de Francisco não sabem o que fazer. Desde o início


do actual ano lectivo sentem que qualquer coisa mudou no
filho. Notaram alguma mudança nas últimas férias, quando o
rapaz festejou os seus dezassete anos na tristeza de um bar de
praia, no fim de uma tarde de Setembro. Nessa altura tinham
insistido para que ele convidasse alguns amigos para um jantar
em casa, ou pelo menos marcasse algum encontro na discoteca.
Às sugestões, Francisco reagia com silêncio ou recusa
apressada.
O primeiro período escolar não correu bem. A mãe tenta a
primeira aproximação, ao perguntar ao filho o que se passa. A
resposta é um "nada" e um "deixa-me em paz!" pouco habituais.
à noite a mãe falou ao pai, propondo que fizessem qualquer
coisa. O pai de Francisco é um gestor com êxito, habituado a
delegar na mulher os problemas da casa. "Deve ser a crise da
adolescência. Não te esqueças de que ele tem dezassete anos,
vais ver que isto passa. É a idade." Mas a mãe sabe que o
filho está diferente. Ouve-o levantar-se de noite e ficar na
sala a ver um filme. Reparou que se queixou ao primo de
persistentes dores de cabeça.
Francisco sente-se estranho. Toda a gente lhe pergunta se
está triste, mas não é tristeza o que sente. Acorda quase
sempre às três da manhã com uma sensação de culpa por tudo o
que não conseguiu fazer no dia que acabou. Não tem qualquer
esperança no futuro e sente que jamais conseguirá entrar para
a Universidade. Deixou de se interessar por raparigas e a sua
sexualidade é qualquer coisa de distante e inacessível. Olha
para o espelho e a cara parece-lhe doente, o que está de
acordo com aquela sensação de cansaço físico que o atormenta.
Pela primeira vez lhe apetece o haxixe que tantas vezes lhe
têm oferecido.
Em Janeiro de 1993 disse aos pais que não conseguia estudar
e que precisava de ajuda. Mais uma vez o pai atribuiu tudo à
"crise da idade" e aconselhou divertimentos e raparigas. A mãe
ficou muito preocupada e passou a vigiar o filho, insistindo
para que comesse e se deitasse cedo. Francisco não voltou a
falar com os pais. Sentiu-se observado, controlado,
permanentemente criticado. No início de Fevereiro um amigo
levou-o ao médico de família e Francisco conseguiu falar do
que sentia. Achou o médico um pouco gordo e paternalista, mas
atento e cuidadoso na maneira como falava. A medo, começou a
tomar um antidepressivo.
As consultas que se seguiram foram importantes. Conseguiu
falar daquela dificuldade em se aproximar do pai e da ruptura
afectiva que tinha acontecido no Verão.
Francisco sofre de depressão. É a situação mais frequente
das consultas de Psiquiatria, aparecendo também muitas vezes
ao médico de Clínica Geral. Algumas depressões têm uma base
hereditária e biológica, outras estão mais relacionadas com o
modo de reagir aos acontecimentos da vida.
Na adolescência, a depressão necessita de ser diferenciada
dos momentos transitórios de tristeza e pessimismo que fazem
parte do normal processo de desenvolvimento. A sintomatologia
depressiva nos jovens surge muitas vezes sob a forma de dores
musculares, falta de apetite, insónia, quebra de rendimento
escolar, em vez daquela tristeza intensa que caracteriza a
depressão no adulto. Pode também manifestar-se através de uma
agressividade mantida pelo uso de drogas ou por uma tentativa
de suicídio inesperada. São sinais de alarme o isolamento do
jovem, o seu pessimismo mantido face ao futuro e outros
comportamentos visíveis na história do Francisco.
A maior parte das depressões na adolescência pode ser
tratada por um médico de família disponível, com o apoio da
família sensibilizada para o problema. Os familiares devem
saber distinguir uma coisa passageira de um quadro depressivo
patológico na adolescência e que necessita de tratamento.
...No fim de Fevereiro, Francisco começou a melhorar. Mas a
família só teve a certeza de que tudo ia correr bem quando,
naquela noite, o telefone tocou. Para a mãe, surpreendida,
Francisco disse apenas: "Apeteceu-me sair porque me disseram
que há neve em Massamá."
19/3/93

Os adolescentes, a droga e a lei

O que mais impressiona no debate sobre a droga que


recentemente se iniciou em Portugal é o facto de se falar mais
sobre os tóxicos e os cifrões do que sobre as pessoas,
particularmente sobre os jovens.
Todos parecem esquecer como é importante reflectir sobre
aquele percurso individual que leva um adolescente um dia a
experimentar uma substância em busca de qualquer coisa
diferente, tantas vezes indefinida. Todos querem não falar
sobre esta outra importante questão: sendo a droga de tão
fácil acesso -- dizem-me muitos jovens que basta atravessar o
pátio da escola secundária, de início nem é preciso comprar
---, como é que a maioria dos adolescentes de facto não se
droga? O que leva um jovem a não consumir?
Todos ainda não querem lembrar como é difícil no nosso país
conseguir rapidamente uma consulta para um jovem
toxicodependente, apesar do esforço dos técnicos que trabalham
em Serviços com credibilidade e do aumento de unidades de
saúde aptas para um tratamento especializado.
Todos não querem falar também sobre a angústia daqueles
pais que viveram até àquele momento sem dificuldades de maior,
em famílias que funcionam sem grandes sobressaltos e vêem um
dos seus filhos tornar-se heroinodependente, às vezes a partir
de algumas experiências ocasionais.
Sobre a questão da toxicodependência é preciso falar
verdade, sem ambiguidades ou demagogias. É um problema que
atravessa a sociedade, não respeita classes sociais, esquemas
ideológicos da compreensão pseudo-esclarecedora, perspectivas
terapêuticas simplificadoras ou soluções globais apressadas.
Com toda a humildade, devemos dizer que muitos
toxicodependentes não recuperam e muitos grupos juvenis foram
destruídos pela heroína, como nos dizia Coppola no seu notável
Rumblefish. É preciso lembrar que o tratamento da
toxicodependência não é apenas fazer com que a pessoa não se
drogue, mas é sobretudo ajudá-la a encontrar prazer na vida. É
urgente acabar com discursos culpabilizantes, carregados de
ideologia moralista, como aqueles que consideram que as
pessoas ficam dependentes porque a mãe rompeu a sua relação
precoce com o bebé, os pais se divorciaram ou o adolescente se
afastou de Deus. Denunciar tratamentos onde os jovens são
internados ainda antes de abrirem a boca para dizer o que
pensam, ou são prometidas curas milagrosas mediante cauções de
centenas de contos, em declarações arrancadas às famílias em
desespero.
É urgente esclarecer que na prevenção da toxicodependência
não basta irmos todos para a rua de mãos dadas, porque de
facto o tempo das flores no cabelo acabou.
O tratamento do toxicodependente exige uma relação
terapêutica prolongada, um encontro singular entre uma pessoa
em regra jovem que se afastou do prazer da vida e se tornou
dependente, e alguém especializado e disponível para o ajudar
a reencontrar a alegria de viver. É difícil mas é possível.
Mas é preciso esclarecer que não é indiferente que um jovem
tome muitos cafés ou consuma heroína. Em Lisboa morrem muitas
pessoas de overdose, não me consta que alguém morra afogado em
café. A cafeína em excesso tem risco cardiovascular, mas o seu
efeito é previsível e qualquer médico pode ajudar alguém a
evitá-lo. A heroína é uma substância facilmente geradora de
dependência e que, posta em contacto com uma personalidade e
em determinado contexto, tem efeitos imprevisíveis e quase
sempre graves. Pode desorganizar a pessoa, alterar as suas
estratégias adaptativas, modificar as suas relações
interpessoais, levar a mudanças no seu funcionamento
cognitivo. E são raríssimos os consumidores eventuais de
heroína. Esta não é de facto a mulher do herói: ou se vive
sem ela ou se fica dependente, mais tarde ou mais cedo.
Então e a liberalização? No momento actual, não há certeza
se esta é a solução, mas seguramente é um ponto de vista
defensável. Mas é preciso dizer que é preciso caminhar
cautelosamente e por etapas, sobretudo num país como Portugal.
Propostas intempestivas levam a uma reacção que dificulta o
progresso. É preciso, por isso, começar por claramente
defender a despenalização do consumidor. Lutar para que não
seja preso aquele adolescente ou adulto jovem que se cruzou
com a droga no seu percurso e que a prisão só levará mais
depressa à exclusão social. Ganhar a batalha junto da opinião
pública, mas sem mensagens negativas. Temos de dizer às
pessoas que somos a favor da despenalização não porque
tenhamos perdido a batalha contra a droga, antes porque a
vamos vencer. Nada se consegue com derrotismo ou com o cruzar
de braços. A liberalização das drogas só será possível num
determinado contexto internacional e depois de avaliadas as
experiência em curso noutros países, sobre os quais as
notícias são contraditórias. E só será possível se a
comunidade a apoiar e não for apenas uma decisão de técnicos e
políticos.
02/4/93

Portas abertas, corações fechados

Uma das ideias que mais me impressiona a propósito da


adolescência é aquela crença de que pais e filhos podem falar
sobre tudo e que o diário familiar não deve ter qualquer
barreira. Este é um ponto de vista falsamente progressista e
que leva a grande confusões na interacção familiar.
Ana Paula tem quinze anos, está no 10º ano de escolaridade
e nunca deu problemas à família. A sua primeira negativa, num
teste de Português, no início deste ano lectivo, funcionou
como uma catástrofe lá em casa. A mãe chorou, o pai foi
protestar à directora de turma pela injustiça e a avó materna
teve uma noite de insónia. Mas Ana Paula sabe que está muito
menos motivada para o estudo. No Verão passado, no fim de uma
tarde de praia, curtiu pela primeira vez com um rapaz, de quem
agora mal recorda o nome. Nada disso se compara com a sua
relação com o Tiago, com quem anda desde Outubro. Também pensa
bastante nos estratagemas que tem de utilizar para poder
prolongar os momentos que fica na rua, após o dia de aulas.
Não se atreve ainda a propor sair à noite, porque mais do que
uma ida ao cinema com a Mónica os pais certamente não
permitirão.
Quando a mãe foi comprar fruta ao minimercado ao pé de
casa, na manhã daquele dia de Fevereiro, a notícia chegou. A
fofoqueira do bairro avisou-a: "Tenho visto a sua filha muito
bem acompanhada... Felizmente que ela sempre foi uma rapariga
como deve ser, não é como as cavalonas de agora!"
A mãe da Ana Paula ficou muito inquieta. A sua menina,
eterna confidente das suas disputas com o marido, tinha um
rapaz! Resolveu reflectir. Recordou aquela filha sossegada,
de panamá branco enfiado na cabeça, a brincar com cubos nas
praias da Costa. Os jogos de elástico que encontrava quando a
ia buscar ao colégio, onde Ana Paula era empurrada por outras
colegas mais afoitas e onde rapazes não entravam. As fichas de
avaliação perfeitas, onde era a melhor aluna até ao 9º ano,
rematadas pela palavra parabéns, escrita pelas directoras de
turma em letra desenhada. Os fins-de-semana em que pais, filha
e avó se metiam no velho Datsun metalizado e iam até Sintra
para comer um travesseiro na Periquita ou visitar a tia
Glória. E pensou também como conversas sobre namoro, drogas,
insucessos escolares, conflitos em casa, que ouvia quando
falava com as vizinhas na praça, lhe tinham parecido sempre
estranhas, como se a sua filha fosse de facto diferente.
A família da Ana Paula sempre fizera tudo em conjunto. As
noites eram passadas na sala comum a ver televisão, os
fins-de-semana constavam de compras na praça do bairro, com o
marido a transportar uma grande alcofa, a mãe e a avó a
escolherem os artigos e a filha ajustando os óculos perante as
opções. As férias eram passadas na caravana familiar, num
parque de campismo escolhido por sugestão do pai. O único
familiar ou amigo que visitavam era a tia Glória, que vivia em
Queluz e não saía de casa. Quando era preciso comprar roupa
deslocavam-se todos à loja Maconde mais próxima e a mãe
escolhia a peça mais em conta.
Era uma família sem segredos: todos contavam tudo a todos,
não havia discussões porque não havia diferenças, não havia
tristeza com a separação porque ninguém se afastava.
A mãe da Ana Paula decidiu agir. Marcou consulta para a
ginecologista e disse claramente à filha que concordava que
ela tomasse a pílula. Estranhou que já não controlasse as
menstruações da rapariga, mas certamente isso era transitório
e a filha ia contar-lhe tudo. Soubera que havia um "namorico",
que estava à espera para lhe fazer confidências? Tudo podia
ser compreendido. Tinham é que ser como duas amigas e não uma
mãe e uma filha. Se o rapaz fizesse alguns "avanços", Ana
Paula deveria contar tudo à mãe. Esta se encarregaria de
dosear a informação a dar ao pai. E qual a razão por que agora
a Ana Paula fechava a porta do quarto? Lá em casa as portas
estiveram sempre abertas. Não havia mesmo chaves. Os pais
sempre tinham dormido com a porta entreaberta, caso a avó ou a
filha precisassem de alguma coisa. E era perigoso fechar a
porta da casa de banho porque alguém se podia sentir mal.
Ana Paula ficou sem saber o que dizer. Percebia que tinha
vivido até agora como uma não-pessoa, uma espécie de
prolongamento dos pais. Começava a sentir necessidade de se
afirmar, de ter o seu espaço, de ter segredos e privacidade.
Queria viver a sua relação com o Tiago e não gostaria de a
partilhar com a mãe. Não fazia sentido tomar já a pílula.
Desejava fazer as suas opções, sem ter que constantemente
prestar contas. Ana Paula está em plena adolescência. Nesta
época da vida é muito importante que os pais garantam ao jovem
um espaço privado, respeitem os seus valores, considerem como
fundamentais as suas relações afectivas. Percebam que o
adolescente só se pode tornar um adulto saudável se for capaz
de definir a sua identidade como ser autónomo. Para isso é
preciso falar. Mas também é preciso entender que pais e filhos
não podem falar sobre tudo. Há zonas íntimas da vida dos
filhos que são mais facilmente partilhadas com amigos do que
com familiares. E que é bom perceber que um jovem tem
segredos, com os quais os adultos não têm rigorosamente nada a
ver. Na adolescência, há muitos familiares que funcionam de
portas abertas, mas de corações fechados. É bom que se permita
ao adolescente fechar a porta do quarto e conservar alguns
segredos, desde que o nosso íntimo esteja disponível para o
ouvir (se ele quiser).
23/4/93

Escola para jovens?!

O meu velho dicionário de Português diz que "escola é a


casa ou estabelecimento onde se ensina". Tenho as maiores
dúvidas de que as escolas portuguesas actuais reunam o mínimo
de condições para ensinar os adolescentes que as frequentam.
Os meus receios confirmaram-se no dia 14 de Março de 1993
ao ler uma reportagem de um jornal da manhã com o sugestivo
título de "Peregrinação a uma escola infecta". O texto
referia-se ao degradado e velho Liceu Camões, que no meu tempo
era uma escola com certa dignidade, embora dirigida por um
Reitor entre o sádico e o louco (assim o descreviam os meus
amigos da época).
Hoje a Escola Secundária Camões é um local "de cheiro
nauseabundo e chão completamente alagado devido ao problema
dos esgotos", com um "pátio esburacado" e em que "sete dos dez
sanitários masculinos estão partidos".
Em crónicas anteriores vimos como a adolescência é um
período de descoberta interior e exterior. Na luta pela
autonomia face à família e na procura da sua identidade, o
jovem necessita de espaço de pesquisa e de tempo para
elaboração. João dos Santos escreveu que "só se pode explorar
um novo espaço quando se tem para trás de si e à volta pontos
de referência e bases de segurança".
Na educação de adolescentes é preciso confrontá-los com
modelos com quem se possam identificar, pela positiva ou pela
negativa. O Reitor do Camões do meu tempo era muito útil
porque ninguém queria ser como ele. Mas a educação tem uma
componente relacional da maior importância e a escola deve ser
um local onde se possa comunicar em liberdade. A escola
secundária tem adolescentes e professores, logo deve possuir
um espaço de diálogo onde os jovens sejam capazes de organizar
a sua vida interior e onde os professores se possam oferecer
como modelo.
Ora o que observamos em Portugal? Edifícios degradados como
a Escola Camões, que tem cerca de três mil alunos e funciona
por turnos, como se os alunos fossem "picar o ponto" a um
emprego de que não gostam. O acesso de mais estudantes ao
ensino não pode pôr em risco a criação de condições para
estudar. Como é possível ensinar e aprender se as pessoas não
se encontram fora das aulas, se a falta de equipamentos
escolares impede a modernização, se os professores são
responsáveis pelo ensino de mais de cem estudantes?
É preciso denunciar as condições de trabalho nestes velhos
paquidermes escolares, dizer que alunos e professores só
raramente conversam, mostrar que mesmo os bons alunos não
sentem pertencer à escola.
A mesma reportagem continha ainda outra notícia espantosa.
Um cinzento responsável do Ministério da Educação a quem se
pedia um comentário sobre os problemas dos alunos, respondia:
"Agora está na moda queixarem-se de algum tabefe que o
professor dá ao aluno." Faz lembrar a apologia dos "safanões
dados a tempo", de Salazar!
Só poderemos de facto alterar a actual situação se a
encararmos como um problema da comunidade e lutarmos em
conjunto pela modernização da escola. Para isso é preciso que
pais e professores entendam que a contestação juvenil
ultrapassa alguma indisciplina ou manifestação ocasional, para
significar uma profunda revolta contra o actual estado de
coisas. Quem se quer convencer de que a luta contra as
propinas é apenas contra as propinas? O que está
verdadeiramente em causa é a denúncia permanente de um sistema
escolar que asfixia a criatividade dos jovens e desmoraliza
profundamente os professores. Não admira, pois, que vão
surgindo revoltas contra a PGA, contra as propinas, contra a
falta de segurança... No fundo protesta-se é contra a escola
actual.
A situação só mudará quando os estabelecimentos de ensino
passarem a ser espaços privilegiados onde se vivam
experiências de liberdade criativa. Locais onde adolescentes e
adultos se possam falar e conhecer, onde a cultura juvenil
possa encontrar estímulo. Sítios onde o aluno com dificuldade
possa encontrar um ensino individualizado e não
estigmatizante. Casas onde não seja necessário chamar os pais,
porque estes serão os primeiros a querer lá ir. Territórios
sentidos como seus por aqueles que lá vivem. Zonas onde valerá
a pena dizer alguma coisa de novo, porque então estaremos de
facto na escola.
26/4/93

Sim, senhora ministra

Uma notícia numa página secundária de um semanário no fim


de Fevereiro parece ter passado despercebida.
Sob o título "Sim, sr. professor" e subtítulo "A Ministra
da Educação quer disciplina nas escolas. É que a situação já é
preocupante", anunciava-se a alteração do regime disciplinar
dos alunos, com o objectivo de "devolver a autoridade do
professor na sala de aula".
Para obviar a este estado de coisas, a ministra da Educação
parece ir tomar providências. Assim, está previsto "devolver
aos docentes o seu papel soberano dentro da sala de aula...
através da possibilidade de sanções automáticas (do género da
tradicional falta de castigo) concedidas em função de
declaração do professor..."
Convenhamos que as medidas anunciadas não parecem, à
primeira vista, muito inovadoras. Mas o problema merece
algumas reflexões. Em primeiro lagar, não é certamente pelo
reforço das medidas disciplinares que a questão será
resolvida.
Perante a situação de impasse que atinge as nossas escolas
secundárias, a solução não poderá ser "mais do mesmo". A
agressividade estudantil referida (mas não estudada) não
poderá ser dada uma resposta agressiva. É sabido que a
violência gera violência e se os professores aumentarem a
repressão, os alunos inventarão formas de a contornarem. Quem
acredita que a solução dos problemas numa turma consiste em
mandar alunos para a rua, fazer suspensão de um dia ou mandar
postais para casa dos pais? Quem crê que reuniões apressadas a
horas inconvenientes entre
docentes e encarregados de educação, onde são lidas listas de
alunos perturbadores, conduzirá a alguma coisa?
E preciso procurar ver um pouco mais em profundidade.
Perceber que nas nossas escolas secundárias ninguém está
satisfeito. Os professores, mal pagos, desmotivados por uma
Reforma Educativa a que não aderem, queixam-se frequentemente
de falta de formação específica para enfrentar os complexos
problemas que estudantes adolescentes lhes levantam.
Os pais querem muitas vezes transferir para a escola as
responsabilidades educativas, que a falta de tempo ou as suas
próprias dúvidas impedem de assumir. Os alunos, educados aqui
ou acolá por pais inseguros e que os receiam ou os imitam, na
ânsia de evitarem os conflitos, gostam apenas do convívio que
a escola proporciona, referindo constantemente "a seca das
aulas". Os programas continuam completamente desajustados dos
interesses dos jovens. Não há, em regra, qualquer organização
dos tempos livres, a avaliação contínua é um simples anunciar
de intenções. E as instalações? Ou são edifícios modernos de
gosto duvidoso, prefabricados cinzentos que parecem
desfazer-se com um sopro, ou são velhos pavilhões degradados,
onde os alunos tentam desenhar (?), vestidos até às orelhas
com blusões volumosos.
Sr.a Ministra: decerto não esquece que das 10.000 escolas
básicas e secundárias, apenas cerca de 500 têm instalações
desportivas dignas desse nome. Quando falta um professor, os
alunos não têm sítio para onde ir e ficam a passear pelo pátio
da escola ou a passar o tempo no café mais próximo.
Quando têm um problema, que poderia ser resolvido através
do diálogo com um adulto responsável, não sabem a quem se
dirigir.
Quando têm dificuldades psicológicas, escondem-nas, porque
temem a crítica dos colegas ou a desconfiança e o receio de
alguns professores. Quando querem realizar uma iniciativa
encontram uma associação de estudantes partidarizada ou sem
meios e um Conselho Directivo espartilhado entre a obediência
ao Ministério e a lealdade devida aos colegas professores.
A violência segue assim num contexto geral de crise de
valores, numa escola degradada, sem objectivos, onde todos vão
porque não encontram melhor sítio para ir. É claro que o
professor é que deve mandar na aula, a sua autoridade -- não o
seu autoritarismo -- deverá ser reforçada, mas sem uma
profunda reforma de mentalidades não iremos a lado nenhum.
Quanto a mim, prefiro propor coisas muito simples e que não
custam dinheiro:

1 -- Uma vez por mês cada professor fala da vida com os


seus alunos. Um professor meu, dos tempos do velho Liceu Pedro
Nunes, em cada aula deixava os cinco minutos iniciais para
discussões livres. Era um festival de piadas, perguntas
interessantes, dúvidas que às vezes passavam para o dia
seguinte. Nunca este professor teve um problema de
indisciplina...
2 -- Em cada trimestre os alunos propõem uma visita de
estudo a um lugar do seu interesse, que pode não ter
directamente a ver com as matérias ensinadas.
3 -- Sempre que houver problemas disciplinares, a turma
será ouvida em primeiro lagar e proporá soluções.

Se a Sr.a Ministra quiser, ou puder gastar dinheiro,


invista a sério na formação global dos professores e na
melhoria das instalações. Faça, sobretudo, mais pavilhões
desportivos. Verá como a indisciplina melhora.
A não ser assim, a escola ficará reduzida a um número de
alunos contestatários que irão aumentando, ao lado de um bando
de fiéis seguidores que a tudo dirão "sim, Sr.a Ministra".
Haverá então escola?
4/94

Intimidade

Tudo provavelmente começou naquele dia em que o pai e a mãe


casaram para que cada um adoptasse o outro. O pai vinha de uma
família onde a distância e a frieza eram louvadas, a mãe
queria sair de um conjunto de pessoas que se deslocavam em
bando barulhento e onde tudo era pretexto para reunião.
Os primeiros anos de casamento foram vividos com cada um a
querer impor o seu modelo de família. O pai achava que cada um
devia viver a sua vida, um encontro no Natal era mais do que
suficiente para estar com a sua família de origem. A mãe
passava a vida em casa da sua mãe e havia, por mês, várias
comemorações pelos menores pretextos.
Quando o Zé Nuno nasceu, pai e mãe ainda batalhavam como
representantes das suas famílias. A mãe tinha vivido a
gravidez com uma euforia crescente, partilhando com os seus
pais e irmão a alegria do bebé que chegava. Quando falava nele
ao marido, encontrava uma distância que não compreendia. O pai
sentia-se ameaçado e refugiava-se no trabalho e nos almoços
com a sua mãe, que o presenteava com os pratos preferidos.
O Zé Nuno cresceu hesitante. Sentia-se submerso com as
festas em casa da avó materna, onde todos berravam e não havia
aparentemente espaço para ninguém. Com os outros avós, foi
cultivando uma relação sobre livros e discos, com pouco lugar
para conversas sobre nadas e onde todos pareciam recear
tocar-se.
Agora que o Zé Nuno é adolescente e anda à procura de saber
quem é, não sabe bem que caminho percorrer. Observa os pais e
vê que eles desistiram finalmente do seu processo de adopção
recíproca. A mãe deixou de esperar pelo pai e vai sozinha a
casa dos avós. O pai afastou-se progressivamente da família de
origem e transformou-se num trabalhólico.
Na cabeça do Zé Nuno há grandes confusões. Vê os pais a
discutirem e acha que perderam o respeito um pelo outro. Não
se admira se eles em breve se divorciarem. O ponto importante
é que sente que tem uma missão a cumprir naquela família. Vai
ficar com a mãe e vai ter de continuar a apoiá-la, a ser um
prolongamento dos avós e dos tios. Vai estar quinzenalmente
com o pai e tentar preencher aquele vazio de amor que sente
tão dentro dele. Neste momento, Zé Nuno não sabe o que
significa intimidade. Conhece a euforia da família da mãe, mas
interroga-se se eles se conhecem uns aos outros. Gostaria de
poder aproximar-se do pai, mas sente que ele nunca recebeu
amor e agora talvez seja demasiado tarde.
No percurso da sua adolescência, Zé Nuno é um solitário.
Não tem um amigo porque não sabe o que é partilhar
intimamente. Desconhece que a amizade é poder falar
despudoradamente de si próprio. Contar a outro como acordou
com uma música na cabeça que se repetiu o dia inteiro.
Desabafar que uma borbulha na testa o impediu de se aproximar
da Joana na festa de sexta-feira passada. Ser capaz de
adormecer ao lado do amigo sem precisar de se controlar. Bater
à porta dele a qualquer hora e ser bem recebido. Poder ouvir
confidências amorosas ou relatos de discussões com os pais,
sem criticar ou distrair-se.
Os pais de Zé Nuno não conseguiram transmitir-lhe que
intimidade não é igual a fusão. Preocupados a tentar ver quem
levava a melhor na luta das suas famílias de origem, foram-se
distanciando cada vez mais e vão acabar sem nada para dizer.
Zé Nuno tem notas razoáveis, gosta às vezes de ler e ir ao
cinema, mas não vai conseguir realizar as tarefas da
adolescência. Porque para se tornar autónomo e diferenciar-se
da família, sem ficar preso no iminente divórcio dos pais, vai
ter de se aproximar primeiro de um amigo, para mais tarde
conseguir amar uma rapariga.
Aos pais que se sossegam pela quietude de um filho
adolescente é bom lembrar que às vezes o "portar-se bem" é não
ser capaz de se aproximar de alguém. É viver distante porque a
proximidade aterroriza. A esses pais teremos de pedir que
possam de vez em quando abandonar a sua distracção ou as suas
disputas, para permitirem que o filho se possa sentir aliviado
de uma missão lá em casa. Para que ele possa crescer em paz.
Aos filhos adolescentes que se refugiam no silêncio do
quarto ou que se embebedam com a televisão, teremos de dizer
que precisam de se aproximar de alguém. Na adolescência
pode-se ser íntimo à vontade, porque essa é a condição
essencial para se tornar pessoa. E é talvez o último período
da vida em que se pode ter a possibilidade de conquistar a
intimidade que não se estruturou desde a infância. Aos Zés
Nunos, adolescentes sem amigos, é preciso dizer que não percam
tempo. Se calhar podem encontrar alguém, estar bem próximo e
depois dizer adeus. É lembrar Jorge Luís Borges: "despedir-se
é negar a separação, é dizer: hoje fingimos que nos separamos,
mas ver-nos-emos amanhã".
27/5/93

Expectativas

Tenho uma amiga psicóloga que trabalha em orientação


vocacional, o que quer dizer que recebe jovens com dúvidas
face ao seu futuro profissional. Para além de outras
avaliações, costuma pedir aos adolescentes que redijam uma
pequena composição sobre "a sua vida aos trinta anos". Não
resisto a publicar excertos de duas delas:
Sandra -- 16 anos: "Aos trinta anos gostava de ser modelo
profissional, muito conhecida, com uma brilhante carreira no
estrangeiro. Depois seria também conhecida como estilista de
grande sucesso. Seria uma mulher solteira, sem filhos, mas
vivia com um actor muito conhecido. Tinha uma vida bastante
agitada, a fazer passagens de modelos para os grandes
estilistas, em vários países do Mundo e a tirar fotografias
para revistas ou para anúncios [...].
"Era convidada para muitas festas das quais apareciam
fotografias em jornais e em revistas. De vez em quando, era
entrevistada por raparigas jovens, que pretendiam seguir a
mesma carreira que eu, às quais dava conselhos sobre o futuro,
e também para a imprensa. Não deixava de maneira nenhuma de
parte a família e os amigos, tentava dar-lhes sempre a máxima
atenção e apoio."
Bruno -- 16 anos: "Aos meus trinta anos, cerca de 7 anos
depois de ter terminado o meu curso superior de Gestão de
Empresas e 7 anos e meio após me ter casado, já estou
confortavelmente instalado na vida. Trabalho numa grande
empresa conhecida internacionalmente. Mas por vezes torna-se
maçador ir todos, ou quase todos os dias, para a Bolsa de
Valores de Lisboa, comprar e vender acções no meio de tanto
barulho, e sempre aos encontrões uns aos outros [...].
"De vez em quando aparecem novatos na Empresa para
trabalharem comigo. Geralmente, se forem porreiros, gosto de
lhes ensinar alguns dos truques simples e eficazes (talvez
aqueles que me ensinaram quando comecei a trabalhar) e que sem
eles torna-se difícil vencer. Apesar disso não gosto de lhes
ensinar os truques muito sorrateiros e delicados, pois esses
aprendem-se à custa de muito esforço e esperteza [...]. O meu
relacionamento em casa (tal como no trabalho) é óptimo.
Damo-nos todos bem; brincamos, passeamos e divertimo-nos
imenso. É claro que também nos chateamos, pois isso já é da
praxe, mas são coisas sempre pequenas e que passam sempre
depressa."
Sandra e Bruno são adolescentes que naturalmente teriam
expectativas face ao futuro. Central na adolescência, a
procura da identidade é feita com avanços e recuos, até
atingir uma definição mais precisa que corresponde à idade
adulta. Mas o sistema de valores que caracteriza o fim da
adolescência deriva não só do percurso individual de cada
jovem, mas também das expectativas criadas pelos seus pais e
pela comunidade onde ele se insere. Frequentemente, os pais
desejam para os filhos coisas que eles próprios não foram
capazes de obter, como um curso universitário, uma profissão
diferente ou melhores bens materiais. Mas também não raro
desejam papéis específicos: que o filho tome conta deles na
velhice, que os proteja de disputas de casal, que lhes dê
garantia de amor para sempre. Os filhos às vezes não casam ou
não saem de casa porque receiam que os pais se guerreiem mais,
ou que a mãe fique muito só depois do divórcio. às vezes há um
irmão mais novo deficiente ou doente mental que é preciso
cuidar depois da morte dos pais. E também pode ser que os
filhos sejam o prolongamento dos pais, vivam com eles em fusão
psicológica e não consigam ser independentes.
É importante que pais e professores compreendam que a
escolha da futura profissão é uma decisão importante, que deve
ser tomada apenas pelo próprio. Já chegam os condicionalismos
hoje existentes: competição extrema nas escolas depois do
10º ano, mensagens nos mass media a estimular o sucesso e a
vitória sobre os outros, mercado de trabalho difícil para os
jovens...
Aquilo que a Sandra e o Bruno escreveram dá para pensar.
Será que é mesmo aquilo que desejam? Ou estão a ser fortemente
influenciados pelos valores dominantes na sociedade portuguesa
actual, que veicula o êxito fácil (os pequenos "truques
eficazes") ou a notoriedade balofa ("convidada para muitas
festas das quais apareciam fotografias em jornais e em
revistas")?
É preciso cada vez mais que cada família possibilite aos
adolescentes um espaço de decisão autónomo face ao futuro e
que cada escola reflicta sobre o tipo de jovens que está a
pretender formar.
19/6/93

A bola de bilhar

Há cerca de trinta anos, o Liceu Pedro Nunes inaugurou umas


mesas para substituição das velhas carteiras inclinadas e com
um buraco para o tinteiro. Adolescente na altura, tive alguns
problemas em ver partir a minha carteira, sobretudo custou-me
despedir daqueles versos que tanto me tinham acompanhado nos
anos anteriores:

... Esta vida de estudante


É urna vida de lato
Se estuda, não pode amar
Se ama, não estuda puto...

O Reitor era um sujeito quase completamente calvo, de olhos


azuis coruscantes e gestos amaneirados. No ambiente
salazarista da época, achava que o seu discurso entorpecente
levava mais longe que as suspensões do seu antecessor ou os
gritos dos contínuos. Chamava-nos de vez em quando para nos
dar secas sobre o liceu e os "homens de amanhã". Pontuava os
seus discursos com um tique que o caracterizava: puxava as
mangas da camisa para fora, como se estivesse a acelerar
constantemente uma motocicleta imaginária.
No dia da inauguração das mesas obrigou todos os
professores a ler uma circular que começava assim: "A bola de
bilhar que gira sob acção da tacada do jogador não mais parará
se não encontrar resistência ao movimento." Seguiam-se várias
considerações de filosofia de segunda, para acabar em tom
moralista: "Não fumes o primeiro cigarro, não bebas o
primeiro copo de vinho, não faças o primeiro risco nas
mesinhas que hoje inauguramos..." Sei que esta circular foi
motivo de gozo para alunos e professores, mas o certo é que
nunca mais a esqueci.
Lembrei-me dela agora a propósito do diálogo pais-filhos
adolescentes. Há um momento decisivo de que vos tenho falado
em crónicas anteriores. E aquele segundo em que o pai ou mãe
cedem, contra a sua consciência, perante a exigência de um
filho jovem. Não estou a falar de não ouvir os filhos.
Considero essencial que os pais percebam que a sua juventude
nada tem a ver com a de agora, que o velho Pedro Nunes, onde
todos os dias se jogava à carica e se faziam círculos à volta
das cenas de pancadaria, com todos a gritar "Porrada! Porrada!
Porrada!", é bem diferente da Escola Pedro Nunes de agora,
onde a sinfonia da ganga e dos ténis é entrecortada por um
jovem casal que se abraça ou pelo toque permanente para as
aulas. Mas a diferença não significa que os pais devam dizer
que sim, para não perturbar "o adolescente em crise". Os pais
precisam de ouvir os filhos mas têm de dizer que não muitas
vezes. Educar não é concordar sempre, é ouvir sempre e
sobretudo negociar, isto é, fazer contrapropostas, tentar
chegar a acordo, mas decidir. Sabe-se que os problemas dos
adolescentes de hoje estão, na sua maior parte, centrados nas
questões do quotidiano e estas podem ser resolvidas através da
partilha de sentimentos e da definição negociada das regras
familiares. Muitos jovens vão ao psicólogo e ao psiquiatra
falar de conflitos familiares acerca das suas relações
afectivas, ou sobre as saídas e entradas em casa, o grupo de
amigos ou a escola. Apenas uma minoria dos adolescentes
actuais têm problemas emocionais graves, a necessitar de
tratamento especializado. A ida a uma consulta é muitas vezes
a possibilidade que o adolescente tem de fazer ouvir a sua voz
ou expressar intimamente os seus sentimentos. Mas os jovens
pedem muito algumas vezes. "Pede-se sempre tudo e fica-se com
o que os pais dão", diz o Diogo, um dos personagens do meu
livro Vozes e Ruídos. Mas para que essa negociação resulte, os
jovens não se transformem em Rambos domésticos e os pais não
fiquem seres medrosos e deprimidos, é preciso dizer não. A
regra é mais ou menos esta: nas questões vitais, e se o pai
tem uma convicção firme é melhor dizer não, se isto está em
sintonia com o seu interior. Não estou a falar da ida ou vinda
ao acampamento ou à discoteca, ou mesmo de fim-de-semana fora.
Estou a referir questões que têm a ver com grandes opções na
vida: o amor e a sexualidade, os estudos e o trabalho, o
dinheiro e a profissão, etc. Se o filho encontra um pai firme,
mas que sabe ouvir, organizará a sua estratégia e lidará com
um problema claro (até, por exemplo, opondo-se ao pai). Ou
seja: nada é pior que um pai hesitante ou permissivo, que diz
a tudo que sim. A conquista da autonomia faz-se também através
da luta contra resistência e obstáculos, não pode ser feita
sem dificuldades pelos jovens.
E então talvez o velho Reitor tivesse razão. Se não
fizermos resistência à bola de bilhar, ela nunca mais pára. Se
não dissermos que não a um filho que nos insulta, ele achará
que pode fazê-lo sempre. Se permitirmos que um aluno perturbe
a aula, ele não deixará de o fazer. Nada é mais gerador de
confusão, para um filho ou um aluno, do que a ideia que nada o
fará parar e que ele poderá exigir sem cessar.
17/6/193

A princesa e a leviana

A princesa chama-se Marta.


Tem 14 anos e está no 9º ano. É muito boa aluna e quer seguir
Gestão. Tem poucos tempos livres porque passa a vida a estudar
e não pode perder tempo. Ao sábado de manhã entra no BMW do
pai e acompanha-o a uma partida de ténis. Apesar de ser muito
bonita, não tem namorado, porque concorda com os pais que
ainda é muito cedo. Nas férias deita-se de véspera e vai à
praia com o pai, enquanto a mãe fica a arrumar a casa. Passeia
à beira-mar com os amigos dos pais e não liga aos olhares que
os rapazes lhe deitam. Na escola fala sobretudo de estudos,
raramente de roupas ou festas como muitas das suas colegas. às
vezes vai com a avó tomar chá e scones às Vicentinas ou ao
cinema com o pai, depois de discutirem as "estrelas" dos
críticos. Não se dá bem com a mãe. Nas zangas conjugais toma o
partido do pai e não suporta as queixas maternas. Acha o pai
"o máximo, um espectáculo" e fica contente quando as colegas o
elogiam. Veste-se um pouco para ele e sente que é admirada
pelo pai, que a elogia constantemente e a estimula a ser
melhor.
A leviana chama-se Raquel. É irmã da Marta, tem 19 anos e
repete o 10º ano. Hesita em ficar na área de Comunicação
Social ou pura e simplesmente deixar de estudar e arranjar um
emprego num centro comercial. Chamam-lhe leviana lá em casa,
desde que há dois anos a avó paterna a surpreendeu a dormir
com um rapaz. O pai bateu-lhe duramente, a mãe chorou e ela
fugiu de casa. Durante três dias ninguém soube da Raquel. Mais
tarde, "apareceu" em casa da avó materna e timidamente
regressou a casa, protegida pela mãe. Nunca mais conseguiu um
razoável relacionamento com o pai. Como não é boa aluna, é
constantemente recriminada por não estudar, por faltar às
aulas ou por chegar tarde a casa.
Há um ano fugiu outra vez. Tentou primeiro obter
autorização para ir a uma festa de curso, a uma discoteca, mas
o pai proibiu, porque o projecto não era "consistente" e os
testes iam mal. A mãe não teve força para a defender e a irmã
pareceu desinteressada e superior. Desapareceu pela janela do
seu quarto enquanto os pais e a Marta viam televisão. Foi para
bem longe, decidida a não voltar. Três dias depois teve
problemas com um sujeito velho e barrigudo que a tentou violar
e telefonou à mãe.
Quando voltou a casa, o pai bateu-lhe de novo, chamou-lhe
leviana, fácil e mesmo p... e ameaçou fechá-la em casa. De
então para cá o seu calvário começou. O pai leva-a à escola e
vai buscá-la quase sempre. Raramente tem autorização para sair
e quando o faz tem de ir sempre acompanhada pela Marta. Uma
vez disse que ia ao cinema às Amoreiras e o pai percorreu as
dez salas à sua procura.
Numa conversa com amigos, o pai dividiu a família em dois
blocos: no lado saudável, estavam ele e a Marta; no lado das
anormais estavam a mãe e a Raquel. E defendeu a tese de que a
filha mais velha era menos responsável, mesmo desequilibrada e
que as suas hipóteses de sobrevivência passavam pelo controlo
da família e pela vigilância de Marta. A filha mais nova é
agora a guardiã da moral da família. Cavaleiro branco,
defensora das tradições e bons costumes, sai com a mais velha
e dita-lhe o comportamento. Há um mês, quando a Raquel
conseguiu ser convidada para uma ida à discoteca, o pai impôs
que a Marta fosse também, mesmo que não lhe apetecesse.
"Finalmente, temos justiça em nossa casa. Assim não há filhas
nem enteadas. E como a mais nova tem mais juízo, ela
representa-me", disse ele.
Há quinze dias, Raquel quis ir almoçar fora com alguns
colegas. E claro que Marta também foi, porque o pai assim o
exigiu. Mesmo quando a filha mais velha quis uma nova marca de
cereais, compraram-se duas iguais e colaram-se etiquetas com o
nome de cada uma das raparigas em cada caixa. "Justiça,
justiça, igualdade!", clama o pai, constantemente.
A princesa e a leviana estão com dificuldades na
adolescência. Marta está parentificada, é um prolongamento do
pai e vai ter dificuldades em crescer e ser autónoma. Raquel
está muito só e triste. Tentou algum carinho com os rapazes,
mas eles só querem curtir e não a respeitam como pessoa.
Quando há dois anos teve relações sexuais com o Miguel, achava
que o amava e que seria para sempre. Já experimentou cerveja,
vodca e haxixe para preencher o seu vazio interior, mas ele
está cada vez maior. Vive entre a pena que sente pela mãe,
tantas vezes agredida e injustiçada, e o ódio pelo pai,
alimentado por tantos ressentimentos.
O pai está a cometer um erro grave. Não há duas pessoas
iguais numa família. Dezanove e catorze anos representam
momentos completamente diferentes na evolução. Precisam de
amigos diferentes, exigências dissemelhantes e regras não
parecidas. Aliás, um pai que se preocupa tanto com a justiça é
porque vai ser injusto a curto prazo.
É preciso dizer bem alto que cada um tem de falar por si
numa família. Que a unidade da família não pode tolher a
liberdade individual. E que só crescerá quem conseguir ser
tomado como um ser autónomo.
24/6/93

Professores e alunos

Há uns anos fiz uma investigação em várias escolas


secundárias de Lisboa. Depois de ter analisado os problemas
dos jovens que tinham feito tentativas de suicídio, quis saber
o que pensavam sobre o tema alunos que nunca tivessem ido a
uma consulta de Psiquiatria. Numa das escolas conheci uma
professora do Conselho Directivo com quem travei um
inesquecível diálogo. Depois de lhe explicar o objectivo do
estudo, pretendi falar com os estudantes. Respondeu-me que não
valia a pena, poderia falar com muitos alunos na minha
consulta hospitalar. Disse-lhe que queria falar com jovens...
normais. Então encostou-se na cadeira, segurou os óculos de
lentes grossas e disse-me: "NORMAIS?! Normais aqui nesta
escola? Não existem!"
Gabo-lhe hoje a frontalidade, embora ache que a professora
estava profundamente errada (mais tarde ri-me quando me
contaram uma cena de Carnaval da mesma escola. Imaginem que a
professora desafiou assim: "não acredito que nesse grupo de
alunos haja algum que seja capaz de me atirar um ovo!"
Escusado será dizer que rapidamente dois ovos acabaram nos
seus cabelos).
E preciso esclarecer pais e professores que a maioria dos
jovens são normais, isto é, atravessam a adolescência sem
perturbações emocionais graves. Em termos simples, direi que
um adolescente normal tem dificuldades transitórias nas
diversas tarefas de que tenho falado: relação com os pais e
com os companheiros e questões ligadas ao amor e à
sexualidade, mas não fica bloqueado no seu caminho para a
idade adulta. Quer dizer, um adolescente normal pode ter
algumas zangas com os pais, disputas com os seus pares ou
alguma ruptura afectiva que o perturbe, mas progride no
sentido da autonomia e da formação de valores. Um adolescente
patológico insulta os progenitores, não passa nos estudos,
consome drogas, não namora, nem sai à noite, faz tentativas de
suicídio ou foge de casa.
Os professores do Ensino Secundário são agentes
privilegiados na detecção de jovens em risco de doença mental.
Um professor atento pode arrumar lentamente os seus papéis a
ver se alguém quer falar com ele no fim da aula. Um professor
disponível marca um encontro de 10 minutos se pressente que o
aluno tem alguma coisa para lhe dizer, mas não trai a sua
confiança se a mãe lá aparece a perguntar o que se passa.
Tudo isto é difícil quando as escolas são em regras
mastodontes degradados ou edifícios prefabricados de má
qualidade, onde alunos em excesso andam de um lado para o
outro como quem vai a um emprego aos 50 anos. Os livros de
texto falam de matérias estranhas como floresta caducifólia,
mas não ensinam as capitais da Europa. Os professores são mal
pagos e às vezes estão lá porque do mal o menos. Ora, o
professor do Ensino Secundário poderia ser decisivo para
estimular a criatividade do aluno ou ajudá-lo num momento
difícil. Para isso é preciso que medite na sua actividade e,
apesar das condições difíceis, tente promover alguma mudança.
Sem arrogância, aqui vão algumas sugestões para professores
de adolescentes (fico à espera dos vossos comentários):

1 -- No princípio do ano escolar, promova o diálogo com


os alunos sobre o que vai ser o trabalho da disciplina.
Verifique as expectativas, doseie o entusiasmo de alguns e
estimule a maioria.
2 -- Mantenha os alunos muito activos durante todo o
ano. Elabore questões e peça respostas. Trabalhe por problemas
e objectivos.
3 -- Não dê secas. Jamais fale nos homens de amanhã
ou na irreverência da juventude.
4 -- Não faça comentários sobre cabelos, brincos, namoros,
charros, roupas, etc. Só fale destes temas se lhe perguntarem
a opinião. Nessa altura, diga o que pensa sem querer "ser
porreiro".
5 -- Não fale na importância da participação nas aulas se
no fim do período tenciona dar a nota correspondente à média
dos testes, quer o aluno participe ou não.
6 -- Passe poucos trabalhos de casa; grande parte deles não
são feitos ou são copiados antes da aula.
7 -- Promova visitas de estudo após sugestões dos alunos.
Não os leve àquilo que acha importante para si mas que não tem
nada a ver com eles.
8 -- Não se preocupe com o que se passa em casa dos alunos.
A escola é para ensinar e não para fazer psicologia (de
25/7/93

Prémios e castigos

Sou, em princípio, contra prémios e castigos na


adolescência. Assim como não faz sentido que um filho compre
uma caneta ao pai se ele conseguir trabalhar e ganhar o
sustento da família, qual a razão para um filho receber uma
motorizada pelo facto de ter passado o ano?
Numa família, há deveres, direitos e regras. Para mim é
claro que os filhos devem passar os anos e respeitar os pais,
sem que isso mereça grande alarido. No estado decadente do
nosso ensino, passar não é difícil e se isto não acontece,
deve constituir motivo de preocupação. Se o aluno tem uma
razoável saúde física e mental, atinge sem grande dificuldade
o 10º ano (a partir daqui é mais difícil). Então para que
prometer: "se passares este ano, dou-te uma prancha de surf";
"se não tiveres nenhuma negativa, podes ir acampar com os teus
colegas"; "vais ao concerto dos Guns se te tiveres portado bem
durante a semana..."
Estou cada vez mais convencido que estes prémios resultam
da falta de convicção dos pais, tantas vezes assustados com a
crescente frontalidade dos filhos e com o seu maior poder. Os
pais têm dificuldade em decidir, receiam dizer não e como tal
precisam de justificações exteriores para autorizar ou
proibir. Do meu ponto de vista, o que um filho deve ou não
fazer, aquilo a que pode ou não ter acesso ou ainda o que pode
planear, deve resultar de um permanente confronto de ideias
entre pais e filhos. Se o pai não concorda com a motorizada,
para quê dá-la? Se o pai acha que uma rapariga de 15 anos não
deve sair à noite e voltar de madrugada, por que permite?
Infelizmente, vejo pais a
dizerem "todos têm motos, eles andam na dos outros", ou se
todas as colegas saem, não sou capaz de proibir..." Mais
tarde, os filhos compreenderão que as convicções firmes dos
seus pais ajudaram fortemente a organizar a sua maneira de ser
e a consolidar o seu sistema de valores.
Então de facto acho melhor que o pai ofereça ao filho
coisas de que ambos gostem. Um brinquedo que a criança gabou
no passeio de domingo, uma t-shirt que o adolescente viu numa
revista ou um perfume que contou ter invejado ao amigo. Um
simples postal com uma vista que ambos viveram em conjunto
(assim como o filho pode oferecer, de vez em quando, a revista
sobre carros que o pai hesita em adquirir). Mas não como
prémios. Apenas pelo simples prazer de dar coisas a uma pessoa
de quem se gosta.
O mesmo se passa com os castigos. Todos os dias falo com
adolescentes que não podem sair porque tiveram más notas, que
têm piores férias porque não passaram o ano, que ficam sem
semanada porque chegaram tarde. "Não vais aos Metallica porque
foste malcriado!", gritava o pai de um adolescente em
tratamento, para mais tarde se confrontar com nova má-criação,
fuga disfarçada para o concerto e novo conflito. Dizia um
professor do Pedro Nunes que não se podia comparar batatas com
cenouras. Se o rapaz não estudou História, o que tem isso a
ver com o concerto de Alvalade? Nada. O que é preciso é que a
família crie um contexto onde seja possível estudar e ir ao
concerto, tudo isso numa atmosfera de respeito e compreensão
entre pais e filhos.
Aquilo que os pais devem proibir aos filhos é o que é
excessivo ou desadequado. Se um adolescente chumbou, é preciso
fazer com que estude durante a semana (e como tal não pode
sair à noite) e não proibi-lo de se divertir no sábado. É
preciso mostrar tristeza ou mesmo zanga a um filho
irresponsável, mas não fazer tudo para que ele seja ainda mais
revoltado e mais infeliz. Se um adolescente anda com más
notas, será que ele está na área certa dos estudos? Será que
ele anda bem com a namorada ou os amigos? Não precisará de
umas aulas de apoio?
Mas, por favor, pais e professores, "Leave the kids alone!"
Procuremos que cada adolescente perto de nós tenha uma
experiência de bem-estar em qualquer sector, antes de
contribuírmos para que ele se sinta mal em todos.
13/8/93

Psicologia na escola

A recente medida anunciada de colocar psicólogos nas


escolas secundárias merece algumas reflexões.
Em primeiro lugar, louve-se a atenção que parece estar por
detrás da decisão: a maior atenção aos problemas da saúde
psicológica dos adolescentes que estudam. Como tenho afirmado
em crónicas anteriores, o período dos 10 aos 18 anos é da
maior importância para a estruturação da personalidade e
talvez a última possibilidade que temos para conseguir ajudar
a promover um adulto saudável. Na escola não se estuda apenas,
vive-se em permanente contacto com colegas e professores, num
jogo de interacções extremamente rico, que pode levar ao
bem-estar ou pelo contrário ser fonte de inúmeros problemas
psicológicos.
Mas é preciso não escamotear a realidade das nossas escolas
actuais. Os alunos estão lá sem grande motivação, às vezes com
indiferença ou mesmo mal-estar, muitos professores são agentes
de ensino porque não encontraram nada melhor -- e o Estado
paga pouco mas lá vai pagando -- , os funcionários vivem
descontentes com o trabalho, os edifícios degradam-se ou não
chegam para as necessidades, a reforma actual é um mundo de
problemas onde ninguém encontra resposta. Os problemas dos
adolescentes são inúmeros: há situações de indisciplina,
toxicodependência, alcoolismo, depressão e suicídio, ou
simplesmente, na maioria dos casos, não os deixam viver
livremente a sua juventude. Não há tempo para actividades
livres, os espaços de convívio são reduzidos ou inexistentes,
as associações de estudantes têm poucos meios e às vezes são
partidarizadas, não há diálogo escola-família. Uma professora
disse-me uma vez: "é preciso chamar os pais à escola!"
Respondi-lhe que aqui estava o problema. Numa escola que
funcione bem não é preciso "chamar" os pais, pelo simples
facto de que eles serão os primeiros a lá ir e a participar.
Infelizmente, os pais actuais raramente vão à escola, às vezes
vão só para saberem se os filhos faltam ou a pedido dos
professores.
Neste contexto, um psicólogo colocado numa escola pode ter
dificuldades. Pode ficar encerrado num gabinete e a receber
alunos-problema, cada vez em maior número, porque os pais e
professores acharão que ele talvez consiga "curar" os
adolescentes difíceis. Pode fazer umas reuniões com pais, mas
alguns deles sentirão a sua presença como intrusa na vida
familiar e colaborarão com dificuldade. Pode ainda não fazer
nada, esmagado pela imensidão dos problemas.
Qual a solução que proponho? A única saída será a
articulação do técnico de Psicologia com diversas estruturas,
de modo a não funcionar isolado. Precisará de trabalhar em
conjunto com um grupo de professores sensibilizado para estes
problemas, que o ajude a contactar cada vez mais de perto com
a realidade escolar. Necessita de conviver bastante com os
alunos, fora da sua actividade de gabinete, de modo a sentir
os seus problemas e poder actuar mais tarde. Terá que
funcionar como ponte permanente entre a escola e a família.
Tal só será possível se o psicólogo tiver alguma
experiência prévia -- que poderá ser adquirida em estágio
próprio -- e uma disponibilidade interior para trabalhar com
adolescentes. A medida não terá êxito se o recrutamento dos
psicólogos for feito apenas administrativamente, para dar
lugar a desempregados e continuar a ter uma taxa baixa de
desemprego (embora todos os dias haja pessoas que se queixam
de não trabalhar).
Por outro lado, parece essencial que se invista cada vez
mais na formação de professores. Não será possível continuar a
ter à frente das turmas pessoas que dão o melhor do seu
esforço, mas que não estão aptas a responder às questões que
os adolescentes colocam, para além da matéria escolar. Como é
possível estar a ensinar se o professor não sabe a quem
recorrer, quando um estudante tem problemas de álcool ou
drogas, ameaça suicidar-se ou fugir de casa? Por isso, mais do
que colocar um psicólogo numa escola, é preciso investir nos
professores e alunos que já lá estão, encaminhar os problemas
para serviços que de facto dêem respostas e não perder tempo.
Sem esse trabalho de fundo, uma medida correcta arrisca-se a
não ter êxito.
20/8/93

Amigos do peito, amigos da onça

Para o adolescente normal, os amigos são fundamentais.


Quando alguém ultrapassa o momento decisivo de que falei na
semana passada e começa a caminhar no sentido da autonomia, a
família deixa de ser o refúgio e a solução para todas as
dificuldades. Os amigos ganham então importância. Na escola
secundária são os primeiros confidentes de um trabalho de casa
que não se fez, ou da primeira mentira importante que foi
pregada aos pais. O telefone passa a tocar mais vezes, as
conversas demoram-no, por vezes com desespero de outros
familiares, e os fins-de-semana são planeados dias antes na
expectativa de descobertas promissoras. Os amigos ensinam ao
adolescente novas maneiras de viver, basicamente fazem com que
eles deixem de ser os meninos de suas mães ou o orgulho da
directora de turma.
O grupo de jovens permite trocar experiências, fornece o
sedimento necessário para as identificações sucessivas, acalma
a angústia das primeiras saídas à noite ou de situações
difíceis que não foram previstas. No interior do grupo há
conhecimentos mais superficiais e amizades fortes. Muitas
vezes cada um dos adolescentes do grupo tem o seu grande amigo
ou amiga (antigamente dizia-se "amigo do peito", agora essa
expressão passou de moda), com quem partilha constantemente
sentimentos e experiência. Em regra, a grande amizade é uma
pessoa do mesmo sexo, que tem uma visão das coisas parecida e
é indiscutivelmente um ser solidário para o que der e vier.
Com a grande intimidade que caracteriza os jovens de hoje, não
é raro vê-los partilhar o quarto às tantas, calarem-se quando
os adultos entram, ou sucessivamente jantarem em casa um do
outro, para desespero de alguns pais.
A grande amizade vê-se também na partilha das experiências
afectivas e sexuais, na descoberta do prazer e do insucesso,
nos planos para o futuro próximo ou muito longínquo. Nos
rapazes, a proeza amorosa é confidenciada com alegria e a
nostalgia dos amores perdidos é afogada numa série de
cervejas. Nas raparigas, os risos abafados, as idas
intermináveis às casas de banho, o lavar da cabeça em
conjunto, o folhear desatento de revistas de moda, indicam uma
amizade forte e talvez duradoura.
A atitude dos pais é fundamental para que os amigos sejam
uma das boas coisas da adolescência. É preciso que os adultos
regulem a nova distância de uma forma cuidadosa: é necessário
deixar espaço aos filhos para que eles possam trazer os
amigos, mas é importante fazer-lhes notar desde o princípio
que em casa há coisas a que eles não devem ter acesso.
Exemplos: a cadeira favorita do pai quando este está presente,
a hora das refeições da família, os momentos nocturnos do
descanso, o telefone a horas necessárias, os objectos da casa
ou os CD favoritos da mãe. Pode ser bom ver trocar roupas
entre os jovens, deixar que um durma de vez em quando lá em
casa, levar alguém para jantar fora com a família, entrar numa
brincadeira conjunta onde todos possam rir. É desastroso fazer
perguntas aos amigos dos filhos antes de falar com estes
(género -- "Que achas da nova namorada do Zé? Sabes se ele tem
estudado Matemática?"), ou fazer comentários sobre a maneira
como os amigos vestem ou se penteiam.
Mas sobretudo o que é fundamental é ajudar os filhos a
perceber que nem todos os elementos do grupo são amigos do
peito. às vezes estão todos unidos por uma solidão crescente
que os fecha sobre si próprios e os impede de olhar em volta.
Vivem em conjunto a saudade da infância, onde tudo era mais
fácil, ou anseiam tornar-se adultos para ter sucesso e
tentarem ser felizes. Vivem das histórias que contam para não
ficarem calados e já quase ninguém os pode ajudar, porque
perderam a confiança nos outros e em si próprios. Nessas
alturas, pai e mãe devem perceber que o seu filho pode estar
em dificuldade e que é preciso chamá-lo com força para o pé
da família. Este sinal de alarme pode ser transmitido de
muitas formas. Uma falta de apetite prolongada, uma quebra
mantida do rendimento escolar, uma série de conquistas fáceis
(como aquele rapaz que contava: "todas as noites procuro
curtir com uma rapariga diferente. Cada vez me parece mais que
todas são iguais"). Para a solução desta dificuldade, o grupo
pode apenas servir de algum suporte, os amigos do peito e os
pais têm de compreender que a solução será encontrada dentro
do adolescente, em diálogo com aqueles que ama e na intimidade
da relação familiar. Não resultam colégios fora, pacotes
turísticos com a família, explicações com grandes professores
ou ida para casa dos avós. Os pais também não podem ficar
tranquilos quando uma rapariga que se descontrolou
afectivamente ou um rapaz que se começou a drogar está com o
amigo(a) X. às vezes, X é um amigo da onça, é aquele que ajuda
a esconder, que favorece a mentira, que gosta de arriscar
acompanhado porque não tem forças para vencer sozinho. Nesses
momentos também decisivos, não será importante que um pai ou
uma mãe "metam baixa" no emprego durante uma semana e, de
mangas arregaçadas, se dediquem decisivamente ao filho que a
vida pode ter feito esquecer?
30/8/93

Sozinhos em casa

No início da adolescência começa-se por ser capaz de ficar


sozinho em casa. Os pais deslocam-se por pouco tempo a casa de
amigos e deixam o número de telefone, "se for preciso alguma
coisa". O adolescente põe a televisão mais alto, telefona a
vários amigos ou prolonga os trabalhos de casa, à espera que a
família volte e o tempo passe depressa. às vezes os ruídos
parecem estranhos, a porta do armário será que se vai abrir,
estará alguém na casa de banho... Muda-se o canal da televisão
se o filme é de terror e procura-se pensar em coisas simples e
alegres. Quando a mãe chega a pergunta se tudo correu bem, é
importante dizer que sim e mostrar-se forte, para que os pais
possam sair noutro dia. Venceu-se então o medo e deu-se um
grande passo no caminho para a idade adulta.
Depois de se ser capaz de ficar sozinho em casa, há outra
fase de crescimento mais divertida: gostar de ficar sozinho em
casa. Nessa altura são os pais que se preocupam e se vão
embora com múltiplas recomendações. Para o adolescente,
contudo, é um momento de festa. Pode preparar o seu próprio
jantar (uma coisa simples de aquecer e rápida de comer),
sentar-se com uma bandeja em frente da televisão, finalmente
no lugar favorito do pai e com os pés em cima de outra
cadeira. Poder telefonar horas a fio aos amigos ou à namorada,
ouvir a música muito alto e deixar tudo desarrumado. às vezes
fica um sapato na sala e outro no quarto, uma banda desenhada
na casa de banho e um prato com comida ao pé do telefone.
Quando os pais são permissi
vos, fica tudo assim, mas se os pais são do género "quem com
ferro mata, com ferro morre" arruma-se tudo na hora
previsível da sua chegada ou mesmo quando estão a meter a
chave à porta. O adolescente pode então deitar-se, em regra
bem-disposto e não raro à espera ansiosamente de um outro
momento parecido.
A terceira fase diz respeito ao prazer que os jovens têm em
estar sozinhos, desta vez em pequeno grupo e também sem os
pais. Se são filhos de classe média ou alta, podem ter a sorte
de ter uma casa de campo e ir para lá passar um fim-de-semana,
conquistado aos pais à custa de uns bons testes e de alguns
carinhos. Uma noite por sua conta é um acontecimento. Preparam
uma comida à pressa e podem comê-la vários do mesmo tacho,
cada um apenas com o seu garfo para não sujar muita louça.
Despejam-se algumas cervejas e coca-colas, os maços de
cigarros são consumidos rapidamente e as conversas
prolongam-se, às vezes sem tema definido. Um adolescente
recém-conhecido pode ser alvo de algumas graças, mas se é
"bacano" e por isso entra bem no grupo, não dá grande troco e
acaba também por se divertir. Por vezes, há um excesso com a
garrafeira do pai, um tapete que se suja ou um ovo que escorre
pelo armário da cozinha. Faz-se horas para que chegue a altura
de ir para a discoteca ou simplesmente o tempo passa "sem
fazer nada". Os pais impressionam-se pelas horas passadas "sem
fazer nada", esquecendo-se que isto é crescer, isto é,
confrontar-se, aguentar as piadas, discutir experiências,
arriscar, tudo sem horário marcado ou regras rígidas. Se no
grupo há pares, pode-se avançar um pouco, mas quase sempre há
um limite de intimidade que não é ultrapassado em conjunto.
à medida que a noite avança e se falha a discoteca, as
conversas tornam-se mais íntimas. O grupo fragmenta-se,
partilham-se os insucessos ou os triunfos amorosos, um chato
desata a contar anedotas intermináveis e a fome começa a
apertar. Quando se está fora de casa e uns dias passaram sem
os pais aparecerem, às vezes já há pouca comida e menos
dinheiro para a comprar. Os restos das refeições apreciadas
são disputados avidamente, género "tu não gostas disso" ou "eu
cheguei primeiro". Um grupo de jovens contou-me que um deles
escondera uma frigideira com um bife no armário da
electricidade para poder comê-lo sozinho, mas o truque não
resultou. Outro amigo chegou primeiro e teve a gentileza de só
comer metade... Outro adolescente escondeu aquilo que
imaginava ser a sua ração de chocolate e preparava-se para
tirar vantagem comendo outra porção, mas chegou tarde... E
ainda um outro rapaz só bebia leite dias a fio para não gastar
dinheiro...
No equilíbrio difícil mas fascinante que caracteriza a
relação saudável pais-filhos adolescentes, os adultos podem
perceber como são importantes estes momentos. É bom
partilhá-los com os jovens, aparecer de vez em quando a dar
apoio, respeitar a sua intimidade e evitar excessos. E tentar
compreender sempre que ser adulto é gostar de partilhar, mas
também de estar sozinho em casa.
27/9/93

Escolas e cafés

São um bando barulhento que ocupa os cafés e as esplanadas


junto às escolas secundárias. Saem dos tristes edifícios onde
estudam sobretudo no intervalo grande, fartos da "seca" das
aulas e à procura de momentos diferentes. Nomes são gritados
em passeios opostos, os mais novos empurram-se sem cerimónia,
outros aproximam-se em conversas ciciadas ou em ternuras
amorosas que a escola não permite. Cigarros acendem-se,
comentam-se roupas ou o último teste, mas o tempo não é muito
e é preciso entrar no café para tomar a bica e conversar um
pouco. Os empregados perfilam-se ao longo do balcão e esperam
a chegada dos adolescentes com a ambivalência característica,
pois precisam deles para o negócio, mas receiam (invejam?) a
sua inquietação.
As mesas são ocupadas num instante, gritam-se pedidos de
cafés, bolos e tostas mistas e a conversa começa, saltitante,
às vezes de mesa em mesa.
Quando o empregado não envelheceu por dentro, pode entrar
nos diálogos e já adivinha os pedidos dos jovens. Senhoras
betas dos pronto-a-comer que proliferam, agora que os nomes de
consoantes dobradas não garantem proventos e as empresas dos
maridos estão em crise, têm menos paciência e às vezes correm
tudo a gritos agudos. Mas os adolescentes querem sobretudo
estar uns com os outros e viver aquele momento de "não fazer
nada" que verdadeiramente caracteriza os seus tempos livres. O
horário apertado, porém, não lhes dá tréguas e quase todos lá
voltam à escola, para mais um período de aulas até que o fim
do dia os salve e empurre para casa. Alguns, contudo, vão
fican
do pelo café, faltam às aulas ou pretextam estudar para um
teste próximo.
Os cafés à volta das nossas escolas são assim locais de
importante convívio juvenil. Pontos de encontro, zonas de
trocas de experiências, sítios de partilha afectiva, prolongam
a escola através de um território juvenil delimitado pelo
prazer da descoberta ou do desafio.
Interrogo-me muita vez sobre se este espaço não poderia
existir lá dentro, se não seria melhor para todos que os
adolescentes criassem o seu próprio espaço convivial na
escola, onde pais e professores de vez em quando aparecessem
para iniciativas conjuntas e onde fosse bom simplesmente
estar. Mas os refeitórios e bares das nossas escolas
secundárias são dependências de gosto duvidoso e asseio não
garantido, servindo doces de segunda ou fast-food a escorrer
gordura, quase sempre dirigidos por funcionários zelosos da
autoridade e de humor rabugento. E aqui estamos perante um dos
grandes problemas da nossa juventude, que deveria constituir
prioridade absoluta para quem manda: como é possível melhorar
a Escola sem cuidar do tempo e do espaço que a ela diz
respeito? Se não conseguirmos algum tempo para actividades
juvenis e um espaço mais agradável para os realizar (ou para
apenas alegremente não fazer nada) será muito difícil fazer
com que os estudantes possam gostar mais do sítio onde passam
grande parte do seu tempo.
Há outros alunos que faltam muito às aulas, permanecem nos
cafés sem nada fazer. São tardes inteiras a falar dos outros,
às vezes a comentar a televisão da véspera ou a última moda de
vestir. Os rapazes discutem futebol, a motorizada do amigo ou
a última conquista, as raparigas esvoaçam sobre a última festa
ou sobre o comportamento da colega e o tempo passa. Os cafés
passam a ser não só um ponto de encontro, mas também um local
de fuga ao aborrecimento e à depressão. Nestes casos, a escola
e os directores de turma deviam fazer mais qualquer coisa do
que mandar postais para casa com as faltas (até porque parte
deles é surripiada das caixas de correio). Não será possível
tentar uma aproximação, ouvir estes jovens, ver se estão na
escola ou na área correcta, integrá-los em actividades
diversas? Sobretudo partir do princípio amplamente demonstrado
que a mal não se muda. Se já não há estímulo para estudar,
faltas, castigos, psiquiatras e psicólogos podem fazer pouco.
Naquele adolescente passivo que se perde nos nossos cafés, ao
pé das escolas onde deveria estar, há quase sempre um jovem
inquieto que é preciso ouvir urgentemente, antes que seja
tarde.
Ensinar não será também saber ouvir?
12/93

Corpo amado, corpo odiado

Recorda a sua infância através de uma neblina onde se


misturam idas a uma praia com balde e formas de plástico,
bolos regionais de aspecto duvidoso e uma avó complacente
perante as suas tristezas. Cresceu num vaivém constante entre
a escola primária e a casa da família, quase sem falar com
ninguém, mas sempre pronta a corresponder às solicitações da
professora. Lembra-se do cesto de verga onde transportava o
almoço num termo, que teimava em lhe proporcionar um bife duro
e gelado e umas batatas fritas ressequidas. Passava os
intervalos das aulas a ler um livro de aventuras de outros
tempos ou a folhear as biografias de Florence Nightingale ou
Madame Curie, heroínas que a mãe lhe recomendava ao anoitecer.
Ia à missa todos os domingos e escutava atentamente um padre
que lhe falava de pecados que só muito mais tarde percebeu.
Visitava a tia solteirona que lhe fazia um arroz-doce pétreo a
que correspondia com um sorriso delicado. Fazia os trabalhos
de casa diariamente num caderno impecável e lembra-se de
apenas uma vez ter perguntado uma dúvida sobre um problema de
aritmética.
Tudo parecia correr pelo melhor naquele apartamento modesto
mas limpo, comprado a prestações à custa de um grande
sacrifício dos pais. O seu quarto continha tudo o que uma
menina perfeita pode ambicionar: uma boneca de trapos sobre a
cama, uma colcha de chita às florinhas azuis, uma cómoda e um
armário estilo Évora. A janela dava para um pátio cheio de
cães famintos e latas velhas, mas a Sandra a tudo sorria.
Tinha um sorriso um pouco triste, mas que a família
valorizava, porque a "menina é muito responsável".
Quando a Sandra fez onze anos, tudo continuava perfeito. A
festa de aniversário foi um êxito: balões coloridos na
varanda, um bolo de anos cor-de-rosa com letras desenhadas a
dizer "Parabéns", meninas de bandelete azul e vermelha a
segurar fartos cabelos, o pai e a mãe de sorriso aberto para a
pose da fotografia de família. Sandra deitou-se feliz. Tinha
finalmente autorização para ver a telenovela até mais tarde, à
sexta poderia mesmo espreitar o filme da noite, se não fosse
demasiado arrojado e uma ida ao cinema com umas amigas era uma
hipótese para um fim-de-semana ocasional. Nas férias grandes,
contudo, surgiram as primeiras sombras. Uma conversa com uma
amiga mais velha da Caparica perturbou-a, já que não
equacionara ainda o que seria ir com um rapaz ao cinema ou dar
o número de telefone a alguém.
Pouco depois de fazer 12 anos teve a primeira menstruação.
Apareceu aflita à mãe a recordar uma conversa anterior que não
entendera bem. Em breve o seu corpo cresceu, arredondou e foi
olhado de modo diferente pelos rapazes da escola. Os pais
multiplicaram as recomendações: a droga, o sexo, os assaltos,
o ser "fácil" e os perigos da SIDA. Ninguém falou à Sandra no
amor, na aventura, na descoberta e no prazer.
Passou a ver-se ao espelho com frequência, via-se
relativamente magra, mas sentia-se gorda. Começou a odiar o
peito e as ancas, alguém lhe falou na dieta da sapa de Toronto
e no médico espanhol, rapidamente pôs de parte os farináceos e
a carne. Passava o dia a pensar em comida, olhava gulosamente
para as pastelarias de Almada, e, estranhamente, passou a
roubar doces à irmã mais nova, comendo-os às escondidas numa
correria sofrida.
O peso começou a baixar, o corpo era cada vez mais
amado/odiado, mas sobretudo dominado pela dieta cada vez mais
rigorosa. Ao fim de seis meses a menstruação começou a faltar.
Os pais assistiam, atónitos, àquela passagem de rapariguinha
prendada para adolescente rebelde, que tudo contestava sem
transigir.
Ao fim de um ano o seu aspecto impressionava. Continuava
com enorme energia, os resultado escolares eram cada vez
melhores, mas as forças começavam a faltar. Um médico amigo
falou aos pais em anorexia nervosa e bulimia, palavras que a
Sandra já conhecia há muito de leituras em revistas femininas
ou conversas com amigas. Recusou ir à consulta. Tudo estava
sob controlo, dizia para sossegar os pais.
Acabou internada num hospital psiquiátrico, às voltas com a
sua dieta e com a sua adolescência patológica.
Quantas Sandras existirão para aí? Quantas meninas
demasiado perfeitas na infância foram impedidas de crescer por
famílias pseudo-harmoniosas? Quantas adolescentes iniciarão
dietas sem supervisão médica, estimuladas por publicidade
enganosa ou falsos modelos? Quantos médicos receitarão
vitaminas a adolescentes inquietas à beira de doenças do
comportamento alimentar, que aumentam diariamente em todo o
mundo?
10/94

Coisas simples

Passava os olhos pelo jornal e pensava no filho. Diogo


tinha treze anos e parecia mudar todos os dias. Era aquele
sorriso um pouco triste ao canto da boca, os olhos encovados
num rosto magro, um andar gingão, que às vezes tropeçava nas
coisas, não raro um gesto desajeitado que parecia sem destino.
O Sr. Nunes lembrava-se do início da sua adolescência, aquela
conversa com o pai sobre as mulheres da vida e sobre a
vantagem de ser homem. Agora as coisas eram bem diferentes: o
Diogo olhava para ele com sorriso superior de quem já sabe
tudo, mas o pai sentia-o diferente.
No quarto ao lado, Diogo pensava em deitar-se. Sentia uma
inquietação crescente dentro de si. Tinha passado a tarde em
casa do Ricardo a ver filmes pornográficos, esboçando sorrisos
cúmplices perante o maior à-vontade do amigo. Na véspera tinha
entrado num estúpido despique de anedotas fortes, numa roda de
rapazes no intervalo grande. O seu corpo parecia não lhe
pertencer: pêlos apareciam de forma desordenada e eram
recebidos ora bem ora mal, porque se, por um lado, ficava
contente com o que significavam de crescimento, por outro,
achava-os feios ou mesmo um pouco nojentos. Nos treinos de
basquetebol cada vez se esforçava mais e procurava tirar
partido da sua boa altura, mas a bola escapava-lhe das mãos e
parecia ter perdido de vez a direcção apropriada para
encestar. O pior, contudo, era uma certa "electricidade" que
sentia, um coração a bater e uma respiração ofegante que o
assaltava sem que soubesse porquê. à noite parecia não
descansar. Era assaltado por sonhos com mulheres que o
procuravam, misturados com pagamentos do pai e da mãe e
pedaços da sua série favorita da televisão. às vezes acordava
molhado, num misto de prazer pela descoberta e de inquietação
pelo descontrolo. O diálogo com o seu próprio corpo ganhava
contornos cada vez mais íntimos, na exploração de sensações
novas ou na repetição de experiências de prazer. Evitava os
pais e parecia que o irmão, dois anos mais velho e com quem
partilhava o quarto, era um intruso que tudo parecia
adivinhar. Nessa noite parecia particularmente inquieto. O
treino não lhe correu bem, levou um berro do treinador e
apeteceu-lhe fugir e deixar tudo, para se acolher ao outrora
tranquilizador colo da mãe. No balneário foi assaltado por
impulsos contraditórios. Achava que não devia olhar para os
colegas de equipa, que gracejavam nos duches e se tocavam num
à-vontade que o desesperava, mas não conseguia deixar de se
comparar com eles, julgando-os sempre mais homens e com mais
força. E agora? Que fazer nesta noite? Será que o pai, na sala
ao lado, poderia ajudar? O Sr. Nunes saltava de notícia em
notícia. A mulher tinha tido com ele uma conversa sobre
olheiras do Diogo, mais não-sei-o-quê de uns lençóis
manchados. No seu tempo, os rapazes liam um livro chamado
Juventude Radiosa, que o padre de Moral lhes aconselhava e
onde se falava de abelhas e de flores. Sinceramente, não sabia
o que dizer ao filho, como já não fora capaz de falar com o
mais velho. Talvez um psicólogo...
Afinal o Diogo e o pai não precisam de ninguém. O rapaz
saberá encontrar a relação certa com o seu corpo, em breve
crescerá e poderá encontrar-se com uma rapariga. O pai
rapidamente perceberá que a sua adolescência pouco tem a ver
com a do Diogo e o seu papel deverá ser, cada vez mais, o de
estar disponível para o que der e vier, com respeito pela
liberdade do filho e com a certeza de que, como pai, ficará
melhor se não devassar a intimidade do Diogo e se não quiser
impor-lhe um caminho.
Na escola, o Diogo aprenderá poucas coisas nos livros e nas
aulas, mas rapidamente perceberá o que é a vida. Em breve
pedirá para sair à noite, vencerá o medo ao deixar tarde a
discoteca e ficará aflito se em breve não conseguir curtir com
uma rapariga. Rapidamente perceberá que só poderá amar alguém
se gostar de si próprio e que para gostar de si terá de gostar
primeiro do seu corpo, precisará integrar na sua cabeça a sua
transformação e a sua sexualidade crescente. A pouco e pouco
compreenderá a importância dos outros e de se comparar com
eles, sem contudo perder a noção de si próprio. Lá mais para
diante voltará um pouco mais cedo, as noites já não serão tão
mágicas e achará graça a ficar em casa às vezes, comentando a
televisão com o pai e a mãe. Aprenderá que não é preciso falar
muito de sexualidade, porque as coisas simples e importantes
se aprendem à medida que crescemos.
10/94

Um simples botão

Cresce entre nós a inquietação face à influência da


televisão no comportamento agressivo de crianças e
adolescentes. Recentes histórias de violência suscitaram a
preocupação de investigadores e políticos, tendo sido mesmo
levadas a cabo algumas diligências organizadas para melhorar
os programas, tornando-os eventualmente menos violentos.
É de saudar a reflexão empreendida e o debate que a
suscitou, única forma de podermos melhorar uma questão que diz
respeito a todos nós. Não podemos, contudo, esquecer que o
problema não é novo. Há muito que investigadores da área da
Psicologia e da Sociologia se debruçam sobre a influência da
observação da violência televisionada, em que esta actuaria
pelo menos a três níveis diferentes:

-- como facilitadora da aquisição de respostas agressivas


ou como responsável pelo seu desencadear;
-- como causadora da baixa do controlo do indivíduo
sobre os seus comportamentos agressivos;
-- Como factor de banalização da violência.

As conclusões destas investigações foram resumidas em


colóquio recente pela pedopsiquiatra Helena Silva Araújo e são
muito interessantes, pois levantam a questão da importância do
observador. Quer dizer, a influência da televisão violenta é
maior se houver semelhança entre a criança e o modelo, isto é,
os espectáculos violentos na televisão são escolhidos
preferencialmente pelas crianças agressivas, que ficam com a
oportunidade de racionalizar o seu comportamento agressivo,
encarando-o como aceitável.
O inverso também é verdadeiro: o maior aumento de respostas
agressivas dá-se em crianças habitualmente muito passivas, que
encontram deste modo um "escape" para a sua violência
escondida.
Outros investigadores têm encontrado correlações positivas
entre a preferência por filmes violentos e comportamentos
agressivos sobretudo em rapazes; e a psicóloga Benedicta
Monteiro concluiu que "os filmes violentos constituem uma
classe de estímulos facilitadores da moldagem de
comportamentos agressivos, nos rapazes pré-adolescentes".
Há um aspecto em que todos os estudos são concordantes: as
crianças e adolescentes que vêem mais televisão são aqueles
que estão menos integrados escolar e socialmente! E este é o
ponto essencial que nos deve motivar; que ambiente estamos a
proporcionar aos nossos filhos? Que espécie de lar lhes
estamos a fornecer? Na realidade, esta é para mim a grande
questão do momento. A sociedade actual deixou de estar
organizada à volta da família e dos afectos, para estar
organizada à volta do trabalho. As actividades profissionais
comandam a vida dos pais, quer por excesso (nos trabalhólicos)
quer por defeito (nos desempregados). E então frequentemente a
televisão é para os jovens uma fuga à solidão e para os pais
um entretenimento garantido para os filhos.
A geração dos pais tem assim de confrontar-se seriamente
com a sua falta de tempo e tentar -- certamente com algum
sacrifício -- encontrar alguns períodos para estar com os
filhos e para ouvi-los.
A televisão é feita por homens e mulheres, muitos deles
pais e mães, a quem estas questões não podem deixar
indiferentes. Preocupa-me que se assista a um "nivelamento por
baixo" através de uma produção crescente de programas de êxito
fácil, onde a violência, a manipulação de sentimentos e a
graça rasteira ocupam importante lugar. Para os participantes
de certos programas, interrogo-me se não estarão a perder os
limites da própria dignidade, ao deixarem-se filmar em
momentos que deveriam ser de intimidade ou ao permitirem serem
vistos em poses de palhaço pobre. O essencial é que se
compreenda que a televisão nos pede muito pouco. É uma caixa
mágica donde saem viagens, dinheiro fácil, electrodomésticos e
até a solução para frustrações afectivas ou rupturas
familiares. É uma espécie de Senhora de Fátima electrónica:
frente a ela apenas nos é pedido que nos sentemos a ouvir e a
ver sem grande atenção, até que haja qualquer coisa que nos
desperte.
Sou assim contra a violência gratuita na televisão, contra
a devassa intimidade de uma família em crise, contra a
exploração de sentimentos. Sou a favor da maior participação
de associações e conselhos de telespectadores e, acima de
tudo, sou a favor da família. Luto por aquele momento -- esse
sim, verdadeiramente mágico -- que faz com que alguém lá em
casa desligue aquele simples botão para comentar o programa
violento ou simplesmente para conversar. Vamos a isso?
4/12/94

Esquerdo, direito, um, dois!

O pai recordava os seus velhos tempos de liceu. Ao sábado


de manhã, em vez de ir jogar à bola ou telefonar a uma
rapariga, tinha de aparecer no velho campo de futebol para os
trabalhos da Mocidade Portuguesa. Procurava por todos os meios
faltar, pedira até a um velho amigo do pai um atestado, mas
era inevitável. Ninguém parecia gostar dessa actividade, só
que não surgiam processos de a contornar. Os tempos não
permitiam grandes contestações e todos receavam represálias.
Lembrava-se do comandante de castelo e do chefe de quina,
designações que hoje faziam sorrir o filho e os seus amigos.
Eram dois rapazes certinhos, aprumados, que o maçavam quando o
cinto com um S estava desapertado ou quando não conseguia
alinhar pela fila. O comandante de castelo engolia as
palavras, soltava um palavrão quando os estudantes não se
mexiam e veiculava uma ideologia pobre, onde os valores da
ordem e da Pátria proliferavam.
Erte, eite, um, dos! Erte, eite, um, dos! Erte, eite, um,
dos! Erte... Erte! -- era o seu grito de comando. Os colegas
atropelavam-se, pregavam rasteiras aos cromos do estudo,
fingiam obedecer para criar ilusões, mas logo desarrumavam a
fila e punham a cabeça em água ao chefe de quina. Por razões
que o pai nunca chegou a compreender, alguns dos colegas
apareciam mais tarde nas manifestações do 1 de Dezembro, filas
de rapazes de bivaque às três pancadas, camisa verde com as
cinco quinas e calças de cáqui presas com o inefável S. Ele e
os seus amigos sempre recusaram pertencer à Bufa, epítetos com
que sempre ouviu chamar a Mocidade Portuguesa.
Mais tarde entrou para a Faculdade e foi umas vezes estudar
a umas boas instalações que lhe disseram pertencer à
prestimosa organização, que entretanto perdera muito do seu
fulgor. Foi na guerra colonial que recordou de novo os
uniformes da MP, os gritos guerreiros e a ideologia
conservadora. Apesar de estar numa zona de combate, lá para as
terras do fim do mundo, escapou ileso. Não esqueceu, contudo,
as mortes dos colegas, a angústia da separação da família e a
falta de sentido de uma guerra injusta.
Estranhamente, agora com mais de quarenta anos, recordava
isso com nitidez. O seu filho mais velho atrasara-se um pouco
nos estudos e ia ser chamado para a tropa. O compadre
tinha-lhe dito: "Pode ser que faça bem ao rapaz! Afinal, vai
fazer ginástica, pode abater um pouco as banhas e endireitar a
vida!" Mas o pai sabia que haveria outras coisas: conversas
sem sentido, piadas brejeiras, exercícios escusados e
sobretudo muita perda de tempo. Nada disto, contudo, dizia ao
filho. Nem sequer tentara a cunha, porque o rapaz respirava
saúde e não queria ficar a dever favores a ninguém. Pode ser
que a lei se cumprisse e fossem mesmo só quatro meses.
No quarto ao lado, o rapaz deitava contas à vida. Ia mais
uma vez perder um ano, agora que ultrapassara os seus
problemas afectivos e estava disponível para avançar. Tinha de
se afastar da namorada e as fantasias que ela iria ter com
outro ocupavam-lhe a cabeça. Não compreendia como ia aprender
a manejar uma arma, ele que sempre fora gozado por nem sequer
ser capaz de matar uma formiga. Impressionava-se com as
intermináveis estórias da tropa que os amigos contavam entre
dois "gins" melancólicos, ou não percebia como seria capaz de
se confrontar com tantos homens tão diferentes de si. De vez
em quando, a cabeça toldava-se com relatos de jornais sobre
mortes durante a recruta, após exercícios violentos onde
faltava a água e o descanso. Lembrava-se de outros depoimentos
de dureza sobre os mais fracos, de piadas sem nível a mulheres
da vida ou trabalhos menores em tarefas de amanuense. Ia para
uma coisa que ninguém parecia gostar e para a qual não
arranjava justificação. Não somos nós habitantes de um país
de brandos costumes e pacífico por natureza? Alguém vai atacar
Portugal? Acabemos com a tropa obrigatória!
Erte, eite, um, dos! -- recordava o pai. Serviço militar
obrigatório, uma seca!, pensava o filho. Nisto e nalgumas
outras coisas estavam os dois bem de acordo.
12/94

Vencer a morte, viver a vida

O meu trabalho de psicoterapeuta de adolescentes faz-me


pensar todos os dias. Neste final do ano de 1994 sou assaltado
por ideias contraditórias. Se considero que o ano que agora
acaba foi positivo em alguns aspectos, outros deixam-me
apreensivo. Foi o Ano Internacional da Família e,
incontestavelmente, falou-se bastante dos jovens e dos seus
familiares. Houve algum debate sobre o papel da juventude e
dos seus pais, discutiu-se mais a escola e perdeu-se um pouco
o medo de falar sobre os quotidianos juvenis. Muitos
adolescentes, contudo, continuaram sem voz activa nas suas
casas ou transformados em simples números da sua escola C + S.
O ano de 1995 tirará essa lição do velho ano: numa família,
numa escola, numa comunidade, ninguém falará por nós. Mesmo os
nossos representantes, eleitos com ou sem maioria absoluta,
perguntarão o que pensamos antes de porem nas suas bocas
coisas que jamais dissemos ou sequer pensamos. Mesmo depois de
mortos.
Vem isto a propósito de dois factos que marcaram, de alguma
forma, o meu ano profissional (para além de muitas coisas boas
que ele teve...). Refiro-me à tentativa de suicídio da jovem
tristemente célebre por causa daquele negócio do leite, que
afinal não era, e da recente morte de duas adolescentes em
Leiria. Nestes casos foi usado o mesmo tóxico, um pesticida
organofosforado de que não quero repetir o nome. E se no caso
do leite impressionou o súbito interesse voraz de uma
comunicação social sensacionalista, a situação de Leiria
rapidamente parece ter caído no esquecimento. No entanto, no
primeiro caso, uma jovem
esteve em perigo de vida e no segundo duas adolescentes
morreram.
Considero hipócrita o interesse dos jornais por estas
situações. Calhou agora, porque o leite estava ligado ao
Benfica e alguém pôs a hipótese de os suicídios de Leiria
terem a ver com uma telenovela em exibição. É preciso dizer
bem alto que em Portugal morrem de suicídio, por ano, mais de
100 jovens dos 10 aos 24 anos e que muitas centenas fazem
tentativas de suicídio. Não seria bem mais sério os jornais
preocuparem-se a fundo com esta questão, sobretudo nos locais
onde ela é grave, como o Alentejo? Não se deve falar do
suicídio de uma forma superficial ou sensacionalista. Ninguém
se mata por causa de uma telenovela, ou porque teve má nota a
Matemática, ou porque a televisão falou do assunto. As
condutas autodestrutivas fatais são multideterminadas, quer
dizer que há um conjunto de circunstâncias que, num
determinado momento e num sujeito fragilizado anteriormente,
precipitam o gesto suicida. Também é preciso dizer que a
maioria dos jovens que morrem de suicídio sofre de depressão e
que há vários tipos de depressão. Algumas formas depressivas
têm uma nítida base biológica e hereditária, outras estão mais
relacionadas com os acontecimentos da vida das pessoas. No
actual percurso para a conquista da identidade e da autonomia,
o adolescente procura referências e marcos significativos que
lhe forneçam pistas para o seu prosseguir. A sociedade de
agora é caracterizada justamente pela ausência de rituais que
outrora caracterizavam a passagem para a idade adulta. Para
alguns antropólogos, certas condutas de risco na adolescência
teriam justamente a ver com a necessidade de dominar a morte
para conseguir sentido para a vida. É como se uma pessoa que
desafia a morte ficasse com direito a viver e com mais razão
para sobreviver. Certas tentativas de suicídio juvenis seriam
assim uma espécie de desafio à morte, uma forma de a vencer
para viver melhor.
Não sei se foi este o caso da rapariga de Lisboa ou das
adolescentes de Leiria. Mas sei uma coisa: ninguém deve falar
por elas. Por isso me recuso a comentar o que de facto lhes
aconteceu. Para aquela que vive, oxalá possa encontrar
tranquilidade para ultrapassar os seus problemas. Para a que
morreu, o meu profundo respeito. Por isso estranho comentários
como os da directora do lar que afirmou "que não era intenção
praticarem efectivamente o suicídio [...] pretendendo apenas
chamar a atenção, ou do pároco de Leiria que disse: uma moça
de 17 anos seria capaz de assumir totalmente a
responsabilidade de pôr termo a uma vida" (Público de
29-11-94). Não há nada mais importante do que a dignidade na
morte. Assim, acho que ninguém pode falar pelas jovens, muito
menos infantilizá-las, dizendo que não foram responsáveis pelo
que aconteceu. Infelizmente, não são os únicos jovens a tentar
o suicídio em Portugal. Muitos deles estão longo tempo a
pensar o que devem fazer e acabam por morrer depois de uma
profunda e ambivalente análise. Não são irresponsáveis. São
pessoas que não conseguiram encontrar estímulo para viver.
Vamos todos preocupar-nos com isso no ano de 1995. Na nossa
casa, na escola, na nossa vila ou cidade, vamos pensar que
alguém pode precisar da nossa proximidade e do nosso estímulo.

P. S. -- Sr. Director-Geral da Saúde: Quando proíbe o


pesticida em casa?

02/1/95

Madrugada

Era a segunda noite em que o filho tinha saído e, tal como


na primeira, não conseguia dormir. De nada tinham valido os
ralhos e as ameaças, as tentativas de o convencer através da
promessa, sempre adiada, de oferta da moto. O tempo da
discussão foi, aliás, mais curto nessa noite: o filho
Francisco saíra a bater com a porta, nem sequer prometera não
vir tarde.
Eram 4 da manhã. Olhava de cinco em cinco minutos o
mostrador luminoso do rádio-relógio, acendia e apagava a luz
num tormento que a Marie-Claire do mês passado não sossegava.
Desconhecia aquele filho em cada dia que passava. Primeiro nos
gestos bruscos, na maneira de falar um pouco mais desprendida,
no encerrar-se no quarto horas e horas com a música bem alto.
Também uma ligeira quebra escolar, um discurso negativo sobre
a escola até aí desconhecido, uma crescente atenção aos
telefonemas e às combinações com os amigos. A sua amiga Isabel
falava da crise dos quinze anos, mas a mãe do Francisco não
encontrava conforto naquelas frases. Sabia tudo dos livros e
de outras conversas com amigos, mas quem se sossegava naquela
inquietação? Quem lhe poderia tirar aquele bater do coração à
medida que a voz do filho se elevava?
Mudou de posição mais uma vez e pensou no ex-marido. Há
sete anos que o pai do Francisco se tinha ido embora,
"trocando-a por uma galdéria", como na altura a sua mãe
dissera. Recordava o divórcio como uma luta penosa. O marido
começou por dizer só querer o retrato do avô e a estatueta da
Diana caçadora, para em breve exigir metade de tudo e o filho
por inteiro. Foi um longo processo que viveu a odiar cada vez
mais. O marido, a galdéria, os advogados e sobretudo aquele
medonho edifício tipo Ceausescu a que chamam Palácio (?!) da
Justiça. O juiz despachou o assunto em breves audiências de
cinco minutos, com a porta sempre a abrir e a fechar e uma
montanha de papéis em cima da secretária, alguns presos por
uma espécie de fio atacador de sapatos da província. Ficara
com o filho, claro, como quase todas as mães. Aliás, num
acordo tão burocrático como não seguir a chapa 1? Mas ficou
com a ideia de que todos perderam, inclusive a galdéria, que
uma vez foi espreitar à saída do escritório do marido.
O mais difícil, contudo, veio depois. Sentia-se cada vez
mais só e desamparada à medida que o Francisco se desprendia
dela. Os amigos tinham claramente optado pelo BMW do marido e
pelos jantares em restaurantes da moda, achando sempre que ela
podia curar as suas mágoas numa vertigem de Prozac. Todas as
tentativas de pedir apoio ao pai do Francisco terminaram com
uma resposta agressiva ou um conselho para arranjar um
namorado. O certo é que o dinheiro começava a escassear, as
crescentes exigências do filho para sair e comprar roupas
arruinavam todos os seus planos.
Procurou rever antigos amigos, aceitou mesmo o convite de
um colega de trabalho para um fim-de-semana em Sesimbra, mas
rapidamente percebeu o susto dele face aos sucessivos
telefonemas para saber onde o Francisco estava. Dava consigo a
fazer coisas que não compreendia. Ainda ontem não percebia a
corrida pelas gavetas do filho à procura não sabia de quê, a
pesquisa frenética nos bolsos, o horror quando viu um reclame
de preservativos. Surpreendeu-se a escutar às portas, a pegar
no telefone portátil quando ele falava com a Catarina ou a
fazer perguntas ao Manel, o amigo de sempre: "O Francisco já
tem namorada? Onde é que vocês foram ontem à noite?" Afinal
estava também com medo de envelhecer, de não ser capaz de
aguentar a vertigem em que o filho vivia. Rebuscava na sua
adolescência e achava tudo diferente. Os pais, os filhos, a
vida lá fora. Sobretudo não conseguia falar com o Francisco.
Parecia que tudo o que dizia era sem graça ou desajeitado e o
rapaz respondia sempre com um encolher de ombros. Procurou ler
tudo o que havia sobre a adolescência, inclusive um livro de
capa verde "não sei quê novos pais", mas não encontrava
qualquer resposta para os seus problemas. Tudo lhe parecia
vago e confuso, sem sentido.
Ouvia os táxis a parar ao pé da porta, talvez seja ele...
talvez seja ele... Era ele. Levantou-se, fingindo uma calma
que não tinha. Veio-lhe logo à cabeça que o rapaz vinha bêbedo
ou drogado, porque o viu de olhos vermelhos e um sorriso
enigmático.
Fez então um grande esforço. Foi com o Francisco para a
cozinha e viu-o devorar um pão e um copo de leite.
Estranhamente, começara a conversar. Mulher inteligente e
sensível, rapidamente percebeu que o filho queria partilhar
alguma coisa. Pensou, ao ver aquele olhar um pouco matreiro,
que ele tinha estado com uma rapariga, mas conseguiu
felizmente conter-se e não perguntar nada.
Falaram até nascer o dia, sentados em cima da cama da mãe,
como há muito não acontecia. Foi uma das grandes madrugadas da
vida daqueles dois. Talvez pela primeira vez perceberam que
precisam um do outro mas que são pessoas diferentes. Não é
isso a que chamam crescer?
15/1/95

Lutar mais para vencer a droga

Sobre a questão da liberalização da droga, lamento


desiludir alguém, mas de facto não tenho ideias assentes.
Estou interessado no problema, sei que mais tarde ou mais cedo
as drogas leves serão liberalizadas, isso não me assusta muito
mas... há tanto a fazer antes disso!
É por isso que penso que temos todos de trabalhar mais no
problema, se queremos de facto vencer a droga.
Em primeiro lugar, devemos exigir mais dinheiro ao Poder. O
orçamento dos serviços oficiais, para tratamento de
toxicodependentes, é bem pequeno face a outras despesas feitas
com tanta coisa inútil. É de facto mentira dizer que o Estado
gasta muito dinheiro com a droga -- não vão nisso! São
precisas mais consultas, mais locais de tratamento para
desintoxicação e muitas mais comunidades terapêuticas. A
promessa que ia haver centros de atendimento em todos os
distritos até ao fim do ano não foi cumprida.
Depois, acabemos com a hipocrisia da repressão do tráfico.
Não me interessa ver na televisão uns quilos de haxixe
apreendidos, se a heroína anda por aí com tão fácil acesso a
qualquer hora do dia. Não vale a pena lamentar o Casal Ventoso
se lá sabem sempre com antecedência quando vai haver uma
rusga. Para quê falar de ajuda às escolas se os traficantes
param lá à porta e ninguém diz nada.
Ainda: diz-se ser importante estudar o problema da droga,
mas não há dinheiro para a investigação. Quem estuda o quê?
Ou: para quê preocupações de boca com a situação das
prisões onde corre a droga e há muito pouco apoio, apesar do
esforço dos técnicos que lá trabalham.
E cuidado com as campanhas, como aquela em que as pessoas
batiam num vidro como se fossem moscas e que só serviu para
culpabilizar os pais.
Ainda há quem pense que a droga só aparece nos filhos dos
pais divorciados ou em famílias com problemas...
Acabem também com as publicidades enganosas, com anúncios
de curas milagrosas em clínicas de credibilidade duvidosa,
onde acorrem as famílias desesperadas. O Governo deve
garantir, em qualquer unidade de tratamento aberta, o mínimo
de qualidade técnica e de honestidade financeira. Por isso,
tem o dever de vigiar o que se passa, para protecção dos
cidadãos.
Façamos então um esforço grande na prevenção. Não só
através de campanhas de prevenção primária, através da
mobilização de jovens para actividades que lhes digam respeito
e onde possam ter voz activa. Vamos falar da prevenção lá em
cada, desde a infância. Vamos fazer com que os pais e filhos
se ouçam mais e se critiquem menos. Vamos lutar para que as
escolas sejam mais pequenas e tenham instalações desportivas
dignas desse nome. Vamos exigir que as autoridades dêem espaço
para os jovens e casas de juventude onde eles possam estar.
Então, se existirem mais consultas, se a prevenção for
melhor, se a repressão for mais eficaz, se falarmos mais uns
com os outros e o problema não tiver melhorado, nós e os
outros países chegaremos rapidamente a acordo para liberalizar
as drogas ou para controlar medicamente as doses daqueles que
há muito fracassaram nos tratamentos.
1/95

Os "analistas" da vida

Se não tivermos cuidado, em breve seremos um país de


comentadores políticos e desportistas de bancada. Onde quer
que se vá, só se encontra quem muito critique e pouco se digne
executar. Quando vamos ao futebol, uma data de indivíduos não
pára de falar ou mesmo gritar e rapidamente verificamos serem
completamente incapazes de treinar qualquer equipa de bairro,
quanto mais um grupo profissional. Quando pegamos num jornal,
por toda a parte vemos comentários de "analistas políticos"
que se autopromovem sem qualquer qualificação especial. Quando
ligamos a televisão ou a rádio, ouvimos "editores" ou
"comentadores" em competição desenfreada para dizerem mais do
mesmo. Alguns destes francamente exageram. Parecem imbuídos de
uma série de normas sobre como se deve estar, o que se deve
fazer, a forma como se deve discursar ou escrever. São uma
espécie de arautos de um país idealizado bem diferente do
nosso. às vezes extraem das suas mentes classificações
infelizes sobre grupos sociais, previsões sobre o futuro dos
políticos ou apreciações globalizantes sobre o estado das
coisas, que o futuro em breve se encarrega de destruir.
Noutras ocasiões sentam-se em cadeiras de mau gosto e animam
cenários sem sentido para debitarem vómitos biliosos sobre
telespectadores desprevenidos.
A todos estes senhores com responsabilidade ninguém é capaz
de dizer que o rei vai nu? Não existe alguém que lhes diga o
conhecimento é cada vez mais complexo, que as coisas são cada
vez menos lineares, que cada vez é tudo mais provisório?
Estes senhores que tudo sabem não saem dos seus gabinetes,
porque se o fizessem seriam mais humildes. Não esqueço aquele
ditado inglês que diz que não é preciso ser-se galinha para
saber se um ovo está podre. Sou por isso completamente a favor
da crítica e não penso que seja preciso ser-se ministro para
poder criticar a acção de um governante. Estou apenas
preocupado com a delegação permanente que cresce na sociedade
portuguesa. É assim como se não valesse a pena fazer nada,
porque toda a gente diz mal e lá aparecerá um responsável para
executar o trabalho e ser criticado pelo "editor de política".
É deste modo que o lixo se acumula à nossa porta, porque
alguém da Câmara (não) o tirará. Não vale a pena fazermos uma
manifestação, porque terá poucas pessoas ou se tiver muitas
haverá excessos e os manifestantes "perderão a razão". Os
condomínios continuarão a funcionar mal porque a lei não
presta e por isso não vale a pena ir às reuniões. Os políticos
afastam-se dos cidadãos, dizem os analistas, que são os
primeiros a dizer mal de tudo, raramente enaltecendo uma
qualidade quase sempre presente; os governantes, sejam eles
quais forem, fartam-se de trabalhar. Uma escola continuará
degradada até que alguém do Ministério (não) virá cuidar dela.
O mais inquietante de tudo isto é que cresce o discurso
negativo sobre a nossa própria vida e sobre a sociedade que
dizemos querer melhorar. Já alguém verificou as inexactidões,
a falta de profundidade, a ausência de estudo e de reflexão
que revelam muitos dos nossos oráculos? A verdade é que
continuam a dizer como não nos devemos comportar e fazer
juízos de valor sobre qualquer iniciativa. Mais grave ainda:
são incapazes de ir a uma escola e ver como, apesar das
dificuldades, crescem os sinais de mudança e se multiplicam as
iniciativas de alunos e professores. Não sabem distinguir os
políticos arrivistas daqueles que toda a vida dedicaram o seu
esforço a reflectir sobre a causa política. Esquecem o
treinador de futebol sério e competente para dar espaço àquele
que parte mais a louça.
Mas o que mais me preocupa é que este vírus parece estar a
desenvolver-se. às vezes falo com jovens estudantes que me
dizem não valer a pena lutar pela rádio na escola porque o
Conselho Directivo não consegue verbas. Dialogo com
professores que me dizem não valer a pena ensaiar novas
estratégias na sala de aula porque o "sociopolítico" (sic)
impede a melhoria. Os motoristas de táxi, arautos permanentes
do anti-sistema, continuam trinta anos depois a dizer que "com
estes gajos não se vai lá, são uma cambada de chulos" (sic).
Todos parecem esquecer que o "sociopolítico" somos todos nós!
Vamos por isso tentar ser um pouco mais humildes. Agora que
me aproximo dos cinquenta anos tenho cada vez menos certezas.
Há uma coisa, porém, que aprendi: não haverá jamais qualquer
ministério que lute verdadeiramente pelos meus direitos. Só a
evitar a delegação e a lutar por aquilo que é importante para
mim vou de facto conseguir a mudança que ambiciono. Será que
poderemos criticar menos e estimular mais, lá em casa e no
jornal?
26/2/95

Aos dezasseis anos já se é grande

Vivemos numa sociedade cheia de paradoxos. Dizem que


devemos ser magros, mas mostram-nos diariamente iguarias que
aumentam o nosso peso. Afirmam que devemos pensar antes de
agir, mas estimulam a competição e quem não é rápido não tem
êxito. A verdade é que não há ditado mais errado do que aquele
que diz "devagar se vai ao longe". Na nossa sociedade actual,
devagar não se vai a lado nenhum. A pressa é que é. Ser
moderado é ser efémero.
Também nos dizem que a família é muito importante, mas a
sociedade estrutura-se de modo a não termos tempo uns para os
outros. Dizem que os jovens devem fazer desporto, mas poucas
escolas têm pavilhões desportivos e cada vez há menos espaços
verdes nas cidades. Também postulam que o amor é a coisa mais
importante aos 20 anos -- a idade mais bela da vida, dizem!
mas já há uns anos atrás que estão sempre a dizer que é
preciso cuidado com a SIDA e a hepatite B e por aí fora.
Um dos grandes paradoxos é a adolescência actual. Sabemos
que a adolescência é uma descoberta recente. Quem não se
lembra dos reis da nossa história, que governavam aos 14 anos?
O paradoxo está no facto de os nossos jovens serem mais
autónomos do que nós éramos há 20 anos atrás, mas só para umas
coisas.
Assim, não têm medo da vida e saem mais à noite. Perderam
bastante o receio do sexo e praticam-no com menos teias de
aranha na cabeça, esperemos que quase sempre com amor. Estão
menos preocupados com o regime político actual e mais
angustiados com o ozono, a fome, a guerra e o desemprego.
Pensam mais pela própria cabeça e menos pelas células
cinzentas dos pais e professores. Mas às vezes são mais
pequenos. Estudam anos a fio e não têm garantia de emprego,
ficando muito tempo com a família de origem. às vezes vão
viver com o namorado(a), mas a roupa continua a ser lavada em
casa dos pais, que entretanto já deram a entrada para o
apartamento no Fogueteiro ou uma ajuda para a máquina de
lavar. Querem ter carro e vão andar com o carocha paterno até
que ele caia de podre. Gostam de dizer que sabem cozinhar, mas
vão buscar o bacalhau à avozinha no dia da primeira festa na
nova casa. A responsabilidade, contudo, não é só deles. Na
verdade, todos temos dentro de nós o mito da família unida e
vamos continuar a desejar que tudo fique em conjunto.
É por isso que a questão do voto aos 16 anos não pode
equacionar-se longe dos aspectos gerais da adolescência e da
juventude. Aos 16 anos já se é grande para muita coisa. Se
tudo correu bem, já se "curtiu" ou se "andou" mesmo com
alguém. A guerra com os pais ainda está forte, mas muitas
vezes já não é tão vital. Já se saiu à noite e aquela magia
tão ansiosamente aguardada já não é tão brilhante.
Estranhamente, já quase se fez uma decisão sobre o futuro
profissional, porque se escolheu o "agrupamento" onde se
estuda desde o 10º ano, ou então, já se deixou a escola à
espera de melhores dias. Quanto à política e ao voto, depende.
Em princípio já se pensou no assunto, já se tem alguma
maturidade e autonomia para se decidir. Não faz muito sentido
pedir a um jovem que no fim do 9º ano já saiba o que quer ser
na vida, para lhe negar o voto aos 16 anos e pedir que ele
espere até aos 18. Mas para que o voto mais cedo faça algum
sentido, era importante que se melhorasse a participação dos
jovens nas questões públicas. E era importante que os
políticos se preocupassem de facto com os adolescentes e não
se limitassem a falar da "irreverência" dos mais novos. Por
exemplo, era bom que os mais velhos se detivessem, não só
sobre o voto mais cedo, mas também sobre a inutilidade do
serviço militar obrigatório, sobre a falta de protecção ao
casal jovem, sobre as condições da falta de informação sobre
a sexualidade, sobre a exploração do emprego juvenil, etc.,
etc.
Aos 16 anos já se é grande. Vamos puxar pelo voto mais cedo
e por muitas outras coisas mais, se conseguirmos ajudar as
pessoas a crescer.

2/95

Nada está seguro

No momento actual da relação com os nossos filhos


adolescentes nada está seguro. No meu trabalho com famílias
onde existem filhos jovens e nos meus contactos com pais em
reuniões em escolas secundárias, toda a gente me fala de medos
e de incertezas. É a mãe que vive só com os filhos (porque o
pai abandonou a casa há vários anos e se limita àquele
encontro mais ou menos burocrático de quinze em quinze dias),
e receia a saída à noite da filha e o seu regresso a casa pela
madrugada, atravessando zonas da cidade onde a lei do asfalto
está em vigor. É o pai que protesta pela falta de segurança da
escola, onde os alunos mais fracos ou aqueles que se fazem
bater (...), sofrem violências a que os adultos fecham os
olhos. É a família que, sempre que o adolescente protesta mais
alto, pensa que ele entrou definitivamente no mundo da droga.
São os pais que levam e trazem os filhos das discotecas às
horas mais incríveis, porque receiam sevícias dos
porteiros-gorilas ou lutas entre grupos juvenis. É a avó, a
quem os netos tudo devem porque os pais tiveram fortes razões
para deixar os filhos, que vive aterrorizada porque a sobrinha
foi violada há anos e a neta a seu cargo modificou o corpo e
começou a olhar para os rapazes. E a tia solteira, onde os
jovens vão almoçar porque ficou com a velha casa da família ao
pé da escola, que colecciona recordações sobre aqueles
programas de televisão que procuram ganhar a taça do mais
assustador, com mortes, roubos e assédios sexuais à razão de
três por minuto.
Vivem assim os pais um quotidiano de receios acerca dos
seus filhos. A imagem que lhes chega é a de uma juventude que
vive no fio da navalha, é assaltada constantemente, violada,
assediada, ou então ela própria se descontrola e comete
excessos sem parar. Não há qualquer dúvida de que a segurança
das nossas escolas e das nossas ruas deixa muito a desejar e
que há zonas das cidades onde só se poderia entrar com
à-vontade acompanhado por escolta policial. Mas qual é a
alternativa? Vamos proibir os nossos filhos de sair,
obrigando-os a ficar em casa sem poder encontrar os amigos e
conhecer a vida? Vamos impedir que eles conquistem a sua
autonomia e permaneçam ao pé de nós sem crescer? Vamos fingir
que não há violência à nossa volta e que eles vão viver para
sempre na prisão dourada do ambiente familiar? Vamos proibir
que eles andem sem amigos e colegas mais desembaraçados, ou
mesmo exageradamente sem limites, à espera que eles acatem a
nossa decisão, mas tendo quase a certeza de que não será assim
e que por isso estará criado o contexto familiar para a
mentira? Vamos constantemente pedir mais funcionários para a
escola, com a certeza de que eles não virão, porque o Poder só
contrata com recibo verde senhores importantes? Vamos
solicitar polícia para as ruas e transformar os nossos
passeios numa parada militar?
Não pretendo desvalorizar as questões da segurança e a
necessidade de elas serem resolvidas com os meios habituais.
Sou assim a favor de muitas medidas que são urgentes nos
vários exemplos que apontei.
Não posso, contudo, esquecer os medos que também existem
dentro de nós e nos fazem sentir inseguros. Um deles é o medo
que os pais têm de perder aquela filha perfeita que não deu
qualquer preocupação até à entrada na adolescência. Correu
tudo bem até ao momento em que, aparentemente influenciada por
outra rapariga um pouco mais velha, começou a fumar, a querer
sair à noite, a contestar as decisões maternas ou simplesmente
a não andar com a família. Há qualquer coisa de inexplicável
neste medo dos pais, porque racionalmente são os primeiros a
dizer que é bom ela crescer e que tudo farão para a ajudar a
ser autónoma. Existe, porem, um medo interno que é o de não
controlar, de não conseguir prever, de recear que ela
engravide do rapaz de brinco e de rabo de cavalo que a espera
a acelerar a motorizada. Pode também ser o receio de que ela
se zangue e se vá embora de vez, ou que negue o seu passado e
os valores da família e se transforme noutra pessoa. É capaz
de ser ainda o medo que os pais podem ter de ficar sozinhos,
de costas voltadas um para o outro, já que até aí só estiveram
unidos para educar os filhos (ou o medo da mãe que tudo viveu
sozinha, rebentou com várias relações amorosas porque o seu
namorado não suportava os seus filhos e está agora com
quarenta anos e a ver os miúdos a deixarem de o ser).
É preciso não esquecer que a adolescência é risco. Não se
pode crescer sem experimentar, sem avanços e recuos, sem erros
e coisas certas. Não podemos deixar os filhos sozinhos
entregues à sua sorte, mas também não os podemos manter
permanentemente numa redoma. É crucial saber coisas sobre a
vida deles, perceber que no seu quotidiano também há coisas
serenas e belas, sentir que umas vezes querem falar connosco,
outras não e que não é por não falarem que deixaram de gostar
de nós.
E sobretudo não esquecer que na adolescência está tudo a
mudar, nada está seguro na rua nem dentro de nós.

12/3/95

Escolas diferentes

Quem imagina que as escolas básicas e secundárias são todas


iguais está muito enganado. Quando se visitam diversos
estabelecimentos de ensino, impressiona a sua diversidade. Há
diferenças que se esperam, como as que se relacionam com o
meio envolvente. É deste modo que as escolas junto a bairros
degradados revelam aspectos impressionantes, onde a violência,
a droga e o insucesso escolar crescem todos os dias.
Nos bairros elegantes da cidade, tudo parece, à primeira
vista, mais sossegado e, às vezes, até há uns arremedos de
jardim. Vários estudos mostram que a escola é muito
influenciada também pelas virtualidades dos equipamentos
sociais e desportivos que uma autarquia mais atenta ou mais
endinheirada põe ao seu dispor.
Há outras diversidades importantes. O ensino massificou-se
e agora surgem nas escolas rapazes e raparigas de muitas
proveniências sociais. Alguns pertencem às classes altas da
zona, vestem à moda, têm frequentemente motorizadas e adoram
falar de festas e de aparecer nas revistas acéfalas da
actualidade. Há quem lhes chame "betos" e, se não são
conhecidos por esse nome, certamente se distinguem pelas
atitudes e pelas amizades. Outros têm diferente proveniência
social, às vezes tentam imitar os "betos", mas são muitas
vezes marginalizados e ficam aparte, recebendo o cognome de
"chungas" ou "mitras". É assim que a escola não é pacífica, é
uma espécie de cadinho onde se vão dar reacções às vezes
imprevisíveis.
Também o racismo está presente. Seria hipócrita pensarmos
que todas as etnias têm os mesmos direitos numa escola, mas
quem lá vai sabe bem que não é assim. É deste modo que fervem
os epítetos de monhé, escarumba, preto, amarelo e outros do
género para designar quem não nasceu caucasiano. às vezes
estes comentários são de curta duração, outros assumem
aspectos mais mantidos e por isso preocupantes. Certos jovens
de raça negra dizem-me que se isolam uns com os outros,
vivendo numa espécie de "gueto" escolar, onde raramente alguém
entra. Outros referem-me que, embora se sintam às vezes postos
à margem, conseguem pontos de contacto através da música ou do
futebol.
Há confrontos entre bandos de jovens onde a cor da pele é
acentuada num crescendo de violência. Tradicionalmente, os
jovens cabo-verdianos são os bodes expiatórios de conflitos
mais profundos, que têm a ver com a identidade social de cada
um e com o lugar mais ou menos importante que ocupam na
comunidade escolar. A escola é, afinal, o reflexo da sociedade
e se é certo que muitos indivíduos das ex-colónias conseguiram
a sua integração mais ou menos pacífica, não podemos esquecer
que isso não foi fácil nem pacífico em muitas ocasiões.
Cada vez se torna mais necessário que a escola saia das
suas paredes e olhe em volta. Se a escola não tem instalações
desportivas, pode elaborar um protocolo com a autarquia para
cedência de instalações. Se o muro caiu ou se está pintado de
slogans racistas, alguém pode tocar a rebate e mobilizar para
o melhorar. Agora o que parece essencial é não deixar que a
violência e o racismo cresçam sem se fazer nada para o evitar.

3/95

A magia da festa

Muitos adolescentes escrevem-me a falar dos seus problemas.


Era assim uma carta que recebi há dias: "Já é a terceira carta
que começo a escrever e depois rasgo. Mas acho que desta é de
vez. Chamo-me Rita e tenho 17 anos e resolvi escrever-lhe, sem
sequer saber se isto é prática habitual, [...]. Nunca tive
grandes problemas com os meus pais na infância, na entrada da
adolescência começou a haver aqueles pequenos conflitos,
normais, mas que eram sempre resolvidos em benefício da
vontade dos meus pais com umas bofetadas na minha cara. Eu
achava que tinha de me calar e aguentar, porque aos 13/14 anos
não tinha vontade própria, nem sequer sabia o que andava a
fazer. Mas agora, desde que fiz 17 anos, mudei de escola
(estou no 12º o ano e sou uma boa aluna), conheci novas
pessoas, adquiri novos hábitos, que me fizeram passar a
apreciar mais a vida entre amigos, com saídas à noite ou só
até ao café. Sempre fui habituada a viver um bocado dentro de
uma redoma, a almoçar todos os domingos com a família, a
visitar os avós e tios, a sair quando os meus pais saíam e
nunca me foi admitido que demonstrasse que não tinha vontade
para ir. Agora comecei a sair ao sábado, o que me impede de
levantar ao domingo para o almoço familiar, comecei a combinar
saídas com os amigos, que me impedem de sair (algumas vezes)
com os meus pais [...]. Sinto uma maior liberdade, uma maior
autonomia, acho-me capaz de fazer coisas que nunca tinha feito
ou pensado. O problema está em que os meus pais não percebem o
que se está a passar, acham-me agressiva, acham que eu já não
gosto deles, acham que passo o dia na rua [...]. Para ajudar,
arranjei um namorado de quem gosto muito e de quem os meus
pais não gostam. Proibiram-me de estar com ele e eu não o fiz.
Descobriram e agora estou proibida de sair de casa para me
encontrar com ele ou com qualquer outro dos meus amigos.
Voltei a ter que passar o dia enfiada em casa com os meus
pais, a sair com eles, não posso receber nem fazer telefonemas
e o pior é que não posso estar com o tal rapaz que eu adoro. É
claro que arranjo sempre uns estratagemas para lhe telefonar
ou para o ver, mas tenho que mentir e ser cínica para os meus
pais. A minha relação com os meus pais foi construída em cima
de uma mentira, agora por eles não me deixarem fazer as coisas
que me deixam feliz. Nunca menti tanto aos meus pais e estou
num ponto em que estou a falar com eles e dentro de mim está
uma raiva a crescer, um ódio, quase me apetece partir tudo e
acho que odeio os meus pais, porque me fazem sofrer! Passo os
dias a chorar, tenho que passar o dia a olhar para a cara
deles e a minha mãe já me disse que o castigo não tem tempo
determinado e que não vou poder fazer nenhuma festa de 18 anos
(tinha combinado com o meu grupo irmos para o Algarve e
comemorar lá os anos) e muito menos ir para o Algarve. A minha
festa de anos vai ser, como todas as outras, passada com eles
e com os meus avós, com um bolo de anos com velinhas e
pombinhos, como se eu tivesse sete anos. Não sei como é que eu
vou explicar aos meus pais que cresci, que não deixo de gostar
deles por ter amigos ou um namorado. Não posso contar à minha
mãe todas as coisas lindas que me aconteceram com ele, tenho
de mentir e fingir que está tudo bem, ser cínica..."
Apetecia-me quase nada dizer. Só que vale a pena reflectir
sobre esta mensagem. Há um momento mágico na vida das famílias
que corresponde ao instante em que o filho adolescente começa
a desprender-se. A partir desse segundo, o adolescente
prepara-se para nascer por dentro. Percebe que perdeu a
mãe-refúgio, que tudo resolve no seu regaço, ou o pai
super-homem, que tudo sabe. Compreende nessa altura que vai
ter de correr riscos e experimentar coisas que a família não
lhe pode dar. E então parte simbolicamente (quando as coisas
correm mal, parte mesmo a sério).
Nalgumas famílias, este movimento centrífugo do adolescente
é sentido como uma ameaça. Parece que o equilíbrio familiar se
rompe com algumas saídas ou com ocasionais confrontos. Começam
então as proibições, logo seguidas das mentiras dos filhos,
como a carta da Rita tão bem demonstra. Agrava-se a
dificuldade natural da comunicação entre gerações e
estabelece-se por vezes a lei do quanto pior, melhor. Não raro
e porque é moda, leva-se a menina ao psicólogo.
Noutras famílias, os pais parecem não querer ver os filhos
crescerem. A negação da sexualidade adolescente impressiona.
Numa família, os pais viram uma pequena entrevista de um filho
de quinze anos a propósito do Dia dos Namorados e "leram"
amor-filho pais, quando o rapaz falava de uma eventual
namorada. Noutra casa, a filha de dezoito anos foi proibida de
passar férias com os amigos a pretexto do perigo de andar de
carro, quando o que estava em jogo é que os pais sabiam que
ela provavelmente dormiria com o namorado. Multiplicam-se
desculpas sem sentido e estratagemas ardilosos para evitar
falar daquilo que está à frente de todos. Pais e filhos
mergulham numa comunicação distorcida que não levará a lado
nenhum, a não ser a maior distância e mais conflitos. Não
seria melhor que todos falassem em como não podem sempre andar
em rebanho? Alguns adolescentes agravam o problema
afastando-se cada vez mais dos pais, aumentando os conflitos e
promovendo a guerrilha familiar. Estes revolucionários
domésticos terminarão muito sós e viverão na expectativa de
encontrar uma mãe salvadora que os tire da depressão. Também
há pais que tudo precipitam com ditames pseudoconvictos.
Que fazer? Para a magia da adolescência não pode haver
receitas. Tudo passa muito depressa e é ao mesmo tempo
eternamente duradouro. Só um permanente confronto de ideias
com um respeito por cada geração em presença, poderá
transformar essa magia numa festa para todos (que é, afinal, o
que a boa adolescência verdadeiramente é).

23/4/95

Um ano depois

Cerca de um ano depois de alguém importante (?) ter usado a


infeliz designação "geração rasca", o que verificamos?
Em primeiro lugar, não houve alterações significativas na
política para o sector. Apesar do inegável esforço de alguns
governantes e de algumas medidas acertadas, os problemas mais
importantes da juventude continuam a crescer. As escolas
secundárias permanecem com gente a mais e diálogo a menos. As
cidades têm cada vez mais torres e menos espaços verdes, não
há campos de futebol nem zonas lisas para andar de patins. Os
pais continuam a trabalhar muito, a chegar a casa cansados e
com pouco tempo para falar com os filhos. O emprego juvenil é
cada vez mais precário, para já não falarmos nos ordenados de
miséria dos nossos jovens em centros comerciais ou
estabelecimentos de fast-food. A ideia que é transmitida sobre
a juventude é muito negativa: a televisão e os jornais
afadigam-se a descrever assaltos, raptos, violações e outras
coisas terríveis sobre os nossos jovens, criando nos pais um
ambiente de terror que dificulta diariamente o quotidiano
familiar. Se os pais vêem constantemente aqueles horrores,
como poderão deixar sair os filhos à noite? Se a imagem que se
fornece da escola é a de um ambiente onde ninguém se entende e
onde a violência cresce, como poderão pais e professores
cooperarem como seria desejável? Quero dizer, no entanto, que
qualquer coisa mudou. Nos meus frequentes contactos com
estudantes e professores em escolas secundárias de diferentes
pontos do país, verifico importantes alterações. Ultrapassado
aquele período inicial dos debates, em que muitos jovens
se limitam a criticar bem alto o autor da infeliz expressão,
começam a surgir propostas de discussão bem interessantes. É
deste modo que se discute a violência nas escolas e a
segurança nas ruas, a relação pais-filhos e
professores-alunos, as mudanças na relação afectivo-sexual, o
ambiente e a conservação da natureza, os valores das
diferentes gerações e o futuro e tanta coisa mais. É assim
como se chegássemos à conclusão que ninguém vai tomar conta
destas questões e que é urgente o empenhamento conjunto para
as resolver. Este é certamente o caminho, porque não adianta
nada estarmos permanentemente a delegar responsabilidades, já
que deste modo só conseguiremos continuar cada vez mais
imaturos (aspecto preocupante, sobretudo quando se pensa na
juventude).
É bom, contudo, não adormecer sobre o que já se conseguiu.
A designação "geração rasca" também deixou marcas negativas. É
responsável pelo facto de, sempre que um jovem é um pouco mais
agressivo ou simplesmente mais afirmativo na expressão das
suas emoções ou na luta pelos seus direitos, receber em troca
o qualificativo paternalista de "rasca". Alguns defensores da
oportunidade desta designação também alegam que, se ela
"pegou", é porque tinha razão de ser. Fraco argumento. Há
tantas considerações que "pegam" pela sua inoportunidade,
ridículo ou inadequação! Quantas expressões ou frases de
alguém se tornaram célebres porque justamente são estúpidas!
Estou hoje firmemente convencido de que se fala muito de
"geração rasca" porque a designação, pejorativa, desajustada e
moralista tem de ser sacudida com toda a força. É o que
acontece quando vamos ao futebol e nos querem pespegar um
autocolante à força. Se formos pouco firmes, ficamos mesmo com
aquela porcaria presa. Quando somos enérgicos, a vendedora vai
vender o produto para outro lado.
É por isso que nas escolas secundárias se grita hoje contra
os moralistas que nos querem pespegar coisas, na esperança de
que pelo menos virem os autocolantes contra si próprios.

4/95

Rituais familiares

Vivemos num tempo em que tudo passa muito depressa. Como a


sociedade está cada vez mais organizada à volta do trabalho (e
não em redor da família ou dos afectos em geral), acontece que
cada vez temos menos tempo para estarmos com os outros. Este
problema é particularmente inquietante para a vida familiar. A
investigação tem demonstrado ser fundamental para um bom
desenvolvimento psicossocial dos filhos a presença e suporte
afectivo dos pais. Este apoio é importante ao longo do
trajecto pessoal desde a infância até à fase final da
adolescência. Como será isso possível nos dias de hoje? Como
conseguirão os pais manter os empregos, essenciais para a
sobrevivência da família, sem descurar o acompanhamento dos
seus filhos?
Começa finalmente a falar-se dos horários diversificados,
de modo a que um dos pais possa estar mais tempo em casa.
Defende-se o prolongamento do período pós-parto de dispensa do
trabalho, para que pelo menos a relação precoce mãe-criança
fique salvaguardada. Estamos todos de acordo, contudo, em que
existe um longo caminho a percorrer. Todos os dias contactamos
com pais que lamentam chegar a casa cansados e indisponíveis,
ou ouvimos filhos que nos contam não valer a pena falar com os
mais velhos, pois eles nunca têm tempo. Vários trabalhos têm
concretizado este problema ao demonstrar que tem de facto
diminuído o tempo de interacção pais-filhos.
Os rituais familiares são comportamentos repetitivos,
simbólicos, interactivos, que caracterizam a vida de um
agregado familiar. São executados de forma típica por cada
família, fornecendo-lhe aquele estilo que permite distinguir
os Rodrigues dos seus vizinhos. Muitas vezes são
transgeracionais, isto é, mantém-se através da família, sendo
trazidos pelos avós, que os passam aos filhos e estes aos
netos. Os rituais são importantes para manter a coesão da
família e reforçam o sentimento de pertença dos seus membros.
Têm funções organizativas importantes para a vida familiar, ao
mesmo tempo que conservam e transmitem a identidade da
família.
Há famílias que valorizam especialmente os seus rituais,
noutras eles são mais escassos e menos nítidos. Nalguns grupos
familiares há rigidez face aos comportamentos habituais,
noutras existe maior flexibilidade. O ponto importante,
todavia, não é esse, já que o que é crucial é o valor dos
rituais no equilíbrio da família. Sendo a família de hoje
sobretudo um espaço emocional e de certa forma incerto, a
presença de rituais familiares pode conferir-lhe um valor de
referência, sobretudo significativo para os mais novos.
A terapia familiar tem demonstrado a existência de três
categorias de rituais familiares: as celebrações, as tradições
familiares e as rotinas ritualizadas. As celebrações
familiares são ocasiões de interacção organizada
características de uma cultura, com larga expressão na
comunidade envolvente. Estão neste caso o Natal, a Páscoa, a
passagem do ano, os Santos Populares. Possuem uma simbologia
universal e estranhamos claramente a família que de alguma
forma não os assinala.
As tradições familiares são mais típicas de cada família,
podendo incluir a forma de passar as férias, os festejos de
aniversário ou refeições especiais (na minha casa o
lanche-ajantarado de domingo). Assinalam de modo
característico a vida da família e que têm um significado
idiossincrático muito particular.
As rotinas familiares dizem respeito à hora do jantar, ao
deitar dos filhos quando eles são pequenos, à forma de
convidar amigos para jantar ou a entretenimentos de
fim-de-semana. Variam ao longo do ciclo de vida da família e
contribuem para a definição de papéis intrafamiliares.
Se desta vez fiz esta digressão um pouco teórica é para
poder rematar com a seguinte conclusão: as famílias
disfuncionais perderam os seus rituais e as famílias do
futuro, se não se acautelarem, também os perderão. Uma família
onde o álcool ou a droga entraram, desorganizou-se a tal ponto
que já não há equilíbrio, tempo e espaço para os rituais. A
família apressada dos dias de hoje caminha para uma mudança
tão persistente que já ninguém tem tempo para se olhar. É por
isso que considero fundamental preservar, em cada agregado, os
rituais organizadores da vida familiar, que, em cada momento,
fazem sentido para os seus membros. As tradições familiares
reforçam o papel de cada um, aclaram a identidade e permitem a
visão de continuidade ao longo dos tempos que dá sentido à
vida. É assim que protesto sempre quando alguém diz "hoje já
não se usa" ou "não há tempo" para fazer uma festa de anos, um
lanche de domingo ou umas férias em conjunto. E zango-me mesmo
quando alguém diz que isso é ser conservador. Não há nada mais
retrógrado que o vazio. Já que na sociedade não abundam os
marcos significativos, se não defendemos os rituais da nossa
família viveremos cada vez mais como autómatos.
Há alguma coisa melhor que uma boa festa de anos ou um
Natal divertido?

7/5/95

A família do futuro

Como será a família do futuro? Será que faz sentido


continuar a reflectir sobre a família? Que significa hoje ser
pai? Estas são algumas perguntas que preocupam alguns
investigadores neste limiar do século XXI. Os dados do último
censo populacional realizado em Portugal mostram que 25% dos
agregados familiares não têm filhos e que
400.000 pessoas (14%) vivem isoladas. Está assim a mudar a
noção de família, que já não é aquela unidade estável de há
trinta anos. A família actual é na realidade
desinstitucionalizada e deve ser entendida como um espaço
emocional, onde coexistem interacções intensas e decepções
marcadas, no qual continua a ser essencial manter um reduto de
privacidade afectiva. A família moderna, incerta e indefinida,
não pode perder a importância como estrutura de suporte
afectivo. É claro que a vertigem dos tempos actuais faz com
que não seja já possível ter todos os filhos à roda dos pais,
a trabalhar para uma produção comum. A investigação tem
demonstrado, todavia, a importância da acção parental na
evolução psicossocial dos filhos, quer dizer, a possibilidade
de ter um filho saudável continua a estar ligada à intensidade
e qualidade da relação afectiva que foi capaz de estabelecer
com os seus pais.
A família do futuro será pequena (haverá poucos filhos e
poucos irmãos), muitas crianças viverão só com a mãe após o
divórcio dos pais, famílias reconstruídas procurarão o seu
equilíbrio e regularão melhor ou pior as suas lealdades. Não
sabemos qual vai ser o contexto económico onde viverão esses
agregados familiares, nem podemos prever qual o impacte de
doenças como a SIDA ou qual a influência para os filhos das
situações de reprodução medicamente assistida.
Há coisas, contudo, que podemos influenciar. No momento
actual, os pais vivem uma situação paradoxal: filhos,
profissionais da educação e meios de comunicação social clamam
pela autonomia dos mais novos, mas as estruturas sociais não
estão viradas para a família e os pais sentem que os filhos
não evoluem bem sem um maior suporte afectivo. Com toda a
economia virada para o consumo juvenil, com a insegurança no
ambiente, com a escola a não conseguir preencher a função
educativa, os pais vivem sobrecarregados com novas exigências
que dificultam a sua acção. Já há quem encare a criança-filho
na perspectiva do custo-benefício! A verdade é que ser pai é
hoje em dia uma responsabilidade crescente, que deve ser
vivida em plenitude, já que é uma das experiências mais
fascinantes da existência.
Só que para ser pai ou mãe na família do futuro são
necessárias alterações profundas da nossa maneira de ser ou
estar. Agora que o planeamento familiar se difundiu, é bom que
se analise conscientemente a função parental. Não podemos
continuar a organizar toda a nossa vida à volta do trabalho,
sem ficar com tempo uns para os outros, particularmente para
os filhos. O papel social das empresas vai ter de ser
revalorizado e os horários de trabalho vão ter de ser
reduzidos e diversificados. As culturas juvenis, até aqui
viradas para o consumo e lazer, encontrarão novas formas de
expressão mais em sintonia com a família e as comunidades.
E a família, eternamente criticada e ameaçada de morte
tantas vezes, aparecerá no futuro sob novas formas, que
permitirão a liberdade de cada um e a força do seu conjunto
-- serão os novos pais das novas famílias.

21/5/95

(In)segurança

Num debate recente organizado pela Notícias Magazine, o que


mais me impressionou foi a falta de hábito que os
participantes revelaram naquilo que é afinal a essência da
democracia: falar em público e cooperar para a resolução de um
problema que inquieta tantas famílias -- a segurança. Foi
assim que surgiram muitas ideias, expostas de uma forma
completamente anárquica, mas que sem dúvida mostraram um
despertar colectivo essencial para o crescimento da sociedade.
Depois de uma participação turbulenta, excessiva mas criativa,
que caracterizou os anos imediatamente a seguir ao 25 de
Abril, os anos 80 foram marcados por uma permanente delegação,
como se alguém pudesse resolver os nossos problemas com a
magia, as certezas absolutas e a ajuda dos dinheiros europeus.
A realidade hoje é bem diferente. Crescem assustadoramente
muitos problemas que certamente não serão resolvidos pelo
velho Estado-Providência. Cada vez é mais evidente que só uma
alteração qualitativa do nosso quotidiano poderá mudar
claramente várias questões como a da exclusão social e da
segurança, tema do referido debate. A verdade é que nesta
questão se entrecruzam medos internos (loucura, morte,
descontrolo) e medos externos compreensíveis, porque sem
dúvida aumentam as razões para nos sentirmos inseguros. Só que
não parece ser possível resolver este problema apenas através
do aumento das polícias e das esquadras. Estes medos
inserem-se num contexto de certa indefinição familiar de
pobreza e marginalidade, sobretudo à volta das cidades de
Lisboa e Porto, e com uma comunicação social escrava das
vendas e que continua a privilegiar o terrível, ampliando por
todo o país movimentos de ódio e vingança, de que as milícias
populares são o mais recente e negativo exemplo.
A verdade é que as medidas para lutar contra a violência
urbana devem ser muito amplas, uma vez que vão desde a
melhoria da iluminação pública ao controlo apertado das armas
e das drogas.
A dimensão da prevenção jamais poderá ser esquecida, já que
a melhoria dos cuidados pré-natais cada vez se torna mais
premente. Nesta linha torna-se importante divulgar e tornar
possível o planeamento familiar, visto que as crianças não
desejadas são as que mais provavelmente sofrem de negligência,
abuso sexual, maus tratos e posterior delinquência. Os
delinquentes recidivantes vêm de famílias profundamente
disfuncionais, onde os pais não tiveram condições psicológicas
e socioeconómicas para educar os filhos e onde a miséria dos
quotidianos torna possível o alastrar da violência e da
toxicodependência. A verdade é que é essencial organizar
programas para identificar os pais com dificuldades, de modo a
ser possível ajudá-los na sua função parental e nunca
defini-los a priori como incapazes. Não podemos esquecer
também que as situações de violência devem ser denunciadas
precocemente, com o necessário apoio à vítima, que muitas
vezes pensa que o relato agrava as suas dificuldades e assim
prefere não descrever o que se passou.
É possível descortinar bem cedo na infância as crianças que
estão em risco. Maus resultados escolares com abandono da
escola, demasiada permeabilidade à influência dos companheiros
com desprezo pelos pais e professores, graves problemas de
comportamento com violência mantida, são apenas alguns
exemplos de um conjunto de sintomas que põem na pista de um
futuro comportamento delinquente. Para que a nossa acção possa
ter êxito é assim importante estudar precocemente estes grupos
de risco e actuar muito cedo, antes que a situação se agrave e
a exclusão social seja uma sequência quase inevitável.
É através de uma partilha das nossas inseguranças internas
e externas, na busca de uma estratégia comum e na mobilização
de todos os recursos que encontraremos algumas pistas para a
nossa actual intranquilidade. Se continuarmos a pôr tudo fora
de nós, a pensar que "eles" -- essa expressão horrível
resolverão (ou não) o problema, jamais encontraremos um
sentimento de pertença que nos pode conferir uma identidade e
um sentido para a vida.

18/6/95

Menos psiquiatria,
mais diálogo

Está, infelizmente, na moda mandar os adolescentes ao


psicólogo ou ao psiquiatra. Se um jovem bate com a porta,
solta um palavrão ou ameaça sair de casa, a solução mais
simples é marcar uma consulta.
Há três razões que justificam este modo de actuar. Em
primeiro lugar, valoriza-se excessivamente a crise da
adolescência. Criou-se a ideia de que todos os jovens passavam
por um período de grandes dificuldades psicológicas e que
fatalmente se iriam perturbar mentalmente. Nada mais falso,
porque a investigação epidemiológica tem demonstrado que a
maior parte dos adolescentes passa esse período com
dificuldades transitórias, mas sem problemas que exijam a
presença de um especialista. A grande maioria dos adolescentes
não é perturbada emocionalmente e vence esse período de certa
turbulência apenas com alguns períodos de hesitação ou
mal-estar. Em segundo lugar, os pais vivem seguramente um
momento de dúvidas sobre o melhor caminho a seguir. Para
fugirem do autoritarismo, abandonaram muitas vezes a
autoridade. Dão demasiadas coisas aos filhos para aliviarem a
culpabilidade de estarem pouco tempo com eles, ou para não os
deixar viver sofrimentos que passaram. Se bem que se fale
muito mais da família de hoje, a verdade é que esta se tornou
mais incerta e indefinida e às vezes ninguém quer dizer o que
está correcto ou errado.
A terceira razão diz respeito à escola. Se a sociedade se
organizou para passar a função educativa para a escola, o
certo é que o diálogo pais-professores tem hoje inúmeras
dificuldades e ninguém às vezes sabe o limite da intervenção
de cada um.
Todas estas razões emergem num contexto social difícil,
onde a visão negativa sobre a juventude é predominante, já que
constantemente se veicula a ideia que tudo está em crise e os
valores desapareceram. Infelizmente, é raro ver-se um discurso
positivo sobre a juventude, a escola e a família, parecendo
que todos lançam sobre as novas gerações a instabilidade que
vivemos.
O envio de um adolescente a uma consulta de Saúde Mental é
muitas vezes uma forma de desresponsabilização. Ora, a verdade
é que um psiquiatra ou um psicólogo pouco podem fazer, a não
ser naqueles que têm patologia. A maioria dos problemas que
nos surge, contudo, é de diferente ordem. Predominam os casos
de dificuldade de comunicação pais-filhos, de problemas na
escola ou de mal-estar interpessoal. Será que alguém está
convencido de que se pode resolver um problema de "insucesso
escolar" -- que expressão mais vaga! -- através de uma
consulta num distante gabinete de hospital ou consultório? E
como melhorar a comunicação familiar sem falar com a família,
como alguns técnicas persistem em fazer, deixando os pais às
vezes durante vários anos imersos em profunda angústia?
Como ajudar na comunicação interpessoal, se o psiquiatra
desconhece completamente os valores e as referências da
juventude actual, uma vez que raramente fala com adolescentes
de hoje, permanecendo amarrado a referências do princípio do
século ou dos anos 60? E que dizer sobre aqueles jovens que
são medicados fortemente sem que ninguém os ouça, com o
técnico à procura de "sintomas-alvo", sem cuidar de perceber o
interno e o externo de que o adolescente alimenta o seu
quotidiano?
Não se pode compreender a adolescência patológica sem
compreender a adolescência normal. Para isso, é preciso que os
Técnicos de Saúde Mental abandonem urgentemente a falsa
quietude dos seus gabinetes de consulta e falem com jovens que
não precisam de ir ao psiquiatra. Estabeleçam protocolos de
colaboração com escolas de ensino básico e secundário e
trabalhem lado a lado com os professores, estimulando a
participação criativa dos alunos e encaminhando as situações
problemáticas. É preciso também ajudar os pais a perceber que
cada vez é mais difícil a fun
ção parental e que é preciso uma extrema humildade no
dia-a-dia da nossa família. É necessário, finalmente, que os
políticos se apercebam das condições de vida de muitas
famílias, onde os pais e os filhos se encontram pouco tempo,
já cansados de um dia com problemas. Só depois de pensarmos
nisto tudo percebemos quais os adolescentes doentes e aqueles
que apenas precisam de suporte e de amor.

2/7/95

O homem, o cão
e a mordedura

Vale a pena preocuparmo-nos com os valores na educação dos


nossos filhos? Faz sentido um professor ser um educador activo
e servir de modelo e de referência aos seus alunos? Deveremos
insistir em novos humanismos ou permanecer ligados apenas pela
rapidez da informação ou pela competitividade dos nossos dias?
Estas são algumas questões que inquietam pais e professores.
Há momentos em que apetece desistir e deixar correr. Fazer com
que em cada família vença a tese do salve-se quem puder.
Permitir que uma escola caminhe cada vez mais para o caos.
Entregar o país ao clássico salvador.
Não é essa a minha opinião. Não se pode deixar crescer os
filhos como a relva, apenas com umas aparadelas de tempos a
tempos. Uma escola funcionará cada vez pior se não for
participada. Uma instituição morrerá se não se alimentar de
retroacção que todos os seus agentes lhe podem transmitir. Uma
família caminhará para a disfunção se permanecer isolada e não
se ligar à comunidade.
Muitos estudos demonstram que não há grande diferença entre
pais e filhos face a questões fundamentais. E. Figueiredo
(1988) salienta que não é provável vir a encontrar grandes
dissemelhanças por altura do ano 2000 entre os jovens e os
seus pais, embora estes privilegiem os objectivos sociais, a
ordem e a segurança social. Os mais novos preferem valores
mais relacionados com a auto-afirmação e a auto-realização,
num fundo mais liberal, de que a atitude face à sexualidade é
o exemplo mais flagrante.
Quer isto dizer que, se o contexto familiar permitir a
passagem dos valores fundamentais de pais para filhos, estes
prosseguirão a defesa dos mesmos, divergindo sobretudo em
questões do quotidiano. Se por variadas razões se perde a
ligação afectiva entre as gerações, os mais novos perderão a
continuidade e a história familiar, única em cada família. Por
estas razões, tenho defendido cada vez com mais vigor o
reforço do vínculo afectivo pais-filhos e a procura de valores
fundamentais a transmitir transgeracionalmente. Quando não
existem pais ou quando eles não estão tão disponíveis por
problemas diversos, as organizações sociais e particularmente
a escola têm de assumir as responsabilidades de orientação e
suporte afectivo que falharam na família. Para que isto possa
resultar é necessário que se detectem precocemente as crianças
e os jovens em risco para lhes podermos fornecer o apoio
essencial.
Acima de tudo, temos de mudar a nossa linguagem. Nada
adianta dizer que está tudo caótico, se a imagem que
fornecemos aos nossos filhos e alunos é de desorganização.
Façam um zapping pela televisão ou procurem nos jornais e
ficarão certamente espantados como ainda há pessoas calmas e
discretas depois de verem aquilo tudo. Se continuarmos a
pensar que a notícia é o homem a morder o cão, perderemos
definitivamente a linguagem afectiva de que cada vez
precisamos mais. Creio firmemente que a verdadeira notícia
sensacional dos nossos dias é a história de um homem que trata
bem o seu animal de estimação e por isso o cobre de festas.

30/7/95

Fins-de-semana sem pai

Quando os conflitos se acentuam gravemente ou o amor acaba


de vez, o casal põe a hipótese da separação. Provavelmente, ao
longo do percurso acidentado que caracteriza uma ligação
afectiva de longa duração, o homem e a mulher pensaram algumas
vezes no divórcio. Na maior parte dos casos -- que são ainda
aqueles que continuam casados -- os problemas ultrapassam-se
melhor ou pior e as pessoas permanecem juntas. Existem contudo
muitos que se divorciam, tantas vezes para recasar mais tarde.
A decisão da separação é uma das mais sérias da vida de um
casal! É preciso ponderar tudo e, de facto, não há divórcios
felizes. Aqueles que contam que tudo se passou com grande
cordialidade e sem problemas estão claramente a faltar à
verdade. Divórcio implica perda, raiva, medo da solidão,
afastamento de muitos amigos que tomam o partido do outro, não
raro perda de estatuto económico. Acima de tudo, é um momento
muito difícil da vida dos filhos. Podemos racionalizar e dizer
que para os filhos é um alívio, porque estão fartos de ver os
pais a discutir e desejam alcançar a paz e a tranquilidade.
Estamos a enganar as nossas cabeças, pois se o divórcio pode
ser um acto de boa saúde mental quando o amor de facto acabou
e a guerra aumenta todos os dias, também é verdade que os
filhos sofrem com a separação e muitas vezes, passados anos,
ainda sonham com o reencontro dos pais. Então que fazer? Devem
os pais adiar as suas decisões por causa dos filhos? Devem
estes ser ouvidos quando o divórcio está no horizonte? Estas
coisas não são matemática e podem variar conforme os
indivíduos e o contexto onde se inserem. No entanto, creio
firmemente que os pais devem tomar a sua decisão entre si,
esgotadas todas as hipóteses de entendimento. E devem
comunicá-la aos filhos, variando o modo de o fazer consoante a
idade deles, mas sempre que possível com a presença conjunta
de pai e mãe. Pode-se transmitir esta decisão de um modo
simples, sempre na perspectiva de manter os laços que unem
pais e filhos e que são essenciais preservar durante toda a
vida.
Se tudo correu dificilmente como é regra, mas sem crises
devastadoras nem conflitos insanáveis, os filhos ficam a viver
com a mãe. Sabe-se que em Portugal 90% dos filhos de pais
separados ficam a habitar a casa materna, vendo o pai
quinzenalmente, num acordo um pouco burocrático obtido no
tribunal. Temos urgentemente de alterar este estado de coisas.
A iniciativa da Associação das Mulheres Juristas em propor a
guarda conjunta e a decisão recente da Assembleia da República
de reforçar a co-responsabilização de ambos os progenitores na
educação dos filhos são iniciativas muito importantes, embora
ainda insuficientes. Guarda conjunta não quer dizer os filhos
andarem de um lado para o outro, mas antes a permanente
responsabilização do pai e da mãe pelo destino dos filhos
menores. Significa que as grandes decisões da vida das
crianças são assumidas pelos dois, o que pressupõe um
entendimento entre os pais face à vida dos filhos, um divórcio
bem ultrapassado e um acompanhamento permanente pelo
progenitor menos presente, em regra o pai.
Devemos abolir a expressão terrível de "pai de
fim-de-semana" e lutar cada vez mais contra os fins-de-semana
sem pai. Calcula-se que cerca de 50% dos filhos de pais
divorciados na região de Paris perderam o contacto com a
figura paterna após a separação. Em Portugal não temos números
precisos, mas sabe-se de um modo empírico que crescem filhos
desesperadamente à procura de um pai. Na adolescência é
terrível: zangam-se com a mãe e vão em busca de um pai que é
um estranho para eles, é como quem perscruta o céu a tentar
encontrar um deus desconhecido.
Quando algum contacto se manteve, os pais passeiam os
filhos por enormes centros comerciais, fazendo-os rodopiar nos
carrinhos eléctricos, ou então quando eles crescem sentam-nos
em silêncio perante hamburguers ressequidos. Se o divórcio
correu mal e a guerra continua durante anos, a mãe
frequentemente retém os filhos, às vezes de um modo
inconsciente, sabotando as idas à casa paterna sob os mais
variados pretextos. Conheci uma família com duas crianças
proibidas de ver o pai porque a madrasta "era uma galdéria" e
não tomava conta da roupa deles. Noutro caso, o casal discutia
frente aos filhos por questões aparentemente sem importância,
boicotando assim o fim-de-semana paterno, já que o pai se
irritava constantemente e partia. Noutra situação, o filho
adolescente partiu à boleia à procura de um pai que se
afastara para o Norte e, quando finalmente o encontrou, ele
vivia com outra mulher, barrigudo e careca, rodeado de filhos
pequenos terrivelmente barulhentos.
Para os pais que saem de casa, é preciso que não saiam do
coração dos filhos. O casamento acabou, mas, apesar das novas
tecnologias, ainda não se arranjou maneira de deixar de ser
pai.
Então é preciso não abandonar o campo, resistir a todas as
contrariedades, ouvir mesmo muitas críticas por ter abandonado
o lar, mas aparecer. É extraordinária a "sede de pai" que
mostram muitos jovens de hoje. Vejo-os agora em férias,
agarrados ao pai, propondo programas comuns que ficarão para
sempre na memória de todos. É crucial por isso não desistir,
lutar no fundo pelos seus direitos e sobretudo não fugir.
Quem não sente um buraco cá dentro quando de facto partiu
sem ligar aos filhos? Se o pai que se ausentar não virar as
costas, mais tarde saberá como isso foi importante para si e
para os seus descendentes. Terão acabado, na medida do
possível, os fins-de-semana sem pai.

27/8/95

De novo a escola
Estamos perto do início do novo ano escolar sem que nada de
muito significativo tenha surgido nas nossas escolas básicas e
secundárias. As medidas vindas a público, umas mais erradas
que outras, não parecem considerar o problema fundamental.
Podemos anunciá-lo assim: a escola tornou-se uma estrutura
massificada, é sentida por grande número de alunos como uma
obrigação imposta pela sociedade, sem que tenha havido grande
cuidado com a implicação pessoal do estudante na definição do
seu estatuto escolar. Ora para que crianças e adolescentes
possam encontrar algum sentido no seu quotidiano é crucial que
reconheçam a sua identidade como alunos daquela escola e não
consigam dizer que a "verdadeira vida é lá fora".
Sem nunca perder a finalidade de instruir, a escola básica
e secundária tem de socializar. Não é possível que os liceus
continuem a ser um supermercado de aulas, onde professores,
saídos de universidades ultrapassadas e onde estes problemas
não se colocam, ensinem de modo tradicional, sem que de facto
a pessoa do aluno esteja em causa (apesar de piedosas
declarações nesse sentido).
A escola tem de ser uma organização que transforme aquele
espaço numa rede de comunicação e de laços humanos, onde cada
um tenha o seu papel na definição do colectivo. Como tenho
afirmado, a co-responsabilização tem de ser a palavra-chave na
escola, para que se desenvolva o sentimento de pertença e cada
um encontre sentido de pertença no seu trabalho.
Trata-se de uma tarefa difícil, ainda por resolver no
mundo, mas para a qual já se conhecem algumas orientações. O
responsável pelo estabelecimento escolar -- o presidente do
Conselho Directivo ou director da escola -- deve de facto
assumir a direcção do estabelecimento. Embora seja
importantíssimo que ausculte a opinião de todos os membros da
comunidade escolar -- professores, alunos, funcionários e
encarregados de educação -- deverá considerar a sua função de
referência institucional. Quem de facto dirige deve ter um
rosto, jamais se devendo esconder atrás de um indefinido
Conselho de escola. Para isso é necessário que circule, que
cumprimente e dialogue com os alunos, que se aperceba
claramente dos problemas que existem. Embora possa compreender
as dificuldades, não hesitará perante questões de disciplina e
combaterá o absentismo, esse sinal inequívoco de que a escola
não está a funcionar adequadamente.
A eficácia da escola depende não só do Ministério da
Educação mas também do modo como são postos em acção os seus
recursos humanos. Os professores terão de compreender a
necessária revolução que a escola actual exige. Socializar e
instruir, através do esforço de educar, têm de ser as palavras
de ordem. Então é preciso que inovem, que encontrem nova
estratégia de ensino, que de facto apoiem as iniciativas dos
alunos, de modo a transformá-los em verdadeiros actores da
mutação que é necessária. Impressiona ver como tantos
professores qualificados se encontram em desespero, a
trabalhar sem rumo numa escola sem projecto. Encontrarão no
trabalho solidário com os alunos a força necessária para a
mudança que tornará menos árdua a sua tarefa. Terão de
perceber que se pode ensinar o programa sem perder de vista o
interesse do aluno e rapidamente perceberão aqueles que faltam
constantemente e que vão para a escola à falta de melhor
(esses precisarão de ajuda especializada ou outras
alternativas escolares e profissionais).
Os alunos terão de compreender, finalmente, que a escola
será diferente se eles se empenharem na sua mudança. Tal passa
por um reforço do papel das associações e dos grupos de
trabalho juvenis e pela exigência permanente de uma mudança de
mentalidade de quem detém o poder. Não será esse o papel das
gerações mais novas?

10/9/95

Facilitemos o amor
dos mais jovens

Muitos pais de adolescentes vivem inquietos com a


sexualidade dos filhos. Provavelmente isto ocorreu sempre, mas
não há dúvida que atinge agora uma maior dimensão. Fala-se
muito de droga, do perigo da SIDA, do divórcio e da liberdade
sexual, de um modo que muitos pais não estão preparados para
ouvir. Comecemos com dados objectivos. É verdade que se inicia
mais cedo a vida sexual. Santos Lucas (1993), num inquérito
aos portugueses do Continente, apurou que as primeiras
relações sexuais se verificam a partir dos 14 anos nos rapazes
e dos 17 anos nas raparigas, sendo as idades de 16 anos e 18
anos aquelas em que a iniciação é mais frequente. No mesmo
estudo concluiu que entre os 25 e os 29 anos quase todos os
homens e a grande maioria das mulheres tiveram alguma
experiência sexual, sendo quase inexistentes homens virgens
com mais de 30 anos e mulheres virgens a partir dos 35 anos.
Embora saibamos que em vários casos não existe suficiente
maturidade para o início responsável da actividade sexual, não
vale a pena proibir ou fazer cruzadas para adiar, por
ideologia ou fanatismo, a sexualidade dos mais novos.
Parece-me que todo o esforço deverá ser feito no sentido de
melhorar a informação e a autonomia responsável dos
adolescentes, os únicos em condições para decidir qual o
momento adequado para o início da vida sexual. Os pais devem,
aliás, partir de outro dado: as informações recebidas pelos
jovens são transmitidas sobretudo pelos amigos e colegas,
cabendo aos pais um papel reduzido nesse fornecimento de
dados. "A família não ensina o principal", exclamava o Diogo
um dos protagonistas adolescentes do meu livro Vozes e Ruídos.
Referia-se certamente à intimidade, à sexualidade, ao saber
estar na noite, essenciais para o desenvolvimento juvenil e
que não podem ser "explicados" pelos pais. A importância das
famílias não pode, contudo, ser diminuída. É sobretudo no modo
como os pais sempre viveram a sexualidade que reside a chave
da educação sexual dos filhos. Se os pais se confrontaram com
as suas dúvidas face ao próprio comportamento sexual de uma
forma simples e aberta, é muito provável que os filhos a
abordem também de um modo saudável. Por exemplo, se os pais
não fogem da televisão perante uma cena erótica, mas têm o bom
senso de proibir a crianças de 7, 8 anos a observação de
histórias de violação, graves conflitos conjugais ou agressões
a propósito de infidelidade; se conseguem preservar a sua
intimidade desde muito cedo, fazendo perceber aos filhos que
há momentos em que eles não podem entrar no quarto; se
respondem às perguntas dos mais novos com verdade, mas com
informação adequada à idade, sem recurso fácil a enciclopédias
infantis da vida sexual ou a vídeos "didácticos"; se,
finalmente, forem os primeiros a transmitir a ideia de que a
sexualidade mais plena e gratificante é aquela que está ligada
ao amor, é bem provável que os filhos vivam tudo com
satisfação quando for o momento por eles decidido.
A escola básica é também um local privilegiado para ajudar
a crescer. Para além da informação necessária -- que não
precisa de uma disciplina oficial, com as eternas faltas e os
odiados testes -- é preciso que cada professor possa
compreender que tem de se dar como pessoa, de ter alguma
disponibilidade para responder às inquietações dos jovens que
o solicitam, utilizando sobretudo a sua experiência de homem e
de mulher na resposta às eventuais perguntas. Qual é o
professor, mesmo jovem, que não se confronta com as mesmas
dúvidas? Sabendo ouvir e estimulando o falar dos alunos, muito
se pode conseguir para a tranquilidade e bem-estar dos mais
novos. Na adolescência, há fantasmas, medos e inquietações que
cessam após uma conversa com um adulto de bom senso. Na
permanente mudança que caracteriza o crescimento, é preciso
que aquele que se está a sentir diferente não se sinta um
extraterrestre. Nada melhor para aliviar esse sentimento de
estranheza do que perceber que houve muitos outros que
passaram por idênticas experiências.
As relações afectivo-sexuais são muito importantes para os
nossos filhos. Não faz qualquer sentido falar de "namoricos"
ou que "isso são coisas de miúdos".
Os sucessos e insucessos na sexualidade dos mais novos
devem ser encarados com a tranquilidade que nos dá o sabermos
que eles ainda terão muito tempo à frente, mas também com a
disponibilidade para a discussão e para o confronto de ideias.
Acima de tudo, temos de pensar que a mensagem que devemos
transmitir é de progresso e de confiança no futuro. Não é uma
evolução notável saber que 45% dos homens de 60 e mais anos
iniciaram a sua vida sexual com uma prostituta, enquanto só
3,5% dos rapazes de 16 a 20 anos começaram do mesmo modo?
Muitas outras coisas seria importante pensar. Por exemplo,
por que razão ninguém fala da dificuldade do uso do
preservativo para quem tem pouca experiência sexual? É errado
pensar que o risco de contrair SIDA se evita apenas com
informação sobre o uso necessário do preservativo. Conheço
muitos rapazes, que assoberbados com as inquietações próprias
de quem começa a vida sexual, não usam esse método preventivo,
porque ele constitui mais um factor de embaraço nas primeiras
relações. Enfim, sabe-se hoje que a prevenção reside sobretudo
na mudança de mentalidades das gerações mais novas, à custa da
transmissão permanente de uma mensagem de amor.
Sobretudo, deixemos que os adolescentes a conheçam!

24/9/95

Senhor

Escrevo-lhe sem o conhecer, porque não tenho outra


hipótese. Tenho 16 anos e sou uma rapariga sem nada de
especial. Não sou feia e tenho uns olhos verdes que os rapazes
costumam elogiar. Estou no 11º ano, nunca fui uma aluna
óptima, mas lá fui passando sempre. Não sei bem o que quero
quando for grande, como se costuma dizer, e a verdade é que
não encontro ninguém grande que me entusiasme. Vamos ter um
novo primeiro-ministro, mas o que ele diz não me apaixona.
Comecei as aulas há pouco e já só me apetece sair da escola.
"O meu verdadeiro pai saiu de casa há mais ou menos quatro
anos. Vivíamos numa casa que pertencia aos meus avós paternos
e era pequena para tanta gente. Éramos muitos: o meu pai e a
minha mãe, o meu irmão João, que partilhava o quatro comigo,
eu e os pais do meu pai. Acho que, afinal, nunca tive uma
família, porque apesar de viver com tantas pessoas cada vez me
sentia mais só. O meu verdadeiro pai saía do escritório para o
café onde emborcava alguns copos e chegava a casa meio tonto.
"Sempre pensei que ele bebia para não ver o que se passava
lá em casa. A minha mãe e a minha avó não se falavam, o João
jogava à bola e partia coisas em tudo quanto era sítio, e eu
nunca encontrava espaço para receber a minha amiga Sílvia.
"Os meus pais discutiam muito e eu vivia no terror de que
eles se separassem. Ficava longas horas acordada depois dos
gritos e pensei que um dia ia acabar tudo e eu ficaria com a
minha mãe. Sabe, senhor, apesar dos copos, das ameaças e
tantas outras coisas que eu não suportava, no fundo gostava do
meu pai. No dia em que fiz 12 anos disse-me que eu já era uma
mulherzinha e que tinha de ir à festa do clube do bairro com
ele e com a minha mãe. Ofereceu-me uma flor e dançou várias
vezes comigo... fiquei até a pensar que se calhar a minha mãe
tinha ficado com ciúmes! Nunca mais pude esquecer essa noite.
"Mas a triste verdade é que, uns meses depois, o meu pai
não aguentou uma discussão entre a minha avó e a minha mãe e
saiu de casa.
"Vivo agora nesta situação, um pouco ridícula, de estar em
casa dos meus avós sem lá estar o meu pai, o filho deles. A
mãe vai lidando bem com a situação, às vezes acho que até com
certo alívio... mas eu não. Tenho saudades do meu pai.
"às vezes telefono para o escritório e falo com a senhoria
do quarto para onde ele se mudou, mas não tenho resposta. Só
nos meus anos me escreve um postal daqueles que os namorados
trocam e eu suspiro ao olhar para aquelas imagens, ou à
procura no papel do cheiro do meu pai, coisa que nunca mais
esqueci.
"Não pense que eu sou uma desgraçadinha ou que lhe acabo a
falar das jovens desprotegidas. Namoro o Ricardo há um ano e é
bom. Tudo começou numa porta da escola, pensei que era só um
namoro curto, mas a coisa deu e hoje não quero perdê-lo.
Também tenho amigas, às vezes saímos à noite e voltamos tarde,
sempre um pouco depois da hora marcada. Também me dou bem com
o meu irmão, embora ele me esteja sempre a chamar gira e a
dizer que os amigos dele não têm pachorra para me aturar.
Gosto da música de hoje e adoro o mar. Vou mesmo pertencer a
um desses movimentos de defesa do ambiente. Apesar da
sociedade que os meus velhos nos deixaram não sei grande
coisa; acho que vale a pena viver. Nunca fui ao psicólogo e
acho que a minha mãe é uma grande mulher, pois tem aguentado
tudo e ainda tem tempo para servir.
"A razão por que lhe escrevo é só pelo meu pai. O senhor,
que recebe esta carta, é pai, anda com os seus filhos apesar
do muito trabalho que tem, e de vez em quando faz com eles
coisas que todos gostam. Quando a sua filha mais velha entra
na casa de banho ou no seu quarto, está lá o seu cheiro e está
lá o senhor, eu só posso imaginar o cheiro.
"Por isto tudo, faça alguma coisa por mim. Diga ao senhor
que ganhou as eleições que não pense tanto em dar coisas aos
jovens, porque é melhor ver que há muitas famílias com
problemas. às vezes até há dinheiro e casa, mas ninguém se
respeita.
"Temos mais de 20 anos de democracia, eu só vivi 16, mas dá
para perceber que a democracia está cá atrasada. A verdade é
que, muitas vezes se diz que os jovens não respeitam os mais
velhos, eu acho também que há tantas ocasiões em que ninguém
nos respeita a nós. Quando eu tinha 12 anos era uma pessoa com
ideias... e se calhar com cinco também deveria ter sido
considerada como tal.
"Também acho que os portugueses se portam mal, lá na escola
numa reunião falam todos uns por cima dos outros. Se as
pessoas não se respeitam em família não se podem respeitar
noutros lados. É por isso, senhor, que não lhe digo que não se
esqueça que é pai. Apesar dos avanços da ciência ainda ninguém
descobriu como se deixa de ser pai. Peça ao primeiro-ministro
que estude estes assuntos, faça as pessoas trabalharem menos
horas e ajude-as a pensar. Não se esqueça, o senhor, que é pai
e está com os seus filhos, de sugerir uma lei que obrigue
todos os pais que se divorciaram e saíram de casa a, pelo
menos, telefonarem uma vez por semana aos filhos. Estas
coisas... se calhar estou a pensar mal e não se pode obrigar
as pessoas, mas este assunto é tão importante! Pelo menos, o
senhor pode escrever um artigo sobre isto e fazer as pessoas
pensar.
"É porque tenho mesmo saudades do meu pai!"

8/10/95

Falsas autonomias

A questão central da adolescência é a autonomia. Este


conceito pode definir-se como uma tarefa de desenvolvimento
iniciada na infância e amplificada entretanto no período
adolescente, visando a progressiva independência do jovem face
à família, através da capacidade cada vez maior de autogoverno
a todos os níveis. As condições em que se processa esta
tarefa, comum a todas as culturas, pode variar com o contexto
individual, familiar e social onde se inscreve. Importante
será, então, compreender a autonomia adolescente à luz da
crítica final que pesquisamos, sem preconceitos ou ideologias
redutoras.
Famílias rígidas, que vivem aglutinadamente viradas para si
próprias, sentirão o processo da autonomia como uma ameaça.
Jamais aceitarão aquele período em que o rapaz prefere jogar à
bola com os amigos em vez de ir lanchar com a tia materna.
Protestarão quando a rapariga se precipita para a casa da
amiga favorita em vez de acompanhar a mãe às compras. Muitas
vezes esses pais tiveram os filhos para salvar casamentos em
ruptura e só repararam neles quando a contestação começou.
Outras vezes, o casal vive de costas voltadas e o filho é um
prolongamento do pai ou da mãe, não tendo de facto existência
privada e, por isso, quando ele parte à procura da sua
identidade é como se a mãe ou o pai ficassem com um bocado a
menos. A verdade é que o processo de autonomia é vivido por
toda a família. O filho quer partir e ser independente, mas
prefere sair pela porta em bom ambiente, em vez de sair às
escondidas pela janela, para mais tarde ter de vir buscar as
malas com ar comprometido. Os pais, mesmo que aparentemente
mostrem alívio, como naquele infeliz anúncio de televisão de
um banco, terão de digerir o amargo que lhes provoca vê-los
partir. Separação envolve sofrimento e readaptação. Não é por
isso que choramos em Casablanca e em Era Uma Vez na América?
Há outra família diferente. Confunde progressismo e tempos
modernos com um terrível deixar andar. Pensa que a partir de
certa altura os filhos crescem por si e tudo correrá bem.
Imagina que preocupação com os filhos significa infantilizar
os mais novos. Julga que desde que haja dinheiro, uma casa e
uma cama não é preciso fazer mais nada, e por isso trabalha
cada vez mais para ter mais dinheiro, uma casa melhor e um
carro mais equipado. Os filhos são deixados sozinhos grande
parte do dia e às vezes também à noite, porque "já são
crescidos e não queremos ser pais-galinha". Os adolescentes
vivem à espera de um momento de intimidade para partilharem as
suas dúvidas e inquietações, ou começarão a sair cedo de mais
à procura de qualquer coisa, boa ou má, que lhes preencha o
vazio.
É muito difícil ser pai e ninguém se poderá orgulhar de ter
feito sempre tudo bem. Sabe-se, todavia, que o apoio parental
é essencial para um bom desenvolvimento dos mais novos. Por
isso, é preciso não ter pressa e não queimar etapas. Se esse
filho de 16 anos não vive isolado, tem amigos e vai bem na
escola, qual o problema quando ele diz que gosta de acompanhar
os pais?
"Desde que fui capaz de abrir a porta da rua, deram-me a
chave de casa", dizia, recentemente, um rapaz de 15 anos numa
unidade hospitalar. Falava da sua falsa autonomia: alto e bem
constituído, já com uns pêlos a ameaçar na cara, chave de casa
e boa aparelhagem, alimentava-se todo o dia de cereais e
fast-food, não tinha ninguém à noite porque os pais
prolongavam o trabalho e, de facto, não sabia quem era nem
para onde poderia ir.
Esta falsa independência, que lhe dava um ar perdido,
despertava em nós o sentimento de que o que ele precisava era
de uma festa nos cabelos compridos e de duas horas de conversa
com um adulto responsável.

22/10/95

Famílias violentas

Recebi uma carta de uma rapariga de 19 anos. Falava de uma


meia-irmã que vivia com o pai de ambas e era vítima de maus
tratos psicológicos e tentativas de abuso sexual por parte de
um tio. Fiquei a pensar como haveria de responder-lhe, mas já
agora quero dialogar convosco. Há vários tipos de famílias
violentas. Quase sempre só pensamos naquelas onde predomina a
pobreza e há carências económicas assustadoras. Nesses casos,
e como se os maus tratos fossem naturais, adoptamos uma
posição de banalização da violência que é a principal forma de
a legitimar. Partimos, então, do pressuposto de que "eles" (o
Governo, a Câmara, talvez Deus) um dia resolverão o assunto e
que nada há a fazer para já. Evitamos os lugares "perigosos" à
volta das grandes cidades, compramos uma casa e um carro um
pouco melhores e, de vez em quando, entramos numa campanha de
arroz e roupas para os pobrezinhos.
Noutras famílias, a violência é mais subtil. O pai, apesar
de apoiar um partido da esquerda, continua a ler o jornal
enquanto a mãe apronta o jantar. às vezes diz "lavei-te a
loiça" ou "tirei-te a roupa da corda", num favor explicitado
(às vezes mais tarde cobrado), como se a loiça e a roupa
fossem pertença exclusiva da mulher. Há casas em que os
rapazes são poupados nas tarefas domésticas por mães que
pensam que esses trabalhos prejudicarão a virilidade, enquanto
as irmãs se juntam às mães num ciclo de disponibilidade
doméstica permanente. Noutros locais de convivência familiar,
as conversas dos filhos adolescentes são escutadas às
escondidas pelos pais e irmãos mais velhos, a correspondência
é frequentemente violada e as mães pesquisam os recantos dos
quartos dos filhos numa ânsia de inspector da Judiciária. Os
amigos dos filhos são olhados de revés, lá porque usam cabelos
compridos e brincos nas orelhas, sem que os pais sequer se
tenham sentado cinco minutos numa tentativa de os conhecer.
Com os namorados e namoradas ainda é mais complicado: os pais
vão às escondidas saber se já houve relações sexuais e
afadigam-se tremendamente para que eles não estejam sozinhos
em casa, sem dar aos filhos a possibilidade da intimidade que
eles necessitam. Contava-me um conhecido que o filho, de 17
anos, pedira ao pai para que fosse ao cinema, enquanto o
rapaz, a namorada e os amigos deles jantariam em casa num
festejo de aniversário. O pai quebrou o compromisso e entrou
em casa de repente, na esperança de os encontrar num bordel
doméstico. Afinal, deparou com algum fumo e desarrumação e
vários adolescentes a conversar calmamente (o filho disse-lhe
que ele tinha sido violento, ao que o pai respondeu que estava
muito calmo...).
Poderíamos multiplicar os exemplos destas violências menos
visíveis. São as famílias violentas em que as pessoas estão de
costas umas para as outras ou pretendem controlar tudo o que
se passa. Vivem na esperança de que, se tudo for conhecido e
disciplinado, tudo correrá bem. Se conseguirem saber tudo
acerca dos filhos, eles não terão problemas. É assim que no
1º ciclo do Básico correram de uma actividade extra-escolar
para outra, chegando a casa todos cansados e sem tempo para
falar... No 2º ciclo encheram a criança de explicações para
ter boas notas e no 3º ciclo fecharam-na em casa para não se
meter em "más companhias". No fundo, exerceram a maior
violência de todas: quiseram moldar os seus filhos e foram a
pouco e pouco afastando-se deles. Quando os jovens batem com a
porta e vão à sua vida, ficam surpreendidos, porque só nessa
altura é que repararam que tinham ali uma pessoa.
Não será que vale a pena pensar um pouco nestes seres não
"normais"?
19/11/95

A ética da minha gata

A minha gata tem doze anos e parece ter, de facto, sete


vidas. Sobreviveu com grande dignidade a duas doenças graves,
a dois partos (no último, ficou connosco o seu bebé-filho,
Gonçalo de seu nome) e a algumas tropelias que lhe provocamos,
apesar de lá em casa todos respeitarmos a sua provecta idade.
Quando chego a casa, espera-me a saudação de dois miados e
alguns pestanejos felizes, quando estamos fora fica a dormir
mais do que o costume, para vencer a sua angústia da
separação. No Verão, a Daisy rejuvenesce: salta para o jardim
da nossa casa de campo e passeia muito. Brinca nos canteiros
de flores, observa atentamente os pássaros, que desejaria
atacar se fosse mais nova, e recorda as suas aventuras
amorosas, das quais o Gonçalo é o último resultado feliz. Para
que o João Vaz de Carvalho não a retrate como uma gata
ranhosa, a Daisy é lindíssima: rafeira portuguesa (os gatos
mais bonitos do mundo), peitinho e nariz branco, dorso
castanho-avermelhado e rabo listado à texugo.
O mais notável da minha gata, contudo, é a sua ética. Para
ter a certeza de que estava certo, consultei o meu velho
Dicionário de Português e vem lá: "Conjunto de princípios que
devem nortear o indivíduo no exercício da sua profissão;
deontologia; parte da Filosofia que estuda os valores morais e
os princípios que devem nortear o comportamento humano; a
moral." O seu comportamento animal é muito humanizado, pelo
que poderei de facto falar da sua ética (à Daisy só lhe falta
falar, como diria a minha vizinha). Jamais fez alguma coisa
pouco digna e é soberba no modo como regula a distância: se vê
que não estamos disponíveis, afasta-se elegantemente; se nos
vê à espera, salta para o colo como quem não quer a coisa e
instala-se.
Comecei a elogiar a sua ética quando uma ministra da Saúde
de um governo cavaquista pretendia "pôr a moral no sistema de
saúde" e foi causadora de um profundo mal-estar na relação dos
doentes com os seus médicos. Perante Leonor Beleza, achei que
de facto o melhor que a Daisy deveria fazer era candidatar-se
a ministra da Saúde...
Lembro-me também da minha gata quando alguns pais pretendem
educar os filhos e actuam sem confiança neles, partindo do
princípio que precisam de "rédea curta" e o melhor será
desconfiar por sistema. Acabam surpreendidos pelos
acontecimentos, já que os filhos adolescentes (também com
falta de ética), funcionam permanentemente a esconder-se dos
progenitores. A Daisy também certamente não seria como aqueles
professores que em colóquios se arvoram em democratas e
apoiantes das iniciativas dos alunos, mas na prática não os
respeitam como cidadãos e na realidade não querem saber da
opinião deles para nada. Certamente que o meu animal de
estimação não apoiaria iniciativas de grupos de jovens que
aproveitam a ausência dos pais para transformarem a casa num
inferno, nem aplaudiria retaliações permanentes dos pais
perante erros ocasionais dos seus filhos adolescentes.
Se a Daisy quisesse fazer política, teria muitas coisas
novas a propor. Deixaria de lado as convicções íntimas de cada
um em relação à fé e à moral, mas seria implacável contra
distribuições de canetas em igrejas ou julgamentos tardios de
respeitáveis cidadãos já falecidos. Certamente não teria medo
dos jornalistas e nisso seria bem diferente de alguns
políticos, que se curvam respeitosamente perante profissionais
da comunicação, alguns a precisarem de avaliação e reciclagem
urgentes. A Daisy não faria a figura daquela jornalista com ar
de tia e apelido de consoantes dobradas, que de vez em quando
saía do seu papel de comentadora política para ir relatar uma
afirmação feita num discurso da candidatura presidencial a que
se opunha...
Rigorosa acerca da transparência dos políticos, usaria do
melhor rigor face aos médicos, engenheiros, jornalistas, e a
todos exigiria uma deontologia moderna mas permanente. Não
toleraria a crítica aos outros se não fosse permanentemente
atenta às suas próprias limitações. E agora que o seu filho
Gonçalo já é adulto, de vez em quando ainda lhe rosna ou
levanta a pata porque mãe é mãe e merecedora de maior
respeito; mas deixa-o andar, com a liberdade responsável
decorrente da educação que foi capaz de lhe transmitir.
No fundo, os gatos sabem muitas coisas, porque vêem no
escuro e falam com a Lua.

11/2/96

E os pais?

Escrevo exactamente uma semana depois daquele momento em


que três jovens se suicidaram, ao saltarem para o vazio no
Viaduto Duarte Pacheco, em Lisboa. Muito se disse e escreveu
sobre o assunto, às vezes com critério, outras vezes com
sensacionalismo e demagogia. Quando é noticiada uma conduta
autodestrutiva na adolescência, a Comunicação Social parece
contactar com o assunto pela primeira vez. É muito difícil
manter a serenidade e informar de uma forma esclarecida, de
modo a evitar o dramatismo que pode ser um factor decisivo na
imitação do gesto fatal. Sabemos que uma certa dimensão de
risco caracteriza a adolescência, pelo que excessivos
pormenores sobre o método usado, a identidade das vítimas ou
os seus problemas, podem constituir factores de encorajamento
a adolescentes vulneráveis e que se encontrem em risco de
suicídio. Evidentemente que defendo a informação da
ocorrência, desde que realizada com critério e sempre com a
indicação de locais de tratamento, onde as pessoas com
problemas semelhantes podem encontrar ajuda.
Ao contrário do que por vezes é dito, as taxas de suicídio
têm diminuído em Portugal nos últimos anos, graças, sobretudo,
à melhoria dos serviços de atendimento e ao esforço dos
técnicos que lá trabalham. O problema do suicídio mantém-se
grave, contudo, sobretudo no Alentejo, onde as grandes
dificuldades socioeconómicas da região agravam os problemas
dos indivíduos com depressão. Temos assim, cada vez mais, de
considerar o suicídio a sul do Tejo como uma prioridade em
Saúde Pública e definir estratégias para minorar o problema. O
suicídio juvenil, embora
pouco frequente, é sempre vivido com especial dramatismo,
porque a morte de alguém bastante novo parece inquietar ainda
mais. Somos todos importantes e capazes para falarmos com um
adolescente em sofrimento. Essencialmente, temos de criar
proximidade com ele, ouvi-lo e tentar encorajá-lo. Se não
formos capazes de fazer isso sozinhos ou a situação for
urgente, devemos pedir socorro sem deixar as pessoas sozinhas.
Se alguém que pensa em suicidar-se sentir que outra pessoa
está ali ao pé a lutar pela sua vida são menores as
possibilidades de um gesto fatal. Suicida-se sobretudo quem
está afectiva e socialmente isolado e, por isso, é bom que
essa pessoa sinta alguém ali ao lado (e para ficar não é
preciso saber psicologia).
Depois de um suicídio juvenil, ninguém fala nos pais.
Surgem por vezes notícias que parecem atribuir a culpa de tudo
aos progenitores de quem morreu. Sei que o suicídio é
determinado por um conjunto de factores (biológicos,
psicológicos, sóciofamiliares), que concorrem para aquele
comportamento naquele instante, em regra depois de um período
mais ou menos longo de dificuldades. Uma má relação familiar
não explica tudo. Quem sabe as dificuldades que os pais
tiveram, o que lutaram, quantas horas de desespero viveram
para tirar os filhos da droga e da depressão? Quem imagina o
que desejaram de bom para os filhos e como vêem os seus planos
frustrados?
É fácil considerar que a culpa foi do desinteresse dos
pais, mas temos de ultrapassar esse ponto de vista e caminhar
cada vez mais para a compreensão das dificuldades parentais
nos dias de hoje. É crucial ajudar as famílias no seu
quotidiano, dando-lhes as possibilidades de estarem com os
filhos e a ajuda necessária aos seus problemas.
E no momento em que tudo se desmoronou, devemos estar
prontos a ajudar quem perdeu um filho e a tirar desse encontro
toda a força necessária para evitar que a situação se repita.

25/2/96

Kasparov e as cábulas

A minha avó dizia que o xadrez era a única situação que


permitia ver quem era inteligente. Imagino o que ela sentiria
com o recente duelo entre o programa de xadrez da IBM, o Deep
Blue, e o campeão mundial Gary Kasparov. Estaria certamente,
se fosse viva, entre os seis milhões de pessoas de todo o
mundo que seguiram o jogo através da Internet, provocando um
enorme congestionamento de linhas.
"E ao sexto dia o homem venceu a máquina", pontuava o
Público, de 19 de Fevereiro, naquele estilo grandiloquente que
o caracteriza. O resultado final de 12 a favor de Kasparov
pareceu adiar por mais algum tempo o domínio do computador, e
o sorriso final do campeão não pode deixar de ser saudado como
um dos mais importantes acontecimentos das últimas semanas.
É que Kasparov esteve sozinho frente ao complexo programa
do computador tentando a desforra, após ter sido batido pela
primeira vez, em 1995, por uma máquina. Valeram-lhe a sua
experiência, a sua argúcia e, ao cabo e ao resto, a sua
inteligência. Esta vitória, mesmo que contraditada por factos
posteriores, deve significar o valor da persistência e da
vontade de um homem; e, ao mesmo tempo, deve fazer pensar que
o mais importante é pôr as máquinas ao lado dos homens e
conseguir progresso. Nunca estivemos tão perto e tão
rapidamente em contacto com alguém que está distante, ao mesmo
tempo que tantas vezes estamos tão distantes de alguém que
está ao nosso lado. E por isso é essencial que o avanço
tecnológico nos aproxime (em vez de afastar) daqueles que
vivem ao pé de nós. Criar proximidade é assim uma prioridade,
se quisermos sobreviver psicologicamente a uma sociedade onde
só o provisório permanece. A influência de novos meios de
comunicação invade todos os domínios. Em conversa recente com
dois adolescentes, surpreendi-me com os novos truques usados
para elaborar cábulas cada vez melhores. No meu tempo do velho
Liceu Pedro Nunes, as cábulas que levávamos para os teste
escritos limitavam-se a uns pequenos fragmentos de papel
enrolados em harmónio ou quando muito a umas canetas que
desenrolavam pedacinhos de papel fino onde garatujávamos, à
pressa, as últimas definições. Vim a saber que os estudantes
de hoje escrevem nas mãos em tintas de várias cores e as
raparigas, quando usam saias, utilizam as coxas como bloco de
apontamentos, a consultar durante o teste num delicado
levantar de saias. Podem também colar bocados de papel nas
faces posteriores das réguas ou escondê-los dentro de estojos
de canetas e lápis, se bem que esta espécie de adereço escolar
também esteja em vias de extinção. Quando a imaginação é
fértil, utilizam-se fórmulas escritas por cima dos quadros ou
nas paredes, em zonas difíceis de apagar, ou então usam-se
folhas de rascunho do ponto anterior a aproveitar agora no
teste em presença.
Pode ainda decalcar-se com força o que não se sabe bem, de
modo a ficar marcado na folha de ponto, ou colar fór- mulas
nas zonas mais escondidas dos casacos. Verdadeiramente
fascinantes, contudo, são as cábulas pós-modernas. Imaginem
que hoje em dia há fórmulas de matemática guardadas nas
memórias das máquinas de calcular, apontamentos importantes em
cábulas obtidas por fotocópia reduzida ou mensagens em BIP,
telefonadas certamente pelo próprio, e consultadas perante o
olhar desatento do professor, num gesto aparentemente
anódino...
Sempre haverá cábulas, o importante é que da sua elaboração
fiquem alguns conhecimentos que permitam passar bem o ano. E
também que este gesto tão genuinamente estudantil não ponha em
causa valores essenciais para as gerações mais novas. No
fundo, era bom que todos fizessem como Kasparov, que
certamente ganhou ao Deep Blue sem cábulas, embora, quem sabe,
venha a precisar delas para o próximo combate...

10/3/96

Nem de tudo se pode falar?

Alguns pais vivem inquietos com a sexualidade dos filhos


adolescentes. Em reuniões organizadas por Associações de Pais
de várias escolas secundárias, perguntam-me o que fazer, que
livros deveriam ler ou se era conveniente frequentarem algum
"curso de formação". Procuro esclarecer que é pouco provável
que o filho faça muitas perguntas sobre o tema, uma vez que
este assunto pertence àquele reservatório de intimidade que
deve caracterizar uma relação saudável pais/adolescente.
Costumo citar o Diogo, do meu livro Vozes e Ruídos, que fez
notar que a informação sexual e muita outra mais privada
provem dos companheiros da mesma idade e não dos adultos.
A influência dos pais mede-se pelo exemplo que são capazes
de transmitir, pela desenvoltura com que tratam o tema quando
solicitados e sobretudo pela relação de amor que forem capazes
de manter viva.
Se os pais possuem uma sexualidade saudável, se abordam o
tema com naturalidade mas sem exibicionismo, se privilegiam a
sua privacidade e respeitam a dos filhos, é provável que a
vida sexual dos mais novos decorra de forma satisfatória. Se
tudo decorre com mentiras, não ditos e medos irracionais, é
natural que a evolução não seja tão boa. É necessário que os
pais compreendam que não precisam de dar aulas sobre sexo ou
oferecer enciclopédias da vida sexual. Este tema exige grande
prudência, sensibilidade e profundo respeito pela criança e
pelo adolescente. Não faz sentido falar da intimidade do casal
parental ou fazer comentários superficiais sobre os namorados
dos filhos. A atitude sobranceira com que alguns pais
comentam os "namoros" dos filhos contribui para uma clivagem
entre as gerações que não favorece o desenvolvimento do
adolescente. As relações afectivas e sexuais são muito
importantes na adolescência e na juventude e comentários
desvalorizadores dos pais e dos professores fomentam atitudes
de afastamento e reprovação dos mais novos.
De acordo com o Diogo, diversos estudos demonstram
claramente que a principal fonte de informação sexual reside
no grupo de pares e não na família. Aos pais compete estar
disponíveis, não invadir a intimidade dos adolescentes e
sobretudo saber ouvir. Para pais com especiais dificuldades
neste campo, existem já sessões de informação organizadas
entre nós pela Associação para o Planeamento da Família.
Nesses debates será possível favorecer atitudes positivas
sobre a sexualidade e promover a aceitação das expressões da
sexualidade dos jovens.
A sexualidade dos adolescentes é fortemente influenciada
pelo contexto familiar e sexual, inscreve-se no processo
individual do jovem e nos avanços e recuos que caracterizam o
processo de desenvolvimento juvenil. Ameaçada pela sida,
necessita continuar a existir privilegiando o amor, isto é, se
é essencial esclarecer os jovens sobre os aspectos preventivos
das doenças sexualmente transmissíveis, essa informação não
poderá jamais lançar um manto negro sobre o amor adolescente.
Aos pais resta um desafio: manterem-se jovens perante o
emergir da sexualidade nos seus filhos e fazerem com que possa
haver momentos de privacidade das novas gerações que só serão
partilhados se os filhos o desejarem.
Ajudemos os mais novos a reinventarem o romantismo nas
relações afectivas!

24/3/96

Pais e filhos

Há dois temas recorrentes nas conversas com famílias onde


existem adolescentes: as "influências" e as "más companhias".
Pais e avós interrogam-se sobre a origem das ideias e
comportamentos dos mais novos e, às vezes, parecem demitir-se
de continuar a lutar para manter abertos canais de comunicação
com os adolescentes.
Como tenho afirmado, é essencial uma permanente
"actividade" dos pais durante o período da adolescência dos
filhos. Cruzar os braços é aquilo que devemos evitar a todo o
custo. A investigação tem demonstrado que a influência dos
pais sobre os filhos se deve centrar em duas linhas
fundamentais: em primeiro lugar, uma certa vigilância
psicológica sobre a vivência adolescente; em segundo lugar, um
controlo sobre o comportamento do jovem em questão. A
vigilância deverá caracterizar-se, tanto quanto possível, no
acompanhar (por vezes à distância) do sentir do filho em
crescimento: ajudá-lo a falar sobre o que se passa na escola e
no grupo, questioná-lo sobre os valores ou sobre as suas
decisões, de modo a fazê-lo reflectir ou propor-lhe
alternativas quando os caminhos lhe aparecerem todos cortados
e ele não vislumbra um atalho salvador. Também será essencial
acompanhar o modo de reacção perante acontecimentos mais ou
menos frustrantes que inevitavelmente pontuarão o quotidiano
juvenil, tais como uma ruptura afectiva, uma derrota numa
competição desportiva ou uma injustiça de um professor.
O controlo comportamental será efectuado através de uma
supervisão discreta mas permanente sobre as actividades dos
mais novos. Sabemos hoje que os filhos necessitam sair,
confrontar-se com outros, correr mesmo uns certos riscos
necessários ao estabelecimento de referência e à
experimentação, importante nesta etapa da vida. Compete,
todavia, aos pais a tentativa de estabelecer certas balizas
que possam ajudar os adolescentes na formação de valores que
deverão caracterizar a identidade adulta. Se os adolescentes
gostam de sair à noite, a hora de regresso a casa não pode ser
igual dos 16 aos 20 anos; se é bom que eles fiquem sozinhos em
casa algumas vezes, tal não poderá voltar a acontecer se a
deixaram invadir por pessoas que a deixam em mau estado.
Vale a pena irmos um pouco mais além. Muitos estudos
demonstram que um excessivo controlo psicológico ou uma baixa
vigilância comportamental são determinantes para problemas nos
adolescentes. Se os pais se preocupam excessivamente e estão
sempre a tentar dominar o íntimo dos seus filhos (na ânsia de
que eles não sofram), o controlo psicológico torna-se
obsessivo e o adolescente recolhe-se excessivamente, podendo
começar com insegurança, baixa de auto-estima e inibição
social, que estão na base de situações que são características
de uma adolescência patológica, como a depressão, o suicídio e
a anorexia nervosa, entre outras. Se os pais têm uma atitude
pretensamente progressista de deixar os filhos fazer tudo o
que querem, os exageros e riscos comportamentais sobem em
escalada -- numa desesperada tentativa de obter sentido
através da "vitória" sobre a dificuldade -- e a possibilidade
de surgirem problemas de delinquência e abuso de álcool e
drogas tornar-se-á mais provável.
É evidente que o comportamento dos filhos adolescentes
depende de numerosos factores, biológicos, psicológicos e
sociofamiliares, não fazendo sentido pensar que os pais são
responsáveis por tudo ou culpados se alguma coisa corre mal.
Na adolescência, todos aqueles que rodeiam o jovem (incluindo,
em primeiro lugar, ele próprio) são co-responsáveis pelo que
vai surgindo ao longo dos anos; mas é evidente que aos pais,
pelo simples facto de serem adultos, cabe a influência
fundamental.
Diversos estudos realizados em Portugal e noutros países
confirmam este ponto de vista. Mais do que pelos amigos,
namorados, televisão ou professores, os adolescentes são
influenciados pelos pais nas suas tomadas de decisão e no
estabelecimento dos seus valores. Cabe a todos nós auxiliar os
pais no seu papel, ajudando-os sempre que estejam com
dificuldades ou lutando para que na sociedade surjam melhores
condições de vida que lhes permitam um melhor papel parental.
E este último ponto não pode ser só tarefa dos políticos!

21/4/96

Meninos de rua

A propósito de um dos meus programas televisivos (Verdes


Anos), fiquei a pensar nos meninos da rua. Que se passará com
uma sociedade que vê crescer diariamente crianças e
adolescentes sem quaisquer possibilidades de uma vida digna,
sem que faça tudo ao seu alcance para o evitar? É uma resposta
que tenho dificuldade em encontrar na boca dos políticos ou na
pena esforçada de tantos analistas.
Impressiona falar com os meninos da rua. Há uma aparente
indiferença a tudo o que os rodeia e um sorriso tímido ao
canto da boca quando lhes damos atenção. Rapidamente, porém,
pode estalar a agressividade e a revolta que nos deixam
perplexos. A vida dura que estão a viver faz com que não se
detenham em grandes confidências e se apressem a contar aquilo
que pretendemos saber. A sua intimidade, essa, fica fora do
nosso alcance.
Sabe-se hoje que a vulgar expressão "menino de rua"
corresponde a um conjunto de características bem definidas.
Essas crianças foram abandonadas por adultos durante mais ou
menos tempo, tiveram alimentação insuficiente, falta de
hábitos de higiene e falta de vigilância médica, muitas vezes
recorrem à mendicidade e ao roubo para si próprias e para as
famílias. Vivem em barracas ou na rua e rapidamente mergulham
em actividades ilícitas (droga, prostituição). Não exprimem
emoção e raramente se queixam.
De quem é a culpa? E melhor pensarmos que todos somos
responsáveis. Os pais não tiveram condições para exercer a
função parental. Sabe-se através de investigações detalhadas
de psicossociólogos que a pobreza é decisiva para a génese
deste problema.
Os pais são pobres, têm más condições de habitação,
factores que só por si levam a uma desorganização familiar,
com má planificação de actividades, menor capacidade para
controlar as situações e menor motivação para a escola e a
aprendizagem. Sujeitos a dificuldades quotidianas que implicam
uma luta pela sobrevivência, como podem estas mães fornecer
calor materno, que sabemos ser essencial para o
desenvolvimento dos filhos?
A verdade é que quando não há casa nem pão, é difícil haver
estímulos positivos para que a auto-estima destas crianças não
desça vertiginosamente.
É pois, necessário, não continuar a proceder como se estas
coisas só se passassem "lá fora" (que é um país que não
conheço como dizia um professor meu). Estão bem aqui ao pé da
porta, nas periferias de Lisboa, Amadora, Setúbal e Porto.
Para que não as esqueçamos. Para que ajudemos fortemente as
pessoas (poucas, infelizmente!) que diariamente tentam
resolver estes problemas, em equipas de serviços públicos ou
de instituições privadas de solidariedade pessoal.
E, senhores políticos, não acham isto mais importante que a
regionalização?

2/6/96

Verdade

Mais uma vez ia à escola. Desta vez, parece que por um


problema de comportamento do André. O filho, de 14 anos, era
frequente visita dos Conselhos Directivos e habitual assunto
dos Conselhos Disciplinares. Fora sempre assim. Desde o 1º
ciclo (escola primária, como gostava de dizer) que os
professores o classificavam de mal-comportado e de elemento
com problemas. Uma vez descobriu que o filho já não ia ao
Gabinete do Director da Escola, depois de ter sido repreendido
severamente pelo professor. Limitava-se a sair da sala de
aula, dava uma volta pelo pátio da escola e voltava com ar
comprometido. Quando a professora perguntava: "Que disse a D.
Aida?", respondia: "Disse para eu me portar bem." No 2º ciclo
reprovara no 6º ano, não porque tivesse dificuldades, mas
simplesmente porque estudava pouco e era turbulento. As
conversas que tinha com o filho terminavam invariavelmente num
encolher de ombros por parte do rapaz, com um "não tive culpa
por ter nascido" que a exasperava cada vez mais. No 8º ano as
coisas complicaram-se Começava a contestar tudo e todos, tinha
crescido muito e a mãe desconfiava que já tinha fumado haxixe.
O diálogo com os pais era difícil. O pai parecia muito
desiludido e sem esperança, só a mãe tentava ir pela positiva
e dar uma volta às coisas. As notas tinham baixado muito e o
ano estava novamente em risco. Acumulavam-se as faltas
disciplinares e as ameaças de suspensão.
Quando transpôs o portão da escola, depois de se ter
identificado na portaria, a mãe ia muito inquieta. Foi
recebida num cubículo amanhado à pressa, com umas flores
artificiais numa jarra de barro e umas cadeiras de pinho a
lembrar os anos sessenta. A directora de turma era uma senhora
obesa, de grandes óculos na ponta do nariz, saia e casaco um
pouco apertados para o seu porte e um sorriso afável que a
iluminava toda. Esperava-a o discurso habitual. "O André tem
possibilidades que não aproveita... para alguns professores é
um aluno muito perturbador... por vezes roça a má educação...
se não se acautela ele vai ter um problema de insucesso
escolar... devia apoiá-lo mais nos trabalhos de casa..."
Estava farta deste discurso acusador. Sentia-se pequenina
só com a 4.a classe tirada à pressa, entre reguadas e puxões
de orelhas, algures perto de Alcains. Vivia sem grande
entusiasmo com o seu marido, que às vezes chegava a casa
alcoolizado e que tinha de descalçar antes que ele se atirasse
para cima da cama. Trabalhava todo o dia num emprego
burocrático de uma repartição pública no cimo de uma escada
carcomida que estalava a cada passo. Chegava a casa cansada e
com poucas forças para falar com o André e sem conhecimentos
para o ajudar nos estudos. Percebia mal o filho. Notava-o
desenvolto com as máquinas da casa e com o computador do
vizinho, reparava que olhava agora de outro modo para as
raparigas e que se interessava cada vez mais pelo desporto.
Reconhecia-lhe qualidades e por isso não percebia muito bem
porque não tinha aproveitamento.
A verdade é que para a mãe do André (e para muitos outros
pais) a escola era um assunto difícil. Tinha pouca instrução e
não percebia muito bem certas expressões dos professores. Um
deles tinha-lhe falado de escola de inclusão e aquilo que
tinha concluído é que todos os alunos, mesmo aqueles com
dificuldades, deviam continuar na escola e não ser apontados a
dedo como alunos "com atraso" e com "educação especial".
Muito sinceramente achava que a escola devia
responsabilizar mais os professores e que o Ministério deveria
garantir apoio quando eles não sabiam o que fazer com os
alunos-problema. Tinha dificuldade em perceber por que razão
todos diziam que os pais deviam ir à escola, mas o certo é que
ninguém lhe explicava a vantagem da sua presença ou o papel
que de facto lhe estava destinado.
Acima de tudo, para si era fundamental que todos falassem
verdade sobre a escola e a família. Que todos pudessem
cooperar sem invejas nem rivalidades. Para sempre.

16/6/96

Quem tem medo dos "grupos"?

Dizem os psicólogos e investigadores sociais que o grupo é


muito importante para os adolescentes. O papel do grupo no
desenvolvimento dos jovens está relacionado com as
identificações que os adolescentes fazem com os seus amigos e
na filiação que o grupo fornece ao processo de independência
face aos pais. A investigação tem demonstrado que o grupo de
amigos no período da adolescência é um suporte muito
importante para o desenvolvimento, sendo a sua contribuição
decisiva para o debate e consolidação de muitas questões com
que os adolescentes se confrontam.
O grupo é essencial no confronto que os adolescentes
necessitam fazer com alguém próximo, mas que pode ser
semelhante ou diferente. Por exemplo, é junto dos amigos que
os jovens encontram os interlocutores mais importantes para os
problemas do amor e da sexualidade, questões difíceis de
discutir com os pais, não só pela intimidade que os envolve,
mas também pela experiência bem diferente dos progenitores
face ao tema.
Na teoria, tudo parece bem certo. No dia-a-dia das famílias
com adolescentes, as coisas às vezes não são fáceis. Qual a
reacção de um pai ao ver a filha agarrada a um rapaz de
cabelos compridos? Como pode a mãe falar com a filha sobre
questões íntimas, se ela se faz sempre acompanhar pelos
amigos?
Como reagirá o filho, quando o pai descobre que no grupo há
companheiros que fumam haxixe? Será que o seu filho será
"contaminado" e não poderá recusar a droga?
Não é possível falar de grupo adolescente sem falarmos dos
pais. A verdade é que muitos adultos ficam assustados ao ver
os filhos saírem de casa para irem ter com o "grupo". Que
fazer? Basicamente, é necessário abrir a casa aos amigos dos
filhos, conversar ocasionalmente com eles sem invadir a sua
privacidade, mas não deixar que tudo se passe sem alguma
discreta vigilância. É preciso compreender que a droga, por
exemplo, não é utilizada sem que o sujeito que a consome faça
alguma coisa por isso, isto é, não cai do céu aos trambolhões
para a boca do nosso filho, nem salta do grupo directamente
para o bolso dele. O papel dos pais será o de compreenderem,
tão cedo quanto possível, as fragilidades, as dúvidas, os
medos e as contradições que poderão impelir alguém a aceitar a
droga em vez de dizer não. As dificuldades da família, em
regra, não começam exactamente naquele dia em que o pai e a
mãe viram algures no quarto do filho um quadrado que lhes
pareceu chocolate e que mais tarde perceberam ser haxixe.
Houve um percurso sinuoso de não-ditos em que todos
participaram e que de alguma forma baixou a auto-estima
daquele jovem e que o tornou mais vulnerável.
Não é possível pensar que um adolescente actual pode viver
isolado. Basta que ele ligue a televisão para imediatamente
ficar ligado ao bom e ao mau do mundo (infelizmente, muitas
vezes mais ao mau). É bom que os pais e professores possam
aceitar o grupo jovem com o que ele tem de criativo e de
arriscado, fornecendo um ambiente de diálogo e suporte
afectivo, que permita ao adolescente falar sobre os dilemas
que vai encontrando no grupo e que afinal são os dilemas da
vida.

30/6/96

Fobia dos adolescentes?

O jornal Público, de 14 de Julho, falava do recolher


obrigatório para adolescentes, medida a ser cada vez mais
usada nos Estados Unidos. Parece que os americanos estão a
desenvolver uma espécie de fobia aos jovens, exemplificada na
frase "desconfiem de quem tem menos de trinta anos", também
citada no jornal português.
Este receio dos americanos está relacionado com o aumento
de crimes atribuídos a adolescentes, que triplicou desde os
anos 70 até aos dias de hoje. Em muitas cidades americanas são
presos todos os jovens que andam nas ruas depois das onze
horas, mesmo que seja só a namorar ou a passear o cão.
Em Portugal esta medida provocaria protestos e
estupefacção. Interrogados sobre a sua viabilidade entre nós,
vários adolescentes respondem ao Público que isso restringiria
os seus direitos e a sua liberdade, só concedendo aos
respectivos pais o direito de com eles negociarem a hora de
regresso a casa. Mais uma vez os nossos jovens revelam bom
senso. Muitas das sérias dificuldades juvenis, particularmente
os actos delinquentes, estão relacionados com abandonos por
parte dos pais ou com ambientes familiares onde cresce a
violência e a droga. Abandonados a si próprios, os mais jovens
correm riscos crescentemente maiores, na tentativa desesperada
de "vencer" a morte e conferir algum sentido à vida, ou pelo
menos ocuparem com uma coisa concreta e agressiva o vazio que
lhes vai lá dentro. A violência não pode, contudo, ser
explicada apenas pela Sociologia e a Psicologia. O seu estudo
e a sua diminuição devem ser preocupação de todos e
constituem hoje um dos dilemas do presente e do futuro. Não
podemos ser tolerantes para com a violência, seja qual for o
contexto em que ela surja. É por isso que defendo que, desde o
jardim de infância, pais e filhos devem poder falar dos seus
medos e inquietações, de modo a que não cresça dentro de cada
um aquele gigante violento que às vezes nos assalta à noite.
As histórias da nossa infância estão cheias de gente má, que
desde muito cedo nos obriga a tomar partido; por isso, não
transformem o lobo do Capuchinho Vermelho num ser
psicologicamente "compreensível", nem comecem a açucarar as
bruxas dos irmãos Grimm ou de Hans Christian Andersen. É
melhor lê-los como sempre apareceram e depois deixar que os
filhos façam perguntas sobre eles, os rejeitem ou adorem
(ainda hoje me lembro que chorei com o filme Bambi e acho que
isso, na altura, me ajudou...).
A verdade é que sinto crescer, também na nossa sociedade,
uma certa fobia aos jovens. Adultos cheios de inveja dos mais
novos atribuem-lhes a responsabilidade das más notas, do
barulho nas ruas ou dos conflitos em casa. Tenho para mim que
a turbulência dos adolescentes se está a transformar cada vez
mais num signo geracional. Ameaçados por um século XXI que se
apresenta muitas vezes como confuso e imprevisível, imersos
num sistema de ensino que produz 6000 zeros em matemática no
12º ano, vivendo não raramente em lares problemáticos com
pais emocionalmente inseguros, deambulando por vilas e cidades
que só constroem para eles discotecas e bares, com empregos de
motocicletas ruidosas a distribuir fast-food, não será natural
que protestem, de modo a rejeitar a sociedade que tão
"carinhosamente" construímos para eles?
Não pretendo aqui dizer que os jovens têm sempre razão, ou
justificar qualquer crime cometido pelos mais novos. Sabe-se,
contudo, que a maioria dos actos delinquentes ocorre à luz
solar e que certamente não é fechando os adolescentes que
conseguiremos alguma coisa. Preocupemo-nos antes em apoiar as
famílias com problemas, em acabar de vez com a miséria das
barracas, em combater a droga (não com discursos
bem-intencionados mas
com medidas que lesem o lucro dos traficantes) e em criar boas
escolares e bons empregos para os mais novos. Vão ver que
estas alterações, se forem reais, diminuirão em flecha a
agitação e a violência de muitos adolescentes! Não é
certamente com discursos românticos e ingénuos sobre "os
homens de amanhã", nem com modelos importados de sociedades
que nada têm a ver com a nossa, que iremos lá...

28/7/96

O muro e a droga

Num gesto objectivo e de grande significado simbólico, o


presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. João Soares, deu
um passo decisivo contra o problema da toxicodependência na
capital. Segundo relato dos jornais, entrou no Casal Ventoso e
mandou destruir o muro onde diariamente muitos injectavam
heroína, num terrível processo de destruição que caminhava
para o abismo aos olhos de todos nós. Ao proceder deste modo,
mostrou uma intenção face ao futuro e uma acção concreta desde
já.
O significado deste gesto importantíssimo escapou aos
nossos habituais "analistas" políticos, que continuam
desesperadamente a comentar o leve rumor das agulhas de
tricotar dos pequenos actores partidários. Talvez alguém tenha
julgado ver uma encenação mediática com vista às autárquicas
de 97. Pela minha parte, interessou-me a referência simbólica
da acção e, desde já, declaro todo o meu apoio a iniciativas
do género. A verdade é que a política de combate à
toxicodependência necessita de estímulos positivos diários,
que sirvam de apoio a todos aqueles que diariamente lutam no
terreno; e necessita também de fornecer esperança àqueles que
sofrem com a dependência e que vivem um quotidiano de
desespero.
É prioritário actuar no Casal Ventoso ou noutros locais
tipo guetos que se multiplicam nalgumas das nossas cidades.
Com isto não vamos, infelizmente, acabar com a droga, mas
mostramos a todos que não estamos parados, nem fechamos os
olhos como se nada se passasse. Vão continuar a existir
traficantes e utilizadores de droga no Casal Ventoso e nos
bairros degradados de outras cidades. A miséria, o desemprego
e a violência são os ingredientes importantes para criar um
contexto propício à entrada de traficantes, condições que só
serão alteradas com um novo urbanismo e com uma correcta
política de ajuda às famílias ou aos utilizadores. Tal não
deve, contudo, ser a única direcção a tomar. Ao destruirmos os
locais da fúnebre liturgia do consumo, estamos a mostrar que
não temos medo de "limpar", no sentido literal e figurado do
termo, uma zona de ritual e de sacrifício que se estava a
tornar demasiado evidente e aceite.
Não podemos deixar que as nossas cidades tenham locais onde
não se pode entrar, em que crianças abandonam a escola para
poder avisar que se vai efectuar uma rusga, ou em que pessoas
sabem dar informações importantes, mas não o fazem por medo da
vingança. Não podemos permitir que se crie uma atmosfera de
paranóia colectiva, com os utilizadores de drogas a serem
perseguidos como se fossem leprosos de outras épocas, sem se
distinguir traficantes de jovens consumidores. Não se pode
admitir que um aluno seja apontado na escola só porque foi
visto a consumir haxixe num recanto: é preciso ir ter com ele
e falar-lhe directamente no problema, perceber minimamente as
razões do seu gesto e ajudá-lo no que for preciso. É por isso
que a droga é um problema de todos nós, porque toca uma
questão essencial dos nossos dias, que é a da verdade. Se um
pai está inquieto e receia que o filho se drogue, a primeira
coisa a fazer é confrontar directamente o jovem, com amor e
com firmeza. Se um professor se interroga sobre a
agressividade de um aluno e está a pensar em dependências,
deve chamá-lo em privado e equacionar a questão. Se um autarca
sabe onde se consome mais, precisa de ir lá e actuar. O
corajoso não é aquele que não tem medo, é aquele que o vence.

11/8/96

Dinamitar horários

Agosto e Setembro são meses que me fascinam. Percebi melhor


esse meu entusiasmo depois de uma consulta de terapia
familiar, antes de ir de férias. O pedido da família era
banal: um adolescente que não estuda e sai muito à noite, só
que quem apareceu parecia saído de um filme. O pai era muito
alto e magro, de óculos enormes à Manuel Monteiro e um
desajeitado blusão estilo Adão Juvenil. A mãe, obesa e com
sorriso tímido, parecia a todo o momento ter segredos difíceis
de revelar. O filho mais novo, de quinze anos, tinha o cabelo
em bandó e apanhado atrás em rabo de cavalo, dois brincos na
orelha esquerda e um ar desejoso de voltar a casa. A filha
mais velha, redonda como a mãe, tinha a cara coberta de uma
estranha penugem e acenava que sim sempre que o pai emitia uma
opinião.
Rapidamente, expuseram o problema: o Nuno era mau aluno e
desobediente, chegava tarde a casa e andava com raparigas
"fáceis". Ninguém tinha mão nele. Sempre que alguém o
repreendia soltava um palavrão e batia com a porta do quarto.
Os pais comparavam-no com a irmã: a Teresa era uma óptima
aluna, tinha passado para o 12º ano com uma média notável e
passava a maior parte do tempo em casa a estudar para os
testes e para as explicações. O único tempo livre era dedicado
ao estudo do Alemão e ao trabalho na paróquia. Era evidente
uma aliança entre a Teresa e os pais, sentados muito juntos,
de modo a deixarem o Nuno num canto da sala. Foi preciso um
grande esforço e muita prudência para conseguir fazer o rapaz
participar na conversa, já que ele parecia alheado, com o
único movimento de pastilha elástica a ritmar-lhe a leve
inclinação da cabeça.
A sessão de terapia familiar prosseguiu e em breve todos
falávamos mais à vontade. A mãe, professora do 1º ciclo, era
uma persistente educadora dos alunos e dos filhos, enquanto o
pai, bancário, parecia desiludido da profissão e da família.
Cedo se percebeu que os dois filhos eram opostos em tudo, mas
sobretudo na expectativa dos pais: a Teresa representava tudo
o que eles desejavam, paz, tranquilidade e sossego no lar, com
um futuro modesto mas digno; o Nuno era a ovelha ranhosa,
parecia viver para contestar os valores familiares e crescer
contra aquilo que estava previamente ambicionado.
Como a sessão era em Julho, falámos das férias e dos meses
de Agosto e Setembro. Foi aí que tudo se tornou ainda mais
claro. O meu mestre americano de Terapia Familiar, Carl
Whitaker, ensinava que a forma de ver se uma família era
saudável era verificar se ela era capaz de brincar. O pai
planeava dormir o mais possível, visto que se levantava sempre
cedo e estava cansado. A mãe ia finalmente pôr a casa em ordem
e fazer todas as arrumações que não tinha conseguido fazer. A
Teresa planeava ler e bordar, coisa que não ouvia há muito
tempo da boca de uma adolescente de 17 anos. O Nuno ia, mais
uma vez, romper com os hábitos de casa e sair o mais possível,
dando origem a mais conflitos. Ninguém parecia perceber que na
adolescência dos filhos é necessário um espaço para cada um,
com momentos em conjunto que não sejam penosos e que divirtam
todos.
Agosto e Setembro continuam oportunidades única para se
viver uma vida mais livre, para se dinamitarem os horários que
nos espartilham durante o ano e, sobretudo, para descobrir a
criança alegre que há em cada um de nós. É por essa razão que
não concordo com a designação silly season que alguns dos
nossos intelectuais copiaram do estrangeiro. Há estação mais
esperta do que aquela que nos proporciona um romper com a
rotina, uma descoberta de nós próprios e dos outros numa
conversa à beira-mar? Para mim, é a estação mais inteligente
de todas. Por isso, aproveitem o resto do Verão e libertem-se!

25/8/96

Ser adulto

Como é de todos sabido, a adolescência é a etapa do


desenvolvimento humano que se segue à infância e precede a
idade adulta. O "humano" que aqui escrevi não é por acaso,
pois um gato e um cão com um ano de idade são já adultos e
aquela velha regra de multiplicar por sete os anos do nosso
animal de estimação não é aceite pelos veterinários. Apesar de
haver homens e mulheres há muitos, muitos anos, nem sempre
houve adolescência. Dizem que começou no século XIX, ao mesmo
tempo que os suspensórios e, sinceramente, não sei se será uma
descoberta que vai perdurar. A verdade é que hoje é um período
importante, que na maior parte dos casos é de festa, mas
nalguns é de sombra ou mesmo desespero.
A adolescência começa por um acontecimento biológico bem
determinado, a puberdade, período iniciado pela primeira
menstruação na rapariga e pela primeira ejaculação no rapaz. O
corpo altera-se, aparecem pêlos em sítios novos e a pouco e
pouco vai-se crescendo e fica-se maior que os pais. Além
destas modificações físicas, a puberdade marca o início de uma
série de alterações psicossociais -- com modificação das
relações com os pais e com os amigos que vão caracterizar
aquele adolescente. Na realidade, não existe hoje uma
adolescência, mas sim uma série muito diversificada de jovens
que possuem um conjunto de características comuns, que hoje
consideramos típicas da adolescência.
Muitos dos nossos reis não viveram a adolescência e nem por
isso deixaram de ser capazes de governar o País, mas também é
verdade que alguns governantes actuais parecem tão
envelhecidos de ideias que, seguramente, devem ter esquecido
a sua juventude. Seja como for, hoje a adolescência está na
moda porque as pessoas tentam estudar mais, casam mais tarde,
têm filhos com mais cabelos brancos, ou falta deles, e não
conseguem arranjar casa com facilidade, por isso vão ficando
em casa dos pais, às vezes sem grande entusiasmo, mas é o
melhor que se pode arranjar. Para mim, acho que há hoje em dia
muitas manifestações da adolescência porque é cada vez mais
difícil ser adulto. Os livros dizem que a idade adulta é
caracterizada pela formação do carácter e de um sistema de
valores, por uma identidade verdadeira que nos dê alguma
segurança e por uma escolha afectivo-sexual que nos ampara e
nos estimula a continuar. Mas ser adulto hoje também pode
significar trabalhar em excesso para ganhar mais e mudar mais
vezes de carro, ter muitas vezes insónias e perturbações de
estômago ou tensão alta, dizer mal do governo qualquer que ele
seja e falar todo o tempo do stress, que é dos conceitos mais
difíceis de definir. Os adolescentes dizem-nos todos os dias
que a sociedade que preparamos para eles não lhes interessa.
Começámos há 30 anos por louvar o amor sem preconceitos e
falamos agora da SIDA e da Hepatite B, garantíamos dantes uma
"enxada" a quem completasse um curso, e a lista de licenciados
a guiar táxis aumenta todos os dias, falávamos do sacramento
do casamento e da vantagem da sua indissolubilidade, e os
divórcios vão subindo. Por isso, a escola, hoje não tem
sentido para alguns jovens, e certamente muitos não estão
interessados em trabalhar para terem uma casa e um carro
apenas um pouco melhores.
Para mim, ser adulto significa ter uma certa consciência de
si próprio que conduza a não lamentarmos o que fizemos. Saber
tomar partido quando os dilemas éticos estão em discussão
(exemplos recentes -- as justiças populares e os ciganos de
Oleiros, prenúncios terríveis de justificação de autoritarismo
vindouros; ou semanários que, para justificarem a sua pobre
existência, desatam a falar da vida íntima de cada um e com
isso aumentam as vendas...). Não atraiçoar a confiança de quem
nos conta algo importante, desdramatizando a inquietação do
outro ou inutilizando-a numa conversa descuidada. E,
sobretudo, reflectir muito, muito. Ter paciência para adiar
quando é preciso pensar mais, mas não hesitar em decidir
quando já se equacionou suficientemente o problema. Se formos
capazes de fazer estas e outras coisas, vale a pena ser
adulto. De contrário, é bom ficar adolescente mais uns anos.

22/9/96

Os chibos

São uma espécie que devia estar em extinção, mas que


infelizmente continua a povoar muitas das nossas famílias ou a
inquietar algumas das nossas escolas. Nasceram há mais ou
menos quinze anos, num dia sem história. Foram bebés que nunca
causaram problemas, alimentados sem prazer nem esforço por
mães insatisfeitas. Foram para a escola com medo, levados pela
mãe angustiada, ou deixados até o mais tarde possível ao
cuidado de avós superprotectoras.
Na escola primária iniciaram o traço da personalidade que
mais tarde, em plena adolescência, os vai caracterizar. Foi
assim que numa tarde ficaram para trás, fingindo arrumar a
mochila, para dizer à professora quem tinha sido o colega que
atirara para a aula a bombinha de mau cheiro. Numa fase
inicial, os seus actos passam despercebidos e conseguem
integrar-se nas brincadeiras, mas pouco a pouco o seu carácter
vai tomando forma. Em casa, denunciam os irmãos mais velhos,
quando pela primeira vez eles fumam cigarros ou dormem com as
namoradas. Subtilmente, servem de mensageiros a transportar
segredos do pai para a mãe, ou a sacar histórias
comprometedoras das avós desprevenidas. É deste modo que o seu
poder cresce todos os dias porque, sem serem brilhantes, sabem
manipular a informação familiar, ao mesmo tempo que na escola
são bons alunos e não se metem em sarilhos. Numa conversa mais
privada com os amigos, fazem-se bons confidentes, mas são os
primeiros a ir contar a quem não devem, para ficarem de bem
com todos e armazenarem mais notícias.
É na adolescência, contudo, que atingem a plenitude.
Quando olhamos para eles, vemos rapazes e raparigas sem nada
de especial, desenhando um sorriso enigmático e um silêncio em
momentos decisivos. É na intimidade da casa ou no canto da
escola que exercem o seu poder. Se são convidados para festas
um pouco marginais, aceitam sem pestanejar e lá aparecem à
hora combinada. Podem mesmo curtir e experimentar haxixe ou
ecstasy para se fingirem populares e de confiança, mas no dia
seguinte "chibam-se", isto é, contam tudo à mãe e à
professora, numa vertigem de confidência à qual os adultos,
infelizmente, não fazem ouvidos de mercador. Dias depois, numa
aula, e sob a ameaça da falta disciplinar colectiva para quem
não acusasse o prevaricador, acham maneira de serem ainda mais
chibos ou bufos e denunciarem o colega sem pestanejar. Não
sabem o que é ser leal ao grupo e a palavra solidariedade
queima-lhe os lábios, porque o que querem acima de tudo é ter
sucesso e estar bem com quem detém o poder. Às vezes, nas
aulas, sabem que a professora está a atacar injustamente um
colega, mas jamais o defendem; preferem usar um discurso sem
chama a favor do funcionamento da turma e da necessidade de
estudar, do que arriscar a pele na critica a quem manda.
É extraordinário como os adultos os apoiam. Os professores
inseguros ou medrosos ouvem-nos com atenção, elogiam-nos em
público pelos bons êxitos escolares e abrem os ouvido aos seus
relatórios. As mães que não aguentam a angústia de verem os
mais novos crescerem e ficarem autónomos, telefonam a um chibo
e ficam a saber com quem os filhos andam e que erros cometem,
para logo a seguir pedirem uma entrevista e contarem tudo ao
director de turma. Cresce assim na escola e na família uma
informação clandestina, alimentada diariamente pelos relatos
dos chibos, que contribui para a marginalização e repúdio
daqueles que são diferentes ou estão em dificuldades. Em
relação aos primeiros consumos de tóxicos, esta rede paralela,
feita de ditos e não ditos, de queixas dos chibos e de
inconfidência de alguns professores, contribui decisivamente
para a exclusão daqueles que experimentam a procura de um
alívio imediato e que, assim postos de lado, podem tornar-se
consumidores habituais.
É preciso muito cuidado com os chibos. Quando falamos com
um deles, devemos ter sempre presente a sua máxima: "Tudo o
que disseres pode ser utilizado contra ti." É que, na verdade,
os chibos não suportam o espaço de liberdade dos outros, não
conseguem transgredir quando isso é inevitável (adolescência),
nem conseguem amar ninguém, porque para isso é sobretudo
preciso não ter medo.
Na escola e na família, é cada vez mais importante a
comunicação directa: se alguém tem dúvidas sobre o sentido do
comportamento do outro, não há melhor coisa do que
perguntar-lhe directamente. Deste modo, daremos caça aos
chibos e não permitiremos que mais tarde sejam adultos sempre
do partido que está no poder, a lerem a imprensa que devassa
as vidas íntimas ou a lavarem a culpabilidade em donativos
para instituições de ética duvidosa.

6/10/96

Cronenberg e as escolas

Dois acontecimentos cruzam o meu espírito quando escrevo


esta crónica: um inquérito recente sobre a opinião dos
portugueses acerca da escola e dos métodos de ensino, e o mais
recente filme de Cronenberg, Crash. Interrogo-me sobre esta
estranha associação de ideias. Que relação poderá haver entre
o sistema de ensino e Crash? Como psicoterapeuta, estou
treinado a descortinar significados menos claros do meu
inconsciente e por isso a auto-interpretação é esta: estamos
já para lá do pós-modernismo e a caminhar para
situações-limite.
Na escola, a confusão é grande. Como é possível que,
segundo um inquérito de um jornal diário, os portugueses
defendam o livro único, admitam largamente o regresso às
reguadas e achem que agora se aprende menos? Para mim, não se
fez de facto a reforma e, mais grave ainda, a escola está a
perder sentido, deixando perplexos pais, professores e
estudantes. Impressiona ver que se pensa poder voltar a ter
aulas de Filosofia com o velho Bonifácio, ou a ler textos de
uma sinistra Gazeta Literária dos tempos do fascismo. E pensar
em professores que sadicamente espancavam os alunos menos
cumpridores, em rituais de violência que assustavam os mais
corajosos? Não, não poderemos voltar atrás, sejam quais forem
os resultados das sondagens ou de falsos referendos. A verdade
é que cada vez mais a educação tem de ter três vertentes: a
instrução (aquisição de conhecimentos), a estimulação
(desenvolvimento da personalidade do aluno) e a socialização
(interiorização de condutas e valores para a vida em
sociedade). Como se pode fazer isto com livro único e
palmatoadas? O insucesso escolar de muitos estudantes não é
devido, em muitos casos, a carências individuais, mas ao nível
cultural da sua família, à organização da escola e à estrutura
social no seu conjunto. Por estas razões, as duas medidas
lançadas pela actual equipa do Ministério da Educação são de
grande importancia: revisão dos curricula e acção preferencial
em locais com mais carências, as zonas educativas da
intervenção prioritária.
Se não dermos sentido à condição obrigatória que é a
escola, teremos o Crash, isto é, o limite que é o fim dos
limites. As personagens de Cronenberg movem-se
desesperadamente em busca da identidade que a sociedade actual
não ajuda a encontrar.
Correr de automóvel a grande velocidade, dominar o desastre
e sentir a vertigem do momento em que se embate e se fica vivo
é, no limite, vencer a morte, ficar imortal. Na sequência em
que Vaughan descreve o seu controlo sobre os desastres que
encerra, é James Dean que vemos recriar, é a imortalidade que
todos buscamos que nos assalta. E a busca desesperada do
prazer sexual, expressa em comportamentos sem limite em que o
inconsciente invade sem freios a vida dos personagens, é
novamente a luta por uma identidade perdida. Atingir o prazer
máximo, sem barreiras, vencer a morte depois de a desafiar,
potenciar eroticamente o repelente (cicatrizes), não é mais do
que tentar sobreviver em êxtase e com isso conferir sentido a
uma vida dominada pelo metal, pelo betão e pela violência.
É por isso que não poderemos perder a identidade da escola,
teremos de a construir no dia-a-dia com os seus actores. Se os
jovens de hoje caminharem como zombies entre paredes escolares
degradadas, a soletrarem o livro único, serão mais tarde como
os protagonistas de Cronenberg a tentarem sobreviver numa
vertigem de destroços de automóveis.

20/10/96

Dois mundos

Antigamente, era tudo mais fácil. O saber era linear e


uniforme. Vinha tradicionalmente de pais para filhos, de
professores para alunos, de cima para baixo. O poder era único
e bem localizado, quem mandava era mais velho ou teoricamente
mais culto. Grandes narrativas davam rumo às coisas: a
religião católica, o marxismo, a família nuclear, o casamento
indissolúvel, a luta contra o autoritarismo salazarista. No
campo dos valores, predominavam a certeza e a ordem, quem
fosse "diferente" era facilmente marginalizado, porque era
tudo uno e rectilíneo. Na escola, havia disciplina, mas era
branda e folgazona, género vamos lá gozar um pouco com o
desastrado professor de Português do meu tempo, que obrigava
muitos a decorarem a estrofe do 1º canto de Os Lusíadas
correspondente ao nosso número de ordem... Nos liceus da
capital predominavam os meninos de família ou estudantes da
classe média, todos brancos de pele e vestidos de modo
aprumado. Fumava-se às escondidas no pátio da escola, as
festas de anos eram rituais organizados pelos pais onde às
vezes nos maçávamos de morte, a sexualidade era qualquer coisa
de que só se falava com pessoas do mesmo sexo. A escola
garantia emprego e mobilidade social, porque quem andasse no
liceu e tivesse algum dinheiro ia para a Faculdade, quem
frequentasse o ensino técnico arranjava emprego, mesmo à custa
do empenho de um ministro (tipo O Manual dos Inquisidores, de
António Lobo Antunes, o grande romance do pós-salazarismo). Na
família, os filhos não contestavam em regra os pais,
detentores da verdade e da experiência da vida; quando havia
problemas que a mãe não conseguia resolver sozinha, o pai
entrava em acção, às vezes de cinto ou de cavalo-marinho e o
"rebelde sem causa" era rapidamente posto na ordem e nos
princípios da família (às vezes, eram ovelhas ranhosas, mas
dessas não rezavam as crónicas familiares).
Hoje, está tudo diferente. Os jovens são influenciados por
espaços narrativos fluidos, caiu o muro de Berlim e proliferam
as seitas religiosas, o 25 de Abril aconteceu ainda eles não
eram sonhados. Sobre dois ministros da Educação de um presente
recente, divulgou-se o criativo mas desrespeitoso slogan Couto
interrompido, Leite derramado. Na escola, onde antes existiam
pastas de cabedal com cadernos arrumados, existem hoje
mochilas coloridas com tudo a monte ou, mais tarde, restos de
canetas roídas e folhas de papel arrancadas ao caderno do
vizinho. Não há poderes absolutos. Por que razão está certa a
ordem do professor e do pai, só por serem mais velhos? Também
os valores não são os tradicionais (a ordem rígida não será
certamente), constroem-se no relacionamento partilhado com o
grupo de amigos e com os adultos do universo relacional. A
cultura não é indivisível. Quim Barreiros é aplaudido com os
Madredeus ou a Maria João Pires, usam-se palavras mais
eruditas ao lado de obscenidades, como convém a alguns
semanários. As novas tecnologias mediatizadas determinam novos
saberes e capacidades, com os acontecimentos a aparecerem das
mais diversas formas e em contextos cada vez mais diversos.
Pais e professores parecem não ter percebido ainda que os
mais jovens já vivem no século XXI. Continuam a pensar que os
seus descendentes estão à espera de um saber linear que
generosamente os mais velhos lhe vão legar. Puro engano.
Os pais precisam convencer-se com urgência de que há uma
identidade juvenil para além da escola e da família, isto é,
as pessoas novas tornam-se adultos também a sair à noite e a
viverem experiências inovadoras, nem sempre do agrado dos mais
velhos. Os professores necessitam convencer-se que os seus
alunos também são produtores de cultura, não daquela cultura
que os velhos académicos lhes ensinaram nas Faculdades, mas
sim de culturas juvenis centradas no quotidiano onde é
permanente o provisório.
Para crescermos todos, não pode haver certezas nem saberes
absolutos. O imprevisto e a determinação deverão ser nossos
guias. O pai só triunfará como figura parental se mostrar a
sua imperfeição e, sem abdicar das suas convicções, estiver
disposto a ouvir e a discutir experiências. O professor só
terá êxito se de facto ouvir os seus alunos e partilhar o
saber na discussão de dois mundos em mudança, o mundo a acabar
porque não é grande coisa, e o mundo do futuro que não
conhecemos, mas que podemos, em parte, construir.

03/11/96

Escolas 97

Durante o mês de Janeiro ainda podemos fazer planos para


1997? Esperemos que sim. Pela minha parte, queria fazer um
voto para as nossas escolas básicas e secundárias, pelo menos
do 7º ano para a frente. Desejava muito que professores,
pais, estudantes e auxiliares de acção educativa metessem mãos
à obra e discutissem seriamente aquilo que tenho designado por
"dilema nas escolas". Dilema, segundo regras do Dicionário do
Círculo de Leitores, é uma "situação embaraçosa, entre duas
soluções fatais, mas ambas difíceis ou penosas". Vendo esta
definição, pensei que às vezes exagero, porque na maior parte
das vezes conseguimos encontrar alternativas para os problemas
que nos surgem nas escolas.
Não se perde muito, no entanto, se pecarmos por excesso
afrontarmos os problemas sem receios ou ambiguidades.
Que fazer quando um professor é insultado no pátio por um
grupo de alunos? Que atitude tomar quando os estudantes
ameaçam furar os pneus do carro do presidente do Conselho
Directivo? Deve-se fazer um pacto de silêncio quando se vê um
jovem a consumir haxixe, ou pelo contrário denunciá-lo à
família? Devemos ter em conta um ruptura afectiva de um
adolescente quando o avaliamos no final do período, ou as
classificações nada têm a ver com fins de namoro? Se alguém
fala no mau ambiente lá em casa, isso é motivo para acharmos
que há pouco para fazer face a esse aluno? Devemos intervir na
escola perante as demonstrações amorosas dos mais novos?
Como tenho frequentemente afirmado, a escola já não é
apenas um local de instrução. A pouco e pouco, a família
delegou no sistema escolar muitas das funções educativas e
hoje, quer se queira quer não, a sala de aula é, para muitos,
uma última oportunidade de interiorizar regras e de criar um
conjunto de valores essenciais à vida da relação. É por isso
que entendo que é essencial discutir nas escolas questões como
aquelas que acima exemplifiquei. Quando em acções de formação,
solicito aos professores opiniões sobre estes temas, encontro
perplexidades ou respostas muito diversas. Recentemente, a
propósito do comportamento amoroso, uma professora dizia que,
nem sequer de mãos dadas gostava que os alunos andassem, ao
que logo uma colega respondeu "coitados...", um outro
professor interveio a dizer que era tudo um problema de bom
senso (não será que na escola faz falta o senso incomum?) e
uma presidente de um Conselho Directivo a dizer que o tema não
era problemático e que, quando necessário, não se ralava nada
em intervir directamente...
O certo é que estive numa escola em que um elemento do
Conselho Directivo passeava pelo pátio, de mãos atrás das
costas, até espetar um dedo a admoestar um par enlaçado! De
tudo isto, gosto de concluir que teremos de discutir
abertamente estas questões e organizar acções de formação com
todos os intervenientes do processo educativo para, de modo
prático, concluirmos leis gerais para as escolas, de modo a
estabelecer um mínimo de princípios que possam constituir uma
espécie de código de conduta a ser cumprido por todos. Embora
se saiba que muitos valores passam de pais para filhos, há
problemas hoje em grande mutação, que só poderão ser
solucionados na prática learning by doing, costumam dizer os
pedagogos ingleses -- e então a única forma de construir é
exercitá-los na relação com os outros.
Num inesquecível debate em Outubro, em S. João da Madeira,
perante cerca de quatrocentos e cinquenta jovens sentados na
relva, esbocei um momento teatral. Pedi a um rapaz e a uma
rapariga que simulassem um par de namorados e pedi a outro
jovem, com ar mais formal, que fizesse de membro do Conselho
Directivo da escola. Todos os outros assistiam em silêncio a
esta demonstração. De repente, o rapaz-namorado parou a
representação e interpelou-me: "Professor, não está a querer
insinuar que eu vou ter relações sexuais com a minha namorada,
em plena escola?", a que se seguiu uma enorme salva de palmas.
São estes momentos que me fazem ter a certeza de que os jovens
portugueses têm ideias e lutam por valores, mas são também
estas ocasiões que me asseguram a necessidade de trabalharmos
para, em conjunto, construirmos esses valores.
Nas questões que atrás enumerei não poderá haver
unanimidade. Tal não pode justificar o fazer de conta, nem
lamentos terríveis que nada vale a pena neste mundo de fim de
século, como infelizmente alguns pais e professores continuam
a formular. Oxalá o novo ano dinamize a discussão destes temas
e, sem descurar a instrução e o cumprimento possível dos
programas, transforme os estabelecimentos de ensino em escolas
para a vida.

12/1/97

Sobre o diálogo

A reflexão, na sociedade portuguesa, parece caminhar aos


saltos. De vez em quando surge uma questão imediatamente
dissecada pelos analistas habituais (sempre os mesmos...). São
entrevistados, com maior ou menor preparação jornalística, os
intervenientes políticos relacionados com o tema e alguns
cidadãos anónimos. Em regra, os responsáveis respondem que o
assunto está em estudo e que se preparam grandes medidas; os
não responsáveis assacam culpas a quem de momento parece mais
fragilizado ou aparece menos nos media. Passado algum tempo, o
assunto morre, sem que surjam grandes mudanças e, sobretudo,
sem que se produza pensamento, debate ou doutrina que faça as
coisas andar para a frente.
Exemplos recentes ilustram esta situação: o problema das
regalias dos estudantes do Politécnico, o aborto, a
regionalização, o vencimento dos deputados, a corrupção dos
políticos, as urgências hospitalares, a protecção ambiental...
e tantos outros (limito-me a citar sem qualquer ordem). As
questões são afloradas de uma forma episódica, enquanto são
notícia urgente, para depois caírem no esquecimento, até que
nova aresta cortante apareça a incomodar e o assunto volte às
primeiras páginas. O que pretendo dizer é que falta reflexão
sustentada na sociedade portuguesa e, mais do que isso, há
descrença na sua importância e falta de prática desse mesmo
pensar.
Noutra análise complementar, este pessimismo face à
cooperação reflexiva leva rapidamente à ideia de que, se
passarmos rapidamente a agir, o problema fica resolvido.
Sabemos da psicopatologia que muitas situações de risco são
provocadas justamente por este agir não reflectido, aquilo a
que os técnicos de saúde mental designam por "passagens ao
acto". Descortino, infelizmente, alguns sinais desta passagem
ao acto na sociedade portuguesa. Quando são perseguidos jovens
toxicodependentes como se fossem doentes de peste na Idade
Média, quando pequenas comunidades se unem para expulsar
ciganos e queimar a sua futura casa para resolver o problema
da droga (esqueceram-se, se calhar, do ricaço local que lava o
dinheiro em alguma obra de beneficência), quando a população
de Évora vem à rua defender um polícia que só "por acaso" é
que deu um tiro e matou alguém que fugia depois de roubar uma
loja, quando estudantes não concordam com um professor
universitário e acampam na Faculdade impedindo o seu
funcionamento, há três coisas que eu quero concluir.
Quero afirmar, em primeiro lugar, que estão bloqueados os
mecanismos de debate e de participação dos cidadãos na
resolução dos problemas do país. Em segundo lugar, quero dizer
que esse bloqueio leva à descrença generalizada no
funcionamento das instituições e conduz à passagem ao acto que
só aparentemente é eficaz. Por último, a ausência de confronto
de ideias e de reflexão aprofundada abre caminho a soluções de
iluminados, eventualmente mais autoritários.
A recentemente designada crise de segurança constituiu, de
tudo isto, um bom exemplo. Mais uma vez ouvimos falar do
demite não demite, do relatório e do não relatório, do civil e
do não civil. Ao mesmo tempo, lançam-se para o ar palavras
equívocas, como ordem, segurança, protecção dos cidadãos, país
europeu... O que quer isto dizer? Se a segurança é voltar a
bater nos alunos malcomportados e que não aprendem, prender os
jovens que se iniciaram nas drogas, pôr escutas telefónicas ou
ter acesso a ficheiros informáticos, digo desde já que não
quero essa segurança. Se calhar a minha "ordem" também não é
igual à do Dr. Manuel Monteiro, que pensa resolver o problema
do insucesso escolar com mais exames e com professores mais
severos...
Nesta aproximação, acho que a discussão recente à volta do
Ministério é pouco importante. O que temos visto é que os
ministros mudam e os problemas permanecem! Para mim, interessa
discutir que "formação" vai ser dada aos polícias num Estado
dito democrático (mas onde a democracia não se discute); como
posso ter a certeza de que se um jovem beber um pouco mais e
for parar a uma esquadra não é humilhado ou mesmo espancado,
sobretudo se for negro; como posso confiar nos concursos
públicos, sem recear que a influência e o compradio sejam mais
importantes que a prestação ou o curriculum do candidato; como
posso adquirir a convicção de que um ministro ou um
director-geral vão decidir por programa político ou por
convicção, e não por pressão do lobby que lhe acaba de enviar
um fax sobre o tema, ou que na véspera o convidou para jantar
num restaurante badalado.
Para que eu e mais alguns cidadãos nada serenos e desejosos
de intervir possamos ter mais confiança no futuro, é preciso
afinal estimular a diferença entre os portugueses, entre o
governo e oposição, entre ricos e pobres, entre velhos e
novos. Só o confronto de opiniões diversas, só a divergência
discutida e aprofundada tornarão possível a síntese que
garantirá o futuro. É este o "diálogo" que está a faltar.

26/1/97

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