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[sim] A quem interessa o desarmamento civil?

Texto extraído do Jus Navigandi


http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7476
www.jus.com.br

Túlio Lima Vianna


professor de Direito da PUC Minas,doutor em Direito pela UFPR e mestre em Direito pela UFMG

O eleitor brasileiro será questionado por meio de referendo se "o comércio de armas de
fogo e munição deve ser proibido no Brasil". Para votar com consciência, é importante que o
eleitor reflita sobre os interesses que estão por trás do desarmamento. Como meus leitores são
muito heterogêneos e não quero desapontar nenhum deles, relacionei abaixo minhas sugestões de
votos para o referendo de acordo com os interesses de 4 grupos possíveis de (e)leitores.

O primeiro e mais visível interesse que está em jogo neste referendo é o da indústria
armamentista. É claro que não se cogita aqui de interesses "menores" na lógica capitalista de
mercado como segurança pública, paz social, integridade física ou outras abstrações do gênero.
Tudo que interessa a uma empresa de sucesso é o lucro. As guerras, a criminalização das drogas e
a violência urbana movimentam a economia e geram empregos. O que são algumas mortes, pelo
bem do Brasil?

Conclusão 1: O desarmamento não interessa à indústria armamentista que terá prejuízos


econômicos com a nova lei. Recomenda-se, pois, aos empresários do setor votarem "NÃO" no
referendo e investirem dinheiro em campanhas publicitárias contra o desarmamento civil, bem
como plantarem matérias pagas em jornais e revistas de grande circulação no Brasil.

Se o principal interessado no referendo é quem fabrica e vende armas, é natural concluir


que o segundo maior interessado é quem as compra. No Brasil, costuma-se distinguir estes
consumidores em dois grandes grupos: os "cidadãos-de-bem" e os "marginais". A diferença
fundamental entre eles é que os "marginais" compram armas na clandestinidade para praticarem
crimes e os "cidadãos-de-bem" as compram com registro para deles se defenderem.

O "cidadão-de-bem" é, por definição, "do bem", o que, em uma sociedade de classe,


objetivamente quer dizer que ele é rico. Sendo rico, tem reputação ilibada e pode arcar com as
taxas de registro para a aquisição legal de uma arma. Sendo "do bem" não usa sua arma para
matar, mas para se defender. Divide-se em vários subgrupos:

1) "cidadão-de-bem-que-perdeu-a-cabeça-após-uma-discussão": é um espécime comum nas


grandes metrópoles. Usa sua arma adquirida legalmente tão-somente para a sua defesa pessoal,
exceto quando se envolve em discussões acaloradas, como por exemplo, brigas de trânsito. Não
pratica homicídios, mas vive momentos infelizes que terminam em fatalidade. Tudo seria
diferente se não mantivesse um revólver municiado no porta-luvas de seu veículo para se
defender de "marginais".

2) "cidadão-de-bem-que-perdeu-a-cabeça-após-descobrir-que- a-mulher-o-estava-traindo":
é outro espécime que adquire armas tão-somente para a defesa de sua vida e de sua família.
Normalmente é bastante dócil, mas pode se tornar agressivo quando descobre que sua esposa está
tendo um caso com o Ricardão. Ainda que porventura mate sua mulher, seus filhos e em seguida
se suicide é apenas um "homem-honrado-que-perdeu-a-cabeça-em-um-momento-difícil". Não
fosse a arma de fogo talvez tivesse somente espancado a mulher ou, no máximo tentado matá-la
com uma faca. Como tem bom coração, se visse o sangue de sua amada escorrendo em suas
mãos, certamente se arrependeria e a levaria ao hospital mais próximo a tempo de evitar o
desfecho fatal.

3)"cidadão-de-bem-que-defende-a-sua-propriedade-de-sem-terras": é um espécime de
"cidadão-de-bem" que habita áreas rurais. Não é propriamente pacífico, mas só age quando
injustamente provocado e nunca mata outros "cidadãos-de-bem", mas apenas
"marginais-comunistas-do-MST" que tentam injustamente invadir suas terras.

4)"cidadão-de-bem-descuidado": é um espécime tão pacífico que comprou sua arma para


se defender, mas até esqueceu que ela existia. Foi encontrada casualmente por seu filho de 7 anos
que a disparou por brincadeira contra o coleguinha que fora passar a tarde em sua casa. Estavam
brincando de mocinho e bandido. A criança que disparou interpretava o mocinho, ou seja, um
"cidadão-de-bem".

5)"cidadão-de-bem-que-quase-conseguiu-evitar-um-crime": espécime em extinção que


vem sendo cruelmente dizimada por seu principal predador: o
"marginal-que-só-queria-roubar-mas-a-vítima-reagiu -e-lhe-obrigou-a-matá-la". Os filhotes
aprendem desde a infância a não acreditarem na polícia, através de desenhos animados nos quais
são sempre os super-heróis que capturam os bandidos. Na idade adulta, procuram se armar e
aguardar o dia em que poderão surpreender seus agressores e exercerem seu direito à legítima
defesa. Infelizmente seus predadores têm hábitos noturnos, agem geralmente em duplas ou em
bandos e atacam sorrateiramente nossos candidatos a heróis, que raramente podem esboçar
qualquer defesa. Muita vez são mortos com suas próprias armas legalmente adquiridas e que no
dia seguinte abastecerão o mercado paralelo dos "marginais".

O desarmamento interessa ao "cidadão-de-bem". Não àqueles com suficiente controle


emocional para não atirar durante brigas de trânsito, traições conjugais e invasões de terra. Não
àqueles responsáveis e cautelosos que guardam suas armas desmuniciadas e em locais de difícil
acesso, longe do alcance das crianças, mesmo que para isso percam preciosos minutos para
alcançá-las em situações de emergência, quando sua residência estiver sendo invadida por um,
dois ou um bando de "marginais". O desarmamento só interessa ao "cidadão-de-bem" que se
reconhece como ser-humano sujeito a falhas e incapaz de superar o elemento surpresa,
principalmente quando explorado por mais de um "marginal".

Conclusão 2: Se você é "cidadão-de-bem", mas também é humano e, portanto, sujeito a


falhas, recomenda-se votar "SIM" ao desarmamento civil.

O segundo grupo de consumidores de armas cujo interesse no referendo é evidente é o dos


"marginais". Ao contrário dos "cidadãos-de-bem", os marginais não são classificados em grupos.
São todos iguais. Pobres, pretos e putos. Não temem as armas da polícia, não temem as armas dos
traficantes rivais, não temem as armas dos grupos de extermínio. Só temem as armas dos
"cidadãos-de-bem".

Resistem a tiros às prisões, trocam tiros com outros traficantes na defesa de seus pontos,
chegam a matar policiais para roubar-lhes seus fuzis, mas temem as armas dos
"cidadãos-de-bem". Afinal, o bem sempre vence o mal.

Infelizmente os marginais descobriram que a maioria dos "cidadãos-de-bem" são também


seres humanos sujeitos a falhas e não possuem superpoderes. Assim, perceberam que, valendo-se
do elemento surpresa e atacando em dupla ou em bandos, mesmo os "cidadãos-de-bem" poderiam
ser mortos, muita vez com suas próprias armas. Aliás, nada melhor que roubar uma arma de um
"cidadão-de-bem". É por isso que "marginais" não compram armas em loja; eles as roubam de
"cidadãos-de-bem".

Com o desarmamento qualquer revolverzinho 0.38 terá que ser importado ilegalmente, o
que pode gerar escassez do produto mesmo no mercado paralelo. Junto com a escassez,
certamente haverá aumento de preços. É possível, pois, que haja uma "involução" no espécime
dos "marginais" e muitos deles voltem a atacar com facas e outros instrumentos primitivos,
tornando-se presas fáceis até mesmo de simples lutadores de jiu-jítsu.

Conclusão 3: Com o desarmamento dos "cidadãos-de-bem" haverá escassez de armas no


mercado paralelo, antes parcialmente abastecido por armas roubadas de "cidadãos-de-bem". Com
a diminuição da oferta, o preço das armas tende a aumentar. Se você é marginal, recomenda-se,
pois, votar "NÃO" ao desarmamento civil.

Por fim, mas não menos importante, o desarmamento interessa a quem não é fabricante ou
comerciante de armas e não deseja adquirir ou portar uma arma, seja legalmente ou ilegalmente.
Em suma: à maior parte da população; às vítimas não só dos marginais, mas também dos
"cidadãos-de-bem" em momentos infelizes; àqueles que se sentem mal somente com a
proximidade de uma arma de fogo, seja na mão de marginais, "cidadãos-de-bem" ou mesmo da
polícia.

Conclusão 4: Não há qualquer diferença entre ser morto por um tiro de um


"cidadão-de-bem" ou de um marginal. Para a maioria da população brasileira o desarmamento
civil representa maior segurança pelo simples fato de menos pessoas portarem armas. Se você
nunca se interessou em adquirir uma arma de fogo, recomenda-se, pois, votar "SIM" ao
desarmamento civil.

Sobre o autor
Túlio Lima Vianna
E-mail: Entre em contato
Home-page: www.tuliovianna.org

Sobre o texto:
Texto inserido no Jus Navigandi nº842 (23.10.2005)
Elaborado em 10.2005.

Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado
em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
VIANNA, Túlio Lima. [sim] A quem interessa o desarmamento civil? . Jus Navigandi, Teresina,
ano 9, n. 842, 23 out. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7476>. Acesso em: 14 jan. 2007.

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