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Texto Complementar

Referência Bibliográfica

ROQUE, Tatiana. História da Matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012, p. 192-195.

“Singularidade árabe
O islã nasceu em Meca e se estendeu, muito rapidamente, em direção ao Egito e a
territórios que constituíram a antiga Mesopotâmia. Seu domínio incluía, por exemplo,
Alexandria, que continuava a possuir uma atividade intelectual considerável. As ciências
babilônica e egípcia deixaram poucos registros, mas é razoável pensar que os conhecimentos
práticos foram transmitidos de geração em geração pelos habitantes do lugar.
Jens Høyrupe1 cunhou o termo “cultura subcientífica” para valorizar a existência de
um substrato anônimo que incluía procedimentos, técnicas e práticas usados no dia a dia e
que se estendia por toda a região na fase imediatamente anterior ao advento do islã. Apesar
de existirem raras evidências textuais, alguns problemas e técnicas comuns na época
mantinham parentesco com a matemática dos babilônios e dos egípcios, como as frações
unitárias. Além disso, alguns problemas recreativos, propondo desafios, parecem ter
atravessado os séculos. Seria o caso, por exemplo, do jogo do tabuleiro de xadrez, que
consiste em perguntar quantos grãos de arroz obteremos se colocarmos um grão na primeira
casa do tabuleiro e duplicarmos sucessivamente o número de grãos até chegar à última casa.
Podemos conjecturar a existência de uma matemática prática e recreativa, em
continuidade com as culturas babilônica e egípcia, que se espalhava pelo Oriente e pelos
territórios do império romano durante a Antiguidade tardia e que provavelmente estava bem
estabelecida nas comunidades comerciais das regiões cobertas pela expansão islâmica. Em
textos árabes, há evidências de que essa cultura possuía um prestígio social inferior ao nível
do conhecimento propriamente dito, mas era frequente os matemáticos retomarem problemas
do senso comum com o fim de dar-lhes um tratamento mais sistemático. A diferença se
estabelecia entre aqueles que se contentavam em reproduzir as práticas comuns e os que
refletiam sobre tais procedimentos.
Essa tradição subcientífica podia ser dividida em técnicas de cálculo, usadas no
comércio, e geometria prática, empregada por arquitetos e artesãos. Juntamente com a cultura
científica grega, essas diferentes tradições teriam convivido no período pré-islâmico, porém
sem alcançar o grau de desenvolvimento e criatividade que marcou os primórdios da época
de ouro do islã, iniciada no século IX. Podemos chamar, portanto, de síntese islâmica a
conscientização sobre a relevância e as potencialidades da matemática prática e da
matemática teórica quando aplicadas a problemas, métodos e resultados uma da outra.
Uma primeira explicação para essa síntese é cultural – reside no fato de conviverem,
sob o domínio do islã, povos distintos, oriundos de diferentes tradições e de diferentes
estratos sociais. Essa convivência, bem como a circulação de saberes e sábios pelo território,
pode ter quebrado o isolamento em que viviam essas culturas no estágio precedente e criado
um ambiente propício ao aprendizado, logo, ao pensamento. Houve uma primeira fase
bastante tolerante do islã, em que se permitia a convivência dos muçulmanos com os judeus e
1
Grande parte desta seção se serve de seu artigo “The formation of Islamic mathematics. Sources and conditions”.
os cristãos. Do ponto de vista do pensamento, essa tolerância também era sentida, pois, ao
lado das ciências sagradas, constituídas pela teologia e pela jurisprudência, estavam as
chamadas ciências estrangeiras, recebidas dos gregos. Estas eram constituídas por ramos do
conhecimento tidos como auxiliares que podiam servir à ciência tradicional, incluindo a
matemática e a astronomia.
Alguns problemas práticos exigiam o desenvolvimento da matemática, caso das
heranças. Toda a família tinha direito a uma parte da herança, mas não de modo igualitário.
Eram usados métodos aritméticos sofisticados que passavam por cálculos com frações, e
ainda o método da falsa-posição, para encontrar uma quantidade desconhecida.f Teriam
surgido daí os primeiros problemas, enunciados de modo retórico, que são equivalentes ao
que designamos hoje por meio de uma equação do segundo grau.
No século IX, o fundamentalismo islâmico confrontou-se com uma sociedade em
transformação na qual a autoridade religiosa não era exercida por uma igreja. As decisões
eram tomadas por pessoas engajadas na vida prática, favorecendo uma integração entre
ciência e religião. Isso acontecia de um modo singular, pois a legitimação do interesse
científico passava pela conexão dessa religião com as preocupações práticas presentes na
vida social, impedindo a segregação entre a ciência e as necessidades diárias. O matemático
não se satisfazia em permanecer no nível do pragmatismo; ele devia ir além, para produzir
um conhecimento mais sofisticado. Mas não o fazia por considerar que a teoria estivesse
acima das aplicações, ou que a matemática pura e abstrata pudesse ficar poluída pelo contato
com as opiniões e as carências do dia a dia. Mesmo os cientistas mais refinados se
preocupavam com a aplicação de seus conhecimentos e enxergavam a teoria e a prática como
indissociáveis. Como afirma Høyrup, a elaboração teórica sistemática do conhecimento
aplicado foi uma criação específica do mundo islâmico. Esse traço, que não era
compartilhado pelas matemáticas mais antigas, também foi marcante nos princípios de
ciência moderna.
Um outro fator de desenvolvimento da matemática árabe, mais conhecido, são as
traduções das obras gregas, que começaram a ser feitas por volta do século VIII. Essas
iniciativas são atribuídas a indivíduos ou grupos de estudiosos que se interessavam
voluntariamente pelos escritos encontrados nos territórios conquistados. As instituições de
ensino eram as madraças, dedicadas à difusão do conhecimento, mas não à sua produção.
Tais escolas eram mantidas por fundações piedosas e deviam ensinar os textos canônicos,
mantendo a tradição do saber sagrado. No entanto, nesse primeiro momento, várias delas
apoiavam também as ciências estrangeiras. No período racionalista, entre os séculos IX e XI,
houve ainda uma instituição oficial importante, fundada pelo califa em Bagdá e conhecida
como Casa do Saber. Aí existia uma biblioteca na qual se colecionavam e traduziam
manuscritos gregos. Além desta, havia algumas outras bibliotecas e observatórios em que
também era possível estudar as ciências estrangeiras.
Nessa primeira fase do império muçulmano, a filosofia, a matemática e a astronomia
adquiriram um lugar privilegiado. Elas eram praticadas por homens cultos que já viviam
nesses locais e falavam várias línguas. A atividade intelectual era mais intensa em alguns
centros que já possuíam uma tradição, como Alexandria, mas também em outros lugares.
Muitos desses pensadores conheciam os textos antigos, que podiam ler na língua original ou
em uma tradução anterior para uma das línguas locais, como a siríaca e a persa. A instituição
do poder muçulmano, unificando diversos territórios antes fragmentados, criou novas
demandas e alterou a dinâmica de circulação desses saberes.
Ahmed Djebbar2 mostra que o fenômeno de tradução não foi instantâneo, nem seguiu
uma ordem racional. Não havia nenhuma política central relativa ao saber e ninguém decidiu
impetrar um programa de tradução das obras científicas antigas e confiá-las a uma equipe de
tradutores. As traduções seguiram uma dinâmica complexa e descoordenada. Os primeiros
tradutores encontravam obras antigas e propunham um texto em árabe contendo vários erros,
pois não existiam correspondentes em árabe para os termos científicos que constavam dessas
obras. Muitos eram os casos, portanto, de retraduções ou mesmo de reconstruções dos textos
antigos, o que pode ter propiciado a emergência das primeiras contribuições originais dos
pensadores árabes.
Em um primeiro momento, as obras de medicina e filosofia despertaram um grande
interesse, mas os árabes traduziam praticamente tudo o que encontravam, sem critério de
seleção rígido. Aos poucos, os trabalhos de Aristóteles se destacaram e sua obra dominou as
discussões filosóficas entre os séculos IX e XIII. Essa influência, no entanto, não foi
necessariamente positiva para a matemática árabe, pois impunha limites, por exemplo: o
“um” não devia ser considerado número; o movimento devia ser banido das demonstrações
geométricas; devia ser respeitada a homogeneidade das grandezas. Ou seja, a influência
filosófica impunha um padrão geométrico à álgebra, ainda que essa restrição não fosse
significativa. As práticas se desenvolviam sem muita preocupação com cânones de ordem
normativa. Não é difícil imaginar que a tradução das primeiras obras de astronomia e
matemática, bem como dos primeiros escritos originais, tenha motivado, automaticamente, a
tradução de novas obras, dando origem a uma prática importante de tradução até a
constituição de um corpo razoável de obras científicas.
Entre os séculos VIII e XII, a cidade de Bagdá era um dos maiores centros científicos
do mundo, e seus matemáticos tinham conhecimento tanto das obras gregas quanto das
orientais. A partir do século IX, essa cultura evoluiu para uma produção matemática original
que tinha na álgebra um de seus pontos fortes. A grande influência das obras clássicas não
impediu o surgimento de uma matemática nova, e o matemático mais ilustre desse século foi
AlKhwarizmi. No século XI houve uma dogmatização do islã e os racionalistas foram
vencidos. O apoio às ciências estrangeiras, nas madraças, deixou de existir e a ciência
começou a decair. A reconquista de Toledo, Córdoba e Sevilha, no século XII, fez com que
os núcleos científicos dessas cidades andaluzas migrassem para um espaço muçulmano mais
acolhedor para a sua cultura. Tal mudança impulsionou o desenvolvimento da matemática e
da astronomia no Magreb entre os séculos XII e XIV.
Fala-se muito na matemática produzida na região de Bagdá ou no Irã, mas desde os
anos 1980 a história da matemática tem se dedicado também às práticas matemáticas
desenvolvidas no chamado Ocidente muçulmano, que inclui a Andaluzia e o Magreb. Esses
pesquisadores, dentre os quais Ahmed Djebbar se destaca, procuram mostrar que a
recuperação dessa história esquecida pode ter uma função política – a de favorecer o
reconhecimento de uma cidadania mediterrânea que permita pacificar os conflitos existentes
na região. Entre os séculos XII e XV, Marrakech era um polo de desenvolvimento científico,
unificando as culturas africanas e europeias localizadas em torno do Mediterrâneo, sem
distinção entre muçulmanos, judeus e cristãos. Além de enfatizar contribuições matemáticas
antes desconhecidas, como a introdução do simbolismo algébrico, essas pesquisas recentes
analisam o papel dessas regiões no fenômeno de circulação da produção matemática em
direção ao restante da Europa, por meio de traduções para o latim e o hebraico. Essa direção
de pesquisa busca desconstruir o viés eurocentrista do relato tradicional, explícito nos

2
A. Djebbar, Une histoire de la science arabe.
escritos dos primeiros historiadores da matemática, que eram matemáticos de profissão e
viam com preconceito a contribuição árabe:
As artes e as ciências já se fragilizavam quando o Egito foi conquistado pelos
árabes, e que o incêndio da famosa biblioteca sinalizou a barbárie e as longas
trevas que envolveram o espírito humano. Contudo, esses mesmos árabes,
depois de um ou dois séculos, reconheceram sua ignorância e iniciaram, eles
próprios, a restauração das ciências. Foram eles que nos transmitiram seja o
texto, ou a tradução em sua língua, dos manuscritos que escaparam ao furor
fanático. Mas essa é, aproximadamente, a única obrigação que temos para
com eles.3
Sentenças como esta nos esclarecem mais sobre o pensamento de seu autor do que
sobre os trabalhos árabes. A seguir, nos concentraremos na álgebra, mas é importante
lembrar que, no mundo árabe, a astronomia levou a um grande desenvolvimento da
trigonometria, bem como de uma geometria teórica.”

3
M. Chasles, Aperçu historique sur l’origine et le développement des méthodes en géométrie, particulièrement de celles
qui se rapportent à la géométrie moderne, p.51, tradução minha.

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