Você está na página 1de 6

Resenha: Observando o Islã

GERTZ, Clifford. Observando o Islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na


Indonésia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. 144 p.

Tradução: Plínio Dentzien

Essa resenha trata da edição brasileira de 2004 do livro de 1968 de Clifford


Geertz (1926-2006), com apresentação de Gilberto Velho. Formado em Filosofia e
estudos literários pelo Antioch College (formação que se refletiu no seu trabalho como
antropólogo) e doutorado em Antropologia pela Universidade de Harvard, Geertz ficou
conhecido principalmente por sua abordagem semiótica da cultura. Ainda que
precedendo em cinco anos o livro em que essa abordagem foi mais explicitamente
formulada (A Interpretação das Culturas), a obra em questão contém muito desta, seja
na natureza ensaística explicitada nas Notas e indicada como a mais apropriada para
esse tipo de estudo no livro de 1973, seja pelo apoio no caso concreto e na importância
conferida às distinções para atingir alguma generalidade.

Nessa obra o autor se propõe a analisar o desenvolvimento do islã nos dois


extremos geográficos do mundo islâmico: o Marrocos e a Indonésia, onde realizou
trabalho de campo, de forma descontínua, entre 1952 e 1966. Tentando uma definição
indutiva de religião, Geertz introduz “um punhado de fenômenos que quase todos, com
exceção dos profissionalmente contra, veriam como tendo algo vagamente a ver com
‘religião’” (p. 104) tentando evitar generalizações, o apagamento das diferenças e o
consequente distanciamento do material que, argumenta, dificulta a apreensão de
verdades gerais, optando por ordenar a variedade, ao invés de dissolvê-la.

Geertz inicia o primeiro capítulo, intitulado “Dois países, duas culturas”,


abordando o problema da definição de religião a partir da dificuldade de analisar a
mudança religiosa no contexto de descolonização, em comparação com outras
mudanças, mais fáceis de serem mensuradas. Para o autor, a abundância de definições
não facilita a busca pelo objeto, sendo a pergunta de interesse, resumidamente, o que
sustenta qual fé sob quais condições, ainda pouco abordada. A partir daí Geertz faz um
breve relato da islamização dos dois países, destacando, no caso do Marrocos, sua
formação por um “processo peculiar de periferias tribais caindo sobre um centro
agrícola e civilizando-o” (p. 19), e, quanto à Indonésia, a presença de uma sociedade
camponesa central que foi apropriada pelo islã, em lugar de criada por ele. Nos dois
casos, o autor considera, ainda que brevemente, a influência de fatores ecológicos no
desenvolvimento das duas sociedades. Ainda nesse capítulo, Geertz fornece algumas
definições úteis como fé religiosa - “firme adesão a alguma concepção supratemporal da
realidade” (p. 16) - e símbolos - “‘sistemas de significação’ socialmente disponíveis” (p.
32) -, e propõe uma concepção de história da mudança religiosa como uma história
social da imaginação.

No capítulo 2, “Os estilos clássicos”, Geertz parte do problema das


nomenclaturas nas ciências sociais, particularmente notável nos estudos de religião
comparada, para passar ao desenvolvimento do que ele chama de estilos clássicos: o
iluminacionismo na Indonésia e o marabutismo no Marrocos. Trata-se da ideia de que
nomear uma coisa é tê-la compreendido, o que além de estar distante do pensamento
analítico, coloca a questão de se algo realmente corresponde aos termos criados;
“místico”, em particular, frequentemente utilizado para caracterizar os estilos dos países
em questão. Sendo estes bastante diferentes, Geertz continua seu esforço de ressaltar
contrastes em lugar de homogeneiza-los sob o título comum de misticismo, relatando
brevemente as histórias de dois homens que considera representar bem as mudanças que
consolidaram o islã e os respectivos estilos em cada sociedade.

De um lado, Sunan Kalidjaga representa “introspecção, imperturbabilidade,


paciência, estabilidade, sensibilidade, esteticismo, elitismo e um retraimento quase
obsessivo, a dissolução radical da individualidade” (p. 65) do estilo indonésio; de outro,
estão Sidi Lahsen Lyusi e o estilo marroquino de “ativismo, fervor, impetuosidade,
ousadia, dureza, moralismo, populismo e uma autoafirmação quase obsessiva, a
intensificação radical da individualidade” (p. 65). Por mais que as duas figuras possam
parecer diametralmente opostas, ainda podem ser identificadas algumas semelhanças: o
conservadorismo expresso na defesa de formas tradicionais de consciência religiosa,
apesar dos desafios a sua continuidade, e o aumento dessa necessidade de defesa em
função da própria penetração do islã.

Na Indonésia, essa tradição, de origem hindu-budista, se baseia nas chamadas


“doutrinas” do centro exemplar, da espiritualidade gradual e do Estado-teatro. Mas
como a religião “tira sua capacidade de persuasão de uma realidade que ela mesma
define” (pp. 50-51), quando as condições sociais para a manutenção dessa realidade
deixam de se manter, a religião tem o mesmo problema. Desde então até a emergência
da identidade nacional indonésia, o que restou da tradição da Java hinduísta manteve-se
em equilíbrio com o sincretismo da religião popular e o chamado santrismo. No
Marrocos, assim como a doutrina do centro exemplar na Indonésia, a ideia de como o
divino chega ao mundo se expressava na noção de baraka (no sentido estrito, benção.
Ela pode ser identificada no seu portador pela sua linhagem (descendência do profeta,
caso dos xerifes) ou pela realização de milagres. A fusão dessas duas vertentes resultou
na consolidação do islã no Marrocos, ao contrário do equilíbrio alcançado pela clivagem
espiritual na Indonésia. Essa fusão tem lugar em três contextos institucionais (que
Geertz denomina complexos): siyyid, o culto dos santos ou marabus (do radical “atado”,
um homem atrelado a Deus); zawiya, organizações religiosas ou “irmandades” e
maxzen, o sultanato.

O terceiro capítulo, “O interlúdio dos seguidores das escrituras”, traça um


panorama geral da mudança religiosa nos contextos analisados, a partir da discussão
sobre a mudança religiosa em geral como um aparente paradoxo - “nada se altera tanto
como o inalterável” (p. 67) -, aparente por tratar-se de uma concepção do divino, não do
divino em si. Analisando brevemente algumas estratégias para o estudo da mudança
cultural, Geertz critica-as por descrever os resultados da mudança, não seus mecanismos
(sociais, vale ressaltar). Aproximando-se do seu objeto específico, o autor argumenta
que a hegemonia dos estilos religiosos clássicos passou a ser erodida, de um lado, pelo
secularismo, e de outro, pelo o que chamou de “escrituralismo”, mudança que significou
a transição entre “religiosidade” e “inclinação religiosa”, ou “ser possuído pelas
convicções religiosas e possuí-las” (p. 72). Para tratar da questão em mais detalhes,
Geertz estabelece três marcos: a dominação ocidental, o crescimento do islã escolástico
e a consolidação do Estado-nação ativista.

A dominação colonial criou uma situação particular, contribuindo, ao mesmo


tempo, para o surgimento de Estados integrados de uma forma então nova e para uma
distinção entre governantes e governados não apenas política, mas cultural, criando
Estados e sociedades bifurcados. A religião acompanhou essa distinção, tornando-se
uma questão política (os “muçulmanos de oposição”) e de identidade, já que,
diferentemente de outros aspectos culturais, não podia ser absorvida pelos
colonizadores. Enquanto o colonialismo criou as condições para a mudança, o
escrituralismo forneceu o conteúdo, que, até mais do que se opor aos colonizadores,
direcionou-se contra os estilos clássicos. O islã escolástico, centrado na figura do
“estudante religioso” (santri, na Indonésia, e taleb, no Marrocos), contribuiu para a
ideologização da religião com a curiosa combinação entre “fundamentalismo radical” e
“modernismo determinado” (voltar às escrituras para modernizar). Por fim, o Estado-
nação ativista é descrito a partir das histórias de dois personagens importantes do pós-
independência, o monarca marroquino Mohamed V e o presidente indonésio Sukarno,
que, pode-se argumentar, representam para a época o que Lyusi e Kalidjaga
representaram para a consolidação do islã nos dois países. O primeiro, encarnando a
figura do santo guerreiro (para Geertz central no imaginário marroquino), conseguiu
unificar as tradições de legitimidade xiita e sunita, enquanto o segundo, contando
apenas com a ideologia e o caráter intelectualizado do nacionalismo indonésio,
reencenou o Estado-teatro.

No capítulo final, “A luta pelo real”, Geertz faz algumas considerações mais
gerais, resgatando para isso o debate sobre o “pensamento primitivo” (que para ele era
na verdade sobre as variedades de entendimento humano), entre o misticismo de Lucien
Lévy-Bruhl e o pragmatismo de Bronislaw Malinowski. Para o autor, este falha em
reconhecer que o senso comum é formado por, mais do que técnicas de enfrentar a vida,
maneiras de conceber a vida, e a religião (bem como a arte, a ciência, a filosofia, e a
história) tem como função complementar essa tarefa de dar sentido à experiência e é
capaz de modificar o senso comum no processo (o que Geertz denomina “reconstrução
do senso comum”).

Se utilizando de uma abordagem semântica da cultura, propõe como objetivo do


estudo comparativo da religião “a descrição da ampla variedade de formas em que ela
aparece; a revelação das forças que dão existência a essas formas, alteram-nas ou
destroem-nas; e a avaliação de suas influências, também variadas, sobre o
comportamento dos homens na vida cotidiana” (p. 103-104). Nessa linha, Geertz atribui
aos símbolos religiosos a função de ligar a visão de mundo e o ethos de um povo, de
forma a que se confirmem mutuamente (ressignificando o sentido etimológico de
religião, religar). No contexto religioso, os dois equivalem, respectivamente, aos
problemas da crença e da ação.

Para o autor, o primeiro foi agravado pelas mudanças dos últimos cento e
cinquenta anos, que tornaram mais difícil tirar sentido dos rituais e símbolos religiosos
que até então caracterizou-os, o que ele atribui ao que Max Weber (influência
importante em sua obra como um todo) chamou de secularização do pensamento. Esse
processo teve como resposta a ideologização da religião, iniciada pelos escrituralistas,
que para Geertz foi inovadora por “fornecer ao islã uma política geral em relação ao
mundo moderno” (p. 112). Na visão do autor, nessa “luta pelo real”, emergem duas
estratégias para lidar com a principal encarnação da secularização do pensamento, a
ciência positiva. A primeira, notável no Marrocos, é a separação das esferas científica e
religiosa; a segunda, reproduzida na Indonésia, é a disseminação da ideia de que a
religião já continha as descobertas científicas.

Para falar sobre o problema da ação, Geertz aborda algumas implicações


metodológicas do fato de a perspectiva religiosa ser adotada apenas esporadicamente,
quase exclusivamente no contexto ritual. O autor defende que a devoção requer uma
absorção oposta ao distanciamento exigido pela análise e a dificuldade de se obter
informações de alguém durante uma experiência religiosa, faz com que a maioria das
formulações a respeito do que a religião significa para alguém se converta em
estereótipos. Preocupado com o status de verdade que esses relatos podem adquirir,
Geertz ressalta a importância de se reconhecer essa limitação, assim como na
interpretação dos sonhos levam-se em consideração as distorções feitas para dar sentido
aos fragmentos de memória (o conceito freudiano de revisão secundária). Mas por mais
distante que estejam a experiência religiosa e a vida cotidiana, esta é afetada por aquela,
e influencia a ação social, seja com maior ou menor força (centralidade e eficácia com
que um padrão cultural é internalizado, maior no Marrocos) ou escopo (presença de
considerações religiosas em diferentes contextos sociais, maior na Indonésia).

Geertz conclui afirmando que cada vez menos pessoas têm acesso às
experiências que unem crença e ação, ainda que o desejo de acreditar diminua menos
que a capacidade. Como debatido no início, sendo, ao mesmo tempo, uma força
generalizante e particularizante, quanto mais a fé religiosa avança, mais precária se
torna.

Por fim, pode-se enumerar algumas das contribuições dadas pelo autor para a
antropologia, as ciências sociais e outras áreas do conhecimento, em sua obra como um
todo, bem como nesse livro em particular. O estudo das sociedades complexas (como
destaca Velho), da religião comparada, assim como o conceito semiótico de cultura,
como já mencionado, foram expandidos por suas reflexões. Além disso, a obra dialoga
com as ciências sociais de forma geral, tanto quando utiliza questões mais amplas para
introduzir o tema específico de cada capítulo, como quando, em “A luta pelo real”,
generaliza algumas das suas conclusões sobre os casos analisados. Por fim, Geertz
identifica, com antecedência notável, algumas tendências atuais, mas não novas, a
respeito da politização do islã.

Você também pode gostar