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amor

André Sant’Anna

amor
2008 © André Sant’Anna

Produção Editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Marília Garcia
Valeska de Aguirre

Editora-assistente
Larissa Salomé

Produção gráfica
Chris Abbade

Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
sindicato nacional dos editores de livros, RJ

S223a
2.ed.
Sant’Anna, André, 1964-
Amor / André Sant’Anna. 2.ed. Rio de Janeiro: 7Letras,
2008.

56p.: il.
ISBN 978-85-7577-526-4

1. Romance brasileiro. I. Título.

08-0118. CDD: 869.93


CDU: 821.134.3(81)-3

2008
Viveiros de Castro Editora Ltda. www.7letras.com.br
R. Jardim Botânico 600 sl. 307 editora@7letras.com.br
Rio de Janeiro RJ cep 22461-000 tel (21) 2540-0076
A criação é um pesadelo espetacular que ocorre em um
planeta que vem sendo encharcado pelo sangue de todas as
suas criaturas há centenas de milhões de anos. A conclusão
mais moderada que poderíamos tirar do que realmente se
passa neste planeta há cerca de três bilhões de anos é que
está sendo convertido em imensa tulha de fertilizante. Mas
o sol distrai nossa atenção, sempre secando o sangue, fazendo
coisas crescerem por cima e com seu calor dando a esperança
que provém do conforto e expansividade do organismo.
Ernest Becker
O Cristo e o governo e as bocetas nesse mundo e
aquela cena da cobra engolindo o sapo e os leões devoran-
do as criancinhas que esguicham sangue e o sol secando
o sangue das criancinhas e o sangue das criancinhas se
decompondo e liberando carbonos e formando petróleo:
o combustível do piloto de carros em chamas.
O piloto se queimando e derretendo e liberando
carbonos e toda essa angústia o tempo todo. Aquelas
palavras e aqueles livros todos explicando as palavras e
as palavras dos livros e a história do Cristo, lá, todo en-
sanguentado na cruz e o sol secando o sangue do Cristo e
os vermes devorando o corpo do Cristo e o combustível
do piloto de carros em chamas e as crianças esguichando


sangue e aquele programa divertido da televisão com o
cara explicando todas aquelas palavras e a dor. A dor e
aquele livro cheio de palavras e o Presidente da Repú-
blica falando aquelas coisas todas para o povo e o povo
ouvindo o Presidente da República e a dor do povo e o
sangue do povo esguichando e o sol secando o sangue
do povo e o povo em chamas nas revoluções e o povo
ouvindo a história do Cristo e o povo bebendo o sangue
do Cristo e o fedor do povo e o Presidente da República e
essa angústia toda entre os homens e as mulheres fazendo
sexo e todas essas doenças no sangue do povo fazendo
sexo e produzindo criancinhas e liberando carbonos o
tempo todo e os organismos fedendo e a gordura nos
organismos e aquelas mulheres. Aquelas bocetas e aquelas
palavras todas e o sangue e o povo comendo o cadáver
do Cristo e o povo comendo cadáveres diversos e o sol,
lá em cima, secando o fedor do povo e as palavras todas
e os problemas do povo.
Todas as palavras e as paixões e o povo e os deputa-
dos, lá, criando leis para o povo e o Cristo, lá, criando leis
para o povo e o povo criando leis e o cara, lá na televisão,
explicando tudo, no caixão, liberando carbonos e os gases
do estômago e o piloto de carros nas chamas produzidas
pelo sangue das criancinhas e o Cristo criando criancinhas
devoradas e o Presidente dos Estados Unidos, lá na Casa
Branca, e a mulher do Presidente dos Estados Unidos.
A boceta da mulher do Presidente dos Estados Uni-
dos e os caras fazendo sexo com as mulheres bonitas do
cinema e o cara fazendo sexo com a Marylin Monroe
e a boceta da Grace Kelly e o príncipe olhando para a


boceta da Grace Kelly e a Grace Kelly olhando para o
pau do príncipe e a Grace Kelly sentada no bidê e as fezes
dos seres humanos e as fezes de todos e o sol secando a
merda e liberando carbonos e produzindo petróleo e os
árabes, todos lá no Oriente Médio, produzindo sangue
e os árabes produzindo petróleo e as criancinhas esgui-
chando sangue e aquelas espadas cortando cabeças e os
chineses e os japoneses e os indianos e os caras do oriente,
lá no oriente, meditando e se integrando ao todo e essa
angústia toda naquelas bocetas esguichando sangue e os
jogadores de futebol, lá na Itália, e os dólares dos joga-
dores de futebol e as bocetas das mulheres dos jogadores
de futebol e os negros da África e o negro Presidente da
África do Sul e os cantores ingleses arrecadando dólares
para as criancinhas negras da África e os negros produ-
zindo música e os ingleses tocando a música dos negros
e aquelas guitarras coloridas e os jovens levantando as
mãos e fazendo sinais para os ingleses nessa angústia toda
e a Inglaterra toda angustiada e a boceta da Rainha da
Inglaterra e os peitos murchos da Rainha da Inglaterra
e os filhos da Rainha da Inglaterra com aquelas louras
e luzes se acendendo através dos fios de eletricidade e
essa energia toda iluminando o sangue das criancinhas
e as florestas.
Os rios e aqueles peixinhos lá no mar e os peixinhos
devorando outros peixinhos e essa angústia toda e o cara,
lá, explicando todas as palavras e as palavras do cara e as
palavras e as palavras.
As palavras e as palavras todas e esses livros expli-
cando todas essas palavras e as palavras dos ingleses e os


orientais, lá no oriente, integrados ao todo e esse todo
e aquele programa divertido explicando todas aquelas
palavras e o Cristo sofrendo, lá, com aqueles romanos de
toga e as espadas dos romanos enfiadas nas barrigas das
criancinhas esguichando sangue e o sol secando o sangue
das criancinhas e o sangue das criancinhas queimando
o piloto em chamas e o Pelé chorando pelas criancinhas
e todos aqueles golaços do Pelé e o Pelé falando e o Pelé
com aquela loura e a loura falando com as criancinhas
e as criancinhas olhando para a loura e aquela loura
segurando o pau do Pelé e o Pelé olhando para a boceta
daquela loura, pensando naquelas palavras todas e o Pelé
lá e o Newton Santos abraçado com o Pelé e o Gilmar e
o Pelé chorando e enxugando as lágrimas naquela camisa
azul e todos aqueles jogadores de futebol olhando para
aquelas bocetas louras na Suécia e o povo todo suado
e fedendo, torcendo por aqueles jogadores de futebol e
o povo todo desejando aquelas bocetas todas e o povo
esguichando sangue e o sol secando o sangue do povo
e aqueles caras explicando aquelas palavras todas e as
galáxias se expandindo.
Aqueles planetas. Aquelas estrelas todas e o universo
e os cientistas explicando as galáxias e as palavras dos
cientistas e aqueles livros todos explicando os cientistas
e o Einstein lendo aqueles livros e o Einstein explicando
aquela teoria toda. Os negros e os ingleses e as bocetas.
Os cientistas. Aquelas palavras todas. Essas pala-
vras todas. Todas aquelas palavras daquelas mulheres e
aqueles caras, lá, pensando nas bocetas e aquele golaço
do Pelé e a estátua do Bellini e todas aquelas copas do

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mundo e o povo, lá, gritando “Brasil, Brasil” e o Zico
perdendo aquele pênalti e o povo, lá, fedendo e o povo,
lá, reclamando. Aquelas palavras todas.
Criancinhas esguichando sangue e o joelho do Zico
esguichando sangue e o sol, lá, secando o joelho do Zico
e a mulher do Zico, lá na Barra da Tijuca, vigiando o
feijão que a empregada do Zico faz e o filho do Zico, lá
naquela escola, escrevendo aquelas palavras todas e aque-
les cineastas fazendo filmes e aqueles pintores pintando
quadros e explicando aquelas palavras todas e aquele
compositor americano e o Maradona, lá no Taití, com
aquela loura, e o Maradona, lá no México, marcando
aqueles golaços e o Freud fumando aquele charuto,
explicando todas aquelas coisas e aquela mulher, com a
boceta, deitada naquele divã da casa do Freud e aquelas
palavras daqueles caras, lá no oriente.
Os paus daqueles monges integrados ao todo e
aqueles monges, lá, não pensando em sexo e aquele
garotinho, lá na Suécia, olhando aquelas bocetas nas
revistas e toda essa angústia.
Aquelas mulheres e todas aquelas bocetas daquelas
mulheres. Aquelas mulheres e aquele cara explicando
aquelas palavras e todas essas histórias.
Aqueles livros todos secando sob o sol e aquelas mu-
lheres com aquelas bocetas e os homens perseguindo as
bocetas daquelas mulheres e aqueles homens e mulheres
pensando em sexo e explicando aquelas palavras daqueles
livros e o piloto de carros esguichando champanhe no
príncipe e a filha do príncipe, lá, pensando em sexo e a
filha do príncipe, lá, dirigindo o carro da Grace Kelly

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e a Grace Kelly, morta, devorada pelos vermes e o sol
secando o sangue da Grace Kelly e o príncipe devorando
cadáveres de animais no jantar e aquele filme no qual a
Grace Kelly estava tão linda lá na televisão e a televisão
e aquelas imagens todas da televisão e o mundo inteiro
com aqueles continentes e aqueles oceanos e aquelas no-
tícias, no jornal, com aqueles prefeitos e aquele prefeito,
falando, falando e explicando aquelas palavras e vendo
aquele filme da Grace Kelly lá na televisão e a televisão
cheia de prefeitos e ingleses e negros e toda essa história e
toda aquela angústia e os corações enviando sangue para
os cérebros e aqueles cérebros cheios de miolos e aquelas
crianças nascendo sem cérebros e o cérebro do Einstein
e o cérebro do Presidente dos Estados Unidos e o pau
do Presidente dos Estados Unidos e o pau murcho do
Aitolá do Irã e aquelas criancinhas sem cérebro e todos
aqueles australianos, lá na Austrália.
Japoneses fabricando computadores e televisões
transmitindo o programa daquele cara explicando
aquelas palavras do livro e aquele cantor falando aquelas
palavras todas e o outro cantor falando sobre o programa
divertido do cara explicando aquelas palavras do livro e
todos aqueles caras se suicidando e todas essas máquinas
e todas essas palavras e os números todos no cérebro
do Einstein e esses caras se suicidando e toda essa feli-
cidade das criancinhas brincando e todos aqueles caras
vendendo chicletes para aqueles caras dos carros parados
nos sinais e aquelas luzes todas piscando nas cidades e o
mundo inteiro cheio de caras explicando essas palavras
todas e o mundo todo falando e explicando e todos.

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Essa angústia toda das criancinhas pegando fogo
e liberando carbonos e aquelas células se decompondo
e todos aqueles elétrons ao redor dos prótons, girando
o tempo todo naquela angústia dos átomos girando o
tempo todo ao redor desse sol cheio de carbonos secando
o sangue do povo o tempo inteiro e aquelas explosões
de combustível e o sol, lá, secando o piloto, em chamas,
deitado no caixão com aqueles parentes, ao redor, falando
as palavras do Cristo ensanguentado.
Negros, ingleses, portugueses, judeus, alemães, irlan-
deses, poloneses, russos, japoneses e esses caras todos.
Pequineses, pastores, dobermans, chiuauas.
As aves. Os peixes e os vermes e micróbios devorando
aqueles cadáveres naqueles cemitérios com aquelas cruzes.
Todas aquelas imagens do Cristo e da mãe do Cristo
e dos amigos do Cristo esguichando sangue e aqueles ro-
manos, de toga e capacete, cortando, em fatias, os amigos
do Cristo e os amigos do Cristo gritando de dor.
Mulheres sentindo dor e bebês saindo pelas bocetas das
mulheres e aqueles médicos puxando os bebês com aqueles
aparelhos de puxar bebês e pesando os bebês e aquelas
enfermeiras(todas vestidas de branco). O tempo todo.
Aquelas palavras e essa angústia das pessoas esgui-
chando sangue e todas as coisas que existem e aquelas
palavras explicando todas as coisas que existem e a
inteligência do Einstein e a inteligência das criancinhas
liberando todos aqueles átomos de carbono e todas as
ligações telefônicas com aquelas palavras das pessoas
percorrendo longas distâncias através daqueles fios e
aquelas imagens, do cara explicando aquelas palavras,

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viajando pelo ar através das ondas de luz e aquele filme
com o Cristo ensanguentado liberando carbonos e todos
aqueles romanos de toga nas ondas de luz espalhadas
pelo ar e o funcionário, da transmissora de ondas de luz,
selecionando todas essas imagens espalhadas no ar e todas
aquelas pessoas olhando para as imagens selecionadas
pelo funcionário daquela transmissora.
Todas aquelas coisas, nas lojas, esperando pelos seres
humanos que compram todas essas coisas e explicam
todas aquelas palavras.
Galáxias se expandindo e as bocetas do povo lá.
Aquele carro em chamas, explodindo, e todos aque-
les filmes com aqueles heróis sem sexo. Aquela caverna
do Batman e o Robin, lá naquela caverna, explicando
aquelas palavras o tempo todo. Aquela cena do Batman
buscando o Robin na universidade. A janela daquele
edifício no qual o Batman e o Robin subiam com aquela
corda e aquele cinto do Batman cheio de pílulas colori-
das e gases o tempo todo. Toda essa angústia e tudo isso
que acontece o tempo todo sem parar e os elétrons e os
planetas girando o tempo todo, o tempo todo em volta
do sol secando o sangue que corre nas veias.
O céu. Um disco voador e todos aqueles filmes
cheios de naves e extraterrestres.
Os seres humanos, que explicam todas essas palavras,
pensando em bocetas e paus e cus e todos esses seres
humanos usando perfumes e vestindo roupas bonitas e
camuflando as bocetas, os cus e os paus e todos os seres
humanos, lá, deitados e melados, ouvindo as palavras do
Freud e do Cristo e do Pelé marcando aquele milésimo

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gol e o Andrada socando o chão e o Pelé chorando pelas
criancinhas esguichando sangue no Brasil cheio de flores-
tas e de sol secando o sangue do povo esguichando petró-
leo e todos aqueles turistas, naqueles ônibus, chupando
laranjas e batendo nas carrocerias dos ônibus e cantando
aquele samba do cara que mora em Jaçanã e não pode
ficar mais nenhum minuto com aquela namorada, lá,
olhando para o pau do cara que é filho único e a mãe dele
não dorme enquanto ele não chegar em casa e a mãe do
cara, lá na casa do cara, esperando o cara, andando de
um lado para o outro, naquela angústia toda, olhando
para o relógio e pedindo para que o Cristo faça com que
o cara chegue logo porque ela está muito aflita porque
o filho fica, lá na casa da namorada, fazendo sexo. Mas
o Cristo, lá no céu, não atende às preces da mãe aflita,
em casa, olhando toda hora para o relógio que marca o
tempo o tempo todo.
O tempo não existe. Os cientistas, todos lá, expli-
cando a relatividade do tempo.
Turistas japoneses. Os banhistas, lá na praia, recla-
mando das cascas das laranjas daqueles turistas japoneses,
bebendo Fanta Laranja, com aquelas bermudas sujas de
areia e toda essa areia, nas praias, grudando nas bermu-
das dos turistas japoneses engraçados e aquele japonês,
lá no Japão, com aquela espada suja de sangue, com
aquele kimono colorido de flores amarelas e vermelhas
e verdes e roxas e azuis e aquelas mulheres japonesas, lá
no Japão, com aqueles pauzinhos enfiados nos cabelos,
servindo cadáveres de peixes para o japonês da espada
suja de sangue naquele filme sobre os japoneses de anti-

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gamente que são diferentes dos japoneses atuais que só
usam kimonos coloridos de vez em quando e, na maior
parte do tempo, andam, pelo Japão, de terno e gravata,
fabricando máquinas para tornar a vida dos seres huma-
nos mais confortável.
Os seres humanos pensando em bocetas, paus e cus
e os cachorros pensando em bocetas, paus e cus.
Todas aquelas palavras daquele cara, lá na televisão,
explicando que os seres humanos possuem o instinto
de pensar em sexo o tempo todo e aquelas bocetas lá na
praia cheia de turistas japoneses e jogadores de fresco-
bol e aquela angústia toda daquela bolinha azul indo e
voltando o tempo todo naquele jogo de frescobol, onde
não há vitoriosos, e aquela mulher mergulhando no mar
cheio de sal e todas essas coisas.
Essa angústia toda o tempo todo no mundo todo
e nas galáxias que se expandem naquelas teorias dos
cientistas que dizem que as galáxias são engolidas pelos
buracos negros, formando um universo paralelo cheio de
galáxias e planetas. A Terra paralela cheia de criancinhas
esguichando sangue e bocetas e o nojo.
Aquelas músicas. Os tons daquela música de tons
cheios de combinações de intervalos e todos aqueles
shows cheios de jovens e todas aquelas músicas dos Be-
atles e todas aquelas músicas do Jimi Hendrix lá naquele
show cheio de jovens pelados naquela lama e os jovens
pulando e fazendo sexo e ingerindo fungos ácidos. Tudo
o tempo todo.
O George Harrison lá na televisão. A imagem do
Brian Jones lá na televisão e o Brian Jones, lá, com os

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olhos inchados e aquelas roupas coloridas e o Brian Jo-
nes morto, no caixão, liberando carbonos e produzindo
dinheiro e todos aqueles índios que viviam cantando e
dançando e todos aqueles rios e aquelas florestas cheias
de passarinhos devorando todos aqueles insetos.
Aquela rua escura e aquelas pessoas cruzando.
Uma rodoviária cheia daquelas pessoas e todas
aquelas pessoas.
Uma rodoviária lá na Europa e todos aqueles eu-
ropeus com seus problemas europeus naqueles filmes
europeus. Franceses.
Todos aqueles poetas se suicidando por causa da-
quelas bocetas.
Estas sensações.
Toda essa angústia.
Todas aquelas palavras daquele cara divertido lá na
televisão.
O limite.
Aquele cantor cantando.
Todas aquelas coisas e essa angústia toda.
Diálogos passageiros.
Quase nada.
Todas aquelas palavras daqueles caras todos se expli-
cando e todas as rodoviárias do mundo cheias daqueles
caras que sempre estão numa rodoviária onde sempre
estiveram. Eles todos há muito tempo, sempre sem pa-
rar, girando rapidamente como todas aquelas palavras
daquele cara lá na televisão. Deus e todos nós o tempo
todo naquele desespero todo.

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Deus e todos nós e bocetas e essas histórias entre
homens e mulheres o tempo todo.
Uma rodoviária com aquelas pessoas indo para outra
rodoviária.
É assim: todos os helicópteros do mundo voando
no céu, ao lado dos pássaros, na direção de todas essas
coisas, o tempo todo naqueles programas da televisão.
O cara explicando todas aquelas palavras. Todas essas
palavras. Todas.
A crise do petróleo de 1973 e todas aquelas pessoas
comprando bicicletas e todas aquelas pessoas comprando
tudo o tempo todo e aqueles bêbados andando pelas ruas
de todas aquelas cidades do mundo e aqueles naipes de
sopros naquelas músicas daquelas orquestras de jazz.
Orquestras de jazz. Centenas de partituras. Várias
bandeiras e arpões. Um cavaquinho. Uma cuíca. Um
clarinete. Roupas de kung-fu. Um velho sucesso do Glen
Miller. Um disco do Stan Getz. Polícia. FBI. O Havaí
cheio de coqueiros e mulheres com suas bocetas e todos
aqueles surfistas pegando ondas enormes e aquelas praias
e todas as praias do mundo com o sol liberando carbonos
e todos os seres humanos nessa angústia toda, liberando
carbonos e passando por rodoviárias, explicando aquelas
palavras do livro, com medo da morte.
Os seres humanos, com medo da morte, pensando
em bocetas e colocando paus nas bocetas e colocando
espermatozóides em todos aqueles úteros e produzindo
criancinhas esguichando sangue e produzindo petróleo e
todas essas células se decompondo e produzindo átomos
livres cheios de elétrons girando ao redor e todos aqueles

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cientistas observando aqueles elétrons sempre girando e
os cientistas girando em torno do sol e do centro relativo
do universo cheio de planetas e estrelas e buracos negros
o tempo todo. Todas as paixões. Aqueles livros. Aquelas
palavras e os chineses, lá, integrados com o todo cheio
de elétrons e criancinhas esguichando sangue e passa-
rinhos e folhas e todas essas coisas o tempo todo. Toda
essa angústia.
Aquelas músicas. Aquelas músicas todas naqueles
tocafitas, cheios de botõezinhos, captando ondas mag-
néticas naquelas fitas cheias de sons invisíveis.
Aquelas palavras e essa angústia toda o tempo todo
girando ao redor dos átomos do tecido cerebral cheio de
sangue e nervos e miolos e toda essa história.
Seres humanos produzindo fórmulas matemáticas e
explicando todas aquelas palavras produzidas pelos seres
humanos. Todas aquelas palavras daqueles chineses e
toda aquela música dos países árabes.
Os negros da África, nos Estados Unidos, organizan-
do aquela música cheia de segundos graus se resolvendo
em quintos graus antes de se resolverem completamente
no primeiro grau. (É o que se chama de “two-five”). A
combinação final daquela música dos Beatles que falava
de uma garota que saiu de casa naquela época na qual os
jovens saiam de casa e ingeriam fungos ácidos e todos
aqueles fungos produzindo todas aquelas sensações de
loucura que não são as sensações de loucura das crian-
cinhas que nascem com os cérebros deformados, nem
as sensações de loucura que os cientistas chamam de
esquizofrenia e todas as pessoas esquizofrênicas vendo

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aquelas coisas todas e produzindo atos de loucura dife-
rentes dos atos de loucura daqueles jovens fazendo sexo
na lama, lá naquele show de rock, ouvindo o Jimi Hen-
drix tocando aquela guitarra cheia de fios conduzindo
todas aquelas ondas de som até os auto-falantes emitindo
todos aqueles sons que os jovens adoravam ouvir quando
ingeriam fungos ácidos e faziam sexo lá naquele lago do
show de rock.
Aquele cara, na televisão, falando que a juventude é
a melhor época da vida, que depois vem a decadência.
O tempo todo essa angústia toda.
Bocetas. Um pau dentro de alguma boceta cheia
de líquidos.
Aqueles sonhos estranhos que os seres humanos
sonham sempre que dormem e todas essas pessoas que
estão sempre sonhando deitadas naquelas camas todas e
os seres humanos produzindo milhões de travesseiros lá
naquelas fábricas cheias de operários cobertos de suor,
liberando carbonos e recebendo dinheiro para comprar
travesseiros e sonhar com bocetas e todas aquelas coisas
que acontecem nos sonhos cada vez que um ser huma-
no adormece girando em torno do centro relativo do
universo e suas galáxias se expandindo em busca de um
buraco negro onde possam adormecer e sonhar (talvez
com um deus que as crie novamente para que possam
se expandir, suavemente, longe dos olhares curiosos
daqueles cientistas todos).
O John Coltrane, aquele saxofonista de jazz que
tocava free.
Aquele outro saxofonista que era chamado de
pássaro.

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Aquele cara divertido da televisão.
Todas aquelas palavras e toda essa angústia o tem-
po todo e todas as palavras. As palavras. As verdadeiras
palavras.
A razão dessa angústia toda o tempo todo e aqueles
lagos, na Suíça, cercados por montanhas cobertas de
neve e todos aqueles relógios marcando a relatividade do
tempo para que o tempo não fique tão relativo.
Os cientistas lá naquelas universidades européias
cheias de europeus e imigrantes do Terceiro Mundo
selecionados naqueles exames que determinam quais
imigrantes do Terceiro Mundo devem frequentar todas
aquelas aulas daqueles cientistas todos.
Muitos quadros expostos naqueles museus da França
cheios de pessoas fotografando imagens para mostrá-las
a outras pessoas. Toda a capacidade, dos seres humanos,
de combinar cores e construir imagens que se apagam
na relatividade do tempo e toda a poesia e essa angústia
toda dos seres humanos sofrendo, dormindo e sonhan-
do, o tempo todo fabricando imagens e todas aquelas
imagens dos museus e o piloto em chamas na frente do
príncipe e suas filhas tão bonitas e todos esses filmes, da
televisão, cheios de homens e mulheres representando
pessoas que não pensam em paus e bocetas o tempo todo
(apenas de vez em quando) na televisão cheia de louras
sem bocetas e homens bonitos sem cus o tempo todo
nessa angústia. O cérebro cheio de veias e miolos e pen-
samentos que explicam todas aquelas palavras daquele
cara, lá da televisão, explicando todas aquelas palavras
do livro e todos os pensamentos de todas aquelas pessoas

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com os cérebros deformados e todos os oceanos cheios
de água, sal, peixinhos devorando peixinhos e tudo se
transformando em combustível para o carro do piloto em
chamas lá naquele país onde todos são bonitos falando
de cus e bocetas, na televisão, de modo científico, para
prevenir os seres humanos contra as doenças transmitidas
através dos cus e das bocetas, buracos onde colocamos
nossos paus, nossas línguas e nossos dedos cheios de
micróbios se alimentando de outros micróbios e todas
aquelas pessoas se banhando no Rio Ganges, lá na Ín-
dia, e todos aqueles indianos magrelos e vegetarianos e
todos aqueles indianos de barba, com aqueles turbantes
e aquelas espadas sujas de sangue, cortando cabeças que
esguicham sangue e produzem petróleo para que aquela
loura sem boceta vá até aquele supermercado e compre
todas aquelas coisas divertidas e perfumes que tiram o
cheiro das bocetas.
Todo o amor que as pessoas sentem por outras
pessoas e esse sofrimento todo quando aquelas pes-
soas não amam essas pessoas e todas essas palavras.
Uma boceta eterna cheia de amor e todas essas coisas
o tempo todo.
Aquelas histórias, das revistas em quadrinhos, cheias
de heróis deprimidos e justos e todas as pessoas injustas
e toda a justiça do Cristo esguichando sangue e todos
aqueles romanos de toga sacaneando o Cristo crucifica-
do e os operários produzindo travesseiros e os operários
comprando desodorantes para tirar aquele cheiro desa-
gradável dos operários suados produzindo travesseiros e
sonhando com todas aquelas bocetas daquelas revistas e

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todos aqueles carros de todas as revistas de todas aquelas
lojas de revistas cheias de palavras e de imagens como
aquela da cobra devorando o sapo e aquela dos leões de-
vorando aquelas criancinhas esguichando sangue e tudo
isso que os seres humanos estão sempre explicando:
santos e demônios invisíveis;
todas essas lágrimas;
todas aquelas bocetas;
todas aquelas palavras;
todos aqueles planetas girando;
sangue das criancinhas o tempo todo;
Sílvio Santos;
aquelas rodoviárias;
bocetas e todos esses filmes;
esse planeta;
toda a angústia do universo;
todas as lágrimas e aqueles indianos todos conde-
nados a karmas e aqueles romanos todos;
toda essa fome e aqueles africanos todos;
todas aquelas galinhas e bodes;
planeta cheio de criancinhas esguichando sangue;
combustível;
todos aqueles caras se suicidando e enlouquecendo;
toda essa história;
todo esse sangue combustível. O tempo todo.
Sangue, automóveis, músicas e todas essas máqui-
nas de imprimir palavras o tempo todo e todos aqueles
príncipes e todas aquelas mulheres bonitas e aqueles
japoneses sorridentes cantando a música do filho único
e da mãe desesperada esperando por aquele filho que

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espera o último trem para Jaçanã: aquele bairro de São
Paulo esperando por todos aqueles filhos.
Todas aquelas palavras.
Aquele cantor de rock, lá na televisão, dizendo que
é preciso olhar para o futuro.
Todas aquelas parábolas do Cristo e seus campos
de trigo. O Cristo, lá, selecionando o joio do trigo e o
Deus, lá, selecionando seres humanos esguichando san-
gue e girando em torno do sol e todos esses carbonos e
todos esses átomos de oxigênio preenchendo todos esses
espaços em torno do sangue das criancinhas, do sangue
do Cristo, lá, sofrendo na cruz. O Cristo, lá, negado
pelo seu santo apóstolo, aliviando a dor das criancinhas
esguichando sangue e o Cristo sofrendo lá naquela cruz
e todos aqueles romanos de toga, lá naquelas festas,
bebendo o sangue do Cristo e se lambuzando naquelas
bocetas e o Buda, lá embaixo daquela figueira, passando
fome e se integrando ao todo e todos aqueles budas de
marfim e todos aqueles cristos de madeira. Todos os
santos esguichando sangue.
Santos esguichando sangue.
Cruz esguichando sangue o tempo todo.
Sangue das criancinhas, sangue do Cristo, a solidão
das rodoviárias.
Há loucos.
O peso relativo do universo e esse sangue todo.
Ódio, dentes, deserto.
Aquele cara explicando tudo naquele livro.
Deuses. Dor. Nada.
Todas essas coisas que acontecem o tempo todo.

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O tempo todo tantas palavras.
Todas aquelas pessoas, lá naquelas festas, selecionan-
do aquelas pessoas daquelas pessoas.
Sons. Todo o veneno da humanidade escorrendo
pelo canto da boca de uma mulher e todas as cascavéis
do mundo rastejando pelas florestas, covardes, fazendo
vítimas e sentindo medo enquanto as criancinhas esgui-
cham sangue.
Veneno de uma mulher.
Calor doloroso.
Corpo cheio de pelos e peles.
Todas as cascavéis do mundo.
Cascavel sem veneno.
O Roberto Carlos, lá, com aquela perna mecânica
esguichando sangue, cantando aquela música que fala
dos caminhões e dos carros apressados naquela estrada
que não tem mais fim. As cascavéis e o Roberto Carlos
sentado na beira do caminho, observando.
Soluços e assassinatos. Caminhões.
Aquele rio cheio de peixinhos devorando peixinhos
menores com aquelas expressões tão inocentes e aquele
atleta soviético, lá naquela olimpíada, falando para
aquele cara da televisão que a vida dele, atleta soviético,
é o esporte e, depois, o atleta soviético, lá naquela barra
paralela a outra barra, com todos aqueles músculos
retesados, girando o tempo todo como aqueles elétrons
atraídos pelos prótons daquele átomo de angústia e
todos esses carbonos se decompondo e se agrupando o
tempo todo em torno daquele sol que não pára de secar
o veneno e o sangue das criancinhas.

30
Velas.
Aqueles soviéticos e o Rei da Inglaterra e aqueles
soldados estáticos na porta do palácio do Rei da Ingla-
terra, na beira do caminho.
Todos os problemas do mundo.
Todas as palavras. Todas as palavras. Todas as pala-
vras. Todas as palavras.
Todas as palavras do príncipe. Todas as palavras do
Roberto Carlos.
Todas as palavras explicando as palavras.
Todas as palavras.
Sentenças.
O sangue das criancinhas e o veneno daquela mulher
cascavel e todos aqueles caras que se suicidaram e todos
aqueles caras que enlouqueceram.
Deuses, deuses, deuses.
Festas do paraíso cheias de anjos sem sexo que nunca
pensam nas bocetas, que nunca esguicham sangue, que
nunca absorvem o veneno das mulheres cascavéis e por
isso são felizes tocando harpa.
Restaurantes populares fornecem imensos pratos de
arroz com feijão para todos aqueles operários. Empresá-
rios gordos preferem comer alguma coisa mais sofisticada
como criancinhas esguichando sangue.
A Terra tem belezas incríveis como o pôr-do-sol e o
rostinho da filha da Grace Kelly e todas aquelas palavras
e aquela música do Roberto Carlos que conta a história
do cabeludo que foi abandonado pela namorada e acha
que qualquer coisa vai fazer com que a namorada se lem-
bre dele. É bem provável que a namorada do cabeludo

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nunca se lembre de nada e fique por aí namorando e
abandonando cabeludos. Por mais que o cabeludo fale
que a culpa é dela, nada vai fazer com que ela se lembre
dele. Mas o cabeludo precisa de um consolo e, por isso,
ele fica se lembrando da namorada, achando que ela vai
se lembrar dele. É a história de todas essas músicas sobre
homens e mulheres. Elas são muito bonitas.
Aquela música do Paul McCartney que fala de um
bobo na montanha, dia após dia. Deve ser muito difícil
para o bobo e, por isso, o bobo preferiu ser um bobo
na montanha e não um lúcido, com os pés no chão, so-
frendo o tempo todo por causa da mulher cascavel que
ele devia amar muito, dia após dia. Toda essa história
podia acabar aí.
Todas aquelas palavras de todos aqueles livros.
Deuses.
Deuses, deuses, todas as palavras.
Toda essa dor do cabeludo que foi abandonado pela
namorada.
Todas estas palavras: a boceta da filha da Grace Kelly,
sangue das criancinhas, a vitória de todos aqueles atletas,
lá naquela olimpíada.
Todas aquelas jogadoras de vôlei do Peru, todas as
vitórias da Seleção Brasileira de Futebol.
Toda aquela tragédia.
Aquele filme ruim, europeu, no qual aquele casal fica
o tempo todo conversando sobre aqueles problemas entre
homens e mulheres. Tem aquela cena na qual o homem e
a mulher, depois de horas infernais de conversa, acabam
chorando, se abraçando e fazendo declarações comoven-

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tes de amor. Nesses filmes, de vez em quando, um dos
dois morre no final. Mas isso é mais comum nos filmes
americanos, onde as pessoas estão sempre morrendo o
tempo todo, o tempo todo. Emoções fortes.
Futebol, bocetas e revistas com aventuras coloridas
como aquela na qual o Demolidor, aquele cara cego, ves-
tido de vermelho, cai na sarjeta depois de ser derrotado
pelo Rei, seu arquinimigo, aquele cara gordão que tem
uma namorada linda, embora seja apenas um desenho.
Então, o Demolidor ressurge das trevas e demole todos
os inimigos que fizeram tão mal a ele. Ele lá, vestido de
vermelho, vingando a dignidade perdida.
Piores momentos: todas aquelas palavras, sofrimento
do cabeludo da música do Roberto Carlos, todas aquelas
palavras, Pelé marcando aquele golaço contra a Suécia.
O Príncipe de Mônaco possuindo a boceta da Grace
Kelly, observando os carbonos liberados pelo piloto de
carros em chamas. O espírito do Roberto Carlos. Um
espírito. Pizzas e fuscas. Jogos de Inverno no Quebec. A
história dos três porquinhos na qual o lobo fica fissurado
para devorar os três porquinhos. Primeiro o lobo soprou
a casa do suíno flautista e, como a casa do porco era de
palha, porque o porco era meio preguiçoso e preferia
tocar flauta do que fazer uma casa de tijolos, a residência
do flautista desabou. Aí, o lobo pegou o porco e tentou
comê-lo. Só que o porco conseguiu sair correndo e ir até
a casa de seu irmão, o suíno violinista. Aí, o lobo soprou
a casa do irmão do suíno flautista, que era de madeira.
Os dois porcos sofriam, pois o lobo conseguiu derrubar
a casa do porco que tocava violino e também era pre-

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guiçoso. O estranho nessa história é que construir uma
casa de madeira deve ser difícil e, se o porco violinista
fosse preguiçoso de fato, não iria fazer uma casa com as
próprias patas, ainda mais tendo que estudar quatorze
horas de violino por dia. Mas não importa. Isso é só
uma história infantil. O que interessa é que, no final da
história, o lobo foi até a casa do Prático, o terceiro porco
da história. Quando o lobo soprou a casa do Prático, a
casa continuou de pé porque a casa do Prático era de
tijolos. O Prático era o mais inteligente dos três porcos.
O Prático nunca pensava em bocetas. O Prático tinha um
macacão azul e um bonezinho. O Prático era gente fina
porque, apesar de os dois irmãos do Prático serem pre-
guiçosos, o Prático deixou os dois porcos se esconderem
na casa de tijolos e, assim, o lobo não pôde comer os três
porquinhos, que poderiam se transformar numa ótima
feijoada com a orelha do Prático e o rabo enroladinho
do porco violinista que tinha um chapéu de pintor. Ou,
então, o prato poderia ser lombinho de porco com farofa
à brasileira e arroz, que é o prato favorito do lobo.
Creme de espinafre. Feijoada naquela história.
A Angela Diniz esguichando sangue e o Doca Street,
lá, sofrendo por ciúmes e a Angela Diniz colocando os
paus de todos aqueles homens em sua boceta e o Doca
Street, lá na televisão, naquele julgamento, com aquele
advogado de bigode falando todas aquelas palavras, dizen-
do todas aquelas coisas sobre homens e mulheres e aquele
cara, lá na televisão, falando todas aquelas palavras.
A morte. A morte e todos lá.
Todas aquelas palavras.

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Uma palavra. Outra palavra se divertindo.
Na hora do almoço, um bife.
Todas aquelas pessoas comendo bifes o tempo todo
e isso tudo o tempo todo e tudo o tempo todo e aquele
professor, lá daquela universidade, explicando todos
aqueles números do Einstein e aquele matemático,
físico todo paralítico, explicando todas aquelas palavras
do Einstein e o Einstein, lá na casa dele, comendo bifes
e, depois, lá na biblioteca da casa dele, com aqueles
óculos, fazendo um monte de cálculos e tudo o tempo
todo. Todas aquelas bocetas, no shopping center. Os três
porcos e a boceta da Grace Kelly lá naquele filme no qual
ela estava tão bonita e a filha da Grace Kelly, lá naquela
boate, dançando com aquele cara bonitão, dançando o
tempo todo e o Pelé naquela boate, com aquela loura,
dançando o tempo todo e o Ricardo Amaral abraçado
com o Pelé e todo esse raciocínio.
O tempo todo todas as palavras.
Todas as palavras. Todas as músicas. Todas aquelas
palavras.
Poemas tristes.
Aquela história dos três porquinhos com o Prático
de bonezinho fazendo tudo certo e todas essas histórias
que ensinam às crianças, como aquela história da galinha
ruiva que ia fazer um bolo e o patinho e o pintinho e o ca-
chorrinho e o gatinho, todos tão bonitinhos esguichando
sangue. Todas aquelas palavras naquela televisão e todas
aquelas rodoviárias cheias de pessoas indo para algum
lugar e todas aquelas músicas do Roberto Carlos.

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Cérebro cheio de miolos, sangue e palavras. Todas
as palavras. Música que nunca fica bem equalizada. O
mundo poderia começar outra vez.
O passado.
Deus.
O passado.
Deuses.
Todas essas substâncias dos corpos.
Amor raiva.
O mundo quase acaba.
Todas as palavras daquele livro.
Músicas do Roberto Carlos.
Videotape: aquele golaço do Pelé; todas as bocetas
nesse mundo o tempo todo com todas aquelas palavras
de todos os cérebros. Desejos como os daqueles orientais
debaixo de todas aquelas figueiras e aqueles bárbaros
fazendo esguichar sangue de todas aquelas garotinhas
lourinhas e européias e o Cristo lá naquela cruz esgui-
chando sangue e o Presidente falando todas aquelas
palavras para o povo em chamas, esguichando sangue no
meio do povo em chamas e todas as lágrimas formando
micro-oceanos de lágrimas e toda aquela dor daqueles
caras enlouquecendo e todas as palavras daquele livro
chinês: o homem superior, as grandes águas, o norte, o
sul, a quietude, a suavidade, o poder do criativo.
“O fogo das paixões revolucionárias” e o Tarcísio
Meira, naquele filme do Glauber Rocha, trincando os
dentes na “cloaca do universo” e todos aqueles discursos.
A liberdade. O amor. A aflição dos humildes. A arro-
gância. A dor do coração do Cristo, herói, esguichando

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sangue. O nada e a sensação angustiante. O vazio. Toda
aquela escuridão. Todos os fardos. A segunda pedra ati-
rada e a arrogância da Grace Kelly tão bonita naquele
filme. A arrogância da boceta da Grace Kelly, no esplen-
dor de sua beleza, atormentando todos aqueles sonhos
de todos aqueles caras se suicidando. A paixão. Todos
aqueles sonhos com bocetas.
Cadáver pelo shopping center observando todas
aquelas bocetas e afugentando todas aquelas bocetas.
Todos os pensamentos do estômago faminto.
Aquele sonho das rodoviárias sujas e a poltrona da-
quele ônibus esguichando lágrimas e aquele pôr-do-sol
sobre o mar.
Paixões. Desejos e o sol morto sob a noite.
Sangue e aquele cara, todas as noites na televisão,
explicando aquelas palavras esvaziadas o tempo todo e
o George Harrison, todo simpático, explicando o fim
dos Beatles, na televisão, e o Paul McCartney vestido de
Sargent Pepper e o Jimi Hendrix tocando toda aquela
guitarra lá na televisão e aquela canção do Bob Dylan.
Aquela canção do Bob Dylan e bocetas. Bocetas
e todos aqueles poetas românticos fazendo serenatas
para todas aquelas bocetas e falando do coração que
batia feliz quando os poetas viam aquelas mulheres e as
mulheres fugindo enquanto os olhos daqueles poetas
seguiam aquelas mulheres sempre fugindo, sempre para
sempre, deixando todos aqueles poetas enlouquecendo
e suicidando e a mulher nos braços do outro e todos
aqueles outros, com nervos de aço, possuindo as bocetas
de todas aquelas mulheres sem coração e todos aqueles

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poetas suportando o peso relativo do mundo, escolhendo
as palavras certas para descrever toda aquela dor que as
mulheres cascavéis nunca sentem e a cobra, lá na televi-
são, devorando aquele sapo e aquele piloto, em chamas,
liberando carbonos o tempo todo e as mulheres daqueles
livros e aquela feijoada do lobo e aquelas mulheres de-
vorando todos aqueles homens daqueles livros e todos
aqueles homens desesperados, sofrendo, e o alívio que
nunca chega para aqueles homens desesperados e o vene-
no escorrendo pela boca da virgem daquele livro e aquele
porco prático construindo casas de tijolos e evitando a
presença de lobos maus e o lobo morrendo de fome, sem
almoço, e todas as histórias infantís subnutrindo lobos
e todas aquelas guerras cristãs com os amigos do Cristo,
lá naquele estádio, esguichando sangue e todos aqueles
leões devorando os amigos do Cristo e aqueles gregos ho-
mossexuais, lá na Grécia, falando todas aquelas palavras
sobre o ser e o ser o tempo todo angustiado com todos
aqueles poetas enlouquecendo e todas aquelas cascavéis
esguichando veneno e todos aqueles homens dos livros
bebendo o veneno das cascavéis.
Aquela televisão e o inverno batendo na porta em
frente à televisão. Um cobertor das Casas Pernambucanas.
Aquele cara tremendo de frio, banhado em lágrimas.
Criancinhas felizes e o cara da televisão explicando
todas as palavras.
Deuses desaparecidos.
Paz num caixão em chamas, ao lado da Grace Kelly,
como o príncipe, como um oriental debaixo de uma
figueira, como uma cascavel sem veneno e mais toda

42
essa angústia dos poetas enlouquecendo e das crianci-
nhas devoradas pelos leões, como naquela imagem da
televisão, como aquela música do Roberto Carlos que
fala do playboy que não conseguia sentir prazer quando
entrava no carro, pois a mulher que ele amava não estava
com ele e todas as outras coisas da vida não interessavam
mais para o playboy; ou aquela música do Hermelino
Neder que falava que amar é importante e, por isso,
o personagem da música gostava muito do corpo da
mulher que ele amava e o cara da música ia falar para
os amigos dele sobre esse amor e os amigos diziam que
o cara era muito louco ou então falavam que o cara era
um neurótico.
Dois amigos, naquele bar, falando. Eles sabem de
tudo. Eles, mordidos pelas cascavéis, no bar, angustiados,
tentando explicar todas aquelas palavras. Neuróticos.
Aquele corpo.
Todas aquelas palavras.
Alemães pacifistas protestando contra os mísseis
nucleares. Os cientistas descobrindo novas fronteiras
relativas nos universos. Poetas enlouquecendo na rela-
tividade do amor e o Cristo ressuscitado anunciando o
fim de toda a relatividade. A meta dos poetas.
Nós vivendo tão depressa, enormes, melados nos
nossos desejos.
Corações esguichando sangue.
Todos os mortos procurando deuses que aliviem
toda essa angústia o tempo todo sem parar.
Imobilidade das figueiras.

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Palavras de dor sangrando em todas as partes. Todas
as palavras.
O veneno escorrendo e a vida, um dia após o outro,
debaixo dos cobertores banhados em lágrimas. Carne se
descolando dos ossos, envelhecendo de dor no meio do
sangue. Restos de carbonos dramáticos todos os dias e o
Tarcísio Meira, naquele filme, convocando o “fogo das
paixões revolucio-nárias”e Deus com o veneno das cas-
cavéis escorrendo pela boca e todas aquelas mulheres do
cinema americano com suas bocetas esguichando sangue
e o piloto de carros, veloz, na direção do futuro e todas
as bactérias, do planeta, devorando corpos e corpos de-
vorando todas as bactérias do planeta e todas as ondas de
rádio se espalhando pelo ar, gerando palavras fantasmas e
sons inaudíveis e todos aqueles elétrons girando o tempo
todo em volta de todos aqueles átomos de carbono e essa
vontade de que tudo seja diferente daqui pra frente como
naquela música do Roberto Carlos na qual a namorada
do personagem tem que aprender a ser gente.
Todas as pessoas sorridentes e saltitantes, felizes a
cantar.
A cachoeira: aquela água toda escorrendo sem parar,
ocupando todos os espaços sobre todas aquelas pedras
sem japoneses.
A alegria daquelas mulheres bebendo cerveja, na-
quele bar, antes de partirem para a rodoviária.
O mundo com aquele sol nascendo no horizonte.
O canto dos pássaros e das cachoeiras. As gaivotas. O
sorriso das criancinhas e a felicidade. Música singela. O
Cristo oferecendo a outra face. O piloto de carros, no alto

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daquele pódio, esguichando champanhe nas filhas do
príncipe e aquele mar verde cheio de peixinhos prateados
e o perfume das flores. Os girassóis da Holanda. Todos
aqueles cabeludos falando de paz e amor, fazendo sexo na
lama e aquela música do Jimi Hendrix e aqueles filmes
europeus com todas aquelas mulheres bonitas e aquelas
paisagens coloridas. Aqueles carros e todos aqueles olhos
azuis e a saúde dos atletas olímpicos. Aquelas ginastas
romenas. Aqueles chineses enormes jogando basquete.
O azul das piscinas. O verde dos gramados e todos os
povos batendo recordes e aquele texto do Armando No-
gueira, lá na televisão, falando da musculatura do Ben
Johnson e toda aquela poesia dos seres humanos feitos
à imagem e semelhança do Deus e a confraternização
dos povos. Todos aqueles palestinos e judeus. Aqueles
russos e aqueles americanos fazendo acordos de paz e o
espírito de natal com todas aquelas criancinhas felizes
brincando com aqueles revólveres de plástico e aquelas
bonecas lourinhas falando “mamãe, mamãe”. Aquela
música que fala que, no próximo ano, a gente vai ter paz
no coração e quem quiser ter um amigo é só me dar a
mão e todos os sonhos que vamos ter, porque todo dia
nasce novo em cada amanhecer. O tempo todo.
Todas essas coisas acontecendo o tempo todo nessa
angústia toda dos poetas se suicidando. As criancinhas es-
guichando sangue nos corações das filhas do príncipe.
Deuses.
O cara, lá naquele rádio, cantando todas aquelas
músicas que falam de homens e mulheres. As palavras e
a música do alemão de vanguarda. Emoções do Gilliard,

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emoções da Fafá de Belém, emoções do Lulu Santos.
Aquela música daquela dupla sertaneja que fala do fio
de cabelo comprido que o sertanejo encontrou no meio
do suor. Aquela avenida marginal, em São Paulo, às sete
horas da manhã, na direção da rodoviária. A música do
sertanejo e aquele rio cheio de cocô e aqueles carros todos
correndo na direção daquela rodoviária o tempo todo sem
parar naquela angústia. Todos integrados ao todo.
Cachaça. Aquele filme no qual todos aqueles ho-
mens, com aqueles paus enormes, ficam fazendo sexo
com aquelas mulheres em todas aquelas posições dife-
rentes. Aquela televisão. Aqueles seres humanos fazendo
sexo o tempo todo sem parar e a chuva caindo o tempo
todo. Aquele céu cinza e o mar, lá embaixo, batendo nas
pedras e um barco, ao longe, cheio de peixes e pescadores
e aquelas facas enormes cortando a carne de todos aqueles
peixes e aquele almoço santo. Todas aquelas pessoas co-
mendo todos aqueles bacalhaus e aquelas batatas e aquelas
cebolas e aquela cozinha cheia de pratos sujos.
Toda a Europa. Os exércitos e todos aqueles alemães
protestando contra as armas nucleares e todos aqueles
elétrons girando em torno de todos aqueles prótons
e neutrons e todos aqueles prótons se decompondo e
todas aquelas criancinhas, lá naquela cidade do Japão,
se decompondo e toda aquela cidade destruida e todos
aqueles japoneses samurais reconstruindo aquela cidade
e construindo computadores e automóveis e motocicle-
tas e pianos e relógios e televisões cheias daqueles caras
explicando todas aquelas palavras, no mundo inteiro, via
satélite e toda a dor, via satélite, ao vivo. A dor.

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Aquelas canções do rádio.
Aquela angústia e as palavras escorrendo pelas bo-
cas como o veneno das cascavéis, sempre escorrendo, o
tempo todo sem parar.
Todos os personagens. As palavras do Roberto Car-
los e todos e Deus lá no céu.
A humanidade e todas essas bactérias nos orga-
nismos e todos aqueles amores e todos esses átomos
fugindo dos átomos antagônicos, sugando a energia das
criancinhas esguichando sangue, sugando a energia dos
corações esguichando sangue o tempo todo sem parar e
aquele cara no alto daquela montanha daquela música
do Paul McCartney, tentando esquecer todas aquelas
bocetas que deixaram aquele cara em chamas. Aquele
cara fugiu do mundo, mas nunca consegue esquecer o
nojo. Criaturas do Deus porcalhão.
O cara não suportaria mais outra rodoviária. O cara
não suportaria mais outra boceta venenosa. Inferno das
cascavéis.
O sapo comendo moscas o tempo todo sem parar,
devorado pela cobra, e a cobra, depois de envenenar o
pobre sapo, acabou comendo o próprio rabo e virou
símbolo de toda essa angústia das palavras do Roberto
Carlos, palavras do Paul McCartney, palavras de amor
por todas aquelas mulheres maravilhosas mulheres.
O herói das mulheres em todos aqueles filmes sobre
jovens que fazem sexo o tempo todo sem parar. Jovens
que serão muito velhos no futuro e ficarão reclamando
porque não são mais jovens e todas aquelas rugas de-
nunciando a morte e aquele padre da história sempre

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falando que a morte é o início de uma nova vida, e todos
aqueles velhos, lá naquela igreja, esperando que o Deus
conceda vidas eternas para todos os bons velhos e para
as criancinhas que esguicham sangue antes que possam
saber sobre o Deus, sobre a vida eterna. Todos aqueles
bebês, completamente inertes, chorando o tempo todo
sem parar, comendo, cagando e aprendendo todas aque-
las palavras e o rádio sempre tocando aquelas músicas
do Roberto Carlos sempre entrando nos lares. Aquela
música que fala do côncavo e do convexo, palavras que
significam boceta e pau. Côncavo e convexo são palavras
muito mais bonitas do que boceta e pau.
O Roberto Carlos, lá naquela época do Jimi Hen-
drix, cantando aquelas músicas sobre cabeludos e calças
desbotadas, sobre namoradas que abandonam namora-
dos e todo aquele cabelo fazendo com que a namorada
se lembre do ronco barulhento do carro do namorado
que foi abandonado e a luz branca dos escritórios e a
música dos elevadores e as fábulas infantís e os carros
envenenados dos jovens e os oceanos. O tempo todo
essa angústia.
Todas aquelas bocetas fazendo sexo o tempo todo
sem parar nas palavras, frases o tempo todo sem parar.
Os amores. Todas as frases. Rio de Janeiro. Pu-
blicidade. O ventilador ligado. A fumaça do cigarro.
Máquinas de escrever. Maurício Gugelmin e sua Mar-
ch azul. Um executivo de terno e gravata. Dinheiro o
tempo todo sem parar. Sapatilhas cor-de-rosa. Posto de
gasolina. Um ovo dentro de uma garrafa. Anúncios da
Revista Rolling Stone. Todos aqueles cabeludos. Um

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mapa do Estado do Rio de Janeiro e uma bandeira do
Brasil. Uma mulher muito bonita, vestida de branco,
com sua boceta desafiando os homens. Carros. Sham-
poos. Travesseiros. Navios. Torres de petróleo. Livros de
anatomia. Vidros de perfume. Galinhas. Sandálias. Pneus.
Esculturas de gesso.
A boceta da mulher de branco. Aqueles olhos sensu-
ais das mulheres das revistas de moda e todas as mulheres
feias do mundo folheando aquelas revistas em busca de
roupas e lições de ginástica que as deixem lindas como
a mulher de branco e todos os homens do mundo de-
sejando todas aquelas mulheres vestidas de branco em
todas aquelas revistas.
Todos aqueles velhos barrigudos correndo na praia,
de um lado para o outro, procurando o fim das barrigas,
o fim da velhice e a vida eterna que o Deus prometeu
para os amigos do Cristo esguichando sangue.
Cachoeira e o mar azul com seus peixinhos pra-
teados.
O nó daquela corda dos filmes de bang-bang aper-
tando pescoços. O cavalo branco do herói, na última
hora, surgirá das pradarias e salvará, da morte, o herói.
O herói e seu cavalo branco correrão pelo velho oeste,
livres das bocetas, e de noite, à luz de uma fogueira, o
herói tocará gaita e o cavalo branco mastigará um pouco
de capim, enquanto os amigos do herói jogam poker
num saloon enfumaçado e morrem assassinados por um
bando de maus cowboys. O herói fumará o cachimbo
da paz com os índios sioux. Dançarão a noite inteira, o
herói e seu cavalo branco.

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Asterix e Obelix batendo em alguns romanos neu-
róticos e comendo vários javalis e, depois, embalados
pela poção mágica do druída Panoramix, indo na busca
do Deus.
O herói cobrindo o bandido de porradas.
Universo sem Deus e sem palavras. Só o herói e seu
cavalo branco e o final da história poderia ser “the end”
ou qualquer coisa parecida feliz para sempre.
O Zagalo estará em Los Angeles e fará muitas
compras, junto com sua comissão técnica. O Zagalo
fará compras para os seus netinhos tetracampeões do
mundo. O Zagalo comprará foguetes de contrôle remoto
e camisas com aquele jacarezinho verde e os netinhos do
Zagalo vão se divertir muito. Até que apareçam bocetas
venenosas em suas vidas. Então, acabará a diversão dos
netinhos do Zagalo. Eles vão se esforçar para conquis-
tar aquelas bocetas, farão ginástica, ganharão dinheiro,
comporão canções de amor. Mas aquelas bocetas não são
fáceis. Os netos do Zagalo vão sofrer como as criancinhas
que esguicham sangue, ficarão famintos de bocetas, não
conseguirão mais dormir e talvez escrevam palavras do
Roberto Carlos. Palavras cheias dessa angústia toda o
tempo todo?

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