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No limiar do século XXI, a violação do direito de vimento humano — e os potenciais benefícios da sua
acesso do ser humano à água potável e ao saneamento resolução. Um melhor acesso à água e ao saneamento
básico está a destruir o potencial dos povos a um nível funcionaria como agente catalisador de um avanço
inaudito. No mundo actual, cada vez mais próspero gigantesco em termos de desenvolvimento humano,
e interdependente, morrem mais crianças devido à proporcionando benefícios a nível da saúde pública,
falta de água potável e de instalações sanitárias do da educação e do crescimento económico. Por que
que por qualquer outra causa. A exclusão do acesso será, então, que estas oportunidades têm vindo a ser
à água potável e ao saneamento básico destrói mais tão desperdiçadas?
vidas humanas do que qualquer conflito armado Em parte, devido à fraca tomada de consciên-
ou acção terrorista. E também acentua as profun- cia da gravidade do problema, e por outro lado, por
das desigualdades em termos de oportunidades de culpa do esforço insuficiente desenvolvido pelos
vida que separam os países e as suas populações, com governos nacionais e pela comunidade internacio-
base na saúde, no género e noutro tipo de indícios nal para acabarem com a pobreza e as desigualda-
de carência. des que perpetuam a crise. Contrastando com al-
Para além do sofrimento e da perda de vidas hu- gumas outras ameaças globais ao desenvolvimento
manas, a escassez de água e de saneamento básico humano — tais como o VIH/SIDA — a crise da
a nível mundial está a minar a prosperidade e a re- água e do saneamento básico é sobretudo uma crise
tardar o crescimento económico. As perdas de pro- dos pobres em geral e das mulheres em particular,
dutividade resultantes desta escassez estão a anular dois eleitorados com fraco poder reivindicativo
o esforço desenvolvido por milhões de pessoas das na definição das prioridades nacionais. A água e
mais carenciadas do mundo, na sua tentativa de o saneamento também são os parentes pobres da
saírem da pobreza, e estão a conduzir países intei- cooperação para o desenvolvimento internacional.
ros à estagnação. Quer do ponto de vista dos direitos A mesma comunidade internacional que se mo-
humanos, quer da justiça social ou do senso comum bilizou de forma impressionante, para preparar a
económico, os danos infligidos pela falta de água e de resposta a uma potencial ameaça resultante da epi-
saneamento básico são insustentáveis. A solução para demia de gripe das aves, finge não ver a epidemia
esta escassez não é somente um imperativo moral e real que aflige todos os dias centenas de milhões
um acto de justiça. É também a atitude mais sensata, de pessoas.
porque o desaproveitamento do potencial humano A crise da água e do saneamento básico com
associado a águas insalubres e a um saneamento bá- que se defrontam as famílias carenciadas no mundo
sico deficiente acaba por afectar negativamente toda em desenvolvimento encontra paralelo com os pri-
a Humanidade. mórdios da história dos países ricos da actualidade.
Este capítulo explica a dimensão da crise da água Poucas pessoas no mundo industrial são capazes de
e do saneamento básico e identifica as suas causas. Su- reflectir acerca da enorme importância que a água
blinha os custos do problema em termos de desenvol- potável e o saneamento básico tiveram na evolução
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O mundo dispõe da da história dos seus países ou nas suas próprias opor- sector da água e do saneamento básico poderá ser
1 tunidades de vida. Ainda não há muitas gerações que relegada para a história no espaço de uma geração.
tecnologia, dos meios
os habitantes de Londres, Nova Iorque e Paris en- O mundo dispõe da tecnologia, dos meios financei-
financeiros e da capacidade frentaram ameaças de insegurança no abastecimento ros e da capacidade humana para acabar de vez com
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
humana para acabar de vez de água idênticas às que hoje se vivem em Lagos, em a praga da insegurança da água na vida de milhões
Bombaim ou no Rio de Janeiro. Águas poluídas com de seres humanos. O que falta é a vontade política
com a praga da insegurança
detritos de toda a espécie mataram crianças, origi- e a visão necessárias para aplicar estes recursos em
da água na vida de milhões naram crises sanitárias, minaram o crescimento prol do bem comum. O progresso dos países ricos
de seres humanos económico e mantiveram os povos na pobreza. As foi possível graças a um novo contrato social entre
novas tecnologias e os dinheiros públicos tornaram governos e população — um contrato baseado na
possível o acesso universal à água potável. Mas a ideia da cidadania comum e no reconhecimento das
principal mudança foi de cariz político. Reformis- responsabilidades governamentais. O mundo pode
tas sociais, médicos, líderes autárquicos e industriais estar hoje diferente. Mas agora, tal como outrora, o
formaram coligações poderosas que fizeram subir progresso continua a depender da criação de parce-
o tema da água e do saneamento básico ao topo da rias e de liderança política. O ponto fulcral reside
agenda política. Eles forçaram os governos a admitir nas políticas nacionais, porque sem políticas nacio-
que a cura das doenças provocadas pela água impró- nais firmes não se consegue alcançar um progresso
pria para consumo era ineficaz e ruinosa: a prevenção sustentável. O desafio que se coloca hoje aos gover-
através do acesso à água potável e ao saneamento bá- nos dos países desenvolvidos é desenvolverem um
sico constituía a melhor opção. esforço nacional credível junto dos países em desen-
No início do século XXI, o mundo tem oportu- volvimento, através de um grande esforço de ajuda
nidade de dar mais um passo em frente em termos apoiado num plano de acção global para o sector da
de desenvolvimento humano. A crise mundial no água e do saneamento básico.
Lições da história
Ao longo de quase toda a História da Humanidade, a evolução nos indicadores mais importantes como a
vida tem-se mostrado coincidente com a descrição de esperança de vida, a sobrevivência infantil e a saúde
Thomas Hobbes, que a classificou como «deplorável, pública ficaram muito aquém. A razão: as cidades
brutal e curta». A esperança de vida à nascença para proporcionaram aos seus habitantes maiores opor-
os nossos antepassados caçadores era de, aproxima- tunidades de acumular riqueza, mas também os
damente, 25 anos, e na Europa da década de 20 de expuseram ao risco das águas contaminadas pelos
1800, ainda andava pelos 40 anos. A partir de finais excrementos humanos. A crua realidade da água
do século XIX, este quadro começou a mudar de imprópria para consumo veio acabar com a relação
forma dramática para aquela parcela afortunada que se estabelecera entre o crescimento económico
da Humanidade que vive nos actuais países ricos.1 e o desenvolvimento humano. Só depois de a revo-
O aparecimento de novos medicamentos, uma lução no sector da água e do saneamento básico ter
alimentação cuidada, melhores condições de habita- restaurado essa ligação é que a criação de riqueza e o
ção e salários mais elevados contribuíram para esse bem-estar humano começaram a caminhar de mãos
facto. Mas um dos factores que mais contribuíram dadas (caixa 1.1).
para essa mudança foi a separação entre as águas para Aquela revolução foi o prenúncio de avanços
consumo e os excrementos humanos. sem precedentes na esperança de vida e na taxa de
No que diz respeito à água e ao saneamento bá- sobrevivência infantil — e uma melhor saúde pú-
sico, os países tendem a ter memória curta. Hoje em blica fomentaria o progresso económico. À medida
dia, os habitantes das cidades da Europa e dos Esta- que as pessoas se foram tornando mais saudáveis e
dos Unidos vivem sem o medo de contraírem doen- ricas graças ao abastecimento de água potável e ao
ças infecto-contagiosas transmitidas pela água. Mas saneamento básico, começou a despontar um pode-
no limiar do século XX, a situação era bem diferente. roso ciclo de crescimento económico e desenvolvi-
A grande expansão da riqueza que se seguiu à indus- mento humano. Mas as receitas crescentes geradas
trialização originou um aumento dos salários, mas a pelo investimento em redes de água potável também
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Caixa 1.1 Um grande passo em frente — da reforma da água à reforma do saneamento básico, no século XIX, na
Grã-Bretanha 1
«O Parlamento viu-se praticamente obrigado a aprovar legislação se num acréscimo de investi-
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Caixa 1.1 Um grande passo em frente — da reforma da água à reforma do saneamento básico, no século XIX, na
1 Grã-Bretanha (continuação)
O agente catalisador disto foi o investimento público no sector ravam cada vez mais o saneamento básico deficiente como um
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
do saneamento básico, e não o crescimento dos rendimentos constrangimento não só para o progresso dos homens como
privados. Os salários subiram, em média, uns escassos 6% entre para a prosperidade da economia. A voz da sociedade civil
1900 e 1912. desempenhou um papel chave na implementação da reforma
As novas formas de financiamento desempenharam um do saneamento básico que tornou possível a melhoria da saúde
papel crucial na segunda vaga de reformas. As pressões políti- pública.
cas crescentes para que os governos actuassem tiveram como Mas porquê este intervalo entre as duas grandes vagas da
consequência a procura de novos mecanismos fiscais para en- reforma? Um dos maiores parceiros da coligação reformista na
frentar um problema comum aos países em desenvolvimento de primeira vaga foi o sector dos industriais que pretendiam ter água
hoje: como custear as grandes despesas iniciais partindo de uma nas fábricas, mas mostravam-se relutantes em pagar mais im-
receita-base limitada e sem ter de aumentar os impostos e taxas postos para custear a expansão da rede de saneamento até aos
a níveis politicamente impraticáveis. Os governos desenvolveram bairros degradados. Segmentos da sociedade politicamente for-
soluções inovadoras. As cidades obtiveram crédito do governo tes continuavam mais interessados em se protegerem a si pró-
central a juros baixos através de pedidos de empréstimo munici- prios dos efeitos nocivos do saneamento deficiente que atingia
pais junto de mercados obrigacionistas. A água e o saneamento os mais carenciados, do que em promoverem uma rede de abas-
básico foram responsáveis por cerca de um quarto da dívida de tecimento universal. Só depois da reforma eleitoral que alargou
governos locais em finais do século XIX. os direitos de voto às classes mais carenciadas é que a voz dos
Esta enorme mobilização de dinheiros públicos reflectia a pobres começou a fazer-se ouvir.
nova posição assumida pelo sector da água e do saneamento Estamos a falar de uma história passada no século XIX na
nas prioridades políticas. A reforma do saneamento básico Grã-Bretanha, e não no século XXI num mundo em desenvolvi-
transformou-se na pedra de toque dos reformadores sociais, mento. Mas existem paralelismos de realçar entre os constran-
líderes autárquicos e organismos de saúde pública, que enca- gimentos provocados pelo problema da água e do saneamento
Fonte: Bell e Millward 1998; Szreter 1997; Hassan 1985; Woods, Watterson e Woodward 1988; Bryer 2006.
ajudaram a criar e a aumentar progressivamente as metade desses óbitos.4 A elevada taxa de mortalidade
profundas clivagens em termos de riqueza, saúde e infantil funcionou como um travão para o aumento
oportunidades que caracterizam o mundo de hoje. 2 da esperança de vida. Até ao último quartel do século
XIX, a esperança de vida quase não aumentara no
mundo industrializado. As pessoas estavam a tornar-
O modo como a insegurançaa se mais ricas, mas não mais saudáveis.5
da água estrangulou o Por que será que, numa época de grande genera-
crescimento económico e o lização do bem-estar material fruto da industriali-
desenvolvimento humano zação, a sobrevivência infantil e a esperança de vida,
dois dos mais elementares indicadores de bem-estar
No início do século XXI, as doenças infecto-con- do ser humano, não registaram progressos? Em parte
tagiosas transmitidas pela água são coisa do pas- porque a industrialização e a urbanização atiraram a
sado nos países ricos, sendo responsáveis por uma população rural migrante carenciada para os bairros
percentagem de 1% da mortalidade total. No virar degradados da periferia das cidades, onde não havia
do século XIX, a maior ameaça provinha de doen- infra-estruturas de abastecimento de água nem es-
ças como a diarreia, a disenteria e a febre tifóide. Em gotos — um cenário ainda hoje bem visível em mui-
finais do século XIX, elas eram responsáveis por uma tos dos países mais pobres do mundo. Ao mesmo
em cada 10 mortes registadas nas cidades dos E.U., tempo que as cidades ofereciam emprego e salários
sendo as crianças as principais vítimas. As taxas de mais elevados, também iam aumentando a exposi-
mortalidade infantil em Detroit, Pittsburg e Wash- ção dos seus habitantes a agentes patogénicos letais
ington D.C. ultrapassavam as 180 mortes por cada transmitidos através das descargas de fossas, esgotos
1.000 nascimentos — quase o dobro da taxa regis- e drenagens.6
tada, hoje em dia, na África Subsariana.3 Chicago Quase todas as grandes cidades se confronta-
era a capital da febre tifóide no país, apresentando ram com este problema. Em finais do século XIX,
uma média anual de 20.000 casos. No Reino Unido, um relatório de saúde pública publicado em Paris
meio século após a primeira vaga de reformas na lastimava que os bairros pobres da cidade se tives-
saúde pública, o problema da água também continu- sem transformado num «esgoto a céu aberto»,
ava a ser uma potencial ameaça. A taxa de mortali- constituindo uma ameaça quotidiana para a saúde e
dade infantil em Birmingham e em Liverpool ultra- a vida dos habitantes.7 A crise sanitária de Chicago
passava as 160 mortes por cada 1.000 nascimentos, surgiu porque a cidade utilizava o lago Michigan
contribuindo a diarreia e a disenteria com mais de como fonte de abastecimento de água e, simulta-
30 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
neamente, meio de eliminação de resíduos. Este Perto do final do século XIX, os governos agi- O progresso no domínio da
sistema funcionou até à expansão populacional re- ram no sentido de acabar com a separação entre a
1
água e do saneamento foi
gistada após a Guerra Civil, quando a cidade passou água para consumo e as redes de saneamento. Na
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1 Caixa 1.2 Acabar com a relação entre as raças, as doenças e as desigualdades nas cidades dos EUA
Pensamos ser nosso dever afirmar que a venda de água a preços eleva- óbitos por febre tifóide registada entre os americanos de origem afri-
dos não serve os interesses da saúde pública. O abastecimento de água cana que residiam em cidades como Nova Orleães era cerca do dobro
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
Figura 1 A municipalização da água fez baixar os preços, Figura 2 A água potável reduziu as mortes por tifóide
melhorou a qualidade e salvou vidas
Taxas de mortalidade devida a doenças transmitidas pela água nos Estados Unidos, 1900-30 Mortalidade devido à febre tifóide em Cincinnati, Ohio, 1900-30
Mortalidade Mortalidade infantil Mortalidade (por 100.000 pessoas)
(por 100.000 pessoas) (por 1.000 nados-vivos)
80
160 160
Início de filtração
140 Diarreia 140
60
120 Mortalidade 120
infantil
100 100
40
80 80
60 60
Febre tifóide
20 Início de clorinação
40 40
20 20
0
0 0 1900 1910 1920 1930
1900 1910 1920 1930
Fonte: University of California, Berkeley, e MPIDR 2006; CDC 2006; Cutler e Miller 2005 Fonte: University of California, Berkeley, e MPIDR 2006, CDC 2006; Outler e Miller 2005.
Fonte: Cutler e Miller 2005; Cain e Rotella 2001; Troesken 2001; Blake 1956.
32 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Figura 1.1 Redução lenta: o défice global de água e saneamento básico 1
90 90
80 80
70 70
60 60
1990
50 50
2004
40 40
30 30
1990
20 20
2004
10 10
0 0
África Ásia Ásia Países América Mundo África Ásia Ásia Países América Mundo
Subsariana Oriental e do Sul Árabes Latina e Subsariana Oriental e do Sul Árabes Latina e
Pacífico Caraíbas Pacífico Caraíbas
Pessoas sem acesso a uma fonte de água melhorada em 2004 Pessoas sem acesso a saneamento básico melhorado em 2004
(milhões) (milhões)
Total: 1,1 mil milhões Total: 2,6 mil milhões
América Latina e América Latina e
Caraíbas Caraíbas
49,4 119,4
escassez dos recursos hídricos desde há muito que têm-se registado progressos no sector da água e do
faz parte das preocupações da política governamen- saneamento (figura 1.1). E no entanto, no início do
tal em Estados como o Arizona ou a Califórnia. Mas século XXI, uma em cada cinco pessoas residentes
quase todos os habitantes do mundo desenvolvido em países em desenvolvimento — cerca de 1,1 mil
têm acesso a água segura com um simples girar da milhões de pessoas no total — não tem acesso a água
torneira. O acesso a sistemas de saneamento básico potável. Cerca de 2,6 mil milhões de pessoas, quase
privado e a instalações sanitárias é universal. Prati- metade da população total dos países em desenvol-
camente ninguém morre por falta de água potável vimento, não têm acesso a saneamento básico em
ou saneamento — e as raparigas não são obrigadas a condições. Qual o verdadeiro significado destes nú-
faltar à escola para irem buscar água para consumo meros impressionantes?
da família. Em aspectos importantes, eles escondem a rea-
Agora comparemos esta situação com o que se lidade experimentada diariamente pelas pessoas por
passa nas zonas em desenvolvimento. Tal como su- detrás das estatísticas. Essa realidade significa que
cede noutras vertentes do desenvolvimento humano, as pessoas são obrigadas a defecarem em valas, sacos
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de plástico ou nas bermas das estradas. «Não ter
1 Figura 1.2 Mundos separados: a discrepância
da água a nível mundial acesso a água potável» é um eufemismo que oculta
Utilização média da água por pessoa e por dia, 1998-2002 outras carências profundas. Significa que há pessoas
(litros)
que vivem a mais de 1 quilómetro da fonte de água
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
600
potável mais próxima e que são obrigadas a extrair
Estados Unidos
água de valas, regos ou riachos que podem estar
contaminados com agentes patogénicos e bactérias
que podem provocar doenças graves e até a morte.
550
Na África Subsariana rural, milhões de pessoas par-
tilham as suas fontes de água doméstica com animais
ou dependem de poços descobertos que constituem
caldos de cultura de agentes patogénicos. E o pro-
500 blema não se restringe aos países mais pobres. No Ta-
Austrália
jiquistão, quase um terço da população abastece-se de
água proveniente de canais e valas de irrigação, com
risco de exposição a descargas agrícolas poluídas.15
450 O problema não está em as pessoas não terem
consciência do perigo que correm — é que não existe
alternativa. Paralelamente aos riscos para a saúde, o
acesso a água imprópria para consumo significa que
400 as mulheres e as raparigas perdem horas a ir buscar
Itália água e a carregá-la até casa.
Japão Uma simples comparação entre países ricos e
México países pobres basta para sublinhar as desigualdades
350 mundiais (figura 1.2). O consumo médio de água
varia entre 200-300 litros por dia e por pessoa na
maioria dos países da Europa, e os 575 nos Estados
Espanha Unidos. Os habitantes de Phoenix, no Arizona, uma
Noruega cidade situada no deserto onde existem alguns dos
300
mais verdejantes relvados dos Estados Unidos, conso-
França
mem mais de 1.000 litros por dia. Pelo contrário, o
consumo médio em países como Moçambique é in-
ferior a 10 litros. As médias nacionais escondem, ine-
250 Áustria
vitavelmente, variações muito grandes. As pessoas
privadas do acesso a água melhorada nos países em
desenvolvimento consomem muito menos, em parte
Dinamarca porque são obrigados a transportá-la ao longo de
200 enormes distâncias, e a água é pesada. Os 100 litros
Alemanha
Brasil diários apontados pelas normas internacionais como
Peru consumo mínimo para uma família de cinco pessoas
Filipinas pesam 100 quilos — um fardo demasiado grande
150 Reino Unido para carregar durante duas ou três horas, sobretudo
Índia por raparigas. Outro problema reside no facto de as
famílias carenciadas muitas vezes não terem meios
para pagar mais do que uma pequena porção de água
100 comprada nos mercados informais — um assunto a
Água —
China limiar da que voltaremos mais adiante.
pobreza Qual será o princípio básico para um abasteci-
mento de água condigno? É difícil estabelecermos
50
uma relação entre o acesso à água e a pobreza por
Bangladeche, Quénia causa das variações relacionadas com o clima — as
Gana, Nigéria
Burquina Faso, Níger
pessoas das zonas áridas do Norte do Quénia pre-
Angola, Camboja, Etiópia, cisam de beber mais água do que os habitantes de
Haiti, Ruanda, Uganda Londres ou de Paris —, das condições sazonais, e
0 Moçambique
das características de cada família, entre outros fac-
a. OFWAT 2001. tores. As normas internacionais definidas por or-
Fonte: FAO 2006.
ganismos como a Organização Mundial de Saúde
34 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
(OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infân- acesso a uma fonte de água melhorada na maioria das Enquanto uma parte
cia (UNICEF) sugerem um requisito mínimo de 20 zonas rurais da África Subsariana. Um americano
1
do mundo sustenta um
litros por dia proveniente de uma fonte situada até consome, a tomar um simples duche de cinco mi-
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deve surpreender-nos, já que os serviços têm de ser
1 Figura 1.3 Muitos países ainda têm um longo caminho a percorrer
até atingirem uma cobertura plena financiados quer através dos orçamentos familiares
quer dos dinheiros públicos. Mais surpreendente é a
Países com cobertura de água Países com cobertura de saneamento
grande variação nos valores médios.
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
36 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
nível dos rendimentos, sendo a poluição de águas
residuais um factor predominante. 21 Os países que
Figura 1.4 Rendimentos e resultados no
acesso à água e ao saneamento: o
1
adiam a sua cobertura do saneamento básico irão bem-estar financeiro e a eficácia
divergem frequentemente
sistematicamente a 90
dimensão da escassez Vietname
5.000
80
China
As estatísticas mundiais relativas ao sector da água Indonésia
e do saneamento básico são divulgadas através do Egipto 70
Programa de Monitorização Conjunta da OMS e da 4.000
UNICEF. Estes dados apresentam-nos um cenário Tanzânia
Indonésia 60
desolador. Mas a realidade é ainda mais desoladora
do que aquilo que as estatísticas mostram. Apesar
3.000 50
de a metodologia de recolha de dados ter melho-
Vietname
rado, os valores atenuam os problemas por várias
40
razões. Parte do problema assenta no facto de a pre-
sença física de uma fonte «melhorada» — como é 2.000
o caso da latrina de fossas ou fontes públicas — nem 30
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1 Caixa 1.3 Os «sanitários voadores» de Kibera — uma consequência da grave negligência verificada na cobertura
das redes de fornecimento de água e de saneamento básico em zonas pobres de Nairobi
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
As condições aqui são terríveis. Vejam com os vossos próprios olhos. ou Nova Iorque. Existem quase 700 quiosques de água disponíveis
Há esgotos por todo o lado. Algumas pessoas possuem latrinas com em bairros degradados, embora as vendas estejam concentradas
fossa, mas estas são pouco profundas e transbordam quando chove. em quiosques geridos pelos senhorios — um factor que limita a ca-
A maioria das pessoas usa baldes e sacos de plástico como retretes pacidade de protesto público contra algumas práticas injustas.
— e as crianças fazem as necessidades nas ruas e nos quintais. As Os habitantes que dependem dos quiosques gastam, geral-
nossas crianças sofrem permanentemente de diarreia e de outras mente, cerca de uma hora para recolherem a água, e durante os
doenças devido à imundície. períodos de seca, chegam a demorar ainda mais. Também gastam
Mary Akinyi, aldeia de Mugomo-ini, Kibera com isso uma grande parte dos seus magros rendimentos. Para uma
família com dois adultos a receberem o salário mínimo, os gastos
A menos de 7 quilómetros do Parlamento Queniano, no centro de médios com a água representam cerca de 20% dos seus rendimen-
Nairobi, o aglomerado urbano de Kibera, em franco crescimento, é tos — um peso tremendo nos orçamentos domésticos.
um dos maiores bairros degradados da África Subsariana. Os seus A cobertura de saneamento básico é ainda mais limitada. Em
habitantes experimentam uma das piores situações de falta de água algumas zonas, uma única latrina chega a ser partilhada por 150 pes-
e de saneamento básico no mundo. No entanto, pessoas como Mary soas. Em muitos casos, estas latrinas não oferecem privacidade e se-
Akinyi quase nunca constam das estatísticas. gurança e são anti-higiénicas e mal cuidadas, apresentando paredes
De acordo com o relatório do governo queniano sobre os Objec- degradadas e fossas a transbordar. A Câmara Municipal de Nairobi
tivos de Desenvolvimento do Milénio, 93% dos residentes de Nairobi não fornece quaisquer serviços de saneamento básico a Kibera.
têm acesso a água potável e 99% dispõem de saneamento. Estes Um dos indícios mais marcantes que contrariam os dados re-
números dificilmente colam com as condições de vida em Kibera. lativos à prestação de serviço consiste nos «sanitários voadores».
Vivem no bairro degradado entre 500.000 e um milhão de pessoas Sem disporem de quaisquer latrinas públicas ou privadas, muitos
— desconhecem-se os números verdadeiros. Com 2.000 a 3.000 dos residentes de Kibera defecam para dentro de sacos de plástico
pessoas por hectare quadrado, esta será por certo a área com maior que largam em valas ou atiram para a berma da estrada. Duas em
densidade populacional de toda a África Subsariana. Uma família cada três pessoas em Kibera indicam os sanitários voadores como
média de três a quatro indivíduos vive numa habitação de uma só di- tratando-se do principal meio que têm à sua disposição para defeca-
visão, feita de lama, madeira, plástico e chapas de ferro ondulado. rem. E não é difícil percebermos porquê. No final da década de 1990,
Um simples olhar para as ruas de Kibera levanta questões acerca numa zona de bairros degradados — Laina Saba — existiam em
dos dados apresentados. A alta densidade populacional, a concen- funcionamento 10 latrinas com fossa para 40.000 pessoas. Tendo
tração de pessoas e a falta de infra-estruturas criaram um verdadeiro em conta as limitações de qualquer estimativa relacionada com os
pesadelo no que diz respeito ao acesso à água e ao saneamento bairros degradados em geral, a cobertura de saneamento em Kibera
básico. Os canais de escoamento nas bermas das estradas estão fre- estará, provavelmente, muito abaixo dos 20%.
quentemente entupidos, as latrinas com fossa transbordam na época A saúde pública fornece-nos mais indícios da situação real que
das chuvas e as crianças brincam em montes de lixo não recolhido. se vive em Kibera, no que respeita ao acesso à água e ao sanea-
Os dados relativos ao fornecimento de serviços não são fiáveis. mento básico. Os donos dos quiosques oferecem aos habitantes um
Menos de 40% dos lares têm acesso a ligações legais à rede de meio de salvação. No entanto, as torneiras que utilizam para aceder
abastecimento de água, geralmente através de uma fonte pública. à rede de abastecimento de água estão frequentemente danificadas.
Entre os que possuem um acesso à rede, cerca de um terço apenas Uma das consequências desta situação é o lançamento à água de
recebe água dia sim, dia não. Cerca de 80% dos lares adquirem toda excrementos e outros detritos que flutuam nas águas residuais. O
ou uma parte da água que consomem através de vendedores priva- fornecimento de água de má qualidade e a falta de infra-estrutu-
dos cujos preços rondam os 3,50 dólares por metro cúbico, subindo ras para a eliminação de excrementos e de gestão das águas resi-
para quase o dobro na estação seca. Este preço médio é cerca de duais estão directamente associados à alta incidência de diarreia,
sete vezes superior àquele que os moradores de bairros ricos pagam doenças de pele, febre tifóide e malária. As taxas de mortalidade
pelos serviços fornecidos pela Companhia das Águas e Esgotos de devido à diarreia são largamente superiores às do resto de Nairobi
Nairobi — e é também superior aos preços praticados em Londres (ver quadro).
Taxas de mortalidade infantil e de crianças com menos de cinco anos e incidência de diarreia no Quénia
38 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Caixa 1.3 ���������������������������������������������������������������������������������������������������
Os «sanitários voadores» de Kibera — uma consequência da grave negligência verificada na cobertura
das redes de fornecimento de água e de saneamento básico em zonas pobres de Nairobi (continuação) 1
Fonte: Quénia 2005, ONU-HABITAT 2003; WSP-AF 2005c; Collignon e Vézina 2000.
Bombaim e local de residência de quase um mil- • Nairobi. Os dados para esta cidade dão conta
hão de pessoas. Os moradores dos bairros degra- de uma cobertura de acesso à água e ao sanea-
dados vivem num ambiente que representa uma mento básico superior a 90%. Este número é
ameaça diária para a saúde pública. Calcula-se difícil de enquadrar na experiência de vida das
que exista um sanitário para cada 1.440 pessoas. pessoas mais carenciadas. Em Nairobi, mais de
Na época das chuvas, as ruas, por não terem um um milhão de pessoas que habitam em bair-
sistema de escoamento, transformam-se em ca- ros degradados ou aglomerados clandestinos
nais de água putrefacta que transporta excre- — cerca de um terço da população da cidade
mentos humanos. Os habitantes de zonas como — dependem de vendedores ambulantes como
Dharavi estão dependentes de poços, cisternas fonte de abastecimento de água secundária. No
ou fontes de fornecimento inseguras quando que diz respeito ao saneamento básico, o pano-
procuram água para beber. Para além destas rama é ainda pior. Os «sanitários voadores»
zonas, existem os edifícios de arrendamento de Kibera — sacos de plástico para onde as pes-
degradados, ou chawls, onde os habitantes im- soas defecam, atirando-os de seguida para a rua
provisam canalizações com canos enferrujados, — são um testemunho da extensão limitada re-
torneiras defeituosas e cisternas completamente lativamente à cobertura de saneamento básico
danificadas. Num cenário típico, 15 famílias em Nairobi, o que também acontece em relação
partilham uma torneira que apenas funciona à alta taxa de mortalidade infantil nos bairros
durante duas horas por dia. 22 degradados (caixa 1.3).
• Jacarta. As estatísticas nacionais indicam taxas Saneamento básico e poluição da água. Em mui-
de cobertura de abastecimento de água tratada tos países, o velho problema da separação entre a
em mais de 90% das zonas urbanas da Indoné- água para consumo e os esgotos continua a constituir
sia. No entanto, os inquéritos abrangendo um um enorme desafio para as políticas governamentais
grande número de residentes clandestinos em — e para a saúde pública. O défice de infra-estrutu-
Jacarta, uma cidade com mais de 12 milhões de ras e a sua degradação estão no centro deste desafio.
habitantes, concluem que menos de um quarto Na América Latina, a percentagem de excrementos
da população usufrui em pleno de fontes de humanos que recebe qualquer tipo de tratamento
abastecimento de água tratada. Os restantes de- situa-se abaixo dos 14%: o restante é despejado nos
pendem de uma variedade de fontes, incluindo rios e lagos ou abandonado, infiltrando-se no solo e
rios, lagos e vendedores ambulantes de água. A contaminando águas subterrâneas. A China tem um
discrepância: cerca de 7,2 milhões de pessoas. 23 forte historial no alargamento do acesso às redes de
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 39
1 Caixa 1.4 A discrepância entre o abastecimento de água e o saneamento
básico nas Filipinas
O actual sistema de sanitários, cujas vantagens foram tão aclamadas, é o pior que alguém poderia
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
algum dia adoptar... Este sistema limita-se a remover todos os excrementos das nossas casas, para
entupir com eles os nossos rios, transformando-os em depósitos pútridos que vão apodrecendo à porta
dos nossos vizinhos. É um sistema que traz para dentro das nossas casas um inimigo mortífero.
Scientific American, 24 de Julho, 1869
No século XIX, reformistas sociais e engenheiros oriundos da Europa e dos Estados Unidos denuncia-
ram o facto de a generalização de latrinas sem o adequado dispositivo de eliminação de detritos
representar uma ameaça para a saúde pública. Manila, a capital das Filipinas, é um exemplo de como
este problema ainda não foi resolvido. As taxas de cobertura de saneamento básico foram situadas
acima dos 80%, mas este valor esconde um sério desafio à saúde pública.
Desde 1997, ano em que as autoridades municipais privatizaram os serviços de abastecimento
de água e a rede de esgotos, tem havido um grande esforço no sentido de alargar o acesso à água
potável, tanto na zona Leste da cidade, onde os serviços privatizados oferecem um melhor abasteci-
mento, como na zona Oeste, onde os privados falharam. O saneamento tem merecido muito menos
atenção, em parte devido à dimensão das dificuldades de abastecimento e a um passado parco em
investimentos neste sector.
A percentagem da população residente na área metropolitana de Manila que possui uma ligação
à rede de esgotos não chega aos 4%. As famílias mais abastadas encontraram a solução através da
criação das suas próprias estações de saneamento. Os sanitários com autoclismo são largamente
usados, ligados a fossas sépticas privadas, servindo frequentemente grandes condomínios. Cerca
de 40% das famílias dispõem, hoje, de latrinas em casa, o que conta como factor de melhoria. Cal-
cula-se que haja um milhão ou mais de fossas sépticas em Manila.
O problema é que estações de tratamento e eliminação de águas residuais escasseiam. Resultado:
Assiste-se ao lançamento indiscriminado de descargas mal tratadas para o rio Pasig — uma complexa
rede de canais que liga o lago Laguna de Bay ao porto de Manila através de uma profusão de subúrbios
urbanos. Outras 35 toneladas de resíduos sólidos domésticos são depositadas todos os anos no rio Pasig
pela mão de ocupantes ilegais que residem em povoamentos improvisados ao longo das margens do rio.
No total, cerca de dez milhões de pessoas descarregam resíduos não tratados para o rio.
Este factor apresenta graves consequências para a saúde pública. O rio Pasig é um dos mais
poluídos do mundo, representando os detritos humanos 70% da totalidade da sua poluição. Os níveis
de coliformes fecais excedem largamente os padrões definidos pelo Departamento do Ambiente e
Recursos Naturais — cerca de um terço de todas as doenças em Manila está relacionado com a
qualidade da água. Os 4,4 milhões de habitantes que vivem ao longo das margens do rio enfrentam
problemas particularmente graves, sobretudo durante as inundações na época das chuvas de Junho
a Outubro. Durante a época de poucas cheias, o rio Pasig muda de direcção e transporta a poluição
para o Lago Laguna, criando ainda mais complicações para a saúde pública.
Têm sido traçados planos ambiciosos para limpar o rio Pasig, embora nenhum tenha saído da
fase de planeamento, em parte devido ao fracasso do governo e dos fornecedores de água em de-
senvolverem uma estratégia coerente para combater a crise do saneamento básico em Manila
Fonte: WSP–EAP 2003; AusAID 2006.
abastecimento de água tanto nas áreas rurais como trinas com fossa, o que resulta na entrada de
nas áreas urbanas, embora a poluição resultante águas residuais nos sistemas de abastecimento de
dos desperdícios humanos e industriais seja um água. «Saneamento melhorado» para uns pode
problema grave. Dezasseis cidades com níveis po- transformar-se em poluição e, para outros, numa
pulacionais de mais de meio milhão de habitantes ameaça para a saúde pública — como é o caso de
não usufruem de estações de tratamento de águas Manila (caixa 1.4)
residuais. 24 A nível nacional, menos de 20% dos Uma infra-estrutura de abastecimento de
resíduos municipais recebe qualquer tratamento, água deficiente pode criar situações de alto de
obrigando os habitantes a ferverem a sua água em risco, mesmo em cidades com taxas de cobertura
casa antes de a beberem. Em 2003, a Administra- de rede elevadas. As taxas urbanas de cobertura
ção Pública para a Protecção Ambiental indicou de rede de água tratada no Paquistão estão ava-
que mais de 70% da água em cinco dos sete prin- liadas acima dos 90%. Mas o que significa este
cipais sistemas fluviais na China estava demasiado valor na prática? Vejamos as cidades de Lahore
poluída para utilização humana. (com 5 milhões de habitantes) e Carachi (10 mi
Um problema adicional reside no facto de, lhões), onde se estima que metade da população
em muitos países, as cidades não possuírem as viva em zonas de bairros degradados clandesti-
infra-estruturas de recolha dos resíduos das la- nos. Ambas as cidades dependem de uma com-
40 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
binação de águas captadas no subsolo e águas períodos, obrigando as famílias a recorrerem aos Para os indivíduos, para
provenientes de canais. Contando com mais de mercados clandestinos de comercialização de água
1
os lares e para sociedades
40% da água fornecida não filtrada e 60% dos que não oferecem condições de segurança. De uma
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 41
Em grande parte do mundo
1 Os custos da crise em termos de
em desenvolvimento, a água
imprópria para consumo
desenvolvimento humano
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
42 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
do que os conflitos violentos. Essa ameaça ataca Figura 1.5 Diarreia: o segundo maior
logo à nascença. A água imprópria para consumo assassino de crianças 1
e a falta de saneamento básico estão directamente Número de mortes, 2004
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 43
o peso financeiro dos sistemas de saúde dos países
1 Figura 1.7 O acesso à água potável reduz o risco de diarreia…
em desenvolvimento em cerca de 1,6 mil milhões de
dólares anuais — 610 milhões de dólares só na África
Redução do risco de diarreia (%)
Subsariana, o que representa cerca de 7% de todo o
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
0
orçamento para a saúde nesta região.
10
Até que ponto a transição de uma rede de
20 Peru abastecimento de água e saneamento básico não
Nicarágua
30
Gabão
Mali tratada para uma tratada poderá reduzir o risco
Marrocos
Benim de mortalidade infantil? Esta questão foi alvo de
40 Guatemala
Camarões Haiti uma investigação levada a cabo em vários países, a
50 Vietname Etiópia pensar neste relatório (ver Nota técnica 3). Foram
60 Zimbabué utilizados para o efeito dados de um inquérito rea-
lizado junto de famílias oriundas de 15 países, com
70 Gana
o objectivo de analisar as variações do perfil de risco
80 dessas famílias tomando por base o abastecimento
90 de água e as redes de esgotos tratados. As conclusões
sublinharam a influência de um eficiente acesso à
100
água e ao saneamento básico na prevenção da mor-
Água canalizada dentro de casa Água canalizada Água potável talidade infantil:
Nota: Dados baseados em sondagens realizadas entre 1995 e 2004. Para mais pormenores ver a Nota técnica 3.
• Uganda. O acesso a uma fonte de água tratada
Fonte: Fuentes, Pfütze e Seck 2006b. reduz o risco de mortalidade infantil em 23%.
• Egipto. O acesso a sanitários com autoclismo
reduz o risco de mortalidade infantil em 57%
Figura 1.8 …e o mesmo se aplica ao acesso ao saneamento básico quando comparado com as crianças que vivem
em lares sem acesso a saneamento básico (figura
Redução do risco de diarreia (%) 1.6).
Gana Camarões Mali Nicarágua Egipto Zâmbia Nepal Bangladeche Benim Vietname • Peru. O acesso a sanitários com autoclismo reduz
0
o risco de mortalidade infantil em 59% quando
10 comparado com crianças que residem em lares
20 sem acesso a saneamento básico.
O principal caminho para reduzir os riscos passa
30
pela diminuição da incidência de casos de diarreia.
40 As variações registadas na redução do risco eviden-
50 ciam a importância de um vasto conjunto de factores
que por sua vez influenciam os resultados dessa es-
60
tratégia de redução do risco. Como já fizemos notar,
70 as tecnologias melhoradas não podem ser vistas iso-
80
ladamente. No entanto, elas podem desencadear
avanços significativos no domínio da saúde pública.
90
Recorremos a dados estatísticos dos lares inquiridos
100 para investigar os perfis de risco da diarreia associa-
Instalações sanitárias dos às diferentes tecnologias sanitárias. Desta análise
Sanitários com autoclismo Latrina de fossa resultaram duas descobertas importantes. Em pri-
meiro lugar, o acesso à água potável e ao saneamento
Nota: Dados baseados em sondagens realizadas entre 1995 e 2004. Para mais informações ver a Nota técnica 3.
Fonte: Fuentes, Pfütze e Seck 2006b.
básico têm um papel preponderante na incidência de
diarreia. Nos lares em que existe água canalizada, a
taxa de incidência diminui cerca de 70% no Gana,
para a diarreia como a vacinação está para doenças e mais de 40% no Vietname (figura 1.7). Da mesma
mortais como o sarampo ou a poliomielite: trata- forma, os sanitários com autoclismo reduzem o risco
se de mecanismos de redução do risco de doença e de contaminação em mais de 20%, em países como
de prevenção da mortalidade. Para além de salvar o Mali, a Nicarágua e o Egipto (figura 1.8). Em se-
vidas, o investimento preventivo na criação de redes gundo lugar, existe uma hierarquia na redução do
de abastecimento de água e de saneamento básico risco. As latrinas com fossa reduzem o risco, embora
faz sentido de um ponto de vista económico, já que menos que os sanitários com autoclismo; e o acesso a
pode ajudar a reduzir os custos do sistema de saúde uma fonte de água tratada fora do lar reduz menos o
curativo. O acesso universal até mesmo às instalações risco do que quando existe acesso a água canalizada
mais rudimentares de água e saneamento reduziria dentro da casa.35
44 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Por que motivo existem tão grandes variações ção. As crianças subnutridas têm, pois, uma maior Actualmente, perto da
na redução do risco consoante o tipo de tecnologia probabilidade de vir a sofrer de diarreia, sendo os
1
metade da população do
usada e os diferentes países? Em termos genéricos, casos de doença mais prolongados. Por seu turno,
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 45
1 Caixa 1.5 As despesas de saúde devido à falta de acesso a água e a saneamento
Perguntámos a uma mulher de uma área em estudo inserida no pro- • Tracoma. Chlamydia trachomatis, o organismo que provoca o
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
grama como poderia a triquíase [um desenvolvimento do tracoma] tracoma é transmitido pelas mãos e por moscas que pousam na
afectar a sua capacidade de trabalho. Ao que ela respondeu: «As cara e se alimentam da secreção ocular. As crianças são o alvo
minhas pálpebras mordem como um cão e arranham como um es- preferido. De acordo com a OMS, cerca de 6 milhões de pessoas
pinho. Consegue aguentar-se em cima de um espinho? Imagine que já cegaram devido a esta doença. E outros 150 milhões preci-
tem um espinho no pé e não o consegue tirar - depois, tente falar sam de tratamento, estimando-se a existência de 500 milhões
em trabalhar.» de pessoas em situação de risco. A doença é endémica em 55
Dr. Paul Emerson, director técnico do Programa países, contribuindo a China e a Índia com 2 milhões de casos
de Controlo do Tracoma do Centro Carterr (ver quadro). Calcula-se que a Etiópia seja o país com o índice
mais elevado de pessoas cegas, sendo o tracoma responsável
O mais importante para mim é voltar a ser saudável. Significa que por um terço dos casos.
conseguirei trabalhar e sustentar a minha família. Assim que a doença atinge um estádio avançado, o único
Mare Aleghan, paciente com tracoma, etíope, 42 anos tratamento é a intervenção cirúrgica. Apesar de ser relativa-
mente simples e custar apenas 10 dólares, esta intervenção não
Os problemas de saúde associados a um inadequado fornecimento está, contudo, ao alcance de muitos pacientes: na Etiópia, cerca
de água e de saneamento ultrapassam em muito os evitáveis óbitos de 1 milhão de pessoas necessita desta operação mas apenas
infantis. As doenças provocadas por falta de acesso a água potável 60.000 são sujeitas a este tratamento anualmente. As famílias
representam cerca de 5% do total global de enfermidades. A an- mais pobres acabam por ser desproporcionalmente afectadas,
gústia e o sofrimento associados estão muito além do que se possa uma vez que a doença se encontra fortemente relacionada com
estimar. o excesso populacional e com a ausência de água potável para
Convencionou-se que as doenças provocadas por falta de consumo. Estima-se que as perdas de produtividade provo-
acesso a água potável se dividiam em três categorias: doenças cadas pelo tracoma totalizem anualmente 2,9 mil milhões de
de transmissão hídrica (tal como infecções que provocam diarreia dólares.
transmitidas através de água contaminada por fezes), doenças cau- • Esquistossomose. Cerca de 200 milhões de pessoas em 74
sadas por condições insalubres (quando a pele ou a vista entram países encontram-se infectadas com esquistossomose, e pelo
em contacto com água contaminada, como o tracoma) e doenças menos 600 milhões estão em situação de risco. Dos indivíduos
atribuídas à água (causadas por parasitoses encontradas em água infectados, 20 milhões apresentam um estádio já avançado da
contaminada, como seja a esquistossomose e outros helmintos). doença e 120 milhões apresentam apenas os respectivos sinto-
Uma quarta categoria, não considerada nas linhas que se seguem, mas. Estima-se que 80% da transmissão desta doença ocorra
compreende doenças provocadas por insectos, como a dengue e a na África Subsariana, causando milhares de óbitos por ano.
malária. Em países em desenvolvimento, algumas destas doenças Fortemente relacionada com a eliminação de excrementos em
chegam mesmo a atingir proporções epidémicas: condições sanitárias precárias, a esquistossomose é transmi-
• Helmintos internos. Cerca de 10% da população dos países tida através do contacto humano com água contaminada (beber,
em desenvolvimento sofre de doenças provocadas por parasi- lavar, ir buscar água e tomar conta de animais).
toses intestinais como lombrigas, triquíase e ancilostomas. As
infecções estão fortemente relacionadas não só com a elimina-
ção de excrementos por meio de condições sanitárias precárias,
mas também com uma fraca higiene. O que contribui para uma
subnutrição, para uma redução do potencial cognitivo e para Número de pessoas com tracoma por país ou região
casos de anemia. As crianças infectadas com helmintos têm em 2004
quatro vezes mais probabilidade de apresentarem baixo peso.
• Cólera. As epidemias de cólera são um grande risco em áreas Número de pessoas com
com elevada concentração populacional e fraco saneamento Região tracoma
básico. As fortes chuvas podem provocar inundações nas latri- China 1.174.000
nas, contaminar as águas e expor as populações às bactérias da Índia 865.000
cólera. Em 2005, a África Ocidental apresentou mais de 63.000
Outros países e ilhas asiáticas 1.362.000
casos de cólera que conduziram a 1.000 mortes. O Senegal foi
África Subsariana 1.380.000
gravemente afectado na sequência de cheias provocadas pelas
Médio Oriente 927.000
chuvas na cidade de Dacar. Durante o primeiro semestre de
2006, uma das mais graves epidemias a afectar a África Subsa- América Latina 158.000
riana nos últimos anos registou, por mês, mais de 400 óbitos em Total 5.866.000
Angola.
Fonte: Sight Savers International 2006.
Fonte: Sight Savers International 2006; OMS 2006a; Carter Center 2006.
46 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
tados em clínicas de cuidados básicos, nomea- Prejuízo da educação Para as raparigas, a falta
damente os localizados em bairros degradados e das raparigas
1
de acesso a água e a
em zonas rurais. Os indicadores de saúde a nível
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 47
A perda de dignidade gas; um défice que ajuda, naturalmente, a explicar os meses de Verão, quando o tempo gasto a ir buscar
1 a dificuldade em reduzir os índices de abandono água aumentou para mais duas horas por dia, elas
associada à falta de
escolar entre as raparigas após a puberdade.43 tiveram de se adaptar reduzindo o tempo dedicado
privacidade na área do As disparidades existentes a nível educacional ao trabalho nas micro-empresas. Esta associação es-
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
saneamento básico ajuda a relacionadas com a falta de acesso a água e a sanea- timou que reduzir o tempo de recolha de água para
mento acarretam impactos que se arrastam por toda uma hora por dia permitiria às mulheres auferir mais
explicar porque as mulheres
uma vida e que se transmitem de gerações em gera- 100 dólares por ano, dependendo da empresa - o que
lhe atribuem uma maior ções. A educação pode legitimar as mulheres para a representa uma enorme perda de rendimentos para
relevância do que os homens participação nas tomadas de decisão das respectivas famílias em áreas de extrema pobreza. Contudo,
comunidades. Já na idade adulta, as raparigas com importante não era apenas a perda de rendimento
um bom grau de educação têm maior probabilidade económico. As mulheres realçaram igualmente a im-
de ter famílias mais pequenas e mais saudáveis; e os portância deste factor para a sua independência.46
seus filhos menos probabilidade de morte prematura,
recebendo níveis de educação escolar mais elevados
do que os filhos de mães menos alfabetizadas. Estas A redução da dignidade humana
vantagens são cumulativas, assim como o são as per-
das associadas a desigualdades de género relaciona- No Verão sentimo-nos tão sujas. Passam-se semanas
das com a falta de acesso a água e a saneamento. que não lavamos as nossas roupas. As pessoas dizem
que nós estamos sujas e cheiramos mal. Mas como
podemos estar limpas sem água? 47
O agravamento do binómio Estas palavras, proferidas por uma mulher indiana
tempo-pobreza e da de classe baixa, espelham a relação entre os vectores
desigualdade de género dignidade humana e água. A dignidade não é men-
surável; contudo, é o cerne do desenvolvimento hu-
Em quase todos os países, a divisão de géneros mano e do nosso sentido de bem-estar, tal como Adam
em termos laborais atribui às mulheres responsabi- Smith reconheceu. Ao escrever a obra A Riqueza das
lidades que não são partilhadas pelos homens. A di- Nações, Adam Smith incluiu entre as «necessidades»
visão de tarefas no seio familiar interage com os pro- para o bem-estar aqueles elementos de conforto que
blemas a nível do fornecimento de serviços de modo «até a pessoa mais pobre, homem ou mulher, teria ver-
a reforçar as profundas desigualdades de género. gonha de aparecer sem eles em público».48
O tempo perdido a ir buscar água representa um O acesso a instalações de saneamento seguras,
Figura 1.9 A população pobre pesado fardo para as mulheres. Nas zonas rurais de higiénicas e privadas é um dos mais indicadores sóli-
representa a maioria Moçambique, do Senegal e da parte leste do Uganda, dos de dignidade. Para milhões de mulheres a nível
das pessoas com falta
de acesso a água e a as mulheres passam, em média, entre 15 a 17 horas mundial, o acesso inadequado a estas instalações é
saneamento semanais a ir buscar água. É muito usual ver as mu fonte de vergonha, desconforto físico e insegurança.
Milhões, 2002 lheres percorrerem mais de 10 quilómetros durante As normas culturais controlam rigorosamente o
2.600 as estações secas. Estudos realizados na parte leste do comportamento nesta área, e em muitos casos as
2.400
Uganda revelaram que as famílias gastam, em média, mulheres não podem mesmo ser vistas a defecar;
660 horas por ano a ir buscar água. E isto representa uma exigência que as força a sair de casa antes do ama
2.200 dois meses inteiros de trabalho, com custos a nível da nhecer ou após o anoitecer, no sentido de poderem
2.000 Outros frequência escolar, do rendimento económico e do ter privacidade. Tal como uma mulher no Bangla-
tempo livre das mulheres.44 Estima-se que, na África deche descreveu: «Os homens podem fazer face às
1.800
Subsariana, sejam despendidas, por ano, cerca de 40 necessidades fisiológicas sempre que quiserem ... mas
1.600 mil milhões de horas a ir buscar água45 — o equiva- as mulheres têm de esperar até ao anoitecer, seja qual
1.400 lente a um ano de trabalho de toda a mão-de-obra for o problema que tenham.»49 Em muitos países,
de França. Reduzindo o tempo dedicado a outras a protelação das necessidades fisiológicas é uma das
1.200
actividades, como o cuidar dos filhos, o descanso principais causas de infecções a nível do fígado e de
1.000
Pessoas que ou o trabalho produtivo, o tempo gasto a ir buscar obstipação intestinal aguda.
800 vivem com água acaba por aumentar a falta de tempo para lazer, A perda de dignidade associada à falta de pri-
menos de 2 retirar legitimidade à mulher e reduzir o respectivo vacidade na área do saneamento básico ajuda a ex-
600 dólares por dia
rendimento económico. plicar porque as mulheres lhe atribuem uma maior
400 Pessoas que Os estudos efectuados na Índia, pela Associação relevância do que os homens. Quando questionados
vivem com
200
Feminina de Trabalhadoras Independentes (SEWA), acerca dos benefícios das latrinas, tanto os homens
menos de 1
dólar por dia demonstram bem esta relação. As mulheres ocupa- como as mulheres do Camboja, da Indonésia e do
0
das com bem sucedidos projectos de micro-empresas Vietname afirmaram que a principal vantagem seria
Saneamento Água
Fonte: Calculado com base em Chen e Ravallion na zona semiárida de Gujarat despendem entre três a limpeza das casas e um ambiente livre de cheiros e
2004 e OMS e UNICEF 2004b. a quatro horas por dia para ir buscar água. Durante moscas.50 No entanto, as mulheres eram mais a favor
48 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
de despenderem dinheiro nas casas de banho (para nanceiros para a criação de condições de saneamento
elas um importante investimento), dando especial básico por parte das famílias e das entidades gover-
1
ênfase à privacidade. Eram igualmente elas que com namentais deve-se pois, parcialmente ao facto de as
Os números médios nacionais ofuscam profunda- Em termos de saneamento, também existe uma
mente as desigualdades estruturais no acesso a água e forte associação entre a pobreza e o acesso à água: dois
a saneamento. Em muitos países, estas desigualdades quintos das famílias mais pobres representam mais de
são equivalentes a um sistema de apartheid a nível metade do défice a nível global. Cerca de 1,4 mil mil-
da água potável baseado na riqueza, na localização hões de pessoas sem acesso a água potável vivem com
e noutros indicadores de vantagem e desvantagem. menos de 2 dólares por dia. No entanto, as taxas de co-
Para além disso, traduzem as profundas desigualda- bertura de saneamento básico são bem mais reduzidas
des de oportunidades de vida que corroem os princí- do que as de água potável, mesmo em grupos com um
pios básicos da cidadania partilhada e da igualdade
de oportunidades.
Figura 1.10 A divisão da água
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 49
A distribuição da riqueza em populações sem
1 Figura 1.11 A grande divisão do saneamento básico
acesso a água e a saneamento acarreta importantes
implicações de ordem prática, tanto em termos de
Acesso ao saneamento por quintis de riqueza (%)
política pública como de Objectivos de Desenvolvi-
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
mento do Milénio. As principais fontes nacionais de
20% mais financiamento para vectores como a água e o sanea-
ricos Colômbia
2005
mento são as famílias (através do pagamento de tari-
20% mais
pobres fas, de custos de ligação, de custos com mão-de-obra e
de investimento) e o Estado (impostos ou subsídios).
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 Em qualquer país, a fusão mais apropriada em ter-
20% mais mos de financiamento público e financiamento das
ricos
Quirguizistão famílias dependerá de várias circunstâncias, in-
20% mais 1997
pobres cluindo o rendimento médio, a pobreza e o perfil
económico dos agregados familiares que não têm
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 acesso a uma rede de água potável. Em países de ren-
20% mais
dimento elevado e médio, existe a possibilidade de as
ricos Namíbia famílias financiarem os custos operacionais do forne-
20% mais 2000 cimento deste bem, apesar de o Estado desempenhar
pobres um papel fundamental no financiamento dos cus-
tos de investimento na criação de uma rede de água
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
potável. Em países de rendimento baixo e médio,
20% mais com taxas de cobertura reduzidas entre a população
ricos
Peru pobre, o financiamento público é a chave do desen-
20% mais 2000
pobres volvimento do acesso a este bem. Os 660 milhões de
pessoas que vivem com menos de 2 dólares por dia e
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 que não têm acesso a água potável, bem como os 1,4
20% mais mil milhões de pessoas que carecem de saneamento
ricos Zâmbia básico, não têm condições para financiar o abasteci-
2001-02
20% mais mento de água através dos seus rendimentos.
pobres
A desigualdade em termos de acesso a água po-
Instalação sanitária tável é um tema abrangente. Nos países mais ricos, as
Sanitários com Latrina de
Sem instalação pessoas não são diferenciadas pelo local onde obtêm
autoclismo fossa
água nem pelo tipo de instalações sanitárias que
Fonte: Calculado com base em Measure DHS 2006. utilizam. Em muitos países em desenvolvimento, a
distribuição da riqueza é definida pelo local onde se
obtém água e pelos recursos de saneamento básico
Figura 1.12 A população pobre tem uma taxa que se possui.
de cobertura de saneamento O acesso a água canalizada é altamente diferen-
básico mais baixa no Brasil
ciador. Uma análise efectuada em 17 países em de-
Rendimento médio mensal
(salário mínimo = 1)
senvolvimento (Estudos Demográficos e de Saúde),
e levada a cabo propositadamente para este rela-
Menos do que 1
tório, concluiu que a disponibilidade deste bem era
1a2 de aproximadamente 85% para os 20% mais ricos do
2a3 total de famílias, comparativamente com 25% para
3a5 os 20% mais pobres. Num grupo grande de países, o
rácio de cobertura de água canalizada entre os mais
5 a 10
ricos e os mais pobres é, normalmente, 4:1 ou 5:1.
10 a 20 No Peru, o acesso a água canalizada é universal para
Mais do que 20 os 20% mais ricos, enquanto dois terços dos 20%
0 25 50 75 100
mais pobres compram água directamente aos ven-
Cobertura de saneamento (%) dedores ou adquirem-na em fontes de água (figura
Fonte: Heller 2006. 1.10). As disparidades registadas a nível do acesso a
saneamento básico são igualmente marcantes. Estas
rendimento mais elevado. Nos países em desenvolvi- desigualdades desempenham um papel primordial
mento, um quarto dos 20% mais ricos não têm acesso no desenvolvimento humano devido à sua correla-
a saneamento básico melhorado, e esse valor ascende a ção com a distribuição de meios de sobrevivência,
metade para os segundos 20% mais ricos. educacionais e de pobreza.
50 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Alguns países registam elevadas desigualdades reia representa 12% dos óbitos registados na cidade, O preço da água potável
mesmo que apresentem um baixo nível de abasteci- mas representa 20% das desigualdades em termos de
1
reflecte um princípio de
mento de água. Na Zâmbia, três quartos dos 20% taxas de mortalidade entre as crianças provenientes
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 51
As pessoas mais ticipação nas despesas e os princípios do mercado água que ponha em risco a saúde como despender
1 possam pôr em risco o acesso a custos reduzidos a demasiado tempo a ir buscar água, as famílias mais
carenciadas nas áreas
água potável por parte da população mais pobre. carenciadas poderão preferir gastar os seus limitados
urbanas dos países em Ambas as perspectivas reforçam pontos impor- recursos na aquisição deste bem.
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
desenvolvimento não só tantes. No entanto, ambas descuram algumas das Contudo, o querer gastar não significa o mesmo
realidades fundamentais experienciadas pelas famí- que poder gastar; pelo menos, não da forma em que
pagam, pela aquisição
lias mais pobres. Muitas delas carecem de capaci- o conceito interage com o desenvolvimento humano.
de água, mais do que os dade para fazer face a encargos de recuperação de Ora, se a despesa na água correspondea uma grande
residentes da mesma cidade custos numa base comercial. Ao mesmo tempo, a parte do orçamento das famílias que vivem no limiar
visão de que a população mais pobre tem acesso da pobreza (ou abaixo), as despesas com outros vecto-
que auferem rendimentos a um abundante abastecimento de água a custos res como a saúde, a educação, a nutrição e a produção
mais elevados, como reduzidos é uma ilusão. Recorrendo a mercados acabam por ficar comprometidas. Para além disso, os
que aumentam mais a sua pobreza, a maioria está pagamentos médios anuais podem esconder os eleva-
também despendem
já a pagar mais do que aquilo que poderia no sen- dos preços que levam a uma enorme taxa de esforço
mais por este bem do tido de fazer face às suas necessidades mais básicas. durante a estação seca, quando o orçamento familiar
que as populações dos O preço da água potável reflecte um princípio de é mais prejudicado.
injustiça muito simples: quanto mais pobre se é, Na verdade, as famílias estão a ponderar os
países mais ricos mais se paga. benefícios de gastar num bem como a água, com-
Existe, no entanto, muito pouca investigação em parativamente aos benefícios de gastar noutras
torno da percentagem do orçamento das famílias po- áreas que devem ser vistas como o mínimo dos di-
bres que é dedicada à água. Para milhões de famílias, reitos de ordem social. Reduzir as despesas com
o elevado preço de um bem como a água traduz-se, água potável por parte das famílias mais caren-
claramente, num esforço excessivo em termos de re- ciadas poderia, em muitos casos, aumentar o ren-
cursos económicos. Prova disso é o estudo realizado, dimento económico destas, melhorando assim as
para este Relatório, na América Latina que concluiu perspectivas de fugir à pobreza e a capacidade de
que 20% dos mais pobres na Argentina, El Salvador, recuperação.
Jamaica e Nicarágua gastam mais de 10% do seu ren- A desigualdade em termos de abastecimento
dimento económico na aquisição de água potável.53 de água relaciona-se não só com o acesso e despesas
Cerca de metade dessas famílias vivem no limiar da inerentes, mas também com o preço deste serviço.
pobreza absoluta, com menos de 1 dólar por dia (fi- Um dos temas mais recorrentes no abastecimento
gura 1.13).
Padrões similares de consumo final doméstico Figura 1.14 Os custos de estar longe do
abastecimento de água
são registados noutras regiões. No Uganda, as des-
pesas com um bem como a água representam cerca
Rácio entre os preços dos vendedores de água nos bairros
de 22% do rendimento médio dos 20% das famílias degradados e os preços dos serviços públicos de abastecimento
urbanas mais pobres54 . Um estudo realizado em Ja- Catmandu (Nepal)
Camião-cisterna
carta concluiu que mais de 40% das famílias gasta
Dhaka (Bangladeche)
5% ou mais dos seus rendimentos na aquisição de 16 Vendedor de água
água potável.55 (As autoridades regulamentadoras Manila (Filipinas)
Vendedor de água
no Reino Unido decretam que qualquer despesa
14 Barranquilla (Colômbia)
feita para a aquisição de água acima dos 3% do Camiões-cisterna
consumo final doméstico representa um indicador Lima (Peru)
Camiões-cisterna
de esforço.) 12
Acra (Gana)
Estes valores em torno do consumo final domés- Revendedor
tico alertam para a adopção indiferenciada de uma 10 Ulan Bator (Mongólia)
Fontes públicas
maior recuperação de custos como estratégia finan- Nairobi (Quénia)
ceira. Existe um enorme espaço de manobra para 8
Quiosques de água
mais recuperação de custos por parte de grupos com
rendimentos mais elevados, muitos dos quais benefi- 6
ciam de grandes subsídios. O mesmo princípio não se
aplica aos grupos abaixo do limiar de pobreza. As ele-
4
vadas despesas da população mais pobre são, muitas
vezes, interpretadas como prova da sua capacidade
financeira. Ou seja, o facto de as famílias mais caren- 2
de que têm disponibilidade e capacidade financeira. Fonte: Conan 2003; Solo 2003; ADB 2004; WUP 2003; WSP–AF 2005c.
Dado que as alternativas tanto podem ser consumir
52 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
de água nos países em desenvolvimento é o preço ser
inversamente proporcional à capacidade financeira
Figura 1.15 Preços da água: os pobres pagam mais, os ricos pagam menos
1
Preço da água (em USD por metro cúbico)
das famílias. De facto, algumas das populações mais
ou Roma (figura 1.15). dia. Contudo, os residentes dos bairros degrada- 100
Porque é o preço da água inversamente propor- dos de Kibera são forçados a gastar, em média, mais
cional à capacidade financeira em muitos países? As de duas horas por dia a ir buscar água a fontes que 90
razões variam, mas em áreas urbanas o factor mais funcionam 4 a 5 horas diárias (ou menos). 80
crítico é a distância entre o utilizador e a fonte de A relação entre o preço e a desvantagem geo-
70
abastecimento de água. Os fornecedores de água gráfica ajuda a explicar as profundas disparidades
Parklands, Nairobi
que operam nas redes municipais oferecem, nor- existentes a nível do abastecimento de água que di- 60 (Quénia)
malmente, os serviços mais baratos. As famílias com videm tantas cidades. A escassez absoluta raramente Água canalizada
50
uma ligação directa à rede através de uma torneira é o problema que se encontra subjacente: a maioria Água não canalizada
em casa têm acesso a essa água potável. As famílias das cidades possui água mais do que suficiente. O 40 bairros degradados urbanos
mais carenciadas sem esta ligação têm de adquirir problema é que este bem está distribuído de forma 30 Mathare Valley,
Nairobi (Quénia)
água por meio de uma rede de intermediários. Assim, desigual:58 Mulago (Uganda)
os preços aumentam de forma exagerada através dos • A cidade de Lima produz mais de 300 litros 20 Moshi (Tanzânia)
Mkuu (Tanzânia)
intermediários: camiões, vendedores e outros. Ora, diários de água per capita, mas 60% da popula- 10 Mukaa (Quénia)
Mwisi (Uganda)
assegurar uma ligação à rede iria certamente baixar ção recebe apenas 12% deste bem.
0
o preço unitário deste bem. No entanto, duas gran- • Em Guayaquil, no Equador, passam diariamente Água não canalizada,
des barreiras limitam esta opção: os elevados custos pela cidade mil milhões de litros de água no Rio aldeias
Fonte: Thompson e outros 2002.
de capital e as proibições que existem em estabelecer Guayas. E os subúrbios com rendimentos eleva-
uma ligação devido ao facto de existirem populações dos gozam de acesso universal a água potável.
a viver sem direitos de propriedade formais. Só que cerca de 800.000 pessoas, que vivem
Estas barreiras ajudam a explicar as desigual- com baixos rendimentos e sem direitos de pro-
dades no acesso à rede. Em Acra, na República do priedade formais, dependem dos vendedores de
Gana, as taxas de ligação rondam, em média, os 90% água. Cerca de 40% da população tem de viver
nas áreas com rendimento mais elevado e 16% em com 3% da água canalizada.
zonas com rendimentos mais baixos.57 As popula- • Em Chennai, na Índia, o abastecimento médio
ções de Madina e Adenta, zonas urbanas de bairros é de 68 litros por dia, mas as áreas que estão de-
degradados no sudeste da cidade, compram água po- pendentes dos camiões apenas utilizam 8 litros.
tável a associações de camionistas que, por sua vez, Em Ahmedabad, 25% da população utiliza 90%
a adquirem em grandes lotes ao abastecimento pú- da água potável.
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 53
A divisão rural-urbano: as disparidades no acesso a saneamento
1 Figura 1.17
básico continuam elevadas
Figura 1.18 Alguns grupos étnicos têm
muito menos acesso à água
Percentagem da população com acesso a saneamento (%) Percentagem da população com acesso a água canalizada (%)
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
100
Chade
Guiné 80
Eritreia Não indígena
Somália 60
Moçambique
República Centro-Africana 40
Burquina Faso
Indígena
Etiópia 20
Namíbia
Índia 0
Bolívia Bolívia Paraguai Nicarágua
Níger 2002 2001 2001
Angola Fonte: Gasparini e Tornarolli 2006.
China
Mauritânia
Libéria água e de saneamento é entre as áreas urbanas
Cabo Verde
e as zonas rurais. Para os países em desenvol-
Haiti
vimento, a cobertura de água potável é de 92%
Camboja
Belize
nas áreas urbanas e de apenas 72% em zonas
Micronésia, Est. Fed. rurais. A cobertura em termos de saneamento
Rep. Dem. Popular do Laos básico é ainda mais assimétrica: a cobertura
Benim urbana é o dobro da cobertura rural (figura
Togo 1.17). Parte do fosso rural-urbano corres-
Iémen ponde a disparidades a nível dos rendimen-
tos e da pobreza: a privação de rendimento é
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
geralmente mais marcante nas zonas rurais.
Contudo, há outros factores igualmente im-
portantes. O abastecimento de água e de sa-
Rural Média Urbano
Fonte: UNICEF 2006b. nacional
neamento é mais difícil e acarreta custos mais
elevados per capita em populações rurais do
que em populações urbanas. Os factores polí-
• Muitos países na África Subsariana enfrentam ticos também não devem ser descurados junto
uma crise nacional no que concerne o abas- das populações das zonas rurais — normal-
tecimento de água — mas esta é partilhada de mente provenientes de áreas marginais — pois
forma desigual. Os residentes de Oyster Bay, têm uma voz muito mais fraca que os seus par-
uma zona de elevados rendimentos em Dar ceiros urbanos.
es Salam, Tanzânia, utilizam em média 166 • Divisão por grupos. A identidade perante um
litros de água por dia, enquanto as famílias grupo é um indicador de desvantagem em
em Moshi sem uma ligação a água canalizada muitos países. Na América Latina, este factor
consomem uma média de 19 litros diários reflecte-se em disparidades entre as popula-
(figura 1.16). ções indígenas e não indígenas (figura 1.18).
As desigualdades a nível da riqueza não operam Na Bolívia, a percentagem média do acesso a
isoladamente. No seio de um agregado familiar, a água canalizada é de 49% nos falantes indíge-
divisão de géneros em termos de tarefas significa nas e de 80% nos não indígenas. As minorias
que cabe às mulheres e às raparigas uma fatia maior étnicas no Vietname têm menos de um quarto
das desvantagens em comparação aos homens, por- da cobertura do que a maioritária população
que são responsáveis por ir buscar água, cozinhar, Kinh.59 Na Ásia do Sul, a casta continua a ser
tomar contas das crianças, dos idosos e dos doen- uma importante fonte de desigualdade. Na
tes. Fora desse núcleo, a desigualdade a nível dos Índia, as regras ditadas pela casta que gover-
rendimentos interage com desigualdades mais am- nam o acesso a água enfraqueceram; contudo,
plas. As mais importantes são as seguintes: continuam a ter a sua importância embora de
• Divisão rural-urbano. Umas das maiores dis- uma forma mais subtil. Em Andhra Pradesh,
paridades em termos do abastecimento de as mulheres oriundas de castas mais baixas
54 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
têm permissão para ir buscar água a poços lo- aperta. Os três estados de Chiapas, Guerrero
calizados em zonas de casta mais elevada; no e Oaxaca sublinham o facto de a disponibili-
1
entanto, não podem elas próprias tirar a água dade física de água e o acesso a esta apresenta-
Huanca-
velica
National,
média
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Mortalidade infantil (por 1.000 nados vivos)
Fonte: ONU 2006a.
Os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, o mesmo objectivo. Nos dias de hoje, 1,1 mil milhões
estabelecidos pelos líderes mundiais na Cimeira do de pessoas sem abastecimento de água potável e 2,6
Milénio da ONU, procuram reduzir para metade mil milhões sem acesso a saneamento básico são a
o número de pessoas sem acesso sustentável a uma prova viva de que as conferências internacionais e os
fonte de água melhorada até ao ano 2015 (objectivo impressionantes objectivos não substituem as acções
10). Não é a primeira vez que a comunidade interna- práticas no sentido de providenciar água, instalações
cional estabelece objectivos tão ambiciosos. No iní- sanitárias e sistemas de esgotos.
cio dos anos 80, os governos abraçaram entusiastica- Será que o mundo em 2015 contemplará mais
mente o objectivo da consecução do acesso a Água uma década de objectivos não conseguidos? Ou será
e a Saneamento para Todos até 1990. No início dos esta a década que acabará com as disparidades entre
anos 90, a terceira década da Água, foi determinado os objectivos internacionais e os resultados no ter-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 55
reno? As respostas dependerão das políticas nacionais Tendo em conta este crescimento da população, a
1 e da cooperação internacional. O que é indubitável é versão simples do desafio estabelecido pelo Objec-
que o sucesso é possível e que falhar estes objectivos tivo de Desenvolvimento do Milénio é que, até 2015,
tem um preço muito elevado em termos de vidas hu- mais 900 milhões de pessoas necessitem de acesso a
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
manas perdidas e de potencial humano desperdiçado. água potável e 1,3 mil milhões de pessoas necessitem
Ao mesmo tempo, o Objectivo de Desenvolvimento de acesso a saneamento básico. Ora, estas metas não
do Milénio deverá ser visto como uma base e não serão atingidas se o mundo continuar com a trajec-
como um tecto, isto é, um incentivo para se conse- tória que tem seguido até agora.
guir o acesso destes bens a nível global. É muitas vezes Isto implica várias centenas de milhares de
esquecido que, mesmo que a meta 10 seja atingida em novas ligações por dia em alguns dos países mais
2015, ainda sobram 800 milhões de pessoas com falta pobres. Para algumas regiões, o índice de novas
de acesso a água potável e 1,8 mil milhões de pessoas ligações precisa de ser consideravelmente aumen-
sem recursos a nível do saneamento básico. O cresci- tado, no sentido da consecução das metas estabele-
mento populacional significa que qualquer desvio da cidas (tabela 1.1). A Ásia do Sul necessitará de for-
meta do Objectivo de Desenvolvimento do Milénio necer anualmente uma cobertura de saneamento
deixará o mundo na mesma situação relativamente à básico a 43 milhões de pessoas, comparativamente
água e ao saneamento. com os anuais 25 milhões de pessoas ao longo da
década anterior. A África Subsariana enfrenta um
desafio igualmente ambicioso. Entre 1990 e 2004,
Um relatório em torno a região aumentou as taxas de cobertura de água
da meta do objectivo de potável numa média de 10,5 milhões de pessoas
desenvolvimento do milénio por ano. No sentido de atingir a meta durante a
próxima década, esse valor terá de mais do que du-
Estima-se que, ao longo da próxima década, a pop- plicar para os 23 milhões por ano. Em termos de
ulação dos países em desenvolvimento cresça 830 saneamento básico, o número de pessoas, por ano,
milhões, contribuindo a África Subsariana com um com uma nova ligação directa a este bem precisa de
quarto do aumento e a Ásia do Sul com um terço. ser quadruplicado — de 7 milhões para quase 28
A necessitar de
acesso para atingir a
A obter acesso meta estabelecida
1990 2004 Objectivo 2015 1990-2004 2004-15
África Subsariana 226,6 383,8 627,1 10,5 23,1
Países Árabes 180,1 231,8 335,8 4,7 6,5
Ásia Oriental e Pacífico 1.154,4 1.528,2 1.741,2 22,9 24,3
Ásia do Sul 840,6 1.296,4 1.538,1 32,5 22,1
América Latina e Caraíbas 334,3 499,0 527,8 9,0 6,1
Mundo 2.767,7 4.266,4 5.029,5 79,5 82,4
56 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
milhões. Para atingir estes resultados regionais,
muitos países têm pela frente um desafio muito
Figura 1.20 Algumas regiões não estão no bom
caminho para alcançarem a meta do
1
Objectivo de Desenvolvimento do
ambicioso: Milénio referente à água e
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 57
clandestino, com pessoas com um elevado índice
1 Figura 1.21 A cobertura da água está a melhorar com a rápida
urbanização em alguns países de pobreza a viver sem as mínimas infra-estru-
turas de água e saneamento. Os sinais de aviso
Percentagem da população total (%)
são bem visíveis. Cerca de 29 países — como por
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
100
exemplo, a China, a Indonésia, Moçambique,
90 a Nigéria, as Filipinas, o Uganda e o Iémen —
1990 viram as respectivas taxas de cobertura descer ao
80 longo da década transacta (figura 1.21).
70 2004
60 Os ganhos da prossecução
das metas do Objectivo de
50
Desenvolvimento do Milénio
40
Quanto custaria alterar a actual trajectória global de
30
2004 vectores como a água e o saneamento no sentido de
1990 atingir o Objectivo de Desenvolvimento do Milénio?
20
A resposta depende dos pressupostos em torno do
10 nível e do tipo de tecnologia, bem como dos custos
de abastecimento. Dados pouco fiáveis fazem com
0
que as estimativas sejam arriscadas, mas a verdade é
China Moçambique Nigéria Filipinas Iémen
que existe um nível surpreendentemente elevado de
População urbana Acesso urbano a uma consonância nas várias investigações.
fonte de água melhorada
Fonte: ONU 2006b.
Estima-se que as despesas actuais em água e
saneamento nos países em desenvolvimento ron-
dem anualmente os 14 a 16 mil milhões de dóla-
resto do mundo conduzirá a ainda maiores desi- res (excluindo o tratamento de águas residuais). O
gualdades em termos de saúde, educação e erradi- consenso generalizado em torno do financiamento
cação da pobreza. adicional exigido no sentido de atingir a meta do
Em segunda instância, a disparidade água- Objectivo de Desenvolvimento do Milénio com
saneamento também deverá ser marcante. O pe- base em tecnologias sustentáveis de baixo custo é de
rigo é que os potenciais benefícios do progresso cerca de 10 mil milhões de dólares anuais 61 Este é o
em termos de água possam ser banidos por uma patamar mínimo de financiamento. Reflecte o custo
não consecução de avanços equiparados na área do alargamento do abastecimento de água e sanea-
do saneamento. De facto, um aumento do abas- mento recorrendo ao mais baixo nível de tecnologia.
tecimento de água em locais onde os esgotos e a Oferecer um nível de serviços mais elevado e manter
eliminação de excrementos sejam desadequados o abastecimento nos padrões actuais às pessoas que
poderia exacerbar problemas de saúde pública, já estão abrangidas acrescentaria a esse valor outros
especialmente em cidades com elevada densidade 15 a 20 mil milhões de dólares por ano. E se a meta
populacional. Poderia corresponder a um sério incluísse os custos de recolha e tratamento de águas
atraso no desenvolvimento humano se o mundo residuais a nível dos agregados familiares estaríamos
repetisse, no início do século XXI, os erros a falar de montantes muito mais elevados.
cometidos na segunda metade do século XIX na Estes valores dizem respeito aos custos da equa-
Europa. ção. E os benefícios? A investigação levada a cabo
A divisão rural-urbano continuará a desem- pela OMS para este Relatório aborda esta questão.
penhar um papel importante. As zonas rurais não Os resultados apontam para a enorme necessidade
cessarão de representar grande parte do défice em de haver mais investimento em água e saneamento.
2015. No entanto, a urbanização gerará pressões A resposta ultrapassa os simples cálculos em torno
crescentes. Ao longo da década que decorrerá até dos rácios custo-benefício, por muito impressionan-
2015, a percentagem de população das cidades do tes que estes valores sejam, exige mesmo uma maior
mundo em desenvolvimento aumentará de 42% acção pública. Entre as principais conclusões, encon-
para 48%, ou seja, 675 milhões. Ora, só para tram-se as seguintes:
manter os níveis de cobertura actuais, as cidades • Assistir-se-ia a menos 203.000 óbitos de crian-
terão de assegurar o abastecimento a esta popula- ças em 2015, se a meta do Objectivo de Desen-
ção aumentada. A maioria do crescimento ocor- volvimento do Milénio fosse atingida; 124.000
rerá em bairros degradados já sobrepovoados (ou delas na África Subsariana. Cumulativamente,
à volta destes) e em áreas do perímetro urbano e mais de 1 milhão de vidas poderiam ser salvas
58 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
ao longo da próxima década se o mundo se- sofrimento associados à diminuição das taxas de mor- Da perspectiva do
guisse no caminho certo em direcção à conse- talidade infantil. Contudo, reforçam o esforço econó-
1
cução desta meta. mico e de desenvolvimento humano no sentido de in-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 59
O princípio unificador O Objectivo de Desenvolvimento do Milénio • Ajuda internacional.
1 e 2015 constituem um primeiro marco do caminho • Um plano de acção global para a água e o
da acção pública para
e não o seu destino final. Esta declaração é dupla- aneamento.
a água e o saneamento mente verdadeira. Em primeiro lugar, o derradeiro
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
60 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
declarar que a água é um direito humano não signi- ter a saúde pública, debilitar a dignidade humana e A água e o saneamento
fica que a crise da água venha a ser resolvida em pouco travar o crescimento económico, mas a questão está
1
não gozam de grande
tempo. Uma estrutura de direitos também não ofe- ligada a um estigma político cuja intensidade encon-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 61
As agendas nacionais proeminente nos Documentos de Estratégia de mais vasto, como uma maior igualdade de género e
1 Redução da Pobreza (DERP) — os documentos menores desigualdades de oportunidade. Há sempre
de redução da pobreza
que estabelecem os planos nacionais e definem os solicitações concorrentes na despesa pública, mas os
reflectem a crescente termos de cooperação entre doadores e receptores elevados retornos sociais e económicos dos investi-
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
negligência passiva da de ajuda. Numa análise de cinco países, foi encon- mentos na água e no saneamento sugerem que estes
trado apenas um caso — o do Uganda — de inte- deveriam ser uma prioridade e não uma preocupação
água e do saneamento
gração bem sucedida. 64 Na maioria dos DERP, a secundária do orçamento.
água e o saneamento, em contraste com a reforma Os padrões da despesa nacional falam por si. É
macroeconómica, a educação e a saúde, são trata- difícil apurar a despesa pública real na água e no sa-
dos de forma depreciativa, não merecendo mais do neamento devido, por um lado, à fragmentação do
que alguns parágrafos descritivos e declarações de financiamento entre ministérios, por outro, à des-
princípio gerais, sem a mínima semelhança com centralização e, por outro ainda, ao facto do finan-
uma agenda de reforma estratégica ou de presta- ciamento dos doadores frequentemente não figurar
ções financeiras. A fraqueza dos DERP reflecte, no orçamento. Contudo, o total da despesa pública
por sua vez, o reduzido interesse dos doadores na no sector representa geralmente menos de 0,5% do
água e no saneamento. PIB, caindo para 0,1% no Paquistão e na Zâmbia
As afectações orçamentais reforçam o cenário de (figura 1.22). Considerando todo o sector, a despesa
negligência. Poucos investimentos públicos contri- em saneamento é geralmente muito menor do que
buem mais para o aumento da segurança humana a destinada à água. O investimento no saneamento
ou para a criação de prosperidade do que os investi- representa em média 12% a 15% do total na África
mentos na água e no saneamento. A água limpa e as Subsariana e na Ásia. A despesa global é baixa não
instalações sanitárias encontram-se entre as interven- apenas relativamente ao rendimento nacional, mas
ções de saúde mais potentes que o governo pode em- também a outras áreas de despesa social, como a saúde
preender, rivalizando com a vacinação em termos de pública. Quando comparada com a despesa militar,
potenciais benefícios. Tal como a despesa de saúde ou a diferença atinge proporções bastante elevadas. A
de educação, a despesa pública em água e saneamento Índia, por exemplo, gasta oito vezes mais da sua ri-
cria benefícios tanto para os indivíduos como para a queza nacional em orçamentos militares do que em
sociedade. Gera também bens públicos de âmbito água e saneamento. O Paquistão gasta 47 vezes mais.
Na África Subsariana, os baixos rendimentos médios
restringem claramente a capacidade da despesa pú-
Figura 1.22 Água: uma baixa prioridade em muitos orçamentos
blica. Simultaneamente, a Etiópia, um dos países mais
pobres do mundo, com algumas das taxas de cober-
Despesas do governo no domínio militar, da saúde, da água e do saneamento
(em % do PIB) tura mais baixas (e algumas das taxas de mortalidade
10 infantil por diarreia mais elevadas) ainda consegue
Militar mobilizar um orçamento militar superior em quase
9 Saúde dez vezes ao da água e saneamento. A África do Sul é
Água e saneamento
um dos poucos países que gasta menos na área militar
8
do que na água e no saneamento.
As prioridades orçamentais levantam algu-
7
mas questões importantes sobre a despesa pública.
6
Todos os países encaram a segurança e a defesa na-
cionais como prioridades. Mas, do ponto de vista
5 da segurança humana, é difícil escapar à conclusão
de que a água e o saneamento se encontram subfi-
4 nanciados relativamente à despesa militar. A diar-
reia ceifa cerca de 450.000 vidas por ano na Índia
3 — mais do que em qualquer outro país — e 118.000
no Paquistão. Ambos os países contam com taxas
2 de mortalidade por diarreia muito mais elevadas
do que se poderia prever com base nos seus rendi-
1
mentos médios. O Paquistão classifica-se 28 lugares
mais acima no quadro da liga global de mortalidade
0
Etiópia Iémen Paquistão India Uganda África do Sul Quénia México Zâmbia por diarreia do que no do PIB per capita e a Índia
2000 2003 2003 2004 2002 2003 2001 2003 2003–04 classifica-se 14 lugares mais acima. Naturalmente,
Fonte: Etiópia, Quénia e África do Sul, WSP 2003; Iémen, Iémen 2002; Paquistão, Paquistão 2004; Índia, Nayyar e Singh 2006; estão em jogo diversos factores, mas os baixos níveis
Uganda, Slaymaker e Newborne 2004; México, INEGI 2006a; Zâmbia, Zâmbia 2004b.
de despesa na água e no saneamento têm certamente
o seu contributo.
62 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Os últimos anos testemunharam alguns desen- em titularidades (caixa 1.6). As histórias nacionais Uma das características
volvimentos encorajadores nos orçamentos destina- de sucesso no saneamento são menos significativas.
1
dos países que apresentam
dos à água e ao saneamento. Começando a reconhecer Contudo, mesmo aqui, verificam-se alguns pode-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 63
1 Caixa 1.6 África do Sul — Actuar sobre o direito à água
O acesso à água foi uma das divisões raciais definidoras da África do Sul do apartheid. Desde
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
que o apartheid chegou ao fim, uma estrutura legislativa baseada em direitos e políticas públi-
cas destinadas a alargar o acesso à água legitimaram as comunidades locais e reduziram as
desigualdades. Esta tarefa ainda não se está concluída — mas há importantes lições a retirar
para outros países.
Inquéritos realizados antes das eleições de 1994, que marcaram o fim do apartheid, demonstra-
ram que o acesso a serviços básicos, em conjunto com o emprego, era a principal expectativa do
povo relativamente ao governo a eleger. A Constituição de 1996 incluiu uma Carta de Direitos que
preservava «o direito à água e alimentação adequadas». Este direito constitucional recebeu conteúdo
legislativo no quadro da Lei de Serviços de Água (1997) e da Lei Nacional da Água (1998). Entre as
principais disposições contam-se as seguintes:
• Metas a médio prazo claramente definidas para fornecer 50 a 60 litros de água salubre a todos
os lares, em conjunto com um saneamento adequado a todos os lares urbanos e a 75% dos lares
em meios rurais.
• Tarifas subsidiadas para garantir que todos os sul-africanos possam pagar serviços de água
suficientes para uma saúde e higiene adequadas. O governo recorreu aos seus poderes
regulatórios para exigir que todos os municípios fornecessem um mínimo básico de 25 litros
gratuitos a cada lar. O objectivo é fornecer o acesso a um serviço básico e gratuito de água
para todos até 2008, encontrando-se cada lar a um máximo de 200 metros de uma fonte de
água.
• Tarifas escalonadas que proporcionem uma subsidiação cruzada entre utilizadores de elevado
volume e utilizadores de baixo volume.
• Transferências equitativas de quotas que levam em consideração o número de pessoas caren-
ciadas em cada município numa fórmula de transferências fiscais.
A nova estrutura política alcançou avanços importantes. Desde 1994 que 10 milhões de pes-
soas receberam acesso a água salubre, tendo as taxas de cobertura aumentado de 60% para 86%.
Cerca de 31 milhões de pessoas recebem agora um serviço básico e gratuito de água.
A legitimação tem sido um aspecto menos tangível, mas importante, da reforma. O Departa-
mento de Assuntos da Água oferece uma estrutura reguladora nacional, mas a responsabilidade
pela implementação foi transferida para o poder local. A regulação coloca as obrigações nas
mãos dos fornecedores municipais e nas autoridades locais eleitas e confere aos utilizadores uma
titularidade baseada em direitos para exigir que estas obrigações sejam cumpridas. Por outro
lado, as empresas municipais de abastecimento de água têm de publicar informações pormeno-
rizadas sobre o abastecimento de água por distrito, divididas por utilizadores carenciados e não
carenciados.
À medida que as reformas foram sendo implementadas, suscitaram um debate público sobre a
projecção e a implementação. Alguns argumentam que o limiar de 25 litros para um serviço básico
e gratuito de água é demasiadamente baixo. O abastecimento em algumas zonas tem-se mostrado
errático, forçando os lares a recolher água em locais mais remotos. Além disso, as políticas de
preços do governo conduziram a cancelamentos do abastecimento por falta de pagamento em
algumas zonas, aumentando as preocupações sobre a capacidade de pagamento.
O progresso no saneamento foi menos significativo do que na água. Há ainda 16 milhões de
pessoas — um terço dos sul-africanos — sem acesso a saneamento básico. A ausência de um
consenso face a um nível de saneamento básico e aceitável, aliado a problemas na geração de
procura, tem contribuído para o fracasso.
A experiência sul-africana coloca em destaque três ingredientes vitais da política para o
progresso: um plano nacional claro com metas bem definidas, um forte quadro regulamentar
nacional delegada às autoridades locais e uma monitorização constante do desempenho e do
progresso.
1. Planeamento nacional. Cada país deve ter um que legitimam o poder local, não deixando de criar
plano nacional para a água e o saneamento, inte- responsabilidade perante as comunidades. O desem-
grado em estratégias nacionais de redução da pobreza penho tem sido variável — mas existem sinais de pro-
e reflectido em estruturas de financiamento a médio gresso. Uma maior igualdade é vital para o progresso.
prazo e prioridades orçamentais. Não há receitas A maioria dos países não alcançará o Objectivo de
globais para um planeamento bem sucedido. No Desenvolvimento do Milénio e objectivos mais
entanto, entre os ingredientes contam-se objectivos generalizados simplesmente através da expansão da
claros apoiados por um financiamento adequado e infra-estrutura. Necessitam também de abordar a
o desenvolvimento de estruturas de abastecimento distribuição desigual do acesso à água e saneamento
64 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
relacionada coma riqueza, localização, género e 2. Financiamento do sistema. Os planos nacionais Cada pessoa tem o direito
outros factores. Cada plano nacional deve, conse- têm de incluir estimativas claras de financiamento
1
humano a um mínimo de
quentemente, incluir tanto indicadores de referên- para atingir as suas metas. Todo o financiamento
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 65
Os governos têm a • Estratégias de apoio à procura de água e sanea- um direito humano ou pelo debate entre operado-
1 mento pelos lares mais pobres. As estratégias res públicos e privados, questões que voltam a ser
responsabilidade de
devem levar em conta o facto de que as pessoas abordadas nos capítulos 2 e 3.
assegurar que os sem acesso à água vivem esmagadoramente
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
66 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
mos de acesso do Objectivo de Desenvolvimento do
Milénio ascende ainda a dois mil milhões de dólares
Figura 1.23 O investimento público em água e saneamento é insuficiente
para alcançar a meta do Objectivo de Desenvolvimento do 1
Milénio em muitos países
por ano. A tentativa de colmatar esta lacuna atra-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 67
mitações. A mais visível é o enorme défice de ajuda
1 Figura 1.24 O compromisso dos doadores é bastante variável —
e o financiamento é imprevisível relativamente a requisitos de financiamento. Como
indicador geral, os fluxos de ajuda para a água e o sa-
Ajudas ao sector da água e saneamento, 2003-04 (em milhões de USD) neamento terão de aumentar em cerca de 3,6 a 4 mil
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
0 100 200 300 400 500 600 700 800 900 milhões de dólares por ano para que o objectivo passe
a estar ao alcance, para além de mais 2 mil milhões de
Japão
dólares designados à África Subsariana. Esta é uma
Associação Internacional para o Desenvolvimento prioridade imediata. Sem mais ajuda, muitos gover-
Estados Unidos nos não disporão da base de receitas para efectuar os
Alemanha investimentos iniciais necessários para colocar o Ob-
jectivo de Desenvolvimento do Milénio ao alcance. E
União Europeia
as reformas da política e os investimentos na água e
França
no saneamento levam um tempo considerável a pro-
Fundo Africano de Desenvolvimento duzir resultados.
Dinamarca A ajuda está a estagnar O segundo problema é que os recursos da ajuda
Fundo Asiático de Desenvolvimento Total da APD no sector da água e saneamento,1997-2004
são inevitavelmente desviados em direcção a países
Países Baixos (2003 em mil milhões de USD) com uma forte presença de doadores — mais espe-
5 cificamente, em direcção a países com uma massa
Canadá
crítica de doadores que dão prioridade à água e ao
Espanha 4
saneamento. Trata-se de um resultado que não sur-
Reino Unido preende e que é bastante importante. Os países nos
3 Excluindo
Outrosa
o
quais o Japão é um parceiro importante têm maior
Iraque probabilidade de assegurar ajuda para a água e sanea-
2 Tendência
linear
mento. A consequência é que as boas políticas nem
a. inclui a Austrália, Áustria, Bélgica, Grécia, Finlândia, 1
sempre são apoiadas por ajuda suficiente para a água
Irlanda, Itália, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Suécia, e saneamento em países em que os doadores revelam
Suíça e o Fundo das Nações Unidas para a Infância.
0 um fraco compromisso com o sector. Se muitos fac-
Fonte: Iniciativas de Desenvolvimento 2006. 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 tores determinam a afectação da ajuda, é difícil esca-
par à conclusão de que muitos países se debatem com
uma disparidade entre as necessidades nacionais de
gumentos fortes em termos de desenvolvimento para financiamento e os fluxos de ajuda. Em 2004, o Gana
o apoio de infra-estruturas de água e saneamento de e a Tunísia receberam cada um 88 dólares em ajuda
larga escala enquanto parte de uma estratégia global para cada pessoa sem acesso a uma fonte de água
do sector: o desenvolvimento de instalações de trata- melhorada; o Burquina Faso e Moçambique recebe-
mento de águas residuais e de redes de água e sanea- ram 2 dólares por pessoa. A África do Sul recebeu
mento não são luxos do desenvolvimento. 11 dólares; o Chade e a Nigéria receberam entre 3
Também a pequena parcela de ajuda atribuída e 4 dólares.
à África Subsariana não pode ser exclusivamente Os que exprimem pessimismo em relação à ajuda
atribuída a predisposições do doador. Muitos gover- questionam o papel da ajuda ao desenvolvimento na
nos africanos não conseguiram fazer do sector uma promoção do desenvolvimento humano. Aquele
prioridade ou lidar com velhos problemas de frag- pessimismo é infundado. A ajuda internacional ao
mentação institucional. Em muitos países, uma fraca desenvolvimento tem sido essencial no apoio ao pro-
interacção entre governos e doadores contribui para a gresso no acesso à água em países como o Gana, a
marginalização da água e do saneamento. Os doado- África do Sul e o Uganda — e continua a apoiar o
res exprimem frequentemente as suas preferências es- progresso em direcção ao saneamento para todos
tabelecendo as prioridades da despesa em áreas com no Bangladeche e no Lesoto. Para milhões de pes-
fortes planos sectoriais ou com abordagens à escala soas dos países mais pobres do mundo a ajuda tem
do sector. Que estão cronicamente subdesenvolvidos feito uma enorme diferença. Tal não significa que
na água e no saneamento, o que cria desincentivos ao não se possa fazer mais, tanto pelos doadores como
envolvimento dos doadores. Por seu turno, um redu- pelos receptores de ajuda, para aumentar a eficácia
zido apoio dos doadores restringe o potencial para o da ajuda ao desenvolvimento. Uma fraca coorde-
desenvolvimento de abordagens à escala do sector, nação entre os doadores, uma preferência, nalguns
criando um círculo vicioso de fraco planeamento e casos, para operar através de projectos e não de pro-
de subfinanciamento. gramas governamentais, e a ajuda ligada diminuem
Para o financiamento global do Objectivo de o impacto da ajuda ao desenvolvimento e elevam os
Desenvolvimento do Milénio, os actuais padrões custos transaccionais para os governos dos países em
de ajuda ao desenvolvimento padecem de duas li- desenvolvimento. Ao mesmo tempo, o fracasso de
68 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Figura 1.25 Alguns doadores dão mais prioridade à água e ao saneamento do que outros 1
Luxemburgo
Dinamarca
Alemanha
Japão
Irlanda
Espanha
Países Baixos
Finlândia
Áustria
França
Suíça
Canadá
Suécia
Itália
Estados Unidos
Noruega
Austrália
Bélgica
Reino Unido
Nova Zelândia
Grécia
Portugal
alguns governos em assegurar que os resultados do portante que as novas parcerias para a ajuda desenvol-
orçamento reflectissem compromissos planeados, fez vidas em torno dos Objectivos de Desenvolvimento
com que muitos doadores hesitassem em aumentar a do Milénio alarguem as mesmas oportunidades aos
ajuda aos programas. Mas num vasto grupo de países países mais pobres do mundo. O Mecanismo de Fi-
a qualidade da ajuda está a melhorar, à medida que as nanciamento Internacional proposto pelo ministro
políticas nacionais se tornam mais eficazes. das Finanças britânico, Gordon Brown, é um exem-
Outro motivo para optimismo reside no ímpeto plo (ver contributo especial).
subjacente às parcerias internacionais para a ajuda Para além da ajuda, muitos países necessitarão
desenvolvidas deste o lançamento dos Objectivos de mobilizar um vasto volume de financiamento nos
de Desenvolvimento do Milénio. A cimeira de Gle- mercados de capitais internos. Nalguns casos, aque-
neagles do Grupo dos Oito (G8), realizada em 2005, les mercados são limitados e os riscos perceptíveis as-
comprometeu-se a duplicar a ajuda até 2010 — com- sociados às obrigações emitidas pelos municípios ou
promisso que se traduz num valor extra de 50 mil prestadores de serviços podem elevar as taxas de juro
milhões de dólares, metade dos quais destinados à a níveis proibitivos. Esta é uma área em que as polí-
África Subsariana. Foram desenvolvidos mecanis- ticas nacionais e uma regulação eficaz do mercado
mos inovadores para concentrar os custos no início de capitais são críticas. Os países desenvolvidos e as
do período da ajuda ao desenvolvimento através de instituições financeiras multilaterais podem apoiar
desembolsos pré-financiados orçamentados contra os esforços nacionais através de medidas destinadas
futuros fluxos de ajuda. Em vista da intensidade de a reduzir o risco e a baixar os custos dos empréstimos,
capital dos investimentos na água, da necessidade de bem como as garantias ao crédito (ver Capítulo 2).
concentrar os custos no início do período de ajuda
e do longo prazo de implementação dos planos de
água e saneamento, é importante mobilizar um Construir a parceria global —
aumento inicial nos desembolsos de ajuda — e pré- argumentos em prol de um plano
financiar os desembolsos orçamentados para perío- internacional de acção global
dos posteriores. para a água e o saneamento
Os países ricos financiaram a sua revolução na
água e no saneamento há mais de um século recor- Um planeamento nacional sólido é a base de um
rendo a uma ampla gama de novos mecanismos de movimento acelerado em direcção à meta do Objec-
financiamento, incluindo obrigações municipais que tivo de Desenvolvimento do Milénio e — em última
disseminam os custos durante um longo período. No análise — ao acesso universal à água e ao saneamento.
mundo globalizado do início do século XXI, é im- A mobilização de recursos nacionais, o desenvolvi-
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 69
Um planeamento mento de instituições eficientes, responsáveis e com homens e mulheres mais carenciados à água, os pro-
1 capacidade de resposta, e a implementação de estra- gressos são menos impressionantes — o que diminui
nacional sólido é a
tégias para superar as desigualdades são alicerces do a justificação para a realização de mais conferências
base de um movimento progresso em todos os países. Mas em alguns países internacionais sem uma agenda objectiva para alcan-
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
acelerado em direcção não são suficientes. Por isso a ajuda é tão importante. çar a mudança.
Em termos mais amplo, o planeamento nacional e as Muito francamente, no que respeita à água e ao
à meta do Objectivo de
iniciativas internacionais de ajuda poderiam benefi- saneamento, o mundo sofre de um excesso de activi-
Desenvolvimento do Milénio ciar de um plano de acção global mais vasto para a dade de conferências e de um défice de acção. Sofre
e — em última análise água e o saneamento. também de fragmentação. Existem nada menos do
A justificação para a existência de tal plano en- que 23 agências da ONU a lidar com a água e o sa-
— ao acesso universal à raíza-se, por um lado, no estatuto marginal da água neamento. Para além de problemas de coordenação
água e ao saneamento e do saneamento na agenda internacional de desen- e de custos transaccionais no interior dos países, a
volvimento e, por outro, nas lições das iniciativas diversidade de agentes obstou ao desenvolvimento
internacionais noutras áreas, como o VIH/SIDA e de fortes defensores internacionais da água e do
a educação. saneamento.
À excepção da água e do saneamento, é difícil A agenda dos países do G8 oferece testemunhos
pensar em qualquer outra área de comparável impor- deste problema. Há três anos, na sua cimeira em
tância para o desenvolvimento humano que usufrua Evian, na Suíça, o G8 adoptou um Plano de Acção
de uma liderança global tão reduzida. O problema para a Água que pretendia alcançar um vasto leque
não reside na ausência de conferências de alto nível de objectivos, «ajudando prioritariamente os paí-
ou de relatórios ambiciosos. Estas têm sido carac- ses que assumiram um compromisso político de dar
terísticas tradicionais das agendas das conferências prioridade à água potável e ao saneamento básico».70
internacionais durante mais de três décadas, desde Desde então, não surgiu nada que mereça ser descrito
que a ONU realizou a sua primeira conferência sobre como plano de acção. Os níveis de ajuda estagnaram
a água, em Mar del Plata, na Argentina, em 1977. e não foi efectuada qualquer tentativa credível de
Aquele evento levou à adopção de um plano de acção traduzir em estratégias globais práticas capazes de
que deu origem à primeira Década Internacional da oferecer resultados os compromissos assumidos em
Água Potável e do Saneamento Seguro. Até à data, conferências internacionais como o 3º e o 4º Fóruns
aquela conferência mantém-se um marco em termos Mundiais da Água, realizados em 2003 e 2006.
de influência. Mas a impressionante meta da «água Se fossem necessárias evidências da baixa noto-
e saneamento para todos» até 1990 e a subsequente riedade da água e do saneamento na agenda do G8,
reafirmação do mesmo objectivo não atingido em estas ficaram patentes na Cimeira de Gleneagles rea-
2000, noutra conferência de alto nível, puseram a lizada em 2005. Não só não houve qualquer referên-
descoberto uma enorme lacuna entre o estabeleci- cia ao que foi acordado em Evian, como a questão
mento de metas e o planeamento estratégico para não foi sequer mencionada na estratégia que o G8
atingir as mesmas. definiu para a África Subsariana.
Desde meados dos anos 90, verificou-se uma A uma década de 2015, é tempo de agir e assumir
proliferação de conferências dedicadas à água. o compromisso para desenvolver um plano de acção
Emergiram duas grandes parcerias internacionais, o global para a água e o saneamento. Tal não signi-
Conselho Mundial da Água e a Parceria Global para fica a implementação de processos de planeamento
a Água, que supervisionaram uma impressionante complexos, burocráticos e rigidamente hierarquiza-
série de encontros globais, como o Fórum Mundial dos. Ao contrário, o objectivo seria o de fornecer um
da Água, de periodicidade trienal, realizado na Ci- núcleo institucional para os esforços internacionais
dade do México em 2006, e de relatórios. A água mobilizarem recursos, criarem capacidade e, acima
também figurou proeminentemente em encontros de tudo, galvanizarem a acção política colocando a
da ONU de âmbito mais vasto, como a Cimeira água e o saneamento numa posição mais central na
Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável. agenda do desenvolvimento.
No entanto, é difícil escapar à conclusão de que Para que qualquer estrutura global produza re-
hoje, tal como nos anos 70, existe uma enorme la- sultados, tem de estar alicerçada a nível nacional e
cuna entre as declarações ministeriais e relatórios de integrada nos processos nacionais de planeamento.
conferências e as estratégias práticas para alcançar o Tem também de estar fundamentada numa parceria
objectivo da água e saneamento para todos. Não se de desenvolvimento genuína. Em última análise, é
pretende com isto diminuir o papel vital das confe- responsabilidade dos governos nacionais delinearem
rências internacionais para a informação da opinião planos nacionais credíveis e desenvolverem institui-
pública e crescimento da consciencialização dos pro- ções transparentes e responsáveis para a implementa-
blemas entre os políticos e o público em geral. Mas, ção. Mas o princípio de base subjacente ao Objectivo
se o derradeiro objectivo é o de melhorar o acesso dos de Desenvolvimento do Milénio é que os governos
70 R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
comprometidos com o progresso não sejam retidos mento do Milénio. Com uma concepção e im- A uma década de 2015, é
por falta de apoio internacional e recursos financei- plementação adequadas, um plano deste tipo
1
tempo de agir e assumir
ros. O desenvolvimento de um plano de acção global poderia fazer pela água e pelo saneamento o que
R e l at ó r i o d o D e s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 71
1 Contributo especial Concentrar os custos no início do período de financiamento para cumprir o Objectivo de
Desenvolvimento do Milénio para a água e o saneamento
Do Japão à União Europeia, e passando pelos Estados Unidos, as O MFI mobiliza recursos de mercados de capitais internacionais
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
pessoas do mundo desenvolvido tomam a água potável e o sanea- através da emissão de obrigações de longo prazo que são amortiza-
mento básico por garantidos. Mas, em várias zonas do mundo, mui- das pelos países doadores no prazo de 20 a 30 anos Uma massa crí-
tas pessoas ainda não têm acesso a estes direitos humanos básicos. tica de recursos pode assim ser disponibilizada imediatamente para
Este Relatório documenta devidamente os custos sociais e econó- o investimento no desenvolvimento, ao passo que a amortização é
micos de uma crise na água e no saneamento. efectuada ao longo de um período maior, com base nos orçamentos
A água e o saneamento não somente são essenciais para a vida para a ajuda dos países desenvolvidos.
humana como constituem os blocos de construção do desenvolvi- Os princípios da concentração dos gastos no início do período
mento em qualquer país. É por esta razão que um dos oito Objec- já foi aplicado ao MFI para a Vacinação, que, através do investi-
tivos de Desenvolvimento do Milénio tem uma meta específica de mento imediato de 4 mil milhões de dólares extra em vacinas para
reduzir a metade o número de pessoas sem acesso sustentável a doenças evitáveis, poupará o impressionante número de 5 milhões
água potável e a saneamento até 2015. de vidas entre o momento actual e 2015 e outros 5 milhões de então
A falta de água potável e de saneamento afecta desproporcio- em diante.
nalmente as mulheres e as raparigas, tradicionalmente responsáveis Estes princípios podem também ser bastante relevantes para a
pela obtenção de água para a família. Para as raparigas em idade água. As taxas de retorno dos investimentos iniciais na água e no
escolar, o tempo gasto a viajar — horas, por vezes — até à fonte de saneamento ultrapassariam largamente os custos de empréstimos
água mais próxima é tempo perdido em educação, negando-lhes realizados nos mercados de obrigações, mesmo levando em conta
a oportunidade de conseguir trabalho e de melhorar a saúde e os os custos dos juros. Efectivamente, a OMS estimou que o retorno
padrões de vida das suas famílias e de si próprias. As escolas sem de um investimento de 1 dólar em saneamento e higiene nos países
acesso a água potável ou a saneamento constituem uma poderosa de baixo rendimento é de 8 dólares, em média. Trata-se de um bom
prova da interligação entre o desenvolvimento humano e os Objecti- investimento, qualquer que seja o sistema de contabilidade que o
vos de Desenvolvimento do Milénio: não é possível criar sistemas de avalie.
educação eficazes quando as crianças estão constantemente doen- A mobilização de recursos de mercados de capitais para investi-
tes e ausentes da escola. E não é possível oferecer educação a todos mento em água e saneamento não é nova. Os países industriais uti-
quando as raparigas são mantidas em casa porque os seus pais se lizaram emissões de obrigações e mercados de capitais para obter
preocupam com a ausência de instalações sanitárias separadas. financiamento para o investimento em água e infra-estruturas de
Hoje todos compreendem o vínculo existente entre água po- saneamento no começo do século passado. E, mais recentemente,
tável, melhor saúde e maior prosperidade. Temos o conhecimento, países como a África do Sul emitiram obrigações municipais para
a tecnologia e os recursos financeiros para tornar a água potável e o aumentar rapidamente a massa crítica de recursos para efectuar um
saneamento uma realidade para todos. Devemos agora alinhar estes investimento de tal ordem.
recursos com a vontade política para agir. Evidentemente, temos de reconhecer que as novas parcerias
A infra-estrutura de um sistema eficaz de água e saneamento à para a ajuda subjacentes aos Objectivos de Desenvolvimento do
escala nacional — desde canalização de água a estações de bom- Milénio constituem um compromisso de dois sentidos. Há obriga-
bagem e redes de esgotos — exige um investimento a uma escala ções e responsabilidades de parte a parte. Os países em desen-
superior à que os países mais pobres podem aspirar neste momento. volvimento devem ser julgados pela sua capacidade de utilizar os
Por outro lado, exige avultados investimentos iniciais, bem como recursos da ajuda com eficiência e transparência de forma a fazer
custos de manutenção de mais longo prazo. Dada a elevada pro- chegar água salubre e saneamento aos mais pobres. Mas eles e os
porção de pessoas dos países em desenvolvimento sem acesso a seus cidadãos têm o direito de esperar que boas políticas sejam
água e saneamento e que sobrevivem com menos de 1 dólar por apoiadas por um fluxo previsível de financiamento à ajuda propor-
dia, não é viável satisfazer estes custos iniciais através de tarifas cional à escala do desafio.
dos utilizadores. Os países desenvolvidos devem ser julgados não somente pelo
Em 2005, os governos dos países desenvolvidos prometeram seu apoio aos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, mas tam-
aumentar o montante global da ajuda para o desenvolvimento. A bém pela disponibilização de recursos para alcançá-los. Ajudar a
União Europeia comprometeu-se a aumentar a ajuda para 0,7% fornecer água salubre e saneamento básico demonstrará que estas
do seu rendimento até 2015. O G8 comprometeu-se a duplicar a promessas são mais do que uma simples moda passageira — que
ajuda a África até 2010. Ao efectuar aquela promessa, o G8 re- são um compromisso para a nossa geração.
conheceu que uma das finalidades desta ajuda era assegurar que
as populações dos países em desenvolvimento teriam acesso a
água salubre e saneamento. Contudo, os aumentos tradicionais
nos orçamentos da ajuda dos doadores não serão suficientes
para fornecer os recursos adicionais e cumprir as metas de ajuda
que foram estabelecidas. São necessários mecanismos de finan- Gordon Brown, deputado parlamentar,
ciamento inovadores para reunir o financiamento urgentemente Ministro das Finanças, Reino Unido
necessário para alcançar os Objectivos de Desenvolvimento do
Milénio — e em nenhuma área tal se torna mais evidente do que
na água e no saneamento.
Muito francamente, o mundo não pode esperar que os fluxos
de financiamento graduais comecem a produzir retornos antes de Ngozi Okonjo-Iweala, ex-Ministro das Finanças, Nigéria
lidar com a crise da água e do saneamento. Esta crise está a matar
crianças e a impedir o desenvolvimento actual — e temos de agir
agora. Foi por esta razão que se analisou e implementou uma série
de mecanismos de financiamento inovadores com vista a mobili-
zar financiamentos iniciais para o desenvolvimento. O Mecanismo
de Financiamento Internacional (MFI) é um exemplo.
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grediente reside na criação de um compromisso rar uma notação AAA. Esta área tem testemu- O plano global poderia
fiável e de longo prazo de recursos desde que nhado um crescimento rápido nos últimos anos
1
identificar estratégias gerais
os países adoptem e implementem planos de (ver Capítulo 2). Se um plano de acção global
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A forma exacta de qualquer na educação e no crescimento económico, o Banco Um plano de acção global para a água e o sanea-
1 Africano de Desenvolvimento estabeleceu um mento não é um fim em si mesmo. É um meio de
plano global constitui,
Fundo Especial para a Água para apoiar o progresso promover a eficácia da cooperação internacional e de
obviamente, uma questão em direcção ao Objectivo de Desenvolvimento do construir parcerias para a ajuda que podem colocar
Pôr fim à crise no sector da água e do saneamento básico
aberta ao diálogo e ao Milénio e ao abastecimento universal até 2025. Foi o mundo no caminho certo para alcançar o Objec-
desenvolvido um plano de acção de médio prazo tivo de Desenvolvimento do Milénio e progredir em
debate. Mas uma opção que
indicativo, através do Conselho Africano de Mi- direcção ao acesso universal à água e ao saneamento.
já não deve ser encarada é nistros da Água e da Nova Parceria para o Desen- A menos de uma década de 2015, um plano de acção
a de deixar tudo como está volvimento da África, para 2005-2009. Através global poderia oferecer a estrutura previsível e de
de negociações independentes com oito doadores, longo prazo necessária às parcerias de ajuda que po-
o Banco Africano de Desenvolvimento assegurou deria funcionar como catalisador do progresso hu-
garantias de cerca de 50 milhões de dólares ao longo mano, conduzindo ao alargamento dos benefícios da
de períodos de um a três anos face a uma meta de água e do saneamento a outras áreas do desenvolvi-
615 milhões de dólares.73 Uma estrutura global mento humano. A forma exacta de qualquer plano
apoiada por doadores de renome ajudaria quer a re- global constitui, obviamente, uma questão aberta ao
duzir os custos transaccionais, quer a assegurar o diálogo e ao debate. Mas uma opção que já não deve
financiamento à escala necessária. ser encarada é a de deixar tudo como está.
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