A palavra preguiça é abstrata por natureza.Sou ou já fui ou às vezes sou preguiçoso
ou indolente ou qualquer coisa do tipo.Sou como aquela cobra que devorou um bezerro e descansa ao relento.Para que eu me levante daqui, para que eu assim o faça, seria necessário algo para além da morte de meus iguais. Eu não gosto de fazer o que faço.Não gosto de levantar para pegar um copo do que quer que seja.Não gosto de pedir aos outros que façam nada por mim.Tenho dificuldade em me movimentar.A caneta está a um palmo da minha mão direita.Não consigo simplesmente esticar a tal mão para pegar a referida.Já pensei que isto se desse por causa do calor ou do frio de um dia frio, mas acho que a coisa vem de dentro.Esta paralisia não se dá a partir de um mal-estar físico.Parece que ela vem de onde tem que vir e que, vindo de onde vem, encontra o seu lugar em mim.É uma doença da alma e esta tal doença é trissílaba e tem a acentuação tônica na tal segunda sílaba.A tal segunda sílaba martela os meus tímpanos diariamente como quem martela qualquer pensamento súbito no inusitado de um desmaio. Tão abstrato quanto o tal substantivo preguiça é esta minha dor que é uma dor que vem com o verbo vir de dentro da preposição dentro, deste além que surge e me cumprimenta e vai embora.Estou condenado a vivenciar este luto que me corrói minuto após minuto. A coisa começa com aquela sensação de sono inexplicável.Após horas e mais horas e mais horas de sono, continuo a me sentir sonolento.Estou como se não estivesse em qualquer que seja o lugar.As roupas pesam e não consigo dar um passo sequer.Tenho a exata sensação de que estou a carregar o mundo em meus ombros.Uma bola de fogo enorme se ergue à minha frente.Penso no gênesis, na origem de todas as coisas.Ocorre que não há música em tudo aquilo que se faz à minha volta.Estou tomado por uma espécie qualquer de silêncio maldito.O peso agora é ainda maior.Sinto-me sufocado por este algo que devassa minhas entranhas aniquilando os movimentos do meu corpo.Por vezes tremo intensamente e penso que devo comer algo ou penso em repor aquilo que não pode ser de forma alguma reposto.Como um pouco de sal, penso na importância do potássio para o organismo.Bebo água ou refrigerante ou cerveja ou qualquer outra coisa.Consta que também como em demasia quando este algo em mim se ausenta. A preguiça ou ócio é a mesma neste homem que está com a alma doente no restaurante.Ele sabe que vai ter que pegar aquela faca e não tem a coragem necessária de pedir ao dono ou à garçonete que o auxiliem neste sentido. A tal faca está bem próxima na mesa ao lado.Ele olha consternado para a tal faca indiferente.Ele quer pegar a referida, mas algo o impede.Sente que o suor escorre por dentro de sua camisa de algodão.Sente que este mesmo suor abre caminho pelo lado externo de suas pernas.Ele pode sentir o cheiro já um tanto desagradável que emana de suas axilas.Ele é agora este todo suado que não consegue mexer o tal braço ou a tal mão na direção daquela tal faca que repousa como se estivesse morta. Maurílio Dias, este homem que está sentado neste restaurante e que pesa aproximadamente cento e trinta quilos razoavelmente distribuídos.. A tal garçonete se aproxima lépida e eficiente.Ele a odeia por isto.Ele sabe que ela o quer ajudar.Ela pergunta se ele quer alguma coisa.Ele sempre de cabeça baixa diz que não precisa de nada.Ela não sai dali e isto o irrita ainda mais.Ela pergunta se ele quer algo para beber e ele abana a cabeça negativamente.Ela ainda não sai dali e diz que está à sua disposição.Ela gosta de desafios.Quer provar ao dono do restaurante que tem condições de conquistar a clientela difícil.Ela finalmente se move em direção ao balcão do tal restaurante. Um vento frio invade aquele espaço qualquer.Ele pensa ver a faca levitando em sua direção.Ele se vê fora flanando de uma mesa à outra.Ele pega a tal faca e arranca os guardanapos da mão de todos os outros fregueses e atira o molho vermelho do tal macarrão italiano no rosto dos donos do restaurante e distribui gorjetas para os garçons e garçonetes daquele restaurante e atira a carne ensopada na cara dos fornecedores que ali chegaram para negociar o que quer que seja e suja os banheiros com o que resta das saladas e atira pratos e talheres no chão e arranca a toalha das mesas e as atira para o alto e urina no teto do restaurante para que os pingos se transformem em gotas de ouro e cospe em todas as sobremesas para que todos a consumam desta forma. Ele tem o hábito deplorável de misturar o arroz com o feijão e a farofa.Este monte de qualquer coisa injustificável cresce e pesa ainda mais dentro dele.O bife de segunda agora o fita demoradamente.Ele sabe que precisa esticar o braço para pegar aquela tal faca que está bem ali.Ele tenta fazer o tal movimento, mas algo maior do que ele não permite que isto aconteça.Ele diz para si mesmo que vai mandar uma ordem ao cérebro para que execute este maldito movimento.Ele murmura coisas estranhas e tenta mais uma vez. Seus dedos tamborilam mais do que nervosamente por sobre a mesa.Sua boca repleta daquela água dos famigerados.Ele e o bife que quer ser comido.Ele tenta cortar o bife com o garfo.O tal garfo escorrega e arranha o tal prato e o ruído é cruel.O bife não está num dia feliz.Está duro, mas mesmo assim sabe que vai parar no estômago deste homem que não consegue dar um passo sequer adiante. Ele se lembra que desejava muito o tal tênis preto.Sabia que poucas pessoas poderiam adquirir uma preciosidade como aquela.Ele economizou dinheiro por dois meses. Ele saiu triunfante de casa naquele tal dia.Ele veio descendo a rua até chegar ao tal local com o intuito de comprar o tal tênis.Ele se aproxima mais e mais da loja, mas uma força mais do que estranha o impede de entrar na mesma.