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LOURENÇO
UM EUROPEU
DESENCANTADO
PÚBLICO, DOMINGO 19 MAIO 2013
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Como olhar para esta Europa que, de repente, nos parece irreconhecível ou, então,
demasiado conhecida? Eduardo Lourenço confessa a sua perplexidade perante
uma Europa que já não esperávamos ver. Entre uma Alemanha que chegou tarde à
História e uma França que é o maior problema europeu. Quanto a nós, não há que
ter ilusões: se nos salvarmos, é porque a Europa se salvou. Não temos outro destino.
É o único “milagre” que resta.
TERESA DE SOUSA TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA
EDUARDO LOURENÇO
ESTA EUROPA
TORNOU-SE
UM MUSEU
12 | Domingo 19 Maio 2013 | 2
DE SI MESMA
E
sta entrevista tem como pretexto Espanha já não existe. Este exército foi redu- Sobretudo, porque nos habituámos a coisa que pensávamos que o projecto da cons-
a última obra de Eduardo Lou- zido e, além disso, passou de ser um exército viver protegidos pela superpotência e trução europeia estava precisamente destinado
renço, editada pela Gradiva, que obrigatório a um exército de voluntários. isso agora está a acabar. a pôr fim. Lembro-me de que um jornal pu-
é uma inesperada resenha de ar- E destina-se, em primeiro lugar, E quando a América está frágil de uma guerra blicou recentemente um mapa da Europa em
tigos escritos pelo nosso maior a participar nas missões da União onde é, ao mesmo tempo, o actor principal forma de puzzle, em que cada uma das nações
ensaísta antes do 25 de Abril ou Europeia e da NATO, no quadro das mas pode também ser a vítima colateral de europeias estava separada de todas as outras.
nos dois anos seguintes. O tema nossas alianças. tudo quanto se passa. De modo que estamos O nosso país, feito peixinho, à margem e cá no
parece estranho: Os Militares e o Claro. Mas é uma espécie de aviso à navega- numa situação inédita e surpreendente. Nós fim. Mesmo que isto seja caricatural, corres-
Poder. Há um texto final e actual ção. pensávamos que, depois da implosão do im- ponde a este passo atrás. Um passo atrás que
sobre “o fim de todas as guerras Aproveitei o tema para uma reflexão que não pério soviético, íamos entrar para um período já nem é sequer o passo atrás para uma Europa
e as guerras sem fim”. É o ponto é só europeia, que é mundial, sobre o estatuto histórico europeu outra vez normalizado, de- que nós conhecemos com todas as suas desgra-
de partida uma longa conversa do militar, que sofreu uma verdadeira revolu- pois da dupla interrupção de 1914-18 e de 39-45. ças do século XX. É quase como se voltássemos
sobre esta crise que se abateu sobre nós e essa ção no mundo inteiro, graças ao facto de que Uma vez que o império soviético tinha implo- a uma Europa do Tácito, do Império Romano
ausência de Europa que estamos a viver. Edu- o exército ainda eficaz e credível que existe é dido, nós entrávamos numa Europa unificada com os bárbaros e tudo numa espécie de caos.
ardo Lourenço olha com pessimismo para o já um exército que nada tem que ver com o de e pacificada, num novo projecto europeu que Pensávamos que a vaga nacionalista que foi
nosso recanto ocidental. Sabe que, desta vez, Bismark e de Napoleão. É um exército em que incluísse toda a Europa — a Europa definida característica do século XIX e que, depois, deu
o milagre já só nos pode vir da Europa. Mas as armas são quase de ciência-ficção. pelo De Gaulle do Atlântico aos Urais. E que a origem a todas estas catástrofes do século XX,
a Europa teima em dissolver-se. Faz 90 anos Com uma tecnologia que muda regras da História retomava, enfim, o seu curso… estava realmente a ser superada e agora vemos
no próximo dia 23 de Maio. Confessa que vive guerra? E hoje olhamos para a Europa e que não está. Basta olhar aqui para o lado. Na
esta crise, que já ninguém esperava, como um Sim. E nós não somos sequer actores dessa lembramo-nos do título de um dos seus Espanha, a Catalunha não desiste de ser uma
pesadelo. Continua, entre Lisboa e Vence, à nova realidade, a não ser como membros da livros recentes e que não tem tradução: nação. O País Basco reclama. A Galiza também.
volta das perplexidades deste tempo que es- NATO e em função das missões que nos podem L’Europe introuvable. Não encontramos a Temos aqui um caso quase de escola que é a
tamos a viver. ser confiadas a partir desse estatuto. Embora Europa que conhecíamos há cinco anos. nossa própria península. E tanto mais extra-
Por que razão decidiu publicar agora os países europeus com velhas tradições mi- Esse título não tem tradução. A versão portu- ordinário quanto, há quatro anos, a Espanha
textos seus anteriores a 1975 sobre litaristas, como a França, continuem a fazer guesa é A Europa Desencantada mas não é a parecia ser uma nação de topo da nova Europa
os militares e o poder? É um pouco uma guerra a título póstumo, a correr atrás de mesma coisa. O projecto europeu não se encon- que estávamos a construir. Havia um discurso
inesperado. uns fantasmas que estão no deserto, que os faz tra. Nós pensávamos que ele estava facilmente na Espanha, uma comparação implícita que
Está relacionado com a crise que estamos a achar-se gloriosos. ao nosso alcance. Mas era uma aposta muito dizia: já somos como a França.
viver. Tanto aqui como lá fora. Que são várias Está a referir-se ao Mali? Mas esses alta, de uma utopia assumida. Provavelmente Que é sempre o que os espanhóis querem
crises, desde 2008 até hoje. De início, parecia fantasmas do deserto, ligados à Al- pensou-se que havia tempo para cumprir essas ser.
uma coisa de ordem técnica e de ordem econó- Qaeda, são um perigo real. diversas etapas. Não houve. Embora retrospec- A barreira dos Pirenéus parecia ultrapassada.
mica propriamente dita, mas transformou-se Está bem, mas isso nunca mais acaba. As guer- tivamente, hoje tendo a pensar que se devia ter Eu próprio fiz, no Instituto Cervantes, uma pa-
numa crise política e social. Em França, por ras nunca mais acabam. O estado de guerra não consolidado esse núcleo central, e só depois lestra sobre esse milagre europeu, que agora
exemplo, tem-se invocado muito que estamos acabou, apenas mudou de estatuto. E agora, agregar os outros. Diz-se que Jean Monnet teria desaparece. De repente, a Espanha começou
em 1930, essa época que foi a véspera de uma felizmente, nós não estamos na primeira linha, dito que era pena que se tivesse começado por a não dar conta do recado. E agora está com
tragédia que ainda hoje nos diz respeito. As nem há razão para isso, senão em missões da esta associação de tipo económico, que devía- um desemprego que ainda é maior do que o
consequências estão à vista. Já há alguns me- NATO, e não estamos sequer ao serviço da Eu- mos ter começado pela cultura. Mas essa tam- nosso e tem esse problema da auto-integração
ses tive a intenção de escrever um artigo para ropa. bém não é uma grande ideia. A Europa morre que, felizmente, nós não temos.
o PÚBLICO que seria intitulado, não 1930, mas De alguma maneira, estamos ao serviço de cultura, não é a cultura que lhe falta… Olhando mais para cima, os europeus
1926. da Europa, como devemos estar. E agora está a viver um inesperado estavam preparados para esta realidade
Porquê 1926? Estamos a uma longa Sim, mas indirectamente. É muito curioso, nes- choque cultural entre o Norte e o Sul. nova de a Alemanha assumir um enorme
distância desses tempos. ta circunstância de crise europeia, que as duas Sim. Para não falar de um outro choque, que poder?
1926 é aquela coisa que a gente sabe: a altura nações que se combateram durante séculos — a esteve sempre latente mesmo que invisível aos Talvez. Já passou mais de meio século desde
em que o exército, que tinha sido actor político Inglaterra e a França — são outra vez as únicas nossos olhos, e que é o confronto com o islão. aquilo a que eu chamo o “buraco negro da His-
no período da revolução liberal, que se impli- que ainda têm a veleidade de constituir uma Temos dois choques: a divisão Norte-Sul, que tória contemporânea”. Estávamos conformados
cou na República, que viveu aquelas confusões força europeia autónoma de intervenção. já existia na História, mas que agora aparece com o mapa que a Guerra Fria tinha imposto
da República, decidiu agir. A República tem má E, claramente, os Estados Unidos estão com manifestações políticas, como se tivésse- à Europa e, portanto, ninguém esperava que
imprensa porque, na verdade, viveu apenas 16 hoje muito menos dispostos a continuar mos duas europas. a União Soviética implodisse de uma maneira
anos numa situação muito periclitante, com o a combater pela Europa. Viraram-se A boa e a má. tão rápida e até misteriosa. A Alemanha ficou
episódio da nossa entrada na guerra ao lado para onde o seu poder é desafiado. A boa e a má. Mais a fractura do islão. Aqui, em de repente uma nação mais poderosa, quando
dos aliados ou com o sidonismo. O que quero Que é o Pacífico. Não é aqui. Portugal, a coisa não é muito visível porque o ex-inimigo ainda recente que era a União So-
dizer com isto é que não é o exército que toma O que aumenta a responsabilidade da o pouco islamismo que há é muito discreto. viética desaparece e a Rússia enfrenta grandes
as iniciativas, mas é a sociedade que, a certa Europa pela segurança regional, que só Não incomoda ninguém. Mas não é a mesma problemas para voltar a ocupar o seu lugar.
altura, não tem outro recurso senão os milita- os franceses e os ingleses têm condições coisa no país onde vivo. Em França, é tudo sis- Uma das coisas que pensava, mesmo quando
res, porque o rei não existe. para, de algum modo, assumir. temático. Veja que um Presidente de direita, o projecto europeu ainda estava a funcionar, era
Mas insisto: não há qualquer similitude Sim, quem daria credibilidade a isso seriam Nicolas Sarkozy, inventou este conceito de islão que a Europa, depois da queda do Muro, não
entre esses tempos e os actuais. a Inglaterra e a França. Nós estamos bastante francês: a ideia de que a França assimila tudo teria uma palavra, não teria uma política, uma
É por isso, justamente. Eu tenho consciência fora dessa jogada, a não ser como participante e que o islão também seria assimilável. Mas estratégia qualquer que englobasse a Rússia.
de que os textos deste livro são, felizmente, dessas missões. Foi tudo isto que me levou a não é. São cinco milhões. É a Dinamarca. São Porque a Rússia pertence à Europa cultural e
anacrónicos. Mas nunca fiando… A História é escrever esse post-scriptum aos textos. culturas muito profundas, muito enraizadas, historicamente. É a pátria do Toltsoi, mesmo
sempre concebida como a leitura onde nós re- E onde diz uma coisa interessante, muito orgânicas, e o laicismo francês não tem com a justificação de que não é um modelo de-
conhecemos, a posteriori, o sentido das coisas. que referiu há pouco: que os Estados resposta para aquilo. mocrático propriamente convincente.
A História é o que está em questão. É imprevi- Unidos, com toda a sua tecnologia, estão O laicismo foi pôr a tradição religiosa em ca- Mas quanto mais tempo a Europa vai
sível. Só sabemos que a situação actual não é a mudar os códigos da guerra. sa, no seu lugar, e separar o político do resto. resistir a esta realidade nova em que
comparável com a que se vivia nos anos 30, que Sim, sim. É o que eu chamo de não-guerra, em Mas o islão não faz essa separação. Não tem as decisões passaram a ser tomadas
era uma crise genérica do paradigma demo- que a guerra foi substituída por outro tipo de essa concepção. Não creio que seja um peri- em Berlim? Ou melhor, por quanto
crático parlamentar na Europa, de onde saiu o guerra que não tem fim. É a guerra do sistema go iminente para a Europa, mas é uma coisa mais tempo a França vai aceitar esta
fascismo, o totalitarismo. Mas podia acontecer inteiro, que vive de um combate que não tem latente. subalternidade?
que o país entrasse numa crise ainda mais pro- adversário designado, que funciona em termos Voltando à Europa que não A França também não consegue superar outros
funda e, nessa altura, surgisse realmente outra autónomos. Não temos a guerra no sentido clás- encontramos, se nos dissessem que isto fantasmas. Não são os mesmos da Alemanha,
vez essa coisa do recurso aos militares como sico, mas temos uma guerra permanente que é tudo iria acontecer há cinco anos, nós mas são fantasmas também. Ela suporta mal
actores políticos, mesmo que temporário. uma disputa para ocupar os primeiros lugares não acreditávamos. não ser a “menina bonita” da História euro-
Mas não há felizmente sinais de que isso de tudo quanto se produz no mundo… Não, não acreditávamos. É uma crise do sis- peia, que foi nos últimos três séculos. Desde
possa alguma vez voltar a acontecer. E de um mundo que é completamente tema europeu, da própria Europa, e não uma a Revolução Francesa. E em que o “mau da
É verdade. Até porque o exército actual não diferente e do qual nós, os europeus, não crise de um aspecto da construção europeia. fita”, realmente, é uma Alemanha que é mui-
tem essa vocação. Primeiro, porque a imagem estávamos à espera. Vemos hoje despontar velhos fantasmas to recente, que tem pouco mais de cem anos,
do poder militar não está relacionada com uma Não estávamos. E isso é que é o fim da Europa que considerávamos mortos e enterrados desde Bismarck. Antes disso, era um país divi-
intervenção ditatorial, mas com a revolução de no sentido clássico do termo. Estava a ver es- para sempre. As manifestações na dido, sem coerência interna, uma nação tardia.
Abril, que é autolibertadora. Por outro lado, o tes títulos do Courrier International… “Fragile Grécia com o retrato da chanceler com Uma parte desta tragédia alemã é o facto tardio
exército sofreu profundas modificações. Neste Amérique” e “L’Europe n’est plus”… o bigodinho, incompreensível para da sua unidade política, que foi feita à força.
momento, o que justifica o exército português Digamos que não é uma coisa muito os alemães, que consideraram que já E isso gerou todas as consequências que nós
já não é o Império que não temos, como não agradável de ler. expiaram a culpa. Tudo isto é perigoso? conhecemos.
temos inimigos à vista na Europa e o perigo da Nem uma, nem outra. É, sobretudo, um recuo a diversos níveis a uma A França tem esse privilégio de ser o para-