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PARTE II
DIREITO ADMINISTRATIVO
CAPÍTULO 1
1
Cf. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública, cit., p. 811 e segs..
Direito Administrativo I – 2017
Pedro Costa Gonçalves
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Em função desta nota orgânica, não se afigura de todo suficiente para mobilizar
a aplicação do Direito Administrativo apenas a presença de uma determinada atividade,
independentemente do sujeito que a desenvolve. Afastam-se assim das teses que
sustentam a intervenção do Direito Administrativo sempre que esteja (e só porque está)
envolvida uma atividade votada à “realização do interesse geral”, à “satisfação de
necessidades coletivas” ou, em outra perspetiva, que envolva o exercício de poder e de
autoridade. Estes ou quaisquer outros fatores, de natureza apenas material, apresentam-
se, na nossa perspetiva, insuficientes e até irrelevantes para determinar a aplicação do
Direito Administrativo.
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Cf. Cerulli Irelli, Principii di diritto amministrativo, vol. I, Torino, Giappichelli, 2006, p. 5.
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Remetemos para outro momento o estudo deste último item, sobre as relações
entre Administração Pública e direito privado. Por agora, vamos ocupar-nos dos
contornos do desvio referido em primeiro lugar.
3
Cf. Esteves de Oliveira/Pedro Costa Gonçalves/Pacheco de Amorim, ob. cit., p. 69.
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Cf. J.L. Meilán Gil, Categorías jurídicas en el derecho administrativo, Madrid, Iustel, 2011, p. 17.
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5
Cf. Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 1999, p. 121 e
segs.; Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública, cit., p. 311.
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33.2.3 – Síntese
As considerações anteriores permitem-nos concluir que o Direito Administrativo
encontra, em regra, um espaço de aplicação sempre que esteja presente um sujeito da
Administração Pública.
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Cf. Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,
Coimbra, Almedina, 1987, p. 38899.
7
Cf. P. Stanzione/A. Saturno, “Pubblica amministrazione tra diritto amministrativo, diritto
privato e diritto europeo”, in: P. Stanzione/A. Saturno (org.), Il diritto privato della pubblica
amministrazione, Padova, Cedam, 2005, p. 1 e segs..
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Sobre isto, cf. o nosso texto, “Entidades privadas com poderes administrativos”, Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 58, 2006, p. 50 e segs..
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Cf. V. Cerulli Irelli, Amministrazione pubblica e diritto privato, Torino, Giappichelli, 2011. C.
Cicero, Sul diritto civile dell’ente pubblico, Napoli, Ed. Scientifiche Italiana, 2010; Stanzione/Saturno
(org.), Il diritto privato della pubblica amministrazione, cit..
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Podemos discernir dois modos de utilização (em sentido lato) do direito privado
pelas pessoas coletivas de direito público:
i) por via da criação de entidades em formato jurídico-privado (v.g., sociedade
comercial ou associação de direito civil);
ii) por via da adoção de meios ou instrumentos jurídicos próprios do direito
privado (v.g., contratos de direito civil).
No primeiro caso, o direito privado é usado como processo de organização; no
segundo, como processo de ação.
instrumentos de autoridade. Em casos mais extremos de perversão das formas, pode até
suceder que o Direito Administrativo venha, na prática, a regular toda, ou quase toda, a
atividade de uma entidade com personalidade de direito privado. É verdade que existe
uma regra de aplicação do direito privado a entidades de direito privado; mas, como já
vimos, essa regra conhece exceções, por exemplo, quando a entidade privada atua
enquanto titular de funções públicas ou investido de poderes de autoridade.
Por outro lado, verifica-se uma tendência legal no sentido de restringir ou de
proibir a criação, pela Administração, de entidades em forma jurídica privada; vejam-se,
entre outros, os seguintes exemplos: na Lei-Quadro das Fundações estabelece-se que “o
Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, as outras pessoas coletivas da
administração autónoma e as demais pessoas coletivas públicas estão impedidos de criar
ou participar em novas fundações públicas de direito privado”. Na mesma linha, a LQIP
estabelece que, salvo em casos excecionais, “os institutos públicos não podem criar
entes de direito privado ou participar nem adquirir participações em tais entidades”.
Soluções radicais deste tipo surgem determinadas pela intenção de estancar o
desenvolvimento de uma “Administração paralela” em forma de direito privado.
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O mesmo tipo de objetivo norteia a Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, quanto à
criação de empresas locais (v.g., empresas criadas no âmbito municipal). Veja-se ainda
a LQER, estabelecendo que as entidades reguladoras não podem criar ou participar na
criação de entidades de direito privado com fins lucrativos, nem adquirir participações
em tais entidades. Agora, não está em causa a proibição, mas o severo condicionamento
do poder das entidades públicas da Administração local de criação de entidades em
formas de direito privado.
intervenção pública se desenvolve. Com efeito, recordando que o aqui está em causa é a
utilização do direito privado como processo de ação, verifica-se que muitas áreas que
tradicionalmente correspondiam à utilização do direito privado têm vindo a ser
ocupadas pelo Direito Administrativo – também agora, temos um “avanço do Direito
Administrativo”. Trata-se de um fenómeno que ocorre, por exemplo, no âmbito dos
contratos da Administração (por isso, os negócios auxiliares não representem hoje um
reduto de utilização do direito privado, já que o CCP os qualifica expressamente como
contratos administrativos, submetendo-os a uma regulação de Direito Administrativo); o
mesmo sucede em certos domínios da gestão do património público (que também
passaram a ser objeto de regulação por lei administrativa: Decreto-Lei n.º 280/2007, de
7 de agosto). Quer dizer, a regulação do Direito Administrativo passou a cobrir áreas em
que a intervenção administrativa se processava segundo o direito privado.
A Lei n.º 23/96 consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos
essenciais em ordem à proteção do utente. Abrange os serviços seguintes: a) fornecimento
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Cf. U. Stelkens, Verwaltungsprivatrecht (zur Privatrechtsbindung der Verwaltung, deren
Reichweite und Konsequenzen), Berlin, Düncker & Humblot, 2005.
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CAPÍTULO 2
Localização do Direito Administrativo na Ordem Jurídica
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O conceito surge em 1928, na Alemanha, nas Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts
de F. Fleiner.
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A ideia, acima referida, de interconexão entre direito público e direito privado explica
alusões a fenómenos como a privatização do direito público ou, em sentido inverso, a
publicização do direito privado. Sem prejuízo dos sentidos específicos que conhecem,
esses conceitos sugerem movimentos de migração de valores de um setor do ordenamento
jurídico para o outro: assim, por exemplo, o consenso e paridade, em regra associados ao
direito privado, constituem hoje valores centrais de direito público; por outro lado, a
autoridade e a supremacia jurídica, em regra associadas ao direito público, também
existem nas relações de direito privado.
Fenómenos como esses e outros episódios de sobreposição e de confluência de normas de
direito privado e de direito público não põem em causa um princípio de estruturação
dualista da ordem jurídica.
Pertence, por exemplo, ao direito privado a norma jurídica que estabelece que “o contrato
deve ser pontualmente cumprido” (artigo 405,º, n.º 1, do Código Civil): o preceito aplica-se
a “todos”, aos cidadãos e, também, ao Estado (e à Administração Pública). Quer dizer,
por força daquela norma – de direito privado, insiste-se –, a Administração Pública deve
cumprir pontualmente os contratos que celebra. A conclusão só poderá ser outra no caso
de existir uma norma especial a estabelecer coisa diferente.
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regula uma situação em que o Estado surge na posição de titular de um (qualquer) crédito
e não na veste de titular de funções públicas.
Pode suceder que uma norma se dirija a uma pessoa coletiva pública enquanto tal, na
qualidade de titular de funções públicas, mas, simultaneamente, remeta a atuação que a
mesma vai desenvolver para a esfera do direito privado: eis o que parece suceder nos
casos em que a lei (v.g., legislação do património cultural) atribui ao Estado um direito de
preferência na compra de bens de interesse cultural, esclarecendo que o direito se exerce
nos termos previstos no Código Civil.
Ainda, neste âmbito, da distinção entre direito público e direito privado, importa ter
presentes duas notas:
i) A primeira, para acentuar que a distinção se refere a normas jurídicas: do que se
trata é de identificar a natureza jurídica de uma norma, de um preceito normativo; deve,
pois, evitar-se o erro, comum, de, desconsiderando essa exigência essencial, se pretender
atribuir uma certa natureza jurídica a uma relação ou a uma atuação;
ii) Uma segunda nota, para sublinhar que a qualificação jurídico-administrativa
(apenas) das normas que se dirijam a sujeitos da Administração Pública exclui as normas
jurídicas que se dirigem a todos para impor deveres e encargos. Isto não se altera pelo
facto de o incumprimento dos deveres poder vir a ser punido pela Administração Pública;
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nesta hipótese, a norma de imposição do dever a “qualquer um” ordena-se no direito
privado. Já é de direito público, a norma que atribui à Administração Pública o poder de
punir o incumprimento do dever.
Quer dizer, o Direito administrativo é uma área do direito público, porque não é
um direito de todos, mas apenas do Estado (em sentido amplo) enquanto tal, e, dentro
da área do direito público, é um direito dirigido à Administração Pública enquanto tal.
A especialidade ou, num outro sentido, a identidade do corpus de normas
jurídicas (princípios e regras) que constitui o Direito Administrativo reside em se tratar
de normas que acolhem uma disciplina pensada em função dos respetivos destinatários,
os sujeitos da Administração Pública, por causa das missões que aos se encontram
confiadas.
Assim, o Direito Administrativo apresenta-se como o “direito próprio da
Administração Pública”; trata-se de um “direito concebido para a Administração
Pública” – eis a marca de identidade da disciplina que nos ocupa, que nos permite, por
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um lado, classificá-la como disciplina de direito público e, por outro lado, demarcá-la de
outras áreas de direito público.
iii) Atos e medidas de inspeção – cf. Regulamento (CE) n.º 1/2003, relativo às
regras de execução das regras da concorrência;
11
Cf. Regulamento (CE) n.º 726/2004, que estabelece procedimentos comunitários de
autorização e de fiscalização de medicamentos para uso humano e veterinário [última alteração, pelo
Regulamento (UE) n.º 1235/2010].
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O artigo 41.º da Carta (direito a uma boa administração) estabelece o seguinte:
“1 – Todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituições,
órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo razoável.
2 – Este direito compreende, nomeadamente:
a) O direito de qualquer pessoa a ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer
medida individual que a afete desfavoravelmente;
b) O direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito pelos
legítimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial;
c) A obrigação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões.
3. Todas as pessoas têm direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas
instituições ou pelos seus agentes no exercício das respetivas funções, de acordo com os princípios gerais
comuns às legislações dos Estados-Membros.
4. Todas as pessoas têm a possibilidade de se dirigir às instituições da União numa das línguas
dos Tratados, devendo obter uma resposta na mesma língua”.
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Não se pense, contudo, que existe uma separação cortante entre os planos do
Direito Administrativo da União Europeia e do Direito Administrativo nacional, como
se não houvesse contato entre os níveis europeu e nacional.
Uma separação nesses termos não existe, por duas razões principais:
i) Em primeiro lugar, porque, como vamos ver, por vezes, as normas do Direito
Administrativo da União Europeia dirigem-se diretamente à Administração Pública
nacional; quer dizer, essas normas não conferem competências administrativas apenas
às instituições e aos organismos da União Europeia, mas também a instâncias nacionais
dos Estados Membros;
ii) Em segundo lugar, porque, além disso e fora do contexto acabado de referir, a
Administração Pública nacional também se apresenta como um elemento da
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Administração Pública europeia, entendido agora este conceito num sentido amplo, de
modo a abranger todas as organizações (europeias e também nacionais) que se dedicam
à realização efetiva das missões administrativas da União Europeia; na verdade, as
administrações públicas nacionais operam, em muitos casos, em “função europeia”, no
desempenho de “missões administrativas comuns” e funcionalmente integradas,
segundo vários modelos, numa espécie de “administração comum da União Europeia”.
Assim, a ordem de valores e de interesses que o Direito Administrativo da União
Europeia pretende proteger (v.g., proteção da concorrência, que reclama a repressão dos
abusos de posição dominante; proteção do ambiente e da qualidade de vida, que reclama
restrições quanto às emissões poluentes; proteção da saúde, que reclama medidas que
garantam a segurança dos alimentos ou o controlo da entrada no mercado de
medicamentos; precaução contra o risco financeiro sistémico, que exige medidas de
controlo e de supervisão sobre o sistema bancário) vê-se assegurada, em larga medida,
por instâncias das administrações públicas nacionais, que atuam, muitas vezes, com
competências confiadas diretamente por normas de Direito da União Europeia. Neste
sentido, não se afigura realista, nem tão-pouco viável, a compreensão do Direito
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Administrativo da União Europeia como uma realidade jurídica separada das ordens
jurídicas administrativas nacionais. A exposição subsequente permitirá perceber isto
melhor.
Pressupõe-se uma distinção entre fonte direta e fonte indireta nos seguintes termos: direta
é a fonte de direito (a norma jurídica) da União imediatamente aplicável na ordem jurídica
interna, conhecendo o designado efeito direto; por sua vez, indireta é a fonte de direito (a
norma jurídica) da União que só produz efeitos na ordem jurídica interna por força de
uma norma jurídica de direito interno (transposição).
Quando não transpostas para a ordem jurídica interna dentro do prazo de transposição, as
normas das diretivas europeias podem ser invocadas pelos particulares contra o Estado –
invocação de baixo para cima –, desde que se trate de normas claras, precisas e
incondicionais. Assim se caracteriza o efeito direto vertical das diretivas.
A invocação contra o Estado inclui naturalmente a Administração Pública, na qual se
integram, também para este efeito, entidades privadas delegatárias de funções e poderes
públicos (v.g., empresas concessionárias do Estado, em certos condições 13).
13
Cf., a este respeito, o Acórdão do Tribunal de Justiça de 12 de dezembro de 2013, proc. n.º C-
425/12, que, na linha de jurisprudência anterior, decide que uma empresa encarregada pelo Estado da
gestão de um serviço de interesse público e que disponha de poderes exorbitantes (“poderes que
ultrapassam os que resultam das regras aplicáveis às relações entre particulares”) está obrigada a cumprir
as disposições de uma diretiva não transposta, pelo que essas disposições podem ser invocadas contra a
referida empresa pela autoridades de um Estado-Membro.
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Cf. Paulo Otero, “A Administração Pública Nacional como Administração Comunitária: Os
Efeitos Internos da Execução Administrativa pelos Estados-Membros do Direito Comunitário”, in:
Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço, Almedina, Coimbra, 2002,
pp. 818 e segs..
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Cf. Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de julho; com outros exemplos de atos transnacionais no
setor dos transportes, cf. Suzana Tavares da Silva, “Direito Administrativo dos Transportes”, in: Paulo
Otero/Pedro Gonçalves, Tratado de Direito Administrativo Especial, Coimbra, Almedina, 2011, vol. V, p.
425 e segs..
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Sobre o reconhecimento de títulos e qualificações profissionais, cf. T. Heremans, Professional
services in the EU internal market, Oxford, Hart Publishing, 2012.
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2001/83/CE (alterada pela Diretiva 2010/84/CE), o titular de uma AIM num Estado-
Membro que pretenda introduzir o mesmo medicamento noutros Estados pede à
Administração daquele Estado (designado Estado-Membro de referência) que elabore um
relatório de avaliação sobre o medicamento, o qual é enviado aos Estados-Membros em
que o requerente pretende a AIM; com base no relatório, estes emitem a AIM (a emissão
da AIM assenta, pois, nos pressupostos considerados e assumidos pelo Estado-Membro
de referência); sobre este “procedimento de reconhecimento mútuo”, cf. artigos 40.º e
segs. do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de agosto, republicado pelo Decreto-Lei n.º
128/2013, de 5 de setembro.
Um exemplo de reconhecimento de títulos conferidos por outros Estados pode ver-se na
já referida Lei n.º 9/2009, de 4 de março (alterada pela Lei n.º 41/2012, de 28 de agosto),
sobre o reconhecimento de qualificações profissionais (diplomas, certificados e outros
títulos de formação profissional). Embora com variações, consoante se trate do “regime
geral de reconhecimento” ou do designado “reconhecimento automático”, a lei exige um
ato expresso de reconhecimento das qualificações profissionais. Recorde-se que a mesma
lei já prevê um princípio de eficácia jurídica transnacional automática quando em causa
esteja a mera prestação de serviços.
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b) Integração institucional
A integração institucional corresponde a um fenómeno de incorporação ou de
quase incorporação de uma instância administrativa nacional na Administração Pública
europeia.
Nuns casos, a integração institucional tem um sentido vertical, baseada na
instituição de uma cadeia de supra-infraordenação (com afinidades com uma relação de
tipo hierárquico) entre instâncias europeias e organismos nacionais: assim sucede, por
exemplo, no campo da supervisão bancária, com a relação entre o Banco Central
Europeu e as autoridades nacionais de supervisão (entre nós, o Banco de Portugal), ou,
na regulação das telecomunicações, entre a Comissão Europeia e as autoridades
nacionais de regulação (em Portugal, a ANACOM).
O Banco Central Europeu é competente para emitir orientações ou instruções gerais,
dirigidos às autoridades nacionais de supervisão, de acordo com as quais estas últimas
exercem as suas atribuições [Regulamento (EU) n.º 1024/2013].
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A abolição dos controlos públicos que acaba de se referir está na linha de uma
mutação de âmbito mais alargado, igualmente promovida pelo direito da União, que
toca diretamente o sistema nacional de competências administrativas, mas também a
própria natureza das missões das administrações públicas nacionais. Um sintoma desta
mutação vê-se na Diretiva 2006/123/CE, relativa aos serviços no mercado interno, que,
além do mais, estabelece que as atividades de serviços só podem ser subordinadas a um
regime de autorização administrativa desde que se verifiquem determinadas condições
– neste aspeto, a Diretiva (transposta para o direito português pelo Decreto-Lei n.º
92/2010, de 26 de junho) enquadra-se num processo de transformação das missões da
Administração Pública, na direção da substituição dos sistemas de controlo público de
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nacionais e à imposição, não apenas europeia, mas também global do modelo das
autoridades administrativas independentes.
17
Cf. S. Flogaitis, “I principi generali del diritto nella giurisprudenza del Tribunal
Amministrativo delle Nazioni Unite”, in: Marco D’Alberti (org.), Le nuove mete del diritto
amministrativo, Bologna, Il Mulino, 2010, p. 93 e segs..
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Cf. Decreto n.º 3/2010, de 19 de março.
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Cf. Afonso Patrão, “O Tribunal Administrativo das Nações Unidas”, BFDC, vol. LXXXII,
2006, p. 637 e segs.; S. Flogatis, ob. cit., p. 93 e segs..
20
Cf. Dulce Lopes, “Direito administrativo das organizações internacionais”, in Paulo
Otero/Pedro Gonçalves, Tratado de Direito Administrativo Especial, vol. II, Coimbra, Almedina, 2010, p.
99 e segs.
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transnacional; esta apresenta-se como a administração pública que atua num “espaço
administrativo global”.
A conceção de uma administração pública global implica uma rutura com a
visão clássica segundo a qual a Administração Pública é uma organização dos Estados,
que se encontra confinada à ordem jurídica nacional ou, excecionalmente, como no caso
da União Europeia, a organizações internacionais com um elevado nível de integração.
Ora, a realidade demostrou que há administração pública sem Estado: em concreto, há
atores da arena internacional – a começar pelas organizações internacionais, mas não só
– que desenvolvem ações que se podem considerar de natureza administrativa:
regulação económica e financeira, proteção ambiental, definição de standards técnicos,
segurança de alimentos, proteção dos direitos dos trabalhadores; definição de ratings
sobre a capacidade financeira de empresas, de bancos e de Estados.
Estes atores atuam com uma autoridade (auctoritas) própria, de forma direta, e
sem a colaboração das administrações estaduais. Aos organismos públicos, como as
organizações internacionais (v.g., Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário
Internacional) e as redes de administração transnacional, juntam-se organismos híbridos,
de carácter público-privado (v.g., Comissão do Codex Alimentarius) e mesmo atores 234
21
privados (ICANN, na regulação administrativa da internet , ou a ISO, na definição de
regras e standards técnicos). A presença de atores privados nesta administração pública
global explica a referência, que alguns autores têm feito, à emergência de uma nova
forma de autoridade, a autoridade privada na governação global – as agências
internacionais de rating constituem uma excelente ilustração desta realidade 22.
Estamos agora em condições de perceber o sentido do direito administrativo
global. Ao contrário do que se poderia supor, não se trata de um corpo organizado de
regras jurídicas (qualquer que seja a sua proveniência) com o objetivo de disciplinar a
ação dos protagonistas da administração pública global. Em vez disso, o conceito tem
sobretudo a vocação de projetar a ideia da exigência de submissão da dita administração
pública global a princípios e a valores de Direito Administrativo. Pretende-se, pois,
21
Sobre isto, cf. o nosso texto “Disciplina administrativa da internet”, in: Direito da Sociedade
da Informação, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 215 e segs..
22
C. A. Hill, “Regulating the rating agencies”, Washington University Law Quarterly, vol. 82,
2004, p. 42 e segs.; S. Schwarcz, “Private ordering of public markets: the rating agency paradox”,
University of Illinois Law Review, 2002, n.º 1, p. 1 e segs.; N. Gaillard, Les agences de notation, Paris, La
découverte, 2010.
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Pela nossa parte, desde 1999 que o dizemos: cf. A Concessão de Serviços Públicos, Coimbra,
Almedina, 1999, p. 13 e segs..
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tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das “relações jurídicas administrativas”
(relações disciplinadas pelo Direito Administrativo): cf. artigo 212.º, n.º 3.
Além do mais, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela
Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam (cf. artigo 3.º do
CPTA). Esta circunstância mostra a situação intermédia que a Administração ocupa,
entre o legislador e os tribunais.
e) Igualdade
Cf. artigos 266.º, n.º 2, e 6.º, n.º 1, do CPA.
f) Proporcionalidade
Cf. artigos 266.º, n.º 2, e 7.º do CPA.
g) Justiça 240
Cf. artigos 266.º, n.º 2, e 8.º do CPA.
h) Imparcialidade
Cf. artigos 266.º, n.º 2, e 9.º do CPA. Sobre as garantias de imparcialidade, cf.
artigos 69.º a 76.º do CPA.
i) Boa-fé
Cf. artigos 266.º, n.º 2, e 10.º do CPA.
j) Responsabilidade
Cf. artigo 22.º da CRP.
etc.) exige uma norma que estabeleça, em concreto, o poder de a adotar. Como se pode
imaginar, o estudo do Direito Administrativo baseado na análise dessas inúmeras leis
constituiria uma tarefa de realização praticamente impossível.
Sem desvalorizar a óbvia importância de cada norma de Direito Administrativo,
que, em especial, concretiza o interesse público que a Administração deve prosseguir e
define a competência administrativa, tem de se reconhecer uma relevância particular a
algumas leis fundamentais, que regulam, de forma global e a partir de uma abordagem
unitária, todo o sistema administrativo ou, pelo menos, uma parte significativa do
mesmo.
Trata-se das leis que têm a função de definir: i) o modelo geral de organização
da Administração Pública ou de setores significativos da mesma; ii) uma regulação
geral e transversal, de aplicação a toda a ação administrativa ou a grupos significativos
de ações administrativas (por exemplo, regras aplicáveis a atos administrativos); iii) a
regulação da responsabilidade civil da Administração; iv) o regime jurídico do emprego
na Administração Pública; v) por fim, mas não menos, importante, as garantias dos
cidadãos em face da Administração Pública.
242
I – Leis sobre a organização da Administração Pública
Em concretização dos princípios constitucionais, há um conjunto importante de
leis que definem o modo de organização da Administração Pública.
b) Autarquias locais
i) Regime jurídico das autarquias locais, estatuto das entidades intermunicipais,
regime jurídico da transferência de competências do Estado para as autarquias locais e
para as entidades intermunicipais e regime jurídico do associativismo autárquico.
ii) Regime jurídico da tutela administrativa do Estado sobre as autarquias locais.
iii) Atividade empresarial local e participações locais.
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c) Associações públicas
Regime jurídico das associações públicas profissionais.
CAPÍTULO 3
Direito Administrativo como ordem de regulação da ação administrativa
Pelo que se pode concluir, embora não exista sempre uma separação nítida entre
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regulação jurídica e regulação não jurídica, não parece haver dúvidas de que o direito
não pode ter a pretensão de monopolizar e esgotar a regulação da ação administrativa.
Em geral, quando encarada a ação administrativa no seu todo, nas suas decisões e nos
seus resultados, o direito pode ter de admitir que se “administre melhor e pior”, que, de
um ponto de vista de administração ou de gestão, haja “decisões boas e decisões menos
boas”: assim, a definição dos melhores termos de circulação do trânsito numa rotunda
ou a opção sobre se os edifícios públicos devem ser aquecidos com ar condicionado ou
com aparelhos de gás não são assuntos que caiba ao direito regular. Assim se percebe a
justificação para esta conclusão talvez um pouco desconcertante: a “má administração”
não corresponde necessariamente a uma situação ilegal ou antijurídica. Impõe-se, pois,
uma distinção entre mérito e legalidade.
Sem prejuízo da relevância do mérito e da submissão da ação da Administração
a critérios não jurídicos, a nós interessa o estudo da submissão da Administração ao
direito. Como sabemos, a Administração Pública tem o “seu” direito, e a primeira regra
fundamental neste aspeto estabelece que toda a atuação administrativa tem de se basear
numa lei. Daqui decorre a obediência à lei (princípio da legalidade). Mas, como se sabe,
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a lei (a regra legal) não esgota o direito, nem, como veremos, se revela suficiente como
instrumento de regulação jurídica da Administração. Por isso, a obediência à lei tem de
se complementar com a obediência ao direito – veja-se o artigo 3.º, n.º 1, do CPA, onde
se estabelece precisamente que a Administração Pública deve atuar “em obediência à lei
e ao direito”.
Os quatro itens acabados de expor articulam-se com as funções do Direito Administrativo 248
[cf. ponto 5.2]: os dois primeiros materializam a função de legitimação e os dois últimos
materializam a função de condicionamento da ação administrativa.
formal e procedimental: assim, por exemplo, a lei estatui que a decisão de aplicação de
sanções terá forma escrita e deve ser fundamentada, será precedida de pareceres e da
audiência do interessado, etc.
Por outro lado, em muitos casos, emergem vinculações situadas num plano
substancial, que têm uma influência na determinação do sentido e do conteúdo da
decisão. A subordinação ao direito exprime-se, neste último caso, na subordinação da
Administração a princípios constitucionais ou de direito da União Europeia, bem como
a princípios gerais de Direito Administrativo e a outras normas jurídicas pensadas para a
Administração e com aptidão para orientar a ação administrativa específica.
Estas outras vinculações – que acrescem à vinculação inicial ou de base que
resulta da norma da ação ou de competência –, sobretudo as que conhecem projeção
num plano substancial, têm uma incidência muito particular quando a norma de ação ou
de competência não define, em termos taxativos e definitivos, os pressupostos (na
hipótese normativa) e o conteúdo específico da ação administrativa concreta (na
estatuição normativa.
Emerge, neste cenário, o problema da discricionariedade administrativa.
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41 – Discricionariedade administrativa
O estudo desta matéria deve ser feito por: José Carlos Vieira de Andrade, Lições
de Direito Administrativo, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, pp.
53-66.