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Todas as referncias sero indicadas apenas com o nmero da pgina da obra Corao andarilho, de Nlida
Pion.
Nlida no mundo literrio, hoje maior do que o da maioria dos escritores brasileiros homens,
ela aqui e ali abre um parntese para declarar que no foi fcil, e que a questo do gnero
esteve, sim, presente na sua trajetria. Ao retomar o passado, ela sustenta a pergunta:
Enquanto indago por que as lides da casa, impostas s mulheres, devem me causar mossa?
Por que este destino feminino, sempre ingrato e injusto, quer aprisionar a minha imaginao
feroz? (p. 145) Afirmar que o sucesso absoluto de Nlida fruto do sacrifcio do amor e da
maternidade seria ousadia, mas no podemos deixar de pensar no quanto a glria da escritora
deve absteno da mulher. a prpria Nlida quem atia o desafio: Deus sabe o preo que
paguei pelas contas do rosrio que rezei e pelo atrevimento de existir de forma aventureira
(p. 229).
Corao andarilho traz todas essas questes disfaradas sob a alcunha de memrias,
como se sua inteno fosse to simplesmente relatar acontecimentos e lembranas, e no
suscitar um levante de discusses sociais e metafsicas. primeira leitura, Nlida Pion nos
cansa com sua infncia perfeita, sua famlia amorosa, sua bem-sucedida predestinao
literria e sua linguagem talhada com um primor que beira o pedantismo. Tudo parece ter
corrido bem em seu trajeto, e a obra de sua vida uma linha reta de ponta a ponta, sem
percalos, sem interrupes. Mas um segundo olhar e uma posterior reflexo trazem tona
uma luta que, embora nunca panfletria, emblemtica da mulher nas diversas instncias da
sociedade. Nlida se abstm de determinar o gnero da sua vitria e, tendo superado as
barreiras impostas a sua condio feminina (no seu caso duplamente estrangeira), opta por
deixar todos os louros ao que em verdade deveria estar em primeiro lugar: a vocao.
Isolada do mundo, entendi naquele instante que, ao ter escolhido a literatura, capaz
de suscitar maravilhas e emoes, tambm escolhera o esprio, o srdido, a traio,
a inveja, o engano, tudo, enfim, que me pudesse fazer sofrer. No haveria, pois, de
que reclamar no futuro. A literatura no me deveria nada; eu, sim devia tudo a ela. E
assim tem sido (p. 71).
Corao andarilho
Nlida Pion
Rio de Janeiro: Editora Record, 2009, 347 p.