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MPF VO TATE 0 Se 1 36-601.272 Gustavo Tepedino 3* Edicao Revista e Atualizada Uma tiltima adverténcia se faz indispensdvel. A adjetivacio atribufda ao direito civil, que se diz constitucionalizado, socializa- do, despatrimonializado, se por um lado quer demonstrar, apenas e tao-somente, a necessidade de sua insergio no tecido normativo constitucional e na ordem piiblica sistematicamente considerada, preservando, evidentemente, a sua autonomia dogmitica e concei- tual, por outro lado poderia parecer desnecesséria e até errénea. Se € 0 proprio direito civil que se altera, para que adjetivé-lo? Por que no apenas ter a coragem de alterar a dogmética, pura e simples- mente? Afinal, um direito civil adjetivado poderia suscitar a im- pressio de qué ele proprio continua como antes, servindo os adje- tivos para colorir, com elementos externos, categorias que, a0 con- trério do que se pretende, permaneceriam imutaveis. A rigor, a objecio € pertinente, e a tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta apenas realcar o trabalho érduo que incumbe ao intér- prete. Hé de se advertir, no entanto, desde logo, que os adietivos nao poderio significar a superposicao de elementos exdgenos do direito piblico sobre conceitos estratificados, mas uma interpene- tracio do direito piblico e privado, de tal maneira a se reelaborar a dogmética do direito civil. Trata-se, em uma palavra, de estabele- cet novos pariimetros para a definicao de ordem publica, relendo o direito civil & luz da Constituigéo, de maneira a privilegiar, insista- se ainda uma vez, os valores nio-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personali- dade, os direitos sociais e a justica distributiva, para cujo atendi- mento deve se voltar a iniciativa econémica privada e as situagoes juridicas patrimoniais. Gostaria de concluir esta aula agradecendo a atencio e a pa- ciéncia dos carissimos professores e alunos aqui presentes, com ‘yotos de um proficuo ano académico ¢ deixando para a reflexao de todos, juntamente com este deliberadamente provocativo apelo a uma releitura do nosso direito civil, a invocagao de um irreverente personage, Lord Henry Wotton, de um dos mais irreverentes autores da literatura inglesa, Oscar Wilde: "Our proverbs want rewriting. They were made in winter, and it is summer now.""° 16 "The picture of Dorian Gray” (1890), in Plays Prose Writings and Poems, London, Dent, 1975, p. 126, 2 A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro Sumério: 1. Introducéo: a personalidade como objeto de situacées jurtdicas subjetivas. A configuragao dogmdtica dos chamados di- reitos da personalidade; o debate em torno do objeto do direito. 2. Caracteristicas, classificacaes e delimitagao dos direitos da per- sonalidade, Personalidade e direitos humanos: necessidade de superacdo da dicotomia entre o direito piiblico e privado. 3. Fontes dos direitos da personalidade. Critica as concepedes jus- naturalistas. 4. Teorias pluralista e monista: critica. 5. A insufi- ciéncia das orientagées doutrindrias tradicionais. A pessoa hu- mana como valor unitdrio e sua protecdo integral. A cléusula geral de tutela da personalidade no ordenamento brasileiro. Os direitos da personalidade no Cédigo Civil de 2002. A diversida- de axiolégica das relacdes patrimoniais e extrapatrimoniais. Os chamados direitos da personalidade das pessoas juridicas. 1. Introdugao: a personalidade como objeto de situacées juridicas subjetivas. A configuraco dogmética dos chamados direitos da ersonalidade; o debate em torno do objeto do direito Poucos temas revelam maiores dificuldades conceituais quanto os chamados direitos da personalidade. De um lado, os avancos da 23 tecnologia e dos agrupamentos urbanos expéem a pessoa humana a novas situacSes que desafiam 0 ordenamento jurfdico, reclamando disciplina; de outro lado, a doutrina parece buscar em paradigmas do passado as bases para as solucdes das controvérsias que, geradas na sociedade contemporanea, nao se ajistam aos modelos nos quais se pretende enquadré-las. Com efeito, o direito romano nfo tratou dos direitos da perso- nalidade aos moldes hoje conhecidos. Concebeu apenas actio injuriarwm, a acio contra a injéria que, no espirito pratico dos romanos, abrangia qualquer “atentado & pessoa fisica ou moral do Cidadao”, hoje associado a tutela da personalidade humana! ‘A categoria dos direitos da personalidade constitui-se, portan- to, em construcao recente, fruto de elaboracées doutrinérias ger- minica e francesa da segunda metade do século XIX. Compre! dem-se, sob a denominacio de direitos de personalidade, os dir tos atinentes A tutela da pessoa humana, considerados essenciais sua dignidade e integridade? Em sintese feliz, observou-se que “o homem, como pessoa, manifesta dois interesses fundamentais: como individuo, o interes se a. uma existéncia livre; como participe do consércio humano, 0 1 Ebert Chamoun, Instituigdes de Direito Romano, Rio de Janeiro, Forense, 1951, p. 398. Para uma percuciente andlise da génese e evolucio histérica da tutela da personalidade, desde a antiguidade oriental, v. R. Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 26 e ss CF, ainda, sobre o tema, Elimar Szaniawski, “Direitos da Personalidade na Anti- ga Roma’, in Revista de Direito Civil, vol. 43, p. 28 e ss. e, especialmente, pp. 37638, 2. Para o exame da configurayav dogunéticu dos direitos da personalidade, v. E. H. Perreau, “Des droits de la personnalité”, in Revue trimestrielle de droit civil, 1909, p. 33 es. Fundamental, ainda, no dircito francés, Pierre Kayser, Les droits dea personnalicé: aspects théoriques et pratiques, in Revue trimestrielle de droit civil, 1971, p. 30 € ss. V., também, além das obras ulteriormente referidas 20 longo do texto, Davide Messinett, “Personalita (diritti della), in Enciclopedia del dirito, vol. XXXIII, Milano, Giuffré, 1983, p. 355 ss; Ezio Capizzano, "Vita ¢ integrita fisica (diritto alla)", in Novissimo digesto italiano, vol. XX, Torino, UTET, 1975, p. 999 € ss; e, do mesmo autor, “La tutela del diritto al nome vile", in Rivista di divitto commerciale, 1962, p. 249 ¢ ss.; Adolfo di Majo Giaquinto, “Profil dei diritti della personalita", in Rivista trimestrale di dritto e procedura civile, 1962, p. 69 e s., todos com ampla bibliografia italiana, fran- ccesa e germénica 24 interesse ao livre desenvolvimento da ‘vida em relacdes’. A esses dois aspectos essenciais do ser humano podem substancialmente ser reconduzidas todas as instncias especificas da personalidade” ? Perduraram, todavia, por muito tempo, hesitagdes da doutrina quanto & existéncia conceitual da categoria, expandindo-se dividas no que tange & sua natureza e contetido, bem como no que concer- ne & extensio da disciplina aplicavel. Destacam-se, antes de mais, as chamadas teorias negativistas (Roubier; Unger; Dabin; Savigny; Thon; Von Tuhr; Enneccerus; Zitelmann; Crome; lellinek; Rava; Simoncelli, dentre outros), que, no século passado, refutaram a categoria dos direitos da personali- dade. Afirmava-se, em sintese estreita, que a personalidade, iden- tificando-se com a titularidade de direitos, no poderia, 20 mesmo tempo, ser considerada como objeto deles. Tratar-se-ia de contra- dicdo légica. Segundo a famosa construgao de Savigny, a admisso dos direitos da personalidade levaria & legitimacao do suicidio ou da automutilacao, sendo também elogiiente a objecéo formulada por Iellinek, para quem a vida, a satide, a honra, no se enquadra- riam na categoria do ter, mas do ser, 0 que os tornaria incompati- yeis com a nocio de direito subjetivo, predisposto 4 tutela das relacées patrimoniais e, em particular, do dominio. 3. Giorgio Giampiccolo, “La tutelagiuridica delle persona umana e il cd. diit- toalla riservatezza", in Riv. rrimestrale di diritw e procedura civile, 1958, p. 458. 4 V,, portodos, Enneccerus, in Tratado de Derecho Civil, vol. I, Parte General, Barcelona, Bosch, 1947, p. 307, que aduz aos argumentos deduzidos no texto: "Pero ademas no hay necesidad alguna de reconocer un derecho general de la personalidad, pues los bienes indisolublemente unidos ala persona, como la vida, cl cuerpo, la salud y la liberdad corporal tienen una proteccién absoluta general igual que los derechos subjetivos. En cuanto a otras irradiaciones de le personali- dad, por ejemplo, la libre actuacién de la individuslidad espiritual, el honor, la potencia de trabajo la libertad econémica, Ia esfera privada secreta, etcéters, es Suficiente la proteccién especial eilimitade de estos bienes por el derecho penal, las normas de polica y el derecho civil. La inchusién de un derecho general de la Personalidad entre los derechos subjetivos opondria graves entorpecimientos al desenvolvimiento de otras personalidades y obstacularizaria el progreso.' 5. Tais argumentos sio analisados e rebatidos por Francesco Ferrara, "Trattato i dirto civil italiano" vol. I, Dotrine Generali, Roma, Athenaeum, 1921, p: 5. 2s Conforme registrado em doutrina, “a origem dessa discussio parte da concepcdo de alguns autores que véem os direitos de per- sonalidade como o direito de alguém sobre sua propria pessoa, na evolucdo da idéia do antigo ius in se ipsum. De acordo com esse pensamento, nao se constituem os direitos de personalidade em direitos subjetivos, mas sim em meros efeitos reflexos do direito objetivo, donde ser concedida uma certa protecao juridica a deter- minadas radiacées da personalidade”.° Em outras palavras, nao se considerava a protecio juridica da personalidade revestida dos caracteristicos do direito subjetivo, li- mitando-se 4 reacao do ordenamento contra a les — o dano injus- to —, através do mecanismo da responsabilidade civil. Daf decor- reriam situacées objetivas, nao jé 0 direito subjetivo, figura juridica auténoma e preestabelecida pela lei ou pela vontade das partes, que assegura poderes ao titular néo apenas para protegé-lo contra esGes mas para que possa dispor livremente do préprio direito. Muitas foram as criticas antepostas as teorias negativistas. Ata- cou-se sua premissa. £ que a personalidade, a rigor, pode ser consi- 6 Blimar Szaniawski, Direitos de Personalidade e sua Tutela, Séo Paulo, Rev. dos Tribunais, 1993, pp. 36-37. Ainds o mesmo autor registra o pensamento de ‘Von Tuhr, segundo o qual “nem todos os bens juridicos protegidos pela let de- ‘vem ser considerados como direitos subjetivos e, conseatientemente, a ocorrén- cia de certo fato que é proibido e que produz danos nao pode simplesmente ser tratado como lesio de um direito subjetivo. Pois nesse caso teriamos, disnte da fraude, um direito a verdade, e na hipdtese de falsificagéo, terfamos um direito {8 autenticagio e assim por diante. O titular do direito de personalidade néo ;possui um poder ou dominio semelhante ao titular de‘um direito de propriedade. Nem possui o poder de monopolizar a seu favor alguma atividade licita (...) A vida, 0 corpo, aliberdade de obrar, constituem um estado natural, nfo podendo esses bens ser monopolizados. Também nio podem existir em relacio aos direi- tos de personalidade disposicdes sobre o nascimento, extingéo, reniincia ou transferéncia desses direitos (.) A agressio a tais bens personalissimos, segundo o tratadista alemao constitui ato contrério aos bons costumes". Para Enneccerss, referido ns mesma resenha (p. 39), 0s chamados direitos das pessoas seria um * poder jurfdico de alguém sobre sua propria pessoa”, Devidoa tal entendimento, nega a existéncia dos dircitos de personalidade, admitindo, porém, que “a perso- nilidade humana deve ser protegida na esfera penal através da cominagio de ppenas aos infratores (...) A protecio de reparacio constitui inegavelmente um direito subjetivo; ndo se poderia afirmar, porém, que exista um direito especial ‘que se constitui no chamado direito da personalidade.” 26 derada sob dois pontos de vista. Sob o ponto de vista dos atributos da pessoa humana, que a habilita a ser sujeito de direito, tem-se a personalidade como capacidade, indicando a titularidade das rela- oes juridicas. E 0 ponto de vista estrutural (atinente a estrutura das situacdes juridicas subjetivas), em que a pessoa, tomada em sua subjetividade, identifica-se como 0 elemento subjetivo das situa- oes juridicas. De outro ponto de vista, todavia, tem-se a personalidade como conjunto de caracteristicas ¢ atributos da pessoa humana, conside- rada como objeto de protegio por parte do ordenamento juridico. A pessoa, vista deste Angulo, hé de ser tutelada das agressées que afetam a sua personalidade, identificando a doutrina, por isso mes- mo, a existéncia de situacées juridicas subjetivas opontveis erga omnes.” Dito diversamente, considerada como sujeito de direito, a per- sonalidade nao pode ser dele o seu objeto. Considerada, ao revés, como valor, tendo em conta 0 conjunto de atributos inerentes ¢ indispenséveis ao ser humano (que se irradiam da personalidade), constituem bens juridicos em si mesmos, dignos de tutela privile- giada Nesta direcio, lecionava em 1942 o professor San Tiago Dan- tas: "A palavra personalidade est4 tomada, ai, em dois sentidos diferentes. Quando falamos em direitos de personalidade, niio es- tamos identificando af a personalidade como a capacidade de ter direitos e obrigacées; estamos entéo considerando a personalidade como uum fato natural, como um conjunto de atributos inerentes 8 condicio humana; estamos pensando num homem vivo e nio nesse atributo especial do homem vivo, que é a capacidade jurfdica em outras ocasides identificada como a personalidade”.® 7. Sobre o tema, v. Francesco Carnelutti, "Diritto alla vita privata (contributo alla vita privata)”, in Rivista trimestrale di diritto pubblico, 1955, p. 3 e ss., 0 qual, apés criticar ironicamente as doutrinas negativistas florescidas ne Alema- nha (¢ nao na Italia, "segno del nostro buon senso”...), define o direito da perso- nalidade como um “diritto sul proprio corpo” (ao invés da férmula usual diritto sulla propria persona), “dove la differenza tra corpo e persona risponde alla oppo- Sizione tra il soggetto e oggetto del rapporto”. 8 Programa de Direito Civil, Rio de Janeiro, Ed, Rio (ed. Histérica), I, p. 192. E conclu o mesmo autor, que introduziu o estudo do direitos da personalidade 2 A distingio entre os conceitos de personalidade como objeto ¢ como sujeita de direitos é clarificada pelo Cédigo Civil Portugués, a partir da anilise do art. 70, I, que estabelece a tutela geral da “personalidade fisica ou moral” dos individuos, assim considerada, pela doutrina, como “os bens inerentes 4 propria materialidade e espiritualidade de cada homem”. Remarcou-se que "a personalida- de surge, aqui imediatizada no ser humano e configurada como objeto de direitos e deveres, nao se perspectivando como elemento yualificador do sujeito da relagio juridica enquanto tal, cuja quali- ficagio nos € dada antes pelas idéias de personalidade jurfdica, ou seja, pelo reconhecimento de um centro auténomo de direitos e obrigacdes, e de capacidade juridica, isto é, pela possibilidade juri- dica inerente a esse centro de ser titular de direitos e obrigacées em concreto”.? Adriano De Cupis, em pagina cléssica, afirma que “existem direitos sem os quais a personalidade restaria uma atitude comple- tamente insatisfeita, privada de qualquer valor concreto; direitos tem suas aulas jé em 1942: “Quer dizer que a palavra personalidade pode ser tomada em duas acepgées: nums acepcéo puramente técnico-juridica ela é a capacidade de ter direitos e obrigagées e €, como muito bem diz Unger, 0 pres- suposto de todos os direitos subjetivos ¢, numa outra acepgio, que se pode chamar acepcio natural, ¢ 0 conjunto dos atributos humanos, ¢ ndo é identificé- vel com a capacidade juridica. Aquele pressupasto pode perfeitamente ser 0 objeto de relagées juridicas". O Professor Ebert Chamoun, em suas ligdes acimi- raveis, expe de maneira extremamente clara o tema: "a personalidade pode ser considerada do ponto de vista juridico ou do ponto de vista vulgar. Juridicamen- te, a personalidade ¢ a qualidade da pessoa que em verdade é titular de direito e tem deveres juridicos, mas, vulgarmente, a personalidade um conjunto de caracteristicas individuais, de valores, de bens, de aspectos, de parcelas, que sio realmente dignos de salvaguarda juridica. Quando se diz que ha um direito sub- jetivo da personalidade, nio se esté dizendo que a titularidade coincida com 0 objeto, apenas se esta referindo a certos aspectos da personalidade, tomada a palavra no sentido vulgar, que sio abjetos da personalidade sob o ponto de vista juridico" (aulas datilografadas da Faculdade de Direito da UEG, ano académico de 1965, sem responsebilidade da cétedra) 9 R.Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, cit., p. 106, 0 qual ressalva: "Todavia, os institutos da personalidade e da capacidade juridicas inter- penetram-se, sem se confundirem, com o bem da personslidade humana juridi- camente relevante, na medida em que os valores jurdicos que aqueles insitutos incorporam sio reabsorvidos também no ber juridico da personalidade, enquan- to objeto da tutela geralreferida.” 28 desacompanhados dos quais todos 0s outros direitos subjetivos perderiam qualquer interesse para o individuo: a ponto de chegar- se a dizer que, se esses nao existissem, a pessoa nfo seria mais a ‘mesma, Séo esses 0s chamados direitos essenciais”.!° Jé Francesco Ferrara, no inicio do século, admitia a existéncia dos direitos da personalidade associando, para tanto, o conceito de direito subjetivo ao respeito pelo ordenamento da incidéncia da vontade do sujeito sobre a tutela do interesse, No direito subjetivo aalayanca do mecanismo de protecio é colocada nas mios do titu- lar. Este pode, na imagem oferecida por aquele autor, movimenté- Ja no seu interesse quando quiser.'! Assim € que a doutrina predominante, a partir dos anos 50, admitiu a existéncia dos direitos subjetivos atinentes a personalida- de, embora bastante apegada, como adiante se demonstrara, a0 modelo dos direitos subjetivos patrimoniais, e em particular & pro- priedade."” Admitido que a personalidade possa ser objeto de direito, dis- cutiu-se se estes direitos subjetivos incidem sobre a prépria pessoa — ius in se ipsum —, j& que todo homem € considerado como unidade fisica e moral, ou sobre parte ou algumas partes dela; ou, 20 contrério, se incidiriam sobre objeto externo, fora da prépria pessoa, constituindo numa obrigacio negativa geral.!? 10 I diritti della personalita, Milano, Giuffré, 1950, pp. 18-19. No original: "Vi sono certi diritti, vale a dire, senza dei quali le personalita rimarrebbe un'attitu- dine completamente insoddisfatta, priva di ogni concreto valore; diritti, scom- pagnati dai quali tutti gli altri diritti soggettivi perderebbero ogni interesse ris- pettoall’individuo: tanto da arrivarsia dire che, se essinon esistessero, la persona non sarebbe pit tale. Sono essi{ ed. ‘diritti essenziali’, con cui si identificeno precisamente i diritti della personalita.” 11 Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, cit., p. 388 e ss., eem particular pp. 396-397, onde demonstra magistealmente a autonomia dos direi tos da personalidade. 22 Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. VIL, Sio Paulo, Revista dos Tribunais, 1983, p.5, observa: “a imediata influéncia do instituto da proprie~ dade, em tempos que conheceram a servidio e a escravidio, concorria para que se pensasse em propriedade, sempre que se descobrie serem absolutos os direitos fem eausa. Ainda no século em que vives, juristas de prolresistiram a tratar a integridade psiquica, a honra e, até, a iberdade de pensamento como direitos’ 13 Sobre o tema, v., por todas, R. Capelo de Sousa, © Direito Geral de Perso- nalidade, cit., p. 106 ess. 29 Na ligao de Orlando Gomes, “em Direito, toda utilidade, ma- terial ou nfo, que incide na faculdade de agir do sujeito, constitui um bem, podendo figurar como objeto de relagao juridica, porque sua nocio é hist6rica, e no naturalistica. Nada impede, em conse- qiiéncia, que certas qualidades, atributos, expresses ou projecdes da personalidade sejam tuteladas no ordenamento juridico como objeto de direitos de natureza especial”. Segundo o mestre baiano, os direitos da personalidade “recaem em manifestacdes especiais de suas projegdes, consideradas dignas de tutela juridica, principal- mente no sentido de que devem ser resguardadas de qualquer ofensa, por necesséria sua incolumidade ao desenvolvimento fisico e normal de todo homem”.4 Afirmou-se que os direitos da personalidade “séo os direitos supremos do homem, aqueles que garantem a ele a fruicéo de seus bens pessoais. Em confronto com os direitos a bens externos, os direitos da personalidad garantem a fruigao de nés mesmos, asse~ guram ao individuo a senhoria da sua pessoa, a atuagao das préprias, forcas fisicas e espirituais”.!5 O debate, portanto, como se depreende do tiltimo excerto, ressente-se da preocupacio exasperada da doutrina em buscar um objeto de direito que fosse externo ao sujeito, tendo em conta a dogmitica construida para os direitos patrimoniais. Em outras pa- lavras, a propria validade da categoria parecia depender da indivi- duacdo de um bem juridico — elemento objetivo da relacéo juridi- ca — que nfo se confundisse com a pessoa humana — elemento subjetivo da relagao juridica —, j4 que as utilidades sobre as quais 14 Introduedo ao Dircito Civil, Rio de Janciro, Forense, 1996, 12° edit, p 151, Em outro passo (Novos Temas de Direita Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1983, p. 254), acrescenta Orlando Gomes: "é 0 direito da pessoa humana a set respeitada e protegida em todas as suas manifestagSes imediatas dignas de tutela juridica, assim como na sua esfera privada ¢ intima. Na sua concepcio, esse direito geral de personalidade é o fundamento de todos os direitos especiais da personalidad, logicamente antecedente e juridicamente preferencial” 1s Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile italiano, cit., p. 389. Na mesma esteira, no direito pitrio, Anacleto Faria, Instituigoes de Direito, Sao Paulo, Re- vista dos Tribunais, 1972, 2" edicio, p. 293, os designava como direitos persona lissimas, definindo-os como “aqueles que t8m por objeto a propria pessoa do sujeito, considerada em seu todo, ou em alguns aspectos, prolongamentos ou projecoes da mesma’ 30 incidem os interesses patrimoniais do individuo, em particular no direito dominical, Ihe sio sempre exteriores. ‘A dificuldade de individuacao do bem juridico objeto dos direi- tos da personalidade revela-se na licio de Ferrara, para quem “nos direitos absolutos 0 objeto nao é a res, mas os outros homens obri- gados a respeitar o seu exercicio”. Assim sendo, os direitos da per- sonalidade “tém por contetido a pretensio de exigir respeito de tais bens pessoais. A vida, o corpo, a honra, sio o ponto de referéncia (termine di riferimento) da obrigacao negativa que incumbe & cole- tividade”.!° ‘A matéria é magistralmente enfrentada por Giampiccolo, se- gundo 0 qual a utilidade juridicamente protegida nao se confunde com o dever geral de abstengio (necessario 4 sua conservaga0, nao ja a sua constituicao), identificando-se "con U'essere e le condizioni essenziali dell’essere ed @ quindi acquisita e intriseca al soggetto per ragione di natura”. Dai decorreria 0 equivoco dos autores que con- sideravam estranho 8 pessoa o ponto de referéncia da relacio juri- dica (postulado que, segundo 0 mesmo autor, acarretaria um direi- to sem objeto ou a negativa de direito subjetivo). E remata, de- monstrando que a separacio entre 0 sujeito e o objeto do direito é postulado Iégico quando o interesse protegido dirige-se a uma uti- lidade externa, tal qual ocorre nas relagdes juridicas patrimoniais. Entretanto, a regra no se adapta definitivamente & categoria das relacées juridicas néo-patrimoniais.!” 16 Francesco Ferrara, Trattato di dirito civile italiano, cit., p. 395. V., ainda, a tentativa de esclarecimento proposta por Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, vol. VI, cit., p. 7: "a) no suporte fictico de qualquer fato juridico, de ‘que surge direito, hi, necessariamente, algums pessoa, como elemento do supor- te; b) no suporte factico do fato juridico de que surge direito de personalidade, © elemento subjetivo € 0 ser humano, e nao ainda pessoa: a personalidade resulta dda entrada do ser humano no mundo juridico.” 1 Giorgio Giampiccolo, La tutela giuridica della persona wnana e ile.d. dritto alla riservatezza, cit., pp. 465-477: “@ naturale che, dove oggetto di tutela @ essere stesso della persona, epper® una condizione di utilita che non implica relazione alcuna com un bene esterno, la prospettiva debba mutare; e diviene allora una necessita logica riconoscere che qui, per la speciale natura dellinteres- se protett, @ propria la persona a costtuire, al rempo stesso che il soggett ttolare del dirito, il punto di riferimento oggettivo del rapporto. Non 8 gia che con questo si pretenda dividere U'uomo in due aspetti (io non ia); si tratta di accerare semmai il concetto, niente affatto contradditorio e in tutto aderente alla realta, di 31 2. Caracteristicas, classificagdes e delimitagao dos chamados di- reitos da personalidade. Personalidade e direitos humanos: ne- cessidade de superagio da dicotomia entre o direito piiblico e privado ‘A preocupagio com a pessoa humana, surgida com as declara- Goes de direitos, a partir da necessidade de proteger o cidadao Contra o arbitrio do Estado totalitirio, limitava-se, por isso mesmo, A tutela conferida pelo direito pablico a integridade fisica ea outras garantias politicas, no existindo nas relacdes de direito privado um sistema de proteco fora dos limites dos tipos penais. Durante o liberalismo, 0 individuo no encontrava limites nas relagées juridicas patrimoniais, cuidando o direito privado basica- mente de estipular garantias para que o dominio fosse exercitado sem ingeréncia externa} e para que a transferéncia de riqueza (da propriedade, portanto) pudesse ter livre curso mediante a discipli- na dos contratos. A lesio a integridade das pessoas era matéria do direito piiblico, que asseguraria, com o direito penal, a repressio 10s delitos. Na medida em que a pessoa humana torna-se objeto de tutela também nas relagées de direito privado, com o estabelecimento de direitos subjetivos para a tutela de valores atinentes 4 personalida- de, trataram os civilistas de definir a sua configuracao dogmitica, delineando-se um direito iluminado pelo paradigme do direito sub jetivo privado por exceléncia, 0 direito de propriedade. Cogita-se, nesta esteira, que tais direitos pertencem a categoria dos direitos privados.exatamente porque “a Vida, a integridade fisi- ca, a honra, a liberdade, satisfazem aspiragdes e necessidades pr6- prias do individuo em si mesmo considerado, ¢ inserem-se, portan- to, na esfera da uilitas privada”, Ao lado de tas direitos subjetivos privados conviveriam, assim, os direitos subjetivos piblicos, tam- bém chamados direitos civis, os quais atenderiam as aspiracoes do individuo em face do Estado, para protegé-lo das opresses oriun- das da coletividade estatal, “cujo objeto seria sempre 0 mesmo, embora diversificado nas suas manifestacées”.'® Quando 0 ordena- tuna duplice rilevanza formale dello stesso elemento, in relazione al diverso angolo visuale dal quale volta a volta pud procedere Vanalisi; a parte subiecti, a parte obiecti" 18 Adriano De Cupis, I diritti della personalita,cit.,p. 27. 32 mento considerasse que certas necessidades do homem possuem caracteristicas tais a justificar a protecio do direito privado, além daquela que a ordem pablica oferece para a tutela da pessoa huma- na, estabeleceria 0 respectivo direito subjetivo privado. Daf considerar-se que “os direitos humanos sio, em principio, ‘os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do individuo em relagéo ao direito pablico, quando desejamos prote- gé-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos da personalidade, sem diivida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o angulo do direito privado, ou seja, relagées entre particulares, devendo-se, pois, defendé-los frente aos atentados perpetrados por outras pessoas.” Assim sendo, considerados como direitos subjetivos privados, 0s chamados direitos da personaljdade possuem, como caracteris- ticos, no dizer da doutrina brasileira especializada, a generalidade, a extrapatrimonialidade, 0 cardter absoluto, a inalienabilidade, a imprescritibilidade e a intransmissibilidade.”” A generalidade significa que esses direitos sio naturalmente concedidos a todos, pelo simples fato de estar vivo, ou pelo s6 fato de ser. Por isso mesmo alguns autores os consideram como inatos, terminologia que, todavia, mostra-se por vezes dribia, jé que, como se ver adiante, suscita a conotacio jusnaturalista, adotada por al- guns autores, no sentido de que tais direitos preexistiriam & ordem juridica, independentemente, portanto, do dado normativo. A ex- trapatrimonialidade consistiria na insuscetibilidade de uma avalia- Gio econémica destes direitos, ainda que a sua lesio gere reflexos econémicos.”! Sao absolutos, ja que oponiveis erga omnes, impon- 19 Fabio De Mattia, "Direitos da Personalidade II", in Enciclopédia Saraiva, vol. 28, Sio Paulo, Saraiva, 1979, p. 150, que invoca, em apoio 8 sua posico, 0 atendimento de Arturo Valencia Zea, Alex Weil Jean Carbonnier © Orlando comes, 20 V., por todos, Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade, Sio Paulo, Saraiva, 1986, p. 12 e ss., que os designa como direitos personalfssimos. 21 Sobre esta especifica caracteristica, ef, na doutrina estrangeira, a ligio de Adriano De Cupis, I diritti della personalita, cit. p. 28: "L'oggetto dei diritti della personalita essendo wn modo di essere fisico 0 morale della persona, bem s'intende come ess0 mai contega in se stesso una immediata utlita d'ordine eco 33 do-se & coletividade o dever de respeité-los. A indisponibilidade retira do seu titular a possibilidade de deles dispor,”? tornando-os também irrenuncidveis e impenhordveis; e a imprescritibilidade impede que a les3o a um direito da personalidade, com o passar do ‘tempo, pudesse convalescer, com o perecimento da pretensio re: sarcit6ria ou reparadora. Finalmente, a intransmissibilidade consti- tui caracteristico controvertido, estando a significar que se extin- guiria com a morte do titular, em decorréncia do seu carter perso- nalissimo, ainda que muitos interesses relacionados & personalida- de mantenham-se tutelados mesmo apés a morte do titular.” nomico. La vita, Vintegeita fisica, Ia liberta e cosi via dicendo permettono al soggetto di conseguire altri beni muniti di wilitd economica: ma non possono né identificarsi né confondersi con questi altri beni. Quando viene leso wn diritio della personalita, sorge nel soggetto un diritto al risarcimento del danno, rivolto a ‘garantirgli il tantundem di que Beni che Uoggetto del dirritto leso era in grado di Jargli conseguire. L’equivalenca tra il divitto al risarcimento del danno e il diritto leso della personalita é wna equivalenza di carattere indiretto: Vequivalenza tra i diritti non pud essere che un riflesso dell’equivalenza tra i rispettivi oggeti; ed equivalenza non sussiste direttamente tra la somma di danaro attribuita a titolo di risarcimento ¢ la vita, U'integrita fisica e via dicendo, ma bensi tra quella e i beni che quest ultime possono far conseguire al soggetto.” 22 Da indisponibilidade deriva o intenso debate sobre alicitude dos atos lesivos a0s direitos da personalidade praticados com o consenso do interessado. Sobre 0 ponto, v., ainda, Adriano De Cupis, I diritti della personalita,cit., p. 50, para ‘quem nao existe um principio geral de invalidade de tais atos, os quais, embora ppor vezes reprimidos pelo ordenamento, ndo necessariamente afetam a ordem piiblica, refletindo um aspecto particular e mais modesto da faculdade de dispor. 23, Diogo Leite de Campos, Ligdes de Direitos da Personalidade, cit., p. 43, observa que, embora a morte eesse a personalidade, “a doutrina as leis, os juizes, afirmam a permanéncia, depois da morte, de um certo ntimero de interesses ¢ dos direitos respectivos: o dircto & sepultura e & sua protecio; 0 direito a0 seu cadaver e de decidir 0 seu destino; o direito 8 imagem que ‘era’, e também o direito a imagem do cadaver; o direito ao nome; 0 direito moral do autor; etc”. Dai ter o Cédigo Civil Portugués, no art. 71, previsto que os direitos da persor lidade so protegidos depois da morte do seu titular, tendo legitimidade para pedir « sua protecio, o cénjuge € qualquer descendente, irmio, sobrinho ou herdeiro do falecido. Comentando o dispositive, aquele autor portugues leciona que “Os parentes e herdeiros do falecido nao defendem um interesse préprio (0 que € evidente, por exemplo, tratando-se da defesa de um nome que nfo € usado pelo que o defende) mas sim um interesse do defunto", E remata: “Assim a personalidade juridica prolonga-se, é ‘empurrada’, para depois da morte u A tais caracteristicos ha quem acrescente, especificamente, a essencialidade e a preeminéncia dos direitos da personalidade em relacdo aos demais direitos subjetivos, em funcio da peculiaridade do seu objeto.” Estabelecidos os seus contornos, os civilistas em geral preten- dem classificar os direitos da personalidade, embora nao sejam suficientemente convincentes os critérios cientificos adotados e a importincia prética de tais partigGes.”* De toda sorte, costuma-se distingui-los em dois grupos: os direitos integridade fisica e os direitos integridade moral. No primeiro grupo situam-se o direito A vida, o direito a0 proprio corpo ¢ 0 direito ao cadaver. No segun- do, encontram-se 0 direito a honra, o direito a liberdade, o direito ao recato, 0 direito a imagem, o direito ao nome e o direito moral do autor. Este conjunto de direitos decorre da previsio constitucional, do Cédigo Civil e das leis especiais que, pontualmente, fornecem ele- mentos normativos capazes de permitir sua configuracio dogmética. Vale registrar, a titulo exemplificativo: o art. 5°, X, da Constituigao da Republica, segundo 0 qual “sao invioliveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a inde- nizacio pelo dano material ou moral decorrente de sua violagio”; 0 art. 220, também do texto maior, que assegura a liberdade de “ma- nifestagao de pensamento, a criacdo, a expressio e a informacao, sob qualquer forma, processo ou veiculo”, em conformidade com o art. 5°, IVe V, do rol das garantias fundamentais; a Lei n® 9.434/97 (mo- dificada pela Lei n° 10.211/2001) que, respondendo ao comando do art. 199, § 4°, da Constituicdo, regula o transplante de Grgios; o art. 5°, XXVII e XVIII, da Constituigao e a Lei n° 9.610/98, que disci- plinam os direitos morais do autor; os arts. 54 e ss. da Lei n° 6.015/73, que fixam a normativa do direito ao nome. 24 Adriano De Cupis, I diritti della personalita, cit, p. 22, pare quem 0 sew objeto apresenta duas caracterfsticas distintivas (ressaltando-se a sintomética referéncia & senhoria): "I) si trova colla persona in un nesso strettissimo, cosi da Dotersi dire organico; 2) si identifica, trai beni suscetbili di signoria giuridica, on quelli pit elevati 2. Milton Fernandes, Os Direitos da Personalidade, cit., p. 145, passa em revis- {a as diversas classificagdes propostas pela doutrina, as quais, segundo leciona, ‘io tém bases s6lidas de apoio nem produzem resultados site's 26 Orlando Gomes, Introdugao ao Direito Civil cit, p. 153. 35 Sublinhe-se, ainda, que o Cédigo Civil de 2002 dedica um ca- pitulo aos direitos da personalidade, em dez artigos, do 11 ao 21. Ne esteira de disposicdes semelhantes dos arts. 5 a 10 do Cédigo Civil italiano, encontram-se ai enunciados os direitos 8 integridade fisica, 0 direito ao nome, a protecdo 2 honra, A imagem e & privaci- dade. Os atos de disposigio do corpo so vedados quando ocasionam uma diminuigdo permanente da integridade fisica ou quando sejam contrarios aos bom costume. Ressalva-se, contudo, a hipétese de necessidade médica, como no caso da cirurgia de mudanga de sexo.” © Cédigo protege ainda a autonomia do paciente, no caso de tratamento médico ou intervengao cirtirgica com risco de vida (are. 15). ‘Atutela do nome e do pseudénimo, que deve ser entendida na acepcio mais abrangente de um direito a identidade pessoal, & afirmada nos artigos 16 a 18. Jé 0 direito a imagem e o direito a honra foram misturados na confusa redagao do art. 20, contra a tendéncia doutrinéria e jurisprudencial de reconhecer autonomia ao direito 4 imagem.”” Junte-se a isso, a infelicidade do dispositivo, ao estabelecer a administracdo da justica e a manutencio da ordem piiblica como os tinicos casos em que se justifica a utilizagéo da imagem de uma pessoa sem sua autorizacdo. Tais critérios no en- contram amparo constitucional, motivo pelo qual jé se observou, em doutrina, que para evitar a declaragio formal de inconstitucio- 27 Resta pacificado o entendimento de que a cirurgia de transgenitalizagdo rea- Tizada em transexuais tem afinalidade terapéutica de corrigir a chamada “disforia de género”, quando 0 sexo psicol6gico do paciente nao é condizente com seu fendtipo, como determina a Resolugio n. 1.652/2002 do Conselho Pederal de Medicina. Sobre o tema, v. Ana Paula Ariston Barion Peres, Transexualismo: 0 direito a uma nova identidade sexual. Rio de Janeiro, Renovar, 2001. 28 Eo que ressalta Maria Celina Bodin de Moraes em seu artigo tutela do nome dda pessoa humana, in Revista Forense, vol. 364, 2002, pp. 217 e ss. 29 Esta tendéncia foi consolidada no julgamento, pela Segunda Secio do STI, ‘em 25.12.2002, dos Embargos de divergéncia em REsp 230268, quando o Minis t10 Salvio de Figueiredo Teixeira destacou: "Néo ha como negar a reparacio 3 autora, na medida em que a obrigacio de indenizar, em se tratando de direito & imagem, decorre do préprio uso indevido desse direito, ndo havendo, ademais, que se cogitar de prova da existéncia de prejuizo. Em outras palavras, o dano é a prépria utilizagdo indevida da imagem com fins lucrativas, sendo desnecessério perquirir-se a conseqiiéncia do uso, se ofeasivo ox néo’ 36 nalidade do dispositive hé de se utilizé-lo somente em situacéo excepcional, para a proibicio prévia de divulgacées “quando seja possivel afastar, por motivo grave e insuperdvel, a presuncao cons- titucional de interesse piblico que sempre acompanha a liberdade de informagio e de expressao”.” Duas cléusulas gerais so veiculadas nos arts. 12 ¢ 21. O artigo 12 prevé a possibilidade de cessio de ameaca ou da lesio a direito da personalidade (a chamada “tutela inibitoria”) e 0 ressarcimento pelos danos causados..! Nos termos do art. 21, “a vida privada da pessoa natural € inviolével, e o juiz, a requerimento do interessado, adotaré as providéncias necessérias para impedir ou fazer cessar ato contrério a esta norma”. ‘Ambos os dispositivos, lidos isoladamente no ambito do corpo codificado, nao trazem grande novidade, sendo certo que os dispo- sitivos constitucionais mencionados jé traziam previso geral a esse respeito. Os preceitos ganham contudo algum significado se inter- pretados como especificacao analitica da cléusula geral de tutela da personalidade prevista no Texto Constitucional no art. 1°, III (a dignidade humana como valor fundamental da Reptblica). A partir dai, deveré o intérprete afastar-se da ética tipificadora seguida pelo Codigo Civil, ampliando a tutela da pessoa humana nao apenas no sentido de contemplar novas hipSteses de ressarcimento mas, em perspectiva inteiramente diversa, no intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos previstos pelo legislador codificado. A rigor, as previses constitucionais e legislativas, dispersas e casufsticas, nao logram assegurar & pessoa protecdo exaustiva, ca- paz de tutelar as irradiacées da personalidade em todas as suas possiveis manifestacdes. Com a evolucio cada vez mais din&mica dlos fatos sociais, torna-se assaz dificil estabelecer disciplina legisla- tiva para todas as possiveis situacdes juridicas de que seja a pessoa 30 Lufs Roberto Barroso, "Colisio entre liberdade de expressio e direitos da personalidade. Critérios de ponderacio. Interpretacio constitucionalmente ade- uada do Cédigo Civil e da Lei de Imprensa”, in Revista Trimestral de Direito Civil, n. 16, out.-dex. 2003, 31 Mostra-se correlato ao tema o problema da indenizacdo por dano moral, sobre a qual remete-se a obra de Maria Celina Bodin de Moraes, Danos @ pessoa ana: uma leitura civil-constitucional do dano moral. Rio de Janeiro, Renovar, 2003 37 humana titular. Além disso, os rigidos compartimentos do direito piblico e do direito privado nem sempre mostram-se suficientes para a tutela da personalidade que, as mais das vezes, exige prote- cio a s6 tempo do Estado e das sociedades intermedisrias — fami- lia, empresa, associagdes —, como ocorre, com freqiiéncia, nas matérias atinentes a familia, 4 inseminacao artificial e 4 procriacio assistida, ao transexualismo, aos negécios juridicos relacionados com a informitica, as relacdes de trabalho em condigées degradan- tes, e assim por diante.” 3. Fontes dos direitos da personalidade. Critica as concepcdes jusnaturalistas Provavelmente na tentativa de se ampliar 0 espectro da tutela da pessoa humana, debate-se, de maneira acirrada, 0 problema das fontes dos direitos da personalidade. Grande parte da doutrina incluindo-se ai os autores brasileiros em larga maioria, nega a pri 32 O direito de familia é rico em situag6es ndo tipificadas e interdisciplinares, atinentes a aspectos da personalidade humana. Cf. a emblemitica hip6tese deci- dida por unanimidade pela 5* Camara Civel do Tribunal de Justiga do Rio de Janeiro, sendo Relator o Des, Marcus Faver (in ADV-COAD, 1997, n° 77.562), com a seguinte ementa: “Regulamentacio de visitas. Pedido formulado por irmi 0s unilaterais através de processo cautelar (...) Nio contendo 0 ordenamento juridico vedagio 3 preténsio deduzida, néo hié que se falar em impossibilidade juridica do pedido (..) Saber se 0 autor tem ou nio direito em relacio a preten- sito deduzida € matéria de mérito. Os irmaos, tal como 0s tios e avés, tem direito de visita, em relacao aos menores, srmaos, sobrinhos ou netos, ainda que com amplitude reduzida. Embora nio sendo titulares de pitrio poder, aos irmaos, pelos principios que orientam o direito de familia, pela solidariedade familiar, pelo interesse na formacio da personalidade e do psiquismo, do menor, deve set assegurado, com limitagio, o direito de visitas, em relagio aos irmos menores, ainda que unilateras.” Fatos inusitados, por outro lado, surgem a cada dia, desa- fiando a dogmética tradicional e a técnica regulamentar. Segundo noticiow a imprensa (Jornal O Estado do Parand, 25 de maio de 1997), sob o inquietante titulo “O Incesto Tecnolégico", o principe herdeiro do Japao, Naruhito, de 37 anos, diante da constatacio de sua esterilidade, teria consentido com que sua mulher Masako, de 33 anos, viesse a ser inseminada artficialmente com o sémen do pai dele, o imperador Akthito, de 63 anos, a fim de garantir a continuidade da dinastia de 2.700 anos. 38 maria do direito positivo, buscando em fontes supralegislativas a legitimacao dos direitos inerentes & pessoa humana. Considera-se, desse modo, que “o fundamento préximo da sua sangao é realmen- te a extratificacdo no direito consuetudinario ou nas conclusdes da ciéncia jurfdica. Mas o seu fundamento primeiro so as imposicées da natureza das coisas, noutras palavras, direito natural”. No direito portugués, onde hé expressa tutela no Cédigo Civil, afirma-se que “os direitos da personalidade sio direitos naturais. Sao expressio ¢ tutela juridicas da estrutura e das funcées da pes- soa, do seu ser ¢ da sua maneira de ser. © Direito tem um funda- mento axiolégico (que é a sua justificacio, e sem o qual se transfor ‘ma em instrumento da opressao) que é imposto pela pessoa huma- na — 0 Direito é produto do homem e feito para o homem. A primeira e principal tarefa do jurista é reconhecer e descrever os direitos da pessoa. A pessoa humana ‘anterior’ e superior & sacieda- de. Impée-se, portanto, ao Direito”. Tal posicéo justifica-se historicamente,* embora no se possa com ela concordar nos dias de hoje, em que pese 0 respeito que 35. Rubem Limongi Franca, “Direitos da Personalidade I’, in Enciclopedia Sarai- 1a, vol. 28, Sa0 Paulo, Saraiva, 1979, p. 142, Na mesma direcio, Maria Helena Diniz, "Curso de Direito Civil Brasileiro’, vol. I, Teoria Geral do Direito Civil, Sio Paulo, Saraiva, 1994, 10* ed., p. 83; Fabio De Mattia, Direitas da Personali- dade, cit, p. 154; e, ainda, Carlos Alberto Bittar, Teoria Geral do Direito Civil, Sio Paulo, Forense Universitiria, 1991, p. 108, para quem os direitos da perso nalidade “so inatos (..) nascem com a pesso# e para a sua individualizacao no mundo terrestre; prevalecem sobre os demais direitos, que, em eventual confli- to, fazem ceder; impéem-se como condicionantes da ordem juridica, na exata sedida do respeito 8 individualidade humana”. © mesmo autor, em monografia espectfica, Os Direitos da Personalidade, Sio Paulo, Forense Universtéria, 1989, pp. 7-8, slienta: "Esses direitos existem antes e independentemente do direito positivo, como inerentes a0 préprio homem, considerado em si eem suas manifestacées.” 34 Diogo Leite de Campos, Ligées de Direitos da Personalidade, cit, p. 38 35 V., sobre o ponto, Francisco Amaral, Direito Civil Brasileiro, vo. I, “Intro- dugao”, Rio de Janeiro, Forense, 1991, p. 258, para quem os direitos da persona- lidade, produto de construgio doutrinéria do século XIX, podem ser associados 4 longo processo evolutivo: “Sua raiz jé se encontra, porém, nas declaragoes histéricas dos direitos humanos, como a Magna Carta, de 1215, 0 Bll of Rights, de 1689, a Declaracdo dos Direitos do Homem e do Cidadgo, de 1789, a Decla- ago Universal dos Direitos do Homem, de 1948, « Convencio Européia dos < 39 merecem as conceituadas vozes divergentes.* A concepcio dos direitos da personalidade teve sua génese ligada, inicialmente, as teorias jusnaturalistas, como forma de protecao do homem contra o arbitrio do totalitarismo e, de forma geral, do poder piblico. Daf a concepgio desses direitos como direitos inatos, invulneraveis, portanto, a0 arbitrio do Estado-legislador.*” Observe-se que a propria Declaracio dos Direitos do Homem ¢ do Cidadao emanada pela Assembléia Constituinte francesa de 20 a 26 de agosto de 1789 invoca, em seu predmbulo, “les droits naturels inaliénables et sacrés de 'homme’.*® Tal circunstancia Direitos Humanos, de 1968." Diogo Leite de Campos, Ligées de Direitos da Personalidade, cit, pp. 36-37, observa que, embora seja normalmente associado © fundamento da “personalidade” a Declaragio dos Direitos do Homem e do Cidadio, aprovada pela Assembléia francesa em 1789, tal Carta “fora precedida de muites outras, adaptadas nos estados norte-americanos, desde o século XVII (carta de Carlos [ col6nia de Rhode Island de 1643; constituicio de Locke para 4 Carolina do Norte, de 1669; Bills of Rights de diversos estados, particularmen- te 0 da Virginia de 1776). Normalmente de muito maior elevacéo do que a declaraga 36. Precisamente em razio dessa relatvidade histérica, nfo pode ser considerada ‘contrastante a opiniao de José Lemartine Correa de Oliveira e de Francisco José Ferreira Muniz, “O Estado de Direito e 0s Direitos da Personalidade", in Revista ddos Tribunais, vol. 532, pp. 17-18, publicada em 1980, ainda sob a égide, por- ‘tanto, da Carta autoritéria de 1969, em que sustentam uma espécie de neonatu- ralismo: "nio se trata do jusnaturalismo racionalista do iluminismo, que desco- nhece a insersao do homem na histéria(..) omicleo do jusnaturalismo maderno sio os direitos do homem.” sr V., sobre 0 tema, Adriano De Cupis, I diritti della personalita, cit., pp. 19-20: “la concesione dei diritti innati a un'origine storica che va ricercata nelle condizioni formatesi in seguito alla compressione e all assorbimento dell'indivi duo da parte dei poteri assolut; sorge allora la presupposizione di uno stato primitivo di esistenca, al quale avrebbero dovuto corrispondere i diriti innati: quando nessun settore della vita individuale poteva dirsi imnmune dall'invadente prepotente ativita degli organi dello Stato si offriva spontanea la determinazio- ne di una sfera che quella inmunita avrebbe dovuto godere secondo natura”. 38 O registro é de Adriano De Cupis, I diritti della personalita, cit, p. 20, para {quem "La Dichiarazione costitul il rrionfo della scuola del dirito naturale, sug- gellando la concecione dellesistenza di diritti soggttivi preesstenti allo Stato, non ereati, ma soltanto riconosciuti da esso. Ma, nello stesso tempo che il trianfo, fuwanche ilsuo canto del cigno, per la immnediata reazione della scuola storica, la ‘quale all'idea dei diritti dell'essere umano, dedueibili per la pura ragione, volle 40 hist6rica, contudo, que se justifica mais por raz6es metajuridicas do que técnico-juridicas, ndo autoriza a construgio de uma catego- ria de direitos impostos & sociedade independentemente de sua propria formagio cultural, social e politica. A essa luz, Adriano De Cupis aduz que a suscetibilidade de ser titular de direitos da per- sonalidade nao est4 menos vinculada 20 ordenamento juridico do que esto os demais direitos e obrigacées. Dessa maneira, qualquer situagdo juridica s6 pode nascer do dado positivo, ou seja, de uma lei? De resto, conforme leciona Pietro Perlingieri, 0 equivoco das escolas jusnaturalisticas esta no fato de que mesmo os principios da razio e da natureza apresentam-se como “nogées historicamente condicionadas: (...) 0 direito natural (dever ser) é sempre condicio- nado pela experiéncia do direito positivo (ser)”.*" E prossegue: “os direitos do homem, para ter uma efetiva tutela juridica, devem encontrar 0 seu fundamento na norma positiva. O direito positi- vo € 0 tinico fundamento juridico da tutela da personalidade; a ética, a religido, a hist6ria, a politica, a ideologia, sio apenas as- pectos de uma idéntica realidade (...) a norma é, também ela, no- Gio histérica”.” A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto hist6rico, nndo existe possibilidade de se estabelecer um bem juridico superior, ja que a sua prépria compreensio depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes aos valo- res sociais historicamente consagrados. Afinal, bastaria lembrar que, em nome da vida e da liberdade, inimeros contingentes hu- ‘manos jé foram sacrificados, invariavelmente sob fundamentos éti- sostituito lo studio esclusivo del datto storico, del dirtto rivelato progressivamen- te dall’esperienza’. 38 Adriano De Cupis, I diritti della personalita, ob. e loc. cit. 40 Pietro Perlingiesi, La personalita wnana nell'ordinamento giuridico, Napoli, Es, 1972, p. 131, o qual esclarece, ainda, relativamente ao conceito de norma Juridica: “la sua nozione @ relativa non tanto al sistema delle fonti formalmente Previsto in un certo ordinamento quanto a quello effettivamente vigente, frutio non soltanto di una gerarchia ma della sensibilitae della mentalita degli operato- ri del diriti.” 41 Pietro Perlingieri, La personalita umana nell‘ordinamento giuridico, cit. P. 131. cos, religiosos e politicos que, invocados pelos Estados, pretendem justificar guerras, genocidios, apartheid e outras formas de discri- minagio social, sexual, étnica e cultural No Estado de Direito, a ordem juridica serve exatamente para evitar os abusos cometidos por quem, com base em valores supra- legislativos, ainda que em nome de interesses aparentemente hu- manistas, viesse a violar garantias individuais e sociais estabeleci- das, através da representacao popular, pelo direito positivo. Resulta, em definitivo, assaz dificil para os defensores das teses jusnaturalistas definirem o que seria a expressio de direitos sagra- dos do homem, quando se pensa na variedade de posicées adotadas pela consciéncia social dos povos nas diversas épocas historicas € pontos geogréficos em que se insere a pessoa humana. A religiio muculmana, com suas penas corporais e as cirurgias através das quais milhares de mulheres africanas sio mutiladas, 20 nascer, nos dias de hoje"; os paises cristaos e as concepcées ideolégicas que adotam a pena de morte; 0 regime da escravidio em sociedades consideradas civilizadas; a prética de torturas e de linchamento como formas de sancio socialmente reconhecidas em diversos es- tados brasileiros; tudo isso coloca em crise a simplista tese segundo a qual seria a consciéncia universal a estabelecer os direitos huma- nos e os direitos da personalidade, cabendo ao ordenamento juridi- co apenas reconhecé-los. 42. Edigio da Revista Veja (10 de junho de 1998), em matéria intitulada Prazer Extirpado, relata 0 conflito entre o direito positivo, religio e costumes: “a muti- lagéo genital ¢ praticada em 28 paises da Africa e dois do Oriente Médio, atingin- do milhées de mulheres todo ano. O objetivo € eXercer a mais total forma de controle do desejo sexual feminino, de forma a garantir esposas daceis e fitis. Segundo a ONU, 110 milhées de mulheres em todo o mundo jé foram submeti- das a0 ritual da mutilacio. Pelo mesmo céleulo, cerca de 2 milhées de meninas sio mutiladas a cada ano. Em lugares como Somalia e Djibuti, estima-se que praticamente todas as mulheres sio extirpadss. Alguns paises cotbem a prética, medida inécua que ndo arranha a convicgao arraigada entre homens ¢ mulheres de que remover os genitais femininos externos é questao de respeito e honra. No Egito, onde se calcula que pelo menos 55% das mulheres mugulmanas e cristis coptas ainda sejam submetidas & mutilacéo, 0 governo proibiu a operagdo em hospitais pablicos e particulares em 1996. Houve uma chuva de protestos de lideres religiosos mais ortodoxos, sobretudo os fundamentalistas muculmanos, empenhados em ‘proteger as mulheres das conseqiléncias do excessivo desejo sexual’ (original nto grifado)”. 2 No plano metodolégico mais geral, no parece convincente qualquer tomada de posigio quanto is fontes do ordenamento des- provida de uma prévia andlise do momento histérico em que se insere o jurista. Do mesmo modo, no hi correntes hermenéuticas que possam ser avaliadas fora do seu tempo. Superado o autorita- rismo e admitindo-se, como premissa, a consolidacio de um estado social de direito, o positivismo pode se constituir em uma sélida garantia da promogdo da pessoa humana, contra costumes muitas vezes retrégrados que tendem a reproduzir as desigualdades cons- tituidas ao longo do tempo, a partir de hegemonias econémica e social que, nao fosse a norma jurfdica, imposta através do Estado democritico ¢ interventor, jamais se alterariam. Sobre o tema, jé se observou, em pagina primorosa, que “é justo © direito, em uma concepeao positivista, a garantir que néo seja a vontade popular ou a consciéncia popular a tutelar a personalidade, pois a historia ensina que exatamente a assim chamada vontade popular (a vontade obtida por persuasio ou por coagio) cometeu 605 maiores crimes contra a humanidade, contra, pois, a pessoa”. 43. Jé se observou, em outra sede (Gustavo Tepedino, Dirito all'abitazione ¢ rapporti locatzi, tese de doutorado apresentada & Scuola di Perfezionamento in Diritto Civile, Universita degli Studi di Camerino, ano académico de 1985, p. 56, espec. nota 92), “quanto séo inflexiveise restrtivas, na economia de merca- do, algumas valoragées correntes da reslidade (...) tendo-se em conta certas consolidadas na cultura dominante pelas forces econémicas e pela mass- CF, a0 propésito, Pietro Perlingieri, “Prassi, principio della legalita.¢ scuole civlistiche”, in Rassegna di diritto civile, 1983, p. 156 e ss; e Note sulla crisi dello Stato sociale e sul contenuto minimo della proprieta,cit., p. 444, onde © autor adverte, inclusive, para o perigo de se superavaliar 0 principio da eletivi- dade em detrimento da legalidade, quando, entio, "prevale chi a pit forza di imporre, con manovre di palazzo 0 di piazza, il proprio punto di vista nell'inter- pretazione della Costituzione". A necessidade de alteracio de iniimeras préticas da jurisprudéncia ¢ da administracéo publica, claramente em contraste com os valores constitucionais, percebe-se, ictu aculi,em diversos campos do direito, Na experiencia italiana, por exemplo, a recusa imotivada, consolidada na prixis do tabelionato ¢ da magistratura de primeiro grau, de se atribuir ao filho o sobreno- me materno, a0 lado do paterno, € hipétese criticada, em doutrina, por Maria Cristina De Cicco, "La normativa sul cognome e I'eguaglianza tra genitori, in Rassegna di diritto civile, 1985, p. 960 e ss. 44 Pietro Perlingieri, La personalita umana nell‘ordinamento giuridico, cit, P. 127, B esse argumento pode se abjetar com uma expressio que os Iégicos empregam freqiientemente: o argumento prova demais. Ele prova nfo s6 que ndo existem direitos da personalidade varios, como prova, também, que no existem direitos patrimoniais vérios, por que assim como a personalidade é uma s6, 0 patriménio também é um 86. Os bens, a propriedade, a posse, os contratos, todos os direitos que se distinguem dentro da esfera dos direitos patrimo- niais, podem ser considerados de um modo unitério; sendo possi- vel, entio, dizer que s6 existe um direito patrimonial e que todos esses, que habitualmente se estudam, séo dele simples face ou manifestacées”*! Curiosamente, 0 paralelo com os direitos patrimoniais é tam- bém utilizado por Giampiccolo, mas em sentido oposto, vale dizer, no intuito de demonstrar a unicidade do direito da personalidade que, como a propriedade, nio poderia ser desmembrado em tantos direitos quantas sio as prerrogativas do proprietério. Veja-se 0 in- teressante passo do autor italiano: “Do proprietério de um terreno nfo se pensa, decerto, que ele tenha um distinto direito 8 integri- dade do bem, a manté-lo fechado, & sua desafetacéo e assim por diante; nem se postula do ordenamento uma especifica norma para a protegio dessas qualidades individualizadas, que no seu conjunto fazem a coisa ser exatamente o que é e permitem que ela sirva a sua funco, Por que entio, com estranha contradigéo, dever-se-ia con- siderar diferentemente quanto a pessoa, se o homem é exatamente valor fundamental sobre o qual incide todo o ordenamento? Por- que o homem deveria ter protecao limitada somente aos aspectos expressamente regulados por uma norma, no se estendendo esta protegio indistintamente a todos os interesses da personalidade que possam parecer socialmente relevantes, ¢ assim merecedores de tutela?”®? 51. Programa de Direito Civil, cit., p. 193, onde se aduz: "Na verdade os direitos da personalidade podem ter um tratamento unitério, porque a personalidade & ‘una, mas isto ndo quer dizer que, entre eles, nio se possa fazer diferenciagées capazes de apresenté-los como relagées juridicas, distinguindo-os tal qual 0 pa ‘riménio." Giorgio Giampiccolo, ob. cit., p. 469. 46 | | | 5. A insuficiéncia das orientagdes doutrindrias tradicionais. A pes- soa humana como valor unitirio e sua protecio integral. A clausula geral de tutela da personalidade no ordenamento brasileiro. Os reitos da personalidade no Cédigo Civil de 2002. A diversidade axiolégica das relages patrimoniais e extrapatrimoniais. Os cha- ‘mados direitos da personalidade das pessoas juridicas A insuficiéncia das elaboracGes antes examinadas — monista e pluralista — para a protecdo da pessoa humana foi posta em evi- déncia por atenta doutrina, segundo a qual tais correntes tratam, uma e outra, 0s direitos da personalidade como expressao de tutela meramente ressarcitéria e de tipo dominical. Criticam-se, nesta diregio, as construgdes dogméticas que concebem a protecao da personalidade aos moldes (ou sob o paradigma) do direito de pro- priedade.® Segundo Pietro Perlingieri, principal artifice desta corrente doutrindria, a personalidade humana mostra-se insuscetivel de re- condugo a uma “relacio juridica-tipo” ou a um “novelo de direitos subjetivos tipicos", sendo, ao contrério, valor juridico a ser tutelado nas miiltiplas e renovadas situacdes em que o homem possa se encontrar a cada dia. Daf resulta que o modelo do direito subjetivo tipificado seré necessariamente insuficiente para atender as possi- veis situagées subjetivas em que a personalidade humana reclame tutela juridica.* O que se verifica, a rigor, do debate antes enunciado em torno das diversas correntes que buscam explicar a conceituacio, o obje- to e o contetido dos direitos de personalidade, é que todas elas se baseiam no paradigma dos direitos patrimoniais: ora se entende que, como o direito de propriedade, o direito em tela deve com- preender uma série de atributos que, como no caso do dominio, so 53 Pietro Perlingieri, La personalita umana nell‘ordinamento giuridico, cit., pas- sim. V. também, do mesmo autor: “La tutela giuridica della ‘integrita psichica’ (a proposito delle psicoterapie)", in Rivista trimestrale di dirito e procedura civile, 1972, p. 763 e ss; “Il diritto alla salute quale diritto della personalita”, in Ras. segna di dirito civile, 1982, p. 1.021 ess; Perfis do Direito Civil, Rio de Janeico, Renovar, 1997, p. 153.85 34 Pietro Perlingieri, La personatita umana nell ordinamento giuridico, cit. esp. p. I74ess. 47 postos a disposi¢o do titular — sem que se possa fracionar o poder dominical em vérios direitos; ora, ao revés, entende-se que, tal qual © patrimonio, a universalidade de direitos nao justifica a reductio in tuno, sendo certo que uma tinica massa patrimonial comporta tan- tos direitos quantas distintas relacoes juridicas possam ser identifi- cadas, 2 luz dos interesses em jogo — ainda que entre tais relacoes juridicas haja um vinculo organico, Imaginando-se a personalidade humana do ponto de vista es~ trutural (ora o elemento subjetivo da estrutura das relacées juridi- cas, identificada com 0 conceito de capacidade juridica, ora 0 ele- mento objetivo, ponto de referéncia dos chamados direitos da per- sonalidade) e protegendo-a em termos apenas negativos, no senti- do de repelir as ingeréncias externas a livre atuacao do sujeito de direito, segundo a técnica propria do direito de propriedade, a ‘tutela da personalidade sera sempre setorial e insuficiente. ‘Nao se subestime o elevado valor de todas as orientacées doutri- nérias que, sem rebucos de duividas, permitiram a ampliagao da tute- lados direitos humanos, antes limitada aos tipos do direito penal eas relagdes entre Estado e cidadao, e hoje estendida (¢ bem verdade) as relagées de direito privado. E isto ocorreu a partir das construcses que engendraram os direitos da personalidade, quer mediante a tipi- ficacio de uma série de direitos subjetivos, quer através da configu- racio de uma relacio juridica-tipo, generalizante e abrangente. En- tretanto, a realizagao plena da dignidade humana, como quer 0 pro- jeto constitucional em vigor, nfo se conforma com a setorizagdo da tutela jurfdica ou com a tipificacio de situagoes previamente estipu- Iadas, nas quais pudesse incidir 0 ordenamento.*5 Nem parece suficiente o mecanismo simplesmente repressivo, pr6prio do direito penal, de incidéncia normativa limitada aos mo- mentos patol6gicos das relagées juridicas, no momento em que ocorre a violagao do direito, sob a moldura de situacdes-tipo. A tutela da pessoa humana, além de superar a perspectiva setorial YV., sobre o ponto, José Lamartine Correa de Oliveira e Francisco José Ferrei- ra Muniz, O Estado de Direito e os Direitos da Personalidade, cit., p. 14, que propuseram (em 1980) uma cléusule geral de tutela da pessoa humana no orde- pamento juridico brasileiro, aos moldes da experiéncia alema, relatada pelos autores, 0s quais destacam: “A tipologia que se pretende exaustiva néo exaure a realidade e camufla o sentido tinico de toda a problemstica" 48 (direito pablico e direito privado), nao se satisfaz. com as técnicas ressarcitéria e repressiva (bindmio lesao-sangao), exigindo, ao re- verso, instrumentos de promocio do homem, considerado em qualquer situacéo juridica de que participe, contratual ou extra- contratual, de direito piiblico ou de direito privado.® ‘Assim é que, no caso brasileiro, em respeito ao texto constitu- ional, parece licito considerar a personalidade nfo como um novo reduto de poder do individuo, no ambito do qual seria exercido a sua titularidade, mas como valor méximo do ordenamento, mode- Jador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econdmica a novos critérios de validade. Nesta direcao, nao se trataria de enunciar um tinico direito subjetivo ou classificar miiltiplos direitos da personalidade, sendo, mais tecnicamente, de salvaguardar a pessoa humana em qualquer momento da atividade econémica, quer mediante os especificos direitos subjetivos (previstos pela Constituicao e pelo legislador especial — satide, imagem, nome, etc.), quer como inibidor de tutela juridica de qualquer ato juridico patrimonial ou extrapatri- ‘monial que nfo atenda a realizacio da personalidade. A prioridade conferida a cidadania e a dignidade da pessoa hu- mana (art. 1°, Ie III, CF), fundamentos da Reptblica, e a adocio do principio da igualdade substancial (art. 3°, III), ao lado da iso- nomia formal do art. 5°, bem como a garantia residual estipulada pelo art. 5°, § 2°, CF, condicionam o intérprete e o legislador ordi- nério, modelando todo o tecido normativo infraconstitucional com a tabua axiolégica eleita pelo constituinte.”” 6 Para uma critica aguda as técnicas tradicionais dos direitos da personalidad, ¥. Ezio Capizzano, Vita e integrta fisica, cit. p. 1.003, segundo o qual "o direito A integridade fisica, como especificacio de um mais amplo direito a satide, refle- te. interesse pablico a eliminacio das condigdes de fato (ambientais, etc.) que, possibilitando a agressio a tal bem, constituem, em razio do seu préprio valor Instrumental, um obstaculo de natureza social & atuacio e a0 desenvolvimento da Personalidade*; e Massimo Dogliotti, “I diritti della personalita: questioni e rospettive”, in Rassegna di diritt civile, 1982, p. 657 ess. 77 Tal perspectiva metodolégica, que mais e mais se difunde,capitanesda por tro Perlingieri (Perfis do Direito Civil, cit., passim; Scuole, tendenze e metodi, Napoli, ESI, 1988, espec. p. 109 ess_), deve a Maria Celina Bodin de Moraes, "A Camino de um Direito Civil Constitucional’, in Revista de Direto Ci, vo } P. 21 € ss, a primeira e mais importante contribuigio doutrinéria entre 0s 49 Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da Repiblica, associada ao objetivo fundamental de erradicago da pobreza e da marginalizacao, ¢ de reducao das desi- gualdades sociais, juntamente com a previsao do § 2° do art. 5°, no ‘sentido da nao exclusao de quaisquer direitos e garantias, mesmo. que ndo expressos, desde que decorrentes dos principios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cldusula geral de tutela e promogdo da pessoa humana, tomada como valor maximo pelo ordenamento. Sublinhe-se a técnica legislativa — nao por acaso — empregada pelo constituinte, fixando, no Titulo I, princfpios fundamentais que, ali situados, impéem especifica fungao aos demais direitos constitucionais, permeando todo o sistema juridico com os valores ali indicados, expressos nos fundamentos e objetivos da Reptblica. Significa dizer, em primeiro lugar, que qualquer lei que, mes- mo cumprindo os ditames constitucionais especificos para certas matérias, como por exemplo o art. 199 da CF, em matéria de transplante —, desatendesse a preocupacio do legislador consti- tuinte relativamente & realizacio da personalidade e a dignidade da civilistas Brasileiros. A autora (p. 29) redimensiona, inclusive, o papel atribuido —em sede interpretativa — ao art. 5°, LICC: “As finalidades sociais da norma e fexigéncias do bem comum foram jé’delimitadas pelo legislador constituinte quando da elaboracéo do Texto Constitucionel. Do que resulta que, a teor do disposto, a interpretacio das normas juridicas, sinda que importe sempre na sua rectiagio pelo Juiz, nio rest submetida a0 livre arbitrio do Magistrado ou de- pendente de sua exclusiva bagagem ético-cultural, encontrando-se definitiva- mente vinculada aos valores primordiais do ordenamento juridico.” V., ainda, entre os constitucionalistas, Clemerson Merlin Cleve, “A Teoria Constitucional 0 Direito Alternativo (Para uma Dogmatica Constitucional Emancipatéria)”, in Selegoes Jurtdicas — ADV-COAD, 1994, p. 45 e s., que prope uma “Consti- tuicdo normativa integral”, mediante interpretacio na qual se reconheca que “os princ{pios, inclusive aqueles enunciados no prembulo, dispdem de uma funcio- halidade”, “cimentam a unidade da Constituicio", * fixam standards de justica, prestam-se como mecanismos auxiliares no processo de interpretacio e integra- {G0 da Constituigdo e do direito infraconstitucional, (..)" (p. 48); de modo a emergir “uma pratica juridica definida como constitucionalizacio (filtragem constitucional) do direito infraconstitucional (direito civil, direito penal, direito do trabalho, direito processual, etc.). Esse proceso far incidir sobre o dieito infraconstitucional os valores substanciais emancipat6rios adotados pela Carta Constitucional” (p. 51). 50 pessoshumana, padeceria do vicio da inconstitucionalidade: ndo ha pondicdes ou requisitos legais destinados a promover e incentivar a remogio de érgios, tecidos e substdncias humanas para fins de transplantes que possam desconsiderar o valor maximo do ordena- mento constitucional brasileiro, ou seja, a pessoa humana e o de- senvolvimento de sua personalidade. Por outro lado, como se aludiu acima, tais diretrizes, longe de apenas estabelecerem parametros para o legislador ordinério e para ‘os poderes piblicos, protegendo o individuo contra a aco do Estado, alcancam também a atividade privada, informando as relacdes con- tratuais no mbito da iniciativa econdmica. Nao ha negécio juridico que nfo tenha seu contetido redesenhado pelo texto constitucional Mais ainda, a tutela da personalidade, como bem se acentuou na doutrina alienigena, é dotada do atributo da elasticidade, nao se confundindo, todavia, tal caracterfstica com a elasticidade do direi- to de propriedade. No caso da pessoa humana, elasticidade signifi- caa abrangéncia da tutela, capaz de incidir a protecao do legislador e, em particular, o ditame constitucional de salvaguarda da digni- dade humana a todas as situacées, previstas ou ndo, em que a per- sonalidade, entendida como valor maximo do ordenamento, seja 0 ponto de referéncia objetivo.® Demais disso, a regulamentagao dos direitos de personalidade deferida ao legislador ordindrio nao significa uma reserva legal ili- mitada. A legislacao infraconstitucional, tanto em matéria de direi- to civil, como no caso do direito do trabalho, acidentério ou previ- denciario, por exemplo, s6 é permitido impor restrigdes as garan- tias individuais ou sociais na medida em que a disciplina normativa encontre justificativa na prépria dignidade da pessoa humana. 58 Pietro Perlingieri, La personalita umana nell ordinamento giuridico, pp. 185- 186, cujo passo merece transcricio: “Elasticidade da tutela da personalidade significa que nio existe um numerus clausus de hip6teses tuteladas mas que € tutelado o valor da personalidade sem limites, ressalvados os limites postos no interesse de outras personalidades, no de terceiros. Elasticidade nas situagdes Subjetivas reais (ao revés), e em particular na propriedade assim chamada formal (Clasticidade do dominivon) quer significar que, com a extincio de um direito teal limitado a propriedade readquire o seu contetido originsrio. Elasticidade das situagées pessoais significa portanto que a sua tutela deve ser estendida também a (juridicamente relevantes) nao previstas pelas leis ordindrias” (gri- 31 Jé na regulamentagio das relacGes juridicas patrimoniais, a0 revés, a dignidade da pessoa humana € 0 limite interno capaz de definir com novas bases as funcées sociais da propriedade e da atividade econdmica. A assertiva é confirmada pela técnica empre- gada pelo constituinte, associando, expressa ¢ imediatamente, & garantia do direito de propriedade (art. 5°, XXII), o atendimento de sua fungao social (art. 5°, XXIII); ¢ as finalidades da ordem econémica, o dever de “assegurar a todos existéncia digna, confor- me os ditames da justica social”, e observados, dentre outros, os princfpios da fungdo social da propriedade e da redugio das desi- gualdades regionais e sociais, além da busca do pleno emprego (art. 170, caput, e incisos III, VII e VII). (Os grupos sociais, como a familia, 0s sindicatos, a universidade, a empresa, as associacées filantrépicas ou mesmo religiosas, todas clas, igualmente, embora protegidas constitucionalmente, devem ter O seu regulamento interno adequado ao pleno desenvolvimento da personalidade humana, nao lhes sendo consentido impor aos seus associados, mercé de uma mal compreendida tutela constitu- cional 4 autonomia associativa, normas de conduta que nao se coa- dunam com os principios acima referidos. As comunidades inter- medifrias tém a sua razio de ser e sua justificativa no papel que representam para a promogio da pessoa humana, deixando de ser tuteladas no momento em que deixem de cumpri-lo.*? Tal constatacio revela a crise da dogmitica tradicional, que entendia que as normas de direito pablico, em particular os chama- dos direitos fundarnentais previstos na Constituicio Federal, ti- nham como objetivo tinico a protecéo do individuo em relagao ao Fstado. Definidas os objetivos maiores e os fundamentos da Repti- blica, na técnica constitucional de enumeracio introdutéria de princtpios fundamentais, a eles ndo se pode supor alheia toda a gama de relagdes de direito privado, cabendo aos operadores do direito cotejarem a atividade econémica privada com os parime- tros do texto maior. A tutela da personalidade — convém, entio, insistir — nio pode se conter em setores estanques, de um lado os direitos huma- 59 Pietro Perlingieri, La personalita umana nell'ordinamento giuridico, p. 145 € 82 nos € de outro as chamadas situagSes juridicas de direito privado. ‘Appessoa, & luz do sistema constitucional, requer protegio integra- da, que supere a dicotomia direito pablico e direito privado e aten- da a cléusula geral fixada pelo texto maior, de promocio da digni dade humana.” 0 Anecessidade de superacio das técnicas setoriais é suscitada por Maria Celi- na Bodin de Moraes, “Recusa & Realizacio do Exame de DNA na Investigacio de Paternidade e Direitos da Personalidade” in A Nova Familia: Problemas e Pers ‘ectivas (org. Vicente Barretto), Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 169, em dlse critica 2 interessante ordem de habeas corpus concedida, por apertada pelo Supremo Tribunal Federal, em favor de réu, em acio de investiga- ‘gio de paternidade, que se recusou a se submeter ao teste de DNA. A autora prope que a solucio entre o “conflito de valores constitucionais: direito 8 (real) identidade pessoal versus direito a integridade fisica" sejadirimido em favor do primero, considerando a recusa abusiva. “A pericia compuls6ria sc, em prin pio, repugna aqueles que, com raz, véem 0 corpo humano como bem juridico intangivel einviolével, parece ser providéncia necesséria e legitima, a ser adotada pelo juiz, quando tem por objetivo impedir que o exercicio contrério 3 finalidade de sua tutela prejudique, como ocorre no caso do reconhecimento do estado de filiagdo, direito de terceiro, correspondente a dignidade de pessoa em desenvol- vimento, interesse este que é, a um s6 tempo, piblico e inidividual” (grifou-se). E conclui (p. 194): “o principio da dignidade da pessoa humana estabelece sempre 95 limites intransponiveis, para além dos quais hé apenas ilicitude”. Parece als sintomético que, nos manuais italianos, a matéria jé comece a ser enfrentada em perspectiva unitdria. Além da escola doutringria analisada no texto (v. 0 manual de Pietro Perlingieri, If diritto civile nella legalita costituzionale, Napoli, ESI, 1984, p. 347 e ss,), fazem-se estimulantes as péginas de C. Massimo Bianca, Diritto civile, vol. I, La norma giuridica — I soggetti, Roma, Giuffre, 1990 (Gist), p. 143 e ss., em que 0 autor trata do tema como “Os direitos fundamen- ‘zis do homem ou direitos da personalidade”(literalmente, I diritti fondamenta- i dell'uomo o diritti della personalita), esclarecendo que “os direitos fundamen- ‘ais do homem, ditos também direitos da personalidade, sio aqueles direitos que tutelam 4 pessoa nos seus valores essenciais (..)inserindo-se na categoria mais ampla dos direitos pessoais, como direitos que tutelam os interesses inerentes & Pessoa, isto &, os seus diretos interesses materiais € morais", em contraposigio 40s “direitos patrimoniais, os direitos que tutelam interesses econémicos". Em erspectiva metodolégica unitéria apresenta-se também Pietro Rescigno, Ma- nuale del diritto privato italiano, Napoli, Jovene, 1994, p. 223 es., que se refere a0 tema em capitulo sugestivamente intitulado “Tutela civile della persona", no ual aborda simultaneamente as garantias constitucionais, a Convengio européia dos dlreitos do homem € os direitos da persoalidade prevstos na lgislagéo infraconstitucional 33 Justificam-se assim, igualmente, as criticas acima dirigidas as diversas doutrinas dos direitos da personalidade que reproduzem 2 Iégica dos direitos subjetivos patrimoniais, permeados por técnica excessivamente regulamentar. Procura-se tipificar os direitos da personalidade e descrever © seu contetido — nem sempre, contu- do, delineados pelo legislador —, reservando-se erroneamente a tutela juridica somente a quem é titular de tais direitos. Por outro lado, a incidéncia normativa nao se resume 4s situa- ‘ces que configuram delito ou que causam dano injusto —momen- to patolégico da tutela da personalidade —, mas se estende a todos os momentos da atividade econémica, dai decorrendo que a valida- de dos atos juridicos, por forga da clausula geral de tutela da perso- nalidade, esta condicionada a sta adequacdo aos valores constitu- cionais e & sua funcionalizacao ao desenvolvimento e realizacao da pessoa humana. De tais elaboracdes decorrem, ainda, as teses que, movidas em- bora pelo louvavel propésito de ampliar os confins da reparacéo civil, consideram indistintamente a pessoa fisica e a pessoa juridica como titulares dos direitos da personalidade, a despeito do trata- mento diferenciado atribufdo pelo ordenamento constitucional aos interesses patrimoniais e extrapatrimoniais.© 61 Adota francamente tal posicéo a valorosa dissertagio de mestrado do Profes- sor Alexandre Ferreira de Assumpcio Alves, A Pessoa Juridica e os Direitos da Personalidad, Rio de Janeiro, Renovar, 1997, p. 81 e ss., com ampla referencia bibliografica. Cf, no mesmo sentido, a tendéncia jurisprudencial, exemplificada em acérdio decidido a unanimidade pela 2* Camara Civel do Tribunal de Just do Rio de Janeiro (ap. civ. n° 8,203/96, julg, em 28/01/97, reg. em 7/3/97, fs 4.925), assim ementada: “A honra objetiva da pessoa juridica, consoante enten- dimento consagrado pelo Superior Tribunal de Justice, pode ser ofendida pelo protesto indevido do titulo cambial, cabendo indenizacio pelo dano extrapatri- ‘monial dai decorrente. Por se tratar de algo imaterial, ou ideal, nao se pode exigir que a comprovacio do dano moral seja feita pelos meios utilizados para a de- ‘monstracio do dano material. Jamais poderia a vitima comprovar a dor, a triste 2a, ou a humilhacao através de documentos, pericia ou depoimentos. Neste ponto 4 razio se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral est insito na prépria ofensa, de tal modo que, provado o fato danoso, ipso facto’ est demons- trado 0 dano moral a guisa de uma presuncdo natural, uma presungio hominis'ou faci’, que decorre das regras da experiéncia comum’. Verifica-se do excerto a dificuldade de enquadramento da espécie, circunstincia que também se observa ‘em acé6rdio decidido a unanimidade pela §* Camara Civel do Tribunal de Justica 54 [As lesées atinentes as pessoas juridicas, quando nao atingem, diretamente, as pessoas dos sécios ou acionistas, repercutem ex- clusivamente no desenvolvimento de suas atividades econdmicas, estando a merecer, por isso mesmo, técnicas de reparacio especifi- case eficazes, nao se confundindo, contudo, com os bens juridicos traduzidos na personalidade humana (a lesio a reputagéo de uma ‘empresa comercial atinge — mediata ou imediatamente — os seus resultados econdmicos, em nada se assemelhando, por isso mesmo, a chamada honra objetiva, com os direitos da personalidade). Cuida-se, afinal, de uma tomada de posicio do legislador cons- tituinte, que delineou a tébua axiolégica definidora do sistema e, por conseguinte, da atividade econémica privada, Daf a necessida- de de uma reelaboracio dogmética, de molde a subordinar a légica patrimonial aquela existencial, estremando, de um lado, as catego- rias da empresa, informadas pela ética do mercado e da otimizacio dos lucros, ¢, de outro, as categorias atinentes & pessoa humana, cuja dignidade é o principio basilar posto ao vértice hierérquico do ordenamento. Tampouco se pode tomar de empréstimo a 6tica individual e patrimonialista para a solugdo de conflitos inerentes a tutela da pessoa humana — permeados por bem outros valores. A empresa privada, na esteira de tal perspectiva, deve ser protegida nio jé pelas cifras que movimente ou pelos indices de rendimento econd- mico por si s6 considerados, mas na medida em que se torna instru- mento de promogao dos valores sociais e nao-patrimoniais. ‘Ainda em referéncia ao tema em questio, destaca-se a cléusula geral contida no art. 52 do Cédigo Civil, segundo a qual “aplica-se as pessoas juridicas, no que couber, a protecio dos direitos da per- sonalidade”. Andou bem o legislador em néo conferir 4 pessoa juri- dica direitos informados por valores inerentes 4 pessoa humana. Limitou-se o dispositivo a permitir a aplicagdo, por empréstimo, da do Rio de Janeiro (ap. civ. n° 3/96, julg. em 2/4/96, reg. em 9/4/96, fls. 17.202), de cuja ementa se destaca: “Dano moral da empresa. Possibilidade da sua identi- ficagio quando o agravo de natureza moral vai repercutir no livre curso das Atividades comerciais e industriais da pessoa juridica, comprometendo a sua idoneidade financeira e a qualidade dos seus servicos" (grifou-se). Tal entendi- mento foi consagrado no enunciado da Stimula n. 227 do STJ: “As pessoas juri- dicas podem sofrer danos morais" 55 técnica da tutela da personalidade, ¢ apenas no que couber, a pro- tegio da pesoa juridica. Esta, embora dotada de capacidade para 0 exercicio de direitos, nao contém os elementos justificadores (fun- damento axiol6gico) da protecio A personalidade, concebida como bem juridico, objeto de situac6es existenciais. Assim é que o texto do art. 52 parece reconhecer que os direitos da personalidade constitute uma categoria voltada para a defesa e para a promocdo da pessoa humana, Tanto assim que nao assegura as pessoas juridicas os direitos subjetivos da personalidade, admitindo, tdo-somente, a extensio da técnica dos direitos da personalidade para a protecdo da pessoa juridica. Qualquer outra interpretacio, que pretendesse encontrar no art. 52 0 fundamento para a admissio dos direitos da personalidade das pessoas juridicas, contraria a dic¢io textual do dispositivo e se chocaria com a informacio axiolégica in- dispensavel a concregio da aludida cléusula geral. ‘A rigor, a légica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana, Ainda assim, provavelmen- te por conveniéncia de ordem pritica, o codificador pretendeu estendé-los as pessoas juridicas, 0 que nao poderé significar que a concepgio dos direitos da personalidade seja uma categoria concei- tual neutra, aplicével indistintamente a pessoas jurfdicas e pessoas humanas. Descartada a equiparacdo dos direitos tipicamente atinentes as pessoas naturais (integridade psicoffsica, pseudénimo, etc.) vé-se que nao é propriamente a honra da pessoa jurfdica que merece protecio, nem em vertente subjetiva tampouco em carter objeti- vo. A tutela da imagem da pessoa jurfdica —atributo mencionado, assim como a honra, pelo art. 20 — tem sentido diferente da tutela da imagem da pessoa husnana. Nesta, a imagem é atributo de fun- damental importancia, de inspiracio constitucional inclusive para a manutengao de sua integridade psicofisica, Jé para a pessoa juridica com fins lucrativos, a preocupacio resume-se aos aspectos pecu- nidrios derivados de um eventual ataque a sua atuacdo no mercado. O ataque que na pessoa humana atinge a sua dignidade, ferindo-a psicolégica e moralmente, no caso da pessoa jurfdica repercute em sua capacidade de produzir riqueza, no ambito da atividade econ6- mica por ela legitimamente desenvolvida. Hi que se resguardar, todavia, a necesséria diferenciagéo entre as pessoas juridicas que aspiram lucros e aquelas que se orientam 56 por dutras finalidades. Particularmente neste iiltimo caso nao se pode considerar (como ocorre na hipétese de empresas com finali- Gade lucrativa) que os ataques sofridos pela pessoa juridica acabam por se exprimir na reduco de seus lucros, sendo espécie de dano genuinamente material. Cogitando-se, ento, de pessoas juridicas sem fins lucrativos poder-se-ia admitir a configuracio de danos institucionais, aqui conceituados como aqueles que, diferentemen- te dos danos patrimoniais ou morais, atingem a pessoa juridica em sua credibilidade ou reputagio, sendo extrapatrimoniais, posto in- formados pelos principios norteadores da iniciativa econémica pri- vada. Com base em tais premissas metodolégicas, percebe-se o equi- vyoco de se imaginar os direitos da personalidade e o ressarcimento por danos morais como categorias neutras, adotadas artificialmen- te pela pessoa juridica para a sua tutela (a maximizagio de seu desempenho econémico e de seus lucros). Ao revés, 0 intérprete deve estar atento para a diversidade de prinefpios e de valores que inspiram a pessoa fisica e a pessoa juridica, e para que esta, como comunidade intermedisria constitucionalmente privilegiada, seja merecedora de tutela juridica apenas e tZo-somente como um ins- © Sobre o tema, seja consentido remeter a Gustavo Tepedino, A Pessoa Jurfdi- cae as Dircitos da Personalidade, no Apéndice deste Temas de Direito Civil e, ‘mais aprofundadamente, Crise de Fontes Normativas e técnica legislativa na arte geral do Cédigo Civil de 2002, in Gustavo Tepedino (coord), A Parte Geral do Novo Cédigo Civil — Estudos na Perspectiva Civil-Constitucional, Rio de Janeiro, Renovar, 2003 (2° ed.), p. XXX, onde se aduz, em defesa da nova categoria dos danos institucionais: “O ataque a imagem de uma empresa normal- ‘mente se traduz. em uma diminuigéo de seus resultados econémicos. Situacoes hd, contudo, em que a associacio sem fins lucrativos, uma entidade filantr6pice por exemplo, é ofendida em seu renome. Atinge-se sua eredibilidade, chamada de honra objetiva sem que, neste caso, se pudesse afirmar que 0 dano fosse ‘mensurivel economicamente, considerando-se sua atividade exclusivamente inspirada na filantropia (...) a solusio, pois, € admitir que a credibilidade da Pessoa juridica, como irradiagao de sua subjetividade, responsével pelo sucesso de suas atividades, & objeto de tutela pelo ordenamento e capaz de ser tutelada, especialmente na hipétese de danos institucionais. Tal entedimento mostra-se coerente com 0 ditado constitucional e nfo parece destoar do raciocinio que inspirow a recente admissiblidade, pelo STJ, dos danos morais 3 pessoa jurdica” (criginal nio grifado) 37 trumento (privilegiado) para a realizacao das pessoas que, em seu Ambito de acio, € capaz de congregar ‘A guisa de conclusio, repita-se, sem ceriménia: tanto a teoria pluralista dos direitos da personalidade, também chamada tipifica- dora, quanto a concepcio monista, que alvitra um tinico direito geral e origindrio da personalidade, do qual todas as situacies juridicas existenciais se irradiariam, ambas as elaboracées parecem excessiva- mente preocupadas com a estrutura subjetiva e patrimonialista da relagio juridica que, em primeiro lugar, vincula a protecio da perso- nalidade a prévia definigao de um direito subjetivo; e que, em segun do lugar, limita a protecao da personalidade aos seus momentos pa- tol6gicos, no binémio dano-reparagio, segundo a I6gica do direito de propriedade, sem levar em conta os a intivos da pessoa humana na hierarquia dos valores constitucionais.

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