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ANA CLÁUDIA CONSTANTINO

RESENHA CRÍTICA :
Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a
Diderot. A Classificação do Conhecimento:Currículos,
Bibliotecas e Enciclopédias [cap. 5].

Londrina
2021
2021
BURKE, P. A Classificação do Conhecimento:Currículos, Bibliotecas e Enciclopédias
[cap. 5]. In: BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutenberg a
Diderot. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

Para o autor desta obra “o mundo se forma a partir do que nós sabemos”, e
partindo dessa premissa temos que, com cuidado, avaliar os critérios atuais de
classificação como reflexos dos conceitos que a sociedade exprime, e assim também,
quando revisitamos períodos específicos de algumas construções da classificação.
Tais sistemas estão sempre em transformação e acompanham os avanços e
pensamentos dos períodos que os regem, portanto para uma primeira análise é
preciso verificar a abordagem antropológica do conhecimento e compreender o
pensamento e modo de ver o mundo.
Aqui destacamos a Europa entre os períodos do Renascimento e do
Iluminismo. No Iluminismo o homem se concentra no conhecimento racional, sua
origem e destino. Por esse pensamento, vemos no início da Europa moderna
maneiras diversas de se classificar o conhecimento que se dividiam conforme suas
especificações e ‘ importâncias’, todas elas elitistas e hierárquicas que favoreciam
todas as áreas voltadas à racionalidade e diminuíram outras formas de conhecimento.
Temos como alguns exemplos dessas áreas diminuídas: o conhecimento que se
dedicava à prática (ou seja, o trabalho manual que trazia o conhecimento de artesãos,
artistas, construtores ou qualquer outra função atribuída ao baixo status social), o
conhecimento feminino, o conhecimento popular e até mesmo o conhecimento
especializado, pois quanto maior o conhecimento geral das coisas, mais valoroso era
esse ser.
Uma das primeiras divisões que destacamos é o conhecimento teórico e
prático, o teórico como superior, embasado nos conceitos e filosofias e o prático como
trabalho braçal e sem muito esforço intelectual. Uma segunda distinção é o
conhecimento público e privado, ou seja, nem todo conhecimento era livre, muitos
destes restritos a grupos específicos, isolados e às vezes cifrados, de modo com que
esse conhecimento fosse de raro acesso. Como exemplo temos o período da Reforma
da Igreja que contestava a forma de acesso do conhecimento religioso e desejava que
fosse compartilhado com os leigos, estimulados também pela invenção da imprensa.
Aqui esmiuçamos o conhecimento acadêmico como uma grande fonte das
classificações e influências futuras às bibliotecas, currículos acadêmicos,
enciclopédias e museus.
No século XVI, como representações do conhecimento foram construídos
sistemas inspirados em árvores e seus galhos que seguiam uma hierarquia dentre os
temas principais e suas ramificações. Essas estruturas afirmavam os processos de
subordinação na tentativa de naturalizar as hierarquias e resistir à mudanças. No
século seguinte, foi atribuído o termo ‘sistema’ de forma a substituir a metáfora de
árvore para designar a organização do conhecimento.
Os termos etimológicos acadêmicos são discorridos aqui, porém em sua
totalidade percebemos um esforço de desprendimento sobre termos mais engessados
até chegar a termos amplos como: currículo, disciplina, departamento acadêmico e
faculdade.
O currículo podia ser alterado de acordo com a necessidade pedagógica,
porém, por volta de 1450 os conteúdos foram padronizados, o que facilitou a
transferência de estudantes entre as instituições. No primeiro grau o
estudante formava-se bacharel em sete áreas de artes liberais que se dividiam em
duas partes, a primeira voltada para a linguagem, o trivium, que abordava gramática,
lógica e retórica, e a segunda lidava com números, o quadrivium, que abraçava a
aritmética, geometria, música e astronomia e também as três filosofias: ética,
metafísica e “filosofia natural”. Para dar seguimento aos estudos haviam faculdades
superiores e as opções eram: teologia, direito ou medicina. Essas também seguiam
uma ordem de importância sendo a teologia a maior delas e convalidando suma
nobreza dentro dessa potência hierárquica.
Por esse parâmetro observamos a divisão social e sua grande desigualdade
“entre os que rezavam, os que lutavam e os que semeavam” e reforçaram suas
distinções entre os sistemas orientais de ensino.
As bibliotecas, vistas como fonte do saber, organizaram seus livros de acordo
com os currículos das instituições e obtiveram grande impulso com a invenção da
imprensa. Como resultado, apareceu a necessidade de novos espaços gerando mais
procura e assim, novos acessos ao conhecimento.
As enciclopédias surgiram com o intuito de reunir o conhecimento produzido
no mundo e universalizar o saber. Como o conhecimento geral das coisas tinha grande
relevância para o período, as enciclopédias foram bem recebidas pelas áreas de
conhecimento e amplamente difundidas com o avanço da imprensa, porém ainda com
um complexo sistema de classificação.
Com essas novas formas de apresentar o pensamento e definir o
conhecimento seguiu-se para uma reestruturação nas instituições e
consequentemente nos esquemas de classificação do conhecimento. Alguns nomes
que se destacam são: Ramus, Keckermann, Alsted e Kircher.
Os filósofos obtiveram mais sucesso em prolongar os conceitos de suas
estruturas de classificação como: Descartes, Locke, Leibniz e Bacon, esse último com
maior êxito.
Francis Bacon criou um esquema de divisão embasado em três estados da
mente: memória (História), razão (Filosofia) e imaginação (Poesia).
Tais refrescos do pensamento desencadearam outras mudanças como a
reestruturação dos currículos ao adotarem novos padrões curriculares e fomentou
fragmentações e inversões de relevância em algumas áreas de estudos, que
gradualmente trouxeram o princípio de arrasto, no sentido de que, disciplinas já
tradicionais ‘arrastavam para si’ novas disciplinas, dados os exemplos: a história
oriunda da filosofia, a geografia vinda da astronomia, botânica e química da
medicina e por fim a política, com influência da medicina e da filosofia, obtendo um
amplo destaque e propondo novos desafios juntamente com a economia.
Em sintonia, houve a reestruturação das bibliotecas assim como nos
currículos, com reclassificação das áreas (seguindo em sua maioria os padrões
europeus) o que tornou seu espaço mais necessário, principalmente pelo grande
impulso a partir da invenção da imprensa com maior produção e acesso às
enciclopédias.
Para os museus havia uma determinada dificuldade em construir um sistema
de classificação pela falta de referências anteriores, e deste modo, eram vistos como
gabinetes de curiosidades e não ainda como registros de conhecimento. O
crescimento de museus se deu em resposta ao período de exploração marítima, pela
curiosidade dos itens trazidos de povos não europeus, porém havia uma dificuldade
em encaixá-las em categorias tradicionais e mais conhecidas. Uma das possibilidades
expostas era classificar o artefato pelo material que o constituía e não pelo seu fator
histórico e houve outras tentativas de organização por temas ou datas.
É inegável a tamanha importância da invenção da imprensa nesse momento
da História, pois a velocidade e alcance do conhecimento jamais visto anteriormente
fez com que a classificação das enciclopédias também recebesse um novo estímulo
com profundas mudanças na organização das enciclopédias com influências de
Francis Bacon a Gabriel Naudé.
Destacamos também a ordem alfabética como via de organização do
conhecimento que passou a ser um sistema principal e funcionou tão bem que
estende-se até os dias atuais.
Conforme seguiu-se o avanço de conhecimento e novos acessos ao
conhecimento impresso e, visto que só a teoria não bastava para ampliar o
conhecimento,a partir do século XVIII, o conhecimento útil passa a ser validado e
respeitado, como a engenharia e outras ciências aplicadas, o que conduziu a
agricultura para a academia.
Nos modelos de pensamento, nos registros escritos e até mesmo nas
gravuras, Bacon seguiu um conceito de levar o conhecimento a novos territórios. Com
inspiração nas explorações marítimas, criou alegorias do mundo intelectual como um
campo vasto do conhecimento a ser explorado numa inquieta necessidade de se ir
além do pensamento tradicional e das filosofias dos antigos, enxergando a si próprio
como um grande desbravador. Com aspiração de que nos séculos seguintes tamanha
inquietude não se esfriasse aos intelectuais das instituições de forma a expandir e
contribuir com o conhecimento humano.
Acompanhamos no avanço intelectual humano expresso por meio da
classificação do conhecimento o uso de enciclopédias numa constante busca em
equilibrar tradição e inovação, as instituições em uma aproximação gradativa entre o
conhecimento acadêmico e não acadêmico e o uso de sistemas por ordem alfabética
que se encaminharam para perspectivas menos hierárquicas e mais individualistas do
pensamento humano.
Numa análise crítica, encontramos como grande destaque deste capítulo o
seguimento de um parâmetro histórico das origens da academia moderna como
destaca o autor, e seus “domínios”. Pensadores filósofos conceituam a classificação
dentro do campo acadêmico e assim vemos a formação do pensamento e visão de
mundo que influenciam diretamente nos modos de organizar e classificar as coisas. É
preciso, entretanto, corroborar a reflexão do acadêmico como também disseminador
de novos conceitos e conteúdos e não um mero reprodutor de pensadores de outros
períodos. Estudar a fundo autores da área, mas também construir pesquisas
relevantes à academia e ao tocante social. Podemos expor que se o profissional se
manter em constante vigilância das problemáticas sociais e consciente das
transformações que pode realizar no ambiente documental, seja arquivos ou
bibliotecas, será ele projetado para além do campo acadêmico, e influente de modo a
afetar as estruturas sociais que compartilha. Usamos de exemplo as bibliotecas vivas,
que se direcionam para as áreas mais carentes de acesso informacional e projetos
que visam inclusão de minorias, seja na busca dessa população, na afirmação de sua
existência/resistência com debates e conciliações de problemáticas, ou na escolha (
aquisição e preservação) de assuntos relevantes a eles nas instituições.
Como um apontamento mais pragmático, percebemos uma continuidade dos
pensamentos de homens brancos escritos por homens brancos com uma visão
eurocêntrica (pois suas citações sobre os padrões de classificação chineses e
islâmicos são deveras superficiais e não há nenhuma citação de pensadoras
mulheres, o que traz a questão, não são citadas por não terem influência ou não tem
influência por não serem citadas?). Todavia não se pode abandonar os conceitos
tratados, pois no demais o conteúdo histórico é rico e nos permite adentrar um pouco
no pensamento do Renascimento e do Iluminismo europeu para creditar os processos
daqueles períodos que alimentaram os formatos de classificação e que ainda
repercutem nas práticas vigentes.
Por todos esses aspectos, é reforçado o ideal cíclico da classificação, ou seja,
os sistemas são construídos, desconstruídos e reconstruídos a todo o momento por
acompanhar as transformações sociais e os pensamentos de cada época e como
atuantes da área devemos estar atentos às mudanças e/ou interligações sociais e
acadêmicas para manter tais sistemas vivos e pulsantes.

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