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DOMINGO, 2 DE MAIO DE 2010 O ESTADO DE S. PAULO

Quando a Em decisão inédita, o Superior Tribunal de Justiça

reconhece por unanimidade a legalidade da adoção
Justiça anda de duas crianças por um casal homossexual de
Bagé (RS). Os meninos, de 6 e 7 anos, poderão ser
registrados com os sobrenomes das duas mães
TERÇA, 27 DE ABRIL adotivas. O caso ainda será julgado pelo Supremo.

CRISTIANO LAMEIRA/AE

Do preconceito dãs de um Estado laico, que têm o direito

constitucional ao respeito, sem nenhuma
discriminação.
É no âmbito dos direitos constitucionais

à promoção que a decisão do STJ vem atender a pendên-

cia antiga, não apenas amparando uma famí-
lia constituída por um casal de mães lésbicas

do direito
eseusfilhosadotivos,mas colaborandotam-
bém para combater o preconceito no campo
social, pelo reconhecimento de uma união
que, mais que sociedade de fato, é sociedade
Enquanto texto atribuído a universitários prega de afeto (como elaborado pela advogada e
desembargadora aposentada do TJ-RS Ma-
violência contra colegas gays, o STJ reconhece a ria Berenice Dias). E, na decisão do STF, pas-
legalidade de adoção por casal de lésbicas do RS sa a ser, também, sociedade de direito, no
reconhecimento da adoção homoparental,
que se faz em prol do sentido daquela família
e no interesse daquelas crianças.
Mais ainda, o combate efetivo ao precon-
ROSELI FISCHMANN ceito, que essa medida representa, é gesto
em favor da democracia, que beneficia toda
acidadania,independentemente deorienta-

O
amor homoafeti- ção sexual ou identidade de gênero. Como
vo esteve no cen- Theodor Adorno apurou em suas pesquisas
tro de duas atitu- sobre personalidade autoritária, quem aco-
des radicalmente lhe o totalitarismo e o autoritarismo de to-
opostas em ter- Na lei. Luciana Maidana e Lídia Guterres ganham o direito de adotar duas crianças dos os matizes, e assim fragiliza a democra-
mos éticos e de cia, são as mesmas pessoas que rejeitam a
respeito aos direi- de seu objeto em direção a quem é agredido. esteios da felicidade humana. Ou seja, bus- existência da diferença como fato entre to-
tos humanos. De Ou se poderia dizer que foi aplicada a teoria car compreender os mecanismos de discri- dos os seres humanos (e não do “diferente”,
um lado, radicada do bode expiatório sobre um grupo estigma- minação não pode envolver a justificação de essacategoria quea todos atinge,a depender
no que há de mais tizado. Ou, ainda, poderia ser a evasão de um atitudes de insulto, agressão e violência. do ponto de mirada).
brutal e retrógrado, uma publicação – atri- eventual sentimento de culpa, por projeção. Tantoaimediatarespostadocentroacadê- No caso da agressão, não se sabe ainda
buída a universitários, mas divulgada, na in- Sem contar as dificuldades em lidar com a mico, repudiando o gesto discriminatório e qual será o desdobramento do inquérito ins-
ternet, no mais estrito anonimato dos auto- própria sexualidade, outra hipótese que tem violento,quantoada di- taurado pela Polícia Ci-
res – incitava à violência contra os gays, sem sido aventada em casos de homofobia como reção da faculdade, vil,apedidodaDefenso-
meios-termos. De outro, amparada na ética esse e que, segundo Allport, pode estar na prontamenteinstauran- Compreender os ria Pública, aplicando
e voltada para o avanço histórico, decisão base de diversos tipos de preconceito. do inquérito adminis- nossos preconceitos lei estadual que multa
inédita em nível federal, do Supremo Tribu- O que ensina, então, Allport é que, além de trativo, são importan-
nal de Justiça (STJ), reconhecia a legalidade nãoserfácilutilizarumaúnica teoriaexplica- tes para evitar que se é próprio da formação quem comete homofo-
bia. Mas talvez uma su-
da adoção de crianças por casal homosse- tiva,é relevante lembrarque os mesmos sen- dissemine a agressão da dignidade humana gestão seja que, em vez
xual de Bagé (RS). timentosque podemdirecionarum compor- homofóbica, interna ou de se aplicar uma multa
A grosseria do assim chamado “jornal” in- tamentopreconceituoso,eventualmenterai- externamenteàinstitui- pecuniária, os autores
dica mais que conservadorismo. Ao relem- voso e violento, podem também encontrar ção envolvida. da agressão tenham decumprir serviços jun-
brarseusleitoresdefatovivido anteriormen- encaminhamento apropriado e construtivo. Já os próprios autores voltaram a se mani- to a entidades que defendem direitos de lés-
te, em festa na mesma faculdade, que envol- Que alguém tenha frustrações não justifica a festar, outra vez de forma anônima, dizendo bicas, gays, bissexuais, travestis e transgêne-
veu violência contra estudantes gays, os au- agressão, por exemplo, porque saber lidar que sua publicação seria de “humor escra- ros, forma de receberem a educação que, se-
tores do texto sinalizam o caráter reinciden- com as frustrações, sem a elas sucumbir, é chado”, sem intenção de “divulgar mensa- ja qual for a razão, a escola formal não conse-
te da proposta de agressão para lidar com o ligado ao desenvolvimento humano. Com- gens homofóbicas” ou de (em suas pala- guiu lhes oferecer.
que é alvo de seu preconceito. preender os próprios preconceitos e trans- vras) “insultar a violência”. O erro crasso
Gordon Allport, autor do clássico A Natu- formá-los,semdirecioná-loscomo discrimi- nãoéum detalhe: indicaque, emborauniver- ✽
rezadoPreconceito, hámais de50 anosjá ensi- nação a terceiros, é próprio da formação da sitários, ao não saber a diferença entre “inci- ROSELI FISCHMANN, PROFESSORA DO PROGRAMA
navaacomplexidadedosmecanismos dedis- dignidade humana, na qual não há espaço tar à violência” e “insultar a violência”, são DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA USP, COOR-
criminação,alertandoser difícilque diferen- para“bodesexpiatórios”.Compreendereas- incapazes também de discernir entre sua DENA O NÚCLEO DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HU-
tes casos, verificados na sociedade, possam sumir suas responsabilidades, mais do que própria limitação de compreensão e de in- MANOS DA FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREI-
ser explicados por uma única teoria. Quan- penalizar-se por eventuais culpas, sinaliza o serção social e política e o que pretendem TO DA UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
do o preconceito se expressa em agressão, comportamento ético.Finalmente, estar em que seja “humor”, às custas de ofensiva pro- E É EXPERT UNESCO PARA A COALIZÃO DE CIDA-
podehaveruma frustração quefoi deslocada acordo com a própria sexualidade é um dos moção da violência contra cidadãos e cida- DES CONTRA O RACISMO E A DISCRIMINAÇÃO

Boquinha A revista inglesa Restaurant, que todo ano divulga

os 50 melhores do mundo, surpreende ao rebaixar
nada livre para segunda posição o El Bulli, do espanhol Fer-
ran Adrià. No topo agora está o Noma, de Copenha-
gue, do chef René Redzepi. O D.O.M., do brasileiro
SEGUNDA, 26 DE ABRIL Alex Atala, subiu seis posições, ficando em 18º.

O ranking do estômago
Por que o ‘nada’ precisa ser arbitrado dessa forma espalhafatosa, como se faz no World’s 50 Best Restaurants?

CHRISTIAN CHARISIUS/REUTERS
gar, nem como o Noma, dinamarquês, foi de Esses, quanto mais diversificados, melhor;
CARLOS ALBERTO DÓRIA 3º para 1º. Há muita sutileza nessa movimen- pois vivemos num tempo em que, decidida-
tação, pois como entendera cozinha nórdica mente, a monotonia é o principal inimigo
face aos estranhamentos a que nos acostu- psicológico da vida. E bastaria um roteiro

O
grande público
nãosabequeo res-
taurante de Mi-
chel Bras, um dos
mais inovadores
mestresdamoder-
na gastronomia,
admirado pelos
seus pares, ocupa
a 56ª posição no
ranking dos cem melhores restaurantes do
mundo; escolha feita por cerca de “800 líde-
res internacionais da indústria de restauran-
tes”, divididos em 27 regiões, onde cada uma
possui o próprio comitê, com 31 membros.
O complexo mecanismo de acordo entre
subjetividades resulta na lista anual que vem
se tornando uma espécie de “Oscar da gas-
tronomia” entre nós; ao menos desde que,
há quatro anos, o brasileiro Alex Atala en-
troupara a50ªposição e,agora,foi catapulta-
do da 24ª para a 18ª posição.
Orgulho nacional à parte – é claro que Ata-
la faz grande diferença na nossa autoestima
culinária –, a lista, com seu sobe-desce, con-
ta mesmo para os gourmands do mundo to-
do.Pessoas que,comoescreveu umdos mais
célebres(oescritorManuelVázquezMontal-
bán), amigo do peito de Ferran Adrià, não
passam de verdadeiros “árbitros do nada”.
Sabemosquea gastronomiaéumconheci-
mento gratuito, assim como sabemos que
Alex é o melhor entre nós. Mas não sabemos
explicar como El Bulli caiu de 1º para 2º lu-
mamos, com a “mediterraneidad” de Adrià
estampada na mídia mundial ano após ano?
O que o gourmand encontra no Noma não
está centrado no azeite, foie gras, tomate se-
co e azeitonas pretas do Mediterrâneo, mas,
sim,nos “mexilhões, caranguejos de profun-
didadee lagostinsdas Ilhas Faroé,vivosaté o
momento em que são servidos; halibut, sal-
mão selvagem, bacalhau, algas e coalhada da
Islândia; cordeiro, boi almiscarado, e água
puradaGroenlândia”,dizositedorestauran-
te.Mesmoparaosespecialistasqueoselecio-
naram, deve ser difícil sustentar que ele é
1/50 melhor do que El Bulli.
Pessoalmente,observei alguns movimen-
tos.Fiqueichateado peloMugaritz,de Ando-
ni Aduriz, haver caído uma posição. Comi
muito bem lá, e acho Aduriz um dos chefs
mais interessantes da atual geração. Santi
Santamaría, outro dos bons, que se tornou
adversário ferrenho de Adriá, hoje é aponta-
do, por conta dessas brigas entre iguais, co-
mo um “tradicionalista”. Seu Can Fabes es-
tá em “vergonhosa” 79ª posição. Mas Pierre
Gagnaire, um supervanguardista, cúmplice
dos experimentos de “gastronomia molecu-
lar” do intelectualíssimo cientista Hervé
This... caiu quatro posições! Hoje é “ape-
nas” o 13º e, se não tomar cuidado, ano que
vem poderá levar uma pernada de Alex Ata-
la. Isso tudo quer dizer que não há uma lógi-
ca muito racional nas escolhas.
Aescalaçãoémaiscomplexa doque ocam-
peonatobrasileiro de futebol. Mas, por que o
“nada” precisa ser arbitrado dessa forma es-
palhafatosa, como vem se tornando o The S.
Pellegrino World’s 50 Best Restaurants? Te-
nho um palpite: num mundo tão saturado de
coisas assemelhadas, elas só podem ser ava-
liadasapartirdasposiçõesrelativasqueman-
têm entre si, e mudar de posição atesta que
vivemos num mundo de signos em rotação.
Ninguém tem dúvida sobre o que comerá
numa loja McDonald’s em qualquer parte do
mundo. Mas, numa degustação “às cegas”,
terá dificuldade para dizer em que a comida
do Noma é 50 pontos melhor do que a do
Eleven Madison Park de Nova Iorque, que
subiu para a 50ª posição. Quiçá recorrendo à
lista poderá formar um juízo diferencial.
Talvez o que devesse estar em apreciação
é o juízo dos eleitores, não os restaurantes.
No topo.
Com seu boi
almiscarado e
sua coalhada da
Islândia, o Noma,
de René Redzepi,
assumiu o 1˚ lugar
indicandoum conjuntoderestaurantes para
satisfazer a busca da surpresa. Mas a hierar-
quia também cumpre seu papel.
O ranking é isso: um convite à autoavalia-
ção dos critérios do gourmand, convocado a,
ano a ano, percorrer um céu onde as estrelas
mudam rapidamente de posição. Nesse uni-
verso, ele é desafiado a se alinhar com o con-
senso dos “experts”, saindo do isolamento
do seu “gosto pessoal” – esse arcaísmo que é
uma diretriz moral algo inadmissível na pós-
modernidade: a norma de que “gosto não se
discute”. Só através da discussão onipresen-
tedo gosto é que aimensa máquina da indús-
tria mundial de alimentos vai se mover, de-
pois que o valor da produção seriada cedeu
seu lugar para a produção artesanal. Esses
senhores, que trocam ano a ano de cadeiras,
indicando tendências variadas, renovam a
alma da indústria que se desalmou. Não é à
toa que a Nestlé, por meio da sua marca S.
Pellegrino, é o patrocinador master desse
“Oscar” do refinamento.
Mesmo quem observa de longe, como o
leitor, talvez já olhe com desconfiança o pro-
saico bife com fritas em seu prato, que apre-
ciadesdecriança;surpreende-se,porummo-
mento, no devaneio de se lançar à aventura
infinita dos gostos em mutação.
✽
CARLOS ALBERTO DÓRIA É DOUTOR EM
SOCIOLOGIA E AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS,
DE A CULINÁRIA MATERIALISTA (SENAC)