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Publicado no Público

segunda-feira, 13 de Abril de 2009


O filho da antropóloga

Na mensagem que enviou aos iranianos pelo Nowruz - o ano novo persa -
Barack Obama quis assinalar o que havia de comum entre o Irão e os EUA,
dizendo algo como isto: "Vocês celebram esta festa da mesma maneira que
nós fazemos com os nossos feriados, recebendo a família e os amigos,
trocando presentes e histórias, e olhando para o futuro com um sentido de
renovação."

Parece estupidamente simples, mesmo ingénuo. Mas, nos últimos anos, o


Irão tem feito parte do "Eixo do Mal" como os EUA têm sido o "Grande Satã";
o olhar recíproco entre os dois países não passava disto. Qualquer político
sabe que também há interesses mútuos, como a necessidade de estabilizar o
Afeganistão. Obama não começou por aí: ele não é um qualquer político.
Aquilo em que nos formámos é muitas vezes menos importante do que a
maneira como fomos formados. Ora, antes de ser jurista e político, Obama foi
criado por uma mãe antropóloga. Isto é evidente: qualquer pessoa que tenha
o prazer de ler os seus dois livros poderá detectar nele essa influência
fundamental, a que se acrescentou uma infância passada na Indonésia e a
própria experiência de ser sempre "o outro" junto de negros e brancos. O
olhar de Obama é, primeiro instintivamente e depois cultivadamente, o olhar
antropológico. Como vemos no exemplo acima, ele é o observador--
participante que procura aquilo que de elementar se esconde por detrás de
rituais, denominações e realidades complexas.

Isto é tanto mais curioso quanto o olhar antropológico foi talvez o mais
vilipendiado na política dos últimos anos, por causa do seu "relativismo". É
verdade que muita gente olha para as diferenças de cultura como forma de
compartimentar e espartilhar a humanidade, como se os povos se pudessem
selar hermeticamente. Na verdade, chama-se a isso "essencialismo". Mas o
olhar que procura entender os outros colocando-se no lugar deles faz parte de
um relativismo que une, no qual as próprias diferenças são relativas, ou seja,
diferenças de grau mais que de tipo.

Na sua mensagem, por exemplo, Obama referiu-se à "República Islâmica do


Irão", o que em muitos sectores dos EUA é considerado uma capitulação.
Para os neoconservadores não existe tal coisa e há que ser inflexível nessa
opinião, pois para eles inflexibilidade é força. Obama parte de outro
pressuposto: respeitar o outro implica reconhecer-lhe o direito a denominar-
se e isso não diminui em nada a nossa auto-confiança. Só quem se conhece
bem a si mesmo se arrisca a falar a linguagem do outro.

Há que reconhecer que Obama ainda não resolveu nada de fundamental, mas
às vezes dá gosto vê-lo desatar estes pequenos nós cegos. Na sua visita à
Turquia, uma estudante perguntou-lhe sobre a oposição de Sarkozy à entrada
do país na União Europeia e o problema de considerar ou não que houve um
genocídio dos arménios por parte dos turcos - pequenas questões que são
como dinamite política para políticos banais. Obama desenvencilhou-se
tranquilamente e demonstrou como a sua flexibilidade rapidamente se
converte numa arma de força e não de fraqueza.

A resposta sobre Sarkozy e a Europa foi particularmente elegante e


demonstrativa: "É verdade que os EUA não fazem parte da Europa e não nos
cabe tomar uma decisão sobre a entrada da Turquia. Mas isso não me impede
de ter opinião. Reparei que durante os últimos anos os europeus também não
têm sido tímidos ao dar opiniões sobre o que os EUA deveriam ou não fazer.
Não vejo mal nenhum em poder fazer o mesmo".

Touché, senhor antropólogo.

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