Você está na página 1de 41
Jean Baudrillard Senhas Tradugao MARIA HELENA KOHNER DIFEL Copyright © Pauvert, Département de la Librairie Arthéme Fayard, 2000 Titulo original: Mots de passe Copyright © Filme, Les Films Pénélope Production, 2000 ‘Capa: Rodrigo Rodrigues Edloragio: Ar Line 2001 Impresso no Brasil Printed in Brazil CCP-Baasl Calogasso-na forte Sindcato Nacional dos Eeiores de Livros, RJ HW Banded, Jean, 1929 ‘Senha jean Bouriard; radu de Maria He- ea Kanes, Rie nic: DEEL 2001 ep. “Teadugio de: Mots de pase ISUN #5-7432-020.% 4. Filosofia frances. Titulo, cop-194 ovis Sout Todos os direitos reservados pela EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 ~ 1° andar ~ Sio Crist6vdo 20921-380 ~ Rio de Janciro~| “Fel: (Oxx21) 2585-2070 ~ Fax: (0xx21) 2585-2087 'Nio¢ permit a reproduso tol oa parcial dea obra, por quai her mei sem a prvi autrzaio por ecto da Editors ‘Atendemos pelo Reembolio Postal E paradoxal fazer 0 panorama retrospective de ‘uma obra que jamais pretendeu ser prospectiva. E de certo modo como Orfeu voltando-se antes do tempo para ver Eurrdice, e, com esse gesto, devol- vendo-a para sempre aos Infernos. Seria 0 mesmo aque fazer como se a obra preexistsse a ela mesma @ apresentasse desde o infcio 0 seu final, como se cla fosse uma obra acabada, como se ela se desen- volvesse de maneira coerente, como se ela tivesse sempre sido. Por isso nao vejo outro modo de falar dela sendo em termos de simulagio, um pouco & maneira de Borges reconstituindo uma civilizagio perdida por meio dos fragmentos de uma bibliote- a. Isso significa que no posso sequer levantar a questo de sua veracidade sociolégica ~ questéo & qual, aliés, en teria grande dificuldade de respon- der. O que é preciso, sem diivida, & colocarse na posigio de um viajante imagindrio que deparasse com estes escritos como quem depara com um ‘manuscrito esquecido e que, sem ter outros docu rmentos de apoio, se esforcasse por reconstituir a sociedade que eles descrevem. Jean Baudrillard Esta obra foi elaborada a partir de um filme concebido por Leslie F. Grunberg e realizado por Pierre Bourgeois. Senhas... A palavra me parece designar com precisio um modo quase inicidtico de penetrar no interior das coisas, sem ter que ordené-las em um catélogo. Pois as palavras sao portadoras, geradoras de idéias, mais ainda, talvez, que 0 inverso. Operadoras de encanto, operadoras -migicas, no s6 porque transmitem essas idéias © aquelas coisas, mas porque elas prOprias se meta- forizam, se metabolizam umas nas outras, segun- do uma espécie de evolugio em espiral. & assim que elas sio bateleiras de idéias, ‘As palavéas tém para mim extrema importan- cia. Que elas tém vida propria € que sio, portan- to, mortais, 6 algo evidente para todo aquele que nfo se prende a um pensamento definitivo, de intengio edificadora. £ 0 meu caso. HA na tem poralidade das palavras um jogo quase poético de ‘morte ¢ renascimento: as metaforizagbes sucessi- vvas fazem com que uma idéia se torne sempre algo mais ¢ diverso do que antes era ~ uma “for- ma de pensamento”, Pois a linguagem pensa, nos pensa ¢ pensa por nés ~ pelo menos tanto quan- to nds pensamos através dela. Também aqui hd ‘uma troca, que pode ser simbélica, entre palavras e idéias. Acredita-se que progredimos impulsionados pelas idéias ~ pelo menos € esta a fantasia de todo te6rico, de todo filésofo. Mas sao igualmente as proprias palavras que geram on regeneram as idéias, que fazem o trabalho de “embreagens”. Nos momentos em que assim atuam, as idéias se entrelagam, se misturam ao nivel da palavra, que serve, entio, de operadora ~ mas uma operadora ndo-técnica ~ em uma catilise em que a propria linguagem est em jogo. Isso faz dela um investi- mento” pelo menos to importante quanto as idéias, Por conseguinte, como as palavras passam, traspassam-se, metamorfoseiam-se, tornam-se transmissoras de idéias segundo fieiras imprevis- tas, nfo caleuladas, a palavra “senhas” permite, a ‘meu ver, re-apreender as coisas unindo-as em um todo coerente e, a0 mesmo tempo, abrindo-as a ‘uma perspectiva mais ampla, panorémica, 70 Ranor jogs permanentemente com as peopriaspalaveas, de ‘modo is vers ieraduivelIneralmente a inguagem es Jew (em jg). o ge fae dla un enw posta ou investinento) ‘Ho imporane quanto ss ideas (N. da.) 0 OBJETO ‘objeto seria para mim a “senha” por exce- Iéncia. Desde 0 inicio, escolhi esse ponto de vista, porque nao queria ficar solidario com a problematica do sujeito. A questio do objeto representava sua alternativa, e permaneceu como meu horizonte de reflexdo. Havia igualmente razbes ligadas a época para tal: nos anos 60, a passagem do primado da produgio ao do consu- ‘mo trouxe ao primeiro plano os objetos. No entanto, 0 que me interessou verdadeiramente no foi tanto o objeto fabricado em si, mas 0 que (0 objetos diziam uns 0s outros, o sistema de signos ¢ a sintaxe que eles elaboravam. E, sobre~ tudo, o fato de que eles remetiam a um mundo ‘menos real do que poderia fazer crer a aparente 10 Jean Baudrillard onipoténcia do consumo ¢ do lucro. Para mim, neste mundo de signos, eles escapavam rapida- mente de seu valor de uso para estabelecer entre cles um jogo, para se corresponder. Por tris dessa formalizacao semiol6gica, ha- via, sem divida, uma reminiscéncia de A Nausea, de Sartre, e daquela famosa raiz.que & um objeto obsessional, uma substancia venenosa...* Pare- cia-me que 0 objeto era como que dotado de pai- xo, ou que ele podia, pelo menos, ter vida pré- pria, sair da passividade de sew uso para adquirit uma espécie de autonomia e talvez até uma capa- cidade de vingar-se de um sujeito demasiado seguro de domind-lo. Os objetos foram sempre considerados um universo inerte e mudo, do qual dispomos a pretexto de que fomos nés que o pro- duzimos. Mas, 2 meu ver, este mesmo universo tinha algo a dizer, algo que ultrapassava seu uso. Ele entrava no reino do signo, em que nada se passa de maneira tio simples, porque o signo € Dili do eseritor Roquentin, que, obcecado com a qualidade doen, cates, do mundo exterior, ansca em ¥80 por um uni ‘verso qu xa cero, gio, previsivel e masculino, como oda fis ‘anewtonans levi encontra ta algo na arte, eriando um ‘mando imaginsrio qe tem a perfeiso formal qu fata a0 mus doreal (NdsT) SENHAS IL sempre 0 eclipse da coisa. O objeto designava, entéo, 0 mundo real, mas também sua ausénci € particularmente a auséncia do sujeito. Foi a exploragao dessa fauna e dessa flora dos objetos que me interessou. Utilizei, para tal, todas as disciplinas da atmosfera intelectual do momento: a psicanilise, a andlise marxista da produgao e principalmente a andlise lingitstica, a ‘exemplo de Barthes. Mas © que me interessava no estudo do objeto é que ele exigia passar de través por essas disciplinas, que ele impunha uma transversalidade. O objeto, precisamente, néo ppodia ser reduzido a nenhuma disciplina especifi- cae, a0 tornar todas elas enigmaticas, ajudava a Or em questio seus préprios postulados - inclu- sive os da semiologia, na medida em que o obje- to-signo, no qual entram em interferéncia miilti- plos tipos de valores, € muito mais ambiguo que © signo lingiifstico. Seja qual for o real interesse dessas diferentes abordagens, o que me apaixonava, e continua me apaixonando, é a maneira como o objeto delas se evade, se ausenta - 0 que nele permanece de “in- quietante estranheza”, A troca, da qual ele € 0 suporte, permanece inesgotavel. Ele é, certamen- te, mediador, mas, ao mesmo tempo, como ele & 0 onjeTo 12 Jean Baudrillard imediato, imanente, ele quebra essa mediagio. Ele esta sobre duas vertentes: preenche e decep- ciona simultaneamente, Talvez por isso proceda daquela parte maldita de que falava Bataille, que no sera jamais resolvida, jamais remida. Nao ha Redengio do objeto, em algum lugar permanece tum “resto”, do qual o sujeito nio consegue se apossar; ele acredita poder encontrar para isso tum paliativo com a profusio, a acumulagio ~ 0 que nao faz. mais que multiplicar os obstéculos & relagio. Em um primeiro momento, nos comuni- camos por meio dos objetos, depois a prolifera: «io blogueia essa comunicagio. objeto tem um papel dramético; é um ator com papel principal, no sentido de que ele inutiliza a expectativa de uma simples funcionalidade. E € por isso que ele ime interessa. 0 VALOR: Sbvio que o valor esté estreitamente ligado Fis bio, mas me popste aqui € mas limitado € relacionado com o valor de uso € 0 valor de troca, que sio os fundamentos mesmos da produgao do mercado. Desde 0 primeiro momento, 0 valor de uso e 0 valor de troca~e a dialética que se instanra entre ambos ~ me pare- ‘ceram uma construgio racional, que estabelece como postulado a possibilidade de equilibrar 0 valor, de atribuir-lhe um equivalente geral capaz de esgotar as significagdes e dar conta de uma troca. E af que a antropologia entra em jogo, para virar pelo avesso essas nogGes e quebrar a ideolo- gia do mercado ~ ou seja, 0 mercado como ideo logia, e ndo apenas como realidade. A antropolo- 14 Jean Baudrillard gia oferece o exemplo de sociedades e culturas ‘em que a nogio de valor, tal como a entendemos, 4 quase inexistente; em que as coisas ndo se tro- ‘cam nunca diretamente umas pelas outras, mas sempre por mediagio de uma transcendéncia, de uma abstracio. Ao lado do valor de mercado existem valores ‘morais ou estéticos, que funcionam, no caso, em. termos de uma oposigio regulamentada entre 0 bem e o mal, o belo e 0 feio... Parecia-me, no ‘entanto, que havia uma possibilidade de as coisas circularem de outro modo, e que outras culturas ofereciam exatamente a imagem de uma organi- zagio em que a transcendéncia do valor ndo se instalava ~ e com ela a transcendéncia do poder, pois é com base na manipulagao dos valores que ela se estabelece. Era necessdrio tentar polir 0 objeto ~e nao somente ele -, limpérlo de seu es- tatuto de mercadoria, devolver-Ihe uma imedia- tez ¢ uma realidade bruta que nao teriam pregos pois quer uma coisa “nao valha nada”, quer ela “néo tenha prego”, em ambos os casos estamos no inapreciével, no sentido radical da expressio. A partir daf, a troca que se possa fazer com elas se ‘opera em bases que ndo dependem mais do con- SeNHAS 15 trato — como se dé habitualmente no sistema de valor ~ € sim do pacto. Ha uma diferenga profun- da entre 0 contrato, que é uma convengio abstra- ta entre dois termos, dois individuos, e 0 pacto, que € uma relagéo dual e ctimplice. Poderfamos ver neste uma imagem de certas modalidades da linguagem poética, em que as trocas entre pala- vras ~ € a intensidade de prazer que proporcio- nam ~ se operam fora de sua mera decodificagio, ‘aquém ou além de seu funcionamento em termos de “valor de significago”. O mesmo se pode dizer com relagdo aos objetos € aos individuos. Hi, nessa perspectiva, uma possibilidade de criar ‘um curto-circuito no sistema de valor e na esfera de influéncia que ele alicerca. E com base no sen- tido que podemos ser senhores da linguagem, senhores da comunicagio (mesmo quando 0 ato da fala e suas modalidades entram em jogo nesse dominio do discurso); é com base no valor de mercado que se pode ter 0 domfnio do mercado. E € sobre a diferenga de valor entre o bem € 0 mal que serd estabelecida a dominagio moral... Edifi- cam-se a partir dai todos os poderes. f talvez ut6- pico pretender ir além do valor, mas € uma utopia operacional, uma tentativa no sentido de pensar ‘um funcionamento mais radical das coisas. © VALOR 16 Jean Baudrillard E bem verdade que o estudo do valor € com- plexo: se o valor de mercado € passfvel de ser apreendido, o valor signo, a0 contratio, ¢ fugitivo movente ~ em dado momento, ele se esgota e se dispersa na valorizagio que Ihe é dada. Se tudo se alterna com base em uma convenglo, estamos ain- ‘da no mundo do valor ou em sua simulagio? ‘Talver estejamos ainda em uma dupla moral. Haveria uma esfera moral, a da troca mercantile uma esfera imoral, a do jogo, em que contam apenas 0 evento mesmo do jogo € 0 advento de uma regra partilhada. Compartilhar uma regra é algo bem diferente de tomar como referencial ‘um equivalente geral comum: & preciso estar totalmente implicado para poder entrar no jogo, (© que cria entre os parceiros um tipo de relagio bem mais dramética que a troca de mercado. Nessa relagéo, os individuos nao sio mais seres abstratos que podem ser indiferentemente subst tuidos uns pelos outros: cada um tem uma pos cio singular diante de um desafio de vit6ria ou de derrota, de vida ou de morte, Mesmo em suas formas mais banais, 0 jogo impde um modo ‘outro de entrar nas jogadas, wm modo diferente da troca ~ palavra, alids, tio ambfgua que eu me vi levado a falar de troca impossivel. ATROCA SIMBOLICA Aw simbélica é 0 lugar estratégico em que todas as modalidades de valor confluem para uma zona que eu chamaria de cega, em que tudo € reposto em questio. O simbélico, aqui, no tem nem a acepgio corrente, de “imagind- rio”, nem a que Ihe dava Lacan. fa troca simbé- lica tal como a entende a antropologia. Se 0 valor tem sempre um sentido unidirecional, se ele pas- sa de um ponto a outro segundo um sistema de equivaléncias, na troca simbélica hé reversibil dade de termos. O que me importava era, pelo viés desse conceito, seguir a contrapelo da troca mercadol6gica para fazer uma critica politica de nossa sociedade em nome do que poderiam, tal- vez, qualificar de utopia, mas que foi uma forma bem viva em muitas outras culturas. 18 Jean Baudrillard ‘A reversibilidade é, a0 mesmo tempo, a da vida e da morte, do bem e do mal, de tudo aqui- Jo que organizamos em valores alternativos. No tuniverso simbélico, vida € morte séo intercam- bidveis. E, no havendo termos separados, mas, 0 contrério, reversiveis, pOe-se em questo a idéia mesma de valor — que exige termos nitida- ‘mente opostos, entre os quais se possa estabele- cer uma dialética. Ora, no ha dialética no sim- élico. Em se tratando da morte e da vida, em nosso sistema de valores no hé reversibilidade: 0 {que é positivo esté do lado da vida; 0 que € nega- tivo, do lado da morte, a morte sendo o fim da vida, seu oposto; a0 passo que, no universo sim- bélico, os termos sio, a bem dizer, permutévei Isso € valido em todos os dominios e, portan- to, igualmente no da troca de bens: no potlatch funciona um certo tipo de circulagio de bens do qual se exclui a idéia de valor € se inclui a pro- digalidade, um esbanjamento das coisas, que no deve jamais cessar.* A troca ndo deve, em mo- Pofich 0 tero significa bind on primi, em chinook. Cos tue dos indi americans da costa do Pacifico Nore, que 5c tendeu a outa cura, do wl do Alasa 20 Oregon. Conse emt toma grande cerimBnia no decuso da qual so distrbuidosbrindes. “Tem earacteriscas bom determinadas:formalidades cerimonisis SENHAS 19 mento algum, ter fim & preciso que cresca sem- pre em intensidade, eventualmente até a morte. © jogo faria parte dessa mesma forma de troca, nna medida em que nele 0 dinheiro nao tem mais valor fixo, pois esta sempre reposto em circula- sio, segundo a regra simbélica ~ que ndo é, cobviamente, a lei moral. Nessa regra simbélica, 0 dinheiro ganho nao deve, em caso algum, tornar- se novamente valor de mercado; ele deve ser reposto em jogo dentro do préprio jogo. Podemos também entender essa troca simb6- lica em nivel mais amplo, o das formas. Assim, a forma animal, a forma humana e a forma divina se intercambiam segundo uma regra de metamor- foses, em que cada um deixa de ficar circunscrito a sua definigio, 0 humano opondo-se ao inuma- no etc. Ha uma circulagdo simbélica das coisas, ‘em que nenhuma tem uma individualidade sepa- ada, em que todas atuam em uma espécie de 0 wo de conve, or dco ¢ ma tig de bens pelo doador, de cord com a categoria scl ow gue rece. A ‘uanidade de dagen referees do dado hed, ‘oro, grand pein, Objetor ators apo Pride dro, os brs tron das em ant Ander mut cada neues norman da) A-TROCA SIMBOLICA 20 Jean Baudrillard ‘cumplicidade universal de formas insepardveis. © mesmo acontece com 0 corpo, que nio tem igualmente um estatuto “individual”: € uma espécie de substancia sacrifical que nao se ope a qualquer outra substancia, como a alma, ou a ‘qualquer outro valor espiritual.'Nas culturas em que 0 corpo esta continuamente posto em jogo no ritual, ele nfo € 0 simbolo da vida, € a questo no é a de sua saide, de sua sobrevida ou de sua integridade. Enquanto que nés temos uma visio individualizada, ligada a nogdes de posse, de con- role, [nessas culturas] 0 corpo € investido de uma permanente reversibilidade. E uma substan- cia que pode se por em movimento através de coutras formas, animais, minerais, vegetas, Aligs, tudo nao se joga sempre no nivel de ‘uma troca simbélica, isto é, de um por em jogo ‘que ultrapassa de longe 0 comércio racional das coisas ou dos corpos tal como & hoje praticado? De fato, por paradoxal que isso possa parecer, eu me sinto inclinado a crer que a economia, no sen- tido racional, cientifico, tal como o entendemos, € algo que jamais existiu e que € a troca simbéli- cca que sempre esti a base radical das coisas, e que 4 nesse plano que elas fazem seu jogo. Podemos considerar essa troca simbslica co- SENHAS 21 mo um objeto perdido, interessar-nos pelo po- Hatch nas sociedades primitivas, traté-lo antro- pologicamente, enquanto constatamos que, de ‘nossa parte, estamos totalmente mergulhados em sociedades de mercado, em sociedades do valet. Mas ser que isso € mesmo certo? Talvez conti ‘nuemos em um imenso potlatch. Circunscreve- ‘mos dominios em que certos tipos de racionali- dades, econdmica, anarémica, sexual, parecem agrupar-se, mas a forma fandamental, a forma radical, continua sendo a do desafio, do lance ‘mais alto, a do potlatch — ou seja, da negacio do valor. Do sactificio do valor. Estarfamos assim continuando a viver de um modo sacrifical, sem querer assumir isso. Ou melhor, sem poder assu- milo, porque sem os rituais, sem os mitos, no ‘temos mais os meios para tal. £ indeil sermos nostAlgicos a respeito: n6s en- gendramos uma outra organizagio, que criou um sistema linear ireversfvel no lugar onde antes ha- via uma forma circular, um circuito, reversiili- dade. Viverios e depois morremos ~e isto € real- mente o fim, A TROCA SIMBOLICA ASEDUGAO ‘universo da sedugio era, a meu ver, 0 que O contrapunha radicalmente a0 da produ- ‘a0. Nao se tratava mais de fazer surgir as coisas, de fabricé-las, de produzi-las para um mundo do valor, e sim de seduzi-las, isto é, de desvid-las des- se valor e, portanto, de sua identidade, de sua realidade, para destind-las ao jogo das aparén- cias, 3 sua troca simbélica. Essa troca simbélica visou primeiramente ao mundo econdmico, aos bens ~ como no potlatch — e depois & troca simb6- lica da morte. A seguir veio a sexualidade, que delimitou um pouco o campo. Para mim, a sedu- 40 implica tudo, e nfo apenas a troca entre os se- x0s. Certamente, dada a sua diferenca, cada sexo busca e encontra sua identidade confrontando-se 24 Jean Baudrillard ‘com 0 outro, em uma forma ao mesmo tempo de rivalidade e de conivéncia, positivando a sexuali- dade como fungio e como fruigio. Mas a sedu- fo, para mim, era, antes de mais nada, essa for- ‘ma reversivel em que um e outro sexo fisiol6gico representavam sua identidade, punham-se em jogo. Interessava-me uma forma do devir mas- culino do feminino, do devir feminino do mascu- lino, em confronto com o preconceito, que quer que 0 masculino seja em si a identidade sexual. Eu entendia o feminino como aquilo que contra diz a oposigéo masculino/feminino, a op dos dois sexos em termos de valor. © feminino era o que transversalizava essas nog6es e, de cer~ to modo, abolia a identidade sexual. Sou forcado a dizer que isso gerou alguns mal-entendidos ‘com as feministas. Ainda mais porque, sob esse onto de vista, o desafio deixava de ser a libera- io sexual ~ que me parecia, no final das contas, uum projeto um tanto ingénuo, pois se baseava no valor, na identidade sexual... ‘A sedugio € um jogo mais inevitavel, mais arriscado também, que nao é, em absoluto, ex- clusivo do prazer; mas, a0 contratio, € algo di- ‘verso da fruigio. A sedugio € um desafio, uma forma que tende sempre a perturbar as pessoas SeNHAS 25 no que se refere & sua identidade, ao sentido que esta pode assumir para elas. Elas af reencontram a possibilidade de uma alteridade radical. A sedu- 40 me parecia relacionar-se a todas as formas que escapam a um sistema de acumulagio, de produgio. Ora, a liberagdo sexual, que era a questo maior daquela época, tal como a libera- 40 do trabalho, ndo estava fora do esquema pro- dutivista. Tratava-se de liberar energia ~ cujo modelo arquetipico era a energia material — modelo em contradigio absoluta com o grande jogo da seducio, que nao é de tipo acumulativo. A sedugdo € menos uma especulagio que um jogo com o desejo. Ela nao o nega, ela nao é tam- bém o seu contrério, porém ela o pe em jogo. ‘As aparéncias pertencem & esfera da sedugio, que vai muito além das aparéncias fisicas. Ea esfera em que a agio de por em jogo o ser é uma espécie de deontologia, na qual se esté em formas flexiveis, reversiveis, em que nenhum sexo est seguro de seus fundamentos e, principalmente, menos ainda de sua superioridade. Eu havia en- tio representado o feminino, como na troca sim bolica, no lugar da morte. Era uma espécie de senha, de realidade que possbilta a passagem, se ‘A SEDUGAO 26 — Jean Baudrillard assim posso dizer, de indicio de reversibilidade da vida e da morte. A femina era, assim, a rever- sibilidade do masculino e do feminino. Um esclarecimento, porém: o termo “sedu- 0” jf foi utlizado, & exaustio, nas mais diversas acepgées, como “o poder seduz as massas”, ou “a sedugio da midia”, ou “os grandes sedutores”.. Eu néo compreendia 0 termo neste nivel, que 6, no entanto, 0 mais vulgarizado. Nao ha divida de que, a meu ver, no dominio da sedugio, a ‘mulher tinha historicamente uma posigao privile- giada. Mas houve quem julgasse que ligar a mu- ther & sedugdo representava condené-la as apar réncias - ou seja, frivolidade, Um contra-senso total: a seducéo de que eu falava é, na verdade, 0 dominio simb6lico das formas, ao passo que aquela outra nfo € mais que o dominio material do poder pelo vies do estratagema, O crime original é a sedugao. E nossas tenta- tivas de positivar o mundo, dar-lhe um sentido unilateral, bem como toda a imensa organizacio da produséo, tém, sem davida, a finalidade de climinar, de abolir esse terreno indiscutivelmente perigoso, maléfico, da sedugio. Pois esse mundo das formas ~ seducao, desa- SENHAS 27, fio, reversibilidade - ¢ 0 mais poderoso. O outro, ‘o mundo da produgao, tem o poder, mas a potén- cia esté do lado da sedugio. Eu acho que ela ndo 2 primeira em termos de causa e efeito, em ter mos de sucesso; porém, a um prazo mais ou menos longo, é mais poderosa que todos os siste- mas de produgio ~ de riquezas, de sentido, de deleites... E odos 0s tipos de producio Ihe esto, talvez, subordinados. 0 OBSCENO vio que cena ¢ obsceno nao tém a mesma E iologia, mas é grande a tentagao de apro- ximé-los. Pois, a partir do momento em que hé cena, ha olhar e distancia, jogo e alteridade. O espeticulo tem ligag3o com a cena. Em compen- sagdo, quando se esta na obscenidade, nao ha mais cena, jogo, o distanciamento do olhar se extingue. Por exemplo, 0 pornogrifico: € claro que af temos 0 corpo por inteiro, realizado. Talves a definigao de obscenidade seria, pois, a de tornar real, absolutamente real, alguma coisa que até entGo era metaférica ou tinha uma dimensio metaférica. A sexualidade sempre tem ~ tal como a sedugio ~ uma dimensio metafori- ca, Na obscenidade, 0s corpos, 0s Srgios sexuais, 30 Jean Baudrillard © ato sexual, nao sio mais “postos em cena”, € sim, grosscira ¢ imediatamente, dados a ver, isto 6, a devorar, sio absorvidos e reabsorvidos no mesmo ato. £ um acting out* total de coisas que, em principio, seriam objeto de uma dramarurgia, de uma cena, de um jogo entre parceiros. Af, no hh jogo algum. Nao hé dialética, nem distancia- ‘mento, apenas uma colusio total dos elementos. © que vale para os corpos é igualmente vali- do para a mediatizagio de um acontecimento, para a informagio. Quando as coisas se tornam. demasiadamente reais, quando elas sio dadas imediatamente, quando existem como realidade cconcreta, quando estamos neste curto-circuito que faz com que as coisas se tornem cada vez ‘mais préximas, estamos na obscenidade... Régis Debray fez, a partir deste ponto de vista, uma interessante critica da sociedade do espetaculo: segundo ele, nés nao estamos, em absoluto, em uma sociedade que nos afastaria das coisas, em {que seriamos alienados devido & nossa separagéo delas... Nossa maldigo é, a0 contririo, a de ‘Tang ont ~ Represenrago ou ataagSo. Em inglés no orignal (aT) SENHAS 31 estarmos superaproximados delas, de tudo ser imediatamente existente como realidade concre- ta, tanto nés como elas. E este mundo excessiva- mente real € obsceno, Em tal mundo, hé, ndo uma comunicacio, € sim uma contaminagdo de tipo virético, tudo passa de um para 0 outro de maneira imediata. A palavra promiscuidade diz a mesma coisa: tudo af est de forma imediata, sem distancia, sem encanto. E sem um verdadeiro prazer. Sio estes os dois extremos: a obscenidade e a seducdo, como o demonstra a arte, que é um dos terrenos da seducéo. Hé, por um lado, uma arte capaz de inventar uma outra cena, que nao a real, uma outra regra do jogo e, por outro lado, uma arte realista, que caiu em uma espécie de obsceni- dade, tornando-se descritiva, objetiva ou simples reflexo da decomposi mundo. 10 — da fractalizagio do Ha escaladas na obscenidade: apresentar 0 corpo nu pode ser jé grosseiramente obsceno, mas apresenté-lo descarnado, esfolado, esqueléti- co, 0 € ainda mais. Vemos claramente que hoje em dia toda a problemética critica da midia gira em torno do limite de tolerancia a esse excesso de 32 Jean Baudrillard obscenidade. Se tudo deve ser dito, tudo vai ser dito... Mas a verdade objetiva € obscena. £ bem verdade que, quando nos contam com todos os detalhes as atividades sexuais de Bill Clinton, a obscenidade € de tal forma derriséria, que nos perguntamos se ndo existe af uma dimensio ir6ni- ca, Essa reversio seria, talvez, 0 iltimo avatar da sedugio, em um mando em perdigdo, em obsceni- dade total: apesar de tudo, ndo se chega necessa- riamente a crer nela. A obscenidade, isto é a visi- bilidade total das coisas, é, a essa altura, to insu- portavel que é preciso aplicar-Ihe uma estratégia de ironia para sobreviver. Do contrério, uma tal transparéncia seria absolutamente assassina, Entramos, assim, em um antagonismo insoli- vel entre 0 bem ¢ 0 mal, no qual - com risco de sermos maniqueistas e de contradizermos todo 0 nosso humanismo ~ néo ha reconciliag4o possi- vel. £ preciso aceitar essa regra do jogo que, se no um consolo, me parece mais hicida que pensar em fazer um dia a unidade do mundo, res- tabelecer o hipotético reino do bem. & precisa- ‘mente quando se quer atingir esse bem total que ‘© mal transparece. Por mais paradoxal que seja, nio é através dos direitos do homem que se pro- cessa hoje, e em nivel planetitio, a pior das dis- SENHAS 33 criminagSes? Portanto, a busca do bem tem efei- tos perversos, ¢ esses efeitos perversos estdo sem- pre do lado do mal. Mas falar em mal nao signi- fica condené-lo: de certo modo, o mal é 0 fatal — € uma fatalidade pode ser feliz ou infeliz. 0 onsceno 36 Jean Baudrillard exterminado. Mas ndo pode ser destruido: de certo modo, 0 segredo é indestrutivel. Ele vai ser, centio, satanizado e vai passar através dos pré- prios instrumentos usados para elimind-lo, Sua cenergia € a do mal, é a energia que vem da nio- unificagéo das coisas — definindo-se o bem como a unificagio das coisas em um mundo totalizado. ‘A partir dat, tudo aquilo que se baseia na dua- lidade, na dissociagio das coisas, na negatividade, na morte, € considerado como o mal. Nossa sociedade se empenha, entdo, em fazer com que tudo vé bem, que a cada necessidade corresponda uma tecnologia. Neste sentido, toda a tecnologia esté do lado do bem, isto é, da realizacéo de um desejo geral, de um estado de coisas unificado. Estamos hoje em um sistema que eu chamaria de “anel de Moebius”. Se estivéssemos em um si tema de frente a frente, de confrontagao, as estra- ‘égias poderiam ser claras, fundadas em uma linea- ridade de causas ¢ efeitos. Quer se utilize o mal ou ‘bem, é em fungio de um projeto, ¢ 0 maquiave- lismo néo esté exclutdo da racionalidade. Mas nés estamos em um universo totalmente aleat6rio, em que as casas ¢ 08 efeitos se superpOem, segundo aquele modelo do anel de Merbius, ¢ ninguém pode saber aondle vo parar os efeitos dos efeitos. SeNHAS 37 Um exemplo de efeito perverso pode ser vis- to na luta contra a corrupgao que reina nos negé- cios ow no financiamento dos partidos politicos. Eevidente que cla deve ser denunciada. E 0s jul- zes 0 fazem, E acredita-se que haja nisso uma “purificagio”, no bom sentido do termo. Mas a Purificagdo tem também, necessariamente, efei- tos secundétios. © caso Clinton é dessa mesma ‘ordem. Ao chegar a denunciar uma perversio judicidria semelhante ao perjério, 0 juiz contribui para construir a imagem de uma América “lim- pa”. Beneficiando-a, portanto, para explorar ~ ‘mesmo que democraticamente ~ 0 resto do mun- do, com forca moral acrescida. $6 de maneira muito superficial a ago dos juizes pode ser vista como conflitualmente opos- ta a classe politica, De certo modo, eles sio, 20 ‘contrério, restauradores de sua legitimidade ~ ‘enquanto que o problema mesmo de sua corrup- ‘so permanece longe de ser resolvido. E serd que € certo que a corrupgio deva ser erradicada a qualquer prego? Jé se disse que 0 dinheito que alimenta as fabulosas comissées de financiamentos de armas, ou mesmo sua produ- ‘40, estaria muito mais bem empregado se utili- zado para reduzir a miséria do mundo. © que é A TRANSPARENCIA DO MAL 38 Jean Baudrillard uma conclusio apressada. Como nem se pensa «em fazé-lo sair do circuito do mercado, ele “po- deria” ser revertido na cimentagem generalizada do territ6rio! A partir dai, por paradoxal que possa parecer a questio do ponto de vista do “bem” ou do “mal”, sera que nao é preferivel continuar a fabricar, ou mesmo a vender armas ~ tum certo niimero das quais ndo ser nunca utili- zado ~ a fazer desaparecer um pafs inteiro sob uma capa de cimento? A resposta a essa questo importa menos que a tomada de consciéncia de que nio ha ponto fixo algum a partir do qual se possa determinar o que € totalmente um bem ou totalmente um mal. © Esta é certamente, uma situagio profunda- mente aflitiva para o espfrito racional, € de um desconforto total. © que néo impede que, assim como Nierasche falava da ilusdo vital das aparén- cias, possamos falar de uma fungio vital da cor- rupgio na sociedade. Porém, como o seu princi- pio éilegitimo, ele nao pode ser oficializado e 36 pode, por conseguinte, atuar em segredo. Trata- se de um ponto de vista evidentemente cinico, moralmente inadmissivel, mas € também uma espécie de estratégia fatal - que ndo &, als, apa- nagio de ninguém e sem beneficios exclusivos. SENHAS 39 Por af seria reintroduzido o mal. O mal funciona Porque a energia vem dele. E combaté-lo~ 0 que € necessério — leva simultaneamente a reativé-lo. Podemos lembrar aqui o que dizia Mandeville quando afirmava que uma sociedade funciona a partir de seus vicios, ou pelo menos a partir de seus desequilfbtios. Nao com base em suas quali dades positivas, mas com base em suas qualidades negativas, Se aceitarmos este cinismo, poderemos compreender que a politica seja ~ também ~ a incluséo do mal, da desordem, na ordem ideal ddas coisas, Portanto, nao € preciso negé-la, e sim tomar parte no jogo, ver seu lado jocoso e baldar suas jogad Este titulo ~ “a transparéncia do mal” ~ nio é de todo pertinente... Seria mais correto falar em uma “trans-aparigéo” do Mal que, por mais que se faga, “transparece” ou transpira através de tudo que tende a conjuré-lo, Por outro lado, essa ‘mesma transparéncia € que seria o Mal: a perda de todo segredo. Assim como no “crime perfei- to”, €a propria perfeigio que € criminosa. ‘A TRANSPARENCIA DO MAL 0 VIRTUAL 1m sua acepgio mais usual, 0 virtual se ope 20 real, mas sua sibita emergéncia, pelo viés das novas tecnologias, dé a impressio de que, a partir de entdo, ele marca a eliminagdo, o fim des- se real. Do meu ponto de vista, como ja disse, fazer acontecer um mundo real & jé produzi-lo, e © real jamais foi outra coisa senéo uma forma de simulagio, Podemos, certamente, pretender que cexista um efeito de real, um efeito de verdade, um feito de objetividade, mas o real, em si, ndo exis- te, O virtual nao , entéo, mais que uma hipérbo- le dessa tendéncia a passar do simbélico para 0 real - que € 0 seu grau zero, Neste sentido, 0 vir- tual coincide com a nogio de hiper-realidade. A realidade virtual, a que seria perfeitamente homo- 42 Jean Baudrillard gencizada, colocada em miimeros, “operacionali- zada”, substitu a outra porque ela € perfeita, con- trolavel e néo-contraditéria. Por conseguinte, como ela é mais “acabada”, ela é mais real do que ‘0 que construimos como simulacro. ‘Mas é preciso que se diga que esta expressio, “realidade virtual”, é um verdadeiro oximoro. Nao estamos mais na boa e velha acepsio filos6- fica em que o virtual era 0 que estava destinado a tornar-se ato, ¢ em que se instaurava uma dialéti- ‘caentre as duas nogées. Agora, 0 virtual € 0 que estd no lugar do real, € mesmo sua solucio final na medida em que efetiva o mundo em sua reali- dade defintiva e, ao mesmo tempo, assinala sua dissolucio. Chegando a esse ponto, é 0 virtual que nos pensa: nao ha mais necessidade de um sujeito do ppensamento, de um sujeito da agio, tudo se passa pelo vies de mediagdes tecnol6gicas. Mas seré que 6 virtual € 0 que poe fim, definitivamente, a um ‘mundo do real e do jogo, ou ele faz parte de uma experimentagdo com a qual estamos jogando? Ser que no estamos representando a comédia do virtual, com um toque de ironia, como na comé- dia do poder? Essa imensa instalagio da virtual dade, essa performance no sentido aristico, nfo & SENHAS 43 la, no fundo, uma nova cena, em que operadores substitufram 0s atores? Ela ndo deveria, entéo, ser mais digna de crenga que qualquer outra organiza slo ideol6gica. Hipétese que nao deixa de ser ‘trangiilizante: no final das contas tudo 1880 no seria muito sério, e a exterminagao da realidade nao seria, em absoluto, algo incontestavel. ‘Mas, no momento em que nosso mundo efe- tivamente inventa para si mesmo seu duplo vir- tual, é preciso ver que isto € a realizagéo de uma tendéncia que se iniciou ha bastante tempo. A realidade, como sabemos, nio existiu desde sem- pre. $6 se fala dela a partir do momento em que hha uma racionalidade para dizé-la, pardmetros que permitem representé-la por signos codifica- dos e decodificaveis, No virtual, ndo se trata mais de valor; erata- se, pura e simplesmente, de gerar informagao, de cefetuar célculos, de uma computacio generaliza- da em que os efeitos de real desaparecem. O vir- tual seria verdadeiramente horizonte do real ~ no sentido com que se fala do horizonte dos eventos em fisica, Mas podemos igualmente pen- sar que tudo isso ndo passa de um caminho mais curto para uma jogada que néo podemos ainda discernir qual seja. 0 vinTuaL 44 Jean Baudrillard Existe atualmente uma verdadeira fascinagio pelo virtual e todas as suas tecnologias. Se ele € verdadeiramente um modo de desaparecer, esta seria uma escolha - obscura, mas deliberada - da prépria espécie: a de se clonar, corpo ¢ bens, em lum outro universo, de desaparecer enquanto espécie humana propriamente dita para perpe- tuar-se em uma espécie artificial que teria atribu- tos muito mais performéticos, muito mais opera cionais, Sera que € nisto que se aposta? Penso na fabula borgesiana do povo que foi levado ao ostracismo, jogado para o outro lado do espelho e que no é mais que o reflexo do imperador que o submeteu. Seria assim o grande sistema do virtual, € todo o resto nio seria mais ‘que uma espécie de clones, dejetos, algo abjeto. Porém, na fabula, aquelas populagdes comegam a parecer-se cada vez menos com seu dominador, «, um dia, eles retornam para 0 lado de c4 do es- pelho. A partir de entio, diz Borges, eles nao se- ro mais vencidos. Pode-se imaginar uma catés- trofe desse género e, a0 mesmo tempo, uma espé- cie de revolugao em terceiro grau? Quanto a mim, eu vejo mais uma tal hipertrofia do virtual aque acabaria por engendrar uma forma de implo- SENHAS 45 sio. A que daria ela lugar? £ dificil dizer, porque, além do virtual, eu néo vejo nada, a nfo ser 0 que Freud chamava de nirvana, uma troca de substin- cia molecular e nada mais, Restaria apenas um sistema ondulatério perfeito, que agruparia os corpaisculos em um universo puramente fisico, nada mais tendo de humano, de moral, nem, evi dentemente, de metafisico, Voltar-se-ia, assim, a um estégio material, com uma enlouquecida cit- culagio de elementos... Abandonemos a ficgio cientifica. Nao pode- ‘mos, contudo, deixar de constatar a singular iro- nia que existe no fato de que essas tecnologias, gue relacionamos com a inumanidade, 0 aniqui- Jamento, possam talvez, no final das contas, vir a ser 0 que nos fara ficar quites com o mundo do valor, o mundo dos jufzos. Toda essa pesada cul- tura moral, filoséfica, que o pensamento radical ‘moderno empenhou-se metafisicamente em li- quidar ao cabo de um labor extenuante, a técnica a expulsa, pragmatica e radicalmente, com 0 virtual. No estégio em que estamos, nfo sabemos se ~ ponto de vista otimista - a0 chegar a um ponto de extrema sofisticagdo, a técnica nos libertard da © VIRTUAL 46 Jean Baudrillard prépria técnica, ou se caminharemos para a c téstrofe. Mesmo que a catéstrofe, no sentido dra- matirgico do termo, isto é, de desenlace, possa ter, segundo os protagonistas, formas infelizes ou felizes. 0 ALEATORIO ‘modernas que levam em conta os efeitos imprevi- siveis das coisas ou, pelo menos, uma certa disse- minagio de efeitos e de causas que faz com que 0s referenciais desaparecam. Estamos hoje em um mundo aleat6rio, um mundo em que nao hé mais um sujeito ¢ um objeto harmoniosamente separados no registro do saber. Quanto aos fend- menos aleatérios, eles nao se dao apenas nas coi- 85, nos corpos materiais: fazemos parte, nés também, do microcosmo molecular por nosso préprio pensamento ~ e é isto que gera a incerte- zaradical do muiido. Se tivéssemos qué lidar com ' uma matéria aleatéria, de efeitos fisicos aleat6- 48 Jean Baudrillard rios, porém com um pensamento que fosse ho- mogéneo e unidirecional, existiria ainda uma boa dialética do sujeito € do objeto; mas a partir do ‘momento atual caimos em um pensamento alea- t6rio, que nao nos permite mais do que emi hip6teses, que no pode mais ter pretenses de verdade. Como se sabe, era jé o que acontecia nas cigncias microfisicas. Mas creio que isto € igual- mente vélido para nossa reflexio, nossa andlise atual da sociedade, da politica... Nao podemos sendo expor-nos temerariamente a processos aleat6rios, gragas a um pensamento que por sua vez, aleat6rio ~ 0 que é um exercicio comple- tamente diferente do pensamento clissico discur- sivo que fundamentava a filosofia tradicional. Esse novo encaminhamento nao deixa de ser perigoso. Que podemos nés chamar de “aconte- cimentos” quando reina um desenvolvimento a6tico, com cansas e condigées iniciais minimas, finitesimais ¢ efeitos prodigiosos de nivel mun- dial? Neste sentido, 0 fendmeno da mundializa- ‘s40 6, em si mesmo, aleat6rio e cabtico, a tal pon- to de ninguém poder controlé-lo nem pretender submeté-lo a uma estratégia. SeNHAS 49 © fractal esta igualmente no centro de nosso mundo, Nido vou falar das teorias de Mandelbrot, que ndo conheco suficientemente; mas essa reproducio indefinida de uma mesma microfor- ma, de uma mesma formula, evoca nossa situa- io, na medida em que somos particulas infinite- simais, em que toda informagio concentrada em cada particula ndo faz mais do que proliferar segundo uma formula idéntica, © fendmeno de massa, tal como era idem cado em sociologia, era jf um fendmeno fractal, tum fendmeno virtual, um fendmeno vir6tico. To- das essas dimens6es, que tiveram sua fase hist6ri cca de emergencia, sio encontradas na fisica das massas, Nao haveria af, entfo, apenas um indivi duo fractal, sto é, nao dividido ~ 0 que Ihe asse- guraria ainda uma integridade, mesmo que pro- blemética -, mas disseminado, multiplicado 20 infinito? Culturalmente, tal individuo j esta clo- nado, ele ndo tem necessidade de sé-lo genetica- mente, biologicamente. Talvez até venha a sé-lo, ‘mas, de qualquer forma, ele jé est mental e cul- turalmente clonado: esta evolugio é claramente perceptivel. Diante dessas formas cacticas e catastr6ficas, e de seu processo de exponencialidade, constata- © ALEATORIO 50 Jean Baudrillard ‘mos que 0 macrocosmo humano, que se pensava universalizar gragas a um dom{nio do mundo pela racionalidade, tornou-se uma bolha no inte- rior de um microcosmo completamente incon- trolivel, de ordem microfisica, aleatéria. A regra, ‘no momento atual, passou a ser o molecular, 0 aleat6rio. Quanto ao real, a0 sentido, a verdade, eles sio a excecio - isto é um mistério. Como esse efeito de verdade, esse efeito de real pode- riam nascer e ter uma duragéo, por minima que fosse, em algum lugar, em uma localizacéo infimma do universo - se eles préprios esto em vias de desaparecer? 0 CAOS ‘caos nao € radicalmente oposto a racionali dade, Esta jé foi mais ou menos posta sob controle, mas mesmo as ciéncias estdo chegando 4 seus confins: em determinado momento, hé 0 muro do objeto e as leis fisicas se invertem ou nio funcionam mais. No entanto, nfo abandona- ‘mos a utopia de um conhecimento cada vez mais sofisticado, ainda que essa ilusdo radical néo este- ja no interior da propria ciéncia, De minha parte, eu gostaria de arriscar uma hip6tese quase mani- ‘quefsta: em tltima instancia, estarlamos lidando rio com uma apropriagéo do objeto-mundo pelo ‘sujeito, mas com um duelo entre sujeito e objeto. E nele 0 jogo nao esté feito... Tenho mesmo a mpressio de que hé uma espécie de reversio, de 52 Jean Baudrillard desforra, quase que de vinganga do objeto, pre- tensamente passivo, que se deixou descobrir, analisar, e que subitamente se tornou um pélo de estranka atragio e também de repulsa. Desen- rola-se af um antagonismo quase fatal, da ordem do de Eros e Tanatos, em uma espécie de con- fronto metafisico. ‘Arualmente, nossas ciéncias confirmam 0 de- saparecimento estratégico do objeto na tela da virtualizagio: o objeto passou a ser inapreensivel. CA entre nés, eu acho isso muito ironico: a regra do jogo est mudando, endo somos mais rnés que a impomos. £ este o destino de uma cul- tura, a nossa. Outras culturas, outras metafsicas esto, sem diivida, menos abaladas por essa evo- lugio, porque elas nao tiveram a ambicéo, a exi- ‘géncia, a fantasia de possuir 0 mundo, de analisé- lo visando a domind-lo. Mas, como pretendemos dominar 0 conjunto de todos 0s postulados, evi- dentemente € nosso proprio sistema que caminha acelerado para a catéstrofe. OFIM Cc om esta palavra, € a questo do tempo que se propée, de sua linearidade, desta repre- sentagio talvez convencional que dele temos ~ passado, presente, futuro, com uma origem e um fim. Hé um par origem-fim, tal como hé causas € efeitos, 0 sujeito e 0 objeto. Enfim, todas essas coisas tranqtilizadoras. Porém, no momento atual jé estamos em uma espécie de processo em que tudo estéilimitado e ilimitavel, em que o fim rndo esté mais situado com precisio. Jé fale, a este propésito, em “solugio final” no sentido de exterminio. ‘Mas o fim € também a finalidade de alguma coisa, o que Ihe d& um sentido, E quando estamos ‘em processos que se desenvolvem por reagdo em 54 Jean Baudkillard ccadeia, que se tornam exponenciais, além de uma ccerta massa critica eles nfo tém mais finalidade nem sentido, Canetti o assinala ao falar da hist6- ria: terfamos ido além do verdadeiro e do falso, além do bem e do mal, e sem meios de voltar atrés, Haveria uma espécie de ponto de irreversi- bilidade, além do qual as coisas perdem seu fim, Quando alguma coisa chega ao fim, € porque ela verdadeiramente se deus a0 passo que, se nao hé mais fim, entra-se na hist6ria intermindvel, na crise intermindvel, em séries de processos inter mindveis. N6s os conhecemos, eles j4 estdo af: basta ver 0 desenvolvimento interminavel, des- medido, da produgio material. Nesse sistema, nao existe mais término, Eu duis ver, na passagem do ano 2000, se ainda tf ‘nhamos essa nogdo de prazo, ou se estvamos em uma simples contagem regressiva. A contagem regressiva nao é 0 fim, € a exaustio de alguma coisa, 0 esgotamento de um processo que nem por isso se acaba, que se torna intermindvel. Che- {g0-se, assim, a uma alternativa paradoxal: ou ndo atingiremos nunca o fim, ou jé 0 ultrapassamos, Quanto a mim, eu dizia a mim mesmo que no haveria “passagem” ao ano 2000 porque esta jé se dera hé muito tempo, porque agora ndo se tra- SENHAS SS tava mais do que de uma espécie de sobressalto da temporalidade. Nao podendo sitwar um fim, ten- ta-se desesperadamente marcar um comego, Disso 444 testemanho nossa compulsfo atual em buscar origens: nos dominios antropol6gico e paleonto- 6gico, vemos os limites recuarem no tempo, em diregio a um passado igualmente intermindvel. Minha hip6tese é a de que j ultrapassamos 0 ponto de irreversbilidade, que jé chegamos a uma forma exponencial, ilimitada, em que tudo se de- senvolve no vazio, 20 infinito, sem poder mais ser apreendido em uma dimenséo humana; em que se perdem, ao mesmo tempo, a meméria do passado, a projegio do futuro € a possibilidade de integrar esse fururo em uma ago presente. Jé estarfamos, entio, em um estado abstrato, desencarnado, em que as coisas continuam por simples inércia e tor- rnam-se o simulacro delas mesmas, sem que se pos- sa por-lhes termo. Elas ndo sio mais que uma sfn- tese artifical, uma prétese. Obviamente, isso Ihes ‘garante uma existéncia e uma espécie de imortali- dade, de eternidade ~ a do clone, de um universo clone. O problema proposto pela historia nfo € 0 de que ela teria tido fim, como queria Fukuyama; 6, ao contrario, de que ela nao teré fim ~ e, por conseguinte, ndo teré mais finalidade. 56 Jean Baudrillard Essa questo do fim, eu a tratei em termos de ilusio. Vive-se sempre na ilusio de que alguma isa ter uum termo, terd ento um sentido, per- mitiré restituir retrospectivamente a origem e, ‘com esse comego ¢ esse fim, autorizaré o jogo das casas e efeitos. ‘A auséncia de fim dé a impressio de que toda informagio que recebemos néo é mais que algo deglutido, ruminado; que tudo ja estava ali, que ‘nos confrontamos com uma mescla melodraméti- ca de acontecimentos que nao sabemos se real- mente ocorreram, se foram ou no substituidos por outros — 0 que & bem diferente de um acon- tecimento que néo poderia deixar de ter aconte- ido, o acontecimento fatal que marca verdadei- ramente o fim, mas que tem, por sua fatalidade ‘mesma, 0 selo de acontecimento. O fato de ter extraditado a morte, ou pelo menos de tentar incessantemente consegui-lo, cesté marcado nos infinitos esforgos que sio feitos para retardar o fim, para nao mais envelhecer, para suprimir as alternativas, para controlar ante- cipadamente até o nascimento segundo todas as possibilidades genética. Como todas essas possi- bilidades so tecnologicamente possiveis, a tec- nologia substituiu a determinagdo que faz com SENHAS 57 que, em dado momento, duas coisas se excluam uma A outra, que se separem e que venham a ter tum destino diferente, mas também a infinita pos- sibilidade de fazer tudo, sucessivamente. Existem al, sendo duas metafisicas opostas — na medida ‘em que a tecnologia no é da algada da metafisi- ca, pelo menos um desafio decisive do ponto de vista da liberdade. Mas, se nao hé mais fim, finitude, se ele € mortal, 0 sujeito nao sabe mais o que ele €. E 6 exatamente essa imortalidade que € 0 sonho dlti- mo de nossas tecnologias. orm O CRIME PERFEITO crime perfeito seria a eliminagio do mundo real, Mas, a mim, o que me interessa é a eli- minacio da ilusio original, a ilusio fatal do mun- do. Poderiamos convir que o proprio mundo é tum crime perfeito: ele é, em si, sem mével, sem ‘equivalente, sem autor presumido. Assim pode- mos imaginar que desde a origem estamos ja no crime, ‘Mas, no crime perfeito, 6 a perfeigdo que & cri- minosa, Tornar o mundo perfeito € dar-lhe acaba- mento, completé-lo ~ e, por conseguinte, encon- tear para ele uma solucio final. Eu me lembro daquela parabola sobre os monges do Tibete que, hh séculos, decifram os nomes de Deus, os nove ilhoes de nomes de Deus. Um dia, eles chamam 60 Jean Baudrillard pessoas da IBM, que chegam com seus compu- tadores, e em um més acabam todo o seu traba- Iho. Ora, a profecia dos monges dizia que, uma vez terminada essa recensio dos nomes de Deus, ‘o mundo teria fim. As pessoas da IBM, evidente- ‘mente, no créem nisso. Mas, depois de termina- do seu inventario, ao descerem a montanha, eles vvéem as estrelas se extinguirem uma a uma no fir- ‘mamento. E uma bela parabola do exterminio do ‘mundo por sua verificagio Giltima, que 0 torna perfeito por obra de calcul, de verdade. Diante de um mundo que ¢ ilusfo, todas as sgrandes culturas se empenharam em gerir, de cer- to modo, a ilusio com a ilusio, o mal com o mal. ‘Apenas nés pretendemos reduzir a ilusio com a verdade - 0 que é a mais fantéstica das ilus6es. ‘Mas essa verdade diltima, essa solugdo final equi- vale & exterminagao. O que est em causa no cri- ‘me perfeito perpetrado contra © mando, contra © tempo, contra 0 corpo, é essa espécie de disso- lugdo pela verificagao objetiva das coisas, pela identificagao. Isso equivale a eliminar mais uma vvez, como jé dissemos, a morte, Pois nio se trata mais de morte e sim de exterminio, Literalmente, exterminar significa privar alguma coisa de seu fim, privé-la de seu proprio termo. Significa eli- SENHAS 61 minar a dualidade, 0 antagonismo vida e morte, reduzir tudo a uma espécie de princfpio tinico — poderfamos mesmo dizer de “pensamento tinico” ~ do mundo, que se traduziria em todas as nossas tecnologias ~ hoje, sobretudo em nossas tecnolo- gias do virtual. Portanto, 6, a0 mesmo tempo, um crime con- tra o mundo real, que se torna uma fungio indtil; porém, mais profundamente ainda, mais radical- mente, € um crime perpetrado contra a ilusio do mundo, isto é, contra sua incerteza radical, sua dualidade, seu antagonismo — tudo aquilo que faz ‘com que haja destino, conflito, morte. Eliminan- do, assim, todo principio negativo, chegar-se-ia a um mundo unificado, homogeneizado, totalmen- te verificado de certo modo, e, exatamente por ‘isso, a meu ver, exterminado. A exterminagio, seria a partir de ento nosso modo de desapare- cer, © que terfamos como substituto da morte. festa a histéria do crime perfeito, que se ‘manifesta em toda a “operacionalidade” atual do mundo, em nossas maneiras de realizar 0 que € sonho, fantasia, utopia, de transcrevé-los nume- ricamente, de transformé-los em informagao — aquilo que € 0 trabalho do virtual em sua acepgio ais ampla. E este 0 crime: chega-se a uma per- © CRIME PERFEITO 62 Jean Baudrillard feiglo, em seu sentido de realizagao total, e essa totalizagdo € um fim. Nao hé destinacéo a outro ugar, ndo hd sequer um “outro lugar”... O crime perfeito destréi a alteridade, 0 outro. f 0 reino do mesmo. O mundo se identifica consigo mes- mo, € idéntico a si mesmo, excluindo todo pri cipio de alteridade. Atualmente, 0 que fundamenta a nogio de “individuo” nao é mais 0 sujeito filos6fico ou 0 sujeito critico da historia; € uma molécula admi- ravelmente operacional, mas entregue a si mesma ¢ obrigada a se assumir sozinha. Sem destino, ela no terd mais que um desdobramento pré-codifi- cado, e se reproduziré ao infinito, idéntica a ela mesma. Essa “clonagem”, em sua acepgio mais ampla, faz parte do crime perfeito. 0 DESTINO u gostaria de dar uma imagem do destino Eecctendos cemprestada do dominio da geo- sgrafia: ada divisio de Aguas —0 famoso continen- tal divide*, a partir do qual, nos Estados Unidos, certas éguas encaminham-se em diregio ao Pact- fico, € outras em diregao ao Atlantico, Por essa divisio, em dado momento, dois elementos se se- param, irreversivelmente, € 0 que parece, ¢ ja- mais voltardo a reunir-se. A divisio é definitiva. Poderfamos dizer o mesmo do nascimento, que € uma separagio definitiva. Alguma coisa toma forma de existéncia, alguma coisa nio a toma ~e Continental vide ~ Divisor de gus continental. Em inglés no orginal. (N. da T.) 64 Jean Baudrillard © que nio nasceu ao mesmo tempo tornar-se-4 0 outro, e como tal permanecers. "0 destino seria, entio, uma forma de separa- fo definitiva, irreversivel. Mas uma espécie de reversibilidade faz com que as coisas separadas permanecam cfimplices. A ultramicrofisica fala simultaneamente da separabilidade e da insepara- bilidade das particulas. Onde quer que elas vio, € embora definitivamente divergentes, cada parti ‘cula permanece ligada, conectada & sua antiparti- cula, Eu ndo conseguiria levar mais longe a com- paragio, suponho, mas ela dé conta do recado, do ue se mostra a nés como destino na tragédia, na qual ele € a forma do que nasce e do que morre sob o mesmo signo. O signo que conduz a vida, & existéncia, € 0 mesmo que conduz A morte. Ser4, portanto, sob o mesmo signo fatal que as coisas terdo comego e fim. £ este o sentido daquela famosa hist6ria da morte em Samarcande... Na praca de uma cidade, um soldado vé a morte fazerlhe um sinal; apavorado, ele vai até 0 rei e Ihe diz: “A morte me fez um sinal, eu vou fugir para o mais longe possivel, eu vou fugir para Sa- marcande.” O rei convoca a morte para pergun- tarthe por que ela amedrontou assim seu capito. Ea morte lhe diz: “Eu ndo quis causar-he medo, SENHAS 65 ‘eu queria simplesmente lembrar a ele que n6s ‘temos um encontro marcado hoje & noite ~ em Samarcande.” destino tem, assim, uma forma, de certo modo, esférica: quanto mais nos afasta- ‘mos de um ponto, mais nos aproximamos dele. O destino nao tem “intengdes” propriamente ditas, mas temos por vezes a impressio de que cenquanto uma vida de gléria e de sucesso se de- senrola, em algum outro lugar um dispositive trabalha obscuramente em sentido inverso e faz.a euforia deslizar, de maneira imprevisivel, para 0 drama. O evento fatal nao € aquele que se pode explicar por suas causa, e sim aquele que, em um dado momento, contradiz. todas as causalidades, aquele que vem de algum outro lugar, mas tinha aquela destinagao secreta. Assim, podemos en- ‘contrar causas para a morte de Diana e tentar reduzir 0 acontecimento a essas causas, Mas ape- lar para as causas a fim de justficar os efeitos € sempre um dlibi: nao esgotaremos dessa mancira © sentido, ou a falta de sentido, de um aconteci- ‘mento. Ora, no caso, o que constitui o aconteci- mento é uma reversio do positivo em negativo, uma reversio que faz com que, quando as coisas sio demasiadamente Iuxuosas, elas se tornem nefastas, como se estivesse em aco, silenciosa- (© DESTINO 66 Jean Baudrillard ‘mente, uma forga sacrifical coletiva. O destino € sempre o principio da reversibilidade em ato. Neste sentido, eu diria que € 0 mundo que 1ios pensa, nfo de maneira discursiva, mas pelo aves- s0, contra todos 0s nossos esforgos de pensé-lo pelo direito. Todos nés poderiamos facilmente encontrar exemplos disso. Mesmo nas coincidén- cias, hé toda uma arte. Quando a psicandlise fala em lapso, em substitui¢do de termos no chiste, cesté igualmente no dominio da arte da coincidén- cia: em dado momento, hi uma estranha atracio centre significantes, € isto que faz 0 acontecer psfquico. Eu gostaria de imaginar, em contraposigao a ‘este universo totalmente informatizado que nos € dado ver, ou prever, um mundo que fosse apenas de coincidéncias. Esse mundo nao seria um mun- do do acaso e da indeterminagio, e sim um mun- do do destino. Todas as coincidéncias estéo, de certo modo, predestinadas. A destinacao, aquilo que tem uma finalidade clara, opor-se-ia, entdo, © destino, isto é, 0 que tem uma destinagao secre- ta, uma predestinagdo ~ sem qualquer sentido religioso. A predestinagao diria: tal momento € predestinado a tal outro, tal palavra a tal outra, como em um poema em que se tem a impressio senuas 67 de que as palavras jé tinham, desde sempre, a vocagio de se juntar. Do mesmo modo, na seducio, hé uma forma de predestinagio: entre o feminino e © masculi- ‘no, a meu ver, nfo ha uma relagio diferencial, ha também uma forma de destino. Somos sempre? destinados ao outro, a uma troca, € uma forma dual e nao ~ contrariamente a concepgio que geralmente se tem ~ um destino individual. O destino & essa troca simbélica entre n6s € 0 mun- do que nos pensa ¢ que nds pensamos, onde corre esse conflito e esse conluio, esse abalroa- mento ¢ essa cumplicidade das coisas entre si. E af estd o crime, ea dimensio trégica..A puni- fo € inescapével: havers uma reversbilidade que fard com que alguma coisa seja, neste mesmo lugar, vingada. Canetti o disse: “A vinganga, nao é preciso nos darmos ao trabalho de desejé-la; ela se fard, ela se faz. automaticamente, pela reversibili- dade das coisas.” £ esta a forma do destino, © DESTINO. ATROCA IMPOSSIVEL stamos na troca, universalmente: todas as Ex ‘concepgdes a ela conduzem em deter- minado momento ~ seja ele o da troca mercantil ‘0u 0 conceito de troca simbélica, que tenho usa- do seguidamente, que 6, de certo modo, seu ‘posto. A troca alicerca, de fato, nossa moral, assim como a idéia de que tudo pode ser objeto de troca, de que nao existe nada a que se nio se pessa atribuir um valor, ¢ assim fazer passar de tum para o outro. © destino traz consigo a nogéo de troca imposstvel, pelo menos em termos absolutos. O destino nao pode ser trocado por nada. E algo ‘que, em dado momento, & de uma tal singularida- de que nao é trocavel por nenhuma racionalida- 70 Jean Baudrillard de, seja ela qual for. Logo, a dimensio radical do destino seria a da troca impossfvel. A meu ver, a troca é um engodo, uma ilusio, mas tudo nos leva a agir de forma a que se possam trocar as idéias, as palavras, as mercadorias, os bens, os individuos... A que a prépria morte possa ser tro- cada por alguma outra coisa. E ainda uma moda- lidade de troca a de encontrar para tudo razbes, causas, finalidades, Para que esse engodo funcio- ne, é preciso que tudo tenha um referencial, um cequivalente, em algum lugar. Ito é, uma possibi dade de troca em termos de valor. Ao contratio, 0 {que nio se troca seria, em suma, segundo Bataille, ‘a parte maldita - que precisa ser reduzida, De minha parte, eu creio que, a despeito de todos os nossos esforgos, essa troca impossivel _ ‘std em toda parte. Se buscarmos um exemplo no dominio econémico, que é por exceléncia o lugar da troca, toda e qualquer coisa a é, em principio, intercambidvel, pois € esta a sua condigao de ‘entrada nesse dominio. Mas a propria esfera eco- ndmica, tomada em sua totalidade, néo pode ser trocada por nada, Nao existe uma metaecono- mia, uma transcendéncia pela qual ela pudesse ser medida, Nao hé uma finalidade diltima pela qual a economia, como tal, pudesse ser trocada, SeNHas 71 Em seu interior, todas as movimentagées so pos- siveis, mas ndo ha transcendéncia alguma, uma “outra coisa” pela qual, em rermos de valor, ela pudesse se trocar. Podemos seguir essa mesma linha de racioci- rio, em iltima instancia, em relacéo a0 pr6prio mundo. © mundo ndo € intercambiavel porque, em sua totalidade, ele nao tem um equivalente ‘em lugar algum, Como tudo faz parte do mundo, no hé nada que Ihe seja exterior, pelo qual ele possa ser avaliado, ou com o qual possa ser com- parado, ¢ assim ter seu valor estabelecido. De certo modo, ele nio tem prego. Porém, a partir do momento em que alguma coisa € nomeada, codificada, cifrada, vemo-nos rovamente no circuito da troca. Neste momento, prépria “parte maldita” torna-se um valor. Hoje cm dia, a infelicidade, a miséria, tudo isso tornou- se trangiilamente objeto de negociagéo. Hé uma bolsa de valores negativos, se assim posso dizer. Por exemplo, a divida, que € algo negative e ao ‘mesmo tempo virtual, pode ser negociada, vendi- da, comprada. Foi Nietasche, creio, quem falou em divida remida, Remissio (Redengao) da divida ‘que € 0 estratagema de Deus: ele enviou seu filho para redimir a divida do ser humano, e o ser A TROCA IMPOssiveL 72 Jean Baudrillard humano jamais poderé, por sua vez, remi-la, pois que ela ja foi remida pelo préprio credor. Por- tanto, © homem nao a quitaré nunca, ser4 eterna- ‘mente devedor. E 0 que vale para Deus € também vlido, hoje em dia, no caso do capital: o sistema criou uma divida ilimitada, que ele resgata paula- tinamente, renegocia, repde em circulagio, a0 infinito... Mais ou menos como o diabo que, 20 comprar a sombra do homem, a recicla, E a estratégia do préprio sistema manter uma troca que nao se alicerga em nada, mas que tem toda a eficdcia de uma troca positiva. O sistema pode reintegrar tudo, com excegio de, como tal, ele ndo poder equivaler-se a qualquer outra coisa, Todo sistema ~ econdmico, politico, estético ~ tem suas raz6es, seus determinantes internos, que tornam as trocas possiveis. Mas hé um limite, uma massa critica, uma linha de demarcagdo além da qual esses sistemas nao tém mais sentido, porque nao existe nada de exterior a eles que possa constituir seu fundamento em termos de valor. Entramos, entdo, na dimensdo quase so- brenatual da troca impossivel. Em algum ponto, ‘nossa moral da troca nao funciona mais. Como denominar esse outro lugar? Nao é um universo, porque o universal, tal como 0 concebemos, deli- SENHAS 73 ‘ita exatamente um espago em que todas as tro- as sio possiveis: estamos vivendo a universalida- de da troca, De qualquer forma, € um lugar em que ndo pode mais se dar essa conciliagéo de alguma coisa com seu valor, com o referencial ue Ihe dé um sentido, Portanto, nio hé mais tro- ca, sim uma dualidade. Enquanto que, na troca, ha igualmente dois termos, mas sobretudo passa- ‘gem de um a outro, circulagéo ~ uma circulagio consensual, conciliada, em que os contratantes esto de acordo -, af 0 consenso no pode fun- cionar, e a conseqiténcia disso € que esses siste- ‘mas tém de conviver com esse limite, esse muro da troca imposstvel. Como todos os sistemas tém tum desenvolvimento cada vez mais prolifico, a saturagio conduz a esse muro da troca impossivel —e a repercussio disso ¢ sua propria deterioragéo interna. ‘Mas agora estamos inventando um equivalen- te geral fantéstico: o virtual. Ele se apresenta como um ciframento, uma codificago, na qual tudo poderd ser medido pela mesma medida redutora que é 0 bindrio, a alternancia 0/1. Nada ‘escaparé a essa equacio simplificadora, E essa a forma tiltima da troca, sua forma mais abstrata, sua forma-limite, préxima da troca impossivel. A A TROCA IMPOSsiVEL 74 Jean Baudrillard essa idéia poderiamos associar a da incerteza, no sentido com que se fala, em fisica, em “princfpio de incerteza”. Tudo concorte para fazer-nos viver em um mundo banhado por uma incerteza défi- nitiva, Nao se trata mais daquela incerteza relati- va, ligada aos atrasos da ciéncia, a estruturas ‘mentais ainda bem pouco sofisticadas. Havers sempre aquela linha além da qual um sistema, nao podendo mais dar provas de si mesmo, volta-se entio contra si, Na fisica, principio da incerteza estipula que nao se podem definir, a0 mesmo tem- po, a situagio e a velocidade de uma particula, Para nés, isso significa que no podemos nunca definir ao mesmo tempo uma coisa ~ a vida, por ‘exemplo ~ € seu prego. Nao podemos aprender 40 mesmo tempo o real e seu signo: jamais pode- remos dominar simultaneamente a ambos. A DUALIDADE, N fundo, esses mundos paralelos so a con- seqiiéncia de uma realidade que se dissocia porque se buscou excessivamente unificé-la, homogeneizé-la. Deveria a dualidade ~ da qual a reversibilidade 6, de certo modo, uma forma apli- cada ~ ser posta no principio? Estariamos falando de uma ordem, ou de uma desordem, do mundo em que teria havido originariamente co-existén- cia antagonica de dois princfpios eternos, o bem € 0 mal, como afirma o pensamento maniquefsta? Seo mundo criado é obra do mal, se o mal é sua energia, € bastante estranho que af se possa encontrar algo de bem, de verdade. A perversida- de das coisas, da natureza humana foi sempre objeto de indagagao. Ora, é a questo inversa que 76 Jean Baudrillard deveria ter sido proposta: como € possivel que possa existir, em dado momento, algo de bem, que em algum lugar, em uma pelicula do mundo, possa surgir um principio de ordem, um princi- pio de regulagio e de equilfbrio capaz de funcio- nar? Este milagre € que é ininteligivel. | Creio que as coisas se dao de maneira diferen- te. O que € muito dificil de compreendermos é 0 principio dual, de tal forma estamos modelados por tima filosofia geral da unidade: tudo que vem contra ela é tido como inaceitavel. Tenta-se con- trolar, no 0 que existe, mas o que, em nome des- se pressuposto, néo deveria existir. De minha parte, acho muito mais fascinante colocar no principio uma dualidade irreversivel, inconcilis- vel. Opomos o bem e o mal em termos dialéticos de modo a que uma moral se torne possivel, isto 6, que possamos optar por um ou por outro. Ora, nada nos diz que tenhamos realmente essa esco- Iha, devido a uma reversibilidade perversa que faz. com que, na maior parte das vezes, todas as tentativas de fazer 0 bem produzam, a médio ou longo prazo, o mal. O contrério também existe, no entanto, o mal podendo levar a um bem. Ha, assim, efeitos de bem e de mal inteiramente con tingentes, totalmente flutuantes, a ponto de ser SENHAS 7 ilus6rio considerar separadamente os dois princf- pios ¢ pensar que haja entre ambos uma escolha fandada em uma razdo moral qualquer. A dualidade sup6e, se retomamos a conhecida ‘metéfora do iceberg, que o bem é a décima parte, cemergente, do mal... E, de tempos em tempos, hé uma reversio, com 0 mal tomando o lugar do bem; e a seguir 0 iceberg se dissolve, tudo retor- nna a uma espécie de fluido em que o bem eo mal se confundem, De qualquer forma, eu considero a dualidade como a verdadeira fonte de toda ener- gia, sem com isso decidir quanto a qual princfpio seria 0 primeiro —o bem ou o mal. O essencial & seu antagonismo e a impossbilidade em que nos ‘vemos de criar um mundo da ordem e ao mesmo ‘tempo prestar contas de seu contexto total de incerteza. Ito no podemos, e € isto o mal. ‘A DUALIDADE 0 PENSAMENTO mundo nos pensa, mas isto € 0 que nés pen- samos... © pensamento é, de fato, uma for- ‘ma dual, no é a de um sujeito individual, ele se divide entre 0 mundo e nés: no podemos pensar ‘© mundo, porque, em algum lugar, ele nos pensa. Nio se trata mais, portanto, de um pensamento sujeito, que impée uma ordem situando-se fora de seu objeto, mantendo-o a distancia, Essa situa- «fo talver nunca tenha existido, nao ha dvida de que ela nao € mais que uma majestosa represen tagHo intelectual, que teve, contudo, uma expan- so fantéstica. Mas, a partir de nossos dias, algu- ‘ma coisa mudou: 0 mundo, as aparéncias, 0 obje- to fizeram sua irrupgio. Aquele objeto, que se tentou manter em uma espécie de passividade 80 Jean Baudbillard analitica, ora se vinga... Eu gosto muito dessa idéia de vinganga, desse efeito de retorno, que nos obriga a levé-lo em conta. Nasce dat a incer- teza. Mas essa incerteza do mundo, seré que no €6 pensamento que a introduz no mundo? Ou serd que € a ilusio radical do mundo que conta- mina pensamento? f provavel que isso perma- nega definitivamente impossivel de ser decidido. ‘Mas € preciso que se diga que o desaparecimento da fixidez do sujeito pensante, fundamento de nossa filosofia ocidental, e a consciéncia de uma ‘roca simbélica entre o mundo ¢ o pensamento desestabilizam os discursos da ordem e da racio- nalizagio - inclusive o discurso cientifico. O pen- samento torna-se novamente um pensamento- ‘mundo, no qual nenhum tertit6rio pode vanglo- riarse de um dominio analitico das coisas, E se, ‘como eu creio, 0 estado do mundo € paradoxal ~ ambiguo, incerto, aleatério ou reversivel -, € necessério encontrar um pensamento que seja, por sua ver, paradoxal. Se quiser fazer histéria no mundo, o pensamento deverd ser & sua ima- gem. Um pensamento objetivo era perfeitamente adequado & imagem de um mundo que se supu- nha determinado. Porém, jé nao 0 € mais, num mundo desestabilizado, incerto. Por conseguinte, SENHAS 81 € preciso encontrar uma espécie de pensamento- evento, que vena a fazer da incerteza um princt- pio, € da troca impossivel, uma regra do jogo, sabendo que ele no ¢ intercambigvel com a ver- dade nem com a realidade. Ele € uma outra coisa, que continua sendo enigmética: Como pode ele situar-se sem pretender mais o dominio da signi- ficacio, estando no fluxo das aparéncias, nao tendo por referencial a verdade? E esse o princi- pio da troca imposstvel, ¢ eu creio que o pensa- mento deve levé-lo em conta, fazer da incerteza uma regra do jogo. Mas ele deve saber que joga sem uma conclusio possivel, em uma forma defi- nitiva de iluséos portanto, significa por em jogo até mesmo seu proprio estatuto, ‘A ordem das coisas, a ordem das aparéncias, ‘do pode mais ser confiada a qualquer matéria de saber. O pensamento, eu quero paradoxal, sedu- tor ~ com a condigio, evidentemente, de nao to- ‘mar por sedugo a manipulago aduladora, ¢ sim ‘como um desvio de identidade, um desvio do ser.* "Em oawa obra us Autor lembra a evimologla do termo, eda cere seduce = fasta da va, defiindo 0 sentido com que © epee. (S.d0 0 FENSAMENTO 82 Jean Baudrillard Pois o pensamento nao trabalha no sentido da identificagao das coisas, como o pensamento racional, mas no sentido de sua desidentificagio, de sua seducio, isto , de seu desvio, a despeito de sua fantasiosa vontade de unificar 0 mundo sob seu pulso e em seu nome. Esse tipo de pensamento é, evidentemente, tum agente provocador, regulando a ilusio com a ilusio. Nao pretendo que tal tipo de pensamento se aplique a toda e qualquer situagio. Talvez devamos aceitar dois niveis de pensamento: um pensamento causal, racional, correspondente a0, mundo newtoniano no qual vivemos, € um outro nivel de pensamento, muito mais radical, que faré parte daquela destinagdo secreta do mundo do qual seria uma espécie de estratégia fatal. A PALAVRA FINAL Sm presungio extrema pretender dar uma palavra final. Mas creio que percorremos um itinerdrio em que os termos se metabolizaram uns nos outros ~ a morte, o fatal, 0 feminino, a simulagao ~ seguindo uma espécie de espiral. Nio avangamos de um salto para nos aproximar- mos de uma eventual finalidade. Simplesmente percorremos um certo niimero de paradigmas que s6 tém seu fim no momento de suas meta~ morfoses. Pois se 0s conceitos morrem, eu ousa- tia diz de uma forma a outra - 0 que é ainda a melhor ‘maneira de pensar. Portanto, se ndo hé fim, nao 1hé conclusio, Para mim, um pensamento € radi cal, na medida em que ele ndo pretende se com- provar, verificar-se em uma realidade qualquer. + que eles tém uma bela morte, passando 84 Jean Baudrillard (© que nio significa que ele negue a prépria exis- téncia, que seja indiferente a seu impacto; mas sim que ele considere essencial manter-se como elemento de um jogo cuja regra ele conhece. O {inico ponto fixo é o inexprimivel, o fato de que le continuara existindo, ¢ todo 0 trabalho do ppensamento tem por finalidade preservé-lo. ‘Mas a presenca inaliendvel daquilo que nio pode ser resolvido no me induz a um pensamen- to ndo-situado, aferrado apenas a especulacao abstrata e ao manejo de idéias extraidas da histé- ria da filosofia. Eu tento me desprender de um pensamento referencial, finalista, para seguir 0 jogo de um pensamento consciente de que algu- ‘ma outra coisa o pensa. £ por isso que tenho esta- do sempre bastante préximo da contemporanei- dade, menos em termos sociolégicos ou politicos do que visando a medir 0 angulo de incidéncia sobre ela de um mundo paralelo com o qual esté em permanente confrontacio. © pensamento deve representar um papel catastr6fico, ser ele préprio um elemento de catis- trofe, de provocacio, em um mundo que quer depurar absolutamente tudo, exterminar a morte, a negatividade. Mas ele deve, 20 mesmo tempo, continuar sendo humanista, preocupado com 0 hhumano e para isso reencontrar a reversibilidade | do bem e do mal, do humano e do inumano.

Você também pode gostar