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EDUARDO

LOURENÇO
UM EUROPEU
DESENCANTADO
PÚBLICO, DOMINGO 19 MAIO 2013

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Como olhar para esta Europa que, de repente, nos parece irreconhecível ou, então,
demasiado conhecida? Eduardo Lourenço confessa a sua perplexidade perante
uma Europa que já não esperávamos ver. Entre uma Alemanha que chegou tarde à
História e uma França que é o maior problema europeu. Quanto a nós, não há que
ter ilusões: se nos salvarmos, é porque a Europa se salvou. Não temos outro destino.
É o único “milagre” que resta.
TERESA DE SOUSA TEXTO ENRIC VIVES-RUBIO FOTOGRAFIA

EDUARDO LOURENÇO
ESTA EUROPA
TORNOU-SE
UM MUSEU
12 | Domingo 19 Maio 2013 | 2
DE SI MESMA
E
sta entrevista tem como pretexto Espanha já não existe. Este exército foi redu- Sobretudo, porque nos habituámos a coisa que pensávamos que o projecto da cons-
a última obra de Eduardo Lou- zido e, além disso, passou de ser um exército viver protegidos pela superpotência e trução europeia estava precisamente destinado
renço, editada pela Gradiva, que obrigatório a um exército de voluntários. isso agora está a acabar. a pôr fim. Lembro-me de que um jornal pu-
é uma inesperada resenha de ar- E destina-se, em primeiro lugar, E quando a América está frágil de uma guerra blicou recentemente um mapa da Europa em
tigos escritos pelo nosso maior a participar nas missões da União onde é, ao mesmo tempo, o actor principal forma de puzzle, em que cada uma das nações
ensaísta antes do 25 de Abril ou Europeia e da NATO, no quadro das mas pode também ser a vítima colateral de europeias estava separada de todas as outras.
nos dois anos seguintes. O tema nossas alianças. tudo quanto se passa. De modo que estamos O nosso país, feito peixinho, à margem e cá no
parece estranho: Os Militares e o Claro. Mas é uma espécie de aviso à navega- numa situação inédita e surpreendente. Nós fim. Mesmo que isto seja caricatural, corres-
Poder. Há um texto final e actual ção. pensávamos que, depois da implosão do im- ponde a este passo atrás. Um passo atrás que
sobre “o fim de todas as guerras Aproveitei o tema para uma reflexão que não pério soviético, íamos entrar para um período já nem é sequer o passo atrás para uma Europa
e as guerras sem fim”. É o ponto é só europeia, que é mundial, sobre o estatuto histórico europeu outra vez normalizado, de- que nós conhecemos com todas as suas desgra-
de partida uma longa conversa do militar, que sofreu uma verdadeira revolu- pois da dupla interrupção de 1914-18 e de 39-45. ças do século XX. É quase como se voltássemos
sobre esta crise que se abateu sobre nós e essa ção no mundo inteiro, graças ao facto de que Uma vez que o império soviético tinha implo- a uma Europa do Tácito, do Império Romano
ausência de Europa que estamos a viver. Edu- o exército ainda eficaz e credível que existe é dido, nós entrávamos numa Europa unificada com os bárbaros e tudo numa espécie de caos.
ardo Lourenço olha com pessimismo para o já um exército que nada tem que ver com o de e pacificada, num novo projecto europeu que Pensávamos que a vaga nacionalista que foi
nosso recanto ocidental. Sabe que, desta vez, Bismark e de Napoleão. É um exército em que incluísse toda a Europa — a Europa definida característica do século XIX e que, depois, deu
o milagre já só nos pode vir da Europa. Mas as armas são quase de ciência-ficção. pelo De Gaulle do Atlântico aos Urais. E que a origem a todas estas catástrofes do século XX,
a Europa teima em dissolver-se. Faz 90 anos Com uma tecnologia que muda regras da História retomava, enfim, o seu curso… estava realmente a ser superada e agora vemos
no próximo dia 23 de Maio. Confessa que vive guerra? E hoje olhamos para a Europa e que não está. Basta olhar aqui para o lado. Na
esta crise, que já ninguém esperava, como um Sim. E nós não somos sequer actores dessa lembramo-nos do título de um dos seus Espanha, a Catalunha não desiste de ser uma
pesadelo. Continua, entre Lisboa e Vence, à nova realidade, a não ser como membros da livros recentes e que não tem tradução: nação. O País Basco reclama. A Galiza também.
volta das perplexidades deste tempo que es- NATO e em função das missões que nos podem L’Europe introuvable. Não encontramos a Temos aqui um caso quase de escola que é a
tamos a viver. ser confiadas a partir desse estatuto. Embora Europa que conhecíamos há cinco anos. nossa própria península. E tanto mais extra-
Por que razão decidiu publicar agora os países europeus com velhas tradições mi- Esse título não tem tradução. A versão portu- ordinário quanto, há quatro anos, a Espanha
textos seus anteriores a 1975 sobre litaristas, como a França, continuem a fazer guesa é A Europa Desencantada mas não é a parecia ser uma nação de topo da nova Europa
os militares e o poder? É um pouco uma guerra a título póstumo, a correr atrás de mesma coisa. O projecto europeu não se encon- que estávamos a construir. Havia um discurso
inesperado. uns fantasmas que estão no deserto, que os faz tra. Nós pensávamos que ele estava facilmente na Espanha, uma comparação implícita que
Está relacionado com a crise que estamos a achar-se gloriosos. ao nosso alcance. Mas era uma aposta muito dizia: já somos como a França.
viver. Tanto aqui como lá fora. Que são várias Está a referir-se ao Mali? Mas esses alta, de uma utopia assumida. Provavelmente Que é sempre o que os espanhóis querem
crises, desde 2008 até hoje. De início, parecia fantasmas do deserto, ligados à Al- pensou-se que havia tempo para cumprir essas ser.
uma coisa de ordem técnica e de ordem econó- Qaeda, são um perigo real. diversas etapas. Não houve. Embora retrospec- A barreira dos Pirenéus parecia ultrapassada.
mica propriamente dita, mas transformou-se Está bem, mas isso nunca mais acaba. As guer- tivamente, hoje tendo a pensar que se devia ter Eu próprio fiz, no Instituto Cervantes, uma pa-
numa crise política e social. Em França, por ras nunca mais acabam. O estado de guerra não consolidado esse núcleo central, e só depois lestra sobre esse milagre europeu, que agora
exemplo, tem-se invocado muito que estamos acabou, apenas mudou de estatuto. E agora, agregar os outros. Diz-se que Jean Monnet teria desaparece. De repente, a Espanha começou
em 1930, essa época que foi a véspera de uma felizmente, nós não estamos na primeira linha, dito que era pena que se tivesse começado por a não dar conta do recado. E agora está com
tragédia que ainda hoje nos diz respeito. As nem há razão para isso, senão em missões da esta associação de tipo económico, que devía- um desemprego que ainda é maior do que o
consequências estão à vista. Já há alguns me- NATO, e não estamos sequer ao serviço da Eu- mos ter começado pela cultura. Mas essa tam- nosso e tem esse problema da auto-integração
ses tive a intenção de escrever um artigo para ropa. bém não é uma grande ideia. A Europa morre que, felizmente, nós não temos.
o PÚBLICO que seria intitulado, não 1930, mas De alguma maneira, estamos ao serviço de cultura, não é a cultura que lhe falta… Olhando mais para cima, os europeus
1926. da Europa, como devemos estar. E agora está a viver um inesperado estavam preparados para esta realidade
Porquê 1926? Estamos a uma longa Sim, mas indirectamente. É muito curioso, nes- choque cultural entre o Norte e o Sul. nova de a Alemanha assumir um enorme
distância desses tempos. ta circunstância de crise europeia, que as duas Sim. Para não falar de um outro choque, que poder?
1926 é aquela coisa que a gente sabe: a altura nações que se combateram durante séculos — a esteve sempre latente mesmo que invisível aos Talvez. Já passou mais de meio século desde
em que o exército, que tinha sido actor político Inglaterra e a França — são outra vez as únicas nossos olhos, e que é o confronto com o islão. aquilo a que eu chamo o “buraco negro da His-
no período da revolução liberal, que se impli- que ainda têm a veleidade de constituir uma Temos dois choques: a divisão Norte-Sul, que tória contemporânea”. Estávamos conformados
cou na República, que viveu aquelas confusões força europeia autónoma de intervenção. já existia na História, mas que agora aparece com o mapa que a Guerra Fria tinha imposto
da República, decidiu agir. A República tem má E, claramente, os Estados Unidos estão com manifestações políticas, como se tivésse- à Europa e, portanto, ninguém esperava que
imprensa porque, na verdade, viveu apenas 16 hoje muito menos dispostos a continuar mos duas europas. a União Soviética implodisse de uma maneira
anos numa situação muito periclitante, com o a combater pela Europa. Viraram-se A boa e a má. tão rápida e até misteriosa. A Alemanha ficou
episódio da nossa entrada na guerra ao lado para onde o seu poder é desafiado. A boa e a má. Mais a fractura do islão. Aqui, em de repente uma nação mais poderosa, quando
dos aliados ou com o sidonismo. O que quero Que é o Pacífico. Não é aqui. Portugal, a coisa não é muito visível porque o ex-inimigo ainda recente que era a União So-
dizer com isto é que não é o exército que toma O que aumenta a responsabilidade da o pouco islamismo que há é muito discreto. viética desaparece e a Rússia enfrenta grandes
as iniciativas, mas é a sociedade que, a certa Europa pela segurança regional, que só Não incomoda ninguém. Mas não é a mesma problemas para voltar a ocupar o seu lugar.
altura, não tem outro recurso senão os milita- os franceses e os ingleses têm condições coisa no país onde vivo. Em França, é tudo sis- Uma das coisas que pensava, mesmo quando
res, porque o rei não existe. para, de algum modo, assumir. temático. Veja que um Presidente de direita, o projecto europeu ainda estava a funcionar, era
Mas insisto: não há qualquer similitude Sim, quem daria credibilidade a isso seriam Nicolas Sarkozy, inventou este conceito de islão que a Europa, depois da queda do Muro, não
entre esses tempos e os actuais. a Inglaterra e a França. Nós estamos bastante francês: a ideia de que a França assimila tudo teria uma palavra, não teria uma política, uma
É por isso, justamente. Eu tenho consciência fora dessa jogada, a não ser como participante e que o islão também seria assimilável. Mas estratégia qualquer que englobasse a Rússia.
de que os textos deste livro são, felizmente, dessas missões. Foi tudo isto que me levou a não é. São cinco milhões. É a Dinamarca. São Porque a Rússia pertence à Europa cultural e
anacrónicos. Mas nunca fiando… A História é escrever esse post-scriptum aos textos. culturas muito profundas, muito enraizadas, historicamente. É a pátria do Toltsoi, mesmo
sempre concebida como a leitura onde nós re- E onde diz uma coisa interessante, muito orgânicas, e o laicismo francês não tem com a justificação de que não é um modelo de-
conhecemos, a posteriori, o sentido das coisas. que referiu há pouco: que os Estados resposta para aquilo. mocrático propriamente convincente.
A História é o que está em questão. É imprevi- Unidos, com toda a sua tecnologia, estão O laicismo foi pôr a tradição religiosa em ca- Mas quanto mais tempo a Europa vai
sível. Só sabemos que a situação actual não é a mudar os códigos da guerra. sa, no seu lugar, e separar o político do resto. resistir a esta realidade nova em que
comparável com a que se vivia nos anos 30, que Sim, sim. É o que eu chamo de não-guerra, em Mas o islão não faz essa separação. Não tem as decisões passaram a ser tomadas
era uma crise genérica do paradigma demo- que a guerra foi substituída por outro tipo de essa concepção. Não creio que seja um peri- em Berlim? Ou melhor, por quanto
crático parlamentar na Europa, de onde saiu o guerra que não tem fim. É a guerra do sistema go iminente para a Europa, mas é uma coisa mais tempo a França vai aceitar esta
fascismo, o totalitarismo. Mas podia acontecer inteiro, que vive de um combate que não tem latente. subalternidade?
que o país entrasse numa crise ainda mais pro- adversário designado, que funciona em termos Voltando à Europa que não A França também não consegue superar outros
funda e, nessa altura, surgisse realmente outra autónomos. Não temos a guerra no sentido clás- encontramos, se nos dissessem que isto fantasmas. Não são os mesmos da Alemanha,
vez essa coisa do recurso aos militares como sico, mas temos uma guerra permanente que é tudo iria acontecer há cinco anos, nós mas são fantasmas também. Ela suporta mal
actores políticos, mesmo que temporário. uma disputa para ocupar os primeiros lugares não acreditávamos. não ser a “menina bonita” da História euro-
Mas não há felizmente sinais de que isso de tudo quanto se produz no mundo… Não, não acreditávamos. É uma crise do sis- peia, que foi nos últimos três séculos. Desde
possa alguma vez voltar a acontecer. E de um mundo que é completamente tema europeu, da própria Europa, e não uma a Revolução Francesa. E em que o “mau da
É verdade. Até porque o exército actual não diferente e do qual nós, os europeus, não crise de um aspecto da construção europeia. fita”, realmente, é uma Alemanha que é mui-
tem essa vocação. Primeiro, porque a imagem estávamos à espera. Vemos hoje despontar velhos fantasmas to recente, que tem pouco mais de cem anos,
do poder militar não está relacionada com uma Não estávamos. E isso é que é o fim da Europa que considerávamos mortos e enterrados desde Bismarck. Antes disso, era um país divi-
intervenção ditatorial, mas com a revolução de no sentido clássico do termo. Estava a ver es- para sempre. As manifestações na dido, sem coerência interna, uma nação tardia.
Abril, que é autolibertadora. Por outro lado, o tes títulos do Courrier International… “Fragile Grécia com o retrato da chanceler com Uma parte desta tragédia alemã é o facto tardio
exército sofreu profundas modificações. Neste Amérique” e “L’Europe n’est plus”… o bigodinho, incompreensível para da sua unidade política, que foi feita à força.
momento, o que justifica o exército português Digamos que não é uma coisa muito os alemães, que consideraram que já E isso gerou todas as consequências que nós
já não é o Império que não temos, como não agradável de ler. expiaram a culpa. Tudo isto é perigoso? conhecemos.
temos inimigos à vista na Europa e o perigo da Nem uma, nem outra. É, sobretudo, um recuo a diversos níveis a uma A França tem esse privilégio de ser o para-

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digma da nação tal como a Revolução Francesa Quer fazer uma Europa alemã, como E a França tem dificuldade em adaptar-se.
exprimiu… Aliás, só há dois paradigmas da His- agora se diz? Ainda mais porque pensa que foi ela que deu
tória europeia: o inglês e o francês, igualmente Não creio. Nunca o conseguiu fazer. A nossa nascimento à própria América.
importantes, um e outro. Na ordem ideológica, geração pensou que, depois do que aconteceu, Esperava que François Hollande se fosse
digamos assim, o paradigma francês da Revolu- que a França e a Alemanha iriam entender-se abaixo tão depressa?
ção marcou a Europa e o mundo inteiro. Mas a melhor do que se têm entendido. Neste mo- Não, confesso que não. Mas a senhora [Valérie
Inglaterra, empiricamente, que conseguiu uma mento, à mínima dificuldade, vêm sempre as Trierweiller, mulher do Presidente francês], A verdade é
prática política que foi planetária, envolveu o mesmas coisas ao de cima. Ultimamente, a pro- tão linda que é, também não creio que ajude que quando o
mundo inteiro…
Ora, a Alemanha não pertence nem a um
pósito de uma exposição, a primeira que os
franceses fazem sobre a pintura alemã...
muito. É muito utópica. É um bocadinho in-
controlável.
Monnet dizia
nem a outro destes dois paradigmas. Foi, até Que está no Louvre. François Hollande ainda não conseguiu que era pela
há pouco, um problema para ela própria. E de
repente, com grande espanto nosso, consegue
E que eu vi. Os alemães não gostaram nada.
Porque aquela visão franco-francesa da Ale-
vestir o fato dos presidentes da França,
que é um fato especial?
cultura que
sair de um caos que poderia tê-la feito desapa- manha é também uma cegueira da parte dos Até agora, não. Podem as coisas mudar e ainda se devia ter
recer do mapa. Claro que intervém aqui uma franceses, que deviam ser mais finos para com- tem algum tempo. Mas, por enquanto, temos começado,
terceira força, que já estava presente desde a preenderem que há outra Alemanha. de confessar que o paradigma do socialismo
Primeira Guerra e que são os Estados Unidos. Diferente daquela que está nessa francês não está a funcionar como esperáva- enganava-se.
São eles que, por necessidade estratégica, exposição, apenas com a pintura até mos. Curiosamente, a única expressão disso foi A cultura
mantêm a Europa a flutuar. Primeiro, o Plano
Marshall. Depois, a frase de Kennedy junto ao
1939.
O problema é que não há cidadezinha france-
o “mitterrandismo”. Mitterrand fez exactamente
o contrário. Primeiro era outra vez a Revolução
separa. Os
Muro de Berlim, que quer dizer que a questão sa que não tenha o seu monumento aos mor- Francesa, pelo menos idealmente, como para- intelectuais
fundamental é deter o perigo soviético.
Só que os Estados Unidos estão
tos da guerra. E se formos ao lado alemão, é a
mesma coisa: lá estão os cemitérios. Essa é a
digma. Ao fim de um ano, viu que não funciona-
va e entrou na realidade. Durou 14 anos.
não querem
hoje muito menos interessados em tragédia europeia da qual Hitler foi a expressão Curiosamente, Sarkozy, que não é um exem- perceber
“aguentar” esta Europa. patológica. plo do paradigma francês, que não passou por isso porque
Não precisam. Mas também não querem perdê- É a tragédia europeia que pensávamos aquelas escolas todas e, do ponto de vista das
la. As pessoas não perceberam que, depois da que estaria definitivamente superada. suas origens, parece uma espécie de estrangei- pensam que
Segunda Guerra, a Europa ficou entre a União Mas não está. A verdade é que quando o Mon- ro, não fracassou tanto como se diz. Hollande são eles os
Soviética e os Estados Unidos, como que entre
parêntesis. Protegida pelo guarda-chuva nucle-
net dizia que era pela cultura que se devia ter
começado, enganava-se. A cultura separa. Os
chegou ao poder em função da crise e está,
agora, com grandes dificuldades. E o enten-
donos da
ar americano, sem projecto próprio. E cada intelectuais não querem perceber isso porque dimento com a Alemanha foi sempre difícil, cultura. A
nação, nestas circunstâncias, reflui para aquilo
que lhe dá uma segurança mínima, que vem
pensam que são eles os donos da cultura. A
cultura marca as diferenças.
é sempre difícil.
Com os anteriores presidentes, havia
cultura marca
lá do fundo da História e que se acentuou no Mas o que se passa com a França, esse uma fase inicial difícil mas, depois, as diferenças
século XIX. A Europa é constituída por nações. país onde vive e que tão bem conhece? aquilo funcionava. Agora não parece
Um dos melhores livros que eu conheço sobre Estamos todos preocupados com a que esteja a acontecer. E a Europa, sem
a Europa chama-se Europas. De facto, qual é o França. François Hollande era uma um entendimento entre Paris e Berlim,
modelo europeu? São nações que se digladia- esperança para contrabalançar… não vai a lado nenhum.
ram, ou não, durante muitos anos, mas que têm O que eu penso é que, no fundo, o problema Não vai a lado nenhum, nem nós queremos que
laços que mesmo as guerras alimentam. E de da Europa é mesmo o problema da França. vá. Pensávamos que esta entente franco-alemã,
repente cada nação volta a funcionar segundo Que não consegue adaptar-se à nova realidade única na Europa, iria substituir a outra entente
os seus valores próprios. A Alemanha é visivel- porque vive numa espécie de nostalgia de uma da França com a Inglaterra. Esta entente era
mente aquela que, depois de atravessar o que revolução interminável e intermitente, que eles filha de uma grande rivalidade histórica mas,
atravessou, recomeça com uma nova vida… pensam que é um modelo que continua a ser ao mesmo tempo, tinha cumplicidades. No pro-
Quando visitei a Alemanha pela primeira exportável. jecto colonial dos dois povos — a Inglaterra nos
vez, há muitos anos, era como se entrasse num E que já não é. sítios bons e a França no deserto —, lá estavam
mundo de silêncio. A Alemanha não se ouvia, Os limites dessa grande Revolução, provavel- os dois a partilhar a África. A Alemanha chegou
não tinha voz, sobretudo para qualquer coisa mente a única que merece esse nome, estão tarde para a História, pelo menos para essa
que referisse aquela desgraça. Em 1954, a Ale- hoje visivelmente atingidos. Já teve o impac- história colonial e imperial.
manha jogou a final do Campeonato do Mun- to que deveria ter, mas esse paradigma já não Uma outra coisa fundamental é que a Europa,
do — creio que foi com o Uruguai — na Suíça. funciona. pela natureza das coisas, produziu um dos acon-
Estava um dia frio. Eu estava a ouvir o relato até A França está, de algum modo, amarrada por tecimentos mais importantes do século pas-
que se viu que ela tinha ganho. E a Alemanha esse passado glorioso que não passa, mas que sado, que foi precisamente a descolonização.
saiu para a rua para falar. Enfim, para falar. já é mesmo passado. Até porque, na História Foram séculos e séculos que davam à Europa a
O pesadelo absoluto tinha acabado para eles. contemporânea propriamente dita, a França superioridade no acesso às matérias-primas e
A importância política desse jogo foi enorme. sofreu a maior derrota que um grande país eu- que eram uma mais-valia para alimentar a eco-
É essa Alemanha que, no fim de alguns anos, ropeu poderia sofrer. Um país com a categoria nomia. Isso acabou. A Europa agora está nua.
é a primeira potência europeia. Já ninguém es- da França, que dominou praticamente a Euro- Perante um mundo que é irreconhecível.
perava por uma coisa dessas. De algum modo, pa inteira e que, de repente, foi invadido num Se fosse ela um actor político à altura da sua
a Inglaterra tem facilitado isso: embora esteja mês, obrigando-o a sucumbir diante daquela própria realidade, continuava a ser de primeira
com um pé dentro e dois de fora, não se quer força enorme chamada Alemanha. Como se uns grandeza. O mundo inteiro, se pudesse, vinha
implicar na Europa, não quer jogar na Europa. bárbaros de uma nova espécie a invadissem. para a Europa. Talvez não o mundo inteiro, mas
Porque a sua história é de um tempo universal. E isso custa a superar? Mas também muito mundo. O problema é que essa Europa
Veio de longe e está em toda a parte. A Europa não consegue adaptar-se a este mundo não tem sujeito. E, se tem um sujeito, é em fun-
também está em toda a parte, mas a Alemanha completamente diferente. ção das suas mitologias próprias que actuaram
não é dessas nações europeias que estiveram Não consegue superar. Há uma incompreensão no passado. A Alemanha chegou mais tarde,
em toda a parte. Só Portugal, um pouco a Fran- total disso. Além disso, a ideologia propriamen- para que fosse ela a resumir a História euro-
ça, a Inglaterra e a Holanda. Os outros são con- te francesa, a famosa excepção francesa, tem peia. Hitler para mil anos. Perdeu. Também as
tinentais, são a Europa que não é atlântica. o mesmo papel da religião nos países em que coisas tinham sido diferentes se Napoleão não
O que fazer da Alemanha é de novo a ainda é o referente social mais importante. Na tivesse perdido em Waterloo.
grande questão? França, o papel da religião é fraco, mas existe Entretanto, olhamos para a frente e não
É, de novo. Ou melhor, a pergunta é outra: o o ideológico: o laicismo funcionou como uma se vê grande coisa.
que é que a Alemanha vai fazer dela própria. religião muito activa. Toda a cultura francesa Vemos só a continuação disto. O problema não
Nós não temos a veleidade nem a pretensão desde finais do século XIX até hoje é em tor- é haver Europa, é haver Europa a mais. Cada
de conseguir que a Alemanha faça isto ou faça no do paradigma da escola laica que formou a nação europeia é, no seu género, uma Europa,
aquilo. República, ao mesmo tempo igualitária e que uma maneira própria de ser Europa. Mas a Eu-
E o que pensa que ela quer fazer dela rege a promoção social. Mas que agora se vê ropa tem uma cultura, uma tradição milenária
própria? Quer continuar europeia? confrontada com uma coisa inesperada: é obri- e o nível de vida, depois destas desgraças todas,
Não pode ser outra coisa. Se nos colocarmos gada a reconhecer que o laicismo à francesa ainda é muito alto.
do ponto de vista alemão, a pergunta é: o que tem os seus limites. Eles pensam que é expor- Como olha para os efeitos desta crise
é que a Alemanha quer fazer da Europa da qual tável, mas não é. Hoje o modelo que funciona europeia nas próprias democracias? A
ela é o centro, do ponto de vista do seu poder não é o modelo francês. O modelo universal emergência de partidos anti-sistema e
económico? chama-se americano. anti-Europa são um mau sinal?

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É uma crise, porque o paradigma democráti- de sucesso. E, para o país, indirectamente não Exacto. O nosso destino é um destino euro- À espera que isso mudasse muita coisa.
co positivo não é aquele que é representado foi uma perda substancial. Mas agora é diferen- peu, não há outro. Ninguém nos faz outro. E, A América tem essa coisa que é uma espécie
pela tradição das grandes nações que são a te. É uma perda muito grande. no conjunto da aventura europeia, o nosso de juventude contínua, com contradições enor-
Inglaterra, de um lado, e a França, do outro. Parece que não conseguimos sair deste destino nem foi dos mais dramáticos nem dos mes. Eu não queria lá viver, mas eles avançam.
É aquele que é representado pela nação que círculo vicioso. mais trágicos. Não fomos retalhados, dividi- Nós, aqui, estamos cercados por vários anéis.
sucedeu como império a essas duas e que se Tanto a Espanha como Portugal, durante sécu- dos, ocupados como a Polónia. Para além das Acontece que a Europa foi sempre um conti-
chama América. E é esse modelo americano los, viveram da não Europa. Eles da América invasões francesas, que eram um fenómeno a nente que se discutiu. A Europa também foi,
que é o modelo implícito no comportamento Latina e nós do Brasil. Que, por razões conhe- que ninguém escapou… até à Reforma, um continente de fé orgânica.
planetário que nós conhecemos. A América cidas, não foi objecto imediato da ambição dos Mas que os ingleses acabaram por Mas mesmo na história da Europa religiosa, ela
está em toda a parte. Está metida em tudo e outros países europeus. Se, por acaso, tives- resolver. nunca deixou de discutir o seu estatuto huma-
não se sabe bem porquê. se acontecido que, nos princípios do século Isso. E acabou. Agora, o país é pobre. Não havia no, metafísico e o seu estatuto histórico. Gerou
Mesmo assim, foram eles que elegeram XVI, se tivesse encontrado ouro facilmente à aqui grandes coisas. E foi tão pobre que fomos todos os paradigmas possíveis numa espécie de
Barack Obama, o que não é pouco. beira do Atlântico, aquilo não teria sido para ao Oriente buscar qualquer coisa que nos im- revolução permanente. Já era assim na herança
É verdade. É verdade. Esse é um dos maiores portugueses. Holandeses, ingleses, franceses pôs ao mundo mais de um século e meio, o grega, foi aumentado pelo cristianismo. Porque
milagres da história americana. Mas talvez se- ter-se-iam precipitado, como quando foram que não é pouco. O centro de Portugal era aí. o cristianismo é um convite a uma subversão
ja um daqueles milagres que não se repetem para a Califórnia quando o ouro apareceu lá. Depois chamou-se Bahia, Rio de Janeiro. contínua e isso é um factor dinâmico.
tão facilmente. Ele não vai acabar como en- No Brasil, andaram durante dois séculos a pro- Mas tenho de confessar-lhe que estou a viver Há um filme extraordinário que considero
trou. Não conseguiu resolver um certo núme- curar o ouro e não encontraram… isto como uma espécie de pesadelo. Acordo uma espécie de requiem deste nosso destino
ro de problemas, porque, na verdade, esses Há o risco de cairmos de novo na a pensar que isto vai passar, porque também europeu. O Passo Suspenso da Cegonha [feito
problemas já vêm desde Eisenhower, quando tentação de pensar que o Brasil ou temos de criar algumas defesas. Mas sempre no início da guerra de desintegração da Jugos-
denunciou o complexo militar-industrial que Angola são a alternativa à Europa? com esta ideia de que alguém nos vai resol- lávia] que é uma história que se passa num lu-
mandava na América. Ele sabia do que estava Como se estivéssemos ainda nesse tempo. Mas ver isto. E esse alguém tem um nome: Euro- gar de fronteiras, sombrio, à procura de uma
a falar. isso não nos leva a parte nenhuma. Valemos pa. Não este ou aquele país, mas a Europa no identidade, uma coisa de crepúsculo. É uma
Voltando a Portugal, escreveu que no mundo o que valemos na Europa. E eles, seu conjunto. Neste momento, as coisas em boa imagem. É um filme europeu, não é dessas
quando aderiu à União Europeia no Brasil, ligam-nos pouco. É uma coisa mais França não estão a correr bem, o que me pre- coisas à americana.
conseguiu finalmente pertencer a essa lírica. O problema é que, no século XX sobre- ocupa. É por excesso de utopismo e em fun- Pessimista. A América não tem isso.
“Europa verdadeira” que fica para além tudo, com o Getúlio [Vargas], o Brasil entrou ção de mitos que já não funcionam. A França E, se tiver, faz logo outro filme a dizer o con-
dos Pirenéus. Esta crise diz-nos que, num tipo de projecto à americana. Querem pensa que ainda tem alguns “trunfos” que já trário. Os americanos já estão a viver no futu-
quando estamos quase, quase a chegar à ser os americanos do Sul. O engraçado é que não tem. Mas, pelo contrário, a Europa tem ro quase há meio século. Todas as ficções que
verdadeira Europa, vimos por aí abaixo? o paradigma da Península Ibérica inverte-se do “trunfos” fantásticos. Um país como a França eles fazem são de autodestruição, já destruíram
Não foi só connosco que isso aconteceu. outro lado. É o Brasil e a língua portuguesa que anda em competição ao nível dos aviões com Nova Iorque aí umas 10 ou 20 vezes. Isso pode
Mas parece o nosso destino, nunca querem dominar a região. É uma coisa quase a própria América. Ora, imagine-se o que seria parecer uma coisa mórbida, mas é preciso ter
chegar à verdadeira Europa. mecânica, quase natural. se estivessem a funcionar com a Inglaterra e muita confiança no futuro para brincar com
Utilizei muito essa ideia quando, pela mão de Mas nós não temos de esperar grande coi- com a Alemanha? A Europa dava cartas. Mas isso. E para ter público. Mas eles têm consci-
Mário Soares, aderimos à Comunidade, em sa daí. Nem temos a dimensão da cidade de não conseguem. Continuam a funcionar como ência de que são os primeiros da classe. Nós
1986. Era como quem entra numa casa rica São Paulo e é natural que eles não consigam nações do século XIX. Vão disputar o espaço da estamos, aqui, a atravessar uma fase marca-
com a qual tínhamos sonhado desde sempre. ver-nos. Não temos massa crítica para os inte- China. Vai a Alemanha com os seus comboios da sobretudo pela sua natureza inesperada.
Não adivinhávamos que a Europa, alguns anos ressar. Ficam muito encantados quando vêm e, depois, vai a França com os seus, para ver O que isto quer dizer é que não sabemos em
depois, iria sofrer este abanão terrível e que aqui, que lhes parece uma coisa familiar. Fa- quem ganha. Continuam a funcionar como se que tempo estamos.
nós ficávamos outra vez… lamos a mesma língua, o que já é uma coisa fossem nações como no século XIX. Passa-se Para voltar ao seu texto de 1975, nós,
A olhar para nós próprios como um fabulosa, que é uma coisa que já nos ultrapassa qualquer coisa aqui. Não há uma liderança eu- aqui, discutimos o quê?
país que não consegue realizar as suas porque já não somos os sujeitos dessa língua, ropeia digna desse nome. Abrimos o jornal, vem aí o 13 de Maio [esta
aspirações? mas partilhamos essa língua. O nosso futuro E começa a perder-se o sentimento de entrevista aconteceu no dia 10], e lá vai tudo
É verdade. A descolonização foi um drama enquanto língua portuguesa está assegurado destino comum. para Fátima rezar para que esta desgraça aca-
que metemos debaixo do tapete mas que con- pelo Brasil. Não há uma ideia europeia. O subtítulo de be. Mais uma vez, fiamo-nos directamente num
tinuou. É um membro amputado. Não era só O resto, desculpe mas vou ler-lhe um excerto L’Europe introuvable era “para uma mitologia milagre concreto.
uma mitologia salazarista, vinha já dos finais que está na contracapa deste livro e que diz europeia”. No sentido do Pessoa. No sentido O milagre, sabemos que só pode vir da
do século XIX. De repente, ficámos no nosso muita coisa. de um projecto e de uma ideia. O [antigo Presi- Europa. Mas isso não justifica tudo o
cantinho. “Portugal é, neste momento, um país nu. dente francês que presidiu à Convenção para a que aqui se passa.
E depois virámo-nos para a Europa… Quer dizer, um país sem nenhum álibi históri- Constituição europeia] Giscard d’Estaing, com Quem mandou neste país nunca teve de dar
Que era a saída. co, entrincheirado na sua confinada faixa atlân- essa coisa da Constituição europeia, quis criar grandes contas. Para além de uma pequena
E porque achávamos que a Europa nos tica, sem possibilidade de sonhar outro sonho essa mitologia. Raízes gregas? Não serviam, elite, não davam contas a ninguém. Quando
ia proteger. que não o seu próprio, caseiro. Nós passámos porque tinham escravos. É uma espécie de alguém tem um pequeno lugar de comando,
Sim. Em primeiro lugar, porque íamos para séculos a fugir de nós mesmos enquanto ape- Maio de 68 contínuo. As raízes cristãs? Arreda é logo um chefe. Aqui, tudo é resolvido pela
um espaço que tinha já uma história democrá- nas portugueses. Fuga simultaneamente estelar Satanás… Assim, como é que a ideia de Europa proximidade: ou se tem conhecimentos ou
tica. Foi o primeiro reflexo de Mário Soares: e criadora que não permitiu nunca que nos pode funcionar? A laicidade funcionou quando não se tem. “Quem não tem padrinhos morre
amarrar-nos à Europa propriamente demo- encontrássemos connosco mesmos. Fomos era, no conteúdo, a substituição directa de uma burro.”
crática e garantir a democracia. A segunda, no sempre outros. Esta fuga é agora impossível. religião cívica. O Jules Ferry, a escola, tudo isso Hoje nem sabemos o dia de amanhã, o
consulado do actual Presidente, foi a quanti- (…) A nossa aventura histórica é a de um povo funcionou quando as pessoas consideravam que é um pouco mais complicado.
dade de dinheiro que veio para aqui. E agora que viveu sempre em bicos de pés, acima das isso como a essência de uma tradição que eles Sobretudo, porque vivemos, desde o assim cha-
estamos a viver este reflexo de ressentimento suas possibilidades reais, esperando tudo de criaram. Mas já se esgotou há muito tempo. mado Século das Luzes, numa ideia de pro-
que é normal, de quem se sente defraudado. E milagres que às vezes aconteciam. (…) Quando Hoje há a crise da própria escola, ali e em toda gresso em que o dia de amanhã seria sempre
não sabemos quem haveremos de culpar. Foi o os desastres aconteceram, descobriu-lhe logo o a parte. Nós exportámos o nosso modelo quer melhor do que o de hoje. E é verdade num certo
Michel Roccard que disse uma vez que a Europa antídoto, criando a especialidade lusitana por para a América do Norte, quer para a Améri- número de coisas. Se fizéssemos só a História
não podia albergar toda a miséria do mundo. excelência de transfigurar os alcáceres-quibires ca do Sul e, hoje, são os master e os MBA que com os progressos na medicina, eles são de tal
Isso hoje aplica-se um pouco à Alemanha… O reais em aljubarrotas fictícias.” De quando é eles nos mandam para aqui, para o espaço das ordem que são milagres contínuos. Mas não é
problema é que os chamados ricos também este texto? catedrais onde se criaram as primeiras univer- só isso. A Europa está a fazer uma depressão.
não estão ao abrigo da crise, que é o que está Podia ser de agora mas é Maio de sidades. Agora, recebemos lições dos Estados Ela é o maior museu do mundo e é ao ar livre.
a acontecer. 1975. Por isso eu lhe perguntava se Unidos de como as coisas se fazem. Esta Europa E isso ainda a faz viver. É um capital fantástico
E nós? Estamos um pouco sem rumo? conseguimos sair desta armadilha? tornou-se um museu de si mesma. que não há em parte nenhuma. Mas, apesar
Nós tivemos sempre saídas. Foi por isso que Somos muito pequenos e, ao mesmo tempo, Provavelmente, o resumo de tudo isto — e disso, não há uma identidade europeia. Há,
saímos para o mar à procura de qualquer coisa se olhar para os destinos dos países europeus essa é uma mudança de paradigma total — é sim, um maior conhecimento da Europa pelas
que fosse melhor do que ficar neste país. que são mais ou menos da nossa dimensão, é que a Europa que esteve no mundo e que foi novas gerações, mas que é um conhecimento
A emigração nos anos 60 foi a fuga uma espécie de milagre quase absoluto como o mundo, já não está na Europa, está inscrita físico, que já não passa pela literatura mas pela
que encontrámos. Agora voltamos a este cantinho se conseguiu preservar. Acho que em qualquer coisa mais vasta que é esta cultura música. Mas essa identidade é menos europeia
encontrá-la, com a diferença de que foi por termos saído lá para fora, e o “fora” era globalizante, que não é uma abstracção, que es- e mais universal. Veja aquela coisa da Coreia…
eram os pobres a sair e agora são os mais importante do que o “dentro”. Nós come- tá num sítio que se chama América. Nós somos [música Gangnam style] Como é possível? Em
diplomados. çámos a existir quando chegámos ao Oriente, todos americanos, sabendo ou não sabendo, culturas tão profundas como é a nossa.
E essa é uma perda maior. A outra acabou por se não, teríamos sido normalmente incluídos gostando ou não gostando. Veja que vivemos É mau sinal.
ser uma riqueza para o país. As guerras de Áfri- na Espanha. Como a Catalunha. Raspámo-nos a eleição do Obama como se fosse a eleição do É muito mau sinal. É o alinhamento por bai-
ca foram sustentadas pelo dinheiro que esses para outro sítio. rei da Europa que não existe. Ou até do mundo. xo. Mas a gente nova vive agarrada à música,
emigrantes mandavam para cá. Essa gente que Agora temos de continuar a apostar na E vivemos esse sentimento da maneira mais o que é muito diferente das coisas culturais.
foi lá para fora acabou por ser uma emigração Europa, apesar de tudo. generosa possível, quase de cinema. Mas é o que há.

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