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Série Mitologia - Celtas

Fernando Martins – ofernando@globo.com


Terapeuta Holístico – CRT 37.039
http://fmth.webnode.com

CUCHULAINN DO ULSTER

Se existe algum herói irlandês comparável ao grego Héracles e que mereça ser lembrado
por suas façanhas, este é sem dúvida o caso de Cuchulainn. Suas aventuras, integradas
dentro do que se conhece como o ciclo do Ulster, nos situam na Irlanda do primeiro século
antes de Cristo e do primeiro século depois do nascimento de Jesus. A lenda sobre ele
contém algumas das descrições mais interessantes que chegaram a nós referentes aos
princípios vitais que animavam os celtas da época, inclusive devido a seus fortes sentidos
religioso, social e humorístico.
A parte mais importante de sua história — O Roubo do Gado de Cooley — foi comparada
pelos especialistas em literatura épica às obras de Homero e é a mais antiga do estilo entre
todas as disponíveis na Europa ocidental. A história narra uma das principais atividades das
tribos celtas naquela época: despojavam outras tribos de seu gado, que constituía a riqueza
autêntica, e desprezavam a cobiça latina pelo ouro e pelas jóias, pois sabiam que não se
podia comer tais materiais, utilizando-os apenas como adornos ou em sacrifícios aos
deuses. Por outro lado, eram capazes de lutar até a morte pela menor de suas vacas, que
lhes proporcionava comida, bebida e casacos.
As histórias de Cuchulainn são as do mesmo passado dos irlandeses, mas também dos
escoceses, pois sua odisséia transcorre em ambos os territórios. Fazem parte de seu legado
cultural e, por esse motivo, muitos avós que nunca estudaram formalmente o mito são
capazes, ainda hoje, de relatar a seus netos com extraordinária vivacidade as aventuras e
desventuras deste guerreiro — da mesma forma como a história foi contada um dia a eles
por seus avós,
geração após geração, numa cadeia que remonta mais de dois mil anos no tempo.
Cuchulainn possui todas as características de um mito, a começar por sua origem incerta e
sobrenatural. É filho de Dechtire, uma das irmãs do rei Conchobar Mac Nessa, que reinava
no Ulster a partir da fortaleza de Emain Macha. Dechtire havia desaparecido
misteriosamente com seu séquito e, três anos depois, reapareceu no palácio com um filho,
fruto de suas relações com o deus Lug. O menino recebeu o nome de Setanta. Por sua
origem mágica, desde pequeno já demonstrava suas qualidades: aos seis anos já era tão
forte quanto um adolescente e assombrava a todos com sua audácia e arrogância. Em
seguida, desenvolveu uma forma aterradora de entrar em combate, muito própria do caráter
fanfarrão dos celtas: seu cabelo ficava arrepiado e um de seus olhos ficava do tamanho de
uma copa, enquanto o outro se reduzia ao tamanho de um pequeno orifício; abria os lábios
até as orelhas, deixando visíveis seus dentes e a garganta e de sua cabeça inteira surgia um
halo de fogo. Assim, lançava-se com rapidez contra seus adversários, paralisados por tão
temível aspecto.
O apelido de Cuchulainn foi dado durante uma visita de seu tio, o rei Conchobar, à casa de
Cullan, o ferreiro. Este possuía, para vigiar seu gado, um cão enorme e tão feroz que era
necessária a intervenção de três homens para contê-lo. Por acidente, o cão atacou Setanta
quando ele foi buscar Conchobar, mas o menino matou o animal sem nenhuma dificuldade.
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A alegria de todos ao ver que o animal não havia podido com o garoto contrastava com a
tristeza de Cullan, que ficou sem guardião para seu gado. Por esse motivo, Setanta
ofereceu-se para substituí-lo enquanto o filhote do cão morto não crescesse o suficiente
para ocupar seu lugar. O druida Cathbad deu a ele seu novo nome, apelido pelo qual passou
a ser conhecido desde então: Cuchulainn, que significa o Cão de Cullan. Não podemos
esquecer que ele foi batizado por um druida e que Cullan é um ferreiro, ou seja, pratica um
ofício relacionado com o além.
Um prognóstico posterior do mesmo druida o levou a ser um guerreiro. Certo dia, Cathbad
profetizou que se alguém se iniciasse como guerreiro naquele mesmo dia seria famoso para
sempre, apesar de o preço ser uma vida breve. Decidido, Cuchulainn toma as armas de seu
próprio tio, o rei. Com isso, sela seu destino, que a partir daquele instante inicia uma
seqüência interminável de aventuras recheadas de combates sangrentos, amores
apaixonados e atos mágicos a favor e contra ele.
Todos na corte de Conchobar o amavam e respeitavam, pois sobre ele se dizia que possuía
apenas três defeitos: sua juventude — ao se iniciar como guerreiro ainda muito jovem, os
inimigos desviavam-se dele antes da luta porque ainda não tinha nem barba na cara, mas
arrependiam-se depois —, sua temeridade — era o primeiro, e muitas vezes o único, a
entrar em combate e, por sinal, saía sempre vitorioso — e sua beleza excessiva — como
correspondia à sua descendência paterna. Ao longo de sua intensa corrida, Cuchulainn
conquista a bela Emer, filha do poderoso caudilho Forgall, não sem antes ter superado
importantes provas, como sua iniciação mágica na Escócia, que sempre teve fama de
abrigar as mais importantes escolas de druidas, às quais eram freqüentadas por celtas de
toda a Europa para se aperfeiçoar nos mistérios.
Só ou em companhia de seus camaradas Loegaire e Conall, ele vive grandes aventuras nas
quais tem a oportunidade de demonstrar toda a sua fúria e seu ardor de guerreiro. Tais
características eram tão impressionantes que, se ele não estivesse em combate, elas só
desapareciam depois que fosse jogado nele um grande número de baldes repletos de água
fria. E, com o tempo, viu-se envolvido no famoso roubo de gado de Cooley, ou Cuailnge.
Na época de Cuchulainn existiam dois grandes touros de origem mágica: o Donn, ou
Nobre, pertencente a Cuailnge, no Ulster, e o Findbennach, ou Chifres Brancos, de
Connacht. Ambos aparecem em diversas histórias cujo argumento gira em torno da magia e
do
relacionamento dos seres humanos com o Outro Mundo. Sua relação com nosso herói
começa devido a uma briga entre Medb, a rainha de Connacht, e seu marido Ailill, o rei
consorte. Quando discutiam sobre qual deles era mais poderoso e rico, decidiram formular
um inventário de seus bens para solucionar a dúvida. O resultado final mostrou que eles
eram iguais em quase tudo. A única exceção era a posse de Findbennach, sendo que Medb
não possuía um touro comparável na manada de sua propriedade. Revoltada, a rainha
decide comprar um animal parecido para equilibrar a balança. Porém, o único animal
comparável era Donn, que vivia no, Ulster, nas terras de seu rival Conchobar. Ela tenta
comprá-lo legalmente, mas não consegue e decide que o tomaria pela força. Para isto, ela
reuniu um grande exército com o objetivo de invadir o norte da ilha, fazendo pouco caso
das previsões adversas que anunciavam o fracasso de sua expedição por causa de
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Cuchulainn. Quando o avanço inimigo foi detectado, o semideus dedicou-se a emboscar os


invasores e, se fosse necessário entrar em confronto com os inimigos, os derrotaria um após
o outro. Medb recorre então a um cruel estratagema: o obriga a enfrentar seu irmão adotivo,
Ferdiad, antigo companheiro de armas ao qual engana para atacar Cuchulainn. Durante três
dias, os velhos companheiros enfrentaram-se em um rio num combate terrível que terminou
com a vitória do herói do Ulster graças ao uso que este fez de um golpe ensinado a ele por
uma feiticeira: o gai bolga, ou "descarga de raio". Porém, após a vitória, ele ficou
completamente esgotado do ponto de vista físico. O lado psicológico também ficou afetado.
Tirar a vida de Ferdiad foi um golpe muito difícil para ele. Apareceu assim a grande
oportunidade para o exército de Medb, que iniciou um ataque logo ao amanhecer,
aproveitando-se da fragilidade do inimigo. Então Lug faz sua aparição. Ele está
impressionado com o valor e a dedicação de seu filho e acredita que ele merece uma ajuda
extra. O deus adota o aspecto de Cuchulainn e durante os dias seguintes o substitui na
defesa da região até que ele se recupere do confronto com Ferdiad. Durante três meses, a
passagem foi intransponível para o exército da rainha de Connacht. Mas ela é esperta:
enquanto o semideus se entretém com seus guerreiros, ela envia uma outra frente com um
grupo reduzido de homens cuja missão é roubar o touro. Por fim, ela é obrigada a recuar
seu exército. Mas isso não importava mais para ela, pois já tinha Donn em seu poder.
No entanto, quando os touros se encontram nos prados de Connacht, lançam-se um contra o
outro. Cada um deles era tão poderoso e altivo que não podia permitir que um prevalecesse
sobre o outro. Eles lutaram durante horas, inclusive após o pôr-do-sol, sem que ninguém
fosse capaz de separá-los, nem sequer Medb e Ailill. A peleja foi tão colossal que se diz
que na mesma noite eles deram a volta em toda a Irlanda, perseguindo um ao outro. Ao
amanhecer, Donn era o único que continuava em pé. Ele matou Findbennach e espalhou
seus restos por toda a ilha. Mas a alegria da rainha pelo valor de sua recente aquisição não
durou muito. O touro norte-irlandês subiu em uma colina para mugir para todos os reinos
irlandeses e morreu devido ao esforço despendido no ato. Desde então, a colina passou a
chamar-se Druim Tairb, a Colina dos Touros.
Medb nunca perdoou Cuchulainn por sua intervenção. Apesar de ter conseguido roubar o
Donn de Cuailnge, a ação teve pouca utilidade e ela perdeu muitos homens na batalha. Ela
criou uma armadilha mágica para vingar-se e acabar com o semideus. Sem que Cuchulainn
percebesse, Medb conseguiu convencê-lo a comer carne de cachorro. Trata-se de um
grande tabu para o herói, pois o cachorro é seu animal protetor. Seu próprio nome deriva
desse animal. Cada celta tem sua vida condicionada a uma série de leis pessoais e
intransferíveis que constituem um autêntico código de honra que deve ser respeitado acima
de tudo. Tais leis determinam o que pode e o que não pode ser feito e, inclusive, o que se
está obrigado a fazer. Não se trata de enfrentar bem ou mal um problema nem se o
resultado de determinada decisão resulta na vida ou na morte. O importante é saber o que é
preciso ser feito com exatidão e o prosseguimento é automático. A honra é um dos pilares
mais apreciados em um homem e
deve ser mais preservada do que a riqueza ou as armas. Por esse motivo, ao transgredir uma
de suas principais normas de comportamento, Cuchulainn precipita-se em um perigoso
desfiladeiro mágico que o leva a violar, um após o outro e contra a sua vontade, todos os
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preceitos que regem sua vida. Assim, ele mesmo se condena e é morto pelas mãos de
Lugaid, filho de um de seus antigos inimigos derrotados, Curoi Mac Caire. Seu amigo
Conall Cer-nach, um temível guerreiro com deficiência física, é encarregado de vingar a
vida de Cuchulainn e mata Lugaid.
Não deixa de ser curioso o fato de o assassinato de Cuchulainn ter a mesma raiz de seu
divino pai. Mas não poderia ser de outra forma, se levarmos em conta a visão de mundo
entre os celtas, uma visão que parece consciente de leis naturais como a da causa e efeito e
que defende o conceito circular e eterno da existência, algo similar ao famoso ourobouros
dos mistérios helenísticos.

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