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O Titanic, o mundial e nós

Três filmes, mais que quaisquer outros, marcaram sua época, pelo sucesso
comercial e pelo impacto causado sobre o imaginário, embora não tenham sido,
nem de longe, os melhores filmes da história do cinema. A história “E o Vento
Levou”, “Ben Hur” e “Titanic” contavam todos a mesma história, a de um amor
impossível na transição de uma sociedade em decadência para outra. (na fase
final de uma sociedade em decadência). O fim do Sul, do Império Romano e do
Titanic. “Amanhã será outro dia”, diz Rett Butler. Ben Hur retoma como um eco: “
“Ele a salvará”. E o herói do Titanic aduz: “Você terá que viver após minha morte”.
O sucesso desses três filmes nos revela muito sobre o clima da época em que
foram produzidos, todas elas incertas: o primeiro, pouco antes da entrada dos
Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, o segundo no início da
descolonização e o terceiro, na atualidade, quando todos sentem a presença de
uma ameaça num mundo excessivamente seguro de si.

Porque o Titanic somos nós, nossa sociedade triunfante, orgulhosa, cega,


hipócrita, implacável com os pobres, onde tudo está previsto, exceto os meios de
prever. Tal é, a meu ver, o segredo do imenso sucesso desse filme: cada um
adivinha que o iceberg está lá, à nossa espera, dissimulado em algum ponto na
bruma do futuro, para o qual marchamos firmes e onde vamos nos estatelar
ouvindo música.

Porque icebergs não faltam.

O iceberg financeiro que começa com a Indonésia, continua com o Japão e a


China, a Rússia, e que se prolongará com a Europa, se o Euro, tornado refúgio,
subir muito além do seu valor. E lá vamos nós, em velocidade máxima: não é
possível ter para sempre uma elevação das cotações da bolsa equivalente ao
triplo das taxas de juros, mercados super-avaliados, criadores de riquezas fictícias
e injustificadas, para detentores de títulos, fundos de pensão ou poupadores,
convencidos de ter o tempo de realizar suas fortunas virtuais antes que as
cotações despenquem, certos de que conseguirão abandonar o barco antes do
inevitável naufrágio.

O iceberg nuclear, com a proliferação anunciada pelo sangue frio com que a Índia
e o Paquistão negligenciaram as ameaças de sanções americanas. E o caráter
derrisório de tais sanções. Como proibir alguém de fazer o mesmo atualmente,
quando se demonstrou que só se consegue ser forte diante dos francos? Daqui a
vinte anos, mais de trinta países terão armas nucleares ou estarão em condições
de tê-las em poucos meses após a decisão de adquiri-las. Embora todos os
responsáveis tenham do conhecimento disso, recusam-se a reconhecê-lo, a fim
de não admitirem sua impotência.
O iceberg ecológico, com o fracasso de todas as tentativas de reduzir ou mesmo
de estabilizar a produção mundial de gás carbônico e o conseqüente aumento da
temperatura da atmosfera. E com a presença monstruosa de dezenas de centrais
nucleares na Rússia e na Europa do Leste que, nenhum especialista sério ousa
duvidar, em menos de dez anos provocarão um acidente de proporções
planetárias.

O iceberg social, com a certeza, se não mudarmos o rumo, de que em cinqüenta


anos teremos mais de três bilhões de homens e mulheres sem condições reais de
sobrevivência, enclausurados nos porões do mundo.

Então, quando toparmos com um ou outro desses icebergs geopolíticos, a


catástrofe será tal que ninguém mais terá condições de fazer filmes premonitórios
do próximo desastre: O pior dos naufrágios será o que não vai deixar muitos
sobreviventes para contar sua história.

Continuaremos surdos e cego ? Continuaremos a nos divertir, fazendo de conta


que acreditamos que histórias de amor entre moças ricas e jovens pobres bastam
para esquecer os perigos ? A nos distrairmos com o espetáculo metafórico de
nossas futuras catástrofes ou com aquele um pouco mais alegre de nossos
nacionalismos tornados lúdicos, infantis e freqüentáveis por um breve período, o
do Mundial ? (que é esse mundial, um campeonato? De quê?) Sim, talvez,
porque esses icebergs não estão na circunscrição eleitoral de nenhum dos
grandes poderosos do mundo, porque todos preferimos acreditar que nunca os
encontraremos. E sobretudo porque os políticos não estão mais no comando
desse barco lançado em velocidade máxima, que hoje não obedece mais senão
ao mercado, a quem confiamos tudo como se ele fosse infalível, quando ele na
realidade só serve àqueles que sabem tirar proveito de seus erros e de sua
miopia.

O Titanic poderia ter sido salvo se sua tripulação não tivesse sido orgulhosa. Se
ela tivesse sido vigilante e previdente, se tivesse se lembrado que o destino a
atingir é mais importante que a velocidade com que dele nos aproximamos, que o
marinheiro deve privilegiar o objetivo visado em detrimento dos meios para atingi-
lo, que a linha reta é inimiga do navegador. E. sobretudo, se antes da partida, o
tivesse dotado dos meios de vigilância e de alerta.

Hoje, diante da mesma aposta, talvez não se fizesse nada, como de hábito. Até
que, sem tempo e tomado pelo pânico, não reste outra solução, como na Marinha,
senão destituir o capitão, isto é, o mercado.

Ousaremos fazê-lo ?

Jacques Attali
In “LE MONDE”, edição de 03/07/1998

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