Você está na página 1de 8

Avaliação das contribuições teóricas oferecidas pelas perspectivas

contemporâneas sobre gênero

Talvez seja um lugar comum iniciar um texto que busca avaliar as contribuições
teóricas oferecidas pelas perspectivas contemporâneas sobre gênero remetendo-nos a Judith
Butler. Digo isso porque as contribuições desta autora tornaram-se uma espécie de
“modismo”, como um dia o foi a célebre definição da categoria gênero proposta do Joan
Scott em seu “Gênero: uma categoria útil para análise histórica”. Essas “febres” são como
toda febre, sintomáticas, e por traz delas há inúmeros fatores tais como acesso a textos,
traduções, fluxos de cientistas, eventos que possibilitam que esta e não aquela idéia ganhe
terrenos entre nós, dada as disputas internas no campo acadêmico, para ficarmos com os
termos de Bourdieu. Evidentemente, algumas contribuições se consolidam também por
responderem de maneira mais adequada e/ou satisfatória a questões que ocupam as
preocupações de diferentes cientistas naquele momento, como também por parecerem mais
sofisticadas em relação as que tínhamos acesso até então.
Em seu primeiro texto publicado (1986), traduzido para o castelhano, Butler se
apresentava como uma teórica pós-feminista, em dialogo direto com Simone de Beauvoir e,
assim, com o que ela chamava de expoente máximo do projeto iluminista do feminismo. As
fontes imediatas de Butler são Irigaray, Rich e Foucault. Nesse diálogo critico com estas
duas autoras, irá se valer da idéia de um discurso falogocêntrico que estrutura a mulher
como um não sujeito, uma vez que o mesmo discurso coloca o masculino como o único
sujeito possível e da obrigatoriedade da heterossexualidade e do caráter cultural do corpo,
borrando, portanto, a dicotomia sexo/gênero (natureza/cultura; mulher/homem;
corpo/mente). Butler, propõe que sexo e gênero são contínuos, posto que o biológico não
tem qualquer naturalidade, uma vez que o acesso a ele só pode se dar por meio da
linguagem e da cultura.
Quando Beauvoir lançou a frase lapidar da segunda onda do feminismo: “não se
nasce mulher, torna-se mulher”, provocou, sem dúvida, uma ruptura com uma naturalização
do gênero como conseqüência do sexo genital. Mas o que Butler aponta é que este “fazer-se
mulher” cria uma unidade em torno do que é ser mulher, guardando certo essencialismo,

1
pois “tornar-se/fazer-se” mulher se daria, segundo ela, a partir de uma leitura social do que
essa genitália significa. Desta forma, sugere a filósofa norte-americana, o gênero
antecederia o sexo, e não o contrário. Pois, todas as sociedades têm um número de
mandamentos que determinam o que é próprio e esperado do masculino e do feminino,
naturalizando o que de fato é social, histórica e culturalmente construído. Assim, esse
tornar-se mulher não questiona de fato nem o sexo/genitália nem a ordem de gênero dada
socialmente. Mais que isso, esse gênero implicado no “tornar-se mulher” refere-se, ao final,
a um sujeito centrado, uno, iluministas, portanto. Aliás, um sujeito impossível, posto que
esse lugar discursivo do sujeito seria sempre um lugar masculino, falogocêntrico.
Desestabilizar essa identidade fixa “mulher” (ainda que ela venha no plural =
mulheres) seria, segundo Butler um avanço, uma vez que ela toma as identidades fixas
como passíveis de controle, normalização e supõe um enrijecimento que pode ser
politicamente comprometedor. Porém, se não há mais um sujeito mulher ou mulheres, qual
seria o sujeito do feminismo? Daí a autora se identificar como pós-feminista, pois vê na
base fundacional do feminismo um paradoxo: esses sujeitos que procura libertar estão
desde já presumidos, fixados e restringidos pela identidade.
Butler acrescenta à crítica feminista ao sujeito iluminista já apontado como branco,
burguês, heterossexual e masculino, outra: não basta colocar esse sujeito no plural e no
feminino é preciso implodi-lo. Sem o sujeito mulher como o feminismo articula sua crítica
e sua prática? Como fugir da fixidez das identidades sem cair na armadilha de uma total
fragmentação e dispersão?
Na busca por novas estratégias epistemológicas e novas formas de conceber o
sujeito, algumas feministas estabeleceram um diálogo crítico com o pós-modernismo e o
pós-estruturalismo retomando algumas de suas propostas desconstrucionistas para desvelar
as redes de poder que ocultam a aparente objetividade do conhecimento científico.
Joan Scott já havia apontado o pós-estruturalismo como uma teoria capaz de dar
suporte à categoria gênero exatamente por trazer para a discussão uma dimensão histórica
que poria em xeque os universais e as unidades, os binarismos e os esquemas hierárquicos
neles implicados. A linguagem como sistema de significação seria um dos termos
considerados por Scott como úteis na contribuição do pós-estruturalismo ao feminismo. A
mesma autora toma também o discurso, no sentido foucautiano, como ferramenta

2
importante para se levar em conta que há jogos de poder que instituem verdades que se
naturalizam por meio desses discursos. Como expressou Ella Shohat, é preciso que levemos
em conta que discursos não são apenas significantes flutuantes; eles são percebidos,
consumidos e têm impacto material, político e cultural na vida das pessoas.
Outra contribuição trazida por Scott, ainda a partir do pós-estruturalismo, relaciona
o descontrutivismo de Derrida com a questão da igualdade e da diferença. Para a
historiadora, é preciso se romper com a dicotomia que estes termos parecem encerrar, pois
se não os submetemos a um exame crítico corremos o risco de reproduzir o discurso
político existente no qual a igualdade pretendida pode fazer sumir as particularidades das
reivindicações feministas, assim como a diferença acentuada tenderia a acentuar o estigma
que cerca determinados grupos. Para ela, enfim, igualdade versus diferença é, de fato, uma
ilusão e não uma verdade.
Para o(s) feminismo(s) essa é uma reflexão de peso, pois questiona os limites das
proposições binárias que podem ser armadilhas tanto políticas como teóricas. E aqui a
autora questiona a fixidez da categoria gênero quando normaliza o que é “mulher” e
“homem” e propõe que o projeto desconstrutivista seja tomado a sério. Mas se a
masculinidade e a feminilidade circulam, não estão em corpos masculinos ou femininos,
como propôs Hélène Cioux, onde se situa a mulher? Para continuarmos a interlocução com
Derrida, cito Spivak, quando defende que a categoria mulheres pode ainda ser útil, o que
não significa que não deva ser futuramente abandonado, apenas seria estrategicamente
usada. A própria Butler chega a propor este uso estratégico sem, contudo, abandonar seu
projeto de desestabilização do sexo e do gênero, uma vez que ambos estão imbricados nas
marcas dos construtos sociais binários e normalizadores. Os mesmos que tornam
ininteligíveis aquelas e aqueles cuja existência desestabiliza a suposta coerência entre sexo-
gênero-desejo-prática.
Nesta perspectiva o corpo volta a ter uma centralidade. Mas não se trata de um
corpo marcado pela maternidade, amamentação e reprodução, como aquele que algumas
feministas da segunda onda acionaram para marcar uma experiência subjetiva comum.
Trata-se, nos estudos queer e, particularmente em Butler (e acentuadamente em Beatriz
Preciado) de um corpo que, ao escapar das normas heterocentradas, dos discursos que
marcam binariamente estes corpos, pode parodiar essas normas, denunciando-as e abrindo

3
espaço para uma multiplicidade de gêneros, sexualidades, corpos e desejos, que denunciam
as identidades como aprisionadoras.
Este é um dos pontos vistos, por muitas/os autoras/es, como problemático na obra
de Butler, pois o que fica é que as transformações sociais só poderiam se dar no marco da
desestabilização e implosão das identidades, para além das categorias homem e mulher. A
história do feminismo parece apontar que o uso da categoria mulheres teve sua importância
política e teórica, assim, abrir mão dela seria para muitas feministas fazer um feminismo
sem mulheres.
A questão que passa a ser colocada a partir do pós-estruturalismo tem a ver com o
pós-modernismo e suas implicações políticas e, mesmo, analíticas para o feminismo.
Cláudia de Lima Costa interroga (2002) sobre como escapar da armadilha do binarismo e
da total fragmentação e dispersão que a proposta de descentramento do sujeito coloca, de
maneira que não se acabe em um “feminismo sem mulheres”.
Uma vez que a questão do feminismo é a opressão relacionada ao gênero, torna-se
possível pensar em um feminismo sem mulheres, pois, como já afirmou Luci Irigaray,
“mulher não tem sexo”. Pois, o que definiria esta posição não seria uma essência comum
baseada numa biologia definidora da experiência, mas a experiência em si, marcada por
exclusões, por incompletudes, submissão e desprestígio. O que pode envolver negros,
homens do terceiro mundo, travestis, “bichinhas”, mulheres chicanas, migrantes, enfim,
toda uma gama de seres tidos como menos humanos, uma vez que o humano de referência
seria masculino, heterossexual, branco e financeiramente bem sucedido.
Não se trata mais, como escreveu Chantal Mouffe, de se descobrir quem é está
“mulher” do feminismo como essência unificadora, mas como essa categoria é construída
dentro de diferentes discursos. Outras feministas se opõem a essa posição, argumentando
que não foi a negatividade discursiva e desconstrutivista do pós-estruturalismo que garantiu
avanços teóricos e políticos ao feminismo, mas, ao contrário, o de ter construído
positividade para esse sujeito e com base na materialidade das experiências que as mulheres
têm do social. Cláudia de Lima Costa, por exemplo, sugere que o feminismo
contemporâneo foi capaz de recorrer à categoria mulher sem retornar a uma posição
normalista. Isto é, sem torná-la uma ficção que deveria ser desvelada pela crítica feminista.

4
Sexismo, regulação sobre os corpos (aborto, operação para mudança de sexo,
ingestão de hormônios masculinos ou femininos), falta de igualdade de direitos e de direito
à diferença são todos termos de um mesmo discurso heteronormativo que atinge a mulheres
tanto quanto àquelas e àqueles que não são respeitadas/os em seus desejos, práticas,
direitos. Portanto, o feminismo enquanto política não perdeu sua razão de ser, e, enquanto
teoria ainda tem questões conceituais importantes a discutir. Politicamente, vejo que as
novas demandas trazidas pelas feministas negras, pelas mulheres do chamado Oriente,
questões ligadas o mercado transnacional do sexo, além das reivindicações de mulheres
transexuais, para citarmos só alguns exemplos, mostram que este é um lugar de disputas
políticas permanente. Por sua vez, o debate teórico vai sendo alimentado não só por esse
cenário renovado, como pelo diálogo incessante com diferentes áreas do saber e com a
própria produção teórica dos estudos de gênero/das mulheres.
Para a teórica queer Beatriz Preciado, o pós-feminismo representaria uma
maturidade do feminismo como teoria política e não um anti-feminismo. Trataria, isto sim,
de uma política e de uma teoria, que formularia resposta à globalização dos modelos norte-
americanos heterossexuais, ao feminismo liberal e, mesmo, à cultura gay integracionista.
Para ela, é preciso que se leia a teoria queer em continuidade com as críticas pós-coloniais.
As discussões sobre as quais passo a me centrar deste ponto em diante procuram
trazer algumas das contribuições de autoras não-brancas para as discussões sobre gênero,
feminismos, estudos sobre mulheres e a teoria queer.
Em seu famoso texto “Gênero para um dicionário Marxista...”, Donna Haraway
mostra que, ao final dos anos 80, feministas de países ditos periféricos passam a reivindicar
teorias próprias. Criticam os universalismos, inclusive o presente no badalado sistema
sexo/gênero de Rubin e na ruptura analítica entre público e privado proposta por Rosaldo.
Tudo parecia precisar ser explicado a partir do gênero, quando outras forças se
combinavam para constituir o lugar não só das mulheres, mas dos subalternos. Esse
feminismo vindo do centro, registra Ella Shohat tendeu a transpor categorias de análises
tais como patriarcado e homofobia, como se estas existissem ou houvessem existido em
todos os lugares e em todos os tempos. Esta forma deslocada de lidar com certas categorias
ocidentais (tais como patriarcado, opressão, dominação) como se elas fossem universais e

5
trans-históricas e trans-geográficas resultaram, quase sempre, na reprodução do discurso
orientalista, racista e colonialista.
Donna Haraway ao refletir sobre o gênero, coloca em relevo os problemas
epistemológicos nos quais o termo pode incorrer, não só por insistir num binarismo
ocidental como também por apagar outras categorias como raça, classe, nacionalidade que
não podem ser pensadas em separado. Gênero, sexualidade, nacionalidade, “raça” se
intersectam nesses discursos nos quais as variáveis de diferenciação se constituem umas
pelas outras e, são ao mesmo tempo, cada uma é constitutiva das demais (Brah). Aqui o
gênero perde o caráter de variável englobante quando se trata de explicar e pensar a
desigualdade e a opressão do feminino sem que outra variável se torne uma constante
definidora.
Em frontal posição críticas a um feminismo gestado no centro e atuado por algumas
feministas brancas como uma espécie de mensagem salvacionista, nascem, ao final dos
anos de 1980, proposta como a de Audre Lorde, com sua “casa das diferenças”. Este
conceito de diferença foi a base de boa parte da teoria feminista multicultural sobre gênero
nos Estados Unidos daquele período. As experiências conflitivas que este conceito procura
encerrar mostram que não há política de identidade capaz de abarcar essas vivências
múltiplas e nômades.
Como reflete Ella Shohat, em termos de gênero, o discurso hegemônico não permite
uma identidade de gênero flexível. Ou se é masculino ou feminino, sem muito espaço para
uma identidade no "entre-lugar", mais complexa. Identidades tais como feminino-
identificado-com-masculino, masculino-identificado-com-feminino, transgênero e
transsexual não exatamente existem no plano discursivo, visto que nossas estruturas de
identidade estão articuladas em termos binários. É por isso que a questão da performance
joga um papel importante nas recentes teorias sobre a construção de identidades. As
identidades não são essenciais, mas são "performadas" e construídas.
Estes outros e outras “inapropriados/as” (Minh) têm provocado fissuras nas teorias
feministas de gênero, mostrando que a desconstrução feminista do sujeito foi fundamental
para se avançar nas discussões sobre mulheres, masculinidades, gêneros, raças, diferenças e
sexualidades, margens e fronteiras.

6
Ao radicalizar o feminismo da diferença que teve curso nos anos 80, Glória
Anzaldúa questiona certezas epistemológicas e entre estas as propostas trazidas pela teoria
queer, a qual considerava cooptadora e capaz de, com sua negação, criar de fato novas
identidades branqueadas e falsamente unificadas.
Na tentativa de conciliar Anzalduá com as discussões queer busco no meu campo de
pesquisa inspiração, finalizando com a discussão sobre as perspectivas de gênero na
atualidade.
O discurso de Anzaldúa bem poderia servir às travestis brasileiras, “mestiças” à sua
maneira, buscando uma branquitude que as possa livrar não só da homofobia, mas também
da pobreza. Despejadas de seu país, rejeitadas pelo seu próprio “povo”, uma vez que como
travestis (assim como Anzaldúa como lésbica) não têm um pertencimento legitimado, mas
são, por outro lado de “todas as raças”, pois o queer que habita nelas existe em todas as
partes. Essa referência queer está referida a um gênero performativo e por isso denunciador.
Como na tradução, discutida por Bhabha, esse gênero do qual Butler nos fala, é também
uma maneira de imitar, mas de uma forma deslocadora, mostrando que o “original” se
presta à paródia e não é nunca acabado e completo em si por ser ele mesmo construção.
As propostas de Anzalúda, assim como as de muitas e muitos teóricas/os queer, têm
ainda por mérito perturbar o argumento de que os estudos de sexualidade estariam no
âmbito meramente “cultural”, e supostamente despolitizado. Ela procura mostrar que a
construção dos sujeitos abjetos é marcada por discursos de poder nos quais as experiências
de exclusão estão referidas a processos históricos que marcam subjetividades que, por sua
vez, não podem ser aprisionadas em identidades fixas. Pensar a travestilidade a partir da
metáfora da “fronteira” de que nos fala Anzaldúa, é mais do que colocá-la na borda dos
sexos ou dos gêneros, é perceber essa experiência como entrecortada por questões de
classe, raça, mobilidade, transnacionalidade, desqualificações, sexualidades, que
desestabilizam qualquer fixidez. A força política desse argumento está em denunciar essas
experiências de exclusão ao mesmo tempo em que as coloca fora do essencialismo,
circunscrevendo esses processos de significação como socialmente construídos.
As discussões contemporâneas sobre gênero, seja dentro do marco dos estudos pós-
coloniais, queer ou feminista, têm procurado ir muito além da diferença entre sexos,
problematizando, aliás, a própria idéia de diferença. O sentido crítico e político que, a meu

7
ver, sempre esteve presente na concepção e problematização do gênero como conceito
parece se adensar neste momento em que as sexualidades periféricas e suas expressões de
gênero passam a compor a temática de pesquisas e chamar a atenção de formuladoras/res de
políticas públicas. Cada vez mais aparecem em nossas bibliografias nomes que não são nem
franceses nem de origem anglo-saxônica, trazendo para o debate feministas experiências de
exclusões múltiplas sem que o gênero seja borrado, ainda que seja desconstruído.
Encerro com a escrita ágil e subversiva de Guacira Lopes Louro quando lembra que
os estudos feministas, os estudos gays e lésbicos e o queer trataram teoria e política de
forma integrada, apaixonada e, ao mesmo tempo, polêmica. Assim, foram capazes de
propor uma renovação nas reflexões sobre gênero e sexualidade, indo além delas, mantendo
oxigenados diferentes campos do conhecimento que foram chamados a dialogar e aceitando
o desafio de “pensar para além dos limites do pensável”.

Você também pode gostar