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Uma mirada sobre o interculturalismo.

Marcelo Alexandrino da Costa Santos1

(Rio de Janeiro, 2009)

"A espantosa realidade das coisas é minha descoberta de todos os dias.


Cada coisa é o que é. E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, e quanto isso
me basta".
Fernando Pessoa

I. O universalismo artificialmente natural

O ser humano é, por excelência, plural, heterogêneo, desconforme,


multitemporal, e assim são seus agrupamentos, desde a família e as células de inter-
relacionamento mais básicas até aquilo que possamos perceber como sociedades mais
ou menos amplas. É natural, portanto, que o mundo seja cravejado de processos
culturais distintos e legítimos em si mesmos e quando por si só considerados.
A despeito da razoabilidade da afirmação acima, paira sobre as nossas cabeças
uma concepção tão artificial quanto ameaçadora, imposta desde os centros hegemônicos
de poder, que, pregando a unicidade da humanidade e um padrão de racionalidade
global, propositalmente despreza os contextos nos quais os processos culturais se
desenvolvem e trata as diferenças como fatores irrelevantes (e indesejáveis).1
Nesse quadro, a estética cultural global, por assim dizer, é notoriamente
delineada pelos padrões ocidentais, fundados na ditadura do capital como premissa do
sistema de relações sociais, que carimba de irracional, não civilizado e primitivo tudo
aquilo que se distancia dessa “auto-imagem de racionalidade e de universalidade”.2
Despidos de contextualização e postulados aprioristicamente, os ditames sociais,
políticos, jurídicos e culturais do capitalismo colonialista ocidental3 passam a
apresentar-se como universais, metafísicos, eternos e imutáveis; portanto, postos a salvo
de qualquer intervenção humana4.
Essa tentativa de imposição de uma única visão do mundo, como se fosse “a”
natural e universal – e à qual subjaz a teoria de que as relações sociais devem ser
baseadas unicamente no controle do capital sobre a atividade reprodutiva material das
pessoas – apresenta o totalitarismo sob o rótulo da liberdade e, assim, retira dos
indivíduos o sentimento de responsabilidade política e teórica pela tomada de decisões
autônomas e pelas conseqüências das eleições e decisões tomadas de modo
imperceptivelmente influenciado.5
Um ambiente assim esterilizado é de todo acolhedor para correntes de
pensamento como a neoconservadora (“neocons”), que prega idéias - especialmente
ventiladas através dos chamados centros ou reservatórios de conhecimento (“thinks-
tanks”)6 – em cujo centro está a supremacia norte-americana e em relações às quais se
diz não haver alternativas racionais e viáveis em face da globalização.
A propósito dos neocons, afirma-se que “herdaram do trotskismo o princípio da
exportação da ideologia, neste caso, a democracia americana, entendida como
moralmente superior, mas permanentemente ameaçada no mundo contemporâneo”; por
1
Juiz do Trabalho. Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Escola de Magistratura
da Justiça do Trabalho no Rio de Janeiro e Centro Universitário da Cidade. Especialista em
Administração Judiciária pela Fundação Getúlio Vargas. Aluno do Programa de Direitos Humanos e
Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha).
isso, é, para eles, “fundamental manter a coesão e estabilidade internas, e a guerra
perpétua é uma das melhores maneiras de o garantir. A diplomacia é um mero jogo de
distracção, já que os inimigos são definidos por antecipação”.7
A predefinição dos inimigos estabelece uma clara dicotomia: de um lado, a
civilização – pretensamente dotada da mais alta moral, ciência, filosofia, arte, religião e
compaixão; do outro, a simples e primitiva barbárie. Tamanho se diz ser o abismo
cultural entre esses dois pólos, que tudo o que é diferente passa a ser encarado como
constante ameaça à segurança e ao bem-estar do centro do império capitalista. Por isso,
tal como salienta Flores8, Samuel Huntington, um dos grandes expoentes do
neoconservadorismo, propõe a união dos Estados Unidos com a Europa como a única
saída para evitar-se um choque drástico de culturas e garantir a sobrevivência da
civilização e a paz mundial.
No entanto, o pensamento neoconservador não acena para as causas dos
desencontros culturais. Na verdade, o capital, de um modo geral, busca (ficticiamente)
encontrar nos efeitos e nas conseqüências as soluções para seus problemas e
contradições, sem descer ao exame das causas. Justamente por não tocar as causas,
desconecta-se do trabalho como fonte de valor social e não abre espaço para a
divulgação de alternativas de solução que não impliquem ajustes atrelados unicamente
às conseqüências de suas práticas no mundo concreto9.
De outra parte, o contexto em que a divisão entre civilização e barbárie é
definida também não é indicado. Ora, partindo-se da compreensão de que, desde o
ponto de vista cultural, a definição de um contexto importa na identificação de (1) as
diferentes formas de produção de valor, (2) as diferentes posições ocupadas nos
processos de divisão social, sexual, étnica e territorial do ser humano e (3) as diferentes
formas de adaptar-se ou opor-se à produção e extração de valor e aos processos de
exploração, fica claro que a não contextualização limita ou suprime o poder de reação
frente ao entorno de relações em que os indivíduos se encontram, quer para reproduzi-
las, quer para transformá-las.10
Como se vê, o triunfo da ideologia capitalista, com a colonização econômica e
cultural do globo aos moldes norte-americanos e europeus apresenta-se com ares de
fatalismo, de crença de que o mundo assim é e assim será, de inexistência de vias
alternativas. Os indivíduos, então, são contaminados por uma razão indolente – “que
não trabalha, não pensa, não se esforça, acomoda-se na superficialidade das coisas”11 – e
pouco percebem ou se importam com a reprodução de um discurso que visa a dar ares
de cidadania à desculpa
para tanta inércia diante do que podemos chamar de Consenso dos
Insensatos, o conluio de poderes para colocar interesses pequenos
sempre à frente quando se trata de combater os impactos da máquina
de produzir ‘civilização’ descartável, risco ambiental e exclusão social
(SILVA, Marina. Militantes da Civilização. 2008. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200806.htm>.
Acesso em: 18 Jun. 2008).

Ocorre que, tal como aponta Boaventura de Souza Santos, “se o mundo é uma
totalidade inesgotável, cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o
que significa que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes
como totalidades”. Dessa forma, continua, “os termos de qualquer dicotomia têm uma
vida (ao menos) para além da vida dicotômica”. Assim sendo, não faz sentido conceber
o mundo por uma teoria geral – aquela “grande teoria” -, que pressuponha a
monocultura do todo e a homogeneidade das partes12. Há, pois, alternativas e
possibilidades de reação contra a McDonaldização da cultura.
II – Calar, Falar, Dialogar:

Na perspectiva dos direitos humanos, é intuitivo o potencial deletério e


reducionista da intentada monocultural em face das diversas identidades culturais,
sensivelmente as minoritárias, espalhadas ao redor do globo. De fato, a concepção
essencialista, fatalista e universalista de que todos os grupos sociais devam compartilhar
de uma cultura única a nada mais se presta do que a “legitimar a dominação de um
projeto civilizatório, que exclua ou subjugue as minorias culturais”13.
É fato, porém, que, a despeito de qualquer projeto monoculturalista, é evidente
que – notadamente em virtude dos fluxos migratórios e das crescentes e ampliadas
formas de comunicação - o mundo sempre comportou e comportará uma larga
heterogeneidade de identidades, processos e possibilidades culturais passíveis de co-
ocupação espaço-temporal mais ou menos pacífica. Logo, há de se admitir que toda
formação social é sujeita ao multiculturalismo14, isto é, à verificação de que diferentes
identidades culturais podem co-habitar um determinado espaço, independentemente de
se ou como mantêm alguma inter-relação15.
Mas isso não basta: muito embora aceite a demarcação de espaços de resistência,
o multiculturalismo não garante, por si só, a proteção das diferentes identidades
culturais, notadamente as minoritárias, tampouco assegura o estabelecimento de um
diálogo horizontal entre os diferentes grupamentos humanos. A esse propósito, convém
ressaltar que, tal como observa Bringas, o multiculturalismo também é bem acomodado
pela ideologia liberal, uma vez que esta propõe uma aceitação meramente teórica do
heterogêneo16. Assim, a postulação da convivência sem deterioração de diferentes
identidades não exclui a possibilidade de as minorias serem tratadas de modo
discriminatório e desigual, criando-se fragmentações e guetos culturais17, tudo sob a
sombra das asas da propaganda de superioridade do modelo hegemônico e, portanto, da
universalidade dos padrões estadonidense-europacentristas. É justamente diante dessa
possibilidade que a corrente liberal transpõe o foco da resistência das minorias do
direito – cuja garantia de efetivação pressupõe a adoção de políticas públicas - para a
liberdade – que se restringe ao campo individual, sem intervenção estatal18.
É preciso avançar, portanto, para além do multiculturalismo, abrindo uma via de
percepção e atuação mais ampla, na qual as diferenças não sejam postas de lado, mas
mereçam aceitação, respeito, reciprocidade e redistribuição a fim de que se possam
construir cenários nos quais o acesso aos bens materiais e imateriais necessários a uma
vida digna seja franqueado de modo igualitário. Essa via, que remete ao entrelaçamento
mais ou menos polêmico dos grupos, comunidades e identidades que vêm a se inter-
relacionar, “evidencia que las diferencias son o que son y se afirman identitariamente a
partir de intensas relaciones de negociación, de dialécticas conflictivas y errantes, de
escenarios agónicos de donde se destilan e infieren préstanos recíprocas para la
construcción intercultural”19. Está-se diante do interculturalismo, a respeito do qual se
afirma que

Para além da oposição reducionista entre o monoculturalismo e o


multiculturalismo surge a perspectiva intercultural. Esta emerge no
contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social.
Reconhece-se o sentido e a identidade cultural de cada grupo social.
Mas, ao mesmo tempo, valoriza-se o potencial educativo dos
conflitos. E busca-se desenvolver a interação e a reciprocidade entre
grupos diferentes, como fator de crescimento cultural e de
enriquecimento mútuo. (FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo
e interculturalismo nos processos educacionais. Disponível em
<http://www.mover.ufsc.br/html/FLEURI_2000_Multiculturalismo_e
_interculturalismo_nos_pro.htm>. Acesso em: 17 Jun. 2008.)

A abordagem intercultural tem, como se vê, a virtude de se aproximar das


identidades culturais, não desde uma perspectiva ideal segundo a qual os diálogos são
travados ou evitados consensualmente, mas tomando-se em conta, também, as
dificuldades e os conflitos que surgem em função das diferenças, das desigualdades e
das desconexões, para, então, partir para um processo de tradução das diversas visões de
mundo visando a estabelecer diálogos baseados em perspectivas de integração,
participação e conexão - de paz, portanto.

III. Sobre espaços, e pontes, e saberes, e tradução:

Uma teoria crítica da interculturalidade, salienta Bringas, deveria – a fim de


evitar a vitimização dos excluídos e de superar uma compreensão essencialista e
dogmática da alteridade – analisar e diagnosticar os processos das diferenças,

otorgando luz sobre las causas estructurales que hoy coadyuvan a la


creación de dinâmicas de desigual distribuición de los recursos y las
capacidades em una determinada sociedade; de la ausência de
reconocimiento para determinados nichos identitarios, comunidades o
personas; y de la desconexión selectiva de las posibilidades [...] em la
globalización, puesto que es la carência de vínculos y la incapacidad
para estabelecerlos lo que constituye y otorga contenido a la exclusion
hoy (BRINGAS, Asier Martínez de. Ob. cit).

Para que isto se torne possível, é necessário o estabelecimento de condições


espaço-temporais nas quais os diferentes processos culturais possam interagir, dirimir
suas diferenças e propor pautas comuns de ação. É a esses “lugares simbólicos”, nos
quais – em meio a processos de divisão desiguais e injustos – encontram-se diferentes,
plurais e heterogêneas formas de reação e propostas de vias alternativas diante das
relações travadas consigo mesmo, com os outros e com a natureza, que Flores denomina
“espaços culturais”20.
É importante observar que os espaços culturais não são meros observatórios do
determinismo econômico e dos efeitos nefastos dos processos de divisão global sobre a
sociobiodiversidade, mas focos de reação cultural contra o universalismo hegemônico e
a desigualdade no acesso dos diferentes grupos aos bens necessários – de acordo com
seus próprios paradigmas – à vida com dignidade. Para cumprir com esse desígnio,
devem ser ocupados por processos culturais abertos e contextualizados, qualificados
pelo reconhecimento, pela aceitação, pelo respeito e pela promoção do potencial, da
capacidade e da criatividade humana para transformar o mundo a partir das causas de
desigualdade, fugindo, assim, do fatalismo da idéia-mundo que impregna a ideologia
neoliberal.
Como visto, os processos culturais, cada vez menos ilhados21, estão inseridos em
contextos que lhes dão significados próprios. No entanto, não basta a constatação da
inserção dos processos culturais em contextos: é preciso ir além, apoiando-se na teoria,
mas efetivando-a por meio de ações concretas, que potencializem as vontades de
encontro e estabeleçam zonas de contato entre as diferentes identidades culturais.
Afinal, os espaços culturais devem ser marcos nos quais determinadas ações e reações
culturais se manifestam e interagem continuamente com outras ações e reações
culturais, comunicando-se mais ou menos abertamente através de signos que,
justamente porque externos aos paradigmas culturais em confronto, orientam a
explicação, a interpretação e a intervenção nas respectivas realidades.
E aqui surge a imagem da ponte, proposta por Flores22 para ilustrar, por um lado,
que, ao passarmos de uma margem a outra, encontraremos seres humanos com
paradigmas os quais, embora diferentes, são tão culturais quanto os nossos, e, por outro
lado, que a finalidade dessa passagem pode ser de invasão e destruição (processo
colonizador) ou prestar-se ao diálogo, ao compartilhamento das diferenças, à mescla de
elementos culturais e à construção positiva de uma nova realidade (processo cultural).
Portanto, longe de acontecer naturalmente, a construção de zonas de contato e o
estabelecimento do espaço de interação e diálogo produtivos dependerão sempre do
exercício da vontade de encontro, tradução e compartilhamento de processos culturais,
vontade essa que implica a aceitação da discordância, da resistência e da proposta de
alternativas em um plano de igualdade e horizontalidade.
A fim de que a opção pelo diálogo construtivo tenha efeitos práticos, aponta
Boaventura de Sousa Santos que é necessária uma inteligibilidade recíproca entre as
“experiências de mundo” reveladas pela sociologia das ausências – que parte do
reconhecimento de que o que não há é ativamente produzido (desde os centros
hegemônicos de poder) como não existente, para transformar objetos impossíveis em
possíveis e ausências em presenças – e pela sociologia das emergências – que se propõe
a substituir um futuro previsível e linear pela construção de um futuro de possibilidades
plurais e concretas 23. A essa inteligibilidade se chega pelo trabalho de tradução, o qual
incide sobre saberes e práticas e seus respectivos agentes24.
O trabalho de tradução capta os momentos de relação hegemônica entre as
experiências sociais e aquilo que está além dessas experiências25. Entre essas relações
hegemônicas, encontra-se a imposição da visão de saber europa/estadunidensecentrista,
de raízes históricas coloniais, segundo a qual a ciência, à qual é conferido valor
universal, é superior e se contrapõe às demais formas de conhecimento, cuja validez é
apenas particular. Seguindo essa ideologia, os adeptos da superioridade do pensamento
científico menosprezam e desacreditam outras formas de encarar o mundo,
qualificando-as, quando muito, de adjetivos como românticas, exóticas e pré-modernas.
Fecham, assim, as portas à compreensão e à valorização das diferenças, assim como ao
diálogo intercultural e aos processos de colaboração para a produção de conhecimento e
transformação do mundo26.
Para traduzir o saber, é novamente Boaventura de Sousa Santos quem sugere o
exercício da hermenêutica diatópica, prática que, fazendo frente à teoria ocidental da
generalidade ou universalidade, se apóia na impossibilidade de haver uma cultura
completa em si; sendo, pois, incompletas, todas as culturas podem ser enriquecidas pelo
diálogo e pelo cotejo com outras culturas. Observa, contudo, que o trabalho de tradução
pode ocorrer entre saberes hegemônicos e não-hegemônicos, mas também entre
diferentes saberes não-hegemônicos. E é exatamente a tradução e agregação de saberes
não-hegemônicos que carrega o gérmen da construção da contra-hegemonia
Conforme referido, o trabalho de tradução se estende também aos saberes
aplicados, isto é, às práticas sociais e seus agentes, a fim de criar inteligibilidade
recíproca entre formas de organização e objetivos de ação e, a partir daí, tornar possível
avaliá-los e definir eventuais alianças. Também aqui, a articulação recíproca e a
agregação do não-hegemônico (no caso, práticas) é condição para a construção de um
movimento contra-hegemônico ou anti-sistêmico27.
Como é de se intuir, o trabalho de tradução exige um esforço imenso, não só
intelectual, mas igualmente político e emocional. Esse trabalho, que se desprende da
idéia de impossibilidade de uma teoria geral, se inicia com a elucidação das questões
relacionadas a quê, entre quê, quem, como, quando e para que traduzir, esbarrando nas
dificuldades de construção de premissas adequadas à zona de contato (é nessa zona que
premissas de argumentação, nem sempre evidentes aos olhos dos diferentes processos
culturais, tornam-se argumentos), de língua (geralmente, uma das línguas na zona de
contato é imperial) e de silêncios (práticas e saberes articulam palavras e silêncio de
maneira diferente, assim como atribuem a este variados graus de eloqüência).
É certo, porém, que, em que pese hercúleo, o trabalho de tradução oferece uma
alternativa à razão indolente, para – convertido em práticas transformadoras – recobrar
o sentido do mundo retirado pela modernidade ocidental, que pretendeu planificar a
história, a sociedade e a natureza28.

IV. Finis?

A recente aprovação da lei que prevê a detenção e a expulsão de imigrantes


ilegais no âmbito da União Européia – prontamente tachada de “diretriz da vergonha”
mundo afora29 - reavivou a chama do debate sobre o interculturalismo e os direitos
humanos.
Não se pode olvidar que, como assinala Asier Martínez de Bringas, os fluxos
migratórios e a interconexão de comunidades são realidades que “subyacen a todo
proceso histórico humano” e que seu dinamismo “antecipa e incluso condiciona la
creación de los Estados-nación tal y como los conocemos”. Portanto, qualquer proposta
de interculturalidade deve levar em conta os fluxos de migrantes como fenômenos
intrínsecos da globalização30, ainda que esta, também quanto a este tema, descumpra seu
discurso de unicidade da humanidade.
No entanto, a Câmara Européia deixou claro que a lógica da imigração é
invertida na argumentação hegemônica: a migração deixa de ser vista como um
movimento autônomo, para ser encarada como fuga da precariedade estrutural dos
países pobres31 e ameaça para a segurança e a economia dos países de destino. Como
explicar, então, os milhões de nacionais de países que se auto-intitulam “civilizados”
que migram para países “em desenvolvimento” e “subdesenvolvidos”?
Na verdade, enquanto os críticos do colonialismo pregam a transcendência da
visão fechada de sociedade, com o conseqüente reconhecimento de direitos e obrigações
enfeixados no direito de imigrar e, por derivação, do próprio direito de imigrar e tornar-
se membro pacífico de outra sociedade32, a União Européia, a exemplo do que os
Estados Unidos já fazem em relação aos mexicanos e latino-americanos de uma maneira
geral, anuncia abertamente a sua política de discriminação e invisibilização dos
imigrantes.
O cenário descortinado dá razão à advertência de Flores, de que o tempo da
maturidade não há de chegar sozinho e de que os direitos, inclusive aqueles tachados de
humanos e universais, também não funcionam por si sós. Daí a importância do
entendimento dos direitos humanos como resultados de “luchas sociales y colectivas
que tienden a la construcción de espacios sociales, económicos, políticos y jurídicos que
permitan el empoderamiento de todas y todos para poder luchar plural y
diferenciadamente por uma vida digna de ser vivida”33.
E, como se percebe, ainda há muito que lutar para que se conquistem espaços
culturais e se abram caminhos de dignidade em que a liberdade, a igualdade e a
fraternidade deixem o palco teórico dos direitos humanos para se tornarem forças vivas,
positivas e emancipadoras dos indivíduos e das sociedades.

REFERÊNCIAS:
BRINGAS, Asier Martinez de. Interculturalidad em tiempos globales: el reto de
los derechos de las mujeres migrantes. Disponível em
<http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct
>. Acesso em: 17 Jun. 2008.
FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos
educacionais. Disponível em
<http://www.mover.ufsc.br/html/FLEURI_2000_Multiculturalismo_e_interculturalismo
_nos_pro.htm>.
FLORES, Joaquín Herrera. Cultura y derechos humanos: La construcción de los
espacios interculturales. Disponível em
<http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct
>. Acesso: 15 Mai. 2008.
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MATOS, Daniel. No hay saber universal: la colaboración intercultural em la
producción de conocimientos és imprescindible. Disponível em
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<http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decunivdiversidadecultural.doc>.
Acesso em: 19 Jun. 2008.
1
Cf. FLORES, Joaquín Herrera. Cultura y derechos humanos: La construcción de los espacios interculturales.
Disponível em <http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct>. Acesso: 15
Mai. 2008.
2
Idem.
3
A colonização das terras deu lugar à colonização do capital, diante da qual mesmo os Estados soberanos (?) têm seu
espaço dominado por grupos privados.
4
FLORES, Joaquín Herrera. Ob. cit.
5
Conforme observa Boaventura de Souza Santos, “a sociedade capitalista, fragmentada, plural e múltipla, cria campos
de escolha de consumo que dão a impressão de exercício de autonomia e de libertação”. Cf. SANTOS, Boaventura de
Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Disponível em
<http://rodrigofneves.blogspot.com/2007/06/crtica-da-razo-indolente.html>. Acesso em: 16 Jun. 2008.
6
Maurício Santoro esclarece que “a expressão [thinks-tanks] nasceu das salas onde se discutiam planos de guerra e
foram utilizadas para denominar organizações que se dedicam à pesquisa, estudo e consultoria, visando a influenciar a
opinião pública e os líderes políticos americanos”. SANTORO, Maurício. Thinks tanks e a política externa dos EUA.
2007. Disponível em <http://todososfogos.blogspot.com/2007/12/think-tanks-e-poltica-externa-dos-eua.html>. Acesso
em: 11 jun 2008.
7
JRRF. O fim do fim da história II. 2006. Disponível em <http://a-asneirada.blogspot.com/2006/10/o-fim-do-fim-da-
histria-ii.html>. Acesso em: 11 Jun. 2008.
8
Ob. cit.
9
Flores (ob. cit) exemplifica o atrelamento às conseqüências, com o conseqüente desprezo das causas, apontando que o
estabelecimento de reservas ambientais ou humanas se dá em função da destruição imposta pelo controle sócio-
econômico do capital, não levando em consideração o meio ambiente ou os seres humanos que habitam o lugar, em si
mesmo considerados.
10
FLORES, Joaquín Herrera. Ob cit.
11
SANTOS, Boaventura de Souza. Sirva-se um elixir para a democracia. O Estado de São Paulo. 27 Mai. 2007.
Entrevista concedida a Laura Greenhalgh. Disponível em < http://www.estado.com.br/suplementos/ali/2007/05/27/ali-
1.93.19.20070527.10.1.xml>. Acesso em: 30 Mai. 2008.
12
SANTOS, Boaventura de Souza. De las ausências y de las emergênciasal trabajo de traducción. 2006. Tradução
livre, a partir da versão espanhola de autoria de Joaquín Herrera Flores. Disponível em <http://aulavirtual.upo.es:8900/
webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct>. Acesso: 16 Jun. 2008.
13
FLEURI, Reinaldo Matias. Multiculturalismo e interculturalismo nos processos educacionais. Disponível em <http://
www.mover.ufsc.br/html/FLEURI_2000_Multiculturalismo_e_interculturalismo_nos_pro.htm>.
14
FLORES, Joaquin Herrera. Cultura y derechos humanos: La construcción de los espacios interculturales. loc. cit.
15
A co-habitação sem interação de diferentes identidades culturais chamou a atenção do ganhador do Prêmio Nobel de
Ciências Econômicas de 1998, Amartya Sen, que batizou o fenômeno de “monoculturalismo plural”. Em suas palavras:
“having two styles or traditions co-existing side by side, without the twain meeting, must really be seen as plural
monoculturalism. The vocal defense of multiculturalism that we frequently hear these days is very often nothing more
than a plea for plural monoculturalism”. Cf. SEN, Amartya. The uses and abuses of multiculturalism: chili and liberty.
Disponível em <http://www.justiceinitiative.org/db/resource2/fs/?file_id=16713&rand=0.865549884082>. Acesso em:
19 Jun. 2008.
16
BRINGAS, Asier Martinez de. Interculturalidad em tiempos globales: el reto de los derechos de las mujeres
migrantes. Disponível em <http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct>.
Acesso em: 17 Jun. 2008.
17
A propósito, cf. FLEURI, Reinaldo Matias. Ob. cit.
18
Joaquin Herrera Flores (ob. cit.) levanta o problema suscitando a ofensiva neoliberal contra o valor do trabalho, que,
de direito, tem passado a ser evocado como liberdade. A preocupação com tal fenômeno parece estampada na
Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da UNESCO, de 2001, em cujo artigo 11 se lê que “as forças do
mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da diversidade cultural, condição de um
desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto de vista, convém fortalecer a função primordial das políticas
públicas, em parceria com o setor privado e a sociedade civil”. Cf.
<http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decunivdiversidadecultural.doc>.
19
BRINGAS, Asier Martínez de. Ob. cit.
20
FLORES, Joaquín Herrera. Ob. cit.
21
Há, por certo, grupamentos que não desejam contatos externos – e quanto a isso merecem respeito. É o caso, por
exemplo, da tribo indígena recentemente fotografada durante um vôo sobre a floresta amazônica, cuja atitude de
repelência contra os tripulantes da aeronave estampou os jornais de todo o mundo.
22
Cf. Flores, ob. cit.
23
Sociologia das ausências, sociologia das emergências e trabalho de tradução são os pilares sobre os quais Boaventura
de Sousa Santos ergue o conceito de “razão cosmopolita”, que se contrapõe ao de “razão indolente”, anteriormente
referido. Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências.
Disponível em <http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf>. Acesso em: 20 Jun. 2008.
24
SANTOS, Boaventura de Sousa. De las ausências y de las emergências al trabajo de traducción. Ob. loc. cit.
25
Idem.
26
Neste sentido, MATOS, Daniel. No hay saber universal: la colaboración intercultural em la producción de
conocimientos és imprescindible. Disponível em
<http://aulavirtual.upo.es:8900/webct/urw/lc102116011.tp0/cobaltMainFrame.dowebct>. Acesso em: 17 Jun. 2008. A
respeito do trabalho de tradução, o referido autor assinala que “los problemas más difíciles de resolver para desarrollar
formas y experiencias específicas de colaboración intercultural son los “de traducción”. Pero, con esta palabra no aludo
simplemente a los problemas de traducción de palabras e ideas de una lengua a otra, sino a los de visiones de mundo,
sensibilidades y sentido. Los cuales la lingüística nos há enseñado que se expresan en las lenguas, pero no acaban allí y
no pueden resolverse con diccionarios. Son problemas de ‘comunicación intercultural’, sobre los cuales debemos
trabajar cuidadosamente en cada caso y contexto” (Ob. loc. cit).
27
SANTOS, Boaventura de Sousa. De las ausências y de las emergências al trabajo de traducción.
28
Idem.
29
Cf. MISSÉ, Andreu. Nova lei de imigração na EU: Europa fecha o cerco aos sem documentos. El País. 20 Jun. 2008.
Versão em Português disponível em < http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2008/06/20/ult581u2643.jhtm>.
Acesso em: 21 Jun. 2008.
30
BRINGAS, Asier Martinéz de. Ob. loc. cit.
31
Idem.
32
Idem.
33
FLORES, Joaquín Herrera. Ob. loc. cit.

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