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“O TEMOR AO DUPLO

E AS PERSONAGENS DA LITERATURA DE HORROR FIN-DE-SIÈCLE”

Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

“(...)Vio su sombra tendida y quieta

en el blanco diván de seda.

Y el joven rígido, geométrico,

com un hacha rompió el espejo.

Al romperlo, un gran chorro de sombra

inundó la quimérica alcoba”

Federico García Lorca – (Suicídio)

Estabelecer paralelos entre a Arte e a Psicanálise nos faz trilhar caminhos


tortuosos. Fato é, que a psicanálise se coloca como uma forma de saber/fazer
singular, “não se situando (epistemologicamente) em continuidade com saber
algum, apesar de arqueologicamente estar ligada a todo um conjunto de saberes
sobre o homem” (GARCIA-ROZA, 1998 ), o que não nos livra das tentações de
aproximá-la das demais formas, buscando, sobretudo como Lacan, aprimorar o
entendimento e a prática desta.

A Psicanálise se estrutura como um campo de saber que não é da ordem


da Religião, mas segue seus próprios “dogmas”; não é da ordem da Filosofia mas
se propõe à uma crítica de seus próprios dogmas, é dogmático-crítica como
definiria Freud (FREUD, 1919). Não é da ordem da Ciência, apesar de um
compromisso com uma verdade, a verdade do sujeito. Também não é a
psicanálise uma categoria artística apesar de ser “um fazer criador que engendra
realidades, ou sentimentos de realidade” e é à noção de “engendrar“ que virei a
me remeter adiante.(KON, 1996) É a criação de realidade fato notório, sobretudo
na beletrística. Nesse espaço entre Ciência e Arte, Lacan propõe, em se tratando
da temática, a preocupação com um “... terceiro que não está ainda classificado,
que se apoia na Ciência por um lado e se inspira na Arte por outro ” (LACAN,
1974)

Pode-se dizer, portanto, que as relações frutíferas que podem ser


estabelecidas entre a Psicanálise e outros campos do saber seriam da ordem da
polifonia (clave intertextual) (HARARI, 1998), onde nos interessam as
“consonâncias” existentes entre estes em prol da teoria e clínica psicanalítica. No
tocante à Arte e mais exatamente a literatura de ficção, essas consonâncias nos
remetem a um aficcionado por literatura que citava longos extratos de Goethe ao
longo de sua obra. Era ele seu herói particular, e a ele, Freud, foi conferido um
prêmio com o nome do poeta. Mérito conferido ao talento literário manifesto em
sua ensaística. Freud atribui ao “Ensaio sobre a Natureza” que hoje sabemos não
ser de Goethe, sua opção pelos estudos médicos (FREUD, 1924-25).

Em se tratando de artistas da pena, além de Goethe, torna-se curioso e


digno de investigação o temor ao duplo (Doppelgängerscheu) expresso por Freud
em carta a Arthur Schnitzler, escritor e dramaturgo, seu contemporâneo (In KON,
1996). Por que duplo? Bom, não eram poucas as semelhanças entre o autor da
1
Traumdeutung e o da Traumnovelle; com seis anos de diferença de idade
Schnitzler era judeu, vienense, médico, “controvertido” e escritor (KON, 1996). Na
carta, Freud afirma seu espanto ao perceber na prosa de Schnitzler, que este trata
de modo intuitivo aquilo que ele mesmo percebe: “...sob a superfície poética, as
mesmas suposições antecipadas, os interesses e conclusões que reconheço
como meus próprios.” Ele continua dizendo tocar-lhe com uma “familiaridade
estranha” (unheimlichen Vertrautheit) “sua profunda apreensão das verdades do
inconsciente, da natureza pulsional do homem, a ruptura das certezas

1
Refiro-me respectivamente à Interpretação de Sonho obra mestra de Freud e à Novela do Sonho de Arthur
Schnitzler. Esta última, um de seus principais romances, foi recentemente filmada por Stanley Kubrik sob o
título de Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados).
convencionais-culturais, o apego de seus pensamentos sobre a polaridade do
viver e morrer...”2 (In KON, 1996).

Mas de que Duplo pode ele estar falando? Bom, o de que falo é o Duplo
trazido em “Das Unheimliche” artigo para qual esse trabalho converge. “O duplo
originalmente era uma garantia contra a queda/ocaso (Untergang) do Eu, um
enérgico desmentimento do poder da morte” (FREUD, 1919a) Isso, ressalta Freud,
é o que se dá originalmente mas, superado o narcisismo primário, este outro volta-
se contra o sujeito de forma assustadora.

Chegamos aqui a um ponto onde não avançaríamos sem mencionar o


advento do eu (je) em vista do estádio do espelho. Ora é no espelho justamente
que temos a entificação do duplo, não seria ao acaso que Freud o cita em sua
experiência na cabina do trem.(FREUD, 1919a). O espelho é o fornecedor da
imago fundamental do eu. Lacan define este estadio como um “drama cujo
impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica
para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, os fantasmas que
se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma que
chamaremos de ortopédica”.3 (LACAN, 1966)

Na ânsia de estruturar sua personagem há algo que resta do sujeito, algo


que retorna engendrado como um estranho, porém é justamente esse “estranho”,
que determina seu ser e fazer.

Vê-se que o duplo, cuja primeira aparição se faz na idéia de alma (FREUD,
1919a) é algo do sujeito que se volta contra ele como horrendo que vem nos
assombrar. Poderíamos dizer que a alma, o duplo tão heimlich (familiar,
doméstico, natal, pátrio), torna-se o fantasma, a assombração, algo umheimlich
(inquietante, sinistro, lúgubre, medonho, numinoso) (IRMEN, 1968).

2
(Ihr Ergriffensein von den Wahrheiten des Unbewußten, von der Triebnatur des Menschen, Ihre
Zersetzung der kulturell-konventionellen Sicherheiten, das Haften Ihrer Gedanken an der Polarität von Leben
und Sterben...) Carta de Freud a Schnitzler em 14 de Maio de1922.
3
É digno de nota, a partir daqui, o fato da Escola Francesa utilizar as palavras fantôme/fantasme
(fantasma) como traducão da Phantasie (fantasia) de Freud.
Cabe ai ressaltar que o processo identificatório passa, primariamente, pelo
Eu ideal (fruto do narcisismo) e, secundariamente, pelo Ideal do Eu (ligado as
figuras parentais, no que aqui nos toca, principalmente ao pai). (ROUDINESCO &
PLON, 1998). O duplo não pode estar isento destas duas instâncias. Em se
tratando das personagens de literatura vemos isto no tão citado Hamlet, no
fantasma de seu pai. Ali estão magistralmente fundidas, a imago paterna e a
própria imagem do príncipe dinamarquês nesta assombração que retorna após a
morte (SHAKESPEARE, 1937). É certo que o fantasma aí não assusta, mas
atormenta.

Num artigo que trata da temática das personagens psicopáticas Freud traz
que “...os heróis são rebeldes que se voltaram contra um Deus.” (FREUD, 1942)
Deus que, em Freud desde Totem e Tabu é o Pai que matamos (FREUD, 1913).
Um engendramento de uma personagem, esse Deus, por que não dizer?
Confortante isso? Talvez num primeiro momento não esqueçamos que “Deus e o
Demônio eram originalmente idênticos, uma única Gestalt - uma figura
posteriormente decomposta em duas com características opostas” (FREUD,
1923). O demônio, pai das figuras de horror, é o anjo caído (que cayó bajo la
repression), pois o unheimlich do duplo é o horror, o estranhamento ao familiar
que foi recalcado.(HARARI, 1998) .Na palavra Unbewußt, Lacan vê o prefixo de
negação un_ como a entificação do reprimido, é o que marca a cisão (LACAN,
1974a).

Sabemos que na neurose, criam-se, engendram-se fantasmas, já o escritor


pela sublimação engendra-os sobre a folha, no caráter e nas atitudes de suas
personagens,. “O artista afastara-se, assim como o neurótico, de uma realidade
insatisfatória para esse mundo da fantasia/fantasma (Phantasie); mas,
diferentemente do neurótico, encontrou o caminho de volta deste para mais uma
vez alcançar um firme apoio na realidade. Suas criações, obras de arte, eram
satisfações de fantasias de desejos inconscientes, da mesma forma que os
sonhos, com os quais tem em comum o caráter de compromisso”. (FREUD, 1924-
25)

O escritor encontra, pôr assim dizer um meio de savoir y faire diverso da


análise para lidar com seus fantasmas. “Como o neurótico, angustiado por seu
sintoma recorre ao psicanalista, assim o escritor, querendo livrar-se dessa placa
retida, começa suas campanhas de redações não implelido, mas atraído pôr pelo
desejo.”(WILLEMART, 1993).

Freud se utiliza da figura do Sandmann o Homem da Areia de E. T. A.


Hoffmann, o precursor da literatura fantástica ou de horror, para abordar o tema do
unheimlich. (FREUD, 1919a) Mas autores britânicos da época criaram entes que
fixaram-se no nosso imaginário de tal forma que não podemos negar sua
importância para a compreensão de nosso psiquismo (STEVENSON, STOKER,
SHELLEY, 1978). A primeira personagem de horror em que vemos as marcar
dessa Spaltung é a figura cindida de Dr. Jekyll & Mr. Hyde de R. L. Stevenson.
Onde o respeitável e exemplar médico oculta em si o temível monstro, capaz das
maiores atrocidades. Esse monstro recebe o nome de Hyde, não pôr acaso,
homófono a hide ocultar em inglês, heimlich halten em alemão – (- If he be
Mr.Hyde, I shall be Mr. Seek.4 - Dr.Jekyll and Mr Hyde, Stevenson}

É o testemunho da cisão que vemos também no misterioso Dracula, the


Un- dead (não-morto) de Bram Stoker. Não só uma personagem, mas um ente
folclórico, este que recalca a morte, é imortal pelo fato de não-viver, mortificando
seu desejo. É o fantasma do obsessivo personificado perguntando “Quem sou?
Estou vivo?” E tendo o desejo condicionado ao contrabando(QUINET, 1991),
sorrateiramente sugando a vitalidade, o sangue, e anulando o desejo do
Outro.(QUINET, 1991) Este nobre conde, atraente, de alta estirpe, encarna na
mesma figura o animal hematófago, asqueroso. É um sedutor-repugnante, um
bruto-civilizado, fascinante-odiável, como a maioria destas figuras da ficção
fantástica o são. Paradoxos estes, que não são incompreensíveis desde a

4
“Sendo ele o Sr. Hyde (esconder), serei pois, o Sr. Seek (procurar)”.
Interpretação dos Sonhos onde Freud diz que no que se refere a categoria de
contrários e contradições, essas tendem a ignorar o “não” combinando contrários
numa unidade (FREUD, 1900). Essa temática é retomada no artigo sobre a
significação antitética das palavras primitivas, o que se manifesta, as avessas, no
unheimlich.(FREUD, 1910).

No Frankenstein de Mary Shelley, no entanto, fez-se uso de duas


personagens, o criador e o monstro, para a polarização. O determinado cientista é
o desaventurado herói, o gênio que cria o monstro bizarro de “corpo esfacelado”
(tal qual nossa identificação imaginaria primitiva)(LACAN, 1966) Pôr falar em
“Monstro” seria interessante uma incursão pela etimologia da palavra . Do latim
temos (FERREIRA, 1873):

Monstro: mostrar com o dedo, ensinar, declarar, manifestar, acusar, delatar,


malsinar, denunciar

Monstrum: o monstro, prodígio, a coisa extraordinária, ou contra a natureza

Monstruosus: deformado

Pois ao longo do romance, o que testemunhamos é o monstro


demonstrando, acusando, incansavelmente a falta, a imperfeição no cientista, tal
qual faz uma histérica com seu amo sobre o qual passa a reinar (QUINET, 1991).
O criador vê-se assujeitado à criação. O que horroriza é pôr fim o que “nos de-
monstra a nós” ainda que sobre o disfarce da alteridade. L’enfer sont les autres (O
inferno são os outros) disse o romancista do existencialismo, talvez poderíamos
inferir que são os non-autres ou, les nôtres, os nossos, nossos próprios
fantasmas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

- FREUD, Sigmund, Gesammelte Werke – Chronologisch geordnet, Frankfurt


am Main ALEMANHA; Fischer Verlag, 1999:

- Band II / III - Die Traumdeutung (1900)

- Band IX - Totem und Tabu (1913)

- Band XII – Das Unheimliche (1919a)

- Band XIII – Eine Teufelsneurose im siebzehnten Jahrhundert (1922-23)

- Band XIV – Selbstdarstellung (1924-25)

- FREUD, Sigmund, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas


Completas; Rio de Janeiro, Imago, 1996

- Volume - VII – Personagens Psicopáticos no Palco (1942 {1905-06})

- Volume – XVII - Sobre o Ensino da Psicanálise nas Universidades (1919)

- LACAN, Jacques - Escritos, Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 1966 [1998]

- LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 2 – O Eu na Teoria de Freud e na


Técnica da Psicanálise, Rio de Janeiro; Jorge Zahar Ed., 1985

- LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 21 – Les Non-Dupes Errent, (Inédito)


1974

- LACAN, Jacques - O Seminário – Livro 24 – L’insu que Sait de l’une-Bevue


s’aile à Mourre, (Inédito), 1974a
- GARCIA-ROZA, Luiz, Alfredo – Freud e o Inconsciente, Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed.,
1998, p.22

- KON, Noemi Moritz – Freud e seu Duplo: Reflexões sobre Psicanálise e Arte,
São Paulo: Edusp, 1996

- HARARI, Roberto – Polifonías del Arte en Psicoanálisis, Barcelona,


ESPANHA: Ediciones del Serbal, 1998

- QUINET, Antonio – As 4+1 Condições da Análise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Ed., 1991

- ROUDINESCO, Elisabeth & PLON, Michel – Dicionário de Psicanálise,


Verbete: “Ideal do Eu” Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., !998

- WILLEMART, Universo da Criação Literária, São Paulo, Edusp, !993 em


Insight, São Paulo, Lemos Ed. Ano X -N° 110 – Setembro de 2000

- STEVENSON, Robert Louis; STOKER, Bram & SHELLEY, Mary – Three


Classics of Horror – Frankenstein, Dracula & Dr Jekill and Mr Hyde, Londres
INGLATERRRA, Penguin Books, 1978

- SHAKESPEARE, William – Hamlet, Londres, INGLATERRA, Penguin Books,


1937
- IRMEN, Friedrich – Langenscheidts Taschenwörterbuch – Portugiesisch
ALEMANHA, Langenscheidt KG, 1988

- FERREIRA, Emmanuelis Josephi – Magnum Lexicon Novissimum Latinum et


Lusitanum, Paris: FRANÇA Emmanuellis Josephi Ferreira, 1873

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