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Nicole LORAUX

«la métaphore sans métaphore»


a propos de l’orestie
Revue Philosophique, nº2, 1990

«Tento falar da metáfora, dizer alguma coisa de próprio ou


de literal a seu respeito, tratá-la como meu objeto de estudo,
mas por ela sou, pode-se dizer, obrigado a dela falar more
metaphorico, à sua maneira. Não posso tratá-la sem tratar
com ela… que, nessas circunstâncias, parece-me intratável.»

«Quase todos os intérpretes do Timeu recorrem, nesse ponto,


à retórica, sem jamais se interrogarem sobre ela. Eles falam
tranqüilamente de metáforas, de imagens, de comparações.
Jamais colocam em questão essa tradição da retórica que os
provê de uma reserva de conceitos bastante úteis, mas todos
eles construídos sobre essa distinção entre o sensível e o
inteligível, à qual a reflexão sobre a chôra não pode,
exatamente, se acomodar.»

Jacques Derrida1

Dois parágrafos de Derrida à guisa de advertência: quem pretende tratar da metáfora


deveria saber ao que se propõe – saber que ela é totalmente despropositada. Porque isso implica em
«tratar com ela», que é intratável. Ou, mais exatamente, «que, por isso tudo, parece intratável».
Porque é irresistível a pulsão de falar de metáfora, mesmo quando todas as condições estão reunidas
para tornar insustentável qualquer recurso tópico a esse tropo – tal como acontece com a khóra no
Timeu. Como falar sobre ela sem, finalmente, colocar-se sob suas rédeas? Mas, também: como
conseguir não empregar o termo, ali mesmo onde se acredita haver invalidado sua pertinência?

Devo tratar de metáfora, sem falar de metáfora – eis-me, pois, advertida. Mas eu insisto,
talvez por predileção por esse improvável lugar comum denominado «metáfora», entre a
impossibilidade de sobre falar e a inevitabilidade de fazê-lo. Mantenho, porém, em mente a certeza
de que «nada deixa de se passar com a metáfora e por ela» e a hipótese, também formulada por
Derrida, de uma estranha lei em virtude da qual a metáfora «se passaria dela mesma, não mais teria
nome, sentido próprio ou literal»2.

Portanto, ainda assim falarei – devo dizer, por isso mesmo falarei? – de metáfora, com ou
sem parênteses (pouco importa, pois a epokhé da metáfora jamais tem lugar, precisamente, no gesto

1
Jacques Derrida, Le retrait de la métaphore, in Psyché. Inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987, p. 64 e Chôra, in Poikilia.
Études offertes à Jean-Pierre Vernant. Paris: Ed. de l’EHESS, 1987, p. 267.
2
Le retrait de la métaphore, op. cit., p. 65.
«la metaphore sans metaphore – a propos de l’orestie»

que acreditava suspender o recurso à metáfora. Como se suspender a metáfora conduzisse


irresistivelmente a seu retorno).

É preciso lidar com a metáfora. É uma constatação. E também a prescrição de uma espécie
de oxymoron ao qual se poderia resumir a experiência de traduzir a Orestíade3. Empreitada decerto
muito insensata, em que, antes mesmo de se orientar no terreno das metáforas, é preciso ter
aprendido a não traduzir duas vezes: uma primeira vez, do grego para a língua do tradutor, uma
segunda, no interior da língua de tradução, de um registro a outro. Ou, para dizê-lo de outra forma:
o imperativo mínimo foi o de cuidar para não proceder nem como Manzon, nem como Lidell e Scott.
Bíblia dos helenistas, o Greek-English Lexicon4 não se contenta apenas de traduzir as metáforas de
Ésquilo; glosando-as, o que as extenua até ao ponto de apagá-las, pelo recurso sistemático à
transposição do «sensível» em um discurso «inteligível», ele as retraduz em um idioma
razoavelmente poético. Quanto a Paul Manzon, um dos mais ilustres tradutores da tradição
acadêmica francesa, ele parece ter-se dado por tarefa aproximar o texto de Ésquilo do horizonte
textual do leitor moderno, e o leitor imprudente crerá tudo compreender dos coros do Agamemnon,
que, muito provavelmente – ao menos disso sigo convencida – nem os próprios espectadores
atenienses entendiam completamente. Mas não é possível evitar impunemente a estranheza. Seja,
nas Céforas, a evocação por Orestes das provações que Loxias, por uma vez bem pouco Oblíquo, lhe
anunciava, caso renunciasse ao matricídio:

«…calamidades/um rude inverno sob meu fígado quente» (271-272)

Mazon traduz: «penas que gelarão o sangue de meu coração», explicando-se em nota
(«Transpus a expressão grega. Para muitos dos antigos…, o fígado era a sede de uma parte da alma:
é difícil, em tal caso, traduzir por outra palavra, que não coração»). Em resumo: outros tempos,
pensa Manzon, outras crenças, outra organização do sentido. Mas nada permite supor que um leitor
do século XX atribua a qualquer órgão – no caso, o coração, sobretudo o coração – as ricas
conotações que, para um grego do século 458 aC, estavam associadas ao fígado, centro da vida,
ponto mortal e lugar de adivinhação. É preferível preservar a estranheza do palavra-por-palavra,
ainda que deslocando o estranho para o lado do inabitual, e à condição de não esquecer que é em tal
fidelidade, infiel na literalidade, que reside, então, a intervenção interpretativa 5. Traduzir:
interpretar – decidir sobre as vias da interpretação, Velho problema.

Velhos problemas, os da tradução. Tão velhos, sem dúvida, quanto a metáfora, esse «velho
objeto de estudo»6, mais velho ainda do que seu tratamento filosófico, já que a filosofia só o
incorporou oficialmente a partir de Aristóteles e, essencialmente, no que concernia à tragédia…
Tratando-se de Aristóteles, não resumirei nem os capítulos 20 a 22 da Poética, nem a análise que

3
Com François Rey, para um filme televisionado, realizado por Bernard Sobel, e a ser transmitido pelo Canal 7.
4
Lidell-Scott, Greek-English Lexicon (revisto e ampliado por Jones). Oxford: 1940.
5
«As traduções permanecem prisioneiras das redes de interpretação». Derrida, Chôra, op. cit. p. 268, sobre a chôra.
6
Derrida, Chôra, op. cit., p. 66-67.
«la metaphore sans metaphore – a propos de l’orestie»

Derrida lhe consagra em La Mythologie blanche. Sabe-se – para citar Derrida sobre a Poética – que,
na reflexão de Aristóteles, há metáfora «na medida em que o sentido do que é dito não é, ele
próprio, um fenômeno», nesse instante preciso em que, no entanto, «o sentido tenta sair de si
para… entrar na língua», no estreito espaço de manobra em que, sobre um fundo de mímesis, a
semelhança não é uma identidade7. Daí, para dizê-lo rapidamente, a conjunção problemática, para a
metáfora, de uma certa apetência à naturalidade e de uma cumplicidade essencial com a tragédia,
essa obra de mímesis. Não faltam leitores de Ésquilo para adotar os enunciados aristotélicos 8. De
minha parte, assumo a posição de não me contentar com eles, porque, concebidas como puro
deslocamento, as metáforas trágicas, tal como Aristóteles as pensa, se acordam muito mais com a
fraseologia de um Sófocles, ou de um Eurípides, do que com a de Ésquilo. Pois em nenhum caso a
prática da «transferência» é suficiente para esgotar o jogo das palavras em Ésquilo, inteiramente
voltado para o que a Poética denomina o xenikón – o «inabitual», como habitualmente se traduz ou,
melhor, o efeito de estrangeiro9. O que, evidentemente, resta a demonstrar. Mas meu projeto, por
razões que se devem ao trabalho esquiliano das palavras sobre as coisas, será antes o de mostrar, ou
melhor, de tentar fazê-lo.

Mas ainda há que justificar que essa verificação tenha seu lugar na Orestíade. Pois há ainda
muito mais do que um simples encontro circunstancial, por ocasião de uma tradução. Única trilogia
que nos tenha chegado, a Orestíade é, conosco ou apesar de nós, inevitavelmente paradigmática.
Algo como um analogon do gênero trágico, por sua unicidade, tanto quanto por seu
desenvolvimento em forma de história. História: escrevo essa palavra sem parênteses e sem
maiúscula, mas seríamos igualmente tentados a escrevê-la entre parênteses, ou à sombra de uma
maiúscula. História na Orestíade, histórias que fazem a Orestíade: se o século XIX se encantou por
aquela que, do mûthos, leva ao lógos, ou do direito materno à lei do Pai, nós somos sobretudo
sensíveis, hoje, à forma como essa trilogia apresenta «uma espécie de esboço do desenvolvimento
da recitação trágica»10, ou à evolução da história de algumas palavras, de algumas figuras, no
interior de uma intriga completa. Não se pode negligenciar o fato de que, do início ao fim da intriga,
o jogo das palavras tenda para a realização de metáforas, e a isso voltaremos. Entretanto, entre
todos esses desenvolvimentos, gostaria de comentar brevemente aquele que me parece matricial em
relação a todos os outros e que não é exatamente a história hegeliana do advento do Espírito – seria
preciso pensá-lo, antes, sob a rubrica do que, em Freud, pode-se chamar o processo de
«psiquização»11. Em uma palavra: trata-se da história de phrén.
7
Derrida, La Mythologie blanche, in Poétique, 5 (1971), p. 20, 26 e 24.
8
Assim, na primeira página de seu livro Les images dans la poésie d’Eschyle (Paris: Belles Lettres, 1935), Jean Dumortier faz
ato de obediência integral à autoridade de Aristóteles.
9
Aristóteles, Poética, 1458 q 22-23; «inabitual» aparece entre parênteses na tradução de Roselyne Dupont-Roc e Jean Lallot.
Após ter sido definido como pertencentes ao xenikón o empréstimo, a metáfora, o alongamento, tudo que se afasta da
linguagem corrente, Aristóteles observa que «se um poeta compõe exclusivamente com esse gênero de nomes, o resultado
será o enigma ou charabiá: enigma com as metáforas, charabiá (barbarismós) com os nomes tomados de empréstimo» (1458
a 23-26).
10
D. Lanza, Les temps de l’émotion tragique: malaise et soulagement, in Métis, 3 (1988), p. 24 (do coro dialogando com uma
só voz recitante até a plena exploração dos recursos trágicos, com três atores em cena).
11
Tomo de Marie Moscovici (Il est arrivé quelque chose. Approches de l’événement psychique. Paris: Ramsay, 1989, p. 406)
«la metaphore sans metaphore – a propos de l’orestie»

Phrén: o diafragma12? O órgão ou grupo de órgãos no centro do peito que tem o nome de
phrén? O espírito? O sentido – ou os sentidos? Aqui, «a trópica e o anacronismo são inevitáveis» 13:
assim como Derrida, «deixando o termo chôra ao abrigo de qualquer tradução», eis-me, por hora,
obrigada a não traduzir a palavra, preferindo me apegar a tudo aquilo que, na Orestíade, associa a
história de phrén àquela da metáfora. Nos grandes coros do Agamêmnon, a «metáfora» se enraíza
em phrén, porque, entre o sensível e o inteligível, phrén é o próprio lugar – o princípio – de uma
indecisão fundamental: ao mesmo tempo, órgão que sente e que se sente – e, por vezes, sua
presença é experimentada sob o modo do insuportável – e instância de compreensão, phrén pode
aspirar à justiça, sem nada perder de sua materialidade orgânica e, na angústia, os éndikoi phrénes
(Agamêmnon, 995) se fazem pista de dança ou terra a ser pisoteada onde o coração agitado fará a
sua ronde folle. O interior do homem conhece a justiça mas, no barulhento silêncio do corpo, sofre
ao ritmo do coração exaltado. Seja, agora, para o julgamento de Orestes, a fundação do tribunal do
Areópago, nas Eumênides: convidando o júri a carregar na consciência seu veredicto, Atenas os
adverte contra o perjúrio que vem de phrénes ékdikoi (Eumênides, 489) e, dessa vez indo mais
longe, o tradutor não hesita mais em reconhecer aí um «espírito estrangeiro à justiça». Pois é, de
fato, o espírito que, na palavra phrén, deve visar Atenas; quanto a phrén como sede do sentimento e
do afeto, vibrando com a angústia e a exaltação, serão as Erínias que passarão a encarná-lo, essas
Erínias, presas à reversibilidade do agir e do sofrer, essas Erínias, exatamente, que, com seu hino
absorvente, se fazem sentir sobre o phrén perdido de suas vítimas (Eumênides, 328-332). Como se
somente um coro, misturando às palavras os recursos da lírica e da dança, pudesse sugerir a
complexidade do phrén. E acontece que, como potência de angústia e de conflito, as Erínias são
substancialmente um coro. Vem daí a hipótese da homologia entre phrén, no homem, e o coro
trágico, na representação teatral. Mas, paciência! melhor é não queimar as etapas.

Retorno à metáfora. No caminho, é possível que a mímesis trágica, essa idéia filosófica,
tenha sido posta à prova. Veremos bem.

Para além da polaridade do sentido metafórico e do sentido próprio, do mûthos e do lógos,


«inquietando a própria ordem da polaridade» 14, estaria, pois, o phrén da Orestíade, a palavra, a
coisa – com a khóra, antes do Timeu. E poder-se-ia ainda mencionar algumas outras palavras
cruciais que, na trilogia, resistem a «se acomodar à metáfora», porque neles a distinção do próprio e
do figurado está abolida. Seja, por exemplo, haîma, nome do sangue, em cujo elemento, mais de
uma vez, o tradutor se vê completamente desmunido, entre o sangue como isso que, no vivente,
jorra e que se espalhou pelo solo – então, o assassinato – e o sangue como vetor de filiação 15.

uma expressão que a obra de Freud torna necessária, sem tê-la formulado; em L’homme Moïse et la religion monothéiste.
Paris: Gallimard, 1986, Freud assume a posição clássica acerca da Orestíade e «dessa passagem da mãe ao pai», acerca da
idéia de «uma vitória da vida do espírito sobre a vida sensorial.»
12
È precisamente de Platão, no Timeu (70 a 2), a decisão sobre esse sentido, ao empregar diáphragma como atributo de
phrénas. Diáphragma é membrana que separa o tórax da cavidade. Portanto, uma clausura.
13
Derrida, Chôra, op. cit., p. 268 (para esta citação e para a próxima).
14
Derrida, ibid., p. 267-268 e 294, nota 1.
15
Ver N. Loraux, Oikeios polemos: la guerra nella famiglia, Studi Storici, 28 (1987), p. 11-14.
«la metaphore sans metaphore – a propos de l’orestie»

Quando, nas Céforas, a Erínia guia até o palácio dos Átrides téknon haimálon palaitéron (649-650)
é, diz-se, uma metáfora, porque o «assassinato» de Clitemnestra (haîma, pois, no sentido figurado)
recebe uma genealogia pelo auto-engendramento do ódio. E traduz-se: «O filho dos assassinatos
antigos» (Manzon). Mas se, em direção ao palácio dos Átrides, o que avança é, ao mesmo tempo e
indissociavelmente, Orestes e seu assassinato – o assassinato encarnado no filho – é preciso deixar
à haîma toda a sua materialidade, traduzindo: «O filho dos sangues antigos». Isso é, simplesmente
o texto. Pois, em virtude da sobredeterminação de haîma, Orestes é duplamente nascido do sangue
de Agamemnon16: do sangue átride que o fez nascer, do sangue derramado no solo de Átride, que fez
que o filho nascesse a si, ao lhe atribuir por natureza o futuro assassinato. Assim, Orestes avança…

Phrén, haîma: a lista dessas palavras matriciais decerto não está fechada, que, recusando a
polaridade do material e do espiritual, inscrevem essa recusa no texto como o próprio princípio de
seu funcionamento. O que não significa que qualquer polaridade seja esquecida: valeria a pena
meditar sobre essa maneira muito grega que tem a tragédia de gravar em vazio a polaridade dessas
palavras, marcadas pela indistinção do próprio e do figurado, onde acreditar-se-ia que ela estivesse
ausente. E há o caso da figura inversa, quando a polaridade triunfa claramente, mas que então não
se poderia decidir se, por estar assim sublinhada, ela é exaltada, ou se a construção de um binômio
enigmático não tem por efeito último fazê-la sutilmente desaparecer. Penso nesses momentos de
condensação em que o texto se imobiliza em um oxymoron, segundo uma lógica muito grega, mas
que Aristóteles contabiliza, sem hesitar, sob a rubrica do «estrangeiro» (xenikón). Assim, no
Agamêmnon, em abundância: quando, ao invés de marcar a fronteira, a borda avança sobre o
território proibido, o coro dirá que «muito pronta a se persuadir, o limite feminino transborda»
(485). E é ainda o coro que, justapondo a carne morta com o metal precioso, faz de Áries um
«cambista de ouro de cadáveres» 17. O coro, sempre ele, nem ator nem espectador, nem dentro nem
fora, instância móvel bem própria a desorganizar as mais sólidas grades de oposição…

Com o oxymoron, já mantínhamos um sintagma. Já é tempo de devolver a metáfora à


amplitude dos enunciados desenvolvidos em frases. Seja, no parodos do Agamêmnon (192-198), a
evocação pelo coro da longa espera dos gregos em Áulis:

Os ventos, vindos do Estrimon.


(…) Pela usura cardavam
A flor dos arginos

Não é mais de simples justaposição que se deve falar, mas de um acúmulo de saltos – isso é,
estranhamente, de choques – entre campos de experiência diferentes, até mesmo inconciliáveis,
mas cujo entrechoque produz, pela indistinção do ver e do ouvir, esse enunciado singular, mais
poderoso do que todas as suas glosas. Sem dúvida, a usura da fricção (tríbos) não se confunde com a

16
Do sangue de Agamêmnon e não, como propõe Mazon em nota, da «antiga assassina». As Eumênides precisarão esse
ponto com bastante insistência, da questão de Orestes (606: «serei eu do sangue de minha mãe?») à recusa apolínea de
chamar a mãe de tókeus, a parturiente; fica claro que, como téknon, Orestes depende de um tekeîn puramente paterno.
17
Agamêmnon, 438; a tradução de Dumortier por «banqueiro» (op. cit., p. 178) perde um pouco esse oxymoron.
«la metaphore sans metaphore – a propos de l’orestie»

operação de triagem que, na produção da lã, é chamada de cardagem; e, se a lã se deixa cardar, o


não se poderia fazer o mesmo com uma flor, sobretudo com aquela, perfeitamente formular, que
designa a elite dos guerreiros arginos.

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