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11.05.2009
O mundo invertido*
DENIS ROSENFIELD**
É correto tomar para si bens que não lhes pertencem? Precatórios são direitos dos
cidadãos, resultado de dívidas contraídas pelo Estado por razões alimentares, correções
de planos econômicos e desapropriações, que se transformaram em títulos. Na verdade,
deveriam ser ativos, bens das pessoas, que seriam honrados pelos devedores. Ora, o que
acontece? Os devedores, sobretudo governadores e prefeitos, simplesmente não pagam e
ainda alguns pretendem que nada têm que ver com isso, como se a dívida de
governantes e prefeitos anteriores não fosse deles. Se nada entendem do Estado, jamais
deveriam ter-se candidatado. Alguns ainda pagam quantias mínimas como se estivessem
fazendo um grande favor, quando, na verdade, cumprem apenas uma parte mínima de
suas obrigações.
Isso é equivalente a um particular que aumenta sua dívida sem nenhum limite e depois
diz que não pode simplesmente pagar. Como se chama isso? Roubo? Fraude? Atitude
criminosa? E se os governantes assumem essa posição, são o quê?
Entre outras gracinhas contidas nessa PEC, encontra-se uma que é digna de um
breviário da crueldade. Ela institui o leilão pelo menor preço do bem de um particular.
Precatório é um título, deveria ser um ativo, que dá ao seu detentor o direito de cobrar –
e receber – determinada quantia de um governo ou de uma prefeitura. É uma espécie de
propriedade sua. Digamos que ele tenha direito a R$ 100 mil. Este é o seu bem. Ele
entraria num leilão para receber menos que isso, competindo com outros, igualmente
necessitados, que fariam lances menores. Seria a corrida, cruel, por uma maior
destituição dos seus bens. Imaginem a situação: o lance começaria por 80% de seu valor
para chegar, segundo as estimativas, a 30%. Ou seja, é como se voluntariamente – na
verdade, obrigatoriamente – uma pessoa se dispusesse a jogar pela janela 70% do seu
patrimônio, tendo como retorno uma migalha. O governante fica todo contente com o
pão! É como se tivesse pago a sua dívida. Será que não fica com vergonha? Ainda pode
achar que fez um mau negócio, pois poderia ter chegado a 20% ou, quem sabe, 10%!
Quanto menos migalhas, melhor. Os cidadãos devem aprender!
Outra pérola de “argumento”, se é que esta palavra possa ser usada para a falta de
raciocínio, consiste em dizer que a saúde será desprotegida se os precatórios forem
pagos. O Estado confisca o dinheiro de particulares e diz querer o bem deles. Tomemos
o seguinte exemplo. Não é imaginação minha, mas relato de leitores. Uma pessoa,
acima de 70 anos, acometida de câncer, espera por um precatório para o seu tratamento.
Não tem recursos para arcar com os custos daí decorrentes. O dinheiro não vem. Está
cada vez mais angustiada e o medo da morte se potencializa. Como deve sentir-se essa
pessoa quando lê um artigo ou ouve uma declaração de que o seu precatório não será
pago porque o governo está preocupado com a “saúde”? A repulsa por tais atitudes deve
ser a mais natural das suas reações.
* Artigo publicado em 11.05.09 nos jornais O Globo e O Estado de S. Paulo, republicado pelo
IL com autorização do autor.
** Professor de Filosofia na UFRGS.