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Júlia Corrêa Ramos – 15/0061251

Fuga nº2

- Emilia, eu decidi. Vou aceitar aquela vaga de mestrado em Helsinque.

Marina entrou no meu quarto (junto com o sol de meio-dia), falando isso mais como
um pedido de autorização do que como a decisão irrevogável que ela esperava que parecesse.

- Mas você odeia frio – foi o melhor argumento que me ocorreu antes de abrir os
olhos.

- Odeio – ela sentou na cama e perdeu qualquer aparência de determinação que ela
pudesse ter juntado até agora, como se aquela observação climática tivesse mais influência
sobre sua decisão do que toda a pesquisa que eu sabia que ela tinha feito sobre programas de
mestrado em Ciências Biológicas – Mas odeio mais encarar um laboratório vazio todo dia – e
aí ela recuperou um pouco em resolução, mas dobrou em tristeza.

Contra isso eu não tinha nem um argumento ruim. Marina era aluna do último
semestre de Ciências Biológicas e a cada um dos outros sete foi perdendo um pouco das
esperanças de financiamento pra pesquisa, até não ter mais nenhuma às vésperas da
formatura. Claro que ela tinha o privilégio da opção de estudar fora, não que fosse a primeira
opção dela.

- Então você vai engrossar as estatísticas de fuga de cérebro no Brasil – disse, me


sentando, mais pra não deixar ela pensando nas perspectivas desoladoras de futuro.

- Que nem você fez com o Paraguai? – ela disse e pareceu se arrepender antes mesmo
que eu tivesse chance de dizer “você sabe que foi diferente” – Desculpa. É que eu ando muito
estressada com isso. Mas não devia ter descontado em você.

- Tudo bem, eu entendo.

E entendia mesmo; a Marina realmente amava a área de pesquisa dela, não era dessas
que só queria se formar, e também não tinha só reclamado dos cortes orçamentários, ela tinha
ocupado a reitoria, participado de ato no MEC, recolhido assinatura pra petição, escrito artigo
sobre a situação. Não que outras pessoas menos ativas (eu inclusa) não tivessem direito a
sofrer por isso, mas o sofrimento dela vinha acompanhado de muito mais esforço estéril.
- Dia desses eu li uma reportagem sobre isso. Uma astrônoma brasileira, acho que era
isso, astrônoma, que foi acho que pra Pensilvânia, não porque ela achasse o Brasil uma bosta,
e quisesse morar fora de qualquer jeito, como alguns dizem que é o caso pra todo mundo que
vai pro exterior, mas porque ela realmente não tinha mais como continuar aqui. E mais do que
isso, ela ia achando que não ia mais voltar, já que o sistema não facilita nem um pouco pra
quem volta. Por isso ela hesitou tanto.

- Que nem você. – ela concordou com tristeza - Já tá difícil o suficiente com gente
colonizada que, qualquer coisa é porque o Brasil é assim mesmo, e agora a gente tá perdendo
até quem queria desenvolver a ciência no Brasil.

- Pois é – disse, e riu, parecendo se lembrar de alguma coisa – Achei engraçado que
eles não diziam fuga de cérebro, chamavam de, até decorei, “exportação de mão de oba
qualificada”. Como se fosse vantagem pro país.

- Isso. E como se não fossem as pessoas que tivessem decidido ir embora. Ou sido
forçadas a isso.

- Como se a gente tivesse exportando um produto com valor agregado.

- Agregado pela universidade pública. Que não vai voltar pro país.

- Investimento desperdiçado, que vai ser aproveitado por universidade particular no


exterior.

- Que é só quem ganha com isso, universidade de ponta que ganha os nossos melhores
pesquisadores.

- E grupo estrangeiro que vai comprar nossas universidades sucateadas a preço de


banana quando elas forem privatizadas e vai fazer fortuna.

- Queria ter algo pra dizer além de: é péssimo. Mas é isso, fazer o que. – completei,
dando de ombros – Bem, vou aproveitar enquanto ainda temos universidade, e entregar essa
porcaria de trabalho que me custou a noite de sono. – e me levantei, procurando alguma peça
de roupa limpa.

- Você acha que tem chances da UnB fechar mesmo? – ela perguntou, ao mesmo
tempo incrédula e preocupada.
- Eu não sei, – respondi com uma dúvida honesta – mas por garantia vou tentar me
formar esse ano mesmo. – e me arrumei correndo depois que ela saiu pra conseguir almoçar,
imprimir o trabalho e chegar a tempo da aula 14 horas.

Chegando na sala, reparei que as carteiras estavam dispostas em círculo, o que só


poderia significar uma coisa: apresentação de trabalho. Minhas expectativas foram
confirmadas quando o professor começou “eu sei que eu não pedi pra vocês prepararem nada,
mas...”, o que obviamente terminou com “não precisa ser nada muito extenso, só falem sobre
as suas impressões de pesquisa”. E eu fui bem breve, já que apesar de ter passado horas lendo
relatórios a respeito da situação do ensino superior na América Latina, na Europa e nos
Estados Unidos a minha impressão geral podia ser resumida a uma palavra: reforma.

Depois de ler o diagnóstico e as recomendações da Boyer Commission, do Rapport


Attalli, do Dearing Report e as respectivas propostas da UNESCO e do Banco Mundial para
reforma universitária no Brasil eu fiquei com a impressão que todos os modelos, no ensino
público e no privado, os sistemas binários e unificados, sejam universidades e "grandes
écoles" ou polytechnics, todos, sempre alguém acha que uma reforma é necessária. Ou o
sistema de ingresso (e permanência) é muito elitista, ou o financiamento é insustentável, ou
faltam recursos, ou o modelo não favorece a inovação. Queria dizer que uma das alternativas
me pareceu mais interessante, mas talvez eu já estivesse desesperançada demais.

Quando a aula terminou achei que a única coisa que eu tinha pra fazer era voltar pra
casa e tentar compensar um pouco do sono perdido, até que um cartaz me lembrou que eu
tinha apenas tempo suficiente para ir pra assembleia do curso. As pautas eram o de sempre
daquele ano: cortes nos gastos, participação no ato contra as reformas do governo e
posicionamento a respeito de tudo isso. Cheguei no meio da fala padrão, mas necessária, de
uma menina do CA: nós somos muito omissos, nós temos que nos posicionar, isso vai ser
ruim pra nós. O que todos nós sabíamos, mas não tinha mudado muita coisa até agora. Mas,
de novo, eu ando muito cética, beirando o cinismo.

Um colega de Ciência Política, que parecia um pouco feliz no nosso desespero,


aliviado e talvez satisfeito consigo mesmo que estava por ter um mestrado na Alemanha
garantido (cortesia dos pais que podiam sustentar ele no exterior), veio falar comigo. Como
ele sabia que eu falava japonês bem, acabou sugerindo que eu tentasse uma vaga de mestrado
no Japão.
- Pode ser, mas eu só vou se conseguir bolsa. – respondi, tentando parecer o mais
interessada possível na assembleia pra me livrar dele e voltar a prestar atenção na fala de uma
membra do Sintfub sobre as demissões.

- Conheço bastante gente que foi com bolsa do governo japonês, não custa nada tentar.
Não é como se tivesse muitas opções por aqui. – ele disse, e eu não consegui deixar de pensar
na Rebeca, que teve que largar o curso na metade e voltar pra cidade dela no interior de Minas
com os cortes nas bolsas de assistência sem a qual ela não conseguia se sustentar aqui. – A
situação das universidades no seu país é parecida com a nossa? – perguntou, parecendo ter se
dado conta da assembleia apenas agora.

- Não sei muito bem, quase todos os meus amigos estudam fora, não conheço mais
quase ninguém que estude lá. – disse, ainda prestando atenção na terceirizada, que agora
falava sobre a necessidade do apoio dos estudantes.

Ele fez um comentário qualquer sobre a situação aqui provavelmente acabar do


mesmo jeito, e quis saber “por qual motivo eu tinha vindo pra cá mesmo”. Como na hora o
meu orientador veio falar comigo e disse que tínhamos que conversar sobre o meu TCC,
conclui que aquele era o meu resgate, e disse que depois eu voltava sem nenhuma intenção de
fazer isso.

Óbvio que eu não respondi a pergunta dele, mas pra quem perguntava o motivo de eu
fazer parte dos míseros 2% de alunos estrangeiros na UnB (a única paraguaia que eu
conhecia) eu dizia que estava cansada da minha vida de colégio jesuíta, dos meus amigos de
classe média e da minha família sempre excessivamente preocupada depois do acidente (mas
sobre isso eu não falava), o que era verdade apenas em parte. Para os que se mostravam
surpresos com o fato de eu ter ido pra Brasília, ao invés de algum lugar perto da fronteira, eu
tinha a desculpa de ter uma tia aqui (não que isso faça muito diferença a essa altura, eu não
moro com ela há mais de um ano). De fato, eu tenho alguns amigos que estudam no Mato
Grosso do Sul, na UFGD, mas outros acabaram em lugares mais longe ainda no Brasil, ou em
outros países da América Latina, na Europa e nos Estados Unidos.

O fato é que, dos 35 alunos da minha turma quase todo mundo foi embora, pelos mais
diversos motivos. Às vezes eu penso se os meus motivos teriam sido suficientes, se eu teria
me mudado se o meu tio ainda estivesse lá. Agora eu me questionava se eu não teria que me
mudar pela segunda vez, mas não por motivos pessoais, dessa vez. Talvez eu tentasse aquele
mestrado no Japão no final das contas.
***

O uso de uma forma textual incomum no meio acadêmico, em geral, e nas Relações
Internacionais, em parrticular, o conto, provocou em mim – e aqui uso a primeira pessoa
conscientemente, como “a way of putting ourselves, as researchers, more honestly in the
picture, or of telling our own stories – though, even then, the story we tell will implicate
others” (EDKINS, 2013, p. 290) - a necessidade de justificar a escolha com a emergente
bibliografia a respeito da escrita ficcional em RI. Na linha da escrita autoetnográfica em RI
(BRIGG; BLEIKER, 2010), escrevo essa justificativa “to at least attempt the writing of a
history that at some point reveals the processes of its production” (STEEDMAN, 1992, p. 55).

Em “Why IR Scholars Should Try to Write Fiction”, Daniel Clausen (2017) questiona
se alguma coisa escrita na área de RI teve, além da influência, a utilidade que obras de ficção
como 1984 e Fahrenheit 451. Além da análise dessas obras, popularizadas na área a partir da
chamada “virada estética” (BLEIKER, 2001), Clausen sugere que acadêmicos de RI escrevam
ficção, como uma forma mais criativa de abordar temas da área e, ao mesmo tempo, que
aproveita alguns aspectos da teoria, ou, nas palavras do autor

I treat fiction as “theory” in the two important senses that I know


theory — on the one hand, as a way of bringing sense to the nonsense of the
world, and on the other, as a force for destabilizing our comfortable
understandings of the world. (CLAUSEN, 2017)
Além desses aspectos, uma possibilidade da ficção para a pesquisa em RI sugerida por
Clausen (não abordada no conto, mas que deve ser mantida em mente em tentativas
subsequentes de desenvolver esse programa) é o uso de contrafactuais, que para o autor são
usados apenas

in highly circumscribed conditions and often under threat of censure from


those who want to make IR conform to a narrow idea of good science. Thus,
it can never feel creative and free enough to explore counterfactuals in the
way fiction does. (CLAUSEN, 2017)
Já Sungju Park-Kang (2015), não apenas recomenda a escrita de ficção por
acadêmicos de RI como põe em prática a proposta, incorporando histórias autorais
relacionadas a temática do seu projeto de pesquisa em suas publicações acadêmicas (PARK-
KANG, 2014; PARK-KANG, 2015). Park-Kang cita obras narrativas (ainda que não
ficcionais) na produção recente de RI para propor imaginação como metodologia e propõe
que pesquisadores da área sejam “empathetic IR detectives”, porque “in the end, I would say,
IR is about understanding other people’s feelings, making relationships between oneself and
the world”. (PARK-KANG, 2015)

Por esses motivos, decidi abordar a conjuntura, situação da UnB, das universidades
brasileiras, do Brasil pela perspectiva das relações internacionais em uma narrativa ficcional.
Como afirma Edkins (2013, p. 283), de forma mais geral quanto à relação entre as escritas de
ficção e não ficção: “Just as memory makes no sense without the notion of forgetting, so
testimony makes no sense without the concept of fiction.”

Referências bibliográficas:

BLEIKER, Roland. The aesthetic turn in international political theory. Millennium, v. 30, n.
3, p. 509-533, 2001.

BRIGG, Morgan; BLEIKER, Roland. Autoethnographic International Relations: exploring


the self as a source of knowledge. Review of international studies, v. 36, n. 3, p. 779-798,
2010.

CLAUSEN, Daniel. Why IR Scholars Should Try to Write Fiction, 2017. Disponível em:
http://www.e-ir.info/2017/09/17/why-ir-scholars-should-try-to-write-fiction/. Acesso em: 22
de maio de 2018.

EDKINS, Jenny. Novel writing in international relations: Openings for a creative practice.
Security Dialogue, v. 44, n. 4, p. 281-297, 2013.

PARK-KANG, Sungju. Fictional International Relations: Gender, Pain and Truth.


Routledge, 2014.

PARK-KANG, Sungju. Fictional IR and imagination: Advancing narrative approaches.


Review of International Studies, v. 41, n. 2, p. 361-381, 2015.

STEEDMAN, Carolyn. Past Tenses: Essays on Writing, Autobiography and History. London:
Rivers Oram Press, 1992.

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