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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ISSN 2177-1383

Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade


Editores-Gerais
Emille Toscano de Medeiros Coelho
Raimundo Jovino de Oliveira Neto

Diretoria de Editoração
Caio Vinicius Fernandes Terto
Elias Cândido da Nóbrega Neto
Emilly Leite Venâncio
Laura Beatriz Pessoa da Fé
Lílian Nicodemos Furtado Noca
Lorenna Medeiros Toscano de Brito
Lucas Cruz Campos
Maria Cláudia Ananias Freire
Mateus Ricardo Rodrigues de Sousa
Mirelly Moura de Lemos
Vanessa Medeiros de Lira

Professores Orientadores
Anderson Souza da Silva Lanzillo
Fabiana Dantas Soares Alves da Mota
Zéu Palmeira Sobrinho

Edição da Capa:
Thaylson Djony Dantas Rodrigues
thaylsondjony0612a@hotmail.com

Diagramação:
Paulo André
www.pauloandrepa.com.br
EDITORIAL:

É com muito entusiasmo que, mais uma vez, é lançada uma edição da Revista de Filo-
sofia do Direito, do Estado e da Sociedade (FIDES). Cumprindo com uma periodicidade semes-
tral há mais de 7 anos, a FIDES se revela como um importante e necessário meio de expansão
de conhecimento. Destaca-se o brilhante trabalho desenvolvido pelos membros do conselho
editorial da revista, que apresenta um empenho incontestável. Além dos professores e outros
profissionais que estão sempre dispostos a colaborar para que o material publicado possua um
elevado nível de conteúdo.
A 15ª edição teve como base os pilares que sustentam a revista desde a sua primeira
edição: simplicidade, informalidade e incentivo à pesquisa e produção científicas. Tudo isso
para que se atinja uma democratização de acesso ao conhecimento, objetivo primordial a que
a FIDES se propõe. Nesse cenário, expandiu-se o conselho científico da revista, incluindo pro-
fessores de outras universidades, e foram implementadas mudanças internas com o escopo de
melhor tornar a correção e avaliação dos artigos submetidos.
É importante destacar que a revista FIDES é um periódico voltado a toda sociedade. E
busca fugir de um saber estritamente dogmático, valorizando a multidisciplinaridade. Com isso,
se pretende formar cidadãos questionadores, provocar reflexões inovadoras e auxiliar leitores
que buscam mudar a própria realidade. Sendo assim, nas próximas páginas se encontram artigos
com alto grau de reflexão, tanto artigos de graduandos, como artigo de professores convidados.
Para o evento de lançamento, decidiu-se discutir acerca do Estatuto da Pessoa com
Deficiência, tema bastante interessante e pouco discutido na universidade. Porém, frise-se que
o evento não é destinado apenas para universitários, mas para qualquer pessoa que se sinta in-
teressada pelo tema.

Aproveitem a 15ª edição.


Uma boa leitura a todos!

Natal/RN, 18 de Maio de 2017.


Conselho Editorial
SUMÁRIO
ARTIGOS CIENTÍFICOS CONVIDADOS

7 A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA EM CASOS DE DESASTRES


AMBIENTAIS: ESTUDO DE CASO DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM
MARIANA/MG
Rafael Gomes Miranda da Silva
Tereza Cristina Pereira Bezerra
Patrícia Borba Vilar Guimarães

18 A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DOS PUNITIVE DAMAGES E DO DEVER DE


PREVENIR DANOS
Pastora do Socorro Teixeira Leal
Alexandre Pereira Bonna

31 A REVISTA ÍNTIMA E SUA APLICAÇÃO NAS RELAÇÕES LABORATIVAS


Marcyo Keveny de Lima Freitas
Patrícia Borba Vilar Guimarães

49 EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE UMA CULTURA


DE RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA
Luciano Meneguetti Pereira

74 INTENÇÃO E GESTO: POSSIBILIDADES LÓGICAS NO DIREITO


Renata Celeste

82 LIBERDADE JORNALÍSTICA NA ERA PÓS-POLÍTICA: UMA QUESTÃO PARA


A DOGMÁTICA?
Veruska Sayonara de Góis

99 O EXERCÍCIO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PELO SUPERIOR


TRIBUNAL DE JUSTIÇA: UMA BREVE ANÁLISE DO VOTO DO MIN. RIBEIRO
DANTAS
Thiago Oliveira Moreira

104 PSICOPATIA E CÁRCERE: UM ELEMENTO FULCRAL DA CRISE PRISIONAL


BRASILEIRA
Lauro Ericksen
114 REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO
DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE
CONTRADIÇÕES
Raimundo Márcio Ribeiro Lima

133 SEXO E PODER: A BIOPOLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT


Patrícia Marques Freitas
Ana Christina Darwich Borges Leal

ARTIGOS CIENTÍFICOS

144 A DEMOCRACIA EM “MIGALHAS”: SARAMAGO E AS TENSÕES NA


REPRESENTAÇÃO POLÍTICA
Raphael Henrique Figueiredo de Oliveira

158 A ETNOLOGIA JURÍDICA: O MÉTODO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL


PARA O ESTUDO DOS FENÔMENOS JURÍDICOS DAS SOCIEDADES ANTIGAS
Bruna Casimiro Siciliani

169 A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PARTICULARES:


A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
Yago da Costa Nunes dos Santos

182 EUTANÁSIA: O LIAME ENTRE A DIGNIDADE, A AUTONOMIA E A MORTE


Júlia Gabriela de Sena Nepomuceno

199 JUÍZES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?: A (DES)NECESSÁRIA


EFICIÊNCIA DO MAGISTRADO E A INFORMATIZAÇÃO DA ATIVIDADE
JUDICANTE NO BRASIL
Carlos Humberto Rios Mendes Júnior

213 LEVANDO O DIREITO À LIBERDADE A SÉRIO: UMA ABORDAGEM A PARTIR


DE RONALD DWORKIN
Vinícius de Godeiro Marques
230 O DIREITO À (BUSCA DA) FELICIDADE COMO NORTEADOR DO DIREITO
DAS FAMÍLIAS
Arthur Ferreira de Oliveira

241 O RECONHECIMENTO DO CUIDADO COMO VALOR JURÍDICO E SUA


INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Lucas Leal Sampaio

251 REELEIÇÃO E A INSTITUIÇÃO DO “POLÍTICO PROFISSIONAL”: UMA


ANÁLISE SOB O VIÉS DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS
Karoline Fernandes Pinto Lopes

263 SER OU DEVER-SER, EIS A QUESTÃO: UM RESGATE DA FENOMENOLOGIA


DA JURIDICIZAÇÃO PONTEANA
Magdiel Pacheco Santos

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.


A DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA EM CASOS DE DESASTRES
AMBIENTAIS: ESTUDO DE CASO DO ROMPIMENTO DA BARRAGEM EM
MARIANA/MG

Rafael Gomes Miranda da Silva1


Tereza Cristina Pereira Bezerra2
Patrícia Borba Vilar Guimarães3

RESUMO
O singular instituto da desconsideração da pessoa jurídica presente no
código civil brasileiro vem proporcionando uma avaliação mais mi-
nuciosa em relação a diversos casos envolvendo as pessoas jurídicas,
preservando, na maioria das vezes, esta e responsabilizando a pessoa
física por trás do delito cometido, onde estes casos de crimes ambientais
segundo o artigo 225 da constituição federal, os seus representantes (di-
retores, administradores) das pessoas jurídicas, poderão ser responsabi-
lizados por delitos contra o meio ambiente, sendo imputados penalmen-
te e administrativamente pelo crime. Nessa perspectiva, se analisará o
caso do rompimento da barragem no município de Mariana, MG, a luz
da desconsideração bem como todas as normas de direito ambiental
pertinentes ao acontecimento em questão, para que se possa indagar
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a quem compete a verdadeira responsabilidade e qual tipo que seria


aplicada nesses casos, se seria uma responsabilidade civil, penal ou
mesmo administrativa. Será utilizado como meio para não só embasar
a problemática mais também dar mais credibilidade a pesquisa, alguns

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro da base de pesquisa Direito e Desenvolvimento.
2  Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e membro da base de pesquisa Direito e Desenvolvimento.
3  Bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (1997); Advogada e Professora da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte, no Departamento de Direito Processual e Propedêutica (DEPRO). Líder da Base de pesquisa em Direito e Desenvolvimento
(UFRN-CNPq).

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especialistas que por meio de suas obras no campo, principalmente do
direito ambiental, tornaram o assunto mais discutido.
Palavras-chave: Samarco. Responsabilidade civil. Responsabilidade
penal. Caso de Mariana.

1 INTRODUÇÃO

Em 5 de novembro do ano de 2015 ocorreu um dos mais graves desastres ambientais


da história do país, causado pelo rompimento da barragem de fundão no município de Mariana/
MG, barragem esta pertencente ao complexo minerário de Germano da empresa Samarco, a
qual continha 50 milhões de m3 de rejeitos de minério de ferro.
Segundo laudo publicado pelo IBAMA, o desastre é classificado como de intensidade
de nível IV, “desastre de muito grande porte”, onde os danos e prejuízos são considerados muito
graves, sendo necessário a mobilização das três esferas de organização do estado (municipal,
estadual e federal), e em alguns casos ajuda internacional, para que se restabeleça a situação a
sua normalidade. A evolução do desastre teve como principal característica sua subtaneidade,
devido sua velocidade e violência dos eventos.
A partir dessas informações se constata, de inicio, que os danos não foram pequenos,
sendo comprovado pelo instituto que coletou e analisou em loco e em documentos sobre o de-
sastre os seguintes resultados: mortes tanto de trabalhadores da empresa como de moradores
das localidades; populações desalojadas; devastações das áreas próximas o que ocasionou à
população a desagregação dos vínculos sociais de sua comunidade, a destruição de suas insti-
tuições publicas e privadas bem como a destruição das áreas agrícolas que influiu diretamente
na economia, além de interrupção da pesca, abastecimento de agua e do turismo; interrupção
da geração de energia, já que o desastre atingiu algumas hidrelétricas das imediações; e os
impactos no meio ambiente, como a destruição de áreas de preservação permanente e nativa
da mata atlântica, morte da biodiversidade aquática e terrestre, assoreamento do curso d’água,
perda e fragmentação de habitats, restrição ou enfraquecimento dos serviços ambientais dos
ecossistemas, sem contar nas alterações do padrão de qualidade da agua doce, salobra e salgada
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(IBAMA, pag. 4-5, 2015).


Esses dados mostram a dimensão e a gravidade das consequências trazidas pelo de-
sastre, tanto na comunidade do distrito de Bento Rodrigues, totalmente devastado pela onda
de rejeitos, e outras localidades próximas, além dos impactos ao meio ambiente, que segundo
estudo feito pelo instituto o rompimento ocasionou a destruição de 1.469 hectares ao longo de
77 km de curso de água, o que mais preocupa é que esses dados incluem áreas de preservação
permanente.

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2 RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL NO CASO DE MARIANA/MG

2.1 Teoria do risco

A teoria do risco foi criada para dar base a objetividade da responsabilidade civil que
diz que, havendo o dano, este deveria ser reparado, os criadores dessa teoria foram, Raymond
Saleilles e Louis Josserand dois juristas franceses.

A teoria do risco é o embasamento jurídico que os juristas elaboraram ao final do século


XIX para justificar a responsabilidade objetiva. Risco nessa acepção jurídica significa
perigo, potencialidade de dano, previsibilidade de perda ou de responsabilidade pelo
dano, compreendidos os eventos incertos e futuros inesperados, mas, temidos ou
receados que possa trazer perdas ou danos( Wolkoff, 2012).

Segundo Nelson Rosenvald, a realização de uma atividade econômica, muitas vezes,


causa dano. O dano causado deverá ser indenizado, independente de culpa ou ato ilícito. A inde-
nização será devida pelo fato de o agente ter causado um dano injusto no exercício de atividade
de risco. Substitui-se a ideia de liberdade por solidariedade. Traz a ideia de cidadania. Onde há
dano, há indenização.
Essa teoria diz que todo aquele que exerce uma atividade que pode causar algum dano,
deve este arcar com este se algo venha acontecer com terceiro em virtude dessa atividade.
Portanto, a teoria do risco, vem dizer que tudo vai ser imputado ao autor e este irá arcar
com os prejuízos, independente de culpa. Pois, a atividade do autor do dano pode ocasionar por
sua natureza risco para terceiros.
Trazendo para o Caso do rompimento da barragem de fundão, localizada no Município
de Mariana, em Minas Gerais, a Sociedade Anônima Samarco Mineração S.A, deverá arcar
com os danos advindos do risco que a construção de uma barragem e o exercício da mineração
podem trazer, havendo culpa ou não, a responsabilidade será imputada a Samarco.
O código civil traz em seu conteúdo artigos que abordam a temática da teoria do risco,
que são os artigos 186 e o 927 de dizem:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,


violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato
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ilícito.
[...]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica
obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,
nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

2.2 Responsabilidade em via penal e suas correntes doutrinarias

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Em se tratando de responsabilidade em via penal das pessoas jurídicas se vê diver-
gências a esse respeito, cabendo à jurisprudência a função de criar e delinear posicionamentos
a respeito da matéria. Necessário salientar de inicio que o assunto é abordado expressamente
em nossa legislação, inclusive na nossa constituição em seu art. 225, §3° que diz “As condutas
e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os da-
nos causados”, fica evidentemente clara a obrigação imposta pela carta magna àqueles que cau-
sarem danos ao meio ambiente, em via penal, inclusive se aplicando as pessoas jurídicas. Outro
dispositivo de extrema importância e que também versa sobre o assunto é a lei n.° 9605/98 que
dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao
meio ambiente, em seu art. 3° temos imposto que “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas
administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração
seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado,
no interesse ou beneficio da sua entidade”, mais uma vez temos um dispositivo que em seu
corpo traz de forma explicita a possibilidade de que os infratores sejam, também, responsabi-
lizados penalmente. Mesmo com esses exemplos ainda se discute a aplicação dessa forma de
responsabilidade, já que a sanção penal é a mais grave do nosso ordenamento jurídico, a última
ratio, e como seria aplicada efetivamente esse tipo de responsabilidade às pessoas jurídicas, já
que elas são uma ficção jurídica criada pelo nosso ordenamento jurídico, com isso temos os
posicionamentos dos tribunais a cerca do assunto.
Nessa perspectiva, surge quatro correntes a cerca da possibilidade de aplicação da res-
ponsabilidade em via penal às pessoas jurídicas. A primeira corrente acredita que a constituição
não previu esse tipo de responsabilidade, e interpretam o §3° do art. 225 como cabendo as pes-
soas físicas a responsabilidade penal e as pessoas jurídicas a responsabilidade administrativa,
respectivamente, sendo essa corrente minoritária. Na segunda corrente baseada na teoria da
ficção jurídica, afirma que as pessoas jurídicas não podem ser punidas penalmente já que não
podem praticar condutas que são típicas de um ser humano, como as criminosas, nesse âmbito
elas não podem ser responsabilizadas por condutas que necessitem da comprovação do dolo ou
culpa e, consequentemente, não agem com culpabilidade, além de que, segundo os seguidores
dessa corrente, não faria sentido aplicar uma sanção penal a uma pessoa jurídica já que aquela
deixaria de atender a uma de suas principais finalidades que é a de reeducar o infrator, além de
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ir de encontro a teoria do crime adotada no Brasil, sendo, portanto, esta corrente a mais adotada
pelos doutrinadores do pais.
As duas últimas correntes, em contraposição as duas primeiras, admite a responsabili-
zação da pessoa jurídica em casos de danos ambientais. A terceira corrente defende que se está
previsto na constituição deve ser aplicada expressamente, inclusive a responsabilização somente
da pessoa jurídica, não ficando esta condicionada a responsabilização também da pessoa física,
podendo assim imputar a responsabilidade penal somente a pessoa jurídica, esse entendimento
foi adotado pelo STF em acordão no ano de 2013, tendo como relatora a ministra Rosa Weber:

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RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL.
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO
DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE
DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO
DA REPÚBLICA. 1. O art. 225, § 3º, da Constituição Federal não condiciona a
responsabilização penal da pessoa jurídica por crimes ambientais à simultânea
persecução penal da pessoa física em tese responsável no âmbito da empresa. A
norma constitucional não impõe a necessária dupla imputação. 2. As organizações
corporativas complexas da atualidade se caracterizam pela descentralização e
distribuição de atribuições e responsabilidades, sendo inerentes, a esta realidade,
as dificuldades para imputar o fato ilícito a uma pessoa concreta. 3. Condicionar
a aplicação do art. 225, §3º, da Carta Política a uma concreta imputação também a
pessoa física implica indevida restrição da norma constitucional, expressa a intenção
do constituinte originário não apenas de ampliar o alcance das sanções penais, mas
também de evitar a impunidade pelos crimes ambientais frente às imensas dificuldades
de individualização dos responsáveis internamente às corporações, além de reforçar a
tutela do bem jurídico ambiental. 4. A identificação dos setores e agentes internos da
empresa determinantes da produção do fato ilícito tem relevância e deve ser buscada
no caso concreto como forma de esclarecer se esses indivíduos ou órgãos atuaram ou
deliberaram no exercício regular de suas atribuições internas à sociedade, e ainda para
verificar se a atuação se deu no interesse ou em benefício da entidade coletiva. Tal
esclarecimento, relevante para fins de imputar determinado delito à pessoa jurídica,
não se confunde, todavia, com subordinar a responsabilização da pessoa jurídica à
responsabilização conjunta e cumulativa das pessoas físicas envolvidas. Em não raras
oportunidades, as responsabilidades internas pelo fato estarão diluídas ou parcializadas
de tal modo que não permitirão a imputação de responsabilidade penal individual. (1ª
Turma. RE 548181/PR, rel. Min. Rosa Weber, julgado em 6/8/2013; Info 714).

a qual se preocupou com o fato da empresa em questão ser isenta da responsabilidade,


já colocada pelo STJ em decisão anterior, já que as pessoas físicas responsáveis pelos danos
no caso analisado conseguiram provas para não serem responsabilizadas. Nessa linha entra a
questão da corrente adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a quarta e última corrente que
também admite a responsabilização porém, contrariamente a anterior, conciliada com a respon-
sabilização da pessoa física, já que a sanção penal só é aplicável as pessoas físicas e se admitin-
do que todas as decisões e atitudes tomadas em nome das empresas são comandadas por seus
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administradores e responsáveis, seria essa a corrente que atenderia de forma mais completa as
intenções da matéria e, principalmente, a sua aplicação. Como bem explica o saudoso jurista da
área de Direito Ambiental brasileiro, Edis Milaré,
Nesse viés, a quarta corrente atenderia de forma mais satisfatória a todos os requisitos,
cabendo em sua aplicação o instituto da desconsideração da pessoa jurídica para que se atin-
gissem os administradores e os responsabilizasse pelos eventuais danos. No caso da barragem
da Samarco no município de Mariana/MG, essa tese se encaixaria de forma não só a responsa-
bilizar os verdadeiros culpados pelo desastre mais também a própria empresa, já que no caso
em questão não houve tão somente os danos ambientais mais também varias pessoas perderam

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a vida no desastre, por esse motivo para que não haja qualquer impunidade seria mais viável a
aplicação desta teoria.

2.3 O instituto da desconsideração da pessoa jurídica

A desconsideração da pessoa jurídica visa à suspensão temporária da pessoa jurídica,


para se responsabilizar os seus sócios gerentes e, administradores. Segundo Tartuce “permite
ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular
responsabilidades dos sócios” e, ainda explica o mesmo autor que “o escudo, no caso da pessoa
jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador”. (TARTUCE,
2012, p. 148)
Porém, a desconsideração da pessoa jurídica, é muito utilizada no âmbito do Direito
Civil, onde se retira o véu da personalidade jurídica, para se atingir os bens dos sócios, que
cometeram fraudes.
Segundo a ementa de julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, aborda
sobre a desconsideração da pessoa jurídica e em qual condições ela deve ser utilizada:

Agravo de instrumento. Seguros. A desconsideração da personalidade jurídica, por


se tratar de medida excepcional, uma vez que pode acarretar graves e irreversíveis
prejuízos ao patrimônio particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo
de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação
patrimonial. A desconsideração da personalidade jurídica só será juridicamente
admissível quando, através do conjunto probatório, for possível denotar-se a presença
de elementos que levem à conclusão de terem os sócios agido com intenção dolosa,
infringindo preceitos legais, ou se ficar comprovada a extinção irregular da empresa,
a não integralização do capital, ou ainda nas hipóteses em que houver confusão entre
a pessoa jurídica e a pessoa física dos sócios. No caso concreto, nada disso ocorreu.
Recurso desprovido. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Sexta
Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70036178911/ Relator: Desembargador Ney
Wiedemann Neto/ Julgado em 26.08.2010) (destaquei)

Entretanto, em se tratando de Crimes ambientais essa desconsideração vem tratada na


lei: Lei 9.605 de 12.2.98 (dispõe sobre as sanções derivadas de danos ao meio ambiente), onde
estas trazem artigos especificando sobre as consequências de crimes ambientais cometidos por
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pessoas jurídicas.
Segundo o artigo dois da lei 9.605 de 12/2/98 que diz: “Art. 2º Quem, de qualquer for-
ma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas,
na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho
e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sa-
bendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para
evitá-la.”.
Bem como o artigo quatro da mesma lei, “Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa

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jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à
qualidade do meio ambiente. Lei 9.605 de 12.2.98”.
Mostrando que, em se tratando de crimes contra o meio ambiente os responsáveis pela
empresa podem ser penalizados pelos crimes cometidos em exercício de suas funções, quando
se aplica o instituto da desconsideração da pessoa jurídica.
Ainda sobre a desconsideração da pessoa jurídica em crimes ambientas, um julgado do
Superior Tribunal de Justiça, aborda o tema:

Recurso especial. Ação civil pública. Poluição ambiental. Empresas mineradoras.


Carvão mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação. Responsabilidade do
Estado por omissão. Responsabilidade solidária. Responsabilidade subsidiária.
[...] 5. A desconsideração da pessoa jurídica consiste na possibilidade de se ignorar a
personalidade jurídica autônoma da entidade moral para chamar à responsabilidade
seus sócios ou administradores, quando utilizam-na com objetivos fraudulentos ou
diversos daqueles para os quais foi constituída. Portanto, (i) na falta do elemento “abuso
de direito”; (ii) não se constituindo a personalização social obstáculo ao cumprimento
da obrigação de reparação ambiental; e (iii) nem comprovando-se que os sócios ou
administradores têm maior poder de solvência que as sociedades, a aplicação da
disregard doctrine não tem lugar e pode constituir, na última hipótese, obstáculo ao
cumprimento da obrigação. 6. Segundo o que dispõe o art. 3º, IV, c/c o art. 14, § 1º, da Lei
n. 6.938/81, os sócios/administradores respondem pelo cumprimento da obrigação de
reparação ambiental na qualidade de responsáveis em nome próprio. A responsabilidade
será solidária com os entes administrados, na modalidade subsidiária. 7. A ação
de reparação/recuperação ambiental é imprescritível. 8. Recursos de Companhia
Siderúrgica Nacional, Carbonífera Criciúma S/A, Carbonífera Metropolitana S/A,
Carbonífera Barro Branco S/A, Carbonífera Palermo Ltda., Ibramil - Ibracoque
Mineração Ltda. não-conhecidos. Recurso da União provido em parte. Recursos de
Coque Catarinense Ltda., Companhia Brasileira Carbonífera de Ararangua (massa
falida), Companhia Carbonífera Catarinense, Companhia Carbonífera Urussanga
providos em parte. Recurso do Ministério Público provido em parte. (Superior Tribunal
de Justiça – Segunda Turma/ REsp 647.493/SC/ Relator: Ministro João Otávio de
Noronha/ Julgado em 22.05.2007/ Publicado no DJ em 22.10.2007, p. 233).

3 A DESCONSIDERAÇÃO E A SANÇÃO PENAL


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Em se tratando sobre as penalidades que podem ser impostas aos administradores,


gerentes, pressuposto ou mandatário, o artigo 54 da lei 9.605 de 12.2.98, fala que “Art. 54.
Causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos
à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da
flora: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.§ 1º Se o crime é culposo: Pena - detenção,
de seis meses a um ano, e multa.§ 2º Se o crime: I - tornar uma área, urbana ou rural, imprópria
para a ocupação humana; II - causar poluição atmosférica que provoque a retirada, ainda que

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momentânea, dos habitantes das áreas afetadas, ou que cause danos diretos à saúde da popula-
ção; III - causar poluição hídrica que torne necessária a interrupção do abastecimento público
de água de uma comunidade; IV - dificultar ou impedir o uso público das praias; V - ocorrer por
lançamento de resíduos sólidos, líquidos ou gasosos, ou detritos, óleos ou substâncias oleosas,
em desacordo com as exigências estabelecidas em leis ou regulamentos: Pena - reclusão, de um
a cinco anos.”
Assim, o instituto da Desconsideração da pessoa jurídica, não somente funciona para
se restituir bens a sócios ou a empresas, como se utiliza no Código Civil, mas também para se
condenar os administradores das empresas por crimes cometidos contra o meio ambiente, onde
tal conduta tomada por quem está por trás da pessoa jurídica.
Adentrando mais a fundo na responsabilização em via penal, depois de já exposta a
corrente que será adotada para embasar os argumentos que se seguirão e a extrema importância
da aplicação do instituto da desconsideração da pessoa jurídica, constata-se que as penas que
podem ser aplicadas a pessoa jurídica serão aquelas elencadas no art. 21 da lei n°. 9.605, que
são: I- multa; II- restritivas de direitos; III- prestação de serviços à comunidade. O legislador
teve a preocupação de delimitar as penas que se aplicam dentro das restritivas de direitos e
prestação de serviços a comunidade, na primeira temos o previsto no art. 22, onde as pessoas
jurídicas podem ser obrigadas a: suspender parcial ou totalmente suas atividades quando este
não obedecer às disposições legais ou regulamentares relativas à proteção do meio ambiente;
a interdição temporária do seu estabelecimento, obra ou atividade, quando este não possuir a
devida autorização ou estiver em desacordo com a concedida, bem como se estiver violando
disposições legais ou regulamentares; por último pode chegar a ser proibida de contratar com
o poder publico, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, onde a proibição não
poderá exceder o prazo de dez anos. Em relação às prestações de serviço a comunidade, o art.
23 dispõe que as empresas deverão: custear programas e projetos ambientais; executar obras de
recuperação de áreas degradadas; realizar manutenção de espaços públicos; e por fim, poderá
também realizar contribuições a entidades ambientais ou culturais publicas.
A lei 9.605/98 foi um inegável avanço, segundo o grande escritor e estudioso da área de
direito ambiental, Édis Milaré, pois sistematizou a tutela penal no momento em que inclui tipos
culposos e faz a adoção de penas restritivas de direito, com isso se pode construir uma juris-
prudência e doutrina mais “adultas”, beneficiando o meio ambiente, pois ainda se faz necessário
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construir de fato um direito ambiental penal que proteja efetivamente todo o grande patrimônio
que possuímos. (MILARÉ; 2009, p. 1013-1014).
Ao se desconsiderar a personalidade da pessoa jurídica, então a responsabilidade tam-
bém cairá sobre os administradores que tiveram efetiva participação nos eventos do desastre.
No caso de Mariana/MG após as investigações foi constatado que alguns administradores da
empresa Samarco tinham ciência de que o desastre poderia vir a acontecer, porém, assumi-
ram o risco e continuaram as atividades normalmente, podendo imputa-los nesse viés por dolo
eventual e responsabiliza-los pelas tantas vidas perdidas no trágico acidente. O dolo eventual é

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caracterizado, segundo o penalista Cezar Roberto Bitencourt, quando

[...] o agente prevê o resultado como provável ou, ao menos, como possível, mas, apesar
de prevê-lo, age aceitando o risco de produzi-lo. Como afirmava Hungria, assumir o
risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o risco: é consentir previamente
no resultado, caso este venha efetivamente a ocorrer. Essa espécie de dolo tanto pode
existir quando a intenção do agente dirige-se a um fim penalmente típico como quando
dirige-se a um resultado extratípico. (BITENCOURT, 2011)

Logo, mesmo não querendo o resultado, os indivíduos em questão aceitaram que o


mesmo eventualmente pudesse acontecer, aceitaram o risco, podendo ser imputados pelos da-
nos de sua decisão anterior.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo que foi exposto se conclui que no caso analisado, o instituto da descon-
sideração da pessoa jurídica poderia ser aplicado de forma eficaz para que, não só a empresa
fosse responsabilizada, mais também seus administradores, tanto em via cívil como penal.
Seria uma forma de punir os reais culpados pelo desastre, haja vista que a pessoa jurídica em
questão não pertencia somente aos indivíduos que estavam em sua diretoria, mas também a
outras empresas, sendo injusto responsabiliza-las por decisões tomadas sem seu conhecimento,
caso provem que não tinham ciência dos fatos.
Salientado que a prevenção deve ser sempre a primeira medida a ser tomada, para que
a questão sobre quem deve responder pelo dano não precise ser posta em discursão. Cobrar mais
fiscalização ou pelo menos uma fiscalização efetiva é essencial, pois o que está em jogo são
nossos recursos naturais e a segurança, não só dos trabalhadores das empresas, mas, também,
das possíveis comunidades existentes no entorno.
Outro ponto importante sobre a desconsideração da pessoa jurídica é que não basta
somente uma indenização para as famílias que tiveram suas casas destruídas, ou tiveram um
ente que foi vitimado por um desastre ambiental, pois a indenização não se faz suficiente para
suprir os danos causados a vida, acidente esse provocado por negligência de uma empresa,
instituição essa gerida por pessoas que se não condenadas, farão com que surja um sentimento
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de impunidade, onde os seus gestores poderiam se esconder “atrás” da pessoa jurídica de suas
companhias, ficando esses impunes.

REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral 1. Ed. 17. São Paulo:
Saraiva, 2012.

15
BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso
em: set. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em: 17 dez.
2016.

BRASIL. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Institui o Código Civil). In:
Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acesso em: 18 dez. 2016.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Acórdão. Recurso Especial N° 548181/PR. 1ª Turma.


RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PENAL. CRIME AMBIENTAL.
RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA. CONDICIONAMENTO
DA AÇÃO PENAL À IDENTIFICAÇÃO E À PERSECUÇÃO CONCOMITANTE
DA PESSOA FÍSICA QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA. Relatora Ministra Rosa Weber, julgado em 6/8/2013, Info 714.

BRASIL. LEI Nº 9.605, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1998. Dispõe sobre as sanções penais


e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providencias. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm. Acesso em:
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COELHO, Eneias dos Santos. Desconsideração da personalidade jurídica a luz do


Código Civil brasileiro - requisitos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XVI, n. 116, set
2013. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_
leitura&artigo_id=13662>. Acesso em: set 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson. Direito civil : teoria geral. Rio de


Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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16
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TAVARES, Bruno Machado. A possibilidade da responsabilização penal ambiental das


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Objetiva do Empreendedor. 2012. 29 f. TCC (Graduação) - Curso de Direito, Ufrj, Rio de
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fa16-4af2-a11fc79a97cc881d&groupId=10136>. Acesso em: 16 dez. 2016.

THE DISREGARD OF THE LEGAL ENTITY IN CASES OF ENVIRONMENTAL


DISASTERS: A CASE STUDY OF THE DAM RUPTURE IN MARIANA / MG

ABSTRACT
The singular institute of the disregard of the juridical person present in
the Brazilian civil code has been providing a more thorough evaluation
in relation to several cases involving legal persons, preserving, in most
cases, this and making the individual responsible for the crime commit-
ted, where these Cases of environmental crimes under article 225 of the
federal constitution, their representatives (directors, administrators) of
legal entities, may be held responsible for crimes against the environ-
ment, being criminally and administratively charged for the crime. From
this perspective, the case of the dam rupture will be analyzed in the mu-
nicipality of Mariana, MG, in light of the lack of consideration, as well
as all the norms of environmental law pertinent to the event in question,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

so that one can ask who is responsible for the real responsibility and
which type Which would be applied in such cases, whether it would be a
civil, criminal or even administrative liability. It will be used as a means
to not only support the problem but also to give more credibility to the
research, some specialists who through their works in the field, mainly
environmental law, have made the subject more discussed.
Keywords: Samarco. Civil responsibility. Criminal responsibility. Case
of Mariana.

17
A FUNDAMENTAÇÃO ÉTICA DOS PUNITIVE DAMAGES E DO DEVER DE
PREVENIR DANOS

Pastora do Socorro Teixeira Leal1


Alexandre Pereira Bonna2

RESUMO
Explana um diagnóstico sobre práticas iníquias no bojo das relações
privadas, refletindo sobre a possibilidade de existirem bens internos
(no sentido macintyriano) a serem perseguidos pelos seus participantes.
Apresenta os fundamentos do Direito Natural sob a ótica de John Finnis
e sua pertinência no bojo das relações privadas. Analisa os fundamen-
tos éticos dos punitive damages. Conclui que os punitive damages se
caracterizam como um poderoso instrumento no plano ético-jurídico,
especialmente no que concerne à consecução do bem comum.
Palavras-chave: Direito natural. Responsabilidade civil. Relações pri-
vadas. Punitive damages.

1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Caminha-se em rotas tortuosas sempre que se discute a teoria dos punitive damages
(indenização punitiva) no Brasil, visto que as principais pesquisas já produzidas sobre o tema

1  Pós Doutora em Direito pela Universidade de Carlos III (Madrid). Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professora da Universidade Federal do Pará e da Universidade da
Amazônia. Desembargadora do TRT da 8ª Região. Pesquisadora de Responsabilidade Civil Contemporânea. RG n. 4722104, CPF n.
157.923.662-68, Residente e domiciliada à Avenida Almirante Wandenkolk, n. 1040, Umarizal, CEP 66055-030, Belém/Pa. Tel 091
32139414 Email: pastoraleal@uol.com.br.
2  Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Professor da Universidade da Amazônia e da Devry/Faci. Professor
Orientador do Grupo de Responsabilidade Civil da Liga Acadêmica Jurídica do Pará na área de Responsabilidade Civil. Advogado. RG
n. 5184555, CPF n. 002.190.842-70. Residente e domiciliado à Travessa Maria Leopoldina, n. 53, Nazaré, CEP 66060-180, Belém/Pa. Tel
091 988230350. Email: alexandrebonna@yahoo.com.br.

18
não investigaram a fundamentação ética do instituto, limitando-se a desbravar o cabimento ou
não dos punitive damages no ordenamento jurídico brasileiro sob o prisma dogmático. Des-
tacam-se o meu livro (2015) e o do Cristiano Chaves de Farias, Felipe Peixoto Braga Netto e
Nelson Rosenvald (2015), as teses de Ricardo Pedro e Serpa (2011), Geandrei Stefanelli Ger-
mano (2011), Marcela Alcazas Bassan (2009), André Gustavo de Andrade (2009), Carolina Vaz
(2009), a obra de Maria Celina Bodin de Moraes (2009) e o artigo de Judith Martins-Costa e
Mariana Pargendler (2005).
Os punitive damages se caracterizam como uma verba indenizatória que possui um
objetivo bem específico: impor um valor indenizatório maior do que o suficiente para compen-
sar ou reparar o prejuízo causado de modo a fomentar a dissuasão/prevenção/detenção de uma
conduta com alto grau de censurabilidade. Não se pode olvidar que esse instituto é bem versá-
til e ao lado do maior objetivo (desestimular o ofensor) acaba desempenhando muitos outros,
como função general deterrence (desestímulo de outros potenciais infratores na sociedade),
retribution (castigo), education (educação), compensation (compensação) e law enforcement
(cumprimento da lei) ou public justice (justiça pública)3, funções essas que não serão aprofun-
dadas nessa oportunidade.
Do mesmo modo, a partir da análise das diversas experiências com os punitive dama-
ges, também é possível identificar que os mesmos possuem diferentes técnicas de aplicação,
apreciação, julgamento e destinação, como a participação do júri e do magistrado num proce-
dimento denominado de bifurcado, a simples apreciação pelo magistrado, a possibilidade de
separar a verba destinada a reparação/compensação daquela referente à punição, a junção das
duas verbas em uma só, a destinação do valor indenizatório punitivo à vítima ou a destinação
da verba a um fundo ou instituição que tenha atuação com a matéria discutida. Contudo, essas
questões também não fazem parte da presente pesquisa.
A problemática que será enfrentada pelo presente artigo é se os punitive damages, para
além de possuírem fundamentação dogmática, se arrimam no campo ético, pois caso a resposta
seja positiva, os punitive damages poderão ser considerados um poderoso instrumento para os
sujeitos das práticas sociais cultivarem atos virtuosos e que contribuem para o bem comum,
promovendo, ao fim e ao cabo, a felicidade dos membros de uma comunidade específica.
A justificativa da presente investigação repousa na constatação de que nas relações
privadas e nas práticas sociais em geral há agentes, que de forma reiterada perpetram ilegalida-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

des em larga escala em face do trabalhador e do consumidor, mas em contrapartida tem como
resposta do Poder Judiciário indenizações desconexas com a gravidade dos danos, com os lu-
cros obtidos com o ilícito, com o grau de censurabilidade da conduta, etecetera, especialmente
se se considerar que a maior parte dos danos perpetrados na sociedade de risco e de massa são
reiterados e minuciosamente arquitetados sob a ótica do custo-benefício.

3  Classificação feita por Jim Gash (2005) em estudo denominado “Solving the multiple punishments problem: a call for a national punitive
damages registry”.

19
Outra alarmante preocupação que se convola em justificativa para o presente estu-
do no plano ético diz respeito à potencialidade de que os membros de relações privadas, sem
uma contrapartida efetiva do Poder Judiciário, enfraqueçam as práticas sociais no plano ético
e contribuam para o decréscimo do bem-estar e do bem comum social. Prática é qualquer ati-
vidade humana complexa, cooperativa, socialmente estabelecida, e que possua bens internos
buscados pelos componentes, que representam os padrões de excelência (MACINTYRE, 1981,
p. 187), como o jogo de xadrez, a família, a compra e venda de mercadorias e até mesmo a co-
munidade compreendida como um todo e tendo como bem interno o bem comum, o Estado de
Direito.
E o que pode se entender como bens internos a essas práticas, fundamental para a
compreensão do conceito de virtude? São bens que representam os padrões de excelência de
uma prática e, uma vez atingidos, beneficiam todos que fazem parte da prática, enquanto que os
bens externos ás práticas quando são alcançados se limitam a ser de posse e benefício apenas
de uma pessoa ou de um grupo (MACINTYRE, Op. Cit., p. 190).
Essa primeira dimensão de uma vida virtuosa está relacionada aos conceitos de práti-
cas e bens internos a essas práticas. Ou seja, é preciso compreender as práticas e os seus bens
intrínsecos que uma vez alcançados causam impacto positivo a todos que fazer parte da prática,
sendo as virtudes uma qualidade humana cuja posse e exercício prestigia os bens internos da
prática (MACINTYRE, Op. Cit., p. 191).
Importante salientar que MacIntyre não está negando às pessoas o direito de auferir
lucro e enriquecer, apenas está alertando que do ponto de vista ético poder, fama e dinheiro são
bens externos às práticas, mas devem e podem ser conquistados como consequência secundária
pela busca dos bens internos, sob pena de criar um desacordo moral, porque uma prática deve
partilhar uma ideia de bem a ser perseguida por todos os membros da prática.
Nesse sentido, atos virtuosos são aqueles que aproximam a comunidade de bens inter-
nos de práticas, de unidades narrativas e da tradição, sendo inadequado nessa pesquisa abordar
as outras duas dimensões de virtudes, cabendo apenas salientar que quanto maior o êxito das re-
feridas fases, maior a possibilidade de o ser humano realizar suas potências, florescer e ser feliz.
Destarte, a potencialidade de os membros das relações privadas se distanciarem do
bem comum se solidifica ainda na medida em que se reconhece que não existem bens internos
(no sentido macintyriano) entre os participantes das relações privadas de massa, tais como as
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

relações de consumo (fornecedor e consumidores) e de trabalho (empregador e empregado),


afirmação esta que tem sido feita por parte da doutrina:

As atividades laborais de boa parte dos habitantes do mundo moderno não podem
ser compreendidas como uma prática nos termos que MacIntyre desenvolve. Pois, ao
deslocar o trabalho produtivo de dentro dos laços comunitários, se perdeu a noção de
trabalho como uma arte que contribuía para o sustento da comunidade e dos lares. (...)
Por conseguinte, as relações meio-fins são necessariamente externas aos fins daqueles
que trabalham, e como já ressaltamos, as práticas com bens internos foram excluídas,

20
assim como as artes, as ciências e os jogos são tidos como trabalhos de uma minoria
especializada (SANTOS, 2012, p. 101/102).

Contudo, ousa-se discordar da ideia defendida pela autora, pois do contrário seria
desistir de buscar a construção de relações privadas mais justas e que contribuam em maior
grau com o bem comum. Assim, entende-se que as relações privadas possuem bens internos
sim, como a boa-fé, a qualidade dos produtos e serviços, a prevenção de danos, o estreitamento
da relação entre os participantes, etecetera, bens internos esses que uma vez alcançados, pro-
movem um incremento no bem estar de todos os participantes. É exatamente nesse aspecto que
os punitive damages podem se caracterizar como uma ferramente útil no plano ético na medida
em que desencoraja práticas indesejadas e incentiva o cultivo de atos virtuosos e em harmonia
com um ideal de prática ou de comunidade em um sentido mais amplo.
A descaracterização das relações privadas como práticas e por consequência a inexis-
tência de perseguiçao aos respectivos bens internos torna inviável a construção de uma comuni-
dade virtuosa, o alcance do bem comum e o florescimento humano dos membros das referidas
práticas. Isto porque segundo a tese de MacIntyre (Op. Cit.) existem três estágios para atingir
uma vida virtuosa em comunidade, sendo o primeiro deles e condição para os demais, o êxito
na consecução dos bens internos de práticas sociais.
O problema se agrava quando se constata que as relações privadas, especialmente as
de trabalho e de consumo, se caracterizam como uma das principais práticas do mundo con-
temporâneo porque o trabalho e o consumo se tornaram a atividade mais importante do homem
moderno (ARENDT, 2011, p. 157), de modo que aceitar a inviabilidade do alcance de seus bens
internos é praticamente obstaculizar um patamar mínimo de uma comunidade cooperativa em
prol do bem comum, colocando em xeque o nível ético de uma dada sociedade.
Na primeira parte da pesquisa serão abordadas reflexões sobre jusnaturalismo, bem
comum e justiça, tendo por base o pensamento de John Finnis exposto em “Lei Natural e Direi-
tos Naturais” (2007) e em “Aquinas” (2004). Na segunda etapa, serão feitas digressões sobre as
consequências da penetração da ética no direito a partir dos fundamentos jusnaturalistas tendo
como foco o questionamento se o instituto dos punitive damages estão em harmonia com a
construção de uma sociedade ética que fortaleça o bem comum.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2 APROXIMAÇÃO DO PROBLEMA A PARTIR DO JUSNATURALISMO: BEM


COMUM E JUSTIÇA

Apesar de nas relações privadas aparentemente os participantes busquem os seus pró-


prios interesses, não se pode negar que é possível estabelecer um conjunto de valores e bens
que se forem alcançados beneficiam todos os participantes e formam um terreno fértil para a
concretização das excelências humanas através do exercício das virtudes. Portanto, é possível
buscar um bem comum inerente à prática e ao grupo, recuperando o interesse pelo aspecto co-

21
munitário e social e é justamente nesse aspecto que o Direito, por intermédio, por exemplo, dos
punitive damages, pode impor um padrão de conduta desejável.
Deste modo, mesmo que seja uma realidade o alto nível de desinteresse pelo outro no
bojo das práticas sociais, notadamente as de consumo e de trabalho, onde os participantes ten-
dem a buscar seus próprios interesses ao invés do bem do grupo, não se deve perder de vista que
conceder um alto peso à liberdades e escolhas individuais pode representar uma grave disordem
no plano social, pois quanto mais fraco são os laços de dependência dentro de um grupo mais
distante fica o ideal de cooperação em prol de um objetivo comum.
Ora, mas o que tudo isso e o problema introduzido têm a ver com a justiça e com o bem
comum de uma dada comunidade? A justiça é uma das exigências da razoabilidade prática, que
é um dos bens humanos básicos e tem por objeto a realização do bem comum. Desse modo, a
justiça está relacionada à colaboração em conjunto em relação a certos valores na esteira de uma
reciprocidade, reconhecendo o que é devido a outrem como um direito de outrem e um dever
seu e inviabilizando escolhas arbitrárias para os projetos de vida. Quanto mais justas forem as
relações dos membros, mais fértil é o terreno para o alcance de bens internos, gerando uma
onda de benefício para todos os participantes e assegurando maiores condições para a consecu-
ção dos projetos particulares de cada um.
É por esse motivo que o objetivo do Direito, dentro de uma concepção jusnaturalista,
é compreender quais são os bens humanos básicos (vida, conhecimento, jogo, experiência, es-
tética, sociabilidade, razoabilidade prática, religião) que indicam as formas básicas de floresci-
mento, sendo possível, a partir dos critérios da razoabilidade prática (um plano de vida coerente,
sem preferência arbitrária por valores, sem preferência arbitrária por pessoas, desprendimento,
compromisso, a relevância limitada das consequências, respeito por cada valor básico em cada
ato, exigências do bem comum, seguir a consciência) “distinguir entre atos que são razoáveis
levando-se tudo em consideração e atos que são desarrazoados” (FINNIS, 2007, p. 30/36).
De todos os requisitos da razoabilidade prática, o mais pertinente com a presente pes-
quisa é o bem comum, ou melhor, aquilo que é exigido pelo mesmo. Em uma compreensão bem
ampla, ele está relacionado com o pautar como razão para o agir o bem do outro (FINNIS, 2007,
p. 143/144), que envolve, dentre outras coisas, garantir um “conjunto de condições que tendem a
favorecer, facilitar e promover a realização, por parte de cada indivíduo, de seu desenvolvimen-
to pessoal (...) para que cada um dos membros atinge seus próprios objetivos” (FINNIS, 2007,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

p. 148/157).
Quando se volta para a envergadura social de alguns danos perpetrados no bojo das
relações privadas de massa, se percebe que a fraqueza do Direito para detê-las ofusca a possi-
bilidade de alcançar uma comunidade plenamente realizada e completa do ponto de vista ético,
pois o bem comum relativo à prática das relações privadas não estará sendo alcançado, o que
causa muitas vezes o rebaixamento da qualidade de vida dos participantes.
Nesse desiderato, se é possível refletir o direito a partir de bens humanos básicos, é
possível então julgar decisões, leis e práticas sociais à luz da obediência ou não a tais bens, pois

22
do contrário serão consideradas deficitárias quanto ao caso central. Assim, o jusnaturalismo
exige que os bens humanos básicos sejam superiores às instituições, leis, decisões e práticas, o
que se caracteriza como uma exigência muito mais abrangente e forte de determinados padrões
de conduta de envolvidas em práticas e instituições, sendo possível fazer severas críticas sobre
o uso da autonomia privada e da propriedade privada no contexto das relações de trabalho e de
consumo, visto que se esse sistema privado não estiver promovendo o bem comum não estará
satisfazendo uma exigência de justiça e, portanto, mesmo que a Lei Positiva esteja inteiramente
sendo cumprida, a referida prática será injusta.
O raciocínio jusnaturalista não é antagônico a Lei Positiva, ao contrário, busca em
grande intensidade reafirmar, fortalecer e solidificar o que aquela propunha (FINNIS, 2015, p.
1). Além disso, o que o jusnaturalismo propõe é compreender que a Lei Positiva é apenas uma
das facetas fundamentais do direito e que não pode existir dissociada, independente e alheia a
qualquer valoração de cunho ético relativa aos bens humanos que devem ser perseguidos. Ao
contrário, o Direito pode e deve ser fundamentado também como uma boa razão para a ação no
plano ético, visto que um conjunto de normas legisladas ou de precedentes judiciais não podem
por si só serem considerados uma boa razão para a ação, como destaca Carlos Massini-Correas,
comentando o pensamento de John Finnis:

(…) ningún hecho o conjunto de hechos, por muy complejo que sea, puede proporcionar
por sí mismo una razón para actuar (…) en la medida en que se enorgullece de ocuparse
sólo de hechos, no puede ofrecer una comprensión adecuada, ni de las razones para
la acción (los deberes), ni de la única fuente concebible de estos deberes, es decir, los
verdaderos e intrínsecos valores (2015, p. 43/44)

Portanto, o jusnaturalismo não nega a validade do Direito no plano institucional e


social-fático, apenas compreende que essa é apenas uma dimensão de validade para uma visão
completa do Direito, que deve ser visto também sob o plano ético, porém ambas as dimensões
integram o que se pode denominar de Direito (MASSINI-CORREAS, 2015, p. 31). Ratifica-se,
o que é considerado natural no jusnaturalismo é o que esteve em harmonia com os requisitos da
razoabilidade prática, que envolve, dentre outras exigencias, o respeito ao bem comum. Por esas
e outras razões, o jusnaturalismo já foi mal interpretado por aqueles que pensam que o mesmo
persegue a natureza como algo relacionado aquilo que é inerente à vida humana ou a impulsos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

naturais, negligenciando que o jusnaturalismo é um apelo à razão. Nesse sentido:

Aquinas is particularly clear and explicit that in this context, “natural” is predicated of
something (say, a law, or a virtue) only when and because that of which it is predicated
is in line with reason, practical reason, or practical reason’s requirements.” (FINNIS,
2015, p. 3)

So, in the philosophy of human affairs, when one predicates ‘natural’ or ‘naturally’
of such a community and its arrangements, one does not mean ‘automatically’, or ‘by

23
virtue of innate subrational inclination’ or of any other ‘natural impulse’. Nor does one
mean ‘usually’ or ‘very frequently’ or standardly’. Rather, one means ‘rationally’, i.e.
as judged by the standards for judging our actions reasonable or unreasonable, right
or wrong: things are ‘naturally’ X for human persons when they are X ‘in accordance
with right reason‘”. (FINNIS, 2008, p. 45)

A partir dessas noções basilares sobre o jusnaturalismo e a abordagem inicial sobre


as práticas iníquas no bojo das relações privadas, torna-se possível vislumbrar que o Poder
Judiciário, no manejo e na aplicação do Direito, possa e deva confrontar as leis, precedentes
e práticas sociais à luz dos comandos éticos relativos aos bens humanos básicos. Deste modo,
utilizando como ponto basilar a ideia de bem comum e justiça, o magistrado poderá reprimir
aquelas condutas que estejam em desarmonia com ambas as esferas de validade do direito e,
para tanto, poderá fazer uso do instituto dos punitive damages, que possui como objetivo prin-
cipal desestimular condutas indesejadas.

3 FUNDAMENTOS ÉTICOS DOS PUNITIVE DAMAGES

A penetração da fundamentação ética calcada no direito natural na análise de qualquer


categoria jurídica, inclusive a responsabilidade civil, provoca impacto no sentido de restringir a
autonomia dos membros de uma comunidade na medida em que a qualidade do que é direito e
dotado de coercitibilidade é incrementado por reflexões de cunho ético. Embora os participantes
de práticas sociais sejam livres para realizarem seus projetos, essa liberdade deve ser brecada
quando não passar no crivo da razoabilidade prática, que envolve, dentre outras, a consecução
do bem comum.
Em acréscimo, se a autonomia só tem valor se exercida em prol do bem comum, se
adequando com opções moralmente aceitáveis (MASSINI-CORREAS, Op. Cit., p. 131) torna-
-se corolário lógico que práticas sociais danosas devem ser compreendidas como incompatíveis
com o bem comum e que qualquer categoria jurídica que venha a corroborar com essa tarefa
seja considerada bem fundamentada ao menos sob o ponto de vista ético, tendo em vista que
abandona o apego à autonomia como um fim em si mesmo, sem compromisso com o bem
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

comum:

La adquisición de la autonomía por una persona (…) la habilita para realizar el tipo
de elecciones con las cuales puede realizar. (...) La autonomía no puede proveer
[en sí misma] una razón última para la acción. Y consecuentemente, es incapaz de
proporcionar fundamento razonable a la exigibilidad de los derechos. (MASSINI-
CORREAS, Op. Cit., p. 131)

Se a autonomia fosse um fim em si mesmo e não estivesse passível de sofrer reprimen-


das do Estado, estar-se-ia próximo de um estado de coisas anárquico no qual nenhuma insti-

24
tuição tem legitimidade para de forma eficaz restringir desvios no bojo de litígios e situações
danosas sem resolução no campo extraproxessual (FINNIS, 2015, p. 3). Sendo assim, o direito
natural acentua ser inarredável a presença de uma instituição dotada de autoridade para impor
limites às escolhas/atos individuais:

The first issue that Aquinas takes up about human law in his set-piece discussion of law,
Summa Theologiae, I-II, q. 95 a. 1, is whether human law [positive law] is beneficial
—might we not do better with exhortations and warnings, or with judges appointed
simply to “do justice”, or with wise leaders ruling as they see fit? (FINNIS, 2015, p. 2/3)

Além disso, não se pode perder de vista que ao fim e ao cabo a limitação a determina-
das práticas danosas possui como esteio o alcance do bem comum, podendo a responsabilidade
civil, por intermédio dos punitive damages servir de mecanismo de efetivação da Justiça Dis-
tributiva, na medida em que a verba indenizatória de cunho punitivo atingirá o bem comum e
contribuirá para uma justa distribuição de encargos na sociedade de massa e de risco. Portanto,
a responsabilidade civil não é apenas um instrumento da justiça comutativa – tendo por objeto
a reposição de perdas injustamente causadas – mas também de justiça distributiva, entendida
como o conjunto de exigências de colaboração que intensificam o bem-estar e as oportunidades
de florescimento do ser humano (FINNIS, 2007, p. 165).
Trocando em miúdos, a justiça distributiva parte do pressuposto de que não são todos
os seres humanos que possuem as condições essenciais para o florescimento e atualização de
suas potencias (realização de projetos de vida), motivo pelo qual para que se persiga o ideal de
que todos alcancem a sua felicidade a partir da efetivação dos bens humanos básicos (como
a vida, a sociabilidade, o jogo, conhecimento, experiência estética, dentre outros) deve haver
– em uma sociedade extremamente desigual - uma efetiva colaboração das pessoas, sendo o
papel da justiça distributiva coordenar o a distribuição de recursos, oportunidades, lucros, ônus,
vantagens, papeis, responsabilidades, e encargos” (FINNIS, 2007, p. 167/173).
A responsabilidade civil é sim um problema também de justiça distributiva, pois deve
ser motivo de reflexão por parte dos juízes, advogados, defensores, legisladores e procuradores
se – à luz dos novos comandos constitucionais - ela não deve ser adequadamente dimensionada
de modo a atribuir o ônus de arcar com indenizações punitivas e preventivas para o caso de
violações constantes e graves de interesses juridicamente protegidos, possibilitando o fomento
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

do bem comum e dos bens humanos básicos na medida em que inibe/atua conduta presente
potencialmente causadora de dano.
Infere-se a compatibilidade dos punitive damages com os fundamentos éticos jusnatu-
ralistas na medida em que os mesmos visam a brecar condutas com alto grau de danosidade e
censurabilidade, por danos físicos ou econômicos, alto grau de desinteresse pela vítima, reitera-
ção e muitas vezes se caracterizam pela tentativa de se beneficiar da vulnerabilidade do outro.
Por essas e outras, as práticas combatidas pelos punitive damages são contrárias ao direito por
serem antagônicas às exigências do bem comum e negligenciarem o ideal de respeitar os aspec-

25
tos básicos dos membros de uma dada comunidade.
Deste modo, o Poder Judiciário deve se imbuído de razões de cunho ético para limitar
o campo de atuação da autonomia, tendo sempre em vista uma concepção de bem comum que
favoreça o florescimento humano, sendo necessário para isso, em casos mais graves, impor uma
indenização maior do que a suficiente para compensar ou reparar o prejuízo, de modo a desesti-
mular a conduta do ofensor que esteja desatinada com o bem comum da sociedade que o cerca.
Deve-se, portanto, compreender o compromisso do Direito com a detenção e desestímulo de
condutas indesejáveis, pressupondo que a investigação racional para determinar o que é o direi-
to não abre mão da investigação do que o bem comum exige em um dado contexto, exigência
esta que se torna parte do direito e da noção do que é justo no particular.
Nesse viés, o problema da justiça exige preocupação com a maneira mais adequada de
tratar o outro, de modo a preservar uma razoável relação entre as pessoas, o que exige certa-
mente o dever de evitar a prática de atos danosos, assim como o dever de suportar a punições
pelas infrações cometidas (FINNIS, 2008, p. 188). Assim, aquelas condutas mais graves no
âmago das relações privadas devem ser eliminadas a partir do manejo do valor indenizatório
com o fim de neutralizar a subsistência de relações e práticas injustas, como destaca John Finnis
à luz do pensamento de Tomás de Aquino sobre o direito de danos:

Aquinas sees ‘recompense’ or ‘compensation’ in Aquinas’ thought this ‘cure’ involves


far more than the possible reform of the offender, and includes also the restraining
and the sheer deterrence of the offender and of everyone else who needs deterring
from wrongdoing and coercive inducement to decent conduct. and of everyone else
who needs deterring from wrongdoing and coercive inducement to decent conduct (...)
this (re)ordering {ordinativa} point of punishment can either be accounted remedial
{medicinalis}, or contrasted with the remedial (deterrent, reformative) (2008, 211/212).

Cabe salientar que não se está a defender o cabimento de indenizações milionárias que
inviabilizem a iniciativa privada, visto que alguns dos requisitos para que os punitive damages
guardem harmonia com a fundamentação ética é que o ato em análise seja muito grave, o valor
das indenizações punitivas seja proporcional ao mal causado e ao objetivo de desestimular o
ofensor, ideias estas que guardam relação com o objetivo de perquirir o bem comum presentes
no pensamento de Tomás de Aquino exposto por John Finnis (2008, 211/212): “punishment,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

though merited, need not be imposed when its imposition would cause disproportionate harm to
others; punishment is a matter of fairness and the measure of that fairness is the common good
for the whole community.”
Além do mais, não há que se falar que os punitive damages não podem contribuir para
o bem comum sob o pretexto de que ele é aplicado apenas diante de um caso concreto e de um
grupo e de uma prática específica, porém essa visão é equivocada em relação à teoria jusnatu-
ralista, visto que quaisquer ações que contribuam para o bem comum são justas e constituem
deveres de justiça, como explica Luis Fernando Barzotto (2003, p. 2): “o termo ‘geral’ aplicado
a este tipo de justiça refere-se à sua abrangência: todos os atos, independentemente da sua natu-

26
reza, na medida em que são devidos à comunidade para que esta realize o seu bem, constituem
deveres de justiça”.
Destarte, por intermédio dos punitive damages, ao deter um padrão de conduta em
desarmonia com o bem comum e incentivar ações que abracem as exigências éticas, o Poder
Judiciário cria um terreno fértil para alcançar o bem comum indiretamente, pois, embora se
trate de uma justiça particular, consequentemente beneficia a todos os componentes de uma
comunidade, como se observa nessas lições de Luis Fernando Barzotto:

Como o ser humano é, para Tomás, um animal social, o fato de a justiça particular
visar diretamente o bem do particular não significa que ela seja alheia ao bem comum:
a justiça particular “dá a cada um o que é seu em consideração ao bem comum.” De
fato, o ato de pagar uma dívida, por exemplo, beneficia diretamente o credor, mas
indiretamente beneficia a todos, na medida em que este ato reforça e reafirma o
sistema de crédito necessário à vida econômica da comunidade. Como foi visto, isto
não significa que a justiça particular possa ser pensada à margem do bem comum.
Ao contrário, algo só é devido a um particular em vistas do bem comum, seja em
uma distribuição, seja em uma troca. A justiça particular visa diretamente o bem do
particular e, indiretamente, o bem comum (BARZOTTO, Op. Cit., p. 2/7).

4 CONCLUSÃO

Apresentadas as principais diretrizes do prisma jusnaturalista do direito, assim como


as bases da teoria dos punitive damages, conclui-se que a vida em sociedade é uma vida de dé-
bitos, pois todos devem algo a alguém, sendo um desses débitos o de não lesar outrem alterum
non laedere. Assim, viver em sociedade é viver com restrições em suas ações e assumir as
consequências por condutas danosas (BARZOTTO, Op. Cit., p. 11).
Os punitive damages possuem esteio ético na medida em que contribuem para a con-
secução do bem comum e contribuem para uma justa distribuição de encargos na sociedade
de massa e de risco, forçando que os participantes de relações privadas, em especial gandes
fornecedores, pautem suas decisões sobre qualidade e segurança de produtos, serviços e con-
dições de trabalho em um nível ótimo. Do contrário, suportarão um valor indenizatório alto o
suficiente para que o ofensor internalize os danos que causou, o fazendo tomar o devido cuidado
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

em sua atividade, trazendo como lição que é vantajoso manter um nível ótimo de qualidade e
atendimento e arcar com menos indenizações (carregadas pelos punitive damages) ao invés de
conservar um nível baixo de qualidade e ser obrigado a pagar altas indenizações (VISSCHER,
2009, p. 220).
Desse modo, os punitive damages podem romper com a iníqua equação pautada pelo
resultado de uma relação custo/benefício do seu comportamento em detrimento dos direitos dos
consumidores, trabalhadores e de todas as vítimas inseridas no contexto dos danos em massa,
impedindo o ofensor de se beneficiar ou lucrar com o dano causado ou de encontrar na sanção

27
meramente compensatória um preço conveniente (ANDRADE, Op. Cit., p. 258).
Nesse espectro, surge a importância de – a partir dos punitive damages – tornar um ato
ou um padrão de conduta danoso desvantajoso, desencorajando, coibindo, detendo e impedindo
a sua reiteração da seguinte forma: caso o autor do dano, ao reiterar os atos que vem praticando,
verificar que o pagamento de indenizações arbitradas judicialmente na proporção dos danos
causados ainda deixá-lo em uma posição economicamente favorável, com custos decorrentes
de indenizações e processos judiciais menores do que os lucros obtidos pela ilicitude, a perpe-
tração de danos subsistirá porque a lógica de gastos-despesas continuará o orientando para a
manutenção da conduta reprovável. Contudo, uma vez que a indenização de cunho punitivo se
acople à compensatória, se começa a vislumbrar uma revisão da vantagem em manter-se viola-
dor (VOLOKH, 1996, p. 10).

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29
THE ETHICAL FOUNDATION OF PUNITIVE DAMAGES AND THE DUTY TO
PREVENT DAMAGES

ABSTRACT
It explores a diagnosis of practices in the bulge of social relations, re-
flecting on the possibility of internal goods (in the Macintyrian sense)
to be pursued by its participants. It presents the foundations of Natural
Law from the perspective of John Finnis and his pertinence in the bo-
som of private relations. Analysis of the ethical foundations of puni-
tive damages. It concludes that punitive damages are characterized as a
powerful instrument to achieve ethical demands, especially as regards
the attainment of the common good and justice.
Keywords: Natural law. Tort law. Private relations. Punitive damages

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

30
A REVISTA ÍNTIMA E SUA APLICAÇÃO NAS RELAÇÕES LABORATIVAS

Marcyo Keveny de Lima Freitas1


Patrícia Borba Vilar Guimarães2

RESUMO
O presente estudo visa compreender a aplicabilidade da revista íntima
nas relações trabalhistas, na medida em que tal tema traz a tona o poder
excessivo do empregador na tomada de atitudes desproporcionais por
meio de condutas vexatórias que agridem, frontalmente, os direitos à in-
timidade e à privacidade do empregado. A revista íntima caracteriza-se
como um procedimento que colide interesses opostos como o direito à
intimidade e à privacidade do trabalhador e o poder diretivo do empre-
gador. Assim, por ser um tema bastante contemporâneo, enseja que a
doutrina e a jurisprudência muito debatam acerca da legalidade e quais
os limites impostos ao empregador para que venha realizar o procedi-
mento de revista em seus empregados. Havendo a colisão de direitos
nas relações de trabalho entre o poder de fiscalização do empregador e
os direitos fundamentais do empregado, as soluções apresentadas nos
casos concretos devem sempre buscar harmonizar as normas constitu-
cionais, procurando manter a unidade da Constituição.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Palavras-chave: Revista íntima. Relações trabalhistas. Dignidade da


pessoa humana.

1  Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNI-RN. Especialista em
Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Especialista em Direito
Previdenciário pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus. Advogado. E-mail: marcyolima@
hotmail.com
2  Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre pelo Programa Interdisciplinar
em Ciências da Sociedade, na área de Políticas Sociais, Conflito e Regulação Social, pela Universidade Estadual
da Paraíba. Doutora em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande. É Advogada e
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. E-mail: patriciaborb@gmail.com

31
1 INTRODUÇÃO

A busca pela compreensão dos diversos aspectos da relação empregado/empregador


ou trabalho/capital será inevitavelmente complexa devido à instabilidade de que está imbuída,
sobretudo quando a pesquisa incide sobre a dicotomia entre os Direitos Fundamentais do tra-
balhador e os procedimentos invasivos instituídos pelas empresas com vistas a resguardar os
seus interesses.
De um lado o empregado visa à manutenção do seu emprego, submetendo-se muitas
vezes às exigências impostas pelo mercado de trabalho, até mesmo, ocasionalmente, em detri-
mento dos seus direitos. Por outro lado, o empregador, com o objetivo de condizer suas ativi-
dades da maneira mais segura possível, do ponto de vista do capital, ocasionalmente institui
medidas passíveis de afrontar o direito dos trabalhadores.
Nesse sentido, o presente trabalho busca justamente determinar até que ponto a revista
íntima é legítima em face do ordenamento jurídico pátrio e os parâmetros de sua utilização em
consonância com os direitos fundamentais.
Com efeito, ambas partes retiram proveito da relação de trabalho, de modo que a sua
manutenção coincide com os interesses não apenas daqueles que literalmente vendem sua força
laboral, como daqueles que a utilizam na condução dos objetivos de suas empresas. Entretanto,
deve-se observar que há aí uma relação de poder integrada não apenas pelos sujeitos expressos
(empregado/empregador), mas também pelo Estado.
De fato, desde o advento do Estado Social, a partir da edição das constituições do
México e Weimar, para que a igualdade substancial pudesse ser preservada, de um modo geral,
nas relações sociais e, de modo particular nas relações de trabalho, o Estado passou a intervir
na esfera particular, assegurando assim, a todo e qualquer indivíduo, os direitos fundamentais
que lhe são inerentes.
Paralelo a isso, e no intuito de resguardar seu patrimônio, alguns empregadores defen-
dem a prática da revista de seus empregados. Porém, ao fazê-la, não atentam às consequências
jurídicas que podem advir de suas condutas, ou seja, se esta revista está ou não em consonância
com o ordenamento jurídico vigente.
Questiona-se, assim, se os meios de fiscalização e controle das atividades dos empre-
gados, de que se vale o empregador no ambiente de trabalho, ofendem ou não a tutela constitu-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

cional da intimidade da pessoa humana.


A justificativa da pesquisa decorre da relevância social do problema, uma vez que um
número massivo de pessoas participa dessas relações, e também pelo fato de a questão não ter
amparo legislativo, ficando a cargo da jurisprudência e da doutrina oferecer uma resposta satis-
fatória aos conflitos que daí podem surgir.
Contudo, deverá ser estudado os Direitos Fundamentais que serão possivelmente os
mais afetados, dos quais estão os direitos à intimidade, à vida privada e à honra. Não esque-
cendo o mais importante princípio que serve de base e ligação para todos os outros Direitos

32
Fundamentais, que é o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Sendo também analisado por
uma interpretação sistemática de todo o ordenamento jurídico, na Constituição de 1988.
Sendo necessário ainda o estudo no contrato de trabalho, para compreendermos os po-
deres do empregador. Já que o poder empregatício é o gênero dos demais poderes que decorrem
deste, como o poder diretivo, poder disciplinar, poder de controle.
Para finalizar, o trabalho aborda os posicionamentos dos nossos tribunais a respeito da
revista íntima e da revista pessoal, estabelecendo a distinção entre essas duas espécies. Além
disso, oferece uma solução aceitável para a questão, instituindo uma regra geral de conduta a
ser aplicada aos casos concretos, já que não existe posicionamento uníssono em nosso direito.
O presente estudo busca conciliar os vários aspectos e interesses de empregados e em-
pregadores ao instituir a validade da revista íntima e da revista pessoal, estabelecendo, porém,
parâmetros que garantam a sua aplicação legítima. A pesquisa tratou ainda da distinção entre
revista íntima e pessoal, tão frequentemente confundidas nos estudos doutrinários.
O método utilizado no desenvolvimento do trabalho foi principalmente a pesquisa bi-
bliográfica e jurisprudencial, sempre buscando uma síntese a partir do confronto dialético entre
os diversos posicionamentos encontrados.

2 DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS CARACTERÍSTICAS: A ATUAÇÃO DO


ESTADO E A INCIDÊNCIA SOBRE AS RELAÇÕES PRIVADAS

Os Direitos Fundamentais consistem em meios de proteção do indivíduo frente à atua-


ção estatal. Seu surgimento remonta à formação do Estado Liberal com a queda do Antigo
Regime. Percebeu-se que a concentração de prerrogativas nas mãos dos dirigentes deveria ser
acompanhada de garantias, titularizadas pelos cidadãos, que assegurassem certa proteção ante
a eventuais abusos e ingerências perpetradas pelos próprios governantes.
Sua definição torna-se mais complexa quando analisada sob a perspectiva histórica e
social. A sua problemática surge quando buscamos um fundamento absoluto para resguardá-los,
de modo a garantir seu correto cumprimento ou até mesmo utilizá-los como meio de coação. De
fato, por estarem alicerçados sobre concepções morais a importância atribuída a tais direitos
varia de acordo com as circunstâncias geográficas e cronológicas em que estão inseridos.
Na seara específica do direito do trabalho, a doutrina reconhece que os direitos funda-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mentais possuem, dentre outras funções, a de garantir o mínimo ético necessário a manutenção
sadia da relação entre empregadores e empregados. Nesse sentido, Amauri Mascaro do Nasci-
mento (2011, p.906) leciona que tais direitos possibilitam a “organização jurídico-moral da so-
ciedade quanto à vida, saúde, integridade física, personalidade e outros bens jurídicos valiosos
para a defesa da liberdade e integração dos trabalhadores na sociedade e perante o empregador”.
Os Direitos Fundamentais foram reconhecidos progressivamente e classificados em
três, quatro ou cinco gerações conforme a doutrina adotada. A primeira geração de direitos
fundamentais expressa o que Norberto Bobbio (1992) denominou liberdade dos modernos, cor-

33
respondendo ao simples direito de ir e vir e a garantia de poder fazer tudo aquilo que não é
expressamente proibido pelo Estado.
O direito de liberdade regula o comportamento do Estado perante as pessoas, resguar-
dando direitos básicos tais como: a vida, dignidade, integridade física, intimidade e inviola-
bilidade do domicílio, a legitimação e a aplicabilidade nas instituições privadas, tanto físicas
quanto jurídicas, prevenindo a supressão da liberdade do empregado pelo empregador.
A segunda geração exige prestações por parte do Estado para que as diferenças sociais
possam ser diminuídas. Trata-se de garantir a igualdade substantiva, uma vez que a ampla li-
berdade, com seu ideal de igualdade objetiva perante o Judiciário não impedia o surgimento de
injustiças relacionadas às diferenças fáticas existentes entre os jurisdicionados. Surgem, então,
os direitos de segunda geração, oferecendo melhores condições de sobrevivência às pessoas,
tais como: saúde, educação, assistência social, o trabalho, entre outros direitos sociais.
Importante destacar que estes são direitos fundamentais de grande relevância para o
presente trabalho, pois estão profundamente ligados com os valores da dignidade e igualdade.
Portanto, o Estado terá a obrigação de agir positivamente no sentido de garantir a igualdade
entre os indivíduos. Tais direitos marcam a transição entre os modelos liberal e social de Esta-
do, surgi ai uma maior preocupação com o direito dos hipossuficientes, a ordem jurídica passa
a considerar os aspectos singulares de cada pessoa. É possível afirmar que é no âmbito desta
geração que torna a valer a concepção aristotélica de justiça, como tratar igualmente os iguais
e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.
A chamada terceira geração de direitos fundamentais, por sua vez, é a que abrange os
direitos coletivos e difusos. Cabe salientar, que o ordenamento jurídico brasileiro define o que
são direitos coletivos e difusos no interior do microssistema de processo coletivo, mais especi-
ficamente no art. 81 da Lei n.º 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor).
Assim, entende-se por direitos difusos os interesses transindividuais e indivisíveis,
titularizados por pessoas indeterminadas ligadas por circunstâncias de fato, enquanto os inte-
resses coletivos são orientados para grupos, classes ou categorias determináveis. Na trilogia dos
direitos fundamentais, a terceira geração corresponde aos direitos de fraternidade, tendo geral-
mente como objeto bens utilizados por qualquer um sem distinção, tais como o ar, a luz solar.
Por tanto, esta geração se caracteriza por albergar direitos de uma sociedade indeterminada ou
classe humana mesma.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Já a quarta e quinta gerações correspondem a direitos de solidariedade e diferença,


sendo que apenas uma parcela muito pequena da doutrina discorre sobre direito de tal natureza.
Ademais, os direitos fundamentais apresentam características próprias, tais como: his-
toricidade, imprescritibilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, concorrên-
cia, efetividade dentro outros.
É direito de todas as pessoas, brasileiras ou estrangeiras, serem asseguradas no nosso
território por serem detentoras dos Direitos Fundamentais e o Estado tem deverá resguardá-los.
Assim, os Direitos Fundamentais são garantias constitucionais que representam verdadeiros

34
limites aos órgãos do Poder Público. Tem o objetivo de combater qualquer forma de violação,
no intuito de assegurar-lhes a efetivação.

2.1 A Constituição Federal e os Direitos dos Trabalhadores

Por contrato de trabalho, entende-se geralmente o acordo tácito ou expresso ao qual


correspondente a relação de emprego. Tal avença é o ato jurídico que cria a relação sinalagmá-
tica de emprego, ou seja, desde o momento de sua celebração dá origem a direitos e obrigações
para ambas as partes.
Os sujeitos que integram a relação de emprego correspondem a empregador e em-
pregado. A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, define, no seu art. 3º, empregado como
“toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a depen-
dência deste e mediante salário”. Depreende-se daí os requisitos para que tal relação seja carac-
terizada: não eventualidade, onerosidade, subordinação e presença de pessoa natural ocupando
o polo do empregado.
Por sua vez, o empregador é toda empresa individual ou coletiva que exerce uma ativi-
dade econômica, que admite, assalaria e dirige uma prestação pessoal de serviço. O empregador
é o responsável por administrar a empresa, controlando o serviço de sua equipe para obtenção
do melhor desempenho econômico possível.
Neste viés, quanto a proteção dos direitos fundamentais e sua relação com a seara
trabalhista, é preciso considerar que os direitos fundamentais foram sistematizados na Consti-
tuição Brasileira de 1988, que traz um extenso rol dessas garantias no seu art. 5º, no qual estão
previstos diversos direitos e deveres individuais e coletivos. Apesar dessa enumeração, a Cons-
tituição guarda ainda outros direitos de igual natureza em outros pontos do seu texto, sendo
possível falar em direitos fundamentais inseridos mesmo na ordem infraconstitucional.
O início da aplicação da expressão ‘direitos fundamentais’ ocorreu nas últimas déca-
das do século XX, passando a doutrina e os textos normativos a utilizá-la correntemente para
indicar a proteção das pessoas perante o Estado.
A Constituição Federal de 1988, consagrou de suma importância a proteção da dig-
nidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, inserindo-a no seu art. 1º,
inciso III. Essa disposição realçou a importância da proteção à pessoa humana na nova ordem
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

democrática.
A Constituição Federal tutela os direitos da personalidade na condição de direitos fun-
damentais, conferidos pela ordem jurídica com vistas a resguardar e preservar a pessoa humana
contra agressões praticadas pelo Estado ou por outros indivíduos.
Por existir a diferença econômico-social entre empregado e empregador, é fundamen-
tal a aplicação dos direitos fundamentais nesta relação, já que constitui um ambiente em que
possíveis conflitos podem surgir com intensa facilidade.
Os direitos da personalidade têm como finalidade resguardar as qualidades e os atri-
butos possuídos pelos empregados e manifestos de maneiras diversas no interior da relação de

35
trabalho. Sua guarida tem ainda a finalidade precípua de garantir a observância e a efetividade
do princípio da dignidade da pessoa humana no Direito do Trabalho de um modo geral, e nas
relações de trabalho em particular.
Os direitos dos trabalhadores foram conquistados com muitas lutas, no século XX,
por manifestações pelos operários. Estes direitos são conhecidos também como direitos sociais.
Para assegurar sua efetividade e proteção da pessoa do trabalhador, como condições de traba-
lho e sua qualidade de vida, foi necessário respalda-los na Declaração Universal dos Direitos
Humanos das Nações Unidas de 1948, sendo ratificado pelas Convenções da Organização Inter-
nacional do Trabalho (OIT), assim como pelas Convenções Internacionais das Nações Unidas a
respeito dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos e Sociais (1966).
Os direitos sociais têm como objetivo garantir aos indivíduos condições materiais tidas
como imprescindíveis para o pleno gozo dos seus direitos, por tal motivo tendem a exigir do
Estado uma intervenção na ordem social que assegure os critérios de justiça distributiva, assim
diferentemente dos direitos a liberdade, se realizam por meio de atuação estatal com a finali-
dade de diminuir as desigualdades sociais, por isso tendem a possuir um custo excessivamente
alto e a se realizar em longo prazo.
O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 se refere de maneira bastante genérica aos
direitos sociais por excelência, como o direito a saúde, ao trabalho, ao lazer entre outros. Par-
tindo desse pressuposto os direitos sociais buscam a qualidade de vida dos indivíduos, no en-
tanto apesar de estarem interligados faz-se necessário, ressaltar e distinguir as diferenças entre
direitos sociais e direitos individuais. Portando os direitos sociais, como dimensão dos direitos
fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indire-
tamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida
aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais, são,
portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.
Já no artigo 7º da mesma Constituição, visou a melhoria da condição social dos traba-
lhadores. Neste caso, sobre a valorização do trabalho, alçado a patamar constitucional, dispõe
Maurício Godinho Delgado:

Considerando que a democracia atribui poder também às classes menos abastadas


e que, para essas pessoas, o trabalho é o único meio de garantir certo poder social,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

percebeu o legislador constitucional ser basilar a instituição de um sistema econômico-


social que valorize o trabalho humano. (DELGADO, 2006, p.658).

A Constituição Federal de 1988 teve uma preocupação especial quanto aos direitos
sociais dos trabalhadores, pois foi estabelecida uma série de dispositivos que assegurassem aos
cidadãos todos os direitos básicos necessários para que tenham condições de trabalho e empre-
go digno. Em suma, todas as formalidades para que se determinasse um Estado de bem-estar
social para o brasileiro foram realizadas, e estão na Constituição Federal de 1988.
O direito ao trabalho é garantido pela Constituição Federal brasileira em seu 6° artigo

36
no rol dos direitos sociais, do artigo 7° ao 11° estão previstos os principais direitos para os tra-
balhadores que atuam sob a lei brasileira assim como a Consolidação das Leis de Trabalho, no
entanto não existe um instrumento formal que garanta trabalho aos brasileiros, o que existem
são leis que visam assistir e amparar o trabalhador visando uma humanização do trabalho e que
ele não trabalhe de forma insalubre ou prejudicial, tendo subsídios suficientes para uma vida
saudável e digna.
É de suma importância a relação do princípio da dignidade humana com a proteção
real ao hipossuficiente no Direito do Trabalho, para que haja uma adequada relação de emprego.
A essência do Direito do Trabalho está inserida na busca da proteção e preservação da dignida-
de do ser humano, em todos os seus níveis.
O artigo 170 da CF/88 estabelece referência à ordem econômica, a valorização do tra-
balho humano como forma de assegurar a todos uma existência digna, consoante os ditames da
justiça social, e mantendo, ao longo do texto dos direitos fundamentais sociais, a proteção da
figura do trabalhador.
Os direitos do trabalhador representam fundamentos da civilização democrática, que
a humanidade vem construindo nos últimos séculos. Constitui pressuposto essencial desta ci-
vilização que as pessoas desprovidas de capital, não tenham que trabalhar até a exaustão, não
sejam obrigadas a trabalhar sob risco, em condições perigosas para sua saúde, por remuneração
inferior ao mínimo indispensável para a satisfação de suas necessidades vitais básicas, como em
outras situações degradantes, de modo à preservação de sua integridade física e, mais ainda, de
seu arcabouço moral.
Portanto, o trabalhador como pessoa humana, é dotado de valores intrínsecos, que,
diretamente ligados a sua dignidade, não podem ser anulados ou substituídos.

3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição Federal de 1988, apresenta como característica a clareza no que se refe-


re à importância da dignidade humana, em consequência de todo o contexto histórico já vivido
no passado.
A Carta Magna foi elaborada em um cenário de pós ditadura e de abertura política, em
que estava presente um profundo sentimento da necessidade de solidariedade entre os povos.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Nesse contexto, surgiu uma nova era das garantias individuais, resultado de lutas contra os mais
diversos abusos no árduo caminho do reconhecimento das liberdades, partindo do fatídico ano
de 1964 até se alcançar a promulgação desse texto.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana é um valor moral e espiritual inerente à
pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, e tal constitui o princípio máximo do
estado democrático de direito. Os valores abarcados por este princípio se resumem no respeito,
na honra, nos direitos fundamentais efetivados, na seriedade, entre tantos outros responsáveis
pela existência decente das pessoas. A finalidade da ciência do direito positivado é tutelar, ga-

37
rantir e vedar qualquer ato que o afronte.
Na mesma linha de pensamento, alguns doutrinadores entendem que:

[...] podemos afirmar que a dignidade humana é o fundamento primário de todo


ordenamento jurídico-constitucional, cuja dignidade é admitida e resguardada através
do reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais, como o respeito à liberdade,
não discriminação, proteção à saúde, direito à vida, acesso ao trabalho como condição
social humana e digna etc. Portanto, violadas quaisquer dessas garantias fundamentais,
estar-se-à violando a dignidade humana da pessoa. (ALKIMIN, 2008, p. 41).

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, é considerado o mais importante de to-


dos, é tido como fio condutor que ilumina o ordenamento jurídico brasileiro. Caso não existisse,
o sistema, como um todo, poderia ser interpretado em desfavor do próprio ser humano.
De forma cristalina, evidencia-se concretização da dignidade humana a partir do mo-
mento em que seus direitos básicos encontram-se materializados, fato este que explica a impor-
tância concedida ao tema na atual Carta Magna.
A dignidade humana é de suma importância, pois possui valor único e individual, não
podendo sofrer nenhum prejuízo por quaisquer interesses coletivos. O ser humano é considera-
do um indivíduo com direitos e prerrogativas, observado que se mostra voltada para satisfazer
tanto suas necessidades biológicas quanto psicológicas e sociais. E ainda, na sociedade para
que o homem se complete é necessário que esta tutela da dignidade esteja presente em todos os
aspectos, tais como: ética, política, economia, arte, entre outros.
Na medida, entretanto, em que o indivíduo age socialmente, poderá ele mesmo acabar
violando a dignidade de outrem. Neste caso, o conceito de dignidade passa a incidir não apenas
nas relações entre o indivíduo e o Estado, mas também naquelas entre particulares, propiciando
a defesa da dignidade em todas as situações do cotidiano.
Seguindo este pensamento, a ideia de dignidade da pessoa humana foi externada por
Ingo Sarlet (2011) como uma qualidade inerente e distintiva possuída por cada ser humano,
seriam assim aquilo que faz com que lhe seja devido respeito e deferência por parte do Estado
e mesmo das demais pessoas, implicando numa ampla rede de direitos e deveres que assegu-
ram proteção contra toda forma de degradação e lhe garante o acesso às condições mínimas de
existência saudável.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A dignidade da pessoa é irrenunciável e irreversível, indissociável do ser humano. O


que significa que mesmo agindo de livre vontade, uma pessoa não pode acatar disposições que
violem a integridade deste princípio. Mercê, por exemplo, a vedação à instituição de condições
laborais tendentes a gerar situações indignas, tal qual ocorrido no famigerado caso do “arre-
messo de anões” na França.
A Constituição Federal de 1988 foi a primeira no país a tratar expressamente da digni-
dade da pessoa humana, conferindo-lhe o status de princípio fundamental, compondo-se como
norma insuscetível de alteração pelo poder legislador derivado (cláusula pétrea). Não bastasse,

38
instituiu esse atributo intrínseco da essência humana como fundamento do Estado Democrático
de Direito, tendo, exatamente por isso, supremacia incontestável.
O princípio encontra-se expresso no art. 1º, III, da Carta Magna. Além disso, a Cons-
tituição protege estipula ainda como bem maior do ser humano a vida.
Nesse sentido, necessário se faz mencionar o entendimento do ilustre Marlon Marcelo
Murari, que preconiza, in verbis:

[...] ora a dignidade pode ser considerada como um limite, evitando que os atos próprios
ou de terceiros reduzam a pessoa à condição de objeto, gerando direitos defensivos
contra condutas que possam ameaçá-la; ora como uma verdadeira prestação, no sentido
de justificar, nos casos concretos, a tutela por meio de medidas e prestações, visando
proteger a dignidade de todos. (MURARI, 2008, p. 36).

A inclusão da dignidade da pessoa humana como cláusula pétrea na Constituição, pelo


Constituinte Originário, comprova de forma notória a importância concedida ao homem na
sociedade moderna, a qual traz consigo a unanimidade de opiniões quanto a importância dos
direitos e garantias fundamentais, direitos sociais, educacionais dentre outros.
De forma exemplificativa pode-se citar: o artigo 5º, que aborda a dignidade da pessoa
humana com relação aos direitos e garantias individuais e coletivas; os artigos 6º e 7º, que tra-
tam da dignidade da pessoa humana em relação aos direitos sociais; o artigo 8º, que sustenta
tal dignidade com relação à liberdade associativa; o artigo 34,VII, “b”, onde se tem a dignidade
da pessoa humana assegurada pela intervenção federal; o artigo 266, parágrafo 7º, que prevê
a dignidade da pessoa humana no livre planejamento familiar; o artigo 277, que garante a dig-
nidade da pessoa humana à criança e ao adolescente e finalmente o artigo 230, que garante tal
dignidade ao idoso.
Pela análise do texto constitucional, depreende-se que o Estado existe em função das
pessoas e não estas em razão daquele. Sendo ainda o princípio da dignidade da pessoa humana
fonte de legitimidade para o Estado Constitucional. Ora, não haveria sentido em conceber o
pacto social como forma de justificar a existência de uma abstração como o Estado. Os in-
divíduos cuja coletividade forma o que podemos chamar de povo, cedem uma parcela de sua
liberdade par dar vida a tal ente, e o fazem justamente para que assim, possam ter assegurada a
defesa daquelas necessidades sem as quais a coexistência não seria possível.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

O papel do Estado é, assim, o de permitir a existência pacífica entre os indivíduos, ser-


vindo a esses. A Constituição Federal de 1988, ao impor a dignidade da pessoa humana como
princípio fundamental de todo o ordenamento jurídico pátrio, consolidou a força normativa dos
direitos à privacidade, honra, intimidade, imagem e a proteção deles à pessoa humana.

4 A REVISTA ÍNTIMA NO ORDENAMENTO JURÍDICO LABORAL BRASILEIRO

A ocorrência do desvio ou da ocultação de bens do local de trabalho não é algo novo.

39
Tal fato corriqueiro faz com que os empregadores se preocupem com a preservação do seu pa-
trimônio, instituindo meios de evitar prejuízos de tal natureza. Com isto, tentando se precaver
contra este tipo de situação, muitos se utilizam da revista de seus empregados na saída dos
locais de trabalho.
Em face disso, é preciso convir que nem sempre a forma na qual é conduzida a men-
cionada revista é adequada, sendo comum o desatendimento ou avaliação das consequências
jurídicas que podem advir de eventuais abusos.
Assim, cabe no âmbito doutrinário e jurisprudencial realizar a seguinte indagação:
qual o limite da prática da revista íntima nos empregados, sem ferir a intimidade, consequente-
mente, a sua dignidade?
O direito à intimidade, à honra e à dignidade são direitos da personalidade os quais em
nenhuma hipótese se dissociam do indivíduo, mas, ao contrário, acompanham-no em todas as
suas relações. Motivo pelo qual estes direitos da personalidade não podem ser anulados, inda
mais sob pretexto do exercício do direito de propriedade e do poder diretivo de que é investido o
empregador nas relações de trabalho. O que se dá devido à primazia que confere a Constituição
àqueles direitos.
Mas onde ficaria o poder de fiscalização e de controle do empregador? Como fica a
situação do empregador que pretende proteger o seu patrimônio da eventual má fé de seus em-
pregados?
A legislação brasileira é bastante escassa e imprecisa em relação a esse ponto, deixan-
do dúvidas sobre a licitude dos meios adotados na realização de revistas pessoais dos trabalha-
dores, com fundamento na defesa do patrimônio pelo empregador.
Por tanto, é necessário o estudo da revista íntima e da revista pessoal com vistas a col-
matar tais lacunas normativas através de um aporte doutrinário, dando suporte assim à futura
formação de soluções jurisdicionais.

4.1 A Diferenciação entre Revista Íntima e Revista Pessoal

Em seu sentido literal, a expressão revista exprime o ato ou efeito de revistar, de exa-
minar, de rever, inspecionar, examinar detalhadamente, verificar acuradamente, dentre outros
sinônimos. Este procedimento é adotado por alguns empregadores, baseado no poder diretivo
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

que estes possuem, de examinar o empregado e/ou seus pertences a fim de proteger o patrimô-
nio empresarial da eventual tentativa de furtos.
Sandra Lia Simon (2000) leciona que, o procedimento de revista corresponde a uma
forma de concretização do poder de controle do empregador, agindo no sentido de fiscalizar as
atividades desempenhadas pelos empregados.
A revista constitui-se em uma das hipóteses externalizadoras do poder de fiscalização
do empregador, visando ao resguardo de sua propriedade, sendo, pois, uma medida de natureza
preventiva que indiretamente também acaba por identificar funcionários desonestos, praticantes
de atos desabonadores que resultam na resolução do contrato de trabalho, conforme autoriza o

40
art. 482 da CLT.
Desta feita, o conceito de revista tem por fundamento o poder diretivo do empregador
que se justifica no seu direito de propriedade, garantido e protegido principalmente pelo artigo
5º, caput e inciso XXII da Constituição Federal de 1988.
Existem dois tipos de revista: pessoal e intima. A revista pessoal é aquela que não
viola a intimidade e a dignidade dos trabalhadores, ou seja, é aquela feita superficialmente, sem
qualquer tipo de toque corporal ou exposição do trabalhador.
Portanto, a expressão revista pessoal possui uma acepção genérica (lato sensu), que
corresponde a todo e qualquer exame feito pelo empregador no empregado, seja em seus per-
tences, tais como: sacolas, bolsas e mochilas, ou em seu corpo, a fim de proteger os bens empre-
sariais (patrimônio empresarial) de eventual dilapidação; além de que, numa acepção restrita
(strictu sensu), corresponde apenas àquelas revistas realizadas exclusivamente nos pertences no
empregado.
Já a revista íntima é o meio pelo qual o empregador, como forma de proteger seu
patrimônio, revista o empregado de modo a lhe ferir o direito à intimidade. Como exemplos
de revista íntima, podemos citar casos em que o empregador determina que seus funcionários
abaixem as calças, tirem a blusa ou, até mesmo, em casos excepcionais fiquem nus.
Este tipo de revista íntima consiste em procedimento mais invasivo e agressivo ao
trabalhador, pois exige do empregado que exponha seu próprio corpo ao exame de terceiros,
chegando, em alguns casos, até mesmo a envolver contatos físicos pelo revistador. Qualquer es-
pécie de revista que atinja a intimidade do empregado (homem ou mulher) pode ser considerada
revista íntima.

4.2 A Legislação Brasileira, a Posição Doutrinária o Entendimento dos Tribunais acerca


da Revista Íntima

Como já mencionado no presente trabalho, a legislação brasileira sempre foi bastante


escassa e imprecisa com relação à revista no empregado. Ressalta-se que até a década de 1990,
não existia no ordenamento jurídico brasileiro nenhum dispositivo legal que fizesse referência
expressa à revista do empregado, apesar da Constituição Federal de 1988 já proteger as pessoas
das intromissões ilegítimas, assegurando-lhes o direito à intimidade, privacidade e honra, além
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

do respeito à sua dignidade, conforme, mais uma vez, dispõe o inciso III do seu artigo 1º e in-
ciso X do seu artigo 5º, principalmente.
Neste período, a maioria dos juristas brasileiros, defendia a revista dos empregados
com base no poder diretivo do empregador (caput e inciso XXII do artigo 5º da CF e artigo 2º
da CLT), como forma de medida preventiva de proteção ao patrimônio empresarial. Enquanto
que uma minoria argumentava pela necessidade de ajuste prévio entre as partes nesse sentido
ou até mesmo a previsão no regulamento interno da empresa como o jurista Carlos Alberto
Barata Silva.
Existia uma corrente amplamente minoritária que defendia a ilegalidade da revista ín-

41
tima por entendê-la atentatória ao direito individual do empregado, não considerando legítimas
nem mesmo as formas mais brandas de revista, onde a pessoa do empregado não era revista,
mas tão somente os seus pertences.
A primeira edição de uma lei regularizando a situação da revista íntima, se deu através
de iniciativa de alguns municípios, que, com base no entendimento minoritário citado acima, a
proibiram, levando ainda em conta abusos cometidos por parte dos empregadores. Tais leis fo-
ram: Lei n.º 7.451 de 27/02/1998 do Município de Belo Horizonte e a Lei n.º 4.603 de 02/03/1998
do Município de Vitória.
No final da década de 1990, com a edição da Lei n.º 9.799 de 26 de maio de 1999, a
legislação ordinária brasileira expressamente proibiu a revista íntima em empregas ou funcio-
nárias, disciplinando a orientação geral contida no artigo 373-A na CLT, in verbis:

Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções


que afetam o acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades nos
acordos trabalhistas, é vedado:
[...] VI- Proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas ou
funcionárias.

Contudo, a legislação brasileira acerca da revista é ainda precária, visto que tal diploma
legal proíbe expressamente apenas a revista íntima realizada em empregados do sexo feminino,
ferindo o princípio da isonomia, consagrado no caput e inciso I do artigo 5º da Constituição
Federal. Além disso, tal normatização deixou ainda dúvidas quanto ao alcance da expressão
íntima, se abarcaria todo e qualquer tipo de revista, ou apenas aquela realizada no corpo do
trabalhador.
Atualmente, é pacífico que o empregado homem também está incluído na proibição
do referido artigo da Lei n.º 9.799, em decorrência da igualdade entre homens e mulheres as-
seguradas pela Constituição Federal (caput e inciso I do artigo 5º da Carta Maior). Assim, os
empregados homens podem invocar o artigo 373-A, inciso IV da CLT, por analogia, contra a
revista íntima.
Sobre tal aspecto, Maurício Godinho Delgado, fundamenta o seu posicionamento (da
aplicabilidade do artigo 373-A da CLT a qualquer pessoa física) nos Princípios Fundamentais
da República Federativa do Brasil, assim se manifestando:
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do


Brasil, constituída em Estado Democrático de Direito (art.1º, III, CF/88), que tem por
alguns de seus objetivos fundamentais “construir uma sociedade justa e solidária”,
além de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação (art.3º, I e IV da CF/88). (op. Cit., p. 602-
503). (DELGADO, 2009, p. 596).

Em 2008, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMA-


TRA), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento

42
de Magistrados (ENAMAT) e Conselho Nacional das Escolas de Magistratura do Trabalho
(CONEMATRA), visou o debate das grandes questões do Direito do Trabalho e de outras maté-
rias afetas à competência do Judiciário Trabalhista formulando o Enunciado n.º 15 da 1ª Jornada
de Direito Material e Processual da Justiça do Trabalho que em sua segunda parte dispõe, in
verbis:

II- Revista íntima. Vedação a ambos os sexos. A norma do art. 373-A, inc. VI, da
CLT, que veda revistas íntimas nas empregadas, também se aplica aos homens em face
da igualdade entre os sexos inscritas no art. 5º, inc. I, da Constituição da República.

Existem muitas divergências acerca do assunto, porém, consta como entendimento


majoritário tanto dos tribunais quanto dos doutrinadores, a ideia de que o artigo celetista proí-
be qualquer tipo de revista íntima, permitindo a revista pessoal desde que indispensável e não
substituível por outro procedimento de menor potencial ofensivo aos direitos individuais do
empregado, não devendo ainda ser discriminatória e envolver circunstâncias atentatórias à dig-
nidade da pessoa humana do trabalhador, sendo respeitada sua intimidade, privacidade, honra
e imagem.
Nesta linha de pensamento, o Tribunal Superior do Trabalho decidiu:

Decisão (RR) 323900-19.2009.5.16.0012 TST Pub. 18/10/2013. EMENTA: REVISTA


ÍNTIMA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. DIREITO À INTIMIDADE.
EXCESSO DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR. No caso, o Regional,
remetendo à prova testemunhal, consignou que a situação dos autos se tratava de
revista íntima diária, a qual se exigia do empregado que ficasse completamente despido
em frente de outros colegas para verificação de furto de valores. Assim, a revista não
se limitava à fiscalização do conteúdo de bolsas e mochilas, não era superficial ou
meramente visual, ao contrário, era exigido do empregado que ficasse completamente
despido de suas vestes. Há de se considerar, ainda, a frequência diária com que ocorria
a citada revista íntima. Esta Corte tem entendido que o poder diretivo e fiscalizador
do empregador permite a realização de revista em bolsas e pertences dos empregados,
desde que procedida de forma impessoal, geral e sem contato físico ou exposição
do funcionário à situação humilhante e vexatória. Na hipótese vertente, entretanto,
tem-se nítida a extrapolação do poder diretivo da empregadora, ao exigir revistas
íntimas com exposição total do corpo do trabalhador. Inquestionáveis a ocorrência
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de ato ilícito praticado pela reclamada e a lesão a um bem tutelado pela ordem
jurídica. A reclamada subverteu ilicitamente o direito à intimidade do reclamante,
que é inviolável por força de preceito da Constituição Federal (artigo 5º, inciso X, da
Constituição Federal). Precedentes. Com efeito, o Regional, ao reformar a sentença
para absolver a reclamada da condenação de pagar indenização por danos morais, ao
fundamento de que a revista íntima realizada no reclamante estaria autorizada pelo
poder de fiscalização do empregador, decidiu em desacordo com o art. 5º, inciso X,
da Constituição da República. Desse modo, cabível o restabelecimento da sentença,
no tocante à condenação da reclamada de pagar indenização por danos morais ao
reclamante, no valor de R$ 50.000,00, em razão de desrespeito ao direito à intimidade.

43
Recurso de revista conhecido e provido. TST - RECURSO DE REVISTA: RR
3239001920095160012 323900-19.2009.5.16.0012.Publicação 18/10/2013).

Alguns doutrinadores de grande renome como Amauri Mascaro Nascimento e Eduar-


do Pragmácio Filho entendem que o procedimento da revista pessoal poderá ser realizado desde
que, esteja adstrito à observância da dignidade da pessoa humana do empregado e seu direito
à honra, intimidade e privacidade, conforme os artigos 1º, caput e inciso III, 5º, inciso X e 170.
Ou seja, para tais doutrinadores, é possível, na maioria das hipóteses, aquilo que é aqui definido
como revista pessoal, uma vez que tal modalidade não repercute sobre a esfera de intimidade
do empregado.
Nesse sentido, não caberia decidir abstratamente pelo cabimento da revista pessoal,
sendo necessário avaliar os aspectos singulares de cada situação, para só então, diante do caso
concreto, chegar à norma reguladora. Tal abordagem é feita aqui mediante o uso da técnica de
ponderação exposta à frente.
De qualquer modo, a possibilidade da revista pessoal é observada em vários Tribunais
do país, a título exemplificativo, a decisão atual da Primeira Turma do Tribunal do Distrito
Federal e Tocantins (10ª Região) que entendeu pela ilicitude da revista pessoal realizada no tra-
balhador (reclamante) em decorrência da inexistência de conduta imprudente ou abusiva, pois
a fiscalização era realizada em local reservado, distante dos clientes, em todos os trabalhadores
que mantinham contato com os produtos e sem consto físico, in verbis:

Acordão TRT 10ª Região, Processo nº: 00844-2008-102-10-00-2, Relator (a): Pedro
Luis Vicentin Foltran, 1ª Turma, Data de Julgamento: 29/10/2008, Data de Publicação:
07/11/2008. EMENTA: REVISTA PESSOAL MODERADA E SEM ABUSOS. DANO
MORAL. INEXISTÊNCIA.A revista pessoal, por si só, não garante o direito ao
recebimento da indenização por ofensa à moral. Ainda mais se ficar demonstrado
que ela era praticada sem discriminações, de forma moderada, sem abuso nos
procedimentos e sem contato físico. Tais circunstâncias, quando evidenciadas, não
autorizam o reconhecimento de situação humilhante ou vexatória capaz de gerar a
condenação por danos morais, resguardada que estará a integridade física e moral do
empregado e, como elemento justificador, o patrimônio do empregador.

De fato, grande parte da doutrina entende que a revista pode ser feita de forma gené-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

rica, impessoal ou coletiva. Alguns empregadores sorteiam os empregados a serem revistados,


outros, realizam a revista diariamente em todos os seus empregados.
A ilustre Lilia Leonor Abreu aponta que a revista pessoal tem sido aceita em algumas
circunstâncias, defendendo que, neste caso poderá ser realizado no local da empresa, normal-
mente na saída e excepcionalmente na entrada.
Segundo Alice Monteiro Barros:

Não basta a tutela genérica da propriedade; deverão existir circunstâncias concretas


que justifiquem a revista. É mister que haja, na empresa, bens suscetíveis de subtração

44
e ocultação, com valor material, ou que tenham relevância para o funcionamento da
atividade empresarial e para a segurança das pessoas. (BARROS, 2005, p. 263).

Desse modo, verifica-se da análise de tais entendimentos, que a revista pessoal pode
ser feita desde que em situações que a justifiquem e de forma moderada, sempre que não houver
outro meio idôneo a coibir a prática de desvios.
O empregador pode exercer seu poder de fiscalização mediante a utilização dos mais
variados métodos tecnológicos, tais como a colocação de etiquetas magnéticas em seus produ-
tos, e, também, através do controle de entrada e saída de estoque, pelas filmagens por meio de
circuito interno, ou pelo uso de detectores de metais.
Saliente-se porém, a respeito das filmagens, que estas só poderão ser realizadas em
áreas comuns, proibidas aquelas realizadas em banheiros e vestiários, ou em quaisquer outros
locais em que se exija tenha o empregado preservada sua intimidade.
Sérgio Pinto Martins, no mesmo sentido amplamente defendido, aponta que os empre-
gados poderão ser revistados no final do expediente pelo empregador, pois a revista funciona
como uma salvaguarda do patrimônio da empresa. Esta revista não pode ser feita de forma
vexatória ou abusiva, devendo ser moderada e respeitosa. A revista jamais poderá violar a inti-
midade do empregado, devendo ser realizada em local apropriado.
Diante dos julgados analisados, percebe-se que, desde que haja a conduta, o nexo de
causalidade e o dano propriamente dito, é incontroversa a afronta aos princípios e garantias
fundamentais do indivíduo, causando-lhe mais do que um abalo à psique, fazendo jus, assim,
à indenização. Vale frisar de que o referido quantum nada tem a ver com crédito de natureza
trabalhista. Trata-se, sim, de uma indenização por exposições inapropriadas, procedimento este
que causa um constrangimento e uma sensação de vergonha, diante dos colegas de trabalho, e
que ultrapassa uma mera irritação diária, autorizando, assim, o pagamento de verba indeniza-
tória.
Ademais, a recusa do empregado a se submeter a procedimento de revista será legítima
quando tal procedimento envolver circunstâncias que afrontam sua dignidade pessoal e seus
direitos individuais, em especial os direitos à privacidade, intimidade, honra e imagem.
Portanto, conclui-se que é admitida a realização de revista nos empregados, respeitan-
do-os seus direitos, sem violar à sua intimidade, honra e imagem. Donde se evidencia a neces-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

sidade de considerar as circunstâncias envolvidas em cada caso, o que pode ser feito mediante
o uso de ponderação.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do momento em que o Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito,


atraiu para si um verdadeiro ônus de garantir os Direitos Fundamentais que foram albergados
pela Constituição Federal de 1988. Concretizando os fundamentos da cidadania, igualdade e,

45
principalmente Dignidade da Pessoa Humana.
Os Direitos Fundamentais devem ser aplicados nas relações particulares, não tendo ra-
zão para se pensar de forma contrária, aliás, essa deveria ser a regra adotada por todas as nossas
funções orgânicas do poder, sendo exceção a sua não aplicação.
O poder empregatício é limitado, pois deve ser contraposto a outros direitos. Direito
estes que são inerentes à pessoa humana, sendo que existem, inclusive dentro da relação de em-
prego, devendo ser obrigatoriamente respeitados. Caso a observação voluntária não aconteça,
há mecanismos que possibilitam àqueles que têm seus direitos violados reclamar e fazer com
que cesse tal violação.
A Lei n.º 9.799/99 acrescentou o artigo 373-A no texto da CLT, vedando qualquer tipo
de revista íntima à mulher. Não obstante essa vedação ser específica, a princípio, para as mulhe-
res, consoante doutrina e jurisprudência majoritárias, deve, por força do Princípio da Igualdade,
do preâmbulo Constitucional, do Princípio do Valor Social do Trabalho e também pelo Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana, estendida aos homens.
Não obstante inexistam no ordenamento jurídico brasileiro regras claras que disci-
plinem a revista pessoal de empregados, há regras e princípios gerais capazes de orientar sua
aplicação em determinadas situações.
Portanto, afirma-se que é permitida a revista como medida preventiva, condicionada
a ajuste prévio ou previsão no regulamento da empresa, desde que respeitados determinados
parâmetros e, sobretudo, com a utilização do bom senso, da razoabilidade e da impessoalidade,
de forma que tal prática não configure conduta abusiva do empregador.
Desta forma, pode-se afirmar que a revista pessoal será absolutamente legítima na-
quelas situações onde não houver mecanismos diversos que possam garantir a proteção à ao
patrimônio dos empregadores. Assim, será cabível cogitar, pelos órgãos estatais vocacionados
para julgar conflitos inerentes a tais situações, se não há, no caso concreto, a possibilidade de o
empregador recorrer a dispositivos de segurança ou similares que substituam a revista pessoal.
Outro ponto a que se chegou, diz respeito à necessária conciliação entre os interesses
de empregadores e a defesa dos direitos decorrentes da personalidade dos empregados, bem
como a tutelada da dignidade destes. Assim, não será permitida a instituição de revista íntima
quando a revista pessoal for suficiente. Da mesma forma, não caberá expor os empregados a
situações vexatórias ou danosas à sua integridade física ou psíquica.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Se, de um lado, tem-se princípios constitucionais que legitimam a revista do emprega-


do, em razão da defesa do patrimônio do empregador, como o direito de propriedade e da livre
iniciativa, de outro, têm-se a intimidade do empregado e a não submissão a tratamento desuma-
no ou degradante, como direitos fundamentais a que garante a Constituição absoluta proteção.
Nesse sentido, as jurisprudências dos Tribunais do país, tem asseverado que, quan-
do a revista levada a feito sem constrangimento e sem qualquer objetivo desmerecedor, sem
discriminação, traduz atos contidos no poder de comando do empregador em defesa de seu
patrimônio.

46
Assim, em uma tentativa de compatibilizar a aplicação desses direitos fundamentais
nas relações trabalhistas, é que se tem entendido que a revista, quando realizada de forma mode-
rada e reservada, não causaria ofensa aos direitos do trabalhador e estaria dentro dos limites do
exercício regular de direito por parte do empregador, o que afastaria a ilicitude do procedimento.

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empregado. São Paulo: LTr, 2000.

APPLICABILITY OF UNDERWEAR IN LABOR RELATIONS REVIEW

ABSTRACT
The present study aims to understand the applicability of the intimate
magazine in labor relations, as this theme brings to light the excessive
power of the employer in taking disproportionate attitudes through vex-
atious behaviors that frontally affect the rights to intimacy and privacy
of the employee. The intimate magazine is characterized as a proce-
dure that conflicts with opposing interests such as the right to priva-
cy and privacy of the worker and the directive power of the employer.
Thus, because it is a very contemporary issue, it proves that doctrine
and jurisprudence very much debate about legality and the limits im-
posed on the employer to come to conduct the review procedure on its
employees. If there is a collision of rights in labor relations between the
power of supervision of the employer and the fundamental rights of the
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

employee, the solutions presented in concrete cases should always seek


to harmonize constitutional norms, seeking to maintain the unity of the
Constitution.
KEYWORDS: Intimate Magazine. Labor relations. Human Dignity.

48
EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS: A NECESSIDADE DE UMA CULTURA DE
RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA

Luciano Meneguetti Pereira1

RESUMO
O presente texto tem como objetivo precípuo abordar o tema da liber-
dade religiosa e a necessidade da educação em direitos humanos no to-
cante ao respeito à diversidade religiosa na América Latina. Conforme
o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo
12 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, os Estados têm
o dever de assegurar a ampla liberdade de crença e religião aos seus na-
cionais e aos estrangeiros que estejam em seu território. Contudo, em-
bora muitos países membros da Organização dos Estados Americanos
(OEA) sejam signatários da Convenção Americana, ainda se observam
muitas violações aos direitos consagrados no referido dispositivo. Des-
se modo, o texto visa demonstrar que a educação em direitos humanos
constitui uma ferramenta fundamental para a promoção de sociedades
mais justas e sensíveis à presença do outro e de suas crenças e valores
religiosos.
Palavras chave: Liberdade Religiosa. Diversidade. Direitos Humanos.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Educação. América


Latina.

1  Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE). Especialista em Educação no Ensino Técnico e Superior pelo
Centro Universitário Toledo (UNITOLEDO). Especialista em Direito Público com ênfase em Direito Constitucional pela Universida-
de Potiguar (UNP). Graduação em Direito pelo Centro Universitário Toledo. Professor Universitário em Cursos de Pós-Graduação e
Graduação. Professor de Direito Constitucional, Direito Internacional e Direitos Humanos no Centro Universitário Toledo. Advogado.

49
“A educação para a libertação é um ato de conhecimento e um método
de ação transformadora que os seres humanos devem exercer sobre a
realidade”. (Paulo Freire)

1 INTRODUÇÃO

Atualmente uma das questões mais tormentosas no tocante aos direitos humanos e sua
efetivação diz respeito à liberdade religiosa. É rotineira a veiculação de notícias nos meios de
comunicação de massa, relacionadas à violação de direitos humanos no que tange à liberdade
de consciência e de crença.
De modo não raro são noticiadas e presenciadas em muitas partes do mundo, inclusive
na América Latina, diversas espécies de torturas, espancamentos e outras formas de violência
física e psicológica, e até mesmo a aplicação de penas capitais em razão das pessoas professa-
rem esta ou aquela religião.
Em pleno século XXI, na era de direitos, apesar da liberdade de religião estar consa-
grada em diversos instrumentos internacionais (declarações, tratados etc.) e também na maioria
dos textos constitucionais, ainda são recorrentes diversas formas de perseguição religiosa e
mesmo o cometimento de atrocidades em nome da religião, práticas regadas pela intolerância
religiosa existente em diversas partes do mundo, contexto no qual, em que infelizmente estão
inseridos alguns países da América Latina, inclusive o Brasil.
Embora seja possível afirmar que os países da América Latina não sejam assolados
com graves violações da liberdade religiosa de maneira mais intensa, como aquelas que ocor-
rem, v.g., em alguns países do oriente médio, onde notícias sobre a tortura e a morte (por vezes
cruel e violenta como são os casos de apedrejamento e crucificação) de religiosos não muçulma-
nos são frequentes, isto não quer dizer que a violação da liberdade de religião não tenha lugar
nos países latino-americanos.
Apesar de as Constituições dos países latino-americanos consagrarem a liberdade re-
ligiosa em seus textos como um direito fundamental, assim como o fez a Convenção Ameri-
cana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), adotada em 1969, que previu
expressamente a liberdade religiosa como um direito humano em seu art. 12, sendo ratificada
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

por diversos países pertencentes à Organização dos Estados Americanos (OEA), desde a sua
entrada em vigor no plano internacional, em 1978, nota-se ainda que vários Estados Partes da
Convenção não conseguem assegurar de modo satisfatório a proteção da liberdade religiosa
em seus respectivos territórios, sendo evidenciadas frequentemente práticas de intolerância, o
impedimento ou frustração de cultos, bem como o discurso de ódio contra religiões distintas.
Atualmente percebe-se sem esforço que nem mesmo a positivação do direito à liber-
dade religiosa nas Constituições nacionais e na Convenção Americana tem sido suficiente para
promover a efetivação das liberdades consagradas nesses diplomas normativos, o que torna

50
imperioso um sério comprometimento dos Estados quanto ao assunto, bem como o investimen-
to dos países na educação em direitos humanos, com vistas à plena efetivação da liberdade de
religião. Uma educação que seja capaz de influenciar e transformar a cultura dos povos latino-a-
mericanos, no sentido de mudar concepções já arraigadas nas sociedades americanas, que ainda
hoje estão carregadas de preconceitos e de intolerância para com o outro, para com aquele que
é ou pensa diferente no tocante às questões religiosas.
Assim, torna-se importante a reflexão sobre a temática proposta, o que será feito no
presente trabalho por meio da análise da consagração da liberdade religiosa no plano interna-
cional, notadamente no âmbito da OEA e também na esfera dos ordenamentos jurídicos do-
mésticos dos Estados latino-americanos, sucedendo-se com a exposição de casos concretos de
violação dessa liberdade, que demonstram a falta (e a necessidade) de trabalhar-se uma cultura
de respeito e tolerância à diversidade religiosa, bem como a consequente imprescindibilidade da
educação em direitos humanos para a implementação e plena efetivação do respeito à liberdade
religiosa na América Latina.

2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS E A PROTEÇÃO DA


LIBERDADE RELIGIOSA

No continente americano os direitos humanos são tutelados, em essência, por meio


do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, arquitetado no âmbito da OEA, sendo com-
posto por quatro instrumentos fundamentais: a Carta da Organização dos Estados America-
nos (1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica (1969);
e o Protocolo Adicional à Convenção Americana, conhecido também como Protocolo de San
Salvador (1988) (PEREIRA, 2013, p. 93).
Antes de se falar sobre a liberdade religiosa, torna-se importante tecer algumas consi-
derações acerca desse importante sistema de proteção, com destaque para a OEA e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos.
Na busca do estreitamento de laços em diversas áreas e da consolidação da democracia
na América Latina, bem como objetivando o desenvolvimento econômico, social e cultural dos
Estados latino-americanos, foi criada a OEA, atualmente composta por 35 países. Trata-se de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

um organismo regional, considerado o mais importante das Américas, fundado em 1948 com
a adoção da Carta da OEA, em Bogotá, na Colômbia, tratado constitutivo que passou a vigorar
no plano internacional em dezembro de 1951. (OEA, 2017a, p. de internet).
Dentre os quatro pilares da organização2, está a proteção dos direitos humanos, razão
pela qual, em 22 de novembro de 1969, os seus Estados Membros elaboraram e concluíram a
Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (CADH), conhecida também como Pacto de

2  São pilares da Organização a democracia, os direitos humanos, a segurança e o desenvolvimento.

51
San José da Costa Rica, um documento internacionalmente vinculante para os Estados Partes
em matéria de direitos humanos no continente americano. A Convenção passou a vigorar in-
ternacionalmente apenas em 1978, quando 11 países a ratificaram, nos termos do seu art. 74
(PEREIRA, 2013, p. 93-95).
Composta por 82 artigos e buscando consolidar no continente americano, “dentro do
quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça social, fun-
dado no respeito dos direitos humanos essenciais”, conforme enuncia seu próprio preâmbulo,
a Convenção também assegurou, dentre os diversos direitos humanos por ela consagrados, a
liberdade de consciência e de religião, conforme disposto em seu art. 12, que em parte repetiu
a previsão já consagrada anteriormente pelo art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos3, de 1948:

Artigo 12 – Liberdade de consciência e de religião: 1. Toda pessoa tem direito à


liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua
religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade
de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto
em público como em privado. 2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que
possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar
de religião ou de crenças. 3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias
crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias
para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as
liberdades das demais pessoas. 4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito
a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo
com suas próprias convicções.

Ainda que de forma mais tímida, o direito à liberdade religiosa e de culto já havia sido
previsto no âmbito da OEA anteriormente à Convenção Americana, especificamente no art. 3º
da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, de 1948, que previu o direito de
toda pessoa “professar livremente uma crença religiosa e de manifestá-la e praticá-la pública e
particularmente”.
Algumas considerações acerca das liberdades aludidas no dispositivo convencional
supracitado tornam-se necessárias para que se possa melhor compreender a dimensão e a am-
plitude do direito humano à liberdade de consciência e de religião, consagrado pela Convenção.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Inicialmente é preciso ressaltar que são duas as liberdades ali previstas: (i) a liberdade
de consciência e a (ii) liberdade de religião, sendo que esta última, por sua vez, se subdivide em
(a) liberdade positiva de religião, (b) liberdade negativa de religião, (c) liberdade de conversão,
e (d) liberdade de apostasia (ROTHENBURG, 2014, p. 24). Conforme explicam Sarlet, Mari-
noni e Mitidiero (2016, p. 513), “embora a liberdade de consciência tenha forte vínculo com a

3  “Artigo 18. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada
ou coletivamente, em público ou em particular”.

52
liberdade religiosa, ambas não se confundem e apresentam dimensões autônomas”.
Para Jayme Weingartner Neto (2013), a liberdade de consciência pode ser entendida
como a “autonomia moral-prática do indivíduo, a faculdade de autodeterminar-se no que tange
aos padrões éticos e existenciais, seja da própria conduta ou da alheia – na total liberdade de
autopercepção –, seja em nível racional, mítico-simbólico e até de mistério”. Embora muitas
vezes seja confundida com a liberdade religiosa, por se tratar da obtenção de certo ponto de
vista que para si é tido como verdade, acaba consistindo em uma liberdade mais ampla. Isto
porque a consciência abrange diversos campos do pensamento, onde, por meio de uma reflexão,
cria-se uma conclusão, sendo que esse processo ocorre em relação à religião, política, filosofia
e ideologia, dentre outros. Nesse sentido, Soriano (apud GALDINO, 2006, p.10) afirma que a
“liberdade de consciência é mais ampla que a liberdade de crença. É de foro individual. Com-
preende tanto o direito de crer como o de não crer”.
Já a liberdade religiosa, embora relacionada à consciência, como um direito complexo,
“engloba em seu núcleo essencial a liberdade de ter, não ter ou deixar de ter religião e desdo-
bra-se em várias concretizações” (WEINGARTNER NETO, 2013).4 Nota-se que a liberdade de
religião se restringe à liberdade de os indivíduos posicionarem-se no acatamento (ou não) de
uma religião. Conforme aponta Rothenburg (2014, p. 25),

o direito de religião significa poder formar uma consciência religiosa, experimentá-la


(conduzir-se de acordo com ela) e manifestá-la, tudo isso livremente, ou seja, pode
também não fazê-lo, se preferir, e não ser obrigado a fazê-lo, sequer revelá-lo (direito
ao segredo em matéria confessional).

Deste modo, tem-se que a liberdade positiva de religião está relacionada ao direito de
se ter uma crença religiosa, de praticar e professar suas convicções em relação à uma determi-
nada religião de maneira livre e, como regra, irrestrita. Por sua vez, a liberdade negativa de
religião diz respeito ao direito de se abster de pertencer ou professar uma religião, não podendo
o indivíduo ser obrigado a seguir uma fé não proveniente de uma livre escolha sua ou praticar
atos nos quais não crê, consagrando-se aqui o direito de não ter qualquer crença ou adotar al-
guma religião.
Ainda no âmbito da liberdade de religião, assegura-se a liberdade de conversão, se-
gundo a qual o indivíduo é livre para mudar de crença sem que com isso sofra qualquer represá-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

lia ou sanção, podendo passar a pertencer a qualquer outro grupo religioso que seja compatível
com seu novo credo.
Por fim, também na esfera da liberdade de religião, tem-se a liberdade de apostasia,
que diz respeito à possibilidade de que o indivíduo, fiel de determinada religião, possa abando-

4  Para Weingartner Neto (2013) são vários os desdobramentos da liberdade religiosa proporcionados, v.g., pelos incisos VI e VII, do art. 5º,
da Constituição brasileira de 1988: “liberdade de crença (2ª parte do inciso VI), as liberdades de expressão e de informação em matéria
religiosa, a liberdade de culto (3ª parte do inciso VI) e uma sua especificação, o direito à assistência religiosa (inciso VII) e outros direitos
fundamentais específicos, como o de reunião e associação e a privacidade, com as peculiaridades que a dimensão religiosa acarreta”.

53
ná-la, sem a necessidade de qualquer justificativa ou autorização, não podendo por isso sofrer
qualquer penalidade.
Embora as normas definidoras de direitos humanos ocupem um patamar hierarquica-
mente superior a muitas outras normas (tanto de índole internacional, por serem inseridas na ca-
tegoria de normas jus cogens5, como aquelas estabelecidas nos ordenamentos jurídicos internos
dos países), não estão totalmente livres de restrições. Nesse sentido é possível verificar que o
próprio inciso 3 do art. 12 da Convenção Americana impõe limites à liberdade de consciência e
religião, visando a proteção da segurança, da ordem, da saúde ou da moral pública, ou o respeito
aos direitos e às demais liberdades de outras pessoas. Conforme explica Palomino (2014, p. 312),

la CADH sí enumera cuáles son dichos límites, no aplicándolos al derecho de tener o


adoptar una religión – perteneciente al ámbito interno de la persona – pero sí al derecho
de manifestarla o exteriorizarla, y ellos son: la seguridad, el orden, la salud o la moral
públicos, o los derechos y libertades fundamentales de los demás. La Convención
añade que dichas limitaciones deberán respetar el principio de legalidad, esto es, el
haber sido previstas en la “ley” y ser “necesarias” en una sociedad democrática. Una
vez cuestionadas, el juzgador deberá analizar su legitimidad de acuerdo a la técnica
de la ponderación y a un riguroso test.

Nesse contexto, Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 517) destacam que

Embora sua forte conexão com a dignidade da pessoa humana, a liberdade religiosa,
mas também a liberdade de consciência, notadamente naquilo em que se projeta para
o exterior da pessoa, mediante atos que afetam terceiros ou levem (ainda que em
situação extrema) a um dever de proteção estatal da pessoa contra si própria, como no
caso de uma greve de fome por razões de consciência, são, como os demais direitos
fundamentais, limitados e, portanto, sujeitos a algum tipo de restrição.

Diante da possibilidade de restrição desse direito fundamental, um exercício de pon-


deração será necessário quando as liberdades em análise estiverem em confronto com outros
direitos tidos igualmente como fundamentais. Desse contexto se extrai, v.g., que não se afigura
possível que uma religião pratique rituais de sacrifício humano ou que adote alguma prática que
venha a infringir as leis postas no ordenamento jurídico de um determinado Estado Membro
da Convenção Americana; também não se poderia admitir que num suposto exercício de sua
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

liberdade religiosa, uma pessoa praticasse atos de violência física e/ou psíquica contra si mesmo
ou contra terceiros, colocando em risco a própria vida ou a de outrem.
Não obstante a possibilidade de restrições, deve-se ressaltar que tais impedimentos só

5  As normas definidoras de direitos humanos estão inseridas na categoria que o Direito Internacional denominou como normas jus cogens
ou normas imperativas de Direito Internacional geral, conforme estabelecido pelos arts. 53 e 64 da Convenção de Viena Sobre o Di-
reito dos Tratados, de 1969. Conforme Robert Kolb (2015, p. 2), “The key term for the classical understanding of jus cogens is therefore
‘derogability’. In other words, jus cogens is defined by a particular quality of the norm at stake, that is, the legal fact that it does not allow
derogation”. O autor, lançando mão das noções estabelecidas pela Convenção de Viena, esclarece que o termo chave para a compreensão
do instituto é inderrogabilidade, afirmando o jus congens como uma qualidade particular de uma determinada norma em questão, que
a torna imperativa e inderrogável.

54
podem ocorrer por força de lei (princípio da legalidade) ou se realmente se fizer necessário para
o bem comum da sociedade, devendo-se ressaltar, no entanto, que a lei não poderá ser elaborada
simplesmente com a finalidade de embaraçar os cultos e demais manifestações religiosas, sem
uma motivação maior e subjacente, isto é, não poderá haver restrições gratuitas, sem funda-
mento, por simples opção ou “vontade” do poder legislativo de um determinado Estado Parte
da Convenção.
Como se nota, o direito humano à liberdade de consciência e de religião está plena-
mente consagrado no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, sendo certo
que a sua violação poderá ser tutelada perante os mecanismos estabelecidos no âmbito desse
sistema, especificamente junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e à Corte In-
teramericana de Direitos Humanos6, o que poderá acarretar a responsabilização internacional
do Estado violador.

3 A VIOLAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA NA AMÉRICA LATINA

Embora a Convenção Americana tenha sido concluída e adotada há mais de 45 anos,


passando deste então a influenciar os ordenamentos jurídicos dos Estados signatários em mui-
tos sentidos e aspectos, infelizmente ainda é possível notar, em vários Estados Membros da
OEA, constantes violações ao que dispõe o art. 12 do referido tratado internacional de direitos
humanos, bem como àquilo que dispõe, de modo muitas vezes semelhante ou idêntico, as Cons-
tituições dos diversos Estados americanos, perpetuando-se tanto a ofensa aos direitos humanos
previstos na Convenção, como aos direitos fundamentais previstos nas referidas Constituições.
É importante ressaltar que, independente da laicidade ou confessionalidade adotada
por determinado Estado soberano, são necessários o respeito à diversidade religiosa e a tolerân-
cia para com todas as crenças e suas manifestações, tanto por parte do Estado como por toda
a sociedade, cabendo ao Estado velar pelo cumprimento dessa obrigação internacional e pela
efetivação desse direito humano.
Infelizmente, não é esse o quadro que se verifica em diversos países da América La-
tina, pois desde os segmentos religiosos minoritários e suas respectivas crenças até a religião
católica, que atualmente ainda é majoritária no âmbito de diversas sociedades, todos têm sido
alvos de desrespeito, perseguições e intolerância religiosa.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A intensificação da globalização, o pluralismo cultural e a proliferação de diversas


religiões pelo mundo, impõe aos Estados e aos poderes públicos a adoção de posturas e medi-
das que visem salvaguardar os direitos protegidos, o que deve ocorrer inclusive, por meio da
adoção de leis específicas e políticas públicas destinadas à plena proteção da liberdade religiosa,
capazes de assegurar a efetividade do exercício dessa liberdade, bem como coibir toda forma de

6  Para uma visão mais ampla acerca destes dois órgãos de proteção dos direitos humanos do Sistema Interamericano vide Pereira (2013,
p. 94-96).

55
intolerância, discriminação e outras ofensas. Conforme aponta Palomino (2014, p. 291),

cada vez con mayor intensidad se asiste a la pluralización del campo religioso allí donde
antes existía una religión hegemónica y también a la creciente incursión de actores
religiosos en actividades políticas y en funciones de Estado. Con ello, el debate sobre
el derecho de libertad religiosa se replantea bajo nuevos matices en los que el Estado
y sus ordenamientos jurídicos se enfrentan al desafío de adoptar nuevas regulaciones
legales, instituciones y políticas públicas ante el fenómeno religioso en ebullición.

Em sociedades pluralistas e democráticas como as que se verificam hodiernamente,


torna-se de absoluta importância a consideração do outro e daquilo que lhe diz respeito, seja
material ou espiritualmente. As sociedades e os indivíduos precisam indispensavelmente não
apenas aprender, mas sobretudo aplicar o aprendizado no tocante ao trato e posicionamento das
diferenças diante da diversidade religiosa presenciada atualmente, o que não tem ocorrido em
muitos países latino-americanos, conforme poderá se verificar sucintamente pelas considera-
ções a seguir.

3.1 Cuba

Até pouco tempo atrás, o Estado cubano era considerado ateu, quadro que se alterou
após mudança de sua Constituição, em 1992, quando então passou a ser laico7. Ocorre que vio-
lações contra o livre exercício da religião ainda são frequentes, ferindo as liberdades laicas e,
indubitavelmente, os direitos humanos previstos na Convenção da qual o país é parte.
Em casos recentes se contatou diversas violações contra a igreja católica e evangélica,
tais como a difamação das lideranças da igreja, assim como a disseminação de opiniões nega-
tivas e pejorativas sobre elas (PORTAS ABERTAS, 2017a, p. de internet), o sufocamento de
algumas religiões em favor de outras (PORTAS ABERTAS, 2017b, p. de internet), a demolição
de templos religiosos sem justificativas, assim como espancamentos e detenções de fiéis por
agentes do governo (PORTAS ABERTAS, 2017c, p. de internet), além de outras formas de per-
seguição que tem ocorrido sob forma de assédio, discriminação e vigilância rigorosa por parte
do governo (PORTAS ABERTAS, 2017d, p. de internet).
Segundo relatório emitido pela Christian Solidarity Worldwide, em 2015, é crescente o
número de violações à liberdade religiosa em Cuba (CSW, 2017a, p. internet). Conforme o do-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

cumento, em 2011, houve 40 relatos de violações à liberdade religiosa; em 2012, o número subiu
para 120; já em 2013, houve 180 casos relatados; e por fim, em 2014, 220 casos de violações em
diferentes modos e intensidades foram constatados, sendo que, embora o governo afirme que
a tolerância religiosa tenha aumentado, os religiosos alegam que pouca ou nenhuma melhora

7  Nesse sentido, vide art. 8º da Constituição da República de Cuba, que reconhece o direito dos cidadãos a professar e praticar qualquer
crença religiosa (“Artículo 8º - El Estado reconoce, respeta y garantiza la libertad religiosa. En la República de Cuba, las instituciones
religiosas están separadas del Estado. Las distintas creencias y religiones gozan de igual consideración”. No entanto, na prática, o gover-
no cubano tem contribuído muito pouco para a salvaguarda da liberdade de religião e até mesmo imposto restrições a ela.

56
houve (CSW, 2017b, p. de internet).
Dentre os mencionados ataques promovidos ou tolerados pelo governo cubano à liber-
dade religiosa, invariavelmente tendo como pano de fundo perseguições de natureza política,
também estão o impedimento de abrir templos religiosos, ameaças de fechamento dos já exis-
tentes, perseguições individuais a lideranças religiosas e familiares confessionais, prisões de re-
ligiosos, bloqueio de contas bancárias de igrejas e até agressões físicas por agentes de governo,
como no caso das “Ladies in White”8 (GOSPEL PRIME, 2017a, p. de internet).

3.2 Venezuela

Na Venezuela, a liberdade religiosa também figura como um direito fundamental na


Constituição da República Bolivariana da Venezuela9, muito embora as violações a esse direito
sejam frequentes e patentes no país. O Estado venezuelano também aparece em destaque nos
índices de perseguição religiosa, perseguição esta que muitas vezes tem tido a mesma conota-
ção daquela ocorrente em Cuba, isto é, o cometimento por motivações políticas. O aspecto di-
ferenciador é a doutrina perseguida, pois ao contrário de Cuba, onde são perseguidos católicos
e evangélicos, no Estado venezuelano são os católicos e judeus os segmentos religiosos mais
afetados, uma vez que se tratam dos grupos religiosos que mais se opõem ao governo e, como
retaliação, têm sua liberdade religiosa violada.
Durante essa luta político-religiosa, ocorrida principalmente ao longo dos anos do go-
verno de seu ex-líder, Hugo Chávez, a opressão se deu, v.g., por meio da invasão e desapropria-
ção arbitrária de templos e terrenos pertencentes às igrejas, perseguições individuais, ofensas
proferidas publicamente pelo chefe de governo e até mesmo com a elaboração de um projeto de
mudança da Constituição para restringir a liberdade religiosa (ANAJURE, 2017a, p. de interne-
t).10 Ainda, segundo os dados do estudo ADL Global 100, que realizou pesquisas em 100 países
com a finalidade de verificar a existência de sentimentos antissemitas, a Venezuela ocupa 55º
lugar, sendo que 30% da população externa pensamentos contra os judeus (ADL GLOBAL 100,
2017, p. de internet).

3.3 Colômbia
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

8  Em um dos casos, mulheres filiadas à “Ladies in White” (Damas de Branco), movimento de oposição fundado em Cuba no ano de 2003,
foram violentadas fisicamente durante a realização de um culto, por agentes de segurança do governo.
9  O art. 59 dispõe que “El Estado garantizará la libertad de religión y de culto. Toda persona tiene derecho a profesar su fe religiosa y
cultos y a manifestar sus creencias en privado o en público, mediante la enseñanza u otras prácticas, siempre que no se opongan a la
moral, a las buenas costumbres y al orden público. Se garantiza, así mismo, la independencia y la autonomía de las iglesias y confesiones
religiosas, sin más limitaciones que las derivadas de esta Constitución y la ley. El padre y la madre tienen derecho a que sus hijos o hijas
reciban la educación religiosa que esté de acuerdo con sus convicciones”.
10  Um estudo feito pela ANAJURE destaca que “todos os relatórios sobre liberdade religiosa na Venezuela, durante os anos do Governo
Hugo Chávez, apontam para um recrudescimento nas pressões e violações sobre o direito de igrejas, líderes religiosos e cidadãos pro-
fessarem livre e plenamente sua fé. Violações e pressões essas cometidas tanto pelo próprio Governo venezuelano, quanto por grupos
partidários ligados ao chavismo”.

57
Embora a liberdade religiosa esteja consagrada na Constituição Política da Colômbia11,
no ano de 2015 o país ocupava a 25ª colocação no ranking mundial de perseguição religiosa, se-
gundo dados da Organização Internacional não Governamental Portas Abertas. Ainda segundo
dados oficiais da referida ONG, existem cerca de 5.000.000 de evangélicos no país, sendo que
20% deste número é composto de cristãos perseguidos, havendo ainda 500.000 perseguidos que
se encontram em campos de refugiados e abrigos temporários (PORTAS ABERTAS, 2017e, p.
de internet). Atualmente, no mesmo ranking, o país passou a ocupar a 50ª colocação. Entretanto
esse índice não se deve a uma grande melhora em relação à coibição da perseguição religiosa,
mas sim à piora de outros países nesse contexto, que acabaram por passar à frente da Colômbia
ao tornarem a perseguição religiosa intensa ou extrema, enquanto na Colômbia ela é conside-
rada apenas alta.
O que agrava ainda mais a situação religiosa no país é a violência praticada por grupos
rebeldes. Com índices expressivos de cristãos sequestrados e mortos, muitos acabam fugindo
para os campos de refugiados e passam a viver em situações de extrema pobreza e muitas difi-
culdades.
Ainda conforme a mesma pesquisa, de 1998 a 2014, mais de 400 igrejas foram fecha-
das e, aproximadamente, 150 líderes religiosos (pastores) foram assassinados. Ademais, as For-
ças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo (FARC-EP), em 2013, emitiu um
manual denominado “Manual para Coexistência” que, dentre outras recomendações, restringiu
a liberdade de culto, obrigando que as igrejas fossem utilizadas apenas nas cidades capitais. De
acordo com estudo feito pela ANAJURE (2017b, p. de internet),

as restrições à prática religiosa do manual estão de acordo com outros relatórios


recebidos pela Christian Solidarity Worldwide (CSW). A FARC-EP, um ramo
esquerdista do grupo guerrilheiro que se tornou armado em 1960 e está atualmente
num processo de diálogo de paz com o governo, tem tido como alvo grupos e líderes
religiosos desde o início. Acredita-se que o grupo seja responsável por assassinatos de
centenas de líderes de igrejas nos últimos cinquenta anos. Isto inclui os assassinatos do
Reverendo Manuel Camacho na região de Guaviare em 2009 e dos pastores Humberto
Mendez e Joel Cruz Garcia em Huila em 2007; os três pastores notoriamente desafiaram
as restrições da FARC-EP sobre pregação e evangelização. Cerca de 150 igrejas foram
fechadas e a atividade religiosa proibida no sudeste da Colômbia em zonas sob o
controle da FARC-EP.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Segundo consta nos estudos da ADL Global 100, a Colômbia ocupa a 30ª posição,
figurando como o primeiro país da América no ranking, onde 41% da população expressa pen-
samentos de aversão aos judeus. Diante disso, torna-se evidente os motivos pelos quais o país
é o único da América do Sul a ocupar posição de destaque (negativo) no ranking de maior per-
seguição religiosa.

11  O art. 19 da Constituição colombiana prevê que “Se garantiza la libertad de cultos. Toda persona tiene derecho a profesar libremente
su religión y a difundirla en forma individual o colectiva. Todas las confesiones religiosas e iglesias son igualmente libres ante la ley”.

58
3.4 Argentina

Embora pertença a um grupo de países com perseguição religiosa considerada de ní-


vel baixo, a Argentina, que é um Estado confessionalmente católico12, esporadicamente ainda
apresenta casos de intolerância e perseguição religiosa, mesmo estando a liberdade de credo e
de culto prevista na Constituição do país.13
O caso Córdoba é um exemplo, em que um pastor e seus familiares foram ameaçados
por, em tese, descumprirem uma lei distrital14 que proibia a manipulação psicológica e técnicas
de persuasão. Isto porque a maioria de seus fiéis anteriormente à conversão eram usuários de
drogas e prostitutas. Com isto, o pastor e sua família foram diversas vezes ameaçados e vítimas
de discurso de ódio, tendo inclusive suas propriedades avariadas e saqueadas (PORTAS ABER-
TAS, 2017f, p. de internet). Outro caso de grande evidência na Argentina ocorreu durante uma
manifestação de um grupo de feministas radicais, em 2013, quando o grupo atacou fiéis cató-
licos em frente à igreja, cuspiram, agrediram, picharam e queimaram a imagem de um santo
(VEJA, 2015, p. de internet).
Mais recentemente, no dia 08 de março de 2017, outro triste fato voltou a demonstrar o
grande desrespeito às religiões cristãs na Argentina. Um grupo de ativistas feministas, reunidas
em protesto a favor do aborto, fizeram uma encenação em frente à Catedral da província de
Tucumán, passando a mensagem de que Maria deveria ter abortado o seu filho Jesus, em claro
e patente abuso da liberdade de pensamento e de expressão. A performance artística, que re-
percutiu negativamente ao redor do mundo, acabou por ofender à figura de Maria (considerada
santa pela igreja católica) e de Jesus Cristo, que é reconhecido como salvador pelos cristãos e
tido como figura suprema do cristianismo (GUIAME, 2017, p. de internet).
Embora com pouco destaque midiático, outra situação relevante é a sofrida pelos mu-
çulmanos que vivem no país. Em 2009, várias associações e organizações representantes do
povo árabe e do islamismo, denunciaram a ação opressiva de autoridades da Argentina. Na
denúncia, narram que, durante 15 anos, sua comunidade tem sido investigada e vem sofrendo
abusos por serem acusados de possuir armamento bélico. Ocorre que, mesmo não tendo sido
encontradas provas no decorrer desses anos, insistem em acusá-los e humilhá-los em interro-
gatórios, somente por pertencerem à comunidade islâmica, que muito sofre com o preconceito
ao redor do mundo, muitas vezes por serem tachados de modo indevido e generalizado como
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

12  O art. 2º da Constituição da Nação Argentina prevê que “El Gobierno federal sostiene el culto católico apostólico romano”.
13  O art. 14 da Constituição argentina prevê que “Todos los habitantes de la Nación gozan de los siguientes derechos conforme a las leyes
que reglamenten su ejercicio; a saber: de trabajar y ejercer toda industria lícita; de navegar y comerciar; de peticionar a las autoridades;
de entrar, permanecer, transitar y salir del territorio argentino; de publicar sus ideas por la prensa sin censura previa; de usar y disponer
de su propiedad; de asociarse con fines útiles; de profesar libremente su culto; de enseñar y aprender”.
14  Uma lei provincial (aplicável apenas ao Estado de Córdoba), a Lei Argentina 9.891, foi criada com a intenção de assegurar a liberdade
religiosa, mas está causando efeito contrário. Relatos de líderes religiosos atuantes na região, apontam para o fato de que a referida lei,
embora criada com o propósito de prender e prevenir precocemente qualquer situação de manipulação psicológica, bem como para
prover assistência a vítimas de manipulação, tem sido aplicada abusivamente a organizações religiosas, colocando em risco a vida de
religiosos na região.

59
terroristas.15 (IBEIPR, 2017, p. de internet).
Por fim, vale apontar que o país argentino ocupa a posição de n. 69 no ranking do es-
tudo ADL Global 100, já mencionado anteriormente, constatando-se que, mesmo com um dos
percentuais mais altos de judeus em países da América, 24% da população local possui opiniões
antissemitas.

3.5 Brasil

Um dos grandes problemas do Estado brasileiro em relação à liberdade de religião é


a amplitude da diversidade religiosa no país e também a falta de preparo e cultura de respeito
para lidar com aquele que é e/ou pensa de maneira diferente em relação às questões religiosas
no país. Nesse sentido, LAZARI (2014, p. 1) esclarece que:

o Brasil pode não ter problemas extremos em se tratando de liberdade religiosa, como
perseguições e carnificinas que ocorrem de maneira contumaz em países asiáticos
e africanos, ou o caso de nações cujos regimes ditatoriais vedam, ou, do contrário,
justamente fazem da religião o embasamento de seu aparato político-ideológico.
Isso não significa dizer, todavia, que este país encravado no coração da América do
Sul careça de discussões pertinentes ao livre exercício dos direitos de crença, culto,
exteriorização do pensamento, e reunião, que, conjuntamente, formam a liberdade
religiosa.

O país, conhecido por ser extremamente pluralista e acolhedor de múltiplas culturas


e religiões, embora tente se mostrar tolerante, livre de preconceitos, vem sendo acometido por
uma onda de discursos de ódio contra aquele que é diferente em termos religiosos. A aceitação
do outro, que tem um discurso ou pensamento diverso à própria crença, tem se tornado difi-
cultosa para muitos indivíduos componentes da sociedade brasileira, e os atos funestos contra
as diversas religiões existentes no país, tentam buscar legitimação na liberdade de expressão e
na própria democracia consagrada na Constituição do país (CRFB, art. 1º e art. 5º, IV, IX, X),
o que constitui um grande equívoco e vai contra os próprios princípios e ideais constitucionais
invocados.
Mesmo com a abertura acima mencionada e mesmo sendo um Estado Laico (CRFB,
art. 19)16, que garante o direito fundamental à liberdade religiosa (CRFB, art. 5º, VI, VII e
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

VIII)17, são incontáveis os casos de desrespeito e de intolerância que têm sido externados por
indivíduos, grupos religiosos e até mesmo pelo poder judiciário do país.

15  As denúncias foram feitas pela Asociación Árabe Argentina Islámica (AAAI), podendo ser verificada no sítio do Instituto Brasileiro
de Estudos Islâmicos.
16  Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). “Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representan-
tes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; II - recusar fé aos documentos
públicos; III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.
17  Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). “Art. 5º (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

60
Numa decisão proferida no ano de 2014, a Justiça Federal da cidade do Rio de Janeiro/
RJ entendeu os cultos afrodescendentes como não sendo manifestações de uma religião, ale-
gando-se dentre outras razões, que as manifestações religiosas africanas não possuem traços
suficientes para a configuração de uma religião própria (v.g., Bíblia, Alcorão etc.).18 Na mesma
decisão, o judiciário acabou por permitir que vídeos de cultos evangélicos publicados no sítio
YouTube, nos quais se verifica o desrespeito às religiões de matrizes africanas fossem mantidos
online, fato que revela um desequilíbrio em relação ao tratamento conferido à religiões existen-
tes no país. Em razão da forte repercussão negativa e consequente reação de parcela da socieda-
de brasileira, notadamente por meio das mídias sociais, o juiz prolator da decisão em comento
a reconsiderou mais tarde (MIGALHAS, 2017b, p. de internet)19, reconhecendo os cultos de
matriz africana como religião no país.
Nota-se que as religiões de origem ou influência africana são uma das que mais sofrem
perseguição religiosa no Brasil. No mês de junho de 2015, uma criança foi atingida com uma
pedrada na cabeça após sair de um culto de Candomblé. Os agressores a chamaram de “diabo”,
disseram que ela iria para o inferno e que Jesus estava voltando, tentando justificar a agressão
com fundamentos diversos à própria religião (G1 GLOBO, 2017, p. de internet). Trata-se de
mais um infeliz episódio de intolerância religiosa, dentre os muitos outros casos que têm sido
verificados no país. O que se constata é que as pessoas precisam criar uma cultura de educação
e respeito pelo outro e por suas crenças, o que, definitivamente, é algo muito diferente de con-
cordar com os dogmas e com as crenças do outro. Respeitar não implica em concordar.
As religiões de matrizes africanas foram objeto de estudo específico elaborado por
pesquisadores de uma universidade brasileira (PUC-Rio). Conforme os dados obtidos, 430 das
840 casas religiosas pesquisadas no Rio de Janeiro já foram alvo de discriminação. Constatou-
-se ainda que as agressões contra praticantes de tais religiões são alarmantes, sendo que 57%
dos casos ocorreram em local público, dentre os quais 67% das vítimas morreram nas ruas (O
GLOBO, 2017a, p. de internet).20
Outro fato que demonstra a perseguição religiosa dos adeptos das religiões de matriz
africana no Brasil é a expulsão de seus líderes das favelas existentes no país e até mesmo a
proibição da utilização de roupas características dessas religiões, o que tem ocorrido depois que
se começou a verificar no país a conversão de traficantes ao cristianismo (O GLOBO, 2017c, p.
de internet).
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

O catolicismo, mesmo sendo a religião com maior número de fiéis no país e de grande
influência no governo, também vem sofrendo desrespeito. A intolerância é recorrente nas redes
sociais, destacando-se nesse sentido o Facebook. Publicamente a intolerância também tem sido

18  A íntegra da decisão pode ser acessada por meio do sítio Migalhas (MIGALHAS, 2017a, p. de internet).
19  Em decisão que reconsiderou o posicionamento assumido anteriormente, o magistrado afirmou que o “forte apoio dado pela mídia e
pela sociedade civil, demonstra, por si só, e de forma inquestionável, a crença no culto de tais religiões, daí porque faço a devida ade-
quação argumentativa para registrar a percepção deste Juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões, eis que suas liturgias,
deidade e texto base são elementos que podem se cristalizar, de forma nem sempre homogênea”.
20  Trata-se do estudo “Presença do Axé - Mapeando terreiros no Rio de Janeiro”.

61
um traço comum em algumas manifestações evangélicas e também em manifestações LGBT
(Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais), em que um ponto em comum é a destruição de
imagens católicas.
Um triste e pioneiro episódio nesse sentido ocorreu em 12 de outubro de 1995, protago-
nizado por um “bispo evangélico”, que desferiu chutes em uma imagem de escultura sagrada e
cultuada pela população católica num programa de televisão veiculado em cadeia nacional (IG
ÚLTIMO SEGUNDO, 2017, p. de internet). Fato semelhante ocorreu recentemente, em 11 de
janeiro de 2017, repercutindo na mídia nacional. Uma mulher seguidora de uma denominação
evangélica existente no país, quebrou uma imagem de escultura de veneração dos religiosos
católicos (VEJA, 2017, p. de internet).
Ademais, tanto evangélicos como católicos, ambos segmentos cristãos, têm sido
vítimas de intolerância religiosa em manifestações desrespeitosas, tais como a “#queimeumabí-
blia”, amplamente veiculada na internet (Facebook e Twitter); a crucificação encenada por uma
transexual durante um evento do grupo LGBT, conhecido no país como “Parada Gay”, ocorrido
na cidade de São Paulo em junho de 2015, em que também ocorreu a introdução de crucifixos
e imagens em orifícios íntimos do corpo humano pelos participantes do evento.21 (GOSPEL
PRIME, 2017b, p. de internet).
Outro segmento que sofre com a intolerância religiosa no país é aquele constituído por
ateus. Por diversas vezes os ateus têm sido hostilizados e excluídos do âmbito da proteção da
liberdade religiosa simplesmente por exercerem a sua liberdade negativa, isto é, de não crer, de
não professar uma determinada crença. Os ateus ainda são mal vistos e desrespeitados, pois,
por não crerem em um Deus, são invariavelmente tachados como pessoas ruins e de má índole.
Por manifestar este pensamento, um apresentador televisivo foi processado e sua emissora con-
denada a se retratar em rede nacional, por relacionar crimes bárbaros aos ateus, que “não têm
Deus no coração”. (PREVIDELLI, 2017, p. de internet).
Quando se trata do judaísmo, embora os índices sejam considerados baixos, ainda se
evidencia, segundo os estudos ADL Global 100, que 16% dos brasileiros demonstram precon-
ceitos em relação aos judeus, ocupando o Brasil a 81ª posição dentre os 100 países pesquisados.
Há, ainda, notícias de que muçulmanos que vivem no Brasil sofrem diariamente com
o preconceito, sendo chamados de “homens-bomba”, ou sendo zombados por suas vestimentas
e costumes. Conforme relatos do Jornal O Globo, após os ataques terroristas no Jornal “Charlie
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Hebdo“, muçulmanos moradores do Rio de Janeiro ficaram trancados em casa por medo de
retaliação, pelo simples fato de possuírem a mesma religião professada pelos terroristas que
reivindicaram a autoria dos atendados. (O GLOBO, 2017b, p. de internet).

21  O ato de encenação da crucificação praticado pela manifestante LGBT, bem como a quebra de imagens ou sua introdução em orifí-
cios do corpo humano causaram grande polêmica em todo o país e reações diversas em vários setores da sociedade, estimulando ainda
mais o discurso de ódio e intolerância religiosa no país.

62
4 O NECESSÁRIO DESENVOLVIMENTO DE UMA CULTURA DE EDUCAÇÃO EM
DIREITOS HUMANOS PARA ASSEGURAR A LIBERDADE RELIGIOSA

Pela exposição casuística feita na seção anterior, que permitiu a verificação de siste-
máticas e persistentes violações à liberdade religiosa em diversos países latino-americanos,
vislumbra-se que nem mesmo a positivação desta liberdade nas Constituições nacionais e na
Convenção Americana sobre Direitos Humanos tem sido suficiente para a promoção do pleno
exercício desse direito humano consagrado nestes diplomas normativos. Em razão disso, a prin-
cipal proposta do presente trabalho é demonstrar a necessidade da implantação e do desenvol-
vimento de uma cultura de respeito à liberdade de religião na América Latina, que pode ser
alcançada por meio de uma educação em direitos humanos voltada para o atingimento desse
objetivo.
Nesse sentido, cabe aos Estados dar cumprimento ao disposto no art. 1º da Convenção
Americana, no sentido de

“respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno


exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra
natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer
outra condição social”.

A Convenção Americana foi enfática ao estabelecer o compromisso dos Estados Partes


quanto (i) ao respeito dos direitos e liberdades nela consagrados, bem como quanto (ii) ao dever
de garantir o seu livre e pleno exercício. Portanto, cabe a cada um tomar as medidas domésticas
necessárias à promoção do respeito à liberdade religiosa e à garantia de seu livre e exercício,
assegurando assim a plena efetivação desse direito humano subjetivo para todos os indivíduos
que estejam em seu território ou sob a sua jurisdição.
Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2016, p. 514) apontam que tanto a liberdade de consciên-
cia quanto a liberdade religiosa apresentam, além de uma dimensão objetiva22, uma dimensão
subjetiva, de modo que “na condição de direitos subjetivos, elas (...) asseguram tanto a liberdade
de confessar (ou não) uma fé ou ideologia, quanto geram direitos à proteção contra perturbações
ou qualquer tipo de coação oriunda do Estado ou de particulares”.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Quando se fala na garantia e efetivação dos direitos humanos, deve-se ter em mente
que não apenas o Estado (que deve ser o principal agente assegurador desses direitos), mas tam-
bém os próprios indivíduos nacionais, que são seus titulares, são responsáveis por efetivá-los.
No entanto, restou evidente até aqui que mesmo em pleno século XXI, infelizmente ainda se
percebe a falta de efetividade e de implementação das disposições da Convenção Americana e
das Constituições nacionais no tocante ao pleno exercício da liberdade religiosa, livre de quais-

22  Explicam os autores que “como elementos fundamentais da ordem jurídico-estatal objetiva, tais liberdades fundamentam a neutrali-
dade religiosa e ideológica do Estado, como pressuposto de um processo político livre e como base do Estado Democrático de Direito”
(SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2016, p. 514).

63
quer perturbações ou coação por parte do Estado e da sociedade. O que se demonstrou foi de
todo o contrário, isto é, que a liberdade religiosa ainda vem sofrendo constantes violações, ora
por parte dos próprios Estados (comissiva ou omissivamente), ora em razão da intolerância e do
preconceito existentes e arraigados na sociedade.
Diante disto, torna-se possível afirmar que, para além das previsões legislativas infra-
constitucionais existentes no direito doméstico de cada país, que deverão estar em consonância
com as disposições das Constituições nacionais e com a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, visando conferir ampla proteção e a plena efetivação à liberdade religiosa, a adoção
de políticas públicas por parte dos Estados latino-americanos, que sejam capazes de propor-
cionar uma adequada e eficaz educação em direitos humanos para a garantia dessa liberdade
fundamental se mostra essencial.
No Brasil, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH, 2007, p. 25)
conceitua a educação em direitos humanos como

um processo sistemático e multidimensional que orienta a formação do sujeito


de direitos, articulando as seguintes dimensões: a) apreensão de conhecimentos
historicamente construídos sobre direitos humanos e a sua relação com os contextos
internacional, nacional e local; b) afirmação de valores, atitudes e práticas sociais
que expressem a cultura dos direitos humanos em todos os espaços da sociedade; c)
formação de uma consciência cidadã capaz de se fazer presente nos níveis cognitivo,
social, ético e político; d) desenvolvimento de processos metodológicos participativos
e de construção coletiva, utilizando linguagens e materiais didáticos contextualizados;
e) fortalecimento de práticas individuais e sociais que gerem ações e instrumentos
em favor da promoção, da proteção e da defesa dos direitos humanos, bem como da
reparação das violações”.

Para Maria Victoria Benevides (2000), a educação em direitos humanos consiste es-
sencialmente na

formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e


da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da
cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação desta cultura significa criar,
influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e
comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

devem se transformar em práticas.

Diante do persistente quadro de violação à liberdade religiosa constatado em vários


países da América Latina, atualmente é imperioso que um processo de mudança cultural seja
levado a efeito pelos Estados por meio da formulação e implementação de políticas públicas
voltadas a uma educação social em direitos humanos, capaz de criar, influenciar, compartilhar e
consolidar o respeito à diferença, bem como a tolerância no tocante à pluralidade de convicções
religiosas existente hoje nas sociedades latino-americanas.
Não há dúvida de que toda ação educativa que tenha como foco os direitos humanos

64
precisa ser capaz de conscientizar a sociedade acerca de uma determinada realidade, bem como
de “identificar as causas dos problemas, procurar modificar atitudes e valores, e trabalhar para
mudar as situações de conflito e de violações dos direitos humanos, trazendo como marca a so-
lidariedade e o compromisso com a vida” (SDHPR, 2013, p. 34). E é no âmbito desse processo
que “se constrói o conhecimento necessário para a transformação da realidade. Tal processo
deve ser coletivo, integrado ao meio onde acontece, e em sintonia com as necessidades de quem
dele participa” (SDHPR, 2013, p. 34).
Nesse sentido, cumpre a cada Estado latino-americano, em cumprimento do compro-
misso internacional assumido quanto ao respeito e garantia do pleno exercício da liberdade
religiosa, considerando as suas peculiaridades locais, identificar e coibir as causas que têm
desencadeado as violações à essa liberdade, bem como estabelecer, por meio de políticas efica-
zes, mecanismos que sejam aptos à promoção de uma educação em direitos humanos, capaz de
proporcionar uma mudança cultural tanto no âmbito dos órgãos estatais como na sociedade em
geral, relativamente à necessidade de respeito e tolerância para com aquele que pensa diferente
e que tem crenças diversas.
É certo que uma política educacional em direitos humanos voltada para essa finalidade
precisa ser muito bem estruturada e implementada a fim de que possa atingir satisfatoriamen-
te os seus objetivos. Nesse ponto, assume importância as lições de Maria Victoria Benevides
(2000) que, ao tratar da educação em direitos humanos, aponta que ela parte de três pontos
essenciais:

primeiro, é uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é


uma educação necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação
de valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente
transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante, que
ou esta educação é compartilhada por aqueles que estão envolvidos no processo
educacional – os educadores e os educandos – ou ela não será educação e muito menos
educação em direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a
educação para a mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada
e de atingir tanto a razão quanto a emoção.

Com base nestas lições, as políticas públicas educacionais voltadas à promoção de uma
mudança cultural em prol do respeito à liberdade religiosa, ao serem formuladas e implementadas
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

pelos Estados latino-americanos precisam ter ao menos as seguintes características (i) ter uma
natureza permanente, continuada, (ii) abranger toda a contingência territorial do Estado em
questão, ainda que seja necessária a observância de eventuais peculiaridades locais, (iii) estar
efetivamente voltada para a promoção de uma mudança de comportamento em todos os níveis
sociais e (iv) ser compreensiva, isto é, capaz de incutir nas mentes os valores corretos a serem
cultivados, atingindo tanto a razão como a emoção dos indivíduos, gerando como consequência
um compartilhar espontâneo por todo aquele que é tocado e transformado pelos conhecimentos
obtidos. Conforme afirmou Paulo Freire (1980, p. 25), “a educação para a libertação é um ato

65
de conhecimento e um método de ação transformadora que os seres humanos devem exercer
sobre a realidade”.
No dia a dia, é bastante comum a constatação de que muitos indivíduos componentes
de diversas sociedades nacionais, não sabem em que consistem exatamente os direitos huma-
nos, não sendo um exagero afirmar que a expressão tem até um cunho pejorativo no meio social.
No âmbito do senso comum, alguns os definem como “direitos dos bandidos” ou “direitos dos
manos”, outros dizem que “não servem para nada” ou que “só protegem os maus”.
Esse senso comum disseminado em sociedades multiculturais e pluralistas como as
existentes na América Latina abre espaço para o desrespeito, incompreensão, discriminação e
intolerância para com o outro, que também é destinatário dos mesmos direitos. Conforme escla-
recem Cecchetti, Oliveira, Hardt e Riske-Koch (2013, p. 32), “lamentavelmente, representações
sociais equivocadas do outro ainda impulsionam o surgimento do preconceito e discriminação,
grandes responsáveis pelos conflitos religiosos”.
É imperiosa uma mudança de mentalidade nesse sentido, uma transformação do senso
comum para a compreensão do que se tratam verdadeiramente os direitos humanos de cada
indivíduo, inerentes a cada um, pelo simples fato de serem humanos e por terem uma dignida-
de que lhes é inerente. Como afirmam Cecchetti, Oliveira, Hardt e Riske-Koch (2013, p. 32), a
“promoção da dignidade humana perpassa, entre outros pontos, pelo respeito e reconhecimento
das diferentes formas de religiosidades, tradições e/ou movimentos religiosos, bem como da-
queles que não seguem forma alguma de religião ou crença”.
Diante desse quadro de ignorância social que hoje se verifica em relação aos direitos
humanos, a promoção do conhecimento por meio de políticas públicas continuadas e de ampla
abrangência constitui um dos primeiros objetivos a ser perseguido pelas políticas educacionais
em matéria de direitos humanos e o primeiro passo para a transformação.
Nesse sentido, a conversão da mentalidade presente atualmente no senso comum lati-
no-americano e a criação de um senso crítico de auto avaliação no tocante às posturas frente aos
direitos humanos, especialmente quanto ao respeito à liberdade religiosa, exigem o conhecer
do real significado destes direitos, isto é, o esclarecimento de que eles constituem “um conjunto
de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e
dignidade” (RAMOS, 2016, p. 29), sendo por isso mesmo de titularidade de todos os indivíduos,
independentemente de “raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (DUDH, art. 2º).
Assim, uma política educacional em matéria de direitos humanos voltada ao combate
da discriminação, do preconceito e da intolerância, deve ser capaz de tornar claro e compreen-
sível a toda uma sociedade que os direitos humanos (inclusive aqueles que dizem respeito à
religião) são direitos de todos, ou seja, do católico, do evangélico, do budista, do hinduísta, do
mulçumano, do ateísta etc.
A promoção desse conhecimento por meio de políticas públicas intensivas é, portanto,
a primeira etapa rumo às conversões que hoje se fazem necessárias em relação à liberdade

66
religiosa, isto é, (i) de uma postura de intolerância, para a tolerância, (ii) de condutas desrespei-
tosas, violadoras de direitos e ofensivas, ao respeito para com o outro, (iii) do repúdio, para a
aceitação, mesmo que esta não importe na concordância etc.
Além do conhecimento voltado para a compreensão do que realmente são os direitos
humanos, um segundo e não menos importante passo é o alcance de uma transformação por
meio do conhecimento obtido. Portanto, torna-se imperioso que as políticas educacionais desen-
volvidas pelos países em matéria de direitos humanos estejam aptas a gerar uma mudança cul-
tural nas sociedades latino-americanas relativamente à liberdade religiosa. Por outras palavras,
o conhecimento deve gerar transformação, isto é, toda a informação educacional que foi obtida
e apreendida a priori, precisa ser capaz de gerar uma transformação no modo de pensar e agir
dos indivíduos perante as questões relativas à liberdade de religião, notadamente no tocante ao
dever de respeito e tolerância para com o outro que professa uma crença diferente.
Portanto, uma mudança cultural efetiva por meio da educação em direitos humanos
exige políticas públicas que fomentem a formação dessa mudança de comportamento dos indi-
víduos. Nesse sentido, tornam-se importantes aquelas políticas que são capazes de impulsionar
“movimentos de e para o diálogo entre diferentes religiões e grupos religiosos, visando à cons-
trução do respeito à diversidade cultural religiosa através do diálogo inter-religioso e intercultu-
ral” (CECCHETTI, OLIVEIRA, HARDT E RISKE-KOCH, 2013, p. 32).
Não há dúvidas de que políticas que proporcionem às sociedades nacionais latino-a-
mericanas a apropriação de conhecimentos específicos no tocante às diversas culturas e/ou tra-
dições religiosas, possibilitando um profícuo diálogo inter-religioso numa perspectiva cultural
que objetive proporcionar a compreensão das múltiplas experiências religiosas da humanidade,
pode contribuir significativamente para uma mudança de postura dos indivíduos quanto às
crenças do outro e quanto à necessidade de respeito e tolerância para com as outras religiões.
“O diálogo é processo mediador, articulador, fomentador e criador de possibilidades para o
reconhecimento do Outro no processo educativo, através do qual é possível construir explica-
ções e referenciais que escapam do uso ideológico, doutrinal e catequético” (FONAPER, 1997).
Conforme explica Teixeira (2004, p. 19), o “diálogo não enfraquece a fé, como alguns temem,
mas possibilita um aprofundamento e ampliação de seus horizontes”.
Por fim, um terceiro passo necessário à consagração de uma mudança cultural latino-
-americana em matéria de liberdade religiosa consiste na formulação e implementação de polí-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ticas públicas contínuas e abrangentes que visem, além de proporcionar um conhecimento vol-
tado para a transformação, também uma ampla compreensividade social. Uma política pública
voltada à educação em direitos humanos em matéria religiosa precisa ser compreensiva, isto é,
capaz de incutir nas mentes dos indivíduos envolvidos no processo educacional, os valores cor-
retos a serem cultivados, os padrões fidedignos de serem seguidos (v.g., respeito à diversidade,
tolerância, alteridade, igualdade, solidariedade etc.), atingindo assim tanto a razão como a emo-
ção dos educandos (e também dos educadores) e gerando, como consequência, um compartilhar
espontâneo por todo aquele que é tocado e transformado pelos conhecimentos obtidos.

67
Em síntese, o estabelecimento de uma nova cultura de respeito à liberdade religiosa na
América Latina requer, além da positivação dos direitos em nível constitucional e internacional,
posturas estatais que visem o fomento desta mudança, o que pode se dar por meio da formula-
ção e implementação de políticas públicas educacionais de caráter contínuo e abrangente, aptas
a proporcionar um amplo conhecimento em direitos humanos, especialmente aqueles relativos
à liberdade de consciência e de crença. Do mesmo modo, tais políticas precisam estar efetiva-
mente voltadas à transformação social e serem compreensivas, de modo que o conhecimento
proporcionado aos indivíduos possa ser plenamente absorvido e capaz de gerar mudanças de
posturas que sejam positivas e por isso mesmo, dignas de serem compartilhadas.
A criação e a manutenção de uma nova cultura de respeito e tolerância para com as
crenças e a religião do outro se impõe na América Latina. A educação em direitos humanos,
mesmo que a passos lentos, se for continuada, abrangente, voltada para a mudança e compreen-
siva, haverá de gerar a transformação de uma cultura de preconceito e intolerância em respeito
e tolerância, de segregação e marginalização em inclusão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme se aferiu, o presente trabalho teve como objetivo demonstrar a necessidade


da criação de uma cultura de respeito à liberdade religiosa entre os povos latino-americanos.
Em termos conclusivos, verificou-se claramente que mesmo diante da positivação da
liberdade de religião como um direito humano (nos tratados internacionais) e fundamental (nas
Constituições dos Estados latino-americanos), ainda existem muitas violações à liberdade de
consciência e de crença no continente americano, que infelizmente são frutos não apenas de
ações estatais (comissivas e/ou omissivas), mas também das sociedades nacionais em geral.
Aferiu-se que, no contexto de sociedades multiculturais como as que se verificam na
América Latina, torna-se de absoluta importância o saber lidar com a pluralidade de crenças,
com a diversidade e com a diferença. É preciso saber respeitar o espaço, as convicções e as
crenças do outro, fato que tristemente ainda não tem ocorrido nas sociedades latino-america-
nas, conforme se constatou pela análise casuística feita ao longo do trabalho, reveladora de uma
ampla gama de violações à liberdade analisada.
Diante do quadro constatado, o trabalho teve como uma de suas finalidades precí-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

puas demonstrar a necessidade da implantação e do desenvolvimento de uma nova cultura de


respeito à liberdade de religião na América Latina, que pode ser alcançada por meio de uma
educação em direitos humanos voltada para o atingimento desse objetivo. Nesse sentido, de-
monstrou-se a imprescindibilidade da formulação e implementação de políticas públicas por
parte dos Estados latino-americanos, voltadas à promoção de um necessário e adequado conhe-
cimento sobre os direitos humanos que seja capaz de provocar uma mudança no modo de agir e
de pensar dos indivíduos no tocante às questões relativas à liberdade de religião, transformando
assim posturas sociais de desrespeito e intolerância em respeito e tolerância para com aqueles

68
que têm crenças diferentes.
Restou evidenciado que políticas públicas contínuas e abrangentes, voltadas essencial-
mente à promoção de um conhecimento compreensivo e transformador em relação aos direitos
humanos, notadamente quanto à liberdade religiosa, podem em muito contribuir para a criação
e o desenvolvimento de uma nova cultura de respeito e tolerância para com todas as religiões e
suas liturgias.
Pelas diversas violações à liberdade religiosa que foram demonstradas ao longo do tra-
balho, presentes em muitos Estados latino-americanos, verificou-se que a educação em direitos
humanos ainda está distante do contingente pessoal que integra os órgãos públicos estatais, bem
como da maioria da população, que se mostra alienada e apenas limita-se a imitar e reproduzir
aquilo que ouve, disseminando o saber do senso comum, sem, contudo, se preocupar com uma
análise crítica racional acerca de conquistas tão caras à humanidade, como é o caso dos direitos
humanos. Pelas práticas violadoras que foram descritas ao longo do texto, pôde-se perceber que
um dos principais problemas está no respeito seletivo e segregado das liberdades, isto é, apenas
se respeita e se tolera aqueles que reproduzem as mesmas ideologias e crenças, discriminando-
-se e desrespeitando-se aqueles que se manifestam contra ou apenas de maneira diferente.
Restou obvio que ainda há um longo caminho a ser trilhado no tocante a conquistas
práticas dos direitos já positivados em relação à liberdade religiosa. Contudo, demonstrou-se
por outro lado, que a promoção de um adequado conhecimento em relação aos diretos huma-
nos, que vise educar para a transformação dos indivíduos (e consequentemente das sociedades),
pode gerar uma mudança de posturas radicais e intolerantes que têm sido o mote de diversos
conflitos religiosos, em favor de posicionamentos mais consentâneos com a pluralidade religio-
sa das sociedades latino-americanas.
Não se discute que ninguém pode ser obrigado a adotar alguma crença ou religião pelo
emprego da força e nem mesmo a inadmissibilidade de qualquer discriminação em razão da
adoção desta ou daquela convicção religiosa. Se é assim, torna-se necessária a implantação e
o desenvolvimento de uma nova cultura de respeito às crenças religiosas de cada um. Mas isso
será o resultado de um processo contínuo e abrangente de ensino, conscientização, amadureci-
mento e solidificação da pluralidade religiosa e da necessidade de respeito e tolerância à essa
pluralidade.
Não há dúvidas de que a convivência social em Estados multiculturais, como são os
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

latino-americanos, tem como custo o respeito e a tolerância à diversidade religiosa. Em países


com tamanha heterogenia religiosa, como o Brasil, a intolerância e a perseguição religiosa são
ainda mais inadmissíveis. Por isso, o olhar para a educação em direitos humanos na América
Latina precisa estar centrado no cultivo de uma nova mentalidade de respeito e tolerância re-
ligiosa, onde independente da religião que se adote, dos dogmas em que se acredite, da con-
vicção religiosa que se tenha ou até mesmo se deixa de ter, haja o devido e necessário respeito
ao próximo e às suas crenças, não por ele ser cristão, evangélico, católico, judeu, islamita ou
mulçumano, mas simplesmente por se tratar de um ser humano.

69
Diante de tanta cegueira de caráter religioso, que contribui para a manutenção de com-
plexos processos de exclusões, discriminações, desigualdades e intolerâncias, a educação em
direitos humanos certamente será um ambiente privilegiado para a formação de uma nova cul-
tura de respeito à liberdade religiosa na América Latina.

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EDUCATION ON HUMAN RIGHTS: THE NEED FOR A CULTURE OF RESPECT


FOR RELIGIOUS FREEDOM IN LATIN AMERICA

ABSTRACT
The main purpose of this text is to address the issue of religious freedom
and the need for human rights education regarding respect for religious
diversity in Latin America. Pursuant to Article 18 of the Universal Dec-
laration of Human Rights and Article 12 of the American Convention
on Human Rights, States have a duty to ensure the broad freedom of be-
lief and religion of their nationals and aliens within their territory. How-
ever, although many member countries of the Organization of Ameri-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

can States (OAS) are signatories to the American Convention, there are
still many violations of the rights enshrined in this Convention. Thus,
the text aims to demonstrate that human rights education constitutes a
fundamental tool for the promotion of societies more just and sensitive
to the presence of the other and their religious beliefs and values.
Keywords: Religious Freedom. Diversity. Human Rights. American
Convention on Human Rights. Education. Latin America.

73
INTENÇÃO E GESTO: POSSIBILIDADES LÓGICAS NO DIREITO

Renata Celeste1

RESUMO
O texto analisa as práticas de direito e a (im)possibilidade de seu perten-
cimento no plano da formalização, a partir do referido ponto de partida
busca-se inferir uma resposta acerca da presença de uma escritura lógi-
ca no raciocínio jurídico. A pretensão é indicar como os substratos de
verdade no universo jurídico são amparados a partir da dialética entre
ilusão e realidade, revelando uma estrutura de simulacro.
Palavras-chave: formalização; lógica; raciocínio jurídico; simulacro.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende analisar as práticas de direito enquanto passíveis de uma co-
locação no plano da formalização, tentando inferir uma resposta acerca da presença de uma
escritura lógica no raciocínio jurídico.
Ainda discutirá como o discurso de racionalidade jurídica dá forma a uma realidade
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

autêntica e própria, realizando um cruzamento coma ideia de simulacro deleuziano e a forma-


ção de verdades explícitas.
Busca-se a partir das ideias elencadas traçar os espaços da lógica informante do simu-
lacro, neste caso, um modelo jurídico, e da lógica operante nos usos do direito. A pretensão re-
side em indicar como realidade e ilusão dialogam para a sustentação do necessário, garantindo

1  Mestre e Doutoranda em Teoria do Direito pela UFPE; Coordenadora Ajunta e Professora do Curso de Direito da Faculdade Damas
da Instrução Cristã; Coordenadora do Grupo de Pesquisa “O cogito e o impensado: estudos de direito, biopolítica e subjetividades” da
Faculdade Damas da Instrução Cristã; Servidora do Tribunal de Justiça de Pernambuco.

74
um sistema de linguagem para a (ir)racionalidade das formas jurídicas.

2 INTENÇÕES LÓGICAS

As consequências de base racional iluminista se apresentaram para o direito como uma


necessidade de afirmação formalista. O período moderno inscreve um pensamento cientificista
que força o direito a uma representação formal válida de uma inspiração semântica mínima.
Para tanto esse desejo formalista se apresentou na confecção de códigos que agrega-
ram um sistema de linguagem próprio e possibilitaram a necessária segurança em regras pre-
viamente organizadas. A intenção racionalista consistiu na simplificação do processo, a prática
deveria ser reduzida a conhecer o fato, encontrar a regra e aplicá-la, modelo próximo a um
dispositivo maquinal.
Esse cientificismo foi a chave para os processos codificadores e a pressão positivista no
Direito. A imposição da semântica normativa deveria, aos moldes da época, ser capaz de guiar
o ser para o dever –ser com precisão e lógica. De certo modo podemos ousar dizer que essa
força codificadora deu formas a um sujeito abstrato unitário2 identificado como Direito, leia-se
abstrato porque são formas vocabulares que partem de uma intenção do criador e unitário uma
vez que deve partir do corpo formalizado a resposta para os fatos. A esse sujeito está entregue
a função de movimentar e frear um projeto de sociedade.
De forma inteiramente necessária para o cenário teórico e prático o silogismo apare-
ce como técnica e fé. A norma se transforma em premissa maior, a lógica silogística passa a
figurar como forte argumento racional no discurso jurídico fazendo uso das fórmulas abstratas
(todo A é B; D é A; logo D é B), para esse modelo formal norma e ação possuem uma cone-
xão transparente, facilmente reconhecível e portanto ligada a uma decisão lógica. A utilização
desse raciocínio deve pressupor alguns indicativos, um deles o de que é possível uma resposta
única na realidade jurídica. Dentro de um plano teórico esse pensamento pode ser sustentado
de forma plausível, entretanto problemas surgem quando da interferência do plano empírico da
aplicação do direito.
A realidade jurídica mostra-se multifacetada demonstrando um grande conjunto de
respostas possíveis para cada caso (A àB; AàC ... A àY), podemos dizer que a ligação norma
e ação quando rompem os limites do universo teórico e adentram o meio empírico encontram
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

uma terceira via, a da contingência informada por valores políticos, sociais e emotivos. Assim,
o uso do silogismo realiza muito mais uma política jurídica a um método de Direito.
Expressões matemáticas e lógicas são unívocas3, diferentemente dos termos encontra-
dos no Direito, estes são repletos de possibilidades de significado. No raciocínio lógico formal
podemos identificar relações do tipo (se A é F; é falso dizer que A é não-F), o Direito nos ofe-

2  Adaptação do termo utilizado por Antonio Negri e Michael Hardt na obra intitulada O trabalho de Dioniso
3  Extraído de artigo ainda não publicado do Prof. Torquato de Castro Jr. “Formalização do raciocínio jurídico : o desafio da redução
semântica “

75
rece essa dupla identidade ausente de mecanismo lógico (se A é F; A pode ser não-F), isso a
depender da modificação dos significados da semântica operada por quem aplica a regra.
Contudo, a evidência da negação das premissas maiores para a representação adequa-
da do Direito não encerra por si a negação da possibilidade de formalização no Direito, uma vez
que não se trata de um único sistema de lógica a surgir como plausível ao invólucro jurídico.
Nesse rastro segue-se o problema de determinar a possibilidade de uma linguagem calculada
no Direito ou em seu procedimento e até que ponto pode ser reconhecida a estabilidade dos
sistemas jurídicos.

3 A SEMÂNTICA E O ENTORNO DAS REGRAS

O que são regras? O que significa dizer que uma regra existe? Os tribunais aplicam
na realidade regras ou fingem meramente fazê-lo? (HART, 1994, p.13). A própria definição de
regra já impõe o problema da redução semântica, a rigor se a precisão do termo fosse impres-
cindível estaríamos lidando com uma ontologia e bem possivelmente isso poderia levar a inco-
municabilidade explícita.
Mas o que são regras? São somente conceitos organizados e expressos? Também en-
volvem conceitos implícitos, morais, por exemplo, nesse caso informado por valores culturais e
subjetivos? Para que são feitos? Para a obediência ou para fazer valer a partir da desobediência?
As especulações sobre o por quê e o para que das regras nos levaria uma infinitude de impre-
cisões e outra infinidade de possibilidades, contudo não é a finalidade do texto. A opção pelo
questionamento é tentativa de demonstrar o terreno pouco confortável no qual o Direito se põe.
No Direito as regras possuem múltiplas funções, uma delas a de dizer o que é pelo que
deve-ser, estabelecendo regras de conduta as quais tentam amalgamar, via mens legislatoris,
não só razões formais, mas também valores morais. A invenção das regras é, por assim dizer,
um processo impuro em termos de rigorismo, pois vai atender a uma diversa ordem de valores
e finalidades políticas, econômicas, sociais e de marketing pessoal.
O desejo de uma semântica no Direito inicia-se, assim, de modo aleatório e pouco
convincente. O instrumento do Direito deriva de uma gênese viciada pelos interesses que parti-
cipam do jogo de linguagem. Além dessa imprecisão de finalidade da lei, é necessário lembrar
que o tempo marca a figura do legislador e a escritura da lei, demonstrando um outro empecilho
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ao raciocínio formal se A hoje é B, em quarenta anos pode vir a ser F ou perder sentido na
sua existência. A marca do tempo é incontornável e está ligada a função que o Direito cumpre,
distintamente, de acordo com as exigências do tempo.
A redução semântica aparentemente almejada para alcançar o reino da segurança ju-
rídica, na verdade é indesejável. Para a própria funcionalidade do Direito ela deve manter um
mínimo de abertura, seu fechamento ensejaria o colapso do sistema, tornaria visível a incon-
sistência dos postulados jurídicos e as contradições de suas intenções lógicas. Por outro lado a
imposição de uma semântica única deixaria mais suscetível de evidência o fazer arbitrário do

76
Direito. Assim o arbitrário se impõe, mas em uma forma difusa, organizadamente desorgani-
zada e com menor visibilidade através da escolha daquele que aplica a norma. Das incertezas
o Direito vai construindo suas certezas em um eterno paradoxo, sua lógica é de manutenção e
não de formas.
Desse modo não podemos falar em uma realidade jurídica, mas sim em diversas rea-
lidades jurídicas (A; B; C; D). A realidade jurídica do legislador (A) nem sempre representa a
realidade jurídica do aplicador, a linguagem natural em que se expressa o Direito é multívoca
e faz surgir distintas possibilidades interpretativas (de fato, o que o legislador quis dizer com
A?). A questão é não somente acerca da possibilidade de se alcançar uma interpretação única
carregada de certeza, mas também versa sobre a existência dessa certeza ainda no âmbito da
realidade do legislador. Uma norma A criada para regular uma situação B, muitas vezes não
regula a situação B’, a norma se depara então não só com a maleabilidade de seu significado,
mas também com a plasticidade dos fatos jurídicos.
O mundo próprio do Direito apresenta entornos específicos de difícil abertura para
falar-se na lógica como informante de um modelo de escritura jurídica. Embora possua a pre-
tensão das formas certas, trabalha o tempo inteiro com a multiplicidade de possibilidades dos
conteúdos incertos. A tradução dessa pluralidade se opera pelas vias interpretativas as quais
têm seu maior relevo nos lugares de decisão. Mesmo que a idéia da lógica deôntica como ins-
crita no Direito ser bem aceita, sua observação nas zonas de aplicação do Direito demonstram
sua limitação enquanto moldura para a concepção e as práticas jurídicas. Estabelecer proibido,
permitido, obrigado no campo teórico do Direito se mostra viável, mas o contexto multifacetado
da expressão do Direito na realidade revela a insuficiência do modelo deôntico. A incoerência
do ordenamento somada ao aparato subjetivo do aplicador finda por invalidar uma subsunção
lógica norma/ação, dado A nem sempre será B.
Os impasses da linguagem normatizada resolvem-se com uso de outra linguagem, a
linguagem interpretativa ancorada pela possibilidade dos múltiplos significados,“com respeito
a essa variedade não é correto perguntar qual o significado correto, já que não existe um signi-
ficado verdadeiro de uma palavra” (TUGENDHART, Wolf, 2005, p.9). O instante de aplicação
do Direito e seu aparato hermenêutico permitem que o racional e o emotivo dialoguem para a
decisão, processo facilitado pela não explicitação da norma4. A lógica diferentemente do Direito
não trabalha com a interpretação, enquanto a interpretação pode dar numerosos resultados para
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

a lógica isso não é desejável, nem possível. Como contornar esse problema e assinalar a lógica
do Direito?
O momento da interpretação é arbitrário, a imposição lógica também o é, contudo
quando a lógica constrói dado A é B, ela elimina as possibilidades de que A seja C diferente de
B, no Direito esse fechamento não existe, mesmo que uma decisão arbitrariamente diga que A

4  Ideia defendida por Katharina Sobota em: “Don’t Mention the Norm!”. International journal for Semiotics of Law, IV/10, 1991, p. 45-60.
Tradução de João Maurício Adeodato, publicada no Anuário do Mestrado da Faculdade de Direito do Recife, nº 7. Recife: Ed. UFPE,
1996, p. 251-273.

77
-à B, outra decisão de maior força pode decidir por A à F.
A linguagem lógica significando lógica formal parece inadequada ao Direito ou situar-
-se fora de seu entorno, possivelmente poderíamos optar pela negação de qualquer modelo lógi-
co aplicado ao Direito, porém isso não seria exatamente seguro. Prefere-se aceitar o espaço da
lógica no Direito e ressaltar sua função duvidosa (ou seria necessária?) de fornecer um formato
de legitimação para as decisões jurídicas. Entende-se aqui a lógica antes como uma forma de
apresentação da decisão, forjando silogismos, a um modelo aplicável ou reconhecido no Direito.
O processo decisório muito antes de ser técnico é arbitrário e definido por impressões
produzidas pela subjetividade, valorações sociais, morais, religiosas e outras, no entanto essa
predisposição valorativa é negada pela ficção da neutralidade axiológica do juiz, assim estão
fora do jogo de linguagem explícita. O momento do não-dito, da violação axiológica vem a ser
preenchido pela ilusão do silogismo falsamente representado nos dispositivos finais da senten-
ça. A força do não-dito resiste duplamente, uma vez deixando no espaço do implícito toda a
carga indesejável utilizada pelo aplicador na interpretação fato/norma e depois obscurecendo o
processo lógico, o qual exterioriza somente o necessário à legitimidade da decisão. Mesmo as-
sim não é prudente negar a possibilidade mínima de uma formalização válida para um procedi-
mento jurídico, no entanto essa observação se faz mais provável enquanto expediente ficcional
e não puramente lógico.

4 LÓGICA DO SIMULACRO E A VERDADE DA CAVERNA

O termo simulacro tem sido muitas vezes associado ao artificial, a um conjunto de


ficções cujo valor é equiparável ao de uma verdade, ainda que os meios expressivos pelos quais
é recebido sejam o que indica antes de tudo o seu valor. Através do simulacro é realizada a
integração do falso para reformular uma teoria, a tensão lógico e ilógico no direito produz um
simulacro que assimila uma falsa identidade lógica e cria um ambiente ficcional e estável onde
operam as normas e os juristas.
A necessidade de uma lógica aparente que torne o Direito aceitável frente aos outros
sistemas supera a sua ilogicidade material com a criação de um simulacro onde suas incertezas
formam certezas e suas regras possuem valor de verdade. O simulacro aparece assim como
uma racionalidade do ceticismo e possui mecanismos próprios, sendo um deles a capacidade de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

inserir o próprio observador na observação. Para o jurista isso se apresenta como a crença quase
lúdica em um sistema funcional, ele não está no fora, ele está dentro do sistema, logo o simu-
lacro não é o falso, é o verdadeiro. Por esse mecanismo o jurista alimenta a crença no Direito
enquanto sistema lógico e prestes a garantir o fetiche da segurança jurídica.
Deleuze identifica o simulacro com um certo uso da linguagem que dá origem a for-
mas consistentes e identificáveis como tais, aqui o simulacro revela uma potência natural para a

78
criação, em outras palavras a potência para a simulação5. O Direito se mostra pela força de sua
palavra, não a palavra certa, a palavra que é, mas a palavra que vem a ser, são interposições de
simulações que tão fortemente amparadas por um uso de uma linguagem própria se transfor-
mam na realidade.
O simulacro jurídico está longe da ingenuidade, sua organização bem fundada possibi-
lita sua invisibilidade, o ordenamento e a prática constituem uma ficção que funciona. Os sole-
cismos no ambiente jurídico ganham outra representação simbólica, ao invés de representarem
erros sintáticos e incorreções de linguagem, seus usos conseguem dar a entender o contrário
daquilo que expressam e travestem-se da roupagem de verdade. Na lógica do simulacro não há
compromisso com as verdades do mundo, nele as verdades são mais especificadas, seu ambien-
te cria suas próprias regras e produz uma esfera de subjetivação. Por esse raciocínio o Direito
existe e persiste enquanto sistema estruturado compactado, como sujeito abstrato autônomo de
interferência máxima no corpo social.
É difícil reconhecer o Direito como simulacro, vez que a própria noção de simulacro
ainda possui uma derivação negativa ainda proveniente da sua representação feita por Platão, o
simulacro era a cópia ruim da mimesis, de fato aceitar uma teoria de verdade limitada mostrou-
-se inconcebível durante muito tempo. No entanto, parece que as verdades só se tornam pos-
síveis e compreensíveis quando pensadas enquanto ficção, os tempos pós-modernos criam as
realidades ficcionais ou o inverso. A tênue diferença entre o aborto e a antecipação terapêutica
do parto representa uma simulação do diferente no ambiente jurídico, mas essa simulação torna
possível o uso razoável do Direito.
Uma vez que os artifícios utilizados pelo Direito são tão persuasivos, o reconhecimen-
to do jurista frente a cada situação não é de questionamento, mas de crença na existência do
sistema jurídico.
Tal qual na alegoria da caverna platônica, os juristas estão presos a um sistema de
crenças que cessa a capacidade crítica e o pensamento livre sobre o Direito, suas normas e sua
função na realidade empírica. A doxa jurídica não somente ignora a descrição das normas e do
Direito posto, como fabrica imagens para emprestar sentido ao jogo de simulação convincente.
A caverna do Direito reproduz uma estrutura tão fortemente sedimentada que o jurista já não
sabe com qual imagem-tipo se confronta, o real não é reconhecível, é criado. Os mecanismos
de simulação do Direito facilitam sua existência autônoma, separada das explicações de outros
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

sistemas. Com o simulacro, o Direito gira sobre seu próprio eixo, distanciando-se das demais
ciências e tornando seu universo teórico e prático incompreensível para quem está no fora.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo sendo difícil traçar representações lógicas válidas no Direito, não se pode con-

5  Termo utilizado por Deleuze para identificar as muitas possibilidades de criação.

79
cluir pela impossibilidade de qualquer formalização no espaço de aplicação e feitura das nor-
mas. Em termos de manipulação do pensamento para confirmação de legitimidade jurídica, a
lógica tem uso fundamental prescindindo de validez.
Apesar de possuir um grau de lugar-comum, vale reafirmar que o Direito é um am-
biente de realidade ficcional, contudo é assim que ele funciona e talvez em outro formato se
tornasse incomunicável. A diferença que marca sua artificialidade das demais está no fato da
invisibilidade da ficção, o pensamento circular do jurista crê que o sistema é uma tradução se-
mântica do Direito.
Embora os princípios pragmáticos não estejam presentes na configuração inicial do
jogo, eles surgem quando são necessários para a manutenção dos resultados previstos, eles não
regem o Direito, mas são regidos pela ocasião jurídica.
Não se fala em uma realidade jurídica, nem em uma única possibilidade lógica para o
Direito. As realidades se apresentam em camadas, várias camadas de realidade que vão abrin-
do-se umas sobre outras e para cada realidade um jogo próprio e menor que converte para o jogo
maior. E dessa forma aleatória o Direito tem tornado possível sua grande tarefa de possibilitar
uma ordem social duradoura.
Se a representação na lógica formal não é evidente, nem por isso se pode concluir pela
exclusão de toda a lógica no sistema jurídico. O simulacro jurídico se mantém e de certo modo
produz cópias do mundo e informa identidades para esse mesmo mundo. O simulacro de Direito
não possui estrutura ontológica, sua estrutura é epistemológica e política. O questionamento
sobre quais presenças lógicas ocupam essa epistemologia restam em aberto, mas algumas de
suas funções estão evidenciadas.

REFERÊNCIAS

DELEUZE, G. (1988). Diferença e repetição. Trad. de Luiz B. L. Orlandi e Roberto


Machado. Rio de Janeiro: Graal

CASTRO JR, Torquato (2010). Formalização do raciocínio jurídico: o desafio da redução


semântica. Artigo para publicação.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

HART, Herbert (1994). O conceito de Direito. 2ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

NEGRI, Antônio; HARDT, Michael (2004). O Trabalho de Dioniso: para a crítica ao Estado
Pós-Moderno. Minas Gerais: Editora UFJF-Pazulin.

SOBOTA, Katharina (1991). “Don’t Mention the Norm!” International journal for Semiotics
of Law, IV/10, p. 45-60. Tradução de João Maurício Adeodato, publicada no Anuário do
Mestrado da Faculdade de Direito do Recife, nº 7. Recife: Ed. UFPE, 1996, p. 251-273.

80
TUGENDHAT, Ernest, WOLF, Úrsula (2010). Propedêutica Lógico-Semântica. 3ª Ed. Rio
de Janeiro: Vozes.

MADARASZ, Norman(2005). The power for simulation: Deleuze, Nietzsche and


the figurative challenges of rethinking the models of concrete philosophy. Educ. Soc.,
Campinas, v. 26, n. 93, 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-73302005000400006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 21 Set. 2007.

INTENTION AND GESTURE: LOGICAL POSSIBILITIES IN THE LAW

ABSTRACT
The text analyzes the practices of law and the (im) possibility of its
belonging in the formalization plan, from the said starting point seeks
to infer an answer about the presence of a logical writing in the legal
reasoning. The pretension is to indicate how the substrates of truth in
the legal universe are upported from the dialectic between illusion and
reality, revealing a simulacrum structure.
Keywords: Development; logic; Legal reasoning; simulacrum.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

81
LIBERDADE JORNALÍSTICA NA ERA PÓS-POLÍTICA: UMA QUESTÃO PARA A
DOGMÁTICA?

Veruska Sayonara de Góis1

RESUMO
O estudo localiza-se no campo da teoria constitucional, tratando do
direito à liberdade de informação por parte dos jornalistas. Tal direito
é expresso na Constituição Federal, desdobrando-se em ‘direito de
se informar, direito de ser informado e direito de informar’. Questio-
na-se a liberdade interna do jornalista em seu exercício profissional,
a partir da teoria dos direitos fundamentais implícitos e das liberda-
des políticas, em um tempo de aparente corrosão da democracia e
da política. Através de pesquisa bibliográfica, conclui-se pela nota de
fundamentalidade no direito à liberdade interna do jornalista, que,
integrada à liberdade externa, conforma o direito de informar; o que
não garante sua efetividade.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade jornalística. Direitos fundamentais.
Constituição. Dogmática.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

O atentado ocorrido na França em janeiro de 2015, já lembrado como o “Massacre do


Charlie Hebdo”, reacendeu os debates sobre as liberdades públicas, especialmente a liberdade de
expressão e a liberdade jornalística. O ato terrorista contra o jornal humorístico francês Charlie

1  Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2005) e mestre em Direito Constitucional na UFRN (2009).
Professora adjunta na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (2004-atual) e advogada

82
Hebdo deixou doze pessoas mortas, cinco feridas e uma plateia perplexa. Além das manifesta-
ções de solidariedade aos jornalistas, questionou-se o limite da liberdade de expressão, incluindo
o humor politicamente incorreto utilizado no jornal Charlie Hebdo, bem o discurso de ódio.
O caso é emblemático, e retrata as dificuldades de uma aparente, porém precária, liber-
dade jornalística. Gestado na tradição libertária, o jornalismo privilegia a prática das empresas
e dos agentes institucionais, por meio de categorias como patrimônio, individualismo e autode-
terminação.
Essa prática pode ser vista no clássico jornalismo impresso e de caráter literário, ligado
às tendências políticas; bem como no chamado Jornalismo 3.0, praticado em mídias móveis e na
Internet, apoiado em patrocinadores e interesses econômicos, e refletindo as características da
atividade empresarial, como cosmopolitismo, individualismo, informalismo e fragmentariedade.
Podemos falar em uma captura dos jornalistas, enquanto agentes especialmente qua-
lificados para informar, e em conflitos de interesses e direitos. Sob uma perspectiva jurídica,
as liberdades de imprensa estão entre as mais clássicas - os direitos fundamentais de primeira
dimensão, de caráter civil e político.
A dogmática dos direitos fundamentais constitui uma página importante da Teoria da
Constituição, sendo verve inesgotável para o constitucionalismo a pessoa humana no centro das
discussões político-jurídicas. Como ilustração, pode-se falar do direito à informação, legado do
iluminismo e das revoluções.
Sendo direito fundamental expresso no rol dos direitos fundamentais da Constituição
Federal de 1988, desdobra-se no direito de informar, direito de ser informado e direito de infor-
mar. O próprio direito à informação conquanto direito com características que o autonomizam,
pode ser compreendido como subespécie do direito à comunicação, que tem titularidade difusa
e cunho político.
Na pesquisa que ora se empreende, o recorte se dá sobre a liberdade jornalística no
que toca ao direito de informar por parte do jornalista. O direito em pauta consiste, para esta
categoria profissional, também um dever, sendo que a liberdade profissional e as garantias estão
postas na Constituição Federal.
A problemática proposta situa-se, dessa maneira, na fundamentalidade do direito à
liberdade interna do jornalista, como direito fundamental implícito. Para responder à assertiva,
a metodologia utilizada foi, preponderantemente, a bibliográfica.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2 DIREITO CONSTITUCIONAL À INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA E


LIBERDADES POLÍTICAS

O desenvolvimento da teoria constitucionalista parece revelar costumeiramente novos


direitos. O direito à liberdade de expressão é um exemplo ilustrativo dessa aparente infinitude,
por conter uma diversidade de direitos e princípios relacionados, desdobrando-se, pelo menos,
em direitos de liberdade artística, religiosa e intelectual.

83
Essa liberdade importa a necessidade de expressão, sendo que a prática desse direito
pode ter lugar no espaço privado das relações familiares e íntimas, mas também pode ocorrer
no espaço público, a saber, o exercício da opinião, da crítica e do debate, ou no espaço da visi-
bilidade. O espaço - ou esfera pública - configura a instituição midiática. Tais ‘media’ ou meios
de comunicação, apesar de livres, são submetidos a uma regulação e inspiram atenção.
A comunicação social, como um processo de comunhão dialógica com a sociedade,
é reclamada em sua função ‘social’, em uma perspectiva institucional, de cunho pluralista e,
portanto, conflitante com a orientação liberal.

A ética e a deontologia do jornalismo colocam o acento tónico nas questões relativas à


qualidade da informação, vista numa perspectiva de objetividade, de verdade e de rigor
da informação (Laetilia, 1995) doa a quem doer (Traquina, 2002: 75). Este paradigma
resulta, em grande medida, das transformações realizadas com a industrialização
e profissionalização do jornalismo durante o século XIX (Chalaby, 2003), em que
a objetividade, embora matizada no início do século (Schudson, [1978] 2010: 13 e
ss), surgiu como um elemento central de uma nova comunicação pública. Mas tem
também na sua génese o princípio utilitarista da imprensa como tribunal da opinião
pública (Bentham [1822-1823] 2001), de um serviço destinado a vigiar os poderes
públicos das ameaças constantes da corrupção do poder (Camponez, 2010: 70-72).
(CAMPONEZ, 2014, p. 2)

A mídia é perpassada por marcos legais que, embora esparsos, constituem um sistema
próprio, de forma que já se reclama um estatuto específico para o campo do Direito da Comu-
nicação (CARVALHO, 2003, p. 83, nota de rodapé 124). Os documentos que dispõem sobre a
comunicação social no país são, basicamente, a Constituição Federal, Lei de Direito de Respos-
ta, Código de Defesa do Consumidor, Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de Segurança
Nacional, outras leis esparsas que tratam das profissões de comunicador, bem como disposições
da legislação comum, como o Código Civil.
A Lei de Imprensa (Lei 5.250/67), que tratava das liberdades de manifestação de pen-
samento e de informação, foi tida por inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e
não possui validade no ordenamento jurídico brasileiro. Explica-se: o Supremo, quando pro-
vocado a analisar a Lei de Imprensa por Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF), em decisão liminar suspendeu referida lei.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Na cognição sumária, o relator, ministro Carlos Britto afirmou “que, em nosso País, a
liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade, porquanto o que quer que seja pode ser
dito por quem quer que seja” (Supremo Tribunal Federal, Medida Cautelar em ADPF 130-7, p. 4).
Sem lamentar o fim da Lei de Imprensa, lamenta-se a superficialidade do julgamento,
que tinha os elementos para uma discussão histórica acerca de diversas liberdades, da necessi-
dade de transparência do Estado e do novo papel da sociedade, mesmo em uma época “pós-po-
lítica” (ZIZEK, 2001, p. 128).
A compreensão do “pós-político” implica o viés contrário à convivência tida por polí-

84
tica, à dissolução do Estado Democrático por mecanismos de segurança nacional (como o Ato
Patriota, Estados Unidos da América do Norte) e a intolerância radical presente em atos funda-
mentalistas de natureza político-religiosa (como foi o caso do Charlie Hebdo).
Uma noção similar de anti-política, em uma face nova, aparece nos manifestos sociais
no Brasil, como um repúdio aos arranjos políticos tradicionais e ao partidarismo, bem como na
eleição de grandes empresários para cargos eletivos (Donald Trump, para presidente nos Esta-
dos Unidos; João Dória para governador em São Paulo, Brasil, 2016). Esse viés se relaciona com
a teoria do livre mercado e uma crescente cultura de consumo:

Por sua própria natureza, a sociedade de consumo contemporânea cada vez mais obriga
as estruturas políticas a se adaptarem a ela. Na verdade, a teoria do livre mercado alega
que não há necessidade de política, pois a soberania do consumidor deve prevalecer
sobre todo o resto (...). Isso coloca em crise a própria função da cidadania (...) Essa
evolução do mercado destrói a própria base dos procedimentos políticos (HOBSBAWN,
2009, p. 105-106).

A corrosão da categoria “política” delineia-se ainda através das superlativas individua-


lidades, na superficialidade da informação em um cenário dominado por fake news (notícias
falsas) e pela violência contra o jornalismo, tradicionalmente encarado com viés civilizatório.
Peter Sloterdijk associa a sociedade de massa à constituição de novas bases, distantes da pers-
pectiva humanista.
A invenção de um espaço contextual diferente da esfera literária para a atividade jor-
nalística (os meios de comunicação) é vazada em um meio tempo de guerras, “em 1918 (radio-
difusão) e depois de 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da Internet” (SLOTER-
DIJK, 2000, p. 14).
Curiosamente, uma rede construída com finalidades militares foi responsável pela
transformação no jornalismo. A Internet e a própria informatização cunham modelos econômi-
cos, sociais e políticos, e, apesar de não mudar a essência relacional, parecem forjar de fato um
mundo novo, cuja arena pública se traduz nos media.
Admite-se que a Constituição já desenha um quadro com regras e princípios claros,
tendentes a realizar o princípio democrático através da comunicação social (dispositivos do
artigo 5º c/c artigos 220-224).
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Registra-se que o direito à comunicação é classificado por diversos doutrinadores


como um direito de quarta (ou quinta) geração, de titularidade difusa e aplicabilidade imediata,
devido à sua “fundamentalidade”, conceito tratado mais adiante. A concretização democrática
dependeria desses direitos, fornecendo um elo importante para a ampliação do círculo de com-
preensão do direito à comunicação social (BONAVIDES, 2001, p. 13; 2006, p. 571).
No âmbito de tal “comunicação”, poderíamos encontrar o direito constitucional à in-
formação, expresso nos âmbitos do jornalismo, do entretenimento e da publicidade, com con-
figurações diversas. O direito à informação desdobra-se em direitos de informar, informar-se e

85
ser informado (FARIAS, 2004, p. 85).
Funda-se no direito fundamental à informação, com objeto na informação jornalís-
tica, para indagar, aqui, sobre o direito de informar e as liberdades políticas. Como premissa,
ressalta-se o caráter público dos meios de comunicação social, por estarem situados na esfera
pública, voltados à divulgação, e acessíveis a um incontável número de pessoas, dada a sua base
tecnológica de reprodutibilidade.
A Constituição Federal de 1988 valorizou, em várias passagens, a informação como
bem público, em contextos gerais e específicos (cf. Constituição Federal, artigo 5º, XIV, LX,
LXIII, LXXII, artigo 93, IX, artigo 220, artigo 221). A categoria informação, embora de uso
corrente, tem um sentido multifacetado e fugidio. Sua supervalorização está relacionada à ideia
do conhecimento.
Diferencia-se, entretanto, a informação da comunicação e do próprio conhecimento.
A informação envolve inserção de elementos novos em um conjunto dado, sendo transmitida
em um movimento comunicativo. Tampouco se confunde com conhecimento, assemelhando-se
mais ao conteúdo que é transmitido, posteriormente acomodando-se na aprendizagem.

Chamamos informação o acontecimento que emerge sobre o fundo estável de um


horizonte de expectativas ou de configurações mais ou menos previsíveis. E os códigos
(‘os interpretantes’ de Peirce) que estruturam nossa percepção, nossa língua, nossos
jogos ou nossa cultura, em geral, constituem outros tantos filtros para fechar esse
horizonte e tornar os fenômenos decidíveis, ou as jogadas apreensíveis (BOUGNOUX,
1999, p. 138-139).

O direito à informação jornalística, em seus variados aspectos, pertence, em princípio,


a todos. Possui, entretanto, gradações diferentes em relação à titularidade qualitativa. Depreen-
de-se do texto constitucional uma posição de vantagem destinada aos jornalistas. Tão expansiva
vantagem deve ser vista no contexto da função profissional jornalística e os interesses sociais
daí resultantes.

Artigo 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação,


sob qualquer forma, pretexto ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado
o disposto neste Constituição.
§ 1º. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o


disposto no artigo 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

Percebe-se que o âmbito do direito de informação jornalística foi amplamente esten-


dido, devendo-se sopesar com parcimônia os seus limites, que, por certo, existirão. Amplitu-
de não se confunde com absolutismo, tendo-se em vista existir uma reserva legal qualificada
(MENDES, 1994, p. 298) ao final do primeiro parágrafo, onde se aponta a existência de outros
direitos como linhas demarcatórias concretas ao direito de informação jornalística.
O direito de se informar corresponde, então, no âmbito público, ao acesso às fontes de

86
informação, opinião e debate, o que inclui a discussão sobre direitos autorais, fluxos informati-
vos transnacionais e a inclusão digital, bem como acesso a dados públicos e/ou estatais (Cf. Lei
Nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso à Informação). Os veículos de comuni-
cação têm uma posição destacada, por serem os agentes principais no tratamento e difusão da
informação.
Isso porque, embora, em tese, as informações de interesse público estejam disponíveis
nas fontes previsíveis, nem sempre o acesso é facilitado aos indivíduos enquanto particulares.
Interpõe-se a mídia como mandatária do cidadão na busca desses informes e dados. O direito
de se informar encontra baliza de sopesamento em outros direitos fundamentais.
O direito de ser informado coloca-se na base desse mandato, reportando-se à garantia
de uma informação veraz, diligente e plural. Os conceitos amplos ligam-se ao princípio demo-
crático, insistindo na substância política do direito à comunicação, que tem como desdobramen-
to o direito à informação.
Os jornalistas são alguns dos mandatários da obrigação reflexa ao direito difuso de
ser informado. Têm, pois, os periodistas, verdadeiro dever de informar. Segundo o relatório
MacBride (Informe da Comissão Internacional para os Estudos dos Problemas da Comunicação
da UNESCO):

“Los periodistas reclaman el derecho a buscar información sin obstáculos y a


transmitirla con seguridad y rapidez; los directores y comentaristas reclaman el derecho
a expresar sus opiniones libremente. El derecho a estar informado y a escuchar diversas
opiniones pertenece en principio a cada ciudadano pero en la práctica depende de
la libertad de los periodistas. Por supuesto, es cierto que todos debieran disfrutar el
derecho a buscar y difundir información y a expresar opiniones, pero en virtud de
que son vulnerables a las restricciones impuestas por las autoridades, los periodistas
se encuentran a menudo, les guste o no, en la primera línea de defensa de la libertad”
(MacBRIDE, 1993, p. 193).

E, por fim, existe o direito de informar, transmitir dados, informes, de diversas nature-
zas (científica, artística, jornalística, técnica). No caso específico dos jornalistas, a dimensão do
direito de informar responde à necessidade de satisfazer a uma obrigação ou dever de informar.
Pode-se arguir a excessiva funcionalização do direito de informar do jornalista e da responsa-
bilidade das empresas de comunicação social, o que poderia transformar a faculdade em um
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

dever-direito complexo e altamente restritivo (PEREIRA, 2002, p. 38).


Malgrado o julgamento crítico quanto à função, existem restrições e responsabilidades
necessárias para evitar um abuso de direito que resvale a extensão do mandato outorgado so-
cialmente àqueles agentes, ainda mais quando se usufrui um largo espectro libertário.
Os agentes responsáveis pela informação são os jornalistas, que têm liberdade profis-
sional garantida constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 5º, XIII) e regulamentação
profissional infraconstitucional (Consolidação das Leis do Trabalho, artigo 302-315). Segundo
a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-Lei 5.452/1943):

87
“Artigo 302. § 1º. Entende-se como jornalista o trabalhador intelectual cuja função
se estende desde a busca de informações até a redação de notícias e artigos e a
organização, orientação e direção desse trabalho.”

Aceita-se que a legislação pode atuar no fortalecimento da classe e da sua função,


mas a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, constante do Decreto-Lei 972/1969
(dispunha sobre o exercício da profissão de jornalista) não mais persiste (conforme relatado, o
citado Decreto foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal). Assim, hoje os
cidadãos ou jornalistas empíricos podem exercer o ofício, resguardados as situações em que um
concurso público ou empresa venha a requerer a qualificação.
São paradigmáticas, no caso da liberdade de expressão, em sede do STF, as decisões
de abolir a obrigatoriedade do diploma de jornalismo (Recurso Extraordinário RE 511961), a
declaração de inconstitucionalidade da Lei de Imprensa (ADPF 130-7) e o caso Ellwanger (HC
82424). Segundo Lafer, no tocante ao pedido de Habeas Corpus (HC 82424) de Sigfried Ell-
wanger:

Para a discussão jurídica dessa problemática, o Supremo Tribunal Federal deu


inestimável contribuição ao decidir o caso Ellwanger. Como se lê no acórdão recém-
publicado, o STF confirmou, em setembro de 2003, por 8 votos a 3, a condenação,
pelo crime da prática de racismo, de Siegfried Ellwanger. Este vinha, no correr dos
anos, dedicando-se de maneira sistemática e deliberada a publicar livros notoriamente
anti-semitas, como os “Protocolos dos Sábios de Sião”, e a denegar o fato histórico
do Holocausto, como autor do livro “Holocausto - judeu ou alemão? Nos bastidores
da mentira do século”. O caso Ellwanger é um marco na jurisprudência dos direitos
humanos, cuja prevalência na Constituição de 1988 é uma das notas identificadoras
do Estado democrático de Direito (LAFER, 2004, s/p).

No caso do diploma, em controle difuso de constitucionalidade, por maioria, o Ple-


nário do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inconstitucionalidade da exigência do
diploma de jornalismo e registro profissional no Ministério do Trabalho como condição para o
exercício da profissão de jornalista,

O entendimento foi de que o artigo 4º, inciso V, do Decreto-Lei 972/1969, baixado


durante o regime militar, não foi recepcionado pela Constituição Federal (CF) de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1988 e que as exigências nele contidas ferem a liberdade de imprensa e contrariam


o direito à livre manifestação do pensamento inscrita no artigo 13 da Convenção
Americana dos Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de San Jose da
Costa Rica. A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE)
511961, em que se discutiu a constitucionalidade da exigência do diploma de jornalismo
e a obrigatoriedade de registro profissional para exercer a profissão de jornalista. A
maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, acompanhou o voto do presidente da Corte
e relator do RE, ministro Gilmar Mendes, que votou pela inconstitucionalidade do
dispositivo do DL 972 (STF, 2009, s/p).

88
A decisão tem tendo como precedente a Opinião Consultiva OC-5/85 (13/11/1985, so-
bre a filiação obrigatória de jornalistas) da Corte Interamericana de Direitos Humanos (consti-
tuída no âmbito da Organização dos Estados Americanos). A mudança de estatuto do jornalis-
mo e do próprio jornalista ocorre em meio às diversas dicotomias e a mais uma metamorfose do
capitalismo. Longe do fim da história, o atual fluxo de instabilidade desafia qualquer profecia.
A questão sobre a identidade dos jornalistas aparece como problemática quando, por
exemplo, nos Estados Unidos, além das prisões de jornalistas por proteção de fontes, descobriu-
-se que o governo americano investigava ilegalmente diversos veículos de comunicação e jor-
nalistas. O fato motivou a edição do ato normativo de Livre Fluxo de Informação pelo Senado
americano, definindo quem é jornalista. Um ato legal que define artificialmente um filtro para a
profissão, cujo objetivo é a vigilância desses profissionais, o que nos leva a outra questão.
Tal circunstância salienta o problema da segurança dos jornalistas e das condições
materiais de seu trabalho. Um relatório do Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas enfatizou a necessidade de os Estados reforçarem mecanismos de proteção dos
jornalistas no exercício da profissão. Nos termos do Relatório 33/L.6, de 26 de setembro de 2016:

“Consciente de que el derecho a la libertad de opinión y expresión es un derecho humano


garantizado para todos, en virtud de los artículos 19 de la Declaración Universal de
Derechos Humanos y del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y de que
constituye uno de los pilares fundamentales de una sociedad democrática y una de las
condiciones básicas para su progreso y desarrollo, Reconociendo que la labor de los
periodistas los expone frecuentemente a peligros específicos de intimidación, acoso
y violencia, cuya existencia suele disuadirlos de proseguirla o alienta la autocensura
y, en consecuencia, priva a la sociedad de información importante, Profundamente
preocupado por los abusos y las violaciones de los derechos humanos cometidos
en relación con la seguridad de los periodistas y trabajadores de los medios de
comunicación, que incluyen muertes, tortura, desaparición forzada, arresto y detención
arbitrarios, expulsión, intimidación, acoso, amenazas y actos de violencia de outra
índole” (ONU, CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 3).

Porém, com o advento do jornalista cidadão e do jornalismo mobile, qualquer pessoa


filmando uma situação com seu smartphone pode se intitular jornalista. Em casos de conflito
armado, em que o jornalista e o civil são equiparados, tendo a mesma proteção, isso não é pro-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

blemático.
Mas quando se trata de intervenção estatal, por exemplo, torna-se mais complexo não
ter filtro de identidade profissional. O Relatório salienta fortemente a necessidade de adoção de
medidas para proteção dos jornalistas e do exercício da profissão:

“Teniendo presente que la impunidad por atentados y actos de violencia contra


periodistas constituye uno de los principales obstáculos para la seguridad de los
periodistas y que la rendición de cuentas por los crímenes cometidos contra ellos es
un elemento clave en la prevención de atentados en el futuro,
1. Condena inequívocamente todos los atentados y actos de violencia contra periodistas

89
y trabajadores de los medios de comunicación, como la tortura, los asesinatos,
las desapariciones forzadas, el arresto y la detención arbitrarios, la intimidación,
las amenazas y el acoso, incluidos los atentados contra sus oficinas y medios de
información o el cierre forzados de estos tanto en situaciones de conflicto como en
otras situaciones;
2. Condena también inequívocamente los atentados específicos contra las periodistas
en el ejercicio de su labor, que incluyen la discriminación y violencia por razones de
sexo y género, la intimidación y el acoso en Internet o en otros medios;
3. Condena enérgicamente la impunidad reinante por atentados y actos de violencia
contra periodistas y observa con gran preocupación que la inmensa mayoría de esos
delitos quedan impunes, lo que a su vez contribuye a que se repitan;
4. Insta a los Estados a que hagan cuanto esté a su alcance por prevenir la violencia,
las amenazas y los atentados contra periodistas y trabajadores de los medios
de comunicación, por lograr que se rindan cuentas, mediante la realización de
investigaciones imparciales, prontas, minuciosas, independientes y eficaces de todas las
denuncias de actos de violencia, amenazas o atentados contra periodistas y trabajadores
de los medios de comunicación que competan a su jurisdicción, por llevar a los autores
de esos crímenes ante la justicia, incluidos quienes ordenen cometerlos o conspiren
para ello, sean cómplices em ellos o los encubran y por cerciorarse de que las víctimas
y sus familias tengan acceso a vías de reparación apropiadas;
5. Exhorta a los Estados a que creen y mantengan, en la ley y la práctica, um entorno
seguro y propicio en que los periodistas ejerzan su labor de manera independiente y
sin injerencia indebida por medios, tales como: a) la adopción de medidas legislativas;
b) la prestación de apoyo a la judicatura para que considere la posibilidad de realizar
atividades de capacitación y toma de conciencia y la prestación de apoyo para la
capacitación y toma de conciencia entre los agentes del orden y el personal militar,
así como entre los periodistas y la sociedad civil, acerca de las obligaciones y los
compromisos que imponen el derecho internacional de los derechos humanos y el
derecho internacional humanitario em relación con la seguridad de los periodistas;
c) la vigilancia y denuncia periódicas de los ataques contra periodistas; d) la condena
pública, inequívoca y sistemática de la violencia, y e) la asignación de los recursos
necesarios para investigar esos actos y someter a juicio a sus autores índole” (ONU,
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 4).

Mas o posicionamento do Conselho de Direitos Humanos da ONU tem a qualidade de


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

se colocar a favor das liberdades e de cobrar dos Estados atuação mais específica, não obstante
as dificuldades de se especificar o profissional jornalista, em algumas circunstâncias práticas.

3 LIBERDADE INTERNA DO JORNALISTA COMO DIREITO FUNDAMENTAL

Falar em liberdade como direito fundamental soa à obviedade, uma vez que isso é
enunciado formalmente na Constituição Federal, em seu artigo 5º, caput. Ademais, diversos in-
cisos minuciam a liberdade, começando pela expressão: “é livre...”, significando-se o espaço da
autonomia, faculdade ou permissividade outorgada pelo ordenamento. A autonomia é o espaço

90
da decisão, das escolhas, do legítimo poder de agir desembaraçadamente.
De maneira que, no próprio direito à informação, vela-se por uma proteção das liber-
dades, mormente a liberdade de situar-se no mundo como sujeito, posição que requer o máximo
de esclarecimento e pluralismo. A informação é um fim para o agir no mundo fático, possibili-
tando o esforço de aprendizagem e conhecimento, procedimentalmente falando.
O sistema democrático reflete a importância das posições individuais e coletivas de-
cisórias, pois, seja na democracia representativa, seja na democracia participativa, as vontades
são sublevadas à base da supremacia política, através do voto.

O direito à informação, que compreende de modo amplo o direito a ser informado e a


ter acesso às informações necessárias ou desejadas para a formação do conhecimento,
constitui por certo, juntamente com o direito à vida, a mais fundamental das
prerrogativas humanas, na medida em que o saber determina o entendimento e as
opções da consciência, o que distingue os seres inteligentes de todas as demais espécies
que exercitam o dom da vida. Trata-se, também, do pré-requisito mais essencial ao
regime democrático (CASTRO, 2003, p. 437).

A informação coloca-se como categoria requisitada para a concretude da cidadania,


sendo sua extensão ampla e intrincada. O próprio Estado enuncia e garante a liberdade de co-
municação social como pressuposto democrático, o que se coloca como questão política emba-
sadora das pretensões às liberdades dos jornalistas.
A liberdade interna do jornalista inicia, por certo, com sua independente adesão à pro-
fissão. A liberdade profissional é direito fundamental, formalmente posto (Constituição Federal,
artigo 5º, inciso XIII) entre os direitos sociais e econômicos, abarcando, inclusive a proteção da
relação de emprego.
Verifica-se que a ação jornalística, efetuada nos meios de comunicação, estruturados
empresarialmente ou como organizações mais flexíveis. Essas organizações têm um tratamento
próprio, sendo qualificadas legalmente para determinados fins. A liberdade de comunicação é
também a liberdade de imprensa levada a efeito nas empresas.
A inovação tecnológica permite a atuação de jornalistas, que fazem às vezes de repórter,
fotógrafo, editor, em empresas virtuais, ou em formatos tecnológicos peculiares, no fenômeno da
convergência das mídias interativas, como é o caso dos blogs e do jornalismo em redes sociais
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

como Facebook, Twitter e Instagran. No estudo em desenvolvimento, o recorte incide sobre a


atuação nas empresas, visto o enquadramento normativo. Assim, três formas de liberdades são
tidas por insertas na demarcação de liberdade de comunicação: 1) liberdade de comércio e de
indústria, 2) liberdade de associação, 3) liberdade profissional (LEÃO, 1961, p. 35).
Na organização produtiva, própria do espaço econômico, compete à empresa um papel
de direção dos trabalhadores. Aqui, outro ponto, no tocante à vinculação de particulares à efi-
cácia dos direitos fundamentais. O que dizer da vinculação dos sujeitos privados a tal eficácia?
As relações no âmbito das empresas - especialmente se envolvem contrato e trabalho, podem
ser denominadas privadas.

91
Tal eficácia é tema de preocupação doutrinária e dogmática. Nas constituições eu-
ropeias, em especial a portuguesa (“Constituição portuguesa, artigo 18.º (Força jurídica). 1.
Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente
aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”), a relação entre os entes privados aos
direitos fundamentais vem explicitada.
No Brasil, não existe norma expressa na constituição tratando da vinculação entre ór-
gãos privados aos direitos fundamentais, o que não implica não poderem ser estes aplicados nas
relações entre eles. Pensamos que os entes privados se encontram vinculados aos direitos fun-
damentais, como quaisquer entes públicos. Ao exemplificar esses direitos, lembramos o direito
à indenização por dano moral e material decorrente de abuso de direito de livre manifestação
(art. 5º, XII e V, da CF).
Mas, para efeito de caracterizar o ‘ius narrandi’, ou direito de noticiar, usaremos o
critério funcional legal, mormente nos serviços que, pelo avanço da técnica foram ‘alocados’
na reserva de atuação jornalística. Explica-se a seleção da liberdade interna do jornalista nestas
atribuições (investigação, redação e divulgação), por centrarem a atuação no formato noticioso,
de cunho informativo, mesmo que possa incluir opinião ou crítica. A notícia (matéria ou crôni-
ca, PEREIRA, 2002, p. 90), é o modelo informativo jornalístico, do qual podem derivar outros
formatos, mas com as balizas mínimas exigidas àquela.
Importado do ‘american way’ de fazer jornalismo, a notícia segue um método procedi-
mental (PENA, 2005, p. 42-43). Esse processo é constrangido por diversas pressões e interesses,
tanto de cunho editorial (envolvendo as decisões sobre critérios de noticiabilidade), quanto de
natureza comercial, envolvendo os patrocínios, adesões políticas, subvenções estatais e guerra
de influência.
“Três coerções principais ameaçam a informação: o dinheiro, a urgência, as pessoas”
(BOUGNOUX, 1999, p. 146). Espera-se o valor verdade presente na informação; mas a rotina
de elaboração da notícia, dentro das arenas empresariais da comunicação social, ameaça cons-
tantemente esse direito.

Os profissionais jornalistas consideram a atividade jornalística como uma profissão


liberal. Em sua grande maioria, são empregados assalariados. Trabalham para alguma
organização, exercem funções, seu trabalho se insere num processo de fabricação,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

e estão submetidos a uma hierarquia de autoridade. (...) Esta tensão [de equilibrar os
valores jornalísticos com a sobrevivência comercial] manifesta a dificuldade de conciliar
o interesse público, ideia baseada na função da informação dentro das sociedades
democráticas, e os interesses do público, noção relacionada à comercialização das
notícias (CORNU, 1998, p. 84).

Neste cenário, o jornalismo passa por uma descaracterização, ao adaptar sua roupagem
à da publicidade, tornando os limites fluídos e indiscerníveis, com acentuada presença do info-
tenimento ou fait divers, englobando o jornalismo de celebridades, por exemplo. O profissional

92
jornalista é cerceado, visto que seu trabalho obedece a condições de fabricação que retiram, em
muitas das ocasiões, seu poder sobre o produto do próprio trabalho.
A liberdade interna é proporção ou medida interna da liberdade de informar, esta
ínsita no direito à informação. Não se pode perder de vista a multidimensionalidade do direito
fundamental enumerado para efeito de análise do objeto, e, ao mesmo tempo, a especificidade
objetiva da incensurabilidade de cunho constitucional.
Liberdade interna compreensível como direito fundamental implícito, anexado ao di-
reito de informar do jornalista. A liberdade novamente aparece aqui como aquele espaço clás-
sico de um direito que se opõe a outros, exigindo uma abstenção de interferência indevida.
Sobrepondo a noção ao caso concreto, tem-se um âmbito de autonomia do jornalista sobre o
próprio trabalho, não estando condicionado a atividades que vão de encontro à sua consciência
e aos parâmetros deontológicos da profissão.
No mesmo plano, impõe-se aos detentores das empresas e aos responsáveis pela ad-
ministração editorial um abster-se de ingerências no trabalho jornalístico. Essa negativação de
comportamento não retira o poder de mando sobre as rotinas, mas sobre padrões de manipula-
ção, distorção e omissão de informação coativamente sobre a notícia, construção jornalística.
Pode-se dizer, sucintamente, serem inerentes ao direito à proteção contra perseguição,
despedida arbitrária, intervenção na notícia de forma a modificar seu fundamento de verdade e
seu significado, o que implica no respeito ao produto ‘notícia jornalística’ e à cláusula de cons-
ciência do jornalista.
A cláusula de consciência, inserta no Código de Ética do Jornalista, refere-se à impos-
sibilidade de o profissional atuar contra suas convicções morais e profissionais, no exercício do
jornalismo. A moralidade aqui tratada deve ser entendida como a moralidade ética de cunho
profissional, ou seja, própria do ‘ethos’ jornalístico.
Porém, voltemos aos fatos. “Je suis Charlie” é o slogan pós-moderno correspondente
às palavras de ordem da Revolução Francesa: “liberte, égalité, fraternité”. O ataque matou 12
pessoas e motivou a edição extraordinária de número 88 do Boletim Eletrônico da Federação
Nacional dos Jornalistas Brasileiros (FENAJ), que condenou e lamentou o ocorrido.
Na verdade, inúmeras autoridades estatais e representantes de organizações defensoras
dos direitos humanos emitiram declarações, já que o ato provocou uma comoção generalizada
e representou outros mártires menos ilustres, como o repórter Sean Hoare. Suspeita-se que sua
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

morte tenha ligação com sua profissão, embora a hipótese tenha sido descartada pela polícia.
Sem falar dos jornalistas mortos pelo Estado Islâmico.
Mas o que tem sido chamado de “11 de setembro da imprensa” apenas demonstra de
maneira brutal a violência contra o jornalismo e os jornalistas, em suas várias formas de expres-
são. E diferentemente de outras profissões de risco, como policiais, agentes de saúde, pilotos,
políticos, a estes profissionais da liberdade não é outorgada prerrogativa alguma, exceto a da
fantasia glamorosa do destemor e audácia.
Interessante perceber que a faceta à paisana de alguns heróis das histórias em quadri-

93
nhos (HQ’s) seja a de jornalista: Super-Homem é o repórter Clark Kent; o Homem Aranha é o
fotógrafo Peter Parker. Um arquétipo do homem normal que incorpora o “Complexo de Clark
Kent” e todas as desvantagens do herói...

4 A PROTEÇÃO DOS JORNALISTAS EM UMA SOCIEDADE DE RISCOS

Como temos defendido, a profissão de jornalismo implica algumas premissas, como


a ligação do jornalista com a democracia. Claro que o jornalismo depende de liberdade e de
outras condições, reportando-se a um público virtual – a sociedade civil. Estabelece-se, então,
a comparação do jornalista com o homem público, político, mandatário da confiança popular e,
até certo ponto, representante dessa opinião pública.
Outra premissa está no constitucionalismo mundial dos direitos humanos. É dizer:
além das constituições nacionais, também pactos e declarações internacionais preveem a liber-
dade de expressão, de comunicação e de opinião. No tecido dessas liberdades, estaria a liberda-
de de informação jornalística (Opinião Consultiva OC-5/85, Corte Interamericana de Direitos
Humanos). Sem prejuízo da Constituição e das declarações no sistema da ONU e da OEA,
ainda temos os acordos como a Declaración de Chapultepec:

“1. No hay personas ni sociedades libres sin libertad de expresión y de prensa. El


ejercicio de ésta no es una concesión de las autoridades; es un derecho inalienable
del pueblo.
2. Toda persona tiene el derecho a buscar y recibir información, expresar opiniones y
divulgarlas libremente. Nadie puede restringir o negar estos derechos
Las autoridades deben estar legalmente obligadas a poner a disposición de los
ciudadanos, en forma oportuna y equitativa, la información generada por el sector
público. No podrá obligarse a ningún periodista a revelar sus fuentes de información.
3. El asesinato, el terrorismo, el secuestro, las presiones, la intimidación, la prisión
injusta de los periodistas, la destrucción material de los medios de comunicación, la
violencia de cualquier tipo y la impunidad de los agresores, coartan severamente la
libertad de expresión y de prensa. Estos actos deben ser investigados con prontitud y
sancionados con severidad.
4. La censura previa, las restricciones a la circulación de los medios o a la divulgación
de sus mensajes, la imposición arbitraria de información, la creación de obstáculos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

al libre flujo informativo y las limitaciones al libre ejercicio y movilización de los


periodistas, se oponen directamente a la libertad de prensa.
5. Los médios de comunicación y los periodistas no deben ser objeto de discriminaciones
o favores en razón de lo que escriban o digan.” (DECLARACIÓN DE CHAPULTEPEC,
adoptada por la Conferencia Hemisférica sobre la Libertad de Expresión Celebrada
en Méxicom D.F. el 11 de marzo de 1994).

Intrigante é observar que inexistem garantias ao agente profissional do jornalismo – o


jornalista. Apenas debate-se do ponto de vista estrutural externo, não se pensando a responsa-
bilidade do próprio jornalista, posto na condição de “demagogo”, espécie de classe de “párias”,

94
sem classificação social precisa (Weber). Mesmo essa responsabilidade terá que ser compreen-
dida estruturalmente, sim, mas a partir das possibilidades reais.
Então, quais as possibilidades reais de um compromisso ético dos jornalistas, sem a
participação do Estado? As experiências com os Meios para Assegurar a Responsabilidade So-
cial dos Media mostram a impotência da autorregulação da mídia sem a participação do Estado
(CAMPONEZ, 2014). Os mecanismos deontológicos frustram-se, perante a lógica mercadoló-
gica, expondo a tensão entre a filosofia do serviço público e a teoria liberal clássica da imprensa
(ESTEVES, 2003, passim).
Segundo a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), a situação da liberdade de
imprensa no continente americano segue enfrentando ameaças que vão desde a violência con-
tra jornalistas até o uso de mecanismos legais, a aprovação de leis que restringem a prática da
profissão e os ataques cibernéticos. Tal conclusão foi elaborada pelos 450 diretores de meios de
comunicação e jornalistas que se encontraram na 72º Assembleia Geral da Sociedade Interame-
ricana de Imprensa (SIP), realizada na Cidade do México do dia 13 ao 17 de outubro de 2016.

O México ocupa o oitavo lugar no Índice de Impunidade do CPJ de 2015, que lista os
países onde os responsáveis por crimes contra jornalistas ficam impunes. (...) Mas o
México não é o único país da região com números altos de violência contra jornalistas
e de impunidade. Colômbia, por exemplo, registra desde o ano 2000 mais de 100 casos
sem solução de jornalistas assassinados. Enquanto isso, o Brasil é um dos países
com maior número de agressões contra jornalistas na cobertura de manifestações
públicas. Os assassinatos, no entanto, são “a ponta do iceberg”, de acordo com a SIP.
A organização afirma que as mortes ocorrem quando os jornalistas já foram vítimas de
intimidações, agressões e assédios. Na Bolívia, Colômbia, Equador, Honduras, México,
Nicarágua, Paraguai, Panamá e Venezuela, jornalistas e editores têm sido vítimas
de ameaças e intimidações por parte de traficantes de drogas, grupos criminosos,
autoridades locais, nacionais e militares. (HIGUERA, 2016, s/p).

Assim, diante das responsabilidades políticas do jornalista, enquanto titulares de um


direito/ dever de informar, quais são as suas garantias? Onde se alicerça sua liberdade interna
de seguir os preceitos éticos da profissão? Qual o elemento de identificação profissional, e quais
as suas prerrogativas? Em que consiste o direito de proteção da fonte? Qual a proteção do jor-
nalista contra o assédio moral?
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Enfim, se a atividade de mediação jornalística persiste, em nossos dias, e se atende a


um direito humano/fundamental de informação factual, diária, de orientação social; se o jor-
nalista é um agente político, que executa uma função pública importante, que direitos lhe são
assegurados para cumprir o encargo, mandato, responsabilidade?
Sem trocadilhos infames com as terríveis perdas humanas, “a vida do jornalista, en-
tretanto, está entregue, sob todos os pontos de vista, ao puro azar e em condições que o põem
à prova de maneira quem não encontra paralelo em nenhuma outra profissão” (WEBER, p. 83).
De fato, nous sommes Charlie...

95
Assim, em um momento em que a democracia aparece tensionada ao máximo, sendo
as regras do jogo duramente provadas; o jornalismo, seu irmão gemelar, também é açodado sob
todos os pontos de vista de uma “sociedade de riscos”, colocando-se como uma questão basilar
para se repensar o Estado e as liberdades políticas.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_________________. Teoria constitucional da democracia participativa. São Paulo:


Malheiros, 2001.

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CAMPONEZ, Carlos. Entre verdade e respeito – por uma ética do cuidado no jornalismo.
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Comunicação e Sociedade (CECS), Universidade do Minho.

CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de. Liberdade informação e o direito difuso à


informação verdadeira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

CORNU, Daniel. Ética da informação. Bauru, SP: Edusc, 1998.

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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo julga Lei de Imprensa incompatível


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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Supremo decide que é inconstitucional a exigência


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portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=109717, acesso em: 27/09/2016.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1999.

ZIZEK, Slavoj. Did somebody say totalitarianism? Five interpretations in the (mis)use of
a notion. Londres e Nova York: Verso, 2001.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

JOURNALISTIC FREEDOM IN THE POST-POLITICAL TIME: A MATTER FOR


DOGMATICS?

ABSTRACT
The study is located in the discipline of constitutional theory, treating of
the journalists’ right freedom of information. This right is expressed in
the Federal Constitution, it deploying in the ‘right to be informed, right

97
to be informed and right to inform’. The journalist’s internal freedom in
his professional practice is questioned, based on the theory of implicit
fundamental rights and political freedoms, at a age of apparent corro-
sion of democracy and politics. Through a bibliographical research, it
concludes by the note of fundamentality in the right to internal freedom
of the journalist, which, incorporate to the external freedom, conforms
the right to inform; what does not ensures its effectiveness.
KEY-WORDS: Journalistic freedom. Fundamental rights. Constitu-
tion. Dogmatic.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

98
O EXERCÍCIO DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE PELO SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA: UMA BREVE ANÁLISE DO VOTO DO MIN. RIBEIRO
DANTAS

Thiago Oliveira Moreira1

Em 15 de dezembro de 2016, a 5ª Turma do STJ, ao julgar por decisão unânime o Re-


curso Especial (REsp.) nº 1.640.084-SP, adotou o entendimento do Min. Ribeiro Dantas (Rela-
tor), no sentido de que o crime de desacato é inconvencional.
O julgado em comento pode ser considerado de extrema relevância no que tange à
concretização do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) no âmbito da Jurisdição
brasileira. Apesar do entendimento não ser inédito, é inegável o avanço do STJ, através de sua
5ª Turma, em exercitar de modo explícito o controle de convencionalidade.
Diante do potencial impacto que a presente decisão pode causar, necessário se faz que
algumas considerações sobre a mesma, ainda que breves, possam ser feitas e colocadas em
debate acadêmico.
No que pertine aos fatos, conforme consta do relatório do acórdão, o Tribunal de Jus-
tiça de São Paulo (TJSP) condenou um indivíduo pela prática, dentre outros, do delito de desa-
cato, previsto no art. 331 do Código Penal.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

O recorrente alegou que a previsão normativa do crime de desacato no ordenamento jurídi-

1  Professor Adjunto do Departamento de Direito Privado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Mestre em Direito
pela UFRN e pela Universidade do País Basco (UPV/ES). Doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (FDUC/PT) e pela
Universidade do País Basco (UPV/ES). Membro do Conselho Nacional da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Pes-
quisador na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional.

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co brasileiro viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)2. Dessa forma,
o fato seria atípico e o crime não existiu. Para tanto, fundamentou sua pretensão no posicionamento
da Relatoria para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A Subprocuradoria-Geral da República, de forma bastante elogiável, emitiu parecer
favorável com relação ao argumento da incompatibilidade do delito de desacato para com o
art. 13 da CADH, fundamentando sua posição com base no entendimento da Comissão Intera-
mericana de Direitos Humanos (CIDH), na prevalência da CADH em caso de “colisão” com o
direito interno e no reconhecimento do status supralegal dos tratados internacionais de direitos
humanos. Com efeito, para o Ministério Público Federal, resta inviabilizada a condenação por
desacato em virtude da sua incompatibilidade com o art. 13 da CADH.
Adentrando especificamente no voto do Min. Ribeiro Dantas3, observa-se que foram
trazidos os argumentos do TJSP para negar provimento à apelação. Em síntese, alegou a Corte
paulista que a abolição de qualquer tipo penal somente poderia ocorrer por meio de lei; que
o delito de desacato não é incompatível com a CADH; e, por fim, que a previsão do desacato
insere-se na hipótese de responsabilidade ulterior, nos termos do item 2 do art. 13 da CADH.
Felizmente, o voto tratou de afastar os argumentos trazidos pelo TJSP. Lembrou o Min.
Ribeiro Dantas que os artigos iniciais da CADH preceituam acerca da obrigação de respeitar os
direitos e sobre o dever de adotar as disposições de direito interno, destacando que incumbe ao
Estado adotar medidas legislativas ou de outra natureza para solucionar eventuais antinomias
normativas, bem como para tornar efetivos os direitos e liberdades consagrados no Sistema In-
teramericano. Além disso, foram invocadas as normas de interpretação previstas no art. 294 da
mencionada convenção internacional.
Logo após trazer à baila os dispositivos da CADH, o que já elogiável por si só, o Re-
lator passou a lembrar de que o STJ e o Supremo Tribunal Federal já reconheceram o caráter
supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos, que a hipótese de conflito entre nor-
ma interna e a CADH acarreta na invalidação do direito estatal e não em sua revogação. Assim,

2  Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão. 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito
compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmen-
te ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela
lei e ser necessárias para assegurar: a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou b. a proteção da segurança nacional,
da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas. 3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais
como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de freqüências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos
usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção
moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2. 5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem
como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.
3  Em que pese outras questões terem sido debatidas, esse escrito limita-se a abordar o tema do controle de convencionalidade
4  Artigo 29. Normas de interpretação. Nenhuma disposição desta Convenção pode ser interpretada no sentido de: a. permitir a qualquer
dos Estados Partes, grupo ou pessoa, suprimir o gozo e exercício dos direitos e liberdades reconhecidos na Convenção ou limitá-los
em maior medida do que a nela prevista; b. limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos de
acordo com as leis de qualquer dos Estados Partes ou de acordo com outra convenção em que seja parte um dos referidos Estados; c.
excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo; e
d. excluir ou limitar o efeito que possam produzir a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e outros atos internacio-
nais da mesma Natureza.

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vê-se que o magistrado, partindo das ideias expostas pela própria doutrina brasileira5, admite a
sindicância de compatibilidade vertical entre a norma estatal e o DIDH.
Para além da referência à doutrina internacionalista, buscando fundamentar o dever
dos juízes nacionais de exercerem o controle difuso de convencionalidade, o Min. Ribeiro Dan-
tas colaciona o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), mani-
festado no Caso “Almonacid Arellano”. Trata-se do que a doutrina costuma chamar de Diálogo
Interjurisdicional6. Muito embora o diálogo dos tribunais brasileiros com a Corte IDH não seja
uma praxe (infelizmente), louva-se a iniciativa do voto ao buscar adimplir com as determina-
ções da jurisdição interamericana.
Preocupado com uma eventual alegação de incompetência da 5ª Turma do STJ para
declarar a invalidade da norma contida no art. 331 do CP, o Min. Ribeiro Dantas afirmou que
há nítida diferença entre os controles de constitucionalidade e convencionalidade, assim como
relembra que os tratados internacionais de direitos humanos possuem hierarquia supralegal,
em regra, no Brasil7. Dessa forma, com base no art. 105, III, ‘a’ da CF, cabe ao STJ julgar, em
recurso especial, as causas decididas em última instância pelos Tribunais dos Estados, quando
a decisão recorrida contrariar tratado.
De forma, ao meu sentir, equivocada, o Min. Ribeiro Dantas reconhece que apenas os
tratados internacionais de direitos humanos incorporados pelo rito específico do § 3º do art. 5º
da CF, conforme já decidido pelo (STF), são de hierarquia constitucional e, portanto, ser-
vem de parâmetro para controle de constitucionalidade, vez são equivalentes às Emendas Cons-
titucionais. Assim, não há que se falar em usurpação de competência do STF e da necessidade
de observância da cláusula da reserva de plenário. De toda forma, resta reconhecida a compe-
tência da 5ª Turma para o exercício do controle de convencionalidade, seja por determinação da
Corte IDH ou por interpretação da Constituição Federal.
Ao passar à análise dos dispositivos em confronto, art. 13 da CADH e art. 331 do CP,
o Relator destaca o posicionamento da CIDH, que atesta a prevalência do art. 13 da CADH,
notadamente através do Relatório sobre a Compatibilidade de Leis de Desacato e a Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (1995), bem como o Caso “Palamara Iribarne”, em que a
Corte IDH condenou o Chile, afirmando que a imputação do crime de desacato violou o direito
à liberdade de expressão. Além disso, robusteceu os seus argumentos ao referenciar a Declara-
ção de Princípios sobre Liberdade de Expressão8.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Talvez um dos poucos pontos polêmicos da decisão em análise seja o fato do voto
afirmar que “as recomendações da CIDH assumem força normativa interna”. O Min. Ribeiro

5  O Min. Ribeiro Dantas cita a seguinte obra: MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. v.
4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
6  Sobre o tema, vide: MOREIRA, Thiago Oliveira. O Necessário Diálogo Interjurisdicional entre a Jurisdição Brasileira e a Intera-
mericana. In. MENEZES, Wagner (Org.). Tribunais Internacionais e a Relação entre o Direito Internacional e o Direito Interno. Belo
Horizonte: Arraes Editores, 2016, p. 478 – 495.
7  Adotamos entendimento em sentido contrário, conforme disposto em: MOREIRA, Thiago Oliveira. A Aplicação dos Tratados Inter-
nacionais de Direitos Humanos pela Jurisdição Brasileira. Natal: EDUFRN, 2015.
8  Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/s.convencao.libertade.de.expressao.htm. Acesso em 17/02/2017.

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Dantas fundamenta a assertiva com base no Caso “Loayza Tamayo”, no princípio da boa-fé,
assegurado pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, e na doutrina de André de
Carvalho Ramos. Nesse ponto, há forte corrente em sentido contrário, cujos principais argu-
mentos são a ausência de fundamento na CADH e a inexistência de previsão na Constituição.
Muito embora o Min. Ribeiro Dantas ainda destaque outros argumentos para funda-
mentar a invalidade do delito de desacato, convém fazer elogios ao “Diálogo das Cortes”. Muito
embora não seja um precedente obrigatório para os tribunais brasileiros, o Relator cita a decisão
da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Lewis v. City of New Orleans (1974), em que foi
declarada a inconstitucionalidade do delito de desacato.
Já próximo das conclusões finais do voto, o Min. Ribeiro Dantas observa que o afasta-
mento da tipificação criminal do desacato não obstaculiza a eventual responsabilidade civil ou
mesmo o enquadramento em outros tipos penais, na hipótese de abuso de expressão ofensiva ao
funcionário público.
Em suma, a decisão em comento é um exemplo claro de exercício do controle de con-
vencionalidade por parte do STJ e de reconhecimento do dever de aplicação dos tratados inter-
nacionais de direitos humanos pelo Judiciário brasileiro.
A decisão da 5ª Turma do STJ já ressoa em outros órgãos jurisdicionais brasileiros. O
juiz Fernando de Castro Faria (TJSC) absolveu sumariamente um acusado pelo delito de desaca-
to9. Para tanto, fundamentou sua decisão10 nos mesmos argumentos já ventilados (atipicidade do
fato, superioridade normativa da CADH, inconvencionalidade), bem como fez referência expres-
sa a recente decisão do STJ, proferida no REsp. em comento, e a um precedente do próprio TJSC.
Não se pode deixar de mencionar que, aos idos de 2015, portanto, antes de fixado o
entendimento da 5ª Turma do STJ, o juiz Alexandre de Morais da Rosa prolatou sentença ab-
solvendo um indivíduo acusado de ter praticado o delito de desacato11. O principal fundamento
foi justamente a incompatibilidade entre o crime de desacato e a tutela a liberdade de expressão
conferida pelo art. 13 da CADH.
Espera-se que esses bons exemplos de concretização do DIDH sejam seguidos por
outros juízes e tribunais brasileiros, pois somente dessa, será possível falar em uma Jurisdição
aberta ao Direito Internacional, ou seja, numa Jurisdição Cooperativa12.
Na qualidade de professor da disciplina Direito Internacional dos Direitos Humanos13,
só me resta aplaudir o voto do Min. Ribeiro Dantas e torcer para que outros magistrados brasi-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

9  Disponível em: http://emporiododireito.com.br/juiz-de-santa-catarina-reconhece-a-incompatibilidade-do-crime-de-desacato-com-a-


-convencao-americana-de-direitos-humanos-e-absolve-acusado/. Acesso em 17/02/2017.
10  Disponível em: https://esaj.tjsc.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=2J0000CUE0000&processo.foro=91&uuidCaptcha=sajcapt-
cha_927b3836ff2d4fd9a53d9511fdd6a7d6. Acesso em 17/02/2017.
11  Disponível em: https://esaj.tjsc.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=0N000MCYC0000&processo.foro=23&uuidCa ptcha=sajcapt-
cha_ececaffff59c47c393394198feaa3884. Acesso em: 17.02.2017
12  Para compreender o conceito de Jurisdição Cooperativa, vide: MOREIRA, Thiago Oliveira. Implicações do Modelo Häberleano de
Estado Cooperativo na Jurisdição. In. FRIEDRICH, Tatyana Scheila; RAMINA, Larissa. Coleção Direito Internacional Multifaceta-
do: convergências e divergências entre ordens jurídicas. v. 5. Curitiba: Juruá, 2015, p. 275 – 298.
13  Atualmente, vinculada ao Departamento de Direito Privado da UFRN.

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leiros apliquem o disposto em tratados internacionais de direitos humanos, exercitem o controle
de convencionalidade e estabeleçam um diálogo interjurisdicional, seja com outros tribunais
domésticos e/ou com os órgãos de monitoramento e controle do Sistema Interamericano de
Direitos Humanos.
Por fim, são julgados como esse que me fazem ter esperança em uma futura intera-
mericanização da magistratura brasileira, afinal, todo juiz nacional é um juiz interamericano.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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PSICOPATIA E CÁRCERE: UM ELEMENTO FULCRAL DA CRISE PRISIONAL
BRASILEIRA

Lauro Ericksen1

RESUMO
O artigo tematiza a psicopatia como um dos elementos definidores da
atual crise do sistema de segurança público e do sistema carcerário bra-
sileiro. Objetiva apresentar que a mistura de presos comuns e presos
doentes mentais é uma das causas dessa crise. Em sua metodologia tem
como referencial teórico a teoria do inconsciente coletivo da psicologia
analítica de Carl Jung. Resulta que a luta antimanicomial e o pretenso
tratamento humanitário de presos psicopatas apenas agravou e dissemi-
nou a psicopatia de forma institucionalizada nos estabelecimentos de
detenção. Conclui que os ativismos antipsiquiátrico e antimanicomial
contribuem para o fracasso do sistema penal e agravam a crise da segu-
rança pública no Brasil.
Palavras-chave: Sistema carcerário; Psicopatia; Crise Institucional. FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

A atual crise no sistema de segurança pública e também no sistema carcerário bra-


sileiro é aberrante e colossal. Trata-se de um sistema conjunturalmente deficiente e falido, o
qual acaba por ocasionar danos indeléveis à sociedade. Dentro dessa problemática estrutura, o
presente artigo visa abordar um elemento específico dentro dessa crise, a mistura entre presos

1  Doutor, mestre e bacharel em Filosofia (UFRN), especialista em Direito e Processo do Trabalho (UCAM-RJ), bacharel em Direito
(UFRN). Oficial de Justiça Avaliador Federal do Tribunal Regional do Trabalho da 21ª Região. Possui livros e artigos publicados na área
do Direito e da Filosofia. lauroericksen@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/8447713849678899

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comuns e presos doentes mentais dentro dos presídios brasileiros e qual a extensão dos danos
causados por essa irresponsável conjunção entre dois tipos de apenados bastante distintos.
Há de se compreender, desde o início, que há uma multiplicidade patente de elemen-
tos e de causas que originam o problema da situação carcerária no Brasil, todavia, o artigo em
apresentação não tem o escopo, tampouco a robustez, de apresentar uma solução definitiva e
total sobre o tema. Por causa dessa impossibilidade material, ele se foca no quesito apresentado,
não se imiscuindo em questões logísticas ou econômicas que levaram ao atual contexto de crise
institucional.
Assim, há de se debater a questão proposta sob um viés teórico bem definido, qual
seja, o da disseminação da psicopatia criminosa a partir dos arquétipos do inconsciente coletivo
(no original: kollektivesUnbewusstes) da teoria da psicologia analítica de Carl G. Jung. A partir
desse referencial teórico, é possível se compreender como a reprodução inconsciente desses
arquétipos criminosos se espraia indefinidamente dentro e fora dos estabelecimentos prisionais,
sem controle algum, e até mesmo com o incentivo teórico do que se denominou chamar de luta
antimanicomial, que em breves linhas, é o ativismo político-ideológico-social que clama pelo
fechamento de instituições especializadas no tratamento de doentes mentais, sob o pretenso
argumento do tratamento humanitário e que não há nenhuma diferença substancial na estrutura
psiquiátrica desses apenados e do restante da população.
Dessa maneira, o artigo busca desenvolver o argumento de que a mistura entre os pre-
sos é algo triplamente danoso, para eles próprios, para os demais apenados do sistema judiciário
e para a população como um todo que sofre direta ou indiretamente os efeitos da naturalização
generalizada da psicopatia. A institucionalização da loucura e da insanidade levou, ainda que
parcialmente (não é a única causa, ressalte-se), à crise do sistema carcerário brasileiro, e de for-
ma mais abrangente, do problema da segurança pública. Outrossim, intentar-se-á desenvolver
o argumento exposto, sugerindo que parte da legislação que trata sobre o assunto é disforme,
lacônica e contraditória.

2 PSICOPATIAS E CRIMES: O CÁRCERE, O INCONSCIENTE COLETIVO E A


NORMALIDADE

O presente trabalho parte da premissa que criminosos que são considerados doentes
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mentais não podem repartir o mesmo local de cumprimento de pena que outros condenados que
não possuam essa condição mental. Esse argumento encontra lastro no entendimento que a luta
“antimanicomial”, disseminada perenemente no ordenamento jurídico por meio da lei n. 10.216
de 6 de abril de 2001 (usualmente conhecida como reforma psiquiátrica brasileira), acabou por
legalizar a mistura de presos comuns com presos desafiados mentalmente, o que seria uma das
causas da atual falência do sistema carcerário brasileiro.
Não se pode olvidar em reconhecer que no transcorrer histórico alguns excessos foram
cometidos com alguns grupos de pessoas injustamente segregadas do convívio social por meio

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de locais específicos para a sua estadia a margem da sociedade, como os leprosos das narrativas
bíblicas, até mais recentemente homossexuais e/ou ciganos (nos regimes Nacional-Socialista da
Alemanha, e Socialista da União Soviética, que no final das contas implementavam políticas,
nesse quesito, bastante similares). A questão posta como fundamental nessa exposição não é
a classificação de certos comportamentos ou condições hoje considerados normais (ou usuais)
como dignos de enquadramentos de doenças mentais, e sim a consideração de que apenados que
são também doentes mentais diagnosticados não podem se misturar ao restante da população
carcerária nacional, como se fosse possível lhes prover o mesmo tratamento, de forma indistinta.
Ao se agrupar no mesmo local ou estabelecimento de cumprimento de penas restritivas
de liberdade presos comuns (sãos mentalmente) e presos considerados doentes mentais o que
há é uma verdadeira disseminação incontrolada de uma condição mental específica que passa
a ser disposta como “normal” ou “aceitável” dentro da mesma instituição que busca dar uma
reeducação penal ao indivíduo. Mesmo que se parta do pressuposto de que as instituições penais
não devem ser apenas punitivas, mas em grande medida também reeducadoras e que consigam
reintegrar o apenado à sociedade, há de se ter em mente que há pessoas com a sua estrutura psi-
quiátrica tão fortemente abalada que não são passíveis de reintegração. Elas não são passíveis de
reeducação ou reintegração não por uma falha do Estado em prover tal recuperação, mas por uma
questão pessoal e individual que a impede do convívio social (ainda que parcial ou assistido).
Não admitir esse limite de possibilidade da atuação psiquiátrica do Estado perante os
apenados (com problemas mentais ou não) e diante da sociedade expor todos a um risco sem
o menor parâmetro de cálculo e que os atinge reciprocamente de um modo avassalador. Tratar
todos igualmente com o devido respeito, como preceitua o texto constitucional, não equivale
a trazer a insanidade ao nível da sanidade dentro dos alojamentos de cumprimento de penas
restritivas de liberdade, a privação da liberdade no caso dos doentes mentais tem uma tripla
função: prevenir que eles próprios ponham sua vida em risco; prevenir que eles atentem contra
a vida dos demais apenados que não possuem distúrbios mentais, e; prevenir que os doentes
mentais atentem contra a integridade dos membros da sociedade em geral (não apenados). Par-
tindo-se sempre do entendimento que os apenados comuns e os demais membros da sociedade
não se atentam reciprocamente caso o cumprimento da pena seja efetuado em locais adequada-
mente destinados a esse fim (reeducação e reintegração social).
Não se parte da noção primordial que os doentes mentais são totalmente irrecuperá-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

veis e jamais poderão vislumbrar um retorno ao convívio social, apenas deve-se entender que,
a princípio, seu grau de psicopatia2 exige uma internação compulsória carcerária diferenciada,

2  Psicopatia é um termo deveras abrangente tanto na literatura médico-psiquiátrica, quanto na literatura psicológica. Literária e filosofi-
camente já foi tratada como melancolia, loucura ou insanidade. A despeito dessa polissemia inerente ao termo, o presente artigo quer
dar destaque a um único sentido de psicopatia, a sua noção criminosa ou associativa à práticas delitivas. Assim, no decorrer do texto
quando se fizer referência à psicopatia, psicose ou insanidade, quer se abranger um conjunto de condutas delitivas associadas à condução
doentia desse tipo de apenado, não se juntando nessa miríade comportamental condições psiquiátricas também caracterizadas como
desafios mentais que não demandam, necessária e compulsoriamente, a restrição da liberdade individual da pessoa humana. Essa breve
explanação se faz necessária para prevenir que a pecha “higienista” ou “fascista” seja aposta indelevelmente ao texto antes mesmo de
uma análise mais aprofundada do que está sendo aqui debatido e proposto.

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para que a sua conduta delitiva psicótica (ou psicopata em sentido mais amplo) não se espraie
dentro da própria unidade prisional. O primeiro bem a ser protegido dentro do contexto apre-
sentado não é a condição individual do próprio apenado doente mental (afinal de contas a sua
liberdade ser restrita é um dos consectários lógicos do cumprimento da pena a qual ele foi con-
denado), e, sim a segurança coletiva de modo geral.
Ao se tangenciar a questão da psicopatia e da coletividade é necessário se deixar as-
sentado que o referencial teórico utilizado para tal assertiva é calcado na teoria do inconsciente
coletivo de Carl Jung (2000, p. 53). Para tanto, faz-se necessário trazer breves conceitos a res-
peito dessa noção psicológica que lastreia o argumento da separação entre esses dois tipos de
apenados (comuns e doentes mentais). Jung parte do pressuposto que o inconsciente individual
é diferente do coletivo. O inconsciente individual é composto de “complexos”, que são basi-
camente conteúdos mentais outrora conscientes, mas que adquiriram a condição de “incons-
cientes” a partir do avanço temporal, por meio de repressões ou esquecimento (involuntário).
Diferentemente, o inconsciente coletivo é formado por arquétipos, os quais jamais foram cons-
cientes, ainda que parcialmente, na formação da psique do indivíduo. Os arquétipos possuem
uma intrincada concepção a partir de “motivos” ou “temas” psicológicos, que remontam, em
termos de religião comparada, a “categorias da imaginação”, ou seja, são elementos caracteri-
zados como “pensamentos elementares” ou “primordiais” que povoam culturalmente o ideário
de alguma população ou parte dessa população.
Assim, mais importante que compreender detidamente quais são as origens ou os mo-
dos de formação desses “pensamentos” que compõem essa modalidade do inconsciente cole-
tivo, é mais importante entender como esses caracteres mentais podem ser apreendidos “here-
ditariamente”, como diria Jung, como uma potencialidade reprimida de uma classe ou grupo
social (ROCHA FILHO, 2007, p. 44). Em outras palavras, dentro do contexto a ser explanado
nesse breve artigo, psicopatia generalizada em uma instituição de cumprimento penais judiciais
finda por se alastrar indefinidamente, “contagiando” coletivamente o inconsciente de todos os
apenados que lá se encontram.
Certamente, existe uma miríade de tratamentos paliativos ou específicos que podem
ser utilizados nos casos dos apenados doentes mentais, no entanto, o escopo primordial no
tratamento dispensado deve se ater à contenção da psicopatia no menor raio de ação possível,
e, que ela não venha a ser tratada como uma condição institucional corriqueira ou contumaz,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

como há de se depreender que ela é encarada no atual sistema carcerário brasileiro, que costu-
ma misturar os dois tipos de presos de forma indistinta como se estivesse dando um tratamento
“humanitário” ou “igualitário” aos doentes mentais, desprezando a condição sã dos demais
apenados e não se incomodando com os potenciais danos futuros que esses apenados podem
causar do lado de fora, seja quando forem “reintegrados” à sociedade (ainda que não possuam
a mínima condição para tal, por meio de progressão de regimes – do fechado ao aberto) ou até
mesmo pela reprodução comportamental inconsciente nos dias de visita ou demais contatos
com o público externo.

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Travestido sob a falaciosa argumentação de conceder tratamento “humanitário” aos
apenados doentes mentais, o que a luta antimanicomial intenciona fazer é tratar desiguais igual-
mente, para se utilizar de uma breve parêmia aristotélica, e não tratar desiguais desigualmente
na medida de suas desigualdades, respeitando, assim, suas características mais pessoais, dentre
as quais é salutar a incapacidade do convívio social sem a prática delitiva costumeira em vir-
tude de sua condição psicótica. Agindo assim, sob o viés “do politicamente correto”, a rejeição
da “insanidade” do apenado em prol de sua igualdade perante os demais finda por disseminar
a psicopatia de um modo silencioso e subversivo, por meio dos arquétipos jungianos outrora
mencionados, rememorados como estruturas básicas e universais da psique, os padrões formais
de seus modos de relação (HILLMAN, 1992, p. 22). Mais perigoso do que um apenado doente
mental junto de outro de mesma condição psiquiátrica é quando ambos se encontram em um
ambiente a princípio dissociado dessa condição doentia e que passa a ter tal condição debilita-
dora disseminada institucionalmente.
Há de se ter em conta que o complexo sistema carcerário não encontra-se esfacelado
unicamente por causa da mistura entre apenados comuns e doentes mentais, essa não é a única
e exclusiva causa de sua falência, seja ela econômica ou moral. No entanto, essa condição de psi-
copatia institucionalizada em prol do tratamento “humanitário” é uma das causas substanciais
de sua derrocada. A repetição desse modelo carcerário após a década de 1980, e que perdura até
os dias atuais, é uma causa da formação de verdadeiros centros criminosos dentro dos presídios
brasileiros, podendo ser citados nesse leque desonroso o presídio de Pedrinhas, no Maranhão,
e mais recentemente, o de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte3, com dezenas de detentos mortos
pelos próprios detentos, como resultado da apontada psicopatia degenerada e tratada como uma
mera circunstância casual dos apenados lá recolhidos.
O último caso referido é tão aberrante e denota como a mistura entre os dois tipos de
presos é danosa ao próprio sistema carcerário que um dos apenados (líder de uma facção crimi-
nosa4, ressalte-se), após os massacres ocorridos durante as rebeliões, foi transferido do regime
fechado (onde se encontrava e onde “pode ter participado” de atos delitivos cruéis) para o cum-
primento de prisão domiciliar por 6 meses, por ser portador de “psicose epilética” (diagnóstico
no Código Internacional de Doenças no F06.8 como “Outros transtornos mentais especificados
devidos a uma lesão e disfunção cerebral e a uma doença física” ou “Psicose epiléptica SOE”).
Ou seja, a luta antimanicomial em seu delírio irrestrito conseguiu retirar do cárcere
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

3  A situação no Estado do Rio Grande do Norte exibe atualmente sinais críticos da crise da segurança pública e do sistema carcerário, no
entanto, o problema não foi gerado unicamente no presídio de Alcaçuz, o qual foi utilizado como exemplo, em virtude do massacre e
pelo vilipêndio horrendo ocorrido no ano de 2017. O problema no Estado se alastra desde os idos 80, quando a principal cadeia pública do
Estado, a Doutor João Chaves, era jocosamente apelidada de “Caldeirão do Diabo”, em virtude dos macabros ocorridos em seu interior.
Atualmente desativada, nos anos 90, com a trupe de “Paulo Queixada”, “Naldinho do Mereto” e “Demir“, a cadeia experienciou o auge
da psicopatia institucionalizada, com decapitações, esquartejamentos de presos, e “degustações” de sangue humano servidos em copos
americanos, entre os próprios detentos, todos eles diagnosticados com psicopatologias graves. Assim, percebe-se que desde esse tempo,
a mistura entre presos comuns e presos doentes mentais já era problemática e horrenda, algo que apenas veio a se repetir em Alcaçuz,
com mais episódios de esquartejamento, decapitações e até mesmo “churrasco de carne humana”. Canibalismo, rituais satânicos com
sangue humano e decapitações foram comportamentos reproduzidos no ideário coletivo e inconsciente como normais a partir da insti-
tucionalização da psicopatia nos mencionados estabelecimentos prisionais.
4  Vide:http://novojornal.jor.br/cotidiano/por-que-lider-do-pcc-ganhou-prisao-domiciliar-em-natal

108
comum (local inadequado para o cumprimento da pena, no caso dado), um preso que deveria
estar acomodado em um local específico para tratar do seu problema mental (doentes men-
tais eram mandados para “manicômios”, mas esse tipo de instituição está em desuso), sendo
preferível manda-lo para cumprimento de prisão domiciliar, expondo-o ao público externo,
para a sociedade de modo geral, alguém com um comprovado histórico delitivo e de doenças
mentais (a princípio, incuráveis). Esse tipo de defesa “humanitária” prefere expor os doentes
mentais ao convívio social (e à reiterada prática delitiva de alto grau de periculosidade e de
crueldade) a colocá-los em instituições que restrinjam de modo seguro e adequado suas ações e
seu comportamento delitivo. A luta antimanicomial pode ser considerada como sendo também
antipsiquiátrica (FOUCAULT, 1994, p. 45), nesse contexto, os conceitos de sanidade e loucura
são construções sociais que não refletem padrões quantificáveis de comportamento humano e
que antes são apenas indicativos do poder dos “saudáveis” sobre o “demente”5. Não há loucos
ou sãos, todos são normalmente iguais, segundo tais premissas. Todavia, tais ativistas não aten-
tam (ou não se importam) que o dano ocasionado por esse tipo de tratamento “humanitário” é
muito maior e mais aberrante que qualquer recuperação pessoal que porventura possa servir de
paradigma para suas colocações.
A desventura desse tipo de apenado, como já exemplificado acima, denota que a dis-
posição de todos os tipos de presos no mesmo tipo de acomodação institucional para o cumpri-
mento das respectivas penas é algo fadado ao insucesso e ao fracasso. Não apenas o fracasso
do próprio sistema prisional ou carcerário brasileiro, pois as disputas, as brigas e todo o tipo de
violência praticado pelos internos contra eles mesmos ou contra os agentes penitenciários res-
ponsáveis pela sua segurança não fica restrito apenas aos muros de seu próprio cárcere, é algo
que atinge outros presos (a princípio, outrora, sãos) e atinge, principalmente, o público externo,
a sociedade como um todo, lançada no mar de psicopatia gestada nos cárceres e depois vomita-
da com toda a força e pujança no seio social, totalmente desprevenido e despreparado para tratar
com doentes mentais ávidos pela reiteração delitiva a saciar sua crueldade (in)sana.
A luta antimanicomial prima pela rejeição de estabelecimentos especializados no tra-
tamento dos doentes mentais, porque o “manicômio” é a tradução mais completa da exclusão,
do controle e da violência (física e simbólica) (VASCONCELOS ET AL, 2002, p. 33). Certa-
mente, esses pensadores devem olvidar levar em consideração os potenciais danos que a ausên-
cia de internação de doentes mentais causa aos outros detentos e a sociedade como um todo.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Já que tanta violência contra os doentes mentais perpetrada, depois de cessada, não retorna de
nenhuma forma em benefício à sociedade, tampouco ao próprio sistema carcerário brasileiro,
deve-se pensar a real dimensão que a luta antimanicomial visa atingir. Ou seja, seus objetivos
parecem não beneficiar de modo algum nenhuma das três pontas do sistema carcerário, nem

5  Foucault, particularmente, prefere supor que a internação compulsória é um instrumento de poder (fragmentário e horizontalizado)
a se entender que os criminosos merecem pagar por seus delitos. Sua suposição é que a experiência existencial de cada um ratifica a
vida extremada como aprouver a cada um, a experiência de ser no mundo varia profundamente, não podendo ser classificado como
louco quem tem experiências diversas do usual, ainda que isso inclua matar, esquartejar ou beber sangue humano...

109
os próprios detentos desafiados mentalmente, nem os demais detentos, nem a sociedade como
um todo, o “único benefício” atingido aos detentos doentes mentais talvez seja, ironicamente, a
própria impunidade ou o alastramento coletivo de sua insanidade para outros cárceres e para o
seio social como um todo.
Alguns autores dessa linha tentam trazer uma “naturalização” da psicopatia como
apenas uma realidade diversa daquela experimentada individualmente caso a caso, atendo-se a
um argumento relativista de que a doença mental é explicada pelo ponto de vista psiquiátrico
de forma reducionista, seja pelo viés das alterações biológicas cerebrais ou pela dissonância psi-
cossocial apresentada pelos indivíduos enquadrados dessa maneira. Sugerem, portanto, que a
“loucura” é apenas uma “experiência humana de estar no mundo de uma forma diversa daquela
que o homem, ideológica ou idealisticamente, considera como normal” (AMARANTE, 2003, p.
47). Traçando-se um perfil legal que doentes mentais praticam crimes em desacordo com a dis-
posição ético-normativa do que é “normal”, a assertiva anteriormente colocada certamente co-
loca a experiência de “estar no mundo” dos doentes mentais como anormal, pois não é aceitável
que alguém pratique a conduta delitiva do artigo 121 do código penal6, exemplificativamente,
por uma “simples diversidade de experiência de estar no mundo”, tal como se “matar alguém”
pudesse ser aceitável como uma experiência dissonante do padrão ideológico ou idealístico
(ainda que ambos os termos possuam uma origem hegeliana e não possam ser efetivamente
diferenciados...). Aceitar a “normalidade” da psicopatia é um dos elementos centrais da luta
antimanicomial, e, por isso, ela é um dos elementos genéticos da crise carcerária brasileira.
Os defensores mais comedidos dessa vertente vão argumentar que o artigo 6º, inciso
III da supramencionada Lei da Reforma Psiquiátrica7 já garante o tratamento adequado nos
casos de internação compulsória determinada pelo Poder Judiciário. No entanto, a própria lei
é flagrantemente contraditória e vaga por si mesma. A princípio, ela não garante que a inter-
nação compulsória será feita em um estabelecimento carcerário diferente daqueles destinados
aos presos comuns. Ela apenas garante que a pessoa a ser internada deve “ser tratada, prefe-
rencialmente, em serviços comunitários de saúde mental” (inciso IX do artigo 2º da referida
Lei), ou seja, nem sequer se garante a separação total e absoluta entre duas naturezas distintas
de apenados. Pior que essa conexão lacônica entre os artigos da mesma lei, há uma flagrante
contradição entre os direitos dos doentes mentais com o próprio caráter restritivo de liberdade
da pena aplicada quando se garante como direito, por exemplo: “ter livre acesso aos meios de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

6  Ressalte-se que os exemplos fornecidos de modo bastante breve no presente artigo não apenas mostram casos simples de infringência
da lei, até mesmo em seus artigos mais graves, como no caso do que trata sobre o homicídio (art. 121 do Código Penal). Muito pelo
contrário, os casos indicados sempre envolvem o que há de mais grotesco e macabro no comportamento psicopático dos apenados: muti-
lações, esquartejamentos e rituais envolvendo sangue humano. Esse elemento aberrante que justifica o caráter psicopata dos envolvidos
atesta por sua insanidade, e clama por um tratamento diferenciado, o qual, os ativistas antimanicomiais e antipsiquiátricos teimam em
asseverar que inexiste. Ou que mesmo que exista, faz parte intrinsecamente da experiência e da natureza humana.
7  In verbis: Art. 6º: “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus
motivos.Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:I - internação voluntária: aquela que se dá
com o consentimento do usuário;II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro;
eIII - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”. Teoricamente, o inciso III garantiria a separação entre presos comuns
e presos doentes mentais. Todavia, como diversas determinações normativas, essa não passa de um comando programático desprezado
na prática.

110
comunicação disponíveis” (inciso VI, artigo 2º, da mencionada Lei). Assim, como se cogitar
a restrição da liberdade do apenado doente mental com livre acesso a meios de comunicação?
Ou a lei realmente não cuidou em traçar quais os parâmetros de baliza do que poderia
ser garantido ao doente mental que também é criminoso, ou a luta antimanicomial realmente
preza pela disseminação da psicopatia coletiva e inconsciente por toda a sociedade de modo
indiscriminado. De qualquer uma das formas, tanto a lei quanto os defensores dessa bandeira
agem de modo temerário e pouco cauteloso no cuidado e na proteção da segurança individual
dos apenados e da sociedade como um todo. Sob a falsa aparência da normalidade, a psicopatia
é transmitida para a sociedade sob arquétipos invisíveis, com premissas calcadas em tratamen-
tos “humanizados” e com intentos “aparentemente” nobres, os quais apenas mascaram a verda-
de oculta das mentes criminosas psicopatas e transferem uma carga de dano altíssima a todos
os membros da sociedade, de modo direto ou indireto.
O ideário, ou categoria de imaginação retratando a psicopatia como normalidade é
difundida coletivamente como sendo um instinto de moralidade e de retidão no tratamento
dos doentes mentais, quando, na verdade, as ações práticas propostas demonstram apenas que
a mistura indiscriminada leva ao rateio ad æternum da psicopatia em novos níveis, em novas
classes e novos grupos outrora ainda não contagiados pela insanidade delitiva. Direitos dos
doentes mentais devem ser garantidos durante a sua internação compulsória na própria medida
em que não descaracterizem a sua restrição de liberdade, e não para que tais medidas venham
a servir como estandarte da impunidade, como já referido em breves exemplos no texto em
andamento.
Certamente a separação obrigatória dos dois tipos de preso (comuns e doentes men-
tais) e uma profunda análise dos pontos da luta antimanicomial que não são condizentes com
a realidade não são a salvação do sistema carcerário brasileiro, no entanto, já representam um
pequeno avanço em sua melhora. Esses indicativos não servem como elementos simplórios de
reestruturação do sistema, mas podem ser considerados bons nortes indicativos para que se
repense o lugar de cada estrutura psiquiátrica dentro dos cárceres brasileiros.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

De modo derradeiro, há de se repisar que o argumento central defendido no breve arti-


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

go se foca na questão da separação peremptória entre os presos comuns e os apenados doentes


mentais, algo que flagrantemente atenta contra o viés de normalidade da insanidade defendido
pelos preceitos da luta antimanicomial. O convívio comum entre pessoas sãs e doentes mentais
dentro das condições de restrição de liberdade impostas pelo Poder Judiciário gerou situações
extremas, que conduziram a massacres e os mais diversos atentados à segurança pública, dentro
e fora dos estabelecimentos de detenção. Assim, separar categoricamente a população carcerá-
ria de acordo com critérios psiquiátricos não é uma medida atentatória a um tratamento huma-
nizado dos doentes mentais, antes de mais, ela consiste, na verdade, em tentar dar segurança a

111
todos os envolvidos no sistema carcerário, incluindo-se aí os demais apenados, a sociedade em
geral e todos os servidores públicos envolvidos na segurança a ser provida pelo Estado.
Em síntese, a luta antimanicomial ao invés de tentar prover cuidados mais “humani-
zados” àqueles que ela pretensamente busca proteger acaba por disseminar institucionalmente
a psicopatia generalizada. De forma a transmitir arquétipos dignos do inconsciente coletivo de
Jung, os defensores dessa vertente acabam pugnando que a loucura e a insanidade (componen-
tes básicos da psicopatia criminosa) são apenas mais um dos elementos corriqueiros e comuns
da sociedade, que devem ser absorvidos por ela tal e qual por eles compreendidos, sob pena de
se propor um tratamento higienista das pessoas desafiadas mentalmente.
Há de se deixar derradeiramente assente que o proposto nesse artigo de maneira al-
guma tem um viés eugênico, higienista ou quiçá anti-humanista, pelo contrário, a primazia da
segurança pública, dentro e fora dos estabelecimentos prisionais é uma preocupação que atenta
a todos os envolvidos nesse processo, principalmente aos pensadores que se debruçam sobre
tais temas e que não pode ser reféns de um pensamento praticamente dominante e unitário
dentro das ciências humanas (que é a luta antimanicomial). Tecer críticas a essa abordagem é
algo necessário e urgente dentro do atual contexto paradigmático de crise do sistema carcerário
brasileiro, e com o intuito de prover esse tipo de abordagem dissonante daquilo que é cotidiana-
mente repetido na academia que o presente artigo se presta a expor tal análise.

REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo. Clínica e a reforma psiquiátrica. In:AMARANTE, Paulo (Org.).


Archivos de saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Nau, 2003.

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6de Abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde
mental. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>.
Acesso em: 27 de jan. 2017, às 17:00h.

______. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm> Acesso em: 27 de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

jan. 2017, às 17:00h.

FOUCAULT, Michel. Ditsetécrits. Paris: Gallimard, 1994. v.4.

HILLMAN, James. Psicologia arquetípica. Tradução de Gustavo Barcellos e Lúcia


Rosenberg. São Paulo: Cultrix, 1992.

JUNG, Carl. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Tradução de Maria Luíza Appy, e Dora
Mariana R. Ferreira da Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.

112
ROCHA FILHO, João B. Física e psicologia. 4. ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2007.

REDAÇÃO. Por que líder do PCC ganhou prisão domiciliar em Natal?. NOVO Jornal. Natal,
25 jan. 2017. Disponível em: <http://novojornal.jor.br/cotidiano/por-que-lider-do-pcc-ganhou-
prisao-domiciliar-em-natal>. Acesso em: 26 de jan. de 2017, às 17:00h.

VASCONCELOS, Eduardo Mourão et al. Saúde mental e serviço social: o desafio da


subjetividade e da interdisciplinaridade. São Paulo, SP: Cortez, 2000.

PSICOPATHOLOGY AND PRISON: A PIVOTAL ELEMENT OF BRAZILIAN CRISIS

ABSTRACT
The paperdebates the psychopathology as a pivotal element of nowa-
days Brazilian prison system crisis. It intends to show how the mix
of ordinary and psycho inmates is one of the causes of this demented
crisis. As a methodology, it gathers as a theoretical reference the “Col-
lective unconscious” theory of Carl Jung. It results that antiasylum and
antipsychiatry struggle, and its pretentious “humanitarian treatment”,
just made the situation worse and spread the madness into correctional
facilities in an institutionalized way. It concludes that this kind of activ-
ism contributes to the failure of state punishment system and increases
the internal security system crisis.
Key-Words: Prison System; Psychopathology; Institutional Crisis.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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REPUBLICANISMO, FEDERALISMO E PATRIMONIALISMO: A FORMAÇÃO
DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS BRASILEIRAS COMO UM MOSAICO DE
CONTRADIÇÕES1

Raimundo Márcio Ribeiro Lima2

RESUMO
O artigo discute sobre a origem da República e do federalismo brasi-
leiro, destacando um curso histórico de contradições entre a teoria das
instituições políticas, seus modelos e propósitos, com a realidade das
instituições estampadas com o advento da República de 1889. Além
disso, discute-se a interferência do patrimonialismo na promoção da
ação política, como realidade histórica desde a Monarquia, acentuando
sua capacidade mimética em face das mudanças nas instituições ou nos
modelos de gestão pública, o que instrumentaliza, com largo êxito, as
práticas corruptivas na estrutura orgânico-funcional do Estado.
Palavras-chave: Republicanismo. Federalismo. Patrimonialismo. Cor-
rupção.

“[…] o povo quer a proteção do Estado, parasitando-o, enquanto o


Estado mantém a menoridade popular, sobre ela imperando. No plano
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

psicológico, a dualidade oscila entre a decepção e o engodo”3.

1  Adota-se a ortografia do Novo Acordo Ortográfico de 1990, inclusive nas transcrições de textos com escritas antigas ou arcaicas, exceto
título de obra ou artigo.
2  Doutorando em Direito Constitucional pela UFC. Doutorando em Direito Público pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito
Constitucional pela UFRN. Procurador Federal/AGU. Associado do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública (IBAP).
3  FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 832.

114
1 INTRODUÇÃO

A dificuldade da formação do Estado nacional possui diversas razões: algumas são


bem elementares; outras, complexas, mas todas capazes de exercer influência sobre os tortuosos
rumos de uma nova nação, com velhos dilemas, nos albores do século XIX. A tormenta de de-
safios vai da busca de uma identidade nacional até uma efetiva formação de um corpo de insti-
tuições político-administrativas de caráter verdadeiramente nacional, que seja capaz de navegar
pelas incertezas de um Estado soberano na comunidade internacional. Em verdade, a expressão
nacional sempre comporta muitas digressões no universo da Ciência Política, não apenas por
conta dos inevitáveis percalços na definição dos parâmetros da nacionalidade, desejosamente
objetivos, mas, sobretudo, pela recorrente ciranda de interesses que sempre acenam para fora
da ideia corrente dos interesses decididamente nacionais. Portanto, discute-se o formalmente
nacional, porque a dinâmica dos prospectos materiais, que sempre comportam importantes dis-
cussões doutrinárias, adentrando até mesmo nos denuncismos de crimes de lesa-pátria, acaba
por representar um círculo discursivo amplo demais aos objetivos deste breve artigo.
A questão monárquica, por sua vez, revela, no caso brasileiro, um misto de estupefação
e operacionalidade quanto à cadência dos princípios republicanos. A dessepulta escravidão no
seio do Estado, mais que uma chaga aberta na sociedade brasileira, servira de mote para os mais
perniciosos objetivos políticos, especialmente os relacionados aos descuidados fins da ciranda
econômica nacional. A novel República, no poço dos desejos políticos, gozou ou sofreu com todas
as pedras passíveis de serem lançadas pela infame ou infantil discórdia como regime anterior.
A novela dos ciclos políticos, para longe de uma reflexão mais séria sobre os problemas
nacionais, mas superando os conflitos regionais de cariz libertador, mantiveram as pretéritas
estruturas político-sociais com novas roupagens, que dissimularam os velhos propósitos, mais
condizentes com os luminares princípios republicanos, mas, de todo modo, restando sempre vi-
sível os ranços do patrimonialismo que ainda reina triunfante no largo campo das instituições
públicas brasileiras. O mosaico de contradição não reflete, nem de longe, a sinuosa estrutura que
mantém o federalismo brasileiro, porém denuncia que os imperativos, nada lineares, da formação
das instituições políticas haveria de consagrar nodosos caminhos no desenvolvimento do Brasil.
O artigo discutirá, dentre outros pormenores, sobre republicanismo, federalismo e pa-
trimonialismo numa relação discursiva com os atuais desafios da sociedade brasileira, pon-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

tuando, principalmente, os arranjos políticos que possibilitaram a atual estrutura do Estado


brasileiro: suas contradições, seus retrocessos ou avanços.
Neste artigo, a reflexão, preponderantemente bibliográfica, não nega, contudo, a força
das informações colhidas pelas pesquisas quantitativas eventualmente consideradas, só que o
sobrevoo das inquietações ancora-se basicamente nas perquirições de ordem qualitativa, co-
lhendo nas fontes históricas que testemunharam a controvertida dinâmica da formação das
instituições políticas brasileiras.

115
2 A MONARQUIA COMO ARRANJO POLÍTICO E A REPÚBLICA COMO
ALHEAMENTO POLÍTICO

A Monarquia vive imponente no século XXI, portanto, não enveredou no ostracismo


cantado em verso e prosa, de afogadilho, pela erudição apoteótica e pueril de muitos republi-
canos, como se as mazelas brasileiras decorressem do regime monárquico e, com isso, apenas
a República acenaria para um novo e reluzente cenário das instituições políticas no Brasil.
Olvidando, assim, a multissecular advertência de Jean-Jacques Rousseau, a saber: “Para ser
legítimo, o governo não deve se (sic) confundir com o soberano, mas ser seu ministro: então a
própria Monarquia é República” 4. É dizer, o Estado monárquico pode ser regido por leis, in-
dependentemente de sua forma de organização, porquanto apenas o interesse público governa,
denotando que a coisa pública é, de fato, uma realidade, enfim que todo governo legítimo é
republicano 5. Aliás, isso resulta ainda mais evidente quando se considera que a monarquia é
plenamente compatível com a democracia ou o absolutismo, o mesmo diga quanto à centraliza-
ção ou ao federalismo; sem falar, ainda, nas experiências parlamentaristas ou de mero governo
pessoal, independendo, inclusive, se o sufrágio é universal ou censitário, dentre outras tantas
opções de cunho político6.
Desse modo, cumpre gizar que a Monarquia não acarreta necessariamente qualquer
fluxo imobilizador da razão político-constitutiva do Estado, encerrando, assim, uma forma de
governo que, a despeito de lembrar os vínculos históricos dos reinos tiranos, pouco ou nada
conservava, mesmo no fim do século XIX, de suas matrizes absolutistas7. Daí que, como que
um necessário resgate histórico, há quem defenda que Joaquim Nabuco, sob a égide de um
idealismo prático, na qual aduzia a defesa da Monarquia, alicerçando-se no seu inegável aristo-
cratismo, não promovia uma oposição à democracia, mas, sim, à oligarquia e tirania, porquanto
acreditava que nenhum país no continente reunia as condições necessárias à efetiva implanta-
ção de uma democracia8.
Vê-se que a noção de uma Monarquia republicana não é nada contraditória, contudo, a
contradição surge com o fato de a República assumir despudoradamente as vestes oligárquicas
ou, na melhor hipótese, não combatê-la no seio do Estado, permitindo um nicho político-repu-
blicano alheio aos verdadeiros imperativos da sociedade, que não se confundiam com os das
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

4  ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e intro-
dução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90.
5  ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou Princípios do direito político. Tradução de Eduardo Brandão. Organização e intro-
dução de Maurice Cranston. São Paulo: Penguin Classics/Companhia das Letras, 2011, p. 90.
6  LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo,
nº 85, p. 277-311, 2012, p. 283.
7  Afinal de contas, “[p]retender que um soberano absoluto não seja invejoso e despótico, quando diariamente tem motivos constantes para
o ser, é querer milagres da natureza humana. […] A monarquia absoluta é na realidade uma aristocracia encoberta, e por isso tem todos
os males do despotismo e da aristocracia” [SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Ideias sobre a organização política do Brasil, quer como
reino unido a Portugal, quer como estado independente. In: SILVA, Elisiane da; NEVES, Gervásio Rodrigo; e MARTINS, Liana Bach
(org.). José Bonifácio: a defesa da soberania nacional e popular. 2 ed. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2013, p. 123-127, p. 124].
8  LYNCH, Christian Edward Cyril. O império é que era a República: a Monarquia republicana de Joaquim Nabuco. Lua Nova. São Paulo,
nº 85, p. 277-311, 2012, p. 293 e 305.

116
forças oligárquicas, inclusive em dois aspectos: (a) na fundação da própria República, porque
os interesses em jogo não extrapolavam o círculo desejosamente fechado dos golpistas da Re-
pública; e (b) na compreensão e prática do republicanismo no meio social9, pois a dinâmica do
exemplo providencialmente exigida nas práticas sociais, infelizmente, restara embargada pela
inexitosa capacidade de a população absorver o novel sistema político, que, em tese, revelar-se-
-ia mais bem preparado para alcançar a democracia e promover o desenvolvimento do Brasil.
Obviamente, toda proposta não pode defender os prognósticos de seu malogro, pelo contrário,
sempre desenha com fortes tintas o itinerário de suas inolvidáveis conquistas.
Há nisso tudo, sem sombra de dúvida, um traço de autoritarismo na nossa cultura polí-
tica, aliás, que mais se alinha a uma comédia ideológica, pois, a ferro e fogo, a desfiguração dos
modelos adotados, no que a Constituição de 1891 é um bom exemplo, revelou-se inevitável em
função da indisfarçável assimetria de parâmetros político-sociais entre a sociedade norte-ame-
ricana ou europeia com a brasileira, ganhando matizes próprios, e mesmo contraditórios, como
é o caso da ideologia liberal burguesa europeia numa sociedade escravista e latifundiária10.
Portanto, sem medo de errar, a mudança de rótulo, Monarquia ou República, não al-
terava a essência do conteúdo do sistema político, particularmente no caso brasileiro, no qual
os invólucros são, muitas vezes, eram alterados, e mesmo ainda são, justamente para manter
determinadas estruturas político-econômicas, geralmente amalgamadas com uma grande ideia
legitimadora, ontem, República; hoje, Estado mínimo11 e por aí vai. É dizer, as mudanças não
trazem uma proposta de grandes rupturas, porquanto as vicissitudes apenas consagram os ar-
ranjos decorrentes de disputas no ciclo inquebrantável das elites.
Aliás, o alijamento político dos segmentos populares, alheios à lei e ordem no perío-
do monárquico12, pareceu um cenário sem fim, pois o povo13 não participou da fundação da
República; aliás, isso não se trata de contradição, mas sim de imperiosa constatação. Contra-
dição, evidentemente, era considerar a viabilidade da manifestação popular, numa perspectiva
soberana, quando a comunidade política ainda se prendia à perspectiva exclusivista do direito

9  Aliás, ainda no segundo reinado, os dilemas da compreensão político-social do sistema político eram tributados, pelo menos na pers-
pectiva saquarema, ao atraso intelectual e à pobreza na sociedade brasileira, no que impossibilitava o surgimento de opinião pública
consistente, conforme os prognósticos do governo parlamentar inglês, fato que, dentre outros fatores, pretensamente exigia um regime
de tutela política, aliás, exercido pela Coroa, no que conflitava claramente com o modelo da teoria liberal (LYNCH, Christian Edward
Cyril. A primeira encruzilhada da democracia brasileira: os casos de Rui Barbosa e de Joaquim Nabuco. Revista de Sociologia e Políti-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ca. Curitiba, vol. 16, número suplementar, p. 113-125, ago. 2008, p. 114).
10  LYNCH, Christian Edward Cyril. Por Que Pensamento e Não Teoria? A Imaginação Político-Social Brasileira e o Fantasma da Con-
dição Periférica (1880-1970). Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 56, nº 04, p. 727-767, 2013, p. 758.
11  O problema não é o tamanho do Estado, mas, sim, o que se faz com ele e, para ser sincero, no caso brasileiro, os defensores do Estado
mínimo possuem justificáveis motivos para arvorar sua tese, principalmente os relacionados à ineficiência estrutural da máquina pública
até mesmo.
12  O próprio curso histórico da escravidão, que dissolvia os padrões de socialidade e concebia as ilusões das benesses materiais possíveis
desde os primórdios da era colonial, faziam com que as elites, longe dos prognósticos decididamente republicanos, enfileirassem cô-
modas razões para consagrar uma dinâmica excludente na formação das instituições políticas, por certo, não era possível esperar outra
postura no advento da República [JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São
Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 22].
13  Ora, isso remonta ao processo histórico colonial, porquanto “[n]ão parece haver dúvidas quanto ao fato de, no contexto de uma discus-
são sobre reivindicações políticas, os escravos e libertos não serem considerados parte do ‘Povo’”. (ROWLAND, Robert. Patriotismo,
povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil:
formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 375).

117
ao voto14, aliás, algo verificado durante todo o período monárquico, decantada no sufrágio cen-
sitário, que foi abolido com o advento da Constituição de 1891.
Aliás, quando o remanso da desigualdade da economia escravista15 e da indiferença
política ainda não era capaz de mirar um novo horizonte, popularmente organizado, de reivin-
dicações de direitos civis e políticos, não é possível cogitar que a inclusão dos grupos margi-
nalizados fosse promovida pela elite político-econômica, que arregimentava forças e mudanças
para preservação do poder, com o advento da República. A contradição revela-se, no entanto,
com a manutenção de parâmetros legais excludentes dos segmentos populares no processo po-
lítico, mesmo depois da instauração da República, no que denuncia uma das condenáveis faces
do liberalismo oligárquico16. Nesse ponto, não se pode negar que a exigência constitucional do
voto alfabetizado, no que excluía a participação política dos brancos pobres e dos descendentes
de africanos, sem falar que as mulheres ainda não podiam votar, notabilizava-se como um ins-
trumento de exclusão política, ou não emancipação política, para tentar manter os privilégios
corporativos no seio da República, pois a cidadania17, ainda que firmada numa prerrogativa
universal dos brasileiros natos, não garantia, por si só, a efetiva inclusão política dos brasileiros,
denunciando, assim, um verdadeiro drible na iletrada mestiçagem18.
A Monarquia, como arranjo político, foi uma tentativa, relativamente exitosa, de con-
sagrar a identidade monárquica no Brasil, sem, contudo, permitir que o atendimento dos inte-
resses reinantes, decorrentes de segmentos nada revolucionários19, alavancasse uma reviravolta
na injusta estrutura, para dizer o mínimo, político-econômica do Império. Ora, a ideia de rup-
tura chega a ser tão risível que o filho do imperador tornou-se a figura política central no novo

14  Aliás, já numa fase republicana, a questão do alheamento político foi suficientemente discutida em CARVALHO, José Murilo de. Os
Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 42 e segs. Todavia, os ventos
do republicanismo, e não apenas dele, fez exsurgir uma incipiente frente de movimentos pretensamente organizados, como bem pontua
o autor nesta passagem: “Se na proclamação da República a participação popular foi realmente arranjada de última hora e de efeito
apenas cosmético, logo após as agitações se tornaram cada vez mais frequentes e variadas, incluindo greves operárias, passeatas, que-
bra-quebras” (CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. 3 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004, p. 70).
15  A sensibilidade pela causa abolicionista, mesmo no final do século XIX, apesar das leis que antecederam à tardia e inconsequente
abolição, não possuía, nem de longe, uma defesa uníssona da política nacional, inclusive a dinâmica da escravatura, secundada no pre-
tenso direito de propriedade, foi um grande fator de cizânias nos primórdios da República, que, apesar de não escravista, consentia com
vetustas ideologias de dominação racial, olvidando, assim, uma advertência antiga, à época, nestes termos: “Se a lei deve defender a
propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos
da Providência, que fez os homens livres, e não escravos […]” (SILVA, José Bonifácio D’Andrada e. Representação à Assembleia Geral
Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura. Paris: Typographia de Firmin Didot, 1825, p. 21). Como explicar
as raízes liberais escravocratas brasileiras? Na ocasião, a teoria liberal, por certo, não passava de mero engodo, um invólucro moderno
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

para as mais anacrônicas pretensões da ciranda política.


16  Não se tratava propriamente de uma verdadeira vertente do pensamento liberal, porquanto as premissas discursivas da teoria liberal
não se afiguram compaginável com a dinâmica reacionária das matrizes oligárquicas das instituições políticas brasileiras. Portanto,
tratava-se mais de um rótulo adequado para pretensões políticas, por vezes inconfessáveis, dedicadas tão somente na manutenção de
uma estrutura política não democrática.
17  Aliás, a perspectiva excludente da cidadania ocidental, possivelmente mundial, sempre marcou o instituto, portanto, ainda persiste,
inclusive sem qualquer pudor, para tanto, basta lembrar os condenáveis critérios político-econômicos na concessão de nacionalidade a
uma pessoa estrangeira em determinados países, o que não passa, de forma bem rústica, duma mera exigência de identidade econômica
(investimento no mercado local) e não propriamente social ou cultural. Ora, a cidadania também é uma moeda do mercado no sistema
capitalista.
18  CAMARGO, Alexandre de Paiva. Mensuração racial e campo estatístico nos censos brasileiros (1872-1940): uma abordagem conver-
gente. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas. Belém, vol. 04, nº 03, p. 361-385, set./dez. 2009, p. 368.
19  Em verdade, no Império, os movimentos efetivamente revolucionários, que objetivavam uma ruptura com o status quo, foram dura-
mente demovidos ainda no período regencial, até porque, por ostentarem uma ambiência quase que estritamente regional e, portanto,
sectárias, tal fato impossibilitava-os de ganhar maior fôlego para resistir às forças imperiais.

118
Império, dito independente. Aqui, tem-se a precisa máxima: dos males, o menor20.
A República, por sua vez, como alheamento político, não quer dizer que as forças
propulsoras do seu advento vivessem a orgia de uma nova ordem política mundial, como que
apenas inebriadas pelas ideologias estrangeiras e, com isso, agissem destemidamente na vã
esperança de uma solução nacional baseada na perspectiva abstrata de uma ideia política. Não
mesmo. O alheamento político, aqui, possui outro sentido. O povo restou alheio à República,
ou melhor, não teve qualquer participação política para o seu advento. Incialmente, a República
não casou com o perfil democrático dos grandes levantes populares. Assim, ela representou
uma via, aliás, nada discursiva, porquanto foi empreendida subitamente por meio de um golpe
militar, para estancar a sangria política do modelo imperial, que já se encontrava na unção dos
enfermos, aliás, em face de diversas problemáticas, porém, todas igualmente convergentes para
necessárias mudanças nas instituições políticas, que vão da questão religiosa até a mal resol-
vida disputa sobre a abolição dos escravos, que não agradou aos fazendeiros21 e, muito menos,
aos próprios abolicionistas, aliás, os ideais republicanos, até então defendidos pelo Partido Re-
publicano, não fechavam questão com as ideais abolicionistas, ainda que muitos republicanos
fossem defensores da abolição22.
Portanto, a República, mais que um hábil arranjo político que caracterizou a Monarquia
brasileira, inclusive, resultante das parcas possibilidades monárquicas portuguesas no início do
século XIX, resultou de uma posição ainda mais excludente, porquanto o povo já caminhava na
rua, e o Brasil já possuía uma identidade, não apenas territorial23, mas, sobretudo, social, a des-
peito de todas as suas mazelas; todavia, mesmo assim, a forma de governo adotada, para o bem
ou para o mal, não rendeu qualquer importância à população iletrada ou simplesmente sem forças
econômicas ou políticas; enfim, a República triunfou sem qualquer participação política popular.
Fala-se, até hoje, na estrondosa meta de republicanizar a República, é dizer, tal expres-
são deixa subjacente uma ideia de que a República brasileira já foi, de fato, uma República e que

20  Aqui, é preciso fazer o contraponto no sentido de que o vislumbre do interesse defendido, notadamente de ordem econômica, pode
ter ido além do próprio fundamento da nacionalidade, de forma que português poderia ser considerado aquele que defendia o impulso
colonial e brasileiro, pouco importando sua nacionalidade, aquele ancorava o desejo da independência política (ROWLAND, Robert.
Patriotismo, povo, ódio aos portugueses: notas sobre a construção da identidade nacional no Brasil independente. In: JANCSÓ, István
(org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 365-388, p. 372).
21  Mais especificamente sobre a temática da ausência de indenização pela perda de um direito de propriedade.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

22  CARVALHO, José Murilo de. República, democracia e federalismo. Brasil, de 1870-1891. Varia Historia. Belo Horizonte, vol. 27, nº
45, p. 141-157, jan./jun. 2011, p. 144.
23  Não desconhecendo as mais diversas teses sobre as razões da unidade territorial brasileira, defende-se que a inexistência de uma es-
trutura orgânico-funcional própria no tecido social, considerando-se que Portugal sempre foi um país pequeno, sem maiores expressões
de ordem populacional, tenha contribuído na formação da unidade nacional, justa e paradoxalmente em função da inércia organizativa
e da extrema desintegração social, porquanto sem a existência de grupos coesos e organizados nas diversas provinciais, e menos ainda
entre elas, como ocorrer uma desintegração territorial, mesmo porque as forças de retaliação portuguesas, certamente uma das míni-
mas formas de organização consistentes do Império, ainda que de atuação emergencial, não tardavam em demover eventuais levantes
regionais ou locais. Nesse ponto, resulta pertinente esta demorada transcrição: “Diante da complexa realidade social do escravismo,
base de suas condições de existência, para as elites brasileiras a hipótese de que a comunidade humana que lhes coube integrar pudesse
ser dotada de coesão interna com base em critérios universais (fundamento da ideia nacional), pareceu-lhes absurda. Para elas, o corpo
social, no seu todo, não formava nação, nem deveria formá-lo. Ao Estado (que não tem, convém lembra-lo, existência autônoma por
sobre as classes), caberia garantir que a temida hipótese não vingasse” (JANCSÓ, István. Este livro. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil:
formação do Estado e da Nação. São Paulo/Ijuí: Editora Hucitec/Editora Ijuí/Fapesp, 2003, p. 15-28, p. 28). Tem-se, então, a inegável
questão do inimigo interno: aquilo que não reconheço importância, exceto o fato de permitir que determinada parcela da sociedade goze
das benesses da exploração social.

119
basta, tão somente, revitalizá-la em face dos seus vigorosos e providenciais valores na socieda-
de. Todavia, seria mesmo esse o melhor entendimento sobre a temática? No Brasil, o curso his-
tórico das ideias republicanas não pode ser a razão fundante desse horizonte compreensivo, isso
porque a fundação da República foi um ato cênico de manifesto interesse político-econômico
na instauração de uma nova ordem, mas, claro, sem qualquer repercussão no meio social, isto é,
sem preparativos, mobilização social ou efetivas conquistas, porém, como necessário trato das
potencialidades políticas, não faltou uma retórica dos novos valores e/ou direitos: só que uma
República sem valores republicanos no seio da sociedade que a constitui, por certo, revela uma
dupla forma de alheamento político: (a) a que se corporifica nas instituições recém-criadas, por-
quanto não são capazes de empreender os objetivos do republicanismo; e (b) a que se prende na
sociedade, haja vista uma larga cadeia de costumes e valores dissonantes, totalmente empeder-
nidos, no cotidiano dos cidadãos. Numa palavra: sem valores do republicanismo, só há espaço
para interesses privados, onde, desde cedo, fez campear galhardamente o patrimonialismo na
estrutura orgânico-funcional do Estado.
Ademais, a própria manutenção ou expansão do patrimonialismo, naturalmente, com
outras roupagens e meios, bem demonstra que o ideário republicano jamais imperou na estrutu-
ra político-administrativa do Estado. Não que a semeadura dos valores republicanos afigure-se
destituída de um lastro jurídico, não mesmo, pois o escarcéu normativo do Direito Público é
pródigo em declinar uma extensa lista de valores republicanos, sobriamente calcados na impes-
soalidade da gestão pública, o dilema centra-se, assim, em outra ordem de considerações: os
ideais republicanos não brotam de árvores e nem se alimentam do mesmo modo que pombos em
praça pública. Eles exigem a dinâmica dos esforços comunitários e carecem de uma compreen-
são normativa que vá além dos meandros interpretativos, isto é, saindo do abstrato ao concre-
to, portanto, que saia em campo e não adormeça na insuficiência das declarações meramente
normativas; enfim, a realidade desses valores até convivem com a ciranda jurídica, mas, sem
dúvida, não pode limitar-se a ela, porquanto possui autonomia discursiva na ambiência social,
revelando-se mais propriamente um sentimento de compartilhamento social em função dos
seus benefícios concretos do que uma diretriz estritamente política. Além disso, a República,
na praça, não segue a mesma indicação dos pombos e nem espera que as benesses venham a
cair do céu. Ela, no cotidiano, sofre os reversos dos falsos sinais das instituições estatais e, cla-
ro, dos cidadãos, que, não raras vezes, rendem-se às miraculosas benesses do patrimonialismo
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mimético24, que, numa compreensão sistêmica dos imperativos da gestão pública, emperra os
avanços da ação política.

24  Atualmente, um exemplo típico do patrimonialismo mimético (adaptação das práticas corruptivas) que se observa nas culminâncias
dos Poderes da República, com particular destaque ao Poder Judiciário, é o uso das garantias institucionais, notadamente a autonomia
financeira e poder de iniciativa de leis, para fins exclusivamente privados, acentuando um regime remuneratório legalmente condenável,
e moralmente inaceitável, a partir das famigeradas vantagens eventuais (permanentes) de natureza indenizatória (totalmente remunera-
tória), indene, assim, de imposto de renda e contribuição previdenciária.

120
3 A FEDERAÇÃO COMO ILUSÃO POLÍTICA?

No Brasil, desde o Império, porque os seus imprecisos termos foram discutidos bem
antes da República25, o federalismo foi cercado de notórias contradições, que não se limitam
apenas aos aspectos conceituais no curso da história, vai mais além. Aliás, como bom exemplo
disso, as disposições do Código do Processo Criminal de 1832, nas quais capitaneavam diversas
regras que aproximavam a participação da comunidade local na Administração da Justiça26,
perdiam fôlego nas comunidades locais após o Ato Adicional de 1934, que, abraçando o pen-
samento federalista de primazia política do Legislativo das Províncias, acabava por permitir
levantes normativos que simplesmente controlava os eventuais excessos descentralizadores do
Código do Processo, promovendo, assim, o esvaziamento dos cargos eletivos, no que bem afei-
çoa a ideia descentralizadora, em detrimento dos cargos nomeados por autoridades provinciais,
portanto, não mais nos limites dos distritos ou comunidades locais27.
Por isso, mais importante que identificar as ideias que rompiam das forças políticas,
que não eram veladas, mas ardorosamente propagandas como tábuas civilizatórias, era perceber
os interesses escusos defendidos ou alcançados por meio delas, mormente quando a matriz con-
servadora ou reacionária ostentava as vestes da liberdade política e/ou do progresso econômico.
Dito de outro modo, no século XIX, a compreensão do debate sobre a dinâmica centralizadora
ou federalista dependia da compreensão do interesse provincial e, sobretudo, da forma como
essas correntes avaliavam esse interesse e arregimentavam as forças político-discursivas nos
grupos sociais das Províncias, conforme a tônica dos negócios particulares ou necessidades
provinciais 28. Até mesmo no século XX, tendo em vista a redação do artigo 1º da Constituição

25  Nesse ponto, é importante destacar que, mesmo na Assembleia Constituinte de 1923, os federalistas não desconheciam a diferença de
trajetória entre o Brasil e os Estados Unidos (COSER, Ivo. O Debate entre Centralizadores e Federalistas no Século XIX: a trama dos
conceitos. Revista Brasileira de Ciências Sociais – RBCS. São Paulo, vol. 26, nº 76, p. 191-206, jun. 2011, p. 193 e nota de rodapé nº 08);
no entanto, a clara distinção entre o federalismo pleno (confederação de províncias) e o federalismo mitigado (federação de províncias),
muito embora tenha sido discutida desde cedo, por conta da questão da unidade nacional, apenas se revelou fora de dúvida, portanto,
de pleno conhecimento pela elite política imperial, a partir de 1934, afastando, de vez, a ideia confederativa no conceito de federação
(COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 967). Em sentido diverso, acentuando que, até a Constituinte de 1890-1891, o con-
ceito de federalismo não era de todo claro, exigindo-se, à época, os devidos esclarecimentos, notadamente pelo Senador pernambucano
José Higino Duarte Pereira, que era catedrático de Direito Administrativo na Faculdade de Direito do Recife [CABRAL, Gustavo César
Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João Alfredo de J. Temas de histó-
ria do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-1945). Porto Alegre: Instituto
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, p. 127-162, p. 135]. Deve-se reconhecer que a compreensão sobre o federalismo
parecia ser algo bem controvertido na constituinte de 1823, porquanto a discussão ainda girava em torno da palavra federação e, com
isso, tinha-se um forte aceno com o significado de confederação, aliás, isso resultava ainda mais evidente quando se considerava que as
Províncias do Pará, Rio Negro e Maranhão, que, à época, ainda padeciam de uma resistência portuguesa, deveriam unir-se definitiva-
mente à federação brasileira, muito embora fossem, mesmo que por pouco tempo, independentes do Império brasileiro. (RODRIGUES,
José Honório. A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 113-117).
26  Em particular o processo de eleição dos Juízes de Paz. Todavia, não se pode afirmar que isso representasse necessariamente um ins-
trumento eficaz de participação popular, pois o espaço público era diminuto e excludente demais para isso. De todo modo, tinha-se a
possibilidade de uma mudança de roteiro, saindo das tradicionais camadas decisórias da Administração central da Província para os
também tradicionais detentores do jogo político nos distritos, que, apesar de ainda consagrar formas de exclusão política, poderiam ser
bem menos sofríveis que as decorrentes dos Legisladores provinciais.
27  COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 958.
28  COSER, Ivo. O Conceito de Federalismo e a Ideia de Interesse no Brasil do Século XIX. Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de
Janeiro, vol. 51, nº 04, p. 941-981, out./dez. 2008, p. 973.

121
de 189129, levantou-se o entendimento de que o nome República dos Estados Unidos do Brasil,
com clara inspiração na Constituição norte-americana, “[…] fortalecia a opinião, dominante na
política, de que os Estados são dotados de uma autonomia que assume de fato as proporções
da soberania” 30, de maneira que a “[…] ardente ambição de autoridade local […]” 31 acabou por
infirmar as condições práticas de uma efetiva soberania das funções da União, no que exigia
uma reforma no texto constitucional, assinalando o verdadeiro lugar dos Estados, a saber, de
meras províncias autônomas32.
Nesse ponto, é pertinente assinalar que o poder de legislar dos Estados, o mesmo se
diga quanto às Províncias, representa um atributo de sua reconhecida autonomia no regime po-
lítico, não decorre, evidentemente, do modelo federal, tanto que no Império, portanto, na vigên-
cia de um Estado unitário, as Assembleias Provinciais, inclusive criadas no período regencial,
possuíam funções legislativas, no que diferiam da atuação legislativa da Assembleia Geral, que
representa a nação33.
Noutro giro, considerando curso histórico da questão, indaga-se: O federalismo deve
decorrer do aperfeiçoamento (a) de uma conquista histórica ou (b) de projeto político-norma-
tivo, ainda que sem substrato popular? A questão comporta resposta suficientemente esclare-
cedora nos dois sentidos, das mais rudimentares até as mais complexas, especialmente quando
se considera que o traço histórico transformador das instituições políticas não representa um
percurso comum a todas as nações, que sempre admitem - umas mais, outras menos - um flerte
com as instituições políticas estrangeiras, porém o que importa mesmo é considerar o modelo
que melhor possa promover as possibilidades políticas de um povo, o que é algo bem diverso do
modelo que melhor atenda aos interesses do povo, isso porque os principais atores responsáveis
pelas vicissitudes no sistema político tendem a consagrar os interesses dominantes, isto é, difi-
cilmente rompem com a estrutura de poder e, claro, o desenho político-institucional do Estado
é, sem sombra de dúvida, um bom caminho para contemplar esse propósito. Por outro lado, as
grandes rupturas decorrentes de processos revolucionários não garantem resultados exitosos,
aliás, a história bem explica isso. O fato é que a denúncia das opções políticas - e o certo e o
errado, numa relação discursiva séria, costumam ter seu prosélitos -, vai revelar uma reflexão
contínua sobre as instituições (im)postas e isso é sempre algo bastante positivo para a evolução
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

29  A redação, de fato, é passível de questionamentos, eis o dispositivo: “A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime
representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissolúvel das suas
antigas Províncias, em Estados Unidos do Brasil” (Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.
htm>. Acesso em 10 jun. 2016).
30  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220. O
autor, mais adiante, na mesma página, grafa os contrapontos entre a Constituição e vida real, nestes termos: “Coleção de preceitos sem
assento na vida real, a Constituição não recebeu o influxo de um pensamento político dominante, que desse às instituições o fluido
inspirador e a ideia motora de um objetivo superior e prático, nem métodos e critérios de orientação que enfeixassem seu conjunto num
corpo homogêneo e animado”.
31  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220.
32  TORRES, Alberto. A Organização Nacional. Primeira Parte – A Constituição. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1914, p. 220-221.
33  CABRAL, Gustavo César Machado. Os senados estaduais na Primeira República: os casos de São Paulo e Ceará. In: FLORES, João
Alfredo de J. Temas de história do direito: o Brasil e o Rio Grande do Sul na construção dos Conceitos Jurídicos Republicanos (1889-
1945). Porto Alegre: Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, 2013, 127-162, p. 143.

122
político-institucional de um país. Dito de outro modo, tornar as escolhas melhores é o maior
mérito de um povo. No Brasil, o federalismo não teve um curso histórico feliz34, pois surgiu
de um processo político ultimado num súbito golpe militar; todavia, a evolução constitucional
tem demonstrado que o federalismo ganhou novos matizes, mas, gradativamente, assumindo
uma postura mais centralizadora35, como que acenando com a perspectiva unitária do período
imperial.
E, aqui, é preciso desmitificar o entendimento de que o curso histórico de um institu-
to, isto é, a decantação político-social de um instituto, seja sempre a melhor saída, ainda que,
na maioria das vezes, ele represente o melhor caminho a continuar seguindo. A velha questão
entre o ideal e o real sempre projeta a importância do ôntico sobre deôntico, porquanto o cômo-
do das experiências vivas tende sempre a negar alternativas, quase sempre tachadas de meras
projeções abstratas, quiçá, impossíveis, justamente por serem, por assim dizer, ideais ou idea-
lizadoras demais para levar a sério. A questão é que todo modelo adotado, mesmo com clara
ruptura dos parâmetros até então vigentes, tende também a seguir um curso histórico único, daí
a importância de discutir os modelos idealmente considerados e, com isso, refletir sobre o espa-
ço ocupado/operado pelo curso histórico modelar ainda reinante. Se não é possível transplantar
modelos, com todas as suas virtudes; por outro lado, não é possível afastá-los, pelo menos numa
perspectiva comparativa, quando o modelo corrente, carente de soluções, também projeta ilu-
sões ou esperanças advindas de outras paragens, ainda que elas sejam assentadas com substrato
social diverso e, consequentemente, valores também diversos.
Daí que o flerte com o federalismo dos Estados Unidos da América, ainda no início
do Império, longe de uma ilusão política, acenou para uma nova e pretendida realidade, que,
em dado sentido, podia expressar uma ilusão, mas, também, a esperança de novo curso históri-
co, desejosamente mais profícuo no fortalecimento das instituições políticas brasileiras. Ilusão
mesmo é acreditar que isso ocorreria sem qualquer decurso histórico, como que num passe de
mágica e tudo a partir de um golpe militar. Importação acrítica36? Não se trata disso. A via es-
colhida, como todas elas, depende dos interesses que desejaram firmar. Ocorre que a imagem

34  Aliás, ainda não alcançou o ápice-estabilizador do edifício constitucional, pois, recorrentemente, encontra-se cercado de duras críti-
cas e constantes alterações pontuais, que, justamente pela inexpressividade delas, transmitem o reforço de que algo deve ser mudado
e, portanto, ele é ainda incapaz de atender aos apelos dos entes políticos. Até mesmo engenhosas formas de compensação financeira,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

numa ambiência de acirradas disputas fiscais, como é o exemplo das Transferências Voluntárias da União (TVU), percebe-se que os
arranjos do federalismo centralizador ganham ares de verdadeira barganha política, na qual a dimensão político-partidária rompe o es-
paço da dimensão social-redistributiva na percepção dos recursos destinados à redução dos graves desequilíbrios regionais (SOARES,
Márcia Miranda; NEIVA, Pedro Robson Pereira. Federalism and Public Resources in Brazil: Federal Discretionary Transfers to States.
Brazilian Political Science Review. São Paulo, vol. 5, nº 02, p. 94-116, 2011, p. 106-107), isso porque a dinâmica da discricionariedade
na promoção das TVU faz imperar as decisões que reafirmam a superposição da União em detrimento dos demais entes políticos, tudo
por conta de apoios transitórios, ou mesmo emergenciais, com fundados propósitos políticos, sem uma dinâmica da atuação decisória
decantada em sólidos critérios de gestão pública planejada e, por isso, mais bem preparada para superar os desafios impostos pelo artigo
3º, inciso III, da CF/88. Desse modo, encerra-se mais uma contradição: os modelos de superação de desafios, como que uma peça do
destino, transforma-se um novo desafio, que, se não for maior, reforça a tese da inviabilidade não só do modelo de características balsâ-
micas, mas malogrado, como também de toda a estrutura federal, tal como desponta hodiernamente.
35  Subtraindo-se da análise, evidentemente, os nefastos anos da ditadura militar, porquanto as instituições eram meandradas pelas turbu-
lentas formas de expressão política dos generais das forças armadas, também conhecidas como intervenções, isso apenas para apresen-
tar uma linguagem mais amena quanto à autonomia dos entes políticos.
36  Na linguagem fácil das críticas açodadas: se há discordância, é porque não houve necessária reflexão, na imperiosa pretensão de que
a reflexão propriamente dita apenas decorre da análise do crítico e não do criticado.

123
que reflete no espelho jamais será a mesma, porque simplesmente não se trata da mesma nação.
Ilusão política? Não mesmo. Como ardil político, aí sim, tal como se destaca adiante, revela-se
mais consentâneo com os conchavos da época, aliás, de todas as épocas, nas quais são parteja-
das as grandes transformações politico-administrativas brasileiras.
O desânimo com a monarquia, cujas razões não são difíceis de destacar, inclusive já
ventiladas no tópico anterior, fez desabar os desejos de uma nação republicana, só que isso não
explica muito, pois o ardil decorreu justamente do pano de fundo que sustentou a via adotada
para firmar a República e, claro, o modelo federal. Nesse ponto, vale afirmar que a anedota de
uma nova ordem, com valores republicanos, não passava de um expediente politicamente viável
para preservar os interesses de segmentos importantes da sociedade, notadamente, os grandes
proprietários de terra, pois, numa conjuntura diversa, ainda não se viam capazes de romper,
sem maiores adaptações, a cômoda desigualdade do sistema escravocrata.
Nesse contexto, como que alentado pelas peripécias históricas da política brasileira,
o levante militar, que entronou a República, ganharia gosto pelo poder não apenas na Repú-
blica Velha, cujo reflexo, até os nossos dias, é possível identificar em função dos permanentes
rumores da vigília militar sobre a sociedade civil, o que bem denuncia os ranços da relação
ambígua, no passado, entre republicanismo e democracia37. Um bom exemplo do constante vai
e vem da ciranda militar encontra-se na implantação do Estado Novo, pois, longe de uma nova
expressão federalista, rompendo com os prognósticos constitucionais da autonomia dos Estados
membros, aliás, devidamente decantada nas constituições republicanas anteriores, perseguia um
novo norte na disciplina política do federalismo brasileiro, baseada na maior presença do Estado
na sociedade, firmando, sem maiores pudores, uma postura intervencionista, inclusive por meio
da destacada e conhecida fórmula dos valores, como que arvorando um sentimento patriótico
e nacionalista, que incorporasse a ideia de união nacional e, com isso, minando os núcleos de
oposição, notadamente os regionais38. O mesmo de diga quanto aos anos de chumbo da ditadura
militar. A recorrente atuação militarista nas intermitências da República, variando entre golpes
e abusos institucionais, bem demonstra a ausência dos fundamentos republicanos no seio da so-
ciedade. Como se o regime de tutela da República dependesse de uma mão forte das Forças Ar-
madas39. Afinal, toda liberdade cobra o seu preço, no caso da República, e consequentemente do
modelo federal, parece ser a constante vigília, não apenas civil, sobre os rumos políticos do país.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

37  SILVA, Ricardo. Republicanismo neo-romano e democracia contestatória. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, vol. 19, nº 09, p.
35-51, jun. 2011, p. 36. Notadamente, como um regime não puro, é compreensível que a República comporte, ao longo tempo, o relevo de
teorias políticas hoje consideradas condenáveis, mas, claro, sem perder o norte de um governo (poder político) regido pelas leis. O fato é
que: “[d]a Antiguidade aos dias atuais, o conceito de república não parou de evoluir segundo o contexto em que era pensado. A partir do
século XVII, ela é definida como um regime misto, mas também em oposição à monarquia absoluta. Com os federalistas americanos, a
república se distingue da democracia pela introdução do sistema de representação” (DORTIER, Jean-François. Dicionário de Ciências
Humanas. Tradução Aline Saddi Chaves, Felipe Cabanas da Silva, Ilan Lapyda, Leonardo Teixeira da Rocha, Maria Aparecida Cabanas
e Maria José Perillo Isaac. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, p. 558).
38  CABRAL, Gustavo César Machado. Federalismo, autoridade e desenvolvimento no Estado Novo. Revista de Informação Legislativa.
Brasília, ano 48, nº 189, p. 133-146, jan./mar. 2011, p. 137.
39  De todo modo, após a redemocratização do país, o discurso da intervenção militar, pelo menos na sua ordinária concepção, desvane-
ceu-se; porém, não se pode olvidar, os mecanismos da atuação militar, como que adaptados ao novo processo do jogo político, rendem-se
ao lastro legitimante do parlamento, mas, claro, sem perder a tônica dos seus ideais.

124
4 A INCRÍVEL CAPACIDADE MIMÉTICA DO PATRIMONIALISMO BRASILEIRO

A corrupção e o patrimonialismo não revelam uma relação entre meio e fim. A dinâ-
mica vai além da mera noção de instrumentalidade ou finalidade, isto é, eles são dois velhos
companheiros da experiência histórica brasileira, não há como negar isso: uma dedicada ao
trato fisiológico; o outro, ao deleite institucional, resultando, assim, a seiva no tronco frondoso
da árvore estatal.
Nisso reside o casamento perfeito: a cômoda cumplicidade num consórcio rentável e,
por isso, tentador e ardorosamente defendido pelos agentes representativos dos interesses incon-
fessáveis dos verdadeiros donos do poder40, de forma que toda mudança representa um novo
substrato de adaptações no seio do Estado, mas, claro, ainda são mantidas as mesmas linhagens
do concurso furtivo das benesses estatais. Observa-se, então, a imagem clara de uma figura
nebulosa, volátil, lábil e mutável dentro da estrutura orgânico-funcional do Estado; contudo,
já não cotejando a dinâmica patrimonial do mundo português de outrora, cujos pretensos ecos
ainda soariam, persistentemente, no mundo brasileiro atual41, como se o Brasil herdasse de Por-
tugal sua estrutura social e, com ele, o patrimonialismo, tese, aliás, bastante controvertida, para
não dizer totalmente equivocada42.
As considerações acima denunciam uma visão tradicional sobre o patrimonialismo na
literatura brasileira, inclusive largamente reconhecida pela doutrina nacional. Evidentemente, tal
visão da dominação patrimonial já se encontra distante das premissas teóricas de Max Weber43,

40  Que, evidentemente, não se limita aos agentes do Estado, mas que, através deles, atendem aos reclames escusos da sociedade, notada-
mente dos grandes agentes econômicos do mercado.
41  FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p 35.
Na parte final do livro (p. 823/824), contudo, o autor esclarece, com precisão, a matriz mimética do patrimonialismo nestes termos:
“Enquanto o sistema feudal separa-se do capitalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às transições, às
mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação,
com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consumo, de produção
privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. Vê-se, assim, que Faoro não desconhecia
ou desprestigiava a dinâmica patrimonial como expressão de interesses do mercado, também corrupto, mas, sim, que mirava no Estado
a forma habitual de consagração desses interesses. Seria mesmo uma tolice defender que o gênio de Raymundo Faoro não concebesse
uma promíscua relação engendrada entre o Estado e o mercado, ambos, claro, entregues às práticas corruptivas. Daí, um bom exemplo
de tolice da inteligência brasileira: caso Jessé Souza, que, numa crítica extremada, desconsidera a amplitude compreensiva das ideias
de Faoro, nestes termos: “O que existe é uma dramatização da oposição mercado (virtuoso) e Estado (corrupto) construída como uma
suposta evidência da singularidade histórica e cultural brasileira. […] é apenas o ‘Estado’ que passa a ser percebido como o fundamento
material e simbólico do patrimonialismo brasileiro” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa mani-
pular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 33-34), a despeito de, noutros momentos, promover certeiras críticas contra o autor gaúcho e
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

outros grandes doutrinadores brasileiros. Ora, qual a razão de Raymundo Faoro não conceber a corrupção no mercado? Aliás, o próprio
Jessé Souza admite isso quando aduz sobre o livro de Raymundo Faoro: “[…] sua tarefa é demonstrar o carácter patrimonialista do Esta-
do e, por extensão, de toda a sociedade brasileira” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular
pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 53), então, o mercado estaria excluído em que momento? Não faria parte da sociedade brasileira?
O problema é que a tese da demonização do Estado e da virtuosidade do mercado, decantada em verso e prosa por Jessé Sousa, nessa
equivocada dualidade (p. 91), exige a premissa de que Faoro haveria de isentar o mercado da corrupção, mas isso, a toda evidência, não
encontra amparo na obra de Raymundo Faoro.
42  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 41, 59 e 64.
43  WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Vol. 2. Tradução de Regis Barbosa e Elsabe Barbosa.
4 ed. Brasília: Editora UnB, 2009, p. 255. Mais adiante (p. 263), na perspectiva política do patrimonialismo, destaca o autor: “O comple-
xo patrimonial político não conhece nem conceito de ‘competência’ nem o de ‘autoridade administrativa’ no sentido atual das palavras
[...]. A separação de assuntos oficiais e privados, patrimônio oficial e privado e a correspondente autoridade senhorial dos funcionários
encontra-se apenas razoavelmente realizada no tipo arbitrário [...]”. Noutra parte (p. 306), na perspectiva econômica, na qual revela uma
capacidade mimética do patrimonialismo, o autor pontua: “O patrimonialismo é compatível com a economia de subsistência e com a
economia de troca, com a constituição agrária pequeno-burguesa e a de senhorios territoriais, com a ausência e a existência da econo-
mia capitalista”. Desse modo, a dinâmica doutrinária de Weber não se afigura tão distante dos atuais prognósticos do patrimonialismo.

125
ganhando, assim, uma nova tonalidade, conforme o quadro das experiências históricas44, e, nes-
sa qualidade, desprendendo-se das originárias matrizes discursivas weberianas apresentadas no
início do século XX. Portanto, o patrimonialismo na concepção atual, a toda evidência, em nada
se assemelha com os pressupostos teóricos de outrora; porém, ainda assim, com notórias vicissi-
tudes, não há nada de condenável em ostentar tal terminologia, no que denuncia uma verdadeira
história do conceito, e não o uso acrítico e vazio de uma expressão, mormente quando se tem
consciência da distinção dos significados em função do percurso histórico do conceito, porquanto
a decantação histórica de um termo, num determinado lugar, é digna de consideração e, sobretu-
do, autonomia compreensiva, sem que isso represente qualquer atecnia ou mesmo desrespeito aos
imperativos iniciais de qualquer perspectiva teórica. É dizer: “A história dos conceitos mostra que
novos conceitos, articulados a conteúdos, são produzidos/pensados ainda que as palavras empre-
gadas possam ser as mesmas” 45.
Portanto, as mesmas palavras, ventiladas em momentos diferentes, relacionadas a ex-
periências distintas, não podem comportar a mesma dimensão semântica46, de forma que, não
raras vezes, as mesmas palavras podem denotar realidades conceituais bem diversas, isso por-
que “[o] significado de um conceito não pode ser alcançado independentemente do seu uso na
sociedade e, por isso, deve-se considerar o contexto em que é utilizado e o universo temporal
no qual se insere” 47.
Superados esses dilemas, que não meramente conceituais, e que tanta importância foi
tributada por Jessé Souza, inclusive com ácida crítica aos escritos de Raymundo Faoro48, vale
mencionar que as propriedades miméticas do patrimonialismo brasileiro49 remontam de um lon-
go curso histórico, atravessando todos os períodos da organização política do Estado, aliás, de
forma totalmente indene, para não dizer que, sem qualquer exagero, vem ostentando posições
cada vez mais fortes e expansivas nas culminâncias políticas da República.
Não importa, se Monarquia ou República, se Estado Unitário ou Federado, o patrimo-

44  KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 138.
45  KOSELLECK, Reinhardt. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos. Tradução de Manoel Luís Salgado Guimarães.
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 05, nº 10, p. 134-146, 1992, p. 140.
46  KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2007, p. 50.
47  KIRSCHNER, Tereza Cristina. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de História. Brasília, vol. 15, nº 01/02, p. 49-61,
2007, p. 51.
48  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 63. É lamen-
tável afirmar que Jessé de Souza não empreende qualquer dinâmica ao texto criticado e, nem mesmo esclarece, porque isso seria possí-
vel, que nem todo o uso da palavra patrimonialismo, antes e hoje, se une inexoravelmente a uma realidade histórica já distante, portanto
no início do século passado, ainda que Raymundo Faoro assim tenha feito, porque é simplesmente anular qualquer crítica sociológica
por meio de mera gincana conceitual, o que não é algo aceitável.
49  Aliás, a ciranda histórica do patrimonialismo denuncia isso, passando por todos os sistemas econômicos, despontando uma autonomia
operacional dentro de qualquer estrutura de poder, alavancando e firmando interesses, por vezes paralelos ou simplesmente convergen-
tes, na tessitura dos projetos políticos do Estado. A dimensão mimética do patrimonialismo é facilmente reconhecida nesta demorada
transcrição: “Enquanto o sistema feudal separa-se do feudalismo, enrijecendo-se antes de partir-se, o patrimonialismo se amolda às
transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do modelo externo, concentrando no corpo estatal os mecanismos de
intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle do crédito, de consu-
mo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia” (FAORO, Raymundo. Os
Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 823-824).

126
nialismo sempre encontra ressonância no estamento político, na contumaz orquestra do poder
político e, daí, adentrando nos demais segmentos direcionais do Estado. Não há novidade nis-
so50. O que soa inusitado é defender a tese de que o patrimonialismo é um defunto dessepulto
do período imperial, quando, em verdade, ele apresenta ainda maior vivacidade na atualidade,
portanto, mais vivo que nunca e mais letal que outrora. A questão é ele atua com novas pos-
sibilidades práticas na ciranda institucional do Estado para firmar, além dos limites inerentes
do ordinário processo político-administrativo, os interesses privados. Uma coisa é atentar para
importância do lobby, regulamentado ou não, que existe em qualquer país; outra, aliás, bastante
diversa, é enxergar nas relações político-administrativas uma contínua teia de instrumentos
que extrapola o processo político decisório, constituindo, ela mesma, todo um fluxo de benesses
estatais que perpetuam uma forma totalmente desigual de concepção das políticas públicas,
enfim, da ação política do Estado51.
Não se trata propriamente de um estamento tecnoburocrático52 idealizado por Raymun-
do Faoro, até porque não há um estilo de vida comum numa ambiência de prestígio compartilha-
do53, mas a compreensão de que novas formas de implicação prática da ação corruptiva evoluem
e, com isso, intensificam-se na ação política, inclusive na mesma medida em que as relações polí-
tico-institucionais também evoluem no ordinário curso das vicissitudes das estruturas do Estado.
Os cotejos do patrimonialismo54 são bem diversos, inclusive assumindo posições, não
raras vezes, incompreendidas no universo das relações sociais, como que imperceptíveis num
primeiro momento, porém, com um pouco de percuciência, percebe-se como a dinâmica da
corrupção no meio social assume instrumentais que vão dos extremamente simplórios aos mais
complexos, portanto, que vão das hierarquias da convivência comunitária, pretensamente invi-
síveis e baseadas na intimidade social55, aos parâmetros decisórios centrais das grandes ques-

50  Com bem demonstra esta passagem doutrinária: “O patrimonialismo, organização política básica, fecha-se sobre si próprio com o es-
tamento, de caráter marcadamente burocrático. Burocracia não no sentido moderno, como aparelhamento racional, mas da apropriação
do cargo – o cargo carregado de poder próprio, articulado com o príncipe, sem a anulação da esfera própria de competência” (FAORO,
Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3 ed. São Paulo: Editora Globo, 2001, p. 102). Ora, essas ca-
racterísticas independem dos arranjos organizacionais e/ou administrativos da estrutura funcional do Estado, muito embora, a depender
do modelo adotado, elas se manifestam de forma ainda mais clara nas entranhas político-administrativas do Poder Público.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

51  Tais reflexões faz empreender a noção de que: “A ‘crise do Estado’, por mais paradoxal que seja, exige uma reflexão mais aprofundada
sobre o Estado. Reflexão esta que saiba lidar com a questão da unidade política tanto quanto com a democracia, a inclusão do povo e
do conflito na compreensão do fenômeno estatal, temas que o modelo liberal do direito público não apenas não soube incorporar no
seu discurso, como busca ignorar solenemente até hoje” (BERCOVICI, Gilberto. As possibilidades de uma teoria do Estado. Revista da
Faculdade de Direito da UFMG. Belo Horizonte, nº 49, p. 81-99, jul./dez. 2006, p. 98-99).
52  DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 45.
53  SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 56.
54  Aqui, é preciso um ligeiro esclarecimento: não se confunde o patrimonialismo com outras formas de relação promíscua na ação polí-
tica, não é isso, o que se defende é que ele sempre alcança meios de imprimir uma dinâmica corruptiva através de novos instrumentais,
daí o formidável recurso de sua capacidade mimética.
55  DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p.
192. O autor equivoca-se, contudo, quando apregoa a existência de “universo puritano dos norte-americanos” (p. 210 e 227), como se
a realidade e seus dilemas, especialmente os de ordem moral, notadamente a figura do pretensamente institucionalizado jeitinho, não
fossem, por assim dizer, universais (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São
Paulo: LeYa, 2015, p. 88).

127
tões político-econômicas do Estado56. Obviamente, as distinções hierárquicas são geralmente
autorizadas pela dinâmica da especialização funcional57, mostrando que a linha divisória entre
o que pode e não pode ser feito na convivência diária, numa perspectiva pretensamente legi-
timadora, encontra apoio no cabedal objetivo da dignidade profissional e, mais adiante, em
outras fontes de recursos, que não se limitam propriamente aos de ordem pecuniária. É dizer,
na clássica síntese damattiana, “[c]onfie sempre em pessoas e em relações (como nos contos de
fadas), nunca em regras gerais ou em leis universais. Sendo assim, tememos (e com justa razão)
esbarrar a todo momento com o filho do rei, se não com o próprio rei” 58.
Todavia, uma ressalva é necessária, senão os vislumbres da capacitação funcional se-
riam condenáveis em per si. Ora, o uso do capital cultural, como fator de destaque no meio
social, não há nada de condenável, contanto que esse pretendido destaque expresse apenas a im-
portância da atuação funcional no meio social, o dilema exsurge quando tal destaque funcional,
que existe independentemente da análise subjetiva do seu titular, conceba um meio para superar
os ordinários parâmetros de direitos e deveres na ordem social.
Exigir o mesmo tratamento entre pedreiro e engenheiro, no conjunto de suas relações
funcionais, afigura-se, além de um dever legal, algo plenamente compaginável com as exigên-
cias da convivência comunitária, agora, exigir que a sociedade atribua a mesma importância
entre eles, ainda que isso seja desejável, no universo da atuação funcional individualmente
considerada, sem sombra de dúvida, é cair na quimera igualitarista absoluta entre os homens,
que são verdadeiramente diferentes entre si e sem que isso constitua o verdadeiro sopro de sub-
jugação da humanidade, menos ainda o que perfaz ou direciona o sistema ritual brasileiro entre

56  Nesse ponto, o presidencialismo de coalização, como verdadeiro fator de instabilidade na dinâmica relação político-institucional bra-
sileira, exerce um papel relevante na construção dos instrumentais da corrupção no seio da República, isso porque tais instrumentais,
devidamente operados na relevante questão da contratação pública, nas concessões etc., são permeados por um conjunto de fatores
políticos que permitem o trânsito dos agentes incumbidos na drenagem dos recursos públicos em benefício do mercado. Na tensão ine-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

vitável do jogo político e da tentativa de manutenção no poder, sem sombra de dúvida, o mote da governabilidade representa a chave dos
arranjos político-econômicos, nos quais são perfilhados, contínua e intransigentemente, os verdadeiros interesses do patrimonialismo.
“Além disso, a capacidade de formar maiorias estáveis e a necessidade de recorrer a coalizões não são exclusivamente determinadas
pela regra de representação, nem pelo número de partidos, mas também pelo perfil social dos interesses, pelo grau de heterogeneidade
e pluralidade na sociedade e por fatores culturais, regionais e linguísticos, entre outros, que não são passíveis de anulação pela via do
regime de representação” (ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro.
Dados – Revista de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 31, nº 01, p. 05-34, 1988, p. 13-14). Por outro lado, mesmo que se considere
a importância de que os Poderes sejam fortes, conforme a tônica da independência e harmonia nas culminâncias do poder, bem como
uma consagrada cultura de accountability institucional (PEREIRA, Carlos; MELO, Marcus André. The surprising success of multi-
party presidentialism. Journal of Democracy. Baltimore, vol. 23, nº 03, p. 156-170, July 2012, p. 162), é pouco provável que os dilemas
da coalizão não repercutam na manutenção dos instrumentais da corrupção na estrutura político-administrativa do Estado. O sistema
político, a toda evidência, deve ser repensado.
57  DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997,
p. 203.
58  DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997,
p. 216.

128
a casa e a rua: o nosso mundo e o outro mundo no espaço de atuação entre pessoa e indivíduo59.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando as ligeiras ponderações apresentadas acima, especialmente por questionar


o tratamento linear dispensado à formação das instituições políticas brasileiras, concluímos que:
(a) a República, decorrente de um golpe militar, representou uma via cômoda de con-
sagrar os interesses das elites político-econômicas, uma vez que o definhar da Monarquia, para
além das consagrações abstratas do republicanismo, poderia abrir caminho para movimentos
políticos mais consistentes, isto é, mais radicais na transformação da sociedade brasileira, ainda
fortemente abalada pela tardia abolição dos escravos;
(b) o conceito de federalismo, foi objeto de demoradas discussões ainda na Assembleia
constituinte de 1823, inclusive com forte apelo ao modelo norte-americano, que se firmou com
o advento da República; todavia, a precisa identificação do seu significado, no que afastava do
conceito de confederação, foi obra dos movimentos descentralizadores, já na segunda metade
do século XIX, da elite política imperial;
(c) a federação consubstanciava uma forma de promover os interesses das elites po-
líticas regionais em face do Estado unitário, que marcava a centralização do poder político
no período monárquico, porém, mais importante que a discussão teórica desse modelo, era
compreender os interesses que ele carreava na estrutura político-administrativa das províncias,
pois, não raras vezes, o levante da descentralização mais serviu para podar a gestão local que
propriamente para robustecer a autonomia política dos Estados; e
(d) o patrimonialismo possui um curso histórico próprio na literatura nacional, de for-
ma que, hoje, ligá-lo às premissas teóricas weberianas representa um vexado equívoco e, claro,
desconsidera a história desse conceito no Brasil, que não se baseia numa mera relação estamen-
tal, promovendo diversas adaptações das práticas corruptivas em função das vicissitudes nas
instituições político-administrativas, o que comprova sua inacreditável capacidade mimética.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

59  DAMATTA, Roberto. A Casa & Rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 61. Deve-se
considerar, por ser uma questão patente, no que circunstancia uma importante ressalva, que a relação entre pessoa e indivíduo, tal como
destaca pelo autor, nada particulariza a realidade brasileira, porquanto essa dualidade pode ser aplicada, com maior ou menor exten-
são, a qualquer país. Nesse ponto, transcreve-se uma ligeira crítica, nestes termos: “Atualmente, essa tese da ‘singularidade cultural’
brasileira, pensada de modo absoluto como um povo com características únicas e incomparáveis – para o bem e para o mal – é como
uma ‘segunda pele’ para todos os brasileiros, intelectuais ou não. Essa singularidade é constituída pela junção e combinação das noções
descritas acima de personalismo e patrimonialismo” (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa mani-
pular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 29). Acontece que, isso precisa ficar claro, a compreensão do patrimonialismo, pelo menos no
atual contexto e do conceito que dele se extrai, não congrega qualquer relação com primitivo, ainda que mantenha uma simbiose direta
com a corrupção e as relações de pessoalidade e, nesse sentido, pode tranquilamente existir em qualquer meio social, o que pode variar,
evidentemente, é a extensão e o instrumental utilizado para esse fim. A dimensão reflexiva do patrimonialismo não se limita, faz muito
tempo, às ideias de Raymundo Faoro. Portanto, não é possível preservar as noções pretéritas sobre o conceito para fazer as críticas com
realidade hoje, fato que, infelizmente, parece ocupar boa parte do livro desse autor (SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira:
ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: LeYa, 2015, p. 25).

129
6 REFERÊNCIAS

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ABSTRACT
The article discusses the origin of the Republic and the Brazilian fed-
eralism, highlighting a historical course of contradictions between the
theory of political institutions, their models and purposes, with the re-
ality of institutions stamped with the advent of the Republic of 1889. In
addition, subject for debate the interference of patrimonialism in pro-
moting political action, as historical reality since the monarchy, accen-
tuating its mimetic capacity in the face of changes in institutions or
models of public management, which exploits, with wide success, the
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

corrupting practices in organic-functional structure of state.


Keywords: Republicanism. Federalism. Patrimonialism. Corruption.

132
SEXO E PODER: A BIOPOLÍTICA DE MICHEL FOUCAULT

Patrícia Marques Freitas1


Ana Christina Darwich Borges Leal2

RESUMO
O presente trabalho visa estudar a biopolítica sobre a ótica da sexuali-
dade. Por isso foi feito um recorte específico na obra de Foucault, nota-
damente, sobre A história da sexualidade, v 1, A vontade de saber, na
qual o autor expõe o dispositivo do sexo como um dos mecanismos de
controle da população, igualmente como a medicina também se apre-
sentou como uma tecnologia de poder. Assim, a psiquiatrização do sexo
e os programas de eugenia passam a ser as duas grandes inovações da
tecnologia do sexo da segunda metade do século XIX, o que contribui
para a nova era do biopoder.
Palavras-chave: Sexo. Poder. Biopoder. Biopolítica. Direitos humanos.

1 INTRODUÇÃO

Centrando a análise da biopolítica e do biopoder sobre o sexo, em História da sexuali-


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

dade, mais precisamente em A vontade de saber, Foucault questiona a visão comum a respeito
da repressão sexual, ele propõe outra linha investigativa na qual o sexo aparece como dispositi-

1  Doutoranda em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Mestre em Direito Constitucional pela Ponti-
fícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pelo Centro Universitário do Pará, Professora,
Pesquisadora e Advogada, associada ao Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e pesquisadora do grupo de “Filosofia Michel
Foucault” da PUC/SP e do grupo “Sujeito, normalização e acesso à justiça” do CESUPA, atuando principalmente nas seguintes áreas:
Filosofia do Direito, Biodireito/Bioética e Direitos Humanos.
2  Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahía (UFBA); Mestre e Doutora em Ciências Humanas e Sociais pelo Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ; Professora do Programa de Pós Graduação em Direito do Centro Universitário
do Pará - CESUPA.

133
vo de controle e em que não há exclusão pela repressão, mas pela patologização.
Aparecem as perversões sexuais estudadas pela medicina e cada uma com sua caracte-
rística específica, a família burguesa e as preocupações com a mulher histérica, a criança ona-
nista, a perpetuação da prole forte e saudável, elementos que formavam o racismo biologizante
e que marcaram as campanhas de saúde da época.
A medicina interviu na intimidade dos casais e passou a definir como se comportar,
como viver a sexualidade, tudo para garantir o controle da vida e da vida para a produção, que
mantivesse a roda capitalista sempre girando.

2 A VONTADE DE SABER

No percorrer do caminho que Foucault trilhou para tratar da biopolítica tem-se em


seguida a História da sexualidade, V 1, A vontade de saber. Nessa obra Foucault enfatiza a
importância do controle do sexo por meio, inclusive da medicina, como ponto chave para os
mecanismos e técnicas de controle da sociedade e, principalmente, dos corpos dos indivíduos.
No texto sobre o nascimento da medicina social, havia uma necessidade de controle
dos indivíduos com o emprego de técnicas que visavam à saúde de determinada comunidade,
técnicas essas que obedeciam a esquemas de padronização. A análise, nesse momento, se refere
ao sexo.
É preciso saber de antemão que no século XVIII, o surgimento do fenômeno da “popu-
lação”, como problema econômico e político, foi uma novidade para as técnicas de poder. Desse
modo, os governos teriam que lidar com a população e tudo que estivesse relacionado com
ela, que eram a natalidade, morbidade, expectativa de vida, fecundidade, saúde, alimentação e
moradia. Portanto, no núcleo do problema econômico e político que a população representa en-
contra-se o sexo. Ora, é preciso saber e analisar a taxa de natalidade, a idade em que as pessoas
casam, os nascimentos fora e dentro do casamento, a idade em que se inicia a vida sexual, a
frequência com que as pessoas mantêm relações sexuais, as técnicas de fecundidade e de este-
rilização, o efeito do celibato, a incidência das práticas contraceptivas.
Para Foucault (2015, p.29):

É verdade que já há muito tempo se afirmava que um país devia ser povoado se quisesse
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ser rico e poderoso. Mas é a primeira vez em que, pelo menos de maneira constante,
uma sociedade afirma que seu futuro e sua fortuna estão ligados não somente ao
número e à virtude dos cidadãos, não apenas às regras de casamentos e à organização
familiar, mas à maneira como cada qual usa seu sexo. Passa-se das lamentações rituais
sobre a libertinagem estéril dos ricos, dos celibatários e dos libertinos para um discurso
em que a conduta sexual da população é tomada, ao mesmo tempo, como objeto de
análise e alvo de intervenção.

Nas sociedades modernas o sexo não ficou obscurecido como antes, o que ocorre é que
ele é valorizado como o segredo, e do qual se fala sempre. O objetivo era reduzir ou excluir as

134
práticas que não tivessem por finalidade a reprodução. Com isso, os discursos em torno do sexo
diziam não às atividades infecundas, banindo os prazeres paralelos, assim, multiplicaram-se as
condenações judiciárias das perversões menores, anexou-se a irregularidade sexual à doença
mental. Dessa maneira, definiram-se normas do desenvolvimento sexual e se caracterizaram
todos os possíveis desvios, organizando-se controles pedagógicos e tratamentos médicos para
qualquer anormalidade, portanto, a hipótese foucaultiana era a de que toda essa ordenação e
adequação em torno do sexo visava proporcionar uma sexualidade economicamente útil e poli-
ticamente conservadora.

Tanto na ordem civil como na ordem religiosa o que se levava em conta era um
ilegalismo global. Sem dúvida, o “contra a natureza” era marcado por uma abominação
particular. Mas era percebido apenas como uma forma extrema do “contra lei”; também
infringia decretos tão sagrados como os do casamento e estabelecidos para reger a
ordem das coisas e dos seres. As proibições relativas ao sexo eram, fundamentalmente,
de natureza jurídica. A “natureza”, em que às vezes se apoiavam, era ainda uma espécie
de direito. Durante muito tempo os hermafroditas foram considerados criminosos, ou
filhos do crime, já que sua disposição anatômica, seu próprio ser, embaraçava a lei que
distinguia os sexos e prescrevia sua conjunção. (FOUCAULT, 2015, p.42).

A concepção de que algo era natural serviu para a base do que seria aceito e o que não
seria no que dizia respeito ao sexo, de modo que tudo que desviasse do considerado natural era
adoecido. Assim, a questão não era repressiva, mas de definição do que era saudável e do que
era patológico. Nesse sentido, a medicina adentrou com grande aparato nos prazeres do casal,
criando patologias orgânicas, funcionais ou mentais, provenientes das práticas sexuais ditas
incompletas, classificou com minúcias todas as formas de prazeres anexos e relacionou-os ao
desenvolvimento e às perturbações do instinto.
Com isso:

Há os exibicionistas de Laségue, os fetichistas de Binet, os zoófilos e zooerastas de


Krafft-Ebing, os automonossexualistas de Rohleder; haverá os mixoscopófilos, os
ginecomastos, os presbiófilos, os invertidos sexoestéticos e as mulheres dispaurênicas.
Esses belos nomes de heresias fazem pensar em uma natureza o suficiente relapsa para
escapar à lei, mas autoconsciente o bastante para ainda continuar a produzir espécies,
mesmo lá onde não existe mais ordem. A mecânica do poder que ardorosamente
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

persegue todo esse despropósito só pretende suprimi-lo atribuindo-lhe uma realidade


analítica, visível e permanente: encrava-o nos corpos, introduz-lo nas condutas,
torna-o princípio de classificação e de inteligibilidade e o constitui em razão de ser
e ordem natural da desordem. Exclusão desses milhares de sexualidades aberrantes?
Não, especificação, distribuição regional de cada uma delas. Trata-se, através de sua
disseminação, de semeá-las no real e de incorporá-las ao indivíduo. (FOUCAULT,
2015, pp.48 e 49).

Aqui se retorna aos dois grandes modelos de organização médica que marcaram a his-

135
tória do ocidente, que foram o modelo que resultou do problema da lepra e o modelo utilizado
para controlar a peste. Nesse caso, mais especificamente, se verifica o modelo da peste, pois não
há a expulsão do indivíduo doente, sua exclusão se dá de outra forma, por meio da classificação
de sua condição. Ele é definido como sendo o homossexual, o transexual, o hermafrodita, o
exibicionista, o voyeur, o que lhe confere um lugar determinado de exclusão dentro da própria
sociedade, dessa forma que o controle ocorre.
De acordo com Foucault, é preciso abandonar a ideia de que as sociedades industriais
modernas criaram um momento de maior repressão sexual. Houve na verdade uma profusão
de sexualidades heréticas, bem como o surgimento de um dispositivo bem diferente da lei,
que assegurava a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades dis-
paratadas. Assim, nunca houve tantos centros de poder, tanta atenção manifesta e prolixa,
nem tantos focos onde estimular a intensidade dos prazeres e a insistência dos poderes para
se disseminarem mais além.
No século XIX surge uma ciência sexual (scientia sexualis), conhecida por sexualida-
de, em que se dava uma roupagem científica ao saber relacionado ao sexo. Assim havia duas
frentes de estudo sobre o sexo, uma biológica, fundada na reprodução e em uma normatividade
científica geral, e, a outra ligada à medicina. Com base nisso, Foucault revela que o sexo não foi
somente objeto de sensação e prazer, de lei ou de interdição, mas também de verdade e falsida-
de, tendo se constituído em objeto de verdade.
A história da sexualidade deve ser vista sob a ótica da história dos discursos, o que se
procurava com a ciência sexual era a produção de sua verdade. A sexualidade foi dominada por
processos patológicos, que solicitavam intervenções terapêuticas ou de normalização. Foucault
define alguns dos mecanismos da discursividade científica utilizados pela sexualidade, são eles,
a técnica de escuta, postulado de causalidade, princípio de latência, regra da interpretação e
imperativo de medicalização.

3 DISPOSITIVO DE SEXUALIDADE

Foucault entende que o estudo a respeito das relações históricas entre o poder e o dis-
curso sobre o sexo deve desconsiderar uma representação jurídica e negativa do poder, por isso,
a proposta é que não se pense o poder em termos de lei, de interdição, de liberdade e de sobera-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

nia. Assim, para o filósofo, nas sociedades modernas o poder não regeu a sexualidade ao modo
da lei e da soberania. Nesse sentido, a medida que se assume esta proposta, ou seja, conceber
uma interpretação do poder sem princípios implícitos no sistema do direito e na forma da lei, se
passa a considerar assim, outra teoria do poder, outra concepção do poder, em que o sexo não
tem lei e o poder não tem rei.
Dessa forma, para Foucault (2015, pp.100 e 101), o poder:

Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a multiplicidade de

136
correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua
organização; o jogo que, através de lutas e afrontamentos incessantes, as transforma,
reforça, inverte; os apoios que tais correlações, forças encontram umas nas outras,
formando cadeias ou sistemas, ou ao contrário, as defasagens e contradições que
as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou
cristalização institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas
hegemonias sociais. A condição de possibilidade do poder, em todo caso, o ponto de
vista que permite tornar seu exercício inteligível até em seus efeitos mais periféricos
e, também, enseja empregar seus mecanismos como chave de inteligibilidade do
campo social não deve ser procurada na existência primeira de um ponto central,
num foco único de soberania de onde partiriam formas derivadas e descendentes; é
o suporte móvel das correlações de forças que, devido a sua desigualdade, induzem
continuamente estados de poder, mas sempre localizados e instáveis. Onipresença do
poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível unidade, mas
porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda relação entre
um ponto e outro. O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo,
de inerte, de autorreprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas
essas mobilidades, encadeamento que se apoia em cada uma delas e, em troca, procura
fixá-las. Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição nem
uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado
a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada.

Assim, Foucault inverte a fórmula e diz que a política é a guerra prolongada por outros
meios. Portanto, o poder deve ser entendido a partir das seguintes características: 1) ele não é
algo que se adquira, ele se exerce em meio a relações desiguais e móveis; 2) as relações de po-
der são imanentes a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimento,
relações sexuais), são os efeitos dos desequilíbrios e desigualdade que se produzem nestas rela-
ções; 3) além disso, o poder vem de baixo, “isto é, não há, no princípio das relações de poder, e
como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e os dominados, dua-
lidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada vez mais restritos até as profundezas
do corpo social,” (FOUCAULT, 2015, p.102); 4) as relações de poder são ainda, e ao mesmo
tempo, intencionais e não subjetivas; assim, para Foucault, o poder não resulta da escolha ou da
decisão de um único indivíduo, nem de uma equipe que preside sua racionalidade, nem de uma
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

casta que o governe, nem de grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem daqueles que
tomam as decisões econômicas mais importantes; 5) finalmente, outra característica é que onde
há poder há resistência.
Contudo, tratando do tema dos dispositivos ligados à sexualidade, Foucault estabelece
que a partir do século XVIII, surgem quatro grandes conjuntos estratégicos que desenvolvem
dispositivos específicos de saber e poder sobre o sexo, que são a histerização do corpo da
mulher; a pedagogização do sexo da criança; a socialização das condutas de procriação e a
psiquitrização do prazer perverso. Ao longo do século XIX, aumenta a preocupação em torno
do sexo e dessas quatro figuras de saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal

137
malthusiano e o adulto perverso.
Com isso, a respeito das perversões, Foucault (2015, pp.128 e 129) revela que:

A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na tecnologia do sexo,


as duas grandes inovações da segunda metade do século XIX. Inovações que se
articulavam facilmente, pois a teoria de “desgenerescência” permitia-lhes referirem-se
mutuamente num processo sem fim; ela explicava de que maneira uma hereditariedade
carregada de doenças diversas – orgânicas, funcionais, pouco importa – produzia,
no final das contas, um perverso sexual (faça-se uma busca na genealogia de um
exibicionista ou de um homossexual e se encontrará um ancestral hemiplégico, um
genitor tísico ou um tio com demência senil): mas explicava, também, de que modo
uma perversão sexual induzia um esgotamento da descendência – raquitismo dos
filhos, esterilidade das gerações futuras.

Foucault é persistente ao dizer que não se tratava de uma teoria, a ideia de perver-
são-hereditariedade-degenerescência constituiu a matriz das novas tecnologias do sexo. Essa
concepção foi amplamente implantada. Toda uma prática social se pautou sobre o racismo de
Estado, foi assim que se usou a psiquiatria, a jurisprudência, a medicina legal, as instâncias de
controle social, a vigilância das crianças perigosas ou em perigo, todas baseadas no sistema
perversão-hereditariedade-desgenerescência, dando a essa tecnologia do sexo um poder sem
precedentes.

Foi na família burguesa, ou aristocrática, que se problematizou inicialmente a


sexualidade das crianças ou dos adolescentes; e nela foi medicalizada a sexualidade
feminina; ela foi alertada, primeiramente, para a patologia possível do sexo, a urgência
em vigiá-lo e a necessidade de inventar uma tecnologia racional de correção. Foi ela
o primeiro lugar de psiquiatrização do sexo. Foi quem entrou, antes de todas, em
eretismo sexual, dando-se a medos, inventando receitas, pedindo o socorro das técnicas
científicas, suscitando, a fim de repeti-los para si mesma, discursos inumeráveis.
A burguesia começou considerando que o seu próprio sexo era coisa importante,
frágil tesouro, segredo de conhecimento indispensável. A personagem investida
primeiramente pelo dispositivo de sexualidade, uma das primeiras a ser sexualizada,
foi, não devemos esquecer, a mulher ociosa, nos limites do mundo – onde sempre
deveria figurar como valor – e da família, onde lhe atribuíam novo rol de obrigações
conjugais e parentais: assim apareceu a mulher nervosa, sofrendo de vapores; foi aí
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

que a histerização da mulher encontrou seu ponto de fixação. Quanto ao adolescente,


desperdiçando em prazeres secretos a sua futura substância, e à criança onanista que
tanto preocupou médicos e educadores, desde o fim do século XVIII até o fim do
século XIX, não era o filho do povo, o futuro operário, a quem se deveria ensinar as
disciplinas do corpo; era o colegial, a criança cercada de serviçais, de preceptores e
de governantas, e que corria o risco de comprometer menos uma força física do que
capacidades intelectuais, que tinha o dever moral e a obrigação de conservar, para
sua família e sua classe, uma descendência sadia. (FOUCAULT, 2015, pp.131 e 132).

O que se percebe, por meio dos estudos de Foucault, é que muitos dos temas ligados

138
aos hábitos de casta da nobreza aparecem de novo na burguesia do século XIX, mas sob o viés
de preceitos biológicos, médicos ou eugênicos. As preocupações em juntar os casais em laços
matrimoniais, não estavam somente nas promessas de herança, imperativos econômicos e re-
gras de homogeneidade social, mas também nas ameaças da hereditariedade, ou seja, os genes
que seriam herdados de cada parceiro.
Outro objetivo que reforçava essas preocupações era o projeto de expansão infinita da
força, do vigor, da saúde e da vida, propiciando o crescimento e estabelecimento da hegemonia
burguesa. Como prova:

Testemunhos disso são as obras publicadas em número tão grande, no fim do século
XVIII, sobre a higiene do corpo, a arte da longevidade, os métodos para ter filhos
de boa saúde e para mantê-los vivos durante o maior tempo possível, os processos
para melhorar a descendência humana; eles atestam, portanto, a correlação entre essa
preocupação com o corpo e o sexo e um certo racismo. Mas este é bem diferente do
manifestado pela nobreza, ordenado em função de fins essencialmente conservadores.
Trata-se de um racismo dinâmico, de um racismo da expansão, embora só encontrado
ainda em estado embrionário e tendo tido que esperar até a segunda metade do século
XIX para dar os frutos que acabamos provando. (FOUCAULT, 2015, p.137).

Consubstanciando o projeto eugênico, a defesa do vigor físico e da vida se restringia


aos considerados os “melhores” da sociedade, que representavam uma elite branca. É nesse
momento da obra (A vontade de saber), que Foucault adentra de maneira mais clara no tema da
biopolítica.

4 A ERA DO BIOPODER

De forma concreta, o poder sobre a vida se desenvolveu a partir do século XVII, ca-
racterizado por duas formas principais: uma que se focou no corpo como máquina, ou seja,
no adestramento do corpo, na ampliação de suas habilidades, na extorsão de suas forças, no
crescimento de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes
e econômicos, sendo tudo isso assegurado por procedimentos de poder assinalados pelo que
Foucault chama de disciplinas anátomo-políticas do corpo humano.
A segunda forma principal de poder sobre a vida, que surge na metade do século
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

XVIII, se concentrou na figura do corpo-espécie, em que havia a preocupação com os nas-


cimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, e com todas as
condições que podem fazer esses níveis variar, assim, são assumidos uma série de intervenções
e controles entendidos como reguladores formando uma biopolítica da população.
Desse modo, são dois polos de atuação que constituem o biopoder, de um lado as dis-
ciplinas do corpo e de outro as regulações da população, é a instalação durante a época clássica,
da organização do poder sobre a vida. Período em que há o desenvolvimento de disciplinas
diversas: escolas, colégios, casernas, portanto, em que surgem numerosas técnicas para se obter

139
a sujeição dos corpos e o controle das populações, que inaugura, então, a era de um biopoder.
Para a tese foucaultiana, esse biopoder foi primordial para o desenvolvimento do capi-
talismo, que só se estabeleceu com a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção
e ainda, pela adequação dos fenômenos que surgem na nova ideia de população aos processos
econômicos. Nesse propósito, foram necessárias as instituições de poder, que garantiam a ma-
nutenção das relações de poder; bem como, as técnicas de poder que se faziam presentes em
todos os níveis do corpo social, que foram utilizadas por vários tipos de instituições: a família,
o exército, a escola, a polícia, a medicina individual ou a administração das coletividades.
Com isso, Foucault (2015, p.154) designa a biopolítica como:

O que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos,
e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana; não é que a vida
tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem; ela lhe
escapa continuamente. Fora do mundo ocidental, a fome existe numa escala maior do
que nunca; e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e, em todo
caso do que antes do nascimento da microbiologia. Mas o que se poderia chamar de
“limiar de modernidade biológica” de uma sociedade se situa no momento em que a
espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas.

Sobre a sociedade normatizadora, Foucault (2015, p.156) assim se pronuncia:

Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a
desaparecer; mas que a lei funciona cada vez mais como norma, e que a instituição
judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos
etc.) cujas funções são sobretudo reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. Por referência às sociedades
que conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão jurídica;
as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução Francesa, os códigos
redigidos e reformados, toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem
iludir-nos: são formas que tornam aceitável um poder essencialmente normalizador.

Portando, o sistema normalizador foi utilizado como mais uma instituição que visa
ajustar a vida e as condições que derivam da vida em sociedade, como técnica de poder que dis-
ciplina e regula, a fim de os pilares do capitalismo possam se justificar e se desenvolver. Assim,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

as leis aparecem como normalizadoras da vida, por isso, são criadas leis que abarcam todas as
relações que existem na humanidade, isso na sociedade moderna e ocidental.
Nesse sentido, Foucault faz uma crítica aos direitos humanos, dizendo que contra esse
poder acima descrito, a luta que se faz se apoia exatamente sobre aquilo no que ele investe, ou
seja, na vida e no homem enquanto ser vivo. As reivindicações se dão em torno da vida, enten-
dida como os direitos fundamentais. Assim, a vida como objeto político passa a ser reivindicada
e provoca uma luta contra o sistema que tenta controlá-la. Para Foucault, ainda que se façam
afirmações de direito: direito à vida, ao corpo, à saúde, à felicidade, à satisfação das necessida-
des, no fundo, o objeto das lutas políticas seria a vida.

140
Finalmente, sobre o racismo que se forma nesse regime biopolítico, um racismo biolo-
gizante, toda a política do povoamento, da família, do casamento, da educação, da hierarquiza-
ção social, da propriedade e todas as intervenções ao corpo, na saúde, receberam, portanto, uma
preocupação em se proteger a pureza do sangue e priorizar a raça pura.
Para Foucault, o nazismo, essa ordenação eugênica da sociedade, que comportava a
extensão e a intensificação dos micropoderes, a pretexto de estatização ilimitada, era acompa-
nhada da exaltação do sangue superior, resultando no genocídio dos outros e o risco de expor
a si mesmo a um sacrifício total, produzindo assim, um dos maiores massacres da história da
humanidade.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao contrário do que se pensa, o sexo, nas sociedades modernas, não foi sinônimo de
repressão, pois nunca se falou tanto sobre o sexo, a diferença é que ele passou a ser estudado
sobre o viés científico. A ciência sexual, ou sexualidade separou o que era natural do patológico,
foram criadas nomenclaturas distintas para definir as perversões sexuais, tudo se fez para que o
objetivo do sexo fosse a procriação, esse era seu fim, o que estivesse fora disso era considerado
desperdício ou doentio.
Nesse sentido, fica clara a tecnologia de controle por meio do sexo, momento em que
Foucault trata do poder, não como algo que se possa adquirir, mas como uma situação estratégi-
ca complexa numa sociedade determinada, o poder vem de baixo, não obedece a uma hierarquia
de cima para baixo, ele é horizontal, o poder está na relação e é imanente a todo tipo de relação,
e, finalmente, onde há poder há resistência.
Nas relações sexuais também há poder, mas também há poder nos dispositivos de se-
xualidade. A medicina das perversões e os programas de eugenia criaram tecnologias de poder
ligadas ao sexo, que tinham por finalidade manter a pureza da raça. Desse modo, surgiu a ideia
da perversão-hereditariedade-desgenerescência, segundo a qual o próprio instituto do casamen-
to era pensado como forma de unir casais que pudessem perpetuar genes fortes e saudáveis para
a sua prole.
Portanto, a era do biopoder foi primordial para o desenvolvimento do capitalismo, as
tecnologias disciplinadoras e regulamentadoras, próprias do biopoder, serviram para propiciar
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

esse ajuste entre o comportamento da população, sua conduta sexual, inclusive, às necessidades
da produção e aos imperativos do mercado, bem como às circunstâncias de poder que existis-
sem à época.

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________________. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976);


trad. Maria Emantina Galvão. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010;

________________. História da sexualidade 1: A vontade de saber; trad. Maria Thereza


da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015.

_______________. Microfísica do poder; trad. Roberto Machado. 25 ed. Rio de Janeiro:


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_______________. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-


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_______________. Os anormais: curso no Collège de France (1974-1975); trad. Eduardo


Brandão. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010;

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Aurora, v.28, n.45, 2016. Disponível em: http://www2.pucpr.br/reol/pb/index.php/rf Acesso
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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

SANDEL, Michael J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética; trad. Ana
Carolina Mesquita. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

SEX AND POWER: THE BIOPOLITICS IN MICHEL FOUCAULT’S WORK

ABSTRACT
This work aims at studying the biopolitics under the sexuality perspec-

142
tive. In order to do so a snapshot of Foucault’s work was taken, more
specifically, from History of sexuality, v 1, The desire to know, in which
the author shows sex as one of the mechanisms of population control,
just like Medicine was used as a technology of power. Thus, the psy-
chiatrization of sex and eugenics programs became the two major in-
novations of technology of sex in the second half of the 19th century,
contributing to the new era of Biopower.
Keywords: Sex. Power. Biopower. Biopolitics. Human rights.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

143
Recebido 17/02/2017
Aceito 02/05/2017

A DEMOCRACIA EM “MIGALHAS”: SARAMAGO E AS TENSÕES NA


REPRESENTAÇÃO POLÍTICA

Raphael Henrique Figueiredo de Oliveira1

RESUMO
A democracia moderna, erguida sob os pilares da representação polí-
tica, na qual o povo, soberano, é titular do poder, mas elege represen-
tantes que façam do Estado - da máquina pública, funcional, vê-se em
embate interminável com a realidade de um jogo político tramado a
partir das regras de interesses de classes oligárquicas dominantes, às
quais interessa a democracia miserável que José Saramago tinge em
sua obra Ensaio sobre a lucidez. No desarranjo do Estado Democráti-
co brasileiro, o binômio desnudado ideal x realidade subverte a ordem
democrática e deslegitima sua lógica solidária. Quem perde? O povo.
Palavras-chave: Direito e literatura. Democracia moderna. Democra-
cia representativa.

“Ou é possível que governar seja tão difícil apenas porque a fraude e
a exploração exigem algum aprendizado? ”
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

(Bertolt Brecht)

1 INTRODUÇÃO

Há, de certo, um imenso fervor teórico no trato com a Democracia. O debate deste
sistema político envolve paixões, ideais, perspectivas econômicas e sociais, que raramente se

1  Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP).

144
convergem e que, por isso mesmo, interessam à manutenção da ordem democrática.
O dissenso na democracia é pedra basilar ao seu pleno desenvolvimento, e não nos
parece louvável que se entoe o grito democrático se o espaço do cidadão não seja, inteiramente,
um espaço de diálogo – contemplado, também, o sentido vertical desta ideia, que reflita, assim,
o diálogo entre Estado, governo e povo.
A democracia é tema ainda pautado na pós-modernidade; mas, como ideia e teoria,
entretanto, é um discurso antigo, provindo de séculos de enfrentamentos teóricos. No trilho da
história da humanidade, a democracia tem sido tema pulsante nas ideias de grandes pensadores.
Sobre ela se debruçaram os sábios da filosofia grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, também
Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke, Jean Jaques Rousseau - os últimos, pertencentes ao
contratualismo - Kant, Marx e Engels, Nietzsche.
Fato é que a democracia é vasto campo para o pensamento, o que decorre, sobretudo,
das peculiaridades que esse sistema de governo carrega em seu íntimo, bem como de seu con-
traste quando pensada e praticada.
As provocações democráticas são das mais variadas naturezas. Podemos referenciar ao
seu de estado permanente mutabilidade, pois a prática democrática é tarefa continuada que não
se esgota, implicando, por assim ser, num exercício interminável; também, seus esteios que vão
à frente, tais como a soberania popular, a igualdade e a liberdade, são aspectos mais viscerais
de um ideal que almeja reduzir as discrepâncias das sociedades pós-modernas.
Discutir democracia é, portanto, discutir o espaço que habitamos, também os ideais
que perseguimos, e, sobretudo, é a permissão para que possamos pautar o Estado brasileiro,
desvelando suas facetas, por vezes miseráveis, e, noutras, louváveis.
É, assim, na esteira dessas ideias, que este artigo propõe um exercício reflexivo da
democracia brasileira, teorizando, em especial, suas tensões ante um sistema político represen-
tativo, que, malgrado a nominação, não representa senão os interesses de uma minoria econo-
micamente dominante.
Para essa tarefa, propomos que os estudos de Direito e Literatura pincelem um quadro
geral que os estudos jurídicos, por si só, não são hábeis a fazer.
Assim, como pano de fundo à temática deste artigo, a obra de José Saramago, Ensaio
sobre a lucidez, será a obra paradigma eleita para ilustrar as ideias das linhas que seguirão.
Faremos, também, uma releitura histórica da democracia, desde a clássica até a moder-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

na, trançando as nuances do desenvolvimento democrático em nosso país, realçando os jogos de


interesses que a permeiam e culminam num quadro representativo falido e viciado.
Finalmente, ao cabo deste artigo, apontaremos para algumas aspirações ao ideal de-
mocrático brasileiro.
Da democracia vivenciada, experimentada, despontará alguns ideais para a descons-
trução de sua miséria atual. Miséria, que no sentido deste artigo, reflete a noção de um Estado
Democrático teorizado, mas pouco praticado. E que, na essência, é constantemente ferido por
interesses particulares.

145
Ainda nesta introdução, abarquemos os estudos de Direito e Literatura, indicando,
pois, sua validade para o desenvolvimento das ideias que seguirão.
Em continuidade, uma curta resenha da obra paradigma eleita, e, na sequência, o de-
senvolvimento dos apontamentos gerais sobre a matéria.

1.1 Dos estudos de Direito e Literatura

Pautados nas interdisciplinaridades da ciência jurídica com a literatura, os estudos de


Direito e Literatura aproximam essas duas frentes a partir da linguagem, que, num ou noutro
caso, é sua matéria prima.
Contemplar a literatura como arte, e, propriamente, como um saber humano construí-
do, e assim referenciar também à ciência jurídica como construção humana pautada na lingua-
gem, permitirá que o texto literário se aproxime das questões jurídicas, desde as dogmáticas até
as jusfilosóficas, para desnudar questões que apenas a norma não pode iluminar.
A linguagem, que nos textos é transmutada em escrita, é comum aos dois saberes que
aqui pautamos (ciência jurídica e arte literária). De suas interseções eclodirá uma imensidão de
temas discutíveis, os quais ganharão corpo no imaginário do homem justamente a partir das
fantasias de uma literatura fantástica, que desenhe aquilo que a teoria apenas sistematiza.
É para a superação de ideias jurídicas vazias, dogmáticas e positivas, que pretendemos
trazer à baila os estudos de Direito e Literatura.
Sua abertura textual, praticada pela união do imaginário com as palavras, é hábil a fa-
zer brotar em seus praticantes a criticidade, que em razão de pensamentos prontos, frases feitas
e remoídas, tem sido sucateada na contemporaneidade.
O texto literário, crítico e criador por essência, é então aquilo que nos move no mundo
e que, através da linguagem, humaniza.
A noção de humanidade, que desejamos ver gravada nas linhas democráticas, a fim de
praticarmos uma democracia moderna que seja sensível e humana, encontra seu nascedouro no
texto crítico, capaz de metamorfosear o leitor em cidadão, tirando-o, por conseguinte, da condi-
ção de mero espectador democrático, que a tudo vê como imutável ou contingente.
Se a literatura é capaz de desvelar mundos, pautar controvérsias pouco discutidas, des-
nudar as hipocrisias do tempo presente, é ela, portanto, aquilo a que devemos, na qualidade de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

uma arte com nascedouro humano, perseguir.


A democracia, como permanente exercício, e, por conseguinte, como como eterno vir-
-a-ser, pressupõe um povo participativo, solidário, crítico, e que, sobretudo, almeje ao diálogo,
no seio de uma noção dialética do saber.
O cidadão contemporâneo deve advir da junção destas qualidades, e o Estado, ainda
que algo não palpável, deve, em seus representantes eleitos, incutir a ideia de uma democracia
social.
É, na esteira dessas reflexões, que se descobre na arte literária a condição indispensá-
vel ao bom desenvolvimento democrático.

146
1.2 Da obra paradigma elegida: apontamentos necessários

Ensaio sobre a lucidez, escrito por José Saramago, prêmio Nobel de Literatura em
1998, foi publicado em 2004, e é uma obra que dialoga com outra do gênio português, a mais
aclamada delas, Ensaio sobre a cegueira.
O diálogo entre as obras decorre da presença dos mesmos personagens numa e noutra,
e também pela similitude dos cenários, afinal a nova trama se passa - embora não mencionado
no corpo do texto - na capital que outrora foi palco da cegueira branca fruto da imaginação
criativa de Saramago.
A obra Ensaio sobre a lucidez discorre sobre o período eleitoral numa capital, na qual,
num domingo chuvoso, e já abertas às sessões eleitorais ao povo, os elegíveis ficam perplexos
pela ausência dos eleitores às urnas, que apenas a elas comparecerão ao fim do dia, horas antes
do término previsto para o pleito.
A ausência dos votantes, fato que intriga os representantes dos três partidos concorren-
tes, respectivamente os partidos da direita, da esquerda e de centro, assim nominados na obra,
provavelmente teria como causa, nas ideias dos elegíveis, a forte chuva que tomava de assalto a
capital naquele domingo, e que, consequentemente, dificultava a chegada aos colégios eleitorais.
Enfim, fato é que enquanto os eleitores não vão às urnas, os diálogos entre os repre-
sentantes de cada partido são construídos no intuito de legitimar as eleições e, não obstante,
desprestigiar quaisquer reflexões que apontem para um descontentamento geral com o sistema
democrático. Estavam eles convencidos de que os cidadãos nunca abdicariam de exercerem o
seu dever cívico, aquilo que mantem viva a democracia naquela capital. Não desistiriam, por-
tanto, de elegerem seus representantes, dando funcionalidade à máquina estatal.
Passadas algumas horas, a eleição ocorrerá após a chegada dos votantes quase ao fim
do dia eleitoral. Apurados os votos, constata-se setenta por cento de votos em branco - repare-
mos no branco como tom das obras de Saramago, antes a cegueira branca e, nesta, o voto em
branco.
Diante disso, os partidos decidem refazer a votação, pressupondo que os fatos não se
simpatizam com os ideais democráticos, e que dessa maneira, de forma alguma, o resultado se
repetiria numa nova eleição. A eles, seguramente o povo se conscientizaria do erro democrático
que praticavam ao impossibilitar a eleição de um representante, e assim acabariam por destinar
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

seus votos a algum dos partidos.


O resultado da segunda eleição? Oitenta e três por cento de votos em branco!
O governo, ainda vigente, decide declarar, na capital, estado de exceção, impedindo
a saída dos cidadãos e o ingresso nela de quaisquer outros, a fim de ordenar aquilo que a eles
soava como um “mal-entendido” democrático; mas, superável nos próximos meses, bastando,
unicamente, que fossem descobertos aqueles que tramaram esse “atentado à democracia”.
A trama se desenvolve, e o governo, no intento de causar certo impacto no imaginário
dos cidadãos, pretendendo, assim, despertar neles a atenção para o equívoco cometido, abando-

147
na a capital. Parecia-lhes lógico que um povo sem governo não prosperaria, e que, tão logo, os
cidadãos aclamariam pelo retorno de seus representantes. Isto não ocorre!
A capital se organiza; seus cidadãos saem às ruas para fazerem os serviços públicos
essenciais; os trabalhadores retomam suas rotinas, e nenhuma falta lhes faz o governo.
A classe política dominante idealiza novas formas de instaurar o caos na capital, com
o propósito de incutir no povo o anseio pelo retorno do governo. Assim, promovem atentados
na capital, e elegem como perseguidos políticos - pois, em tese, teriam eles tramado todos estes
infortúnios, os personagens principais de Ensaio sobre a cegueira, e, em especial, a “esposa do
médico”, que nos tempos de cegueira branca não cegou.
Com o passar dos dias, também a mídia exercerá papel de suma importância nas ten-
tativas deliberadas pelo governo de restabelecer a ordem democrática - ou que imaginam de-
mocrática naquele espaço. As mensagens elaboradas pelo governo, e televisionadas em rede
pública, também emitidas em rádio, evocam o papel da democracia, a função dos representan-
tes, e incitam o ódio contra aqueles que através do voto em branco promovem a desestrutura do
aparato estatal; clamando, não obstante, às consciências dos cidadãos para que percebam o mal
que causará a ruptura do sistema democrático.
Par e passo, o governo designa agentes especiais, dando-lhes, na sequência, a missão de
descobrirem quem são os idealistas por detrás deste movimento de votos em branco, sem, con-
tudo, deixar que transpareçam suas identidades, afinal se infiltrariam na “capital desgovernada”.
Encerra-se a obra sem que saibamos o desenrolar dos dias futuros naquela capital; isto
é: se o governo é reestabelecido, e, com ele, retornada a máquina pública.
A despeito disso, fato é que o governo assassinará a mulher do médico, também o
agente especial designado para perseguir, pois o tem como indigno, afinal publica num jor-
nal a trama perpetrada pelos representantes políticos, inocentando a “mulher do médico” de
quaisquer culpas. Contados, finalmente, no montante de cidadãos mortos pela ganância de
poder do Estado, e vitimados num atentado à bomba no metrô da capital, à mando do governo,
vinte e sete pessoas.
Feitos estes apontamentos gerais sobre a obra paradigma eleita, passemos ao enfreta-
mento de alguns temas que com ele se relacionam no plano democrático.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2 DA DEMOCRACIA CLÁSSICA À MODERNA: O BERÇO DEMOCRÁTICO E AS


DEMOCRACIAS DE MASSA

A contemporaneidade trouxe desafios à prática da democracia, em especial se con-


frontadas suas frentes que se repelem, quais sejam a democracia como ideal, como pensamento
teórico, e a democracia como prática.
A democracia moderna, indireta e em essência representativa, é fruto do avanço das
sociedades, sobretudo do avanço no quórum de pessoas hábeis ao exercício da cidadania, e,
portanto, cidadãos.

148
Ocorre que, a democracia como símbolo do poder do povo, e dele advindo, viu-se com
o desenrolar dos séculos atarefada em tornar o Estado Democrático, na qual se instala, um es-
tado funcional, sem que isso implicasse num pequeno contingente de cidadãos a praticá-la. Isto
é, a tarefa da democracia era saltar do plano teórico para o plano prático, no qual os interesses
divergentes entre os cidadãos é obstáculo funcional ao exercício democrático. Seguramente,
não estamos tratando aqui do dissenso, que, como apontado na introdução, é fundamental ao
pleno desenvolvimento democrático. Mas, queremos apontar para o fato de que um contingen-
te numeroso de cidadãos de um Estado, tal como o brasileiro - que é democrático, ao menos
formalmente - tem o desafio de ser funcional e englobar, nas instâncias decisórias comuns, os
interesses da coletividade.
Esse desafio é atual quando comparado àquilo que a história considera como o berço
da democracia num contexto amplo. A Grécia, mas não toda ela - vejamos que Atenas era de-
mocrática, e Esparta monárquica - funda a prática democrática direta.
Contudo, observemos que a democracia direta praticada em Atenas, apenas era possí-
vel e funcional porque nem todos eram alçados à qualidade de cidadão, de modo que a exclusão
de parcelas consideráveis do povo era legitimada no sistema adotado e lhe dava contornos.
Vejamos: “em meio aos elogios dos modernos à democracia ateniense, uma crítica reponta: ela
negava participação na ágora às mulheres, aos menores de idade, aos escravos e estrangeiros”
(RIBEIRO, 2008, p. 18).
Também, a existência de outros mecanismos decisórios, tais como os sorteios para o
exercício de funções públicas e as assembleias populares nas ágoras, permitiam que o sistema
democrático ateniense se movimentasse.
Em suma, nas democracias diretas, inviáveis diante das extensões dos Estados con-
temporâneos, o poder era exercido pelo povo, que o materializava em decisões conjuntas, tanto
nas demandas legislativas, executivas ou de juízo condenatório.
Por sua vez, as democracias modernas, ditas de massa - porque envolvam um imenso
contingente de cidadãos hábeis a exercê-la, recorreram ao sistema representativo como fôlego
para um estado funcional, seguindo, não obstante, nas mãos do povo o poder.
É dizer: o poder, uno e indivisível, permanecerá nas mãos do povo, que é seu titular,
o qual, de tempos em tempos, através de um processo eleitoral equânime, justo e harmonioso,
entrega o exercício das funções estatais a um ou outro representante, que deve, em tese, repre-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

sentar os seus interesses nas instituições democráticas. Isto é: “Quando votamos, é como se
nomeássemos procuradores, que decidirão por nós: estaremos vinculados pelos atos que eles
praticarem” (RIBEIRO, 2008, p. 32).
Todavia, a noção de representação nas democracias modernas não deve ser uma im-
plicante lógica do desgarro dos cidadãos no exercício democrático. Queremos com isso dizer,
que a ideia da representatividade, no sentido de que haja outro (o representante) escolhendo pelo
representando, não deve ser causa do distanciamento do segundo no plano decisório.
Neste sentido, ganha prestígio o ideal de uma democracia representativa que se permi-

149
ta ser social e participativa.
O povo, nas democracias modernas, continua a imperar como titular do poder do Es-
tado, a quem a máquina estatal que desejamos funcional deve se curvar. Assim: “A democracia
não teme, antes requer, a participação ampla do povo e de suas organizações de base no proces-
so político e na ação governamental” (SILVA, 2012, p. 136).
Pois bem, o desenvolvimento das ideias democráticas nos trouxeram à democracia
moderna, de cunho representativo. Nela escolhemos um sistema político capaz de torná-la fun-
cional – esta é a lógica do Estado brasileiro, e, assim, a cada período de quatro anos escolhemos
novos representantes. De igual modo, vimos também que o poder, nessas democracias, segue
nas mãos do povo, e que, portanto, ele é seu titular e para ele a máquina estatal deve operar.
Todavia, impera questionarmos se, de fato, esta é a realidade do Estado Democrático brasileiro,
ou se os apontamentos das linhas que seguiram apenas se encaixam à teoria de uma democracia
como valor ou ideal.
A provocação que nos move, é se tal como em Ensaio sobre a lucidez, nossa democra-
cia seja, tão somente, um cabresto que adeque a marcha democrática ao interesse de poucos.

3 A CONSTRUÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: DA COLÔNIA


À “REPÚBLICA NOVA”, OS ENFRETAMENTOS ÀS CLASSES OLIGUÁRICAS
DOMINANTES

Apontamos que a democracia moderna, indireta, tem como fundamento a representa-


ção, no Brasil levada à efeito por um sistema político no qual os eleitos representam, como se
procuradores fossem, os interesses do povo – ao menos em teoria.
No entanto, neste desafio permanente da democracia como tarefa, isto é, como eterno
vir-a-ser, no instante em que nos propomos a uma releitura histórica de nosso país, através de
clássicos da sociologia e outros clássicos literários em geral, o que nos surge é um Estado em
que a representatividade não é conceito amplo, mas restrito e egoísta.
Na esteira dessas ideias, os interesses representados não são, certamente, ao menos
numa esfera decisória econômica, os anseios dos eleitores em massa. Quem dita, e ao longo da
história brasileira ditou, os rumos de nosso sistema - que neste instante é democrático, mas nem
sempre o foi – é uma classe economicamente dominante.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Observemos que, em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda faz uma releitura
de nosso país e das relações de poder que nele imperaram, apontando para jogos de interesses
desde sempre enraizados numa cultura que louva mais às conquistas heroicas, divinas e sem
sacrifícios, do que aquelas batalhadas e sacrificantes.
O exercício do poder em nosso país, com efeito, nasce corrompido porque reduzido à
interesses de uma ou outra classe que economicamente manda e “desmanda” no jogo do mer-
cado. Assim, os jogos de interesse que rodeiam esta classe, permitem-nos vislumbrar um país
patrimonialista, no qual o patrimônio público, que interessa ao povo, é confundido com o pri-

150
vado, que interessa a uma classe.
Sérgio Buarque de Holanda aponta, portanto, para o homem cordial como produto
deste meio corrompido e viciado pela lógica de um sistema de acumulação de riquezas que não
advêm de uma exploração econômica regrada, mas de uma exploração do capital fundada nas
paixões, amizades e interesses próprios. Em especial, dos interesses de famílias que se mantêm
no poder. Seguramente, este ideário de classes dominantes não se coaduna com os fins de um
sistema democrático; afinal, num estado patrimonialista, o povo nele não se inclui, mas tão so-
mente parcelas deste povo, às quais interessa a manutenção de uma ordem às avessas, como a
apregoada pela lógica do capital patrimonial. Em suma (HOLANDA, 2014, p. 169):

O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de
certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor
exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes
uma descontinuidade e até uma oposição.

O patrimonialismo é, pois, uma faceta obscura da confusão do patrimônio público


com o privado, de interesses egoístas com desejos sociais. É, igualmente, uma ferida aberta
num corpo democrático que se queira solidário, em atenção à soberania popular, à igualdade
e a liberdade.
O avanço do Estado brasileiro, todavia, não implicou na extinção do patrimonialismo.
Analisados os contextos históricos que atravessamos até que alcançássemos, pós ditadura, a
dita “República Nova” (a partir de 1985), vemos que as transições no Brasil permitiram o sur-
gimento de um estamento dominante, formando por uma classe política viciada e amparada
por interesses escusos, que subvertem a ordem lógica da democracia como ideia pública, para
manter, assim, o poder e controle sob a forma do interesse privado (FAORO, 2001, p. 866):

A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios


privados seus, na origem, como negócios públicos depois, em linhas que se demarcam
gradualmente. O súdito, a sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento
a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos. Dessa realidade se projeta,
em florescimento natural, a forma de poder, institucionalizada num tipo de domínio:
o patrimonialismo, cuja legitimidade assenta no tradicionalismo — assim é porque
sempre foi.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A democracia representativa tem, se muito, permitido a alternância no poder de parti-


dos políticos que representem os interesses dessas classes - estamentos dominantes.
Seja qual for a ideologia que preguem no período eleitoral ou antes dele nas militân-
cias partidárias ou assembleias de partido, após vencido o pleito e alcançados os votos, é esque-
cida a causa que os levaram à condição de representantes, para que tornem, assim, a praticar a
miséria democrática que conhecemos, na qual a única ideologia que impera é a do capital, do
enriquecimento sem limites e da improbidade administrativa.
A representação política é, na continuidade do exposto, um sistema de tensão, porque

151
os interesses particulares (egoístas) chocam-se com os anseios populares (solidários), sem que,
ao longo da história, tenhamos visto surgir uma balança justa que pondere estas frentes.
Passemos à ponte entre a obra literária Ensaio sobre a lucidez e as tensões políticas de
um sistema representativo.

4 A DEMOCRACIA TRANSVESTIDA: DAS TENSÕES NA POLÍTICA


REPRESENTATIVA À LUCIDEZ DEMOCRÁTICA

Vimos que a democracia, se estudada em seu berço (Grécia antiga), desponta como um
sistema direto - não representativo, no qual cabia ao cidadão, nos instantes decisórios coletivos,
exercer o poder que lhe era titulado.
Vencida essa fase histórica, vivenciamos hoje, na quase totalidade das democracias do
mundo, as democracias indiretas (representativas). Neste sistema político, o povo, ainda titular
do poder, elege seus representantes que deverão honrar a tarefa a eles confiada.
Se na democracia direta apontamos que uma das suas mazelas era o fato de considerar
cidadão, tão somente, uma pequena parcela do povo, dado que o exercício democrático era tare-
fa de poucos. Discurso que, inclusive, é endossado por Aristóteles que taxava: “a virtude políti-
ca, que é a sabedoria para mandar e obedecer, só pertence àqueles que não tem necessidade de
trabalhar para viver” (DALLARI, 1995, p. 124). Por outro lado, no seio da democracia moderna,
deve viger a lógica da participação de todos, sobretudo pela preponderância da soberania do
interesse popular nas decisões.
Portanto, o pleno desenvolvimento da noção de cidadania vincula-se com a ideia da
democracia representativa. Afinal, os cidadãos são aqueles com direitos políticos e que, por
conseguinte, são atores no rumo do Estado, mudando o quadro político representativo a cada
período eleitoral. Em suma, a democracia representativa torna-se funcional se moldada a um
sistema representativo político.
Há, seguramente, certos riscos que se devem admitir, e que nos parecem revelados
na contemporaneidade. Exemplos: fica-se à mercê de uma classe política profissional, cuja re-
presentação no sistema democrático garante a prosperidade econômica de certos políticos; e,
após as eleições, o representante não mais se vincula ao representado, de forma que isso lhe faz
concluir que com aquele já não tenha mais quaisquer deveres, o que impossibilita uma gestão
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

transparente.
No horizonte dessas perspectivas, seguramente o ponto fulcral na corrosão da demo-
cracia representativa é o distanciamento dos representados e dos representantes no plano prático.
Ocorre, que a escolha de representantes para o exercício das funções estatais, tal como
nas democracias representativas, implica, também, na entrega de uma parcela de poder, que,
se não gerido pelo norte da ética, resultará no desvio dos interesses sociais para culminar na
prevalência da lógica egoísta do capital. Democracia e poder são, portanto, duas vertentes que
se não equilibradas desgraçam o futuro de uma nação.

152
A manutenção de um sistema democrático representativo digno necessita de direitos
que balizem e controlem o poder exercido pelos representantes, a fim de que eles não subvertam
o Estado para garantir sua permanência no governo ou mesmo o interesse das classes dominan-
tes que anteriormente expusemos.
Entretanto, é preciso considerar que o poder, como capacidade e fato, é algo que con-
vive com o exercício democrático. Não há como imaginar um sistema político sem a existência
de dados interesses, sejam eles egoístas ou solidários – eis o pano de fundo de Ensaio sobre a
lucidez.
Na essência, o mandato político é um mandato de poder, visto que quem dele se vale
possui dada capacidade decisória, isto é, terá ele uma capacidade de mando, de influenciar o
rumo de uma nação. O Estado, em si, tem uma face de poder que o expressa e lhe dá contornos.
As reflexões passadas nos permitirão fazer a ponte entre as linhas anteriores deste artigo e a
obra paradigma eleita.
Com efeito, Ensaio sobre a lucidez nos remonta a um cenário democrático miserável,
reduzido à participação do cidadão unicamente no período eleitoral, no qual deverá o eleitor
escolher dentre alguns anteriormente já escolhidos e moldados por seus partidos.
Esta representação às avessas, viciada e praticada, fica ilustrada com primazia num
pleito eleitoral em que as figuras elegíveis representem ideologias prontas, tidas por acabadas
no sentido teórico, que não se abrem ao diálogo e que estão contidas ora num partido de direita,
ora de esquerda ou de centro.
Verdadeiramente, a lógica que permanece idêntica em quaisquer desses “lados demo-
cráticos” na obra de Saramago, e visível numa análise do cenário político atual, é a de que mais
interessa aos representantes, àqueles a quem cabe um mandato político, manter a estrutura de
poder intocável para que assim possam eles, também, se manterem no poder, valendo da estru-
tura democrática como propulsora de desejos egoístas.
Na obra do autor português, o partido de direita, liberal e conservador, preza pela es-
tagnação dos quadros políticos e pelo avanço do mercado sobre o povo; por sua vez, o partido
de esquerda, representante de uma parcela ínfima dos votantes, é uma voz muda, de oposição
não refletida e que, caso viesse a ter eleitos, passariam então eles a integrar o mesmo governo
corrupto que criticam, encaixando-se à idêntica ideologia dos demais. A síntese destes dois
polos, antagônicos nas ideias, mas idênticos no exercício do poder, é o partido do centro, sem-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

pre a expressar ideais que sejam, desde logo, a união daqueles “lados democráticos” (direita x
esquerda), num conceito morno de democracia.
A estabilidade democrática pela qual se simpatizam, é melhor tingida numa tela de
estagnação representativa. Assim, manter os quadros políticos como estão, garantindo a pre-
valência da velha ordem dominante dos estamentos que referenciamos, é, de certo, o interesse
daqueles que deveriam representar vontades maiores e solidárias.
No entrelace dessas reflexões com a obra literária em voga, há uma passagem de clare-
za elucidativa ímpar, que criará no imaginário do leitor aquilo que temos expressado como uma

153
prática ilegítima democrática.
No referido instante literário de Ensaio sobre a lucidez, o governo, pela voz de seu
“primeiro ministro”, após a segunda frustrada eleição na capital - em razão da predominância
de votos em branco, falará ao povo num discurso de insatisfação contra aqueles que querem
deturpar a ordem.
Nesta fala estará evocado o vocábulo golpe como palavra-chave de um discurso que
limita a democracia à condição de sistema de renovação de mandatos políticos, sem considerar
que tenha ela uma esfera participativa social, e que, neste sentido, os votos em branco também
compõem a ordem democrática e representam um estado novo de coisas que, malgrado a rup-
tura com a ordem já instituída, quer dar novo rumo àquela capital.
Eis o trecho literário (SARAMAGO, 2004, p. 35):

O Governo, reconhecendo que a votação de hoje veio confirmar, agravando-a, a


tendência verificada no passado domingo e estando unanimemente de acordo sobre
a necessidade de uma séria investigação das causas primeiras e últimas de tão
desconcertantes resultados, considera, após ter consultado com sua excelência o
chefe do estado, que a sua legitimidade para continuar em funções não foi posta
em causa, não só porque a eleição agora concluída foi apenas local, mas igualmente
porque reivindica e assume como sua imperiosa e urgente obrigação apurar até as
últimas consequências os anómalos acontecimentos de que fomos, durante a última
semana, além de atónitas testemunhas, temerários actores, e se, com o mais profundo
pesar, pronuncio esta palavra, é porque aqueles votos em branco, que vieram desferir
um golpe contra a normalidade democrática em que decorria a nossa vida pessoal e
colectiva, não caíram das nuvens nem subiram das entranhas da terra, estiveram no
bolso de oitenta e três em cada cem eleitores desta cidade, os quais, por sua própria,
mas não patriótica mão, os depuseram nas urnas.

Em suma, a possibilidade dos votos em branco, embora legalmente prevista naquela


capital, nunca antes havia sido imaginada como a escolha da maioria no instante eleitoral - eis
a novidade no cenário representativo político daquele espaço.
O governo, a quem interessa a ordem já construída e há tempos mantida, não consegui-
rá interpretar aqueles novos fatos. E logo, num caminho menos doloroso à razão, concluirá que
se trata de um levante popular, engendrado por gente idealista e desordeira. E que, por assim
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ser, deverá o governo contra a trama se opor, a fim de reerguer a ordem democrática a quaisquer
custos, inclusive com atentados contra o povo e com o massivo uso da mídia.
As provocações na obra paradigma convergem no sentido que segue, tal como se a voz
do povo, expressada nas urnas, nada dissesse e nenhum valor simbólico tivesse!
A miséria deste cenário político tingido, deve ser observada não apenas a partir da
perspectiva indicada nos parágrafos anteriores. Imprescindível, também, considerar um fato
paradoxal que, se trazido ao plano da realidade, é visível e atestável ao cidadão.
Consiste ele na confirmação de que a voz do povo apenas é ouvida se entoar um juízo
hábil a manter a ordem democrática já instituída. Se, portanto, os votos permitirem, ao fim e ao

154
cabo, a manutenção da representação política na forma como sempre esteve e deve seguir - para
o bem dos interesses escusos por detrás da classe de representantes eleitos.
O que se deve perseguir, no intuito de alcançar uma democracia indireta (represen-
tativa), mas, fundamentalmente, social e participativa, é a prevalência do dissenso sobre as
respostas prontas; do movimento político constante, no sentido de alteração dos mandatos polí-
ticos, e, consequentemente, renovação do pensamento político; e, sobretudo, o controle do poder
exercido pelos representantes, que devem também ajustar suas condutas aos interesses do povo
e não de uma classe dominante.
Se essas ideias são utópicas, e vozes se levantam contra elas apontando para suas invia-
bilidades, devemos, a partir da criticidade, notar que o tom da política deve ser dado pelo povo;
afinal, também a política é construção humana.
A democracia praticada dentro das regras postas, admite o dissenso que lhe dá contor-
nos, que indica um futuro democrático participativo e lhe dá vida. Não admitirá, seguramente,
os jogos de interesses como seu motor (BOBBIO, 1986, p. 60):

O dissenso, desde que mantido dentro de certos limites (estabelecidos pelas denominadas
regras do jogo), não é destruidor da sociedade, mas solicitador, e uma sociedade em
que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões teóricas deste artigo, se importadas para o plano da realidade política,


isto é, para as experiências mundanas dos cidadãos, permitem a convergência de todos os apon-
tamentos feitos num só sentido, qual seja: o da democracia em movimento, compreendida e
praticada como tarefa interminável!
O exercício democrático exige o movimento constante das instituições representativas,
dos mandatários políticos, e, em especial do povo, os quais não podem se cansar em fazê-la por
maior que seja o desafio – a democracia, por si, é um desafio.
Outrora era esse sistema direto, exercitado pelos cidadãos em grandes assembleias,
e, com o avançar da história, ante a incapacidade de gerir espaços politizados de imensidão,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

atualmente é indireto (representativo), para fazer do Estado um estado funcional – eis a razão
de ser das democracias modernas.
Lamentavelmente, nossas reflexões denunciam infortúnios na representação política,
a qual nos é revelada como uma distorção dos ideais democráticos de soberania popular, igual-
dade e liberdade.
Numa apreensão geral, há uma prevalência, no sistema representativo vivenciado por
nós, de interesses egoístas de uma classe política viciada, que se amolda a um estamento buro-
crático oligárquico, a promover a confusão das esferas públicas e privadas.
Também, a representação política, num sistema de democracia indireta, tem afastado

155
o povo - sobretudo, em nosso país - titular do poder, do pleno exercício e da participação no
conjunto decisório coletivo, reduzindo o protagonismo geral aos instantes do pleito eleitoral.
Das eleições, que no íntimo são sempre “mais do mesmo”, despontarão candidatos
que embora discursem num ou noutro sentido social, no instante em que no governo estiverem
já não se recordaram de seus representados; e, assim, deixar-se-ão corromper pelos ideais da
lógica do capital e da manutenção no poder. Representarão, unicamente, interesses pessoais
ou próximos, mas, dificilmente, exercerão seus mandatos representativos focados em fazer da
máquina pública um instrumental de mudança social.
Nas linhas passadas, indicamos, ainda, que a ascensão de representantes políticos à
condição de mandatários, implicará na outorga a eles de uma parcela de poder, entendida como
a capacidade decisória de influenciar os rumos do Estado.
Diante disso, derivado esse mandato político de um poder maior porque soberano,
concluímos que não há democracia quando os interesses coletivos não são as pautas da agenda
política.
Se o jogo político é permeado por interesses destoantes, que divergem daqueles que
são os anseios do povo, então o Estado que daí surgirá - em especial o sistema político demo-
crático que nele se projetar - será, tristemente, apenas a carcaça de ideais corroídos pelo patri-
monialismo que nos sufoca e limita.
O cenário democrático ideal, há, por conseguinte, de ser distante das linhas literárias
de José Saramago em Ensaio sobre a lucidez.
À modernidade democrática, não bastará partidos políticos de ideologias acabadas e
discursos feitos, tal como representados na obra paradigma pelos partidos de direita, esquerda
ou centro. Também, não serão mais os cidadãos espectadores de um jogo cujas regras não são
debatidas e firmadas em conjunto.
O cidadão democrático do futuro – e almejamos isto ao Brasil – será, na promoção
da democracia, um sujeito crítico por excelência, que dialogará com os demais setores e que
influenciará, de forma solidária, os rumos de nossa nação.
Enfim, a literatura neste artigo nos serviu como pano de fundo temático ao desenvolvi-
mento das ideias, mas, como arte eivada de potência de mudança, que seja ela também a ponte
revelada para a travessia da democracia em “migalhas” à lucidez democrática.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: Uma defesa das regras do jogo. 6. ed. Trad. de
Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado. 19. ed. São Paulo:


Saraiva, 1995.

156
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São
Paulo: Globo, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.

RIBEIRO, Renato Janine. A Democracia. 3. ed. São Paulo: Publifolha, 2008.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35. ed. São Paulo:
Malheiros, 2012.

TRINDADE, André Karam et al. Direito e Literatura: Reflexões teóricas. Porto Alegre:


Livraria do Advogado, 2008.

LA DEMOCRACIA EN “MIGA”: SARAMAGO Y LAS TENSIONES EN LA


REPRESENTACIÓN POLÍTICA

RESUMEN
La democracia moderna, alzada sobre los pilares de la representación
política, en que el pueblo, soberano, tiene el poder, pero elegirían a los
representantes en el intento ver el Estado - la máquina pública - funcio-
nal, se ve en confrontación sin fin con la realidad de un juego político
que es urdido para los intereses dominantes de la clase oligárquica, a
quien interesa la miserable democracia que José Saramago pincela en
el Ensayo sobre la lucidez. En el desglose del Estado democrático de
Brasil, lo paradojo ideal x realidad subvierte la orden democrática y
deslegitima su lógica solidaria. ¿Quién pierde? El pueblo.
Palabras clave: Derecho y literatura. Democracia moderna. Democra-
cia representativa.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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Recebido 10/02/2017
Aceito 02/05/2017

A ETNOLOGIA JURÍDICA: O MÉTODO DA ANTROPOLOGIA CULTURAL PARA


O ESTUDO DOS FENÔMENOS JURÍDICOS DAS SOCIEDADES ANTIGAS

Bruna Casimiro Siciliani1

RESUMO
A pesquisa ora apresentada teve a finalidade de buscar o método de
pesquisa em história do direito mais adequado para se promover a in-
vestigação dos fenômenos jurídicos das sociedades antigas, uma vez
que a manifestação cultural desses povos reflete em sua experiência da
vida social e jurídica. A partir do método etnológico, aprofundou-se a
análise com o objetivo de focar na investigação jurídica, desenvolven-
do-se o método da etnologia jurídica, que aproximou as três áreas do
conhecimento, quais sejam a antropologia, a história, e o direito.
Palavras-chave: Metodologia Jurídica. Etnologia Jurídica. Antropolo-
gia Cultural. História das Mentalidades. História do Direito.

1 INTRODUÇÃO

A pesquisa ora apresentada desenvolveu-se no âmbito do mestrado acadêmico da Uni-


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

versidade Federal do Rio Grande do Sul, com a finalidade de buscar o método de pesquisa em
história do direito mais adequado para se promover a investigação dos fenômenos jurídicos das
sociedades arcaicas, tais como a Grécia e Roma antigas. A falta de uma metodologia jurídica
apta a responder a todos os questionamentos do historiador do direito, levando em consideração
a manifestação cultural que reflete na experiência da vida social e jurídica daquelas comunida-
des, motivou o resgate de uma metodologia até então restrita ao campo da antropologia cultural,

1  Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

158
mas que vinha sendo utilizada pelos historiadores de mentalidades: a etnologia.
No entanto, observou-se ser necessário o aprofundamento do método etnológico com
o objetivo de focar na investigação jurídica. Para tanto, desenvolveu-se um novo ramo da etno-
logia: a etnologia jurídica. A etnologia jurídica como método de pesquisa e ferramenta para se
estudar os fenômenos jurídicos das sociedades arcaicas foi utilizada na elaboração da disser-
tação de mestrado defendida no ano de 2014 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
aproximando as três áreas do conhecimento, quais sejam, a antropologia, a história, e o direito.
Este artigo visa apresentar um dos resultados obtidos com pesquisa realizada para a
elaboração da dissertação de mestrado, qual seja, o método da etnologia jurídica. Para tanto,
será exposto, inicialmente, a problemática metodológica encontrada no início da investigação
em história do direito e a etnologia. Na sequência, demonstra-se a relevância do método etnoló-
gico para a área da história, especificamente, a história das mentalidades. Por fim, apresenta-se
os fundamentos utilizados para a consolidação deste método voltado à historiografia jurídica
das sociedades antigas.

2 A PROBLEMÁTICA METODOLÓGICA E A ETNOLOGIA

O investigador que se propõe a estudar os fenômenos jurídicos, seja de qual povo for,
deve pautar-se de modo que sua investigação lhe indique o quadro mais preciso de como se
materializaram as experiências jurídicas de determinada sociedade. Para tanto, uma vez que
o conhecimento encontra-se em constante evolução, a concepção e o método dos estudos his-
tórico-jurídicos desenvolvem-se e moldam-se progressivamente, de maneira a captar de modo
profuso o objeto de seu estudo. Ora, o surgimento e a evolução dos métodos de pesquisa é um
fenômeno comum a todas as ciências vivas que tratam de evitar a sua estagnação.
A dúvida de qual o método mais adequado surge principalmente para o investigador
que se propõe a estudar os fenômenos jurídicos dos povos arcaicos, tais como Grécia e Roma
antigas. É sabido que, antigamente, não havia, ou havia pouquíssima lei escrita. A ordem e a
norma eram pautadas pela tradição oral. Não há fontes primárias para se estudar a história e o
direito antigos, ou seja, legislações e decisões judiciais grafadas. A maioria dos registros é de
natureza cultural: os textos religiosos e canônicos, os mitos, as epopéias, as lendas, as fábulas
e as demais referências literárias. Como estudar o direito desses povos sem fontes primárias
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

exclusivamente jurídicas?
Em artigo publicado na compilação L’histoire et sés méthodes (A história e seus méto-
dos), Robert Marichal (1961) sustenta que a história não se fragmenta, não há e não pode haver
uma história da língua, uma história da literatura, uma história do direito, nem mesmo batizan-
do-a de história dos fatos sociais. Todas são igualmente valiosas e, se ignoram uma a outra, se
não se explicam uma pela outra, é porque não há mais do que uma história, a dos homens que
vivem em sociedade. As histórias parciais são só expedientes para paliar a limitada capacidade
de compreensão humana.

159
No entanto, as áreas do conhecimento das quais advêm as fontes disponíveis não se
ocupam exclusivamente dos fenômenos jurídicos, e, quando os mencionam, não aprofundam
suas análises exatamente por não serem estudiosos da história do direito. Os métodos até então
utilizados, como o método analítico-documental, ou o método puramente historiográfico, por
exemplo, não eram suficientes para responder todas as perguntas, e não ofereciam meios, técni-
cas de investigação adequadas para se chegar às conclusões. Era necessária, pois, a utilização
de um método de pesquisa histórica que abarcasse também a pesquisa da história do direito.
A antropologia foi a área do conhecimento que ofereceu a resposta mais adequada
para a investigação dos fenômenos jurídicos dessas sociedades antigas. Especificamente den-
tro da grande área da antropologia, a etnologia trouxe as respostas para estas indagações. Os
estudiosos da etnologia provêm das áreas da antropologia e da sociologia, e esta área encontra
no francês Marcel Mauss um de seus maiores representantes. A utilização do método antropo-
lógico para o estudo do direito enquanto manifestação cultural que aqui se apresenta edifica-se,
sobretudo, pela obra de Marcel Mauss.
Nesse prisma de análise, a etnologia, conforme conceitua Claude Lévi-Strauss (1959,
p. 4-5), é ciência do âmbito da chamada antropologia cultural e social, que pesquisa sobre as
manifestações culturais do homem na sociedade a qual ele está inserido, e tem por objeto o
estudo específico dos fatos e dos documentos levantados pela etnografia, ou seja, fatos e docu-
mentos relacionados à expressão lingüística, inclusive literária, e cultural dos povos sob análise,
buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas investigadas.
Uma vez que o campo de investigação desta pesquisa foca-se nos estudos dos fenôme-
nos jurídicos, o método ora desenvolvido direciona-se ao afluente da etnologia jurídica. Assim,
cunha-se a definição de etnologia jurídica como o estudo do direito com base na manifestação
cultural dos povos, ou seja, seus mitos, seus ritos, sua religião, sua literatura, com o objetivo de
observar os aspectos normativos das sociedades, com base nas apreciações analíticas e compa-
rativas das culturas enquanto elementos integrantes da organização social.

3 A ETNOLOGIA E A HISTÓRIA DAS MENTALIDADES

Cada área do direito possui suas metodologias de pesquisa mais propícias. Como o
objeto da pesquisa principal reside na pesquisa em história do direito, procurou-se verificar, de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

início, a aplicação do método etnológico na investigação histórica, para posterior aplicação à


historiografia jurídica.
Não obstante, foi na obra de Jacques Le Goff e sua história das mentalidades a aplicação
mais evidente constatada. Para Jacques Le Goff (1979), de todas as ciências impropriamente cha-
madas humanas (e questiona-se ele por que não chamá-las simplesmente de sociais?), a etnologia
é aquela com que a história iniciou o diálogo mais desenvolvido e mais fecundo. E, nas palavras
do próprio historiador, a etnologia “é apenas uma primeira escala no caminho de uma reflexão e
de uma prática” (LE GOFF, 1979, p. 10-11). Observa-se que ele desejou aprofundar-se e precisar

160
as relações que a história e a etnologia mantiveram no passado e renovam até os dias de hoje.
Ao tratar sobre o uso dos métodos antropológicos e da etnologia aplicada à história,
e especificamente à história da Europa medieval, Jacques Le Goff (1979) propõe uma série de
perguntas que ele mesmo responde para conduzir seu argumento. Questiona o historiador que,
se é verdade ser ele um dos estudiosos e investigadores a preferir o termo antropologia ao termo
etnologia, uma vez ser este mais amplo e suscetível de ser aplicado aos homens de todas as cul-
turas; e se, por consequência, prefere ele falar em termos de antropologia histórica ao invés de
etnologia histórica, é porque certos historiadores se deixaram seduzir pela etnologia, pelo fato de
ela tratar, antes de tudo, a noção de diferença sem deixar de se orientar por uma concepção uni-
ficada das sociedades humanas e até de abordar um conceito de homem ignorado pela história.
Conclui o historiador, portanto, que o folclore, embora demasiado afastado da histó-
ria, oferece ao historiador das sociedades europeias, desejoso de recorrer à antropologia, um
tesouro de documentação, de métodos e de trabalhos que ele faria bem em interrogar, antes de
voltar-se para a etnologia extraeuropeia. E salienta ele que, muito embora o folclore seja dema-
siado desprezado e considerado uma parca etnologia, ele é fonte essencial para a antropologia
histórica das sociedades históricas. Evidente, pois, que por meio do estudo dos ritos, das práti-
cas cerimoniais, o etnólogo remonta às crenças, aos sistemas de valores. Desse modo, também
conclui Jacques Le Goff (1974), os historiadores da Idade Média, através das consagrações,
curas milagrosas, insígnias de poder, entradas reais descobriram uma mística monárquica, uma
mentalidade política e renovaram, assim, a história política da Idade Média.
Corolário lógico, a história das mentalidades não pode ser feita sem estar intimamente
ligada à história dos sistemas culturais, sistemas de crenças, de valores, de equipamento intelec-
tual, dentro dos quais se elaboram, vivem e evoluem. Assim, as lições que a etnologia fornece
à história são eficazes (LE GOFF, 1974). Ao lado do etnólogo, o historiador das mentalidades
também deve fazer as vezes de sociólogo. Seu objetivo, de imediato, é o coletivo. A mentalidade
de um indivíduo histórico, fosse ainda a de um grande homem, é justamente o que tem de co-
mum com os outros homens de seu tempo. O historiador das mentalidades se encontra de forma
peculiar com o psicólogo social. As noções de comportamento ou de atitude são essenciais para
o outro. Dessa forma, para Jacques Le Goff (1974), a psicologia social inclina-se para a etnolo-
gia, e mais além, para a história.
A mentalidade abrange um passado mais distante da história, e tem como objetivo
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

satisfazer a curiosidade dos historiadores determinados a ir mais longe. E primeiro ao encontro


de outras ciências humanas (LE GOFF, 1974). Mas a história das mentalidades não se define
apenas pelo contato com outras ciências humanas e da emergência de um domínio reprimido
da história tradicional. É também o ponto de encontro de exigências opostas que a dinâmica
própria da investigação histórica atual força ao diálogo. Situa-se no ponto de conjunção do in-
dividual e do coletivo, o tempo futuro e o cotidiano, o inconsciente e o intencional, o estrutural
e o conjuntural (LE GOFF, 1974).
De fato, como explica Le Goff (1974, p. 83), o idioma francês não deriva naturalmente

161
mentalité (mentalidade) de mental. Empresta-o, contudo, do inglês que desde o século XVII ti-
nha tomado mentality (mentalidade) de mental. O epíteto latino mentalis (mental), ignorado pelo
latim clássico, pertence ao vocabulário da escolástica medieval e os cinco séculos que separa a
aparição de mental, em meados do século XIV, da expressão mentalidade, em meados do século
XIX, indicam que o substantivo responde a outras necessidades, tem a ver com outra situação
do que a do adjetivo. Logo, a mentalidade é a filha da filosofia inglesa do século XVII. E con-
tinua o historiador ao explanar que o termo designa a coloração coletiva do psiquismo, a forma
particular de pensar e sentir de “um povo, um certo grupo de pessoas, etc.”. Mas a expressão se
limita ao idioma inglês como linguagem técnica da filosofia, enquanto que na língua francesa,
seu uso logo passa ao vocabulário corrente. A noção que desembocará no conceito e na palavra
mentalidade tem todo o ar de aparecer no século XVIII, no domínio científico e, mais especifi-
camente, no campo de uma nova concepção de história.
Esta coloração da linguagem ordinária foi alimentada a partir de correntes científicas
da época. Uma delas é a etnologia. Demonstrado o interesse da história, especificamente, da
história das mentalidades no método etnológico para a sua investigação histórica, seguiu-se o
desenvolvimento do método para o aprofundamento da etnologia aplicado ao estudo da história
do direito.

4 OS FUNDAMENTOS DA ETNOLOGIA JURÍDICA

Após constatar a aplicação da etnologia na investigação histórica e conceituada a etno-


logia jurídica, partiu-se para a sua fundamentação tanto com base em Marceu Mauss, como em
Louis Gernet, Henry Lévy-Bruhl e Paul Huvelin. Estes três romanistas franceses foram con-
temporâneos a Marcel Mauss, tendo compartilhado com este último suas ideias sobre a relação
entre o pensamento cultural e religioso da sociedade romana com a estruturação de seu direito.
Ao abordar a questão jurídica, Marcel Mauss (1967) leciona que é através das insti-
tuições e estruturas que as sociedades dão uma determinada ordenação aos fenômenos sociais,
conforme a valoração que fazem dos mesmos, segundo sua mentalidade ou interesse. A esta
ordenação o antropólogo denomina de direito.
A organização social é geralmente compreendida como organização política, no en-
tanto, esta apenas constitui uma parte da ciência jurídica, e não a mais profunda. O direito
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

compreende todo um conjunto de costumes e normas, e, dessa forma, constrói a “armadura” da


sociedade (MAUSS, 1967), definindo-a em última análise. Uma vez que este não existe senão
através da sociedade, constata-se que todos os fenômenos jurídicos são, de certo modo, fenô-
menos sociais.
Nas sociedades arcaicas, as instituições e estruturas aparecem configuradas pela com-
binação de uma série de simbolismos e elementos muito diversos, que dão a cada uma delas
uma formação peculiar. É da natureza da sociedade que ela se exprima simbolicamente em
seus costumes e em suas instituições; ao contrário, as condutas individuais normais jamais são

162
simbólicas por elas mesmas: elas são os elementos a partir dos quais um sistema simbólico,
que só pode ser coletivo, se constrói (MAUSS, 2003). São essas representações fundamentais,
esses elementos permanentes que constituem o que é reproduzido na vida social por meio das
instituições.
Em vista disso, estes sistemas simbólicos são compostos de manifestações culturais
de cada povo, quais sejam, seus mitos, sua religião, e se refletem na sua organização social, nas
suas instituições e no direito. Não há, pois, como estudar os fenômenos jurídicos desses povos
sem estudar a sua manifestação cultural.
Uma das manifestações culturais mais marcantes na organização social é a religio-
sidade de seu povo. E o direito é geralmente investido de uma qualidade religiosa. O sistema
da obrigação jurídica possui palavras e gestos que obrigam e vinculam, há formas solenes.
Com frequência, os atos jurídicos têm um caráter ritual, são dotados de aspectos sacramentais.
Isso porque eles se misturaram a ritos, sem que sejam ritos por si mesmos. Na medida em que
têm uma eficácia particular, em que fazem mais do que estabelecer relações contratuais entre
indivíduos, eles não são jurídicos, mas mágicos ou religiosos (MAUSS, 2003). É o caso do for-
malismo de que o processo e as obrigações estão impregnados. Constitui, simultaneamente, a
invocação que associa o deus ao negócio e a mnemônica que ajudará as testemunhas a recordar
(CARBONNIER, 1989).
Como leciona Fustel de Coulanges (1900), nas sociedades antigas, tanto entre os gre-
gos, entre os romanos, como entre os hindus, a lei era, a princípio, parte da religião. Os antigos
códigos das cidades eram um conjunto de ritos, de prescrições litúrgicas, de preces, ao mesmo
tempo que de disposições legislativas. As normas atinentes aos direitos de propriedade e de su-
cessão, por exemplo, estavam dispersas no meio de regras relativas aos sacrifícios, à sepultura
e ao culto dos mortos. Em Atenas, a obra de Sólon era ao mesmo tempo código, constituição e
ritual. A ordem dos sacrifícios e o preço das vítimas eram por ele regulamentados, assim como
os ritos das núpcias e o culto dos mortos.
Como a lei fazia parte da religião, participava também do caráter misterioso de toda
a religião das cidades. As fórmulas da lei eram mantidas em segredo, assim como as do culto.
Elas não eram reveladas ao estrangeiro, nem mesmo aos plebeus. Não porque os patrícios de-
sejassem garantir grande força com a posse exclusiva das leis; mas é que a lei, por sua origem e
natureza, revestiu-se por muito tempo em mistério, no qual só podiam ser iniciados os que já o
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

fossem no culto nacional e no culto doméstico (FUSTEL DE COULANGES, 1900).


Essas disposições do antigo direito eram de uma lógica perfeita: o direito nascera da
religião e não podia ser concebido fora dela. Para que houvesse relação de direito entre dois
homens, era necessário que antes houvesse entre eles uma relação religiosa, isto é, que ambos
rendessem culto ao mesmo lar, e oferecessem os mesmos sacrifícios. Quando não existia essa
comunhão religiosa entre dois homens, parece que não podia existir nenhuma relação de direito.
Ora, nem o escravo, nem o estrangeiro participavam da religião da cidade. O direito não era
nada mais que uma das faces da religião. Sem comunidade de religião, não podia haver comu-

163
nidade de lei (FUSTEL DE COULANGES, 1900).
Outro exemplo mais recente pode ser tomado da palavra responsabilidade, que, no
vocabulário jurídico francês, data apenas da Revolução. Anteriormente, a expressão existia
apenas na teologia. As várias partes constituintes do direito podem ser mais ou menos sagradas:
Roma conhecia o direito dos pontífices, e o ensino do direito dos Maori ocorria em segredo.
Enquanto o direito é um fenômeno essencialmente público, ele permanece, no entanto, de ou-
tro lado, muito íntimo. Os verdadeiros especialistas jurídicos possuem os segredos do direito
(MAUSS, 1967).
No entanto, os fenômenos jurídicos e morais não podem ser distinguidos do religioso
baseados apenas em seu caráter obrigacional, na medida em que o último possui o mesmo ca-
ráter. A iniciação é, em última análise, um evento jurídico e religioso. A própria sanção é cons-
truída como matéria de direito, ou de dever. A vingança é uma obrigação moral: uma pessoa
tem a obrigação moral de infligir a punição. A noção de direito e dever está precisamente nas
práticas nativas, as quais contêm a noção de moral boa e má, uma noção que permite reconhe-
cer o fenômeno do direito: “Direito é o que é dito ser virtuoso” diz o Manu, o antigo código
jurídico sânscrito (MAUSS, 1967, p. 103). Essa noção de bem e mal aplica-se às relações entre
o indivíduo e seus companheiros. Sem essa arte da vida moral, não haveria vida comunal, seja
viver em grupos ou sub-grupos.
Mas como é possível distinguir a lei da moralidade nas sociedades que nos dizem
respeito? Todo o sistema de ideias morais e jurídicas corresponde ao sistema dessas expectati-
vas coletivas. O direito é o meio de organizar o sistema de expectativas coletivas e assegurar
o respeito aos indivíduos, pelo seu valor, para a sua coletividade, bem como para a sua hierar-
quia. Os fenômenos jurídicos são fenômenos morais que foram organizados. Esse é ainda o
caso do direito moderno: responsabilidade civil e responsabilidade criminal são estritamente
determinadas. O brocardo jurídico “a ignorância da lei não é desculpa” (MAUSS, 1967, p. 103)
corresponde a este sistema de expectações coletivas. Basicamente, quando ignora-se a lei, é
geralmente aceito que está-se errado; há uma consciência e um conhecimento latentes de todos
os costumes e de toda a moral, e isso acontece em qualquer sistema jurídico, haja vista que nem
tudo pode ser determinado de forma expressa. Eis porque a enorme superioridade do direito
consuetudinário perante o direito escrito: os casos servem como precedentes, e a noção de pre-
cedente é de uso fundamental no direito.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Ademais, Marcel Mauss (1967) reconhece a presença de moralidade e religião como a


presença de obrigação moral e, em segundo lugar, como a presença da noção de infração e de
sanção. Há uma obrigação moral quando há sanção moral, difusa; há obrigação jurídica quando
a obrigação é colocada em termos precisos, e, da mesma forma, a infração e sua penalidade.
Sempre há moralidade no direito, e há sempre uma noção de obrigação moral no direito. A obri-
gação é apenas mais definida e mais jurídica no caso do direito.
O direito é bom por definição. Além disso, a conformidade com o direito é boa e ne-
cessária para a vida social. Tudo o que está de acordo com o direito é bom, e tudo o que milita

164
contra tal conformidade é ruim. Assim, os fenômenos morais e jurídicos podem ser reconhe-
cidos pela presença da noção do bem e do mal, definido anteriormente e sempre sancionado.
Não há nada de errado, a não ser que seja sua consciência ou a de outras pessoas que dizem que
é errado. Aqui, mais uma vez, Marcel Mauss (1967) lembra que deve-se submeter à avaliação
da sociedade sob análise e esquecer os julgamentos ocidentais. O que os nativos dizem que é
moral, é moral; o que dizem que é bom, é bom; e o que dizem que é direito, é direito. O obser-
vador será confrontado com sistemas jurídicos totalmente diferentes do que está acostumado
o seu aparelho conceitual. Uma dificuldade inicial que deriva da natureza consuetudinária da
lei, podendo ser superada por familiarizar-se com o direito antigo. No entanto, certos sistemas
jurídicos foram escritos em tempos muito antigos.
Outrossim, o direito consuetudinário não confronta necessariamente com o direito
escrito. Em todos os sistemas legais, sempre existe um sistema consuetudinário. Ele pode não
ser a lei escrita, mas não deixa de ter a sua própria formulação em um conjunto de provérbios,
ditos legais e fórmulas etiquetadas. Muitas vezes, pode ser encontrado na moral de uma fábula
ou mito. Todo o corpo do Mahabharata e Ramayana, grandes épicos da Índia, constitui um livro
de direito, sendo possível citá-los em um tribunal (MAUSS, 1967). Neste ponto, o direito e a
religião fazem seu ponto de encontro na manifestação cultural: Mahabharata e Ramayana são
narrativas épicas, com base mitológica.
A história das instituições por algum tempo nos familiarizou com a ideia de que os
direitos mais antigos, que diferem bastante dos nossos próprios, foram fortemente marcados
pela religião. Louis Gernet, em seu artigo intitulado Droit et Pre-droit (Direito e Pré-direito)
(GERNET, 1981), afirma que esta ideia recebeu definição especializada, oriundo de romanistas.
Ao citar Pierre Noailles, ele menciona sua afirmação de que, em Roma, o “direito consagrado”
precedeu a aparição do “direito civil”, distinguindo-se este último do primeiro ao mesmo tempo
em que emanou dele (GERNET, 1981, p. 143). Cita também Henri Lévy-Bruhl (1947) e sua fór-
mula de que “no período arcaico, é o ritual que cria o direito”, observando o fato de que o ritual
é imposto pela sociedade, e que as formas jurídicas, sejam elas religiosas ou não, são produtos
iguais do devido processo (no sentido mais amplo da palavra) e que essas formas têm o mesmo
princípio e a mesma função.
Não obstante, é parte da originalidade de Roma que um modo propriamente jurídico
de pensamento foi elaborado cedo. No entanto, ao se falar em direito romano antigo, raramente
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

somos levados a um estágio anterior ao da fundação da cidade, e verifica-se que as próprias


noções do historiador do direito, que seria tentado a trabalhar com elas, estão mantidas com a
possibilidade de uma espécie de anacronismo.
Assim, para exemplificar a questão, Louis Gernet (1981, p. 144) menciona as expres-
sões reus (réu) e damnatus (condenado), termos técnicos legais que também foram aplicados em
duas fases da situação religiosa na qual o devoto é sucessivamente prometido e depois constran-
gido a cumprir o seu voto. É possível que essa terminologia tenha perpetuado uma noção muito
antiga de obrigação que não seja a jurídica. Mas também é possível que, em uma sociedade já

165
penetrada e invadida pelo direito, a formula para a relação com os deuses seja marcada por ca-
tegorias tardias de justiça. Quais seriam as delimitações do problema, portanto?
Responde Louis Gernet (1981) que se fosse simplesmente coletar evidências das práti-
cas e crenças primitivas nas quais fosse possível observar o funcionamento do direito em suas
formas primitivas, os estudiosos já teriam renovado a área da etnologia jurídica. A questão que
propõem os romanistas vai mais além: seria possível observar uma situação na qual a relação
que designam jurídica poderia ter sido concebida através de um modo de pensamento diferente
daquele inerente ao direito como tal? Além disso, que relação é que esta situação jurídica parece
ter com o próprio Estado de Direito nos casos em que observa-se uma sucessão? Verifica-se que
interesse essa problemática pode nos trazer. A função jurídica, como função independente, é
facilmente reconhecida em um grande número de sociedades nas quais ela naturalmente apre-
senta variações, mas também uma inegável unidade. Louis Gernet (1981) explica que a função
jurídica não é apenas uma função social, mas também num sentido psicológico, isto é, visão de
mundo, hábitos de pensamento, e crenças - ou seja, o imaginário simbólico - que são reunidas
em torno da noção específica do direito.
Algumas dessas questões foram examinadas de forma metodológica pelo romanista
Paul Huvelin e Marcel Mauss conjuntamente (GERNET, 1981, p. 145). Ambos estudaram as
conexões entre as práticas e as noções de magia e religião com as formas mais antigas de direito
individual (HUVELIN, 1907).
Certas práticas e crenças que são positivamente religiosas podem estar fortemente
ligadas com ordenações jurídicas que certamente não possuem nada de primitivas, mas o que
é interessante por ora não é a religião em si, mas o tipo de mentalidade envolvida. Encontrar as
raízes ou bases da mentalidade do fenômeno jurídico também é um dos objetivos da pesquisa
em história do direito, razão pela qual a etnologia jurídica responde adequadamente aos anseios
do investigador da historiografia jurídica das sociedades antigas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito advém do mesmo cenário religioso, simbólico, e cultural, a partir dos quais
as sociedades se manifestam por meio de suas instituições, sua organização social, e sua orga-
nização jurídica e política. Nas sociedades primitivas e históricas, as instituições e estruturas
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

aparecem configuradas pela combinação de uma série de simbolismos e elementos muito diver-
sos, que dão a cada uma delas uma formação peculiar. É da natureza da sociedade que ela se
exprima simbolicamente em seus costumes e em suas instituições, que só são construídas por
meio do coletivo. Estes sistemas simbólicos são compostos de manifestações culturais de cada
povo, quais sejam, seus mitos, sua religião, e se refletem na sua organização social.
Como foi demonstrado, sobretudo pelos romanistas, a experiência jurídica das socie-
dades antigas está permeada por sua manifestação cultural, isto é, pelos seus mitos, seus ritos,
sua religião, e sua literatura. Assim, o imaginário e a mentalidade simbólica destas sociedades

166
não podem ser ignorados durante a investigação em história do direito.
A etnologia jurídica, isto é, o método de estudo do direito com base na manifestação
cultural desses povos, com o objetivo de observar os aspectos normativos das sociedades com
base nas apreciações analíticas e comparativas das culturas enquanto elementos integrantes da
organização social, respondeu de forma adequada aos questionamentos da investigação da his-
toriografia jurídica das sociedades antigas. Sem deixar de lado os aspectos atinentes à historio-
grafia, a etnologia aprofunda o conhecimento jurídico ao trazer a contribuição da antropologia
cultural para o direito.

REFERÊNCIAS

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FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. La cité antique. Paris: Librairie Hachette, 1900.

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antropology of Ancient Greece. Londres: The Johns Hopkins University Press, 1981.

HUVELIN, Paul. Magie et droit individuel. L’Année Sociologique, vol. X. Paris: Félix Alcan
Éditeur, 1907, p. 1-47.

LE GOFF, Jacques. Les mentalités: une histoire ambigue. Faire de l’histoire, vol. III.
Nouveaux objets, Paris: Gallimard, 1974.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editora Estampa, 1979.

LÉVY-BRUHL, Henry. Nouvelles études sur le très ancien droit romain. Paris: Recueil
Sirey, 1947.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Anthropologie estructurale. França: Plon, 1959.

MARICHAL, Robert. La critique des textes. In: SAMARAN, Charles (Org.) L’histoire et sés
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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MAUSS, Marcel. Manuel d’ethnographie. Paris: Éditions sociales, 1967.

MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosacnaify, 2003.

167
THE LEGAL ETHONOLOGY: THE METHOD OF CULTURAL ANTHROPOLOGY
FOR THE LEGAL PHENOMENA OF ANCIENT SOCIETIES’ STUDY

ABSTRACT
This article has the aim of searching the most appropriate method of
research in the history of law to promote the investigation of legal phe-
nomena of ancient societies, since the cultural manifestation of these
peoples reflected in their experience of social and legal lives. Starting
from the ethnological method, the analysis was concentrated in focusing
on legal research, developing the method of legal ethnology, which ap-
proached the three areas of knowledge: anthropology, history, and law.
Keywords: Legal Methodology. Legal Ethnology. Cultural Anthropol-
ogy. History of Mentalities. History of Law.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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Recebido 17/02/2017
Aceito 02/05/2017

A INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ENTRE PARTICULARES:


A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO PRIVADO E O CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE

Yago da Costa Nunes dos Santos1

RESUMO
Neste artigo investiga-se, diante da incidência dos direitos fundamentais
no Direito Privado, se é possível desenvolver um Controle de Constitu-
cionalidade diferenciado do modelo que concebemos, a fim de aplicá-lo
também nos negócios jurídicos com cláusulas de adesão. Para tanto,
fora traçado um breve estudo de direito comparado acerca da eficácia
dos direitos fundamentais no âmbito privado, bem como considerações
sobre os modelos de controle norte-americano, austríaco e brasileiro.
Por fim, debateu-se a possibilidade do controle de constitucionalidade
em contratos de adesão e concluiu-se que, para tanto, é preciso pensar
um novo modelo, cujas premissas nesse trabalho foram propostas.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito privado. Controle de
constitucionalidade. Contratos de adesão.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

É bem verdade que a expansão e a efetividade dos direitos fundamentais em deter-


minado Estado servem como parâmetro através do qual se é possível obter um indicativo da
dimensão da democracia ali estabelecida2. Sendo assim, os direitos e garantias fundamentais

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


2  Para Dirley da Cunha Junior (2015, p. 443), “os direitos humanos fundamentais servem de parâmetro de aferição do grau de democracia
numa sociedade”.

169
assumem papel de relevada importância na legitimação dos governos contemporâneos, cada
vez mais marcados pelo regime democrático, constituídos não pelos arbitrários poderes de fato,
mas erguidos sobre as firmes pilastras de um “poder de direito”3.
No caso do Brasil, o paulatino avanço na afirmação histórica dos direitos fundamen-
tais resvalou na Constituição Federal de 1988, com enorme rol de garantias individuais, sociais,
políticas e de nacionalidade elencadas. A despeito disso, saliente-se a necessidade da efetivação
desses direitos na vida prática, visto que eles são usurpados diariamente, seja pelo poder públi-
co, seja nas relações privadas (SARLET, 2010, p. 10).
Ao debruçar os olhos sobre os fatos históricos, constata-se que os direitos fundamen-
tais sempre foram vistos como oponíveis perante o Estado (eficácia vertical). Entretanto, com o
desenvolvimento da sociedade capitalista, é notável o progressivo aumento dos ataques perpe-
trados por entes privados frente a tais garantias. Neste contexto, não obstante as regras contra-
tuais figurarem por muito tempo como verdadeiras “leis entre as partes”, a afirmação da supre-
macia constitucional e a consequente constitucionalização do direito privado têm, aos poucos,
mitigado essa visão obsoleta4.
Atualmente, o Supremo Tribunal Federal entende haver, no Brasil, em consonância
com o próprio §1º do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, incidência direta dos direitos
fundamentais no ordenamento privado. Disso deriva, portanto, o raciocínio de que ao Estado
não cabe apenas respeitar as regras e os princípios constitucionais, mas também lhe compete
obrigar observância à Constituição naqueles negócios jurídicos firmados no âmbito civil (eficá-
cia horizontal dos direitos e garantias fundamentais)5.
Diante disso, o presente artigo se dispõe a questionar se os contratos - sobretudo os
contratos de adesão– poderiam ser passíveis de controle de constitucionalidade e, em caso afir-
mativo, quais as mudanças necessárias no nosso sistema normativo a fim de viabilizá-lo. Isso
porque, num Estado Democrático de Direito, cuja lei suprema vinculante é a Constituição Fede-
ral de 1988, a possibilidade de firmação de negócios jurídicos atentatórios à dignidade da pessoa
humana e aos direitos fundamentais parece desenhar-se como explícita incoerência.

2 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO DIREITO PRIVADO

É bem verdade que os direitos fundamentais surgiram com o escopo de conceber ao


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

3  Conforme Paulo Bonavides (2000, p. 144), “Se o poder repousa unicamente na força, e a Sociedade, onde ele se exerce, exterioriza em
primeiro lugar o aspecto coercitivo com a nota da dominação material e o emprego frequente de meios violentos para impor a obediên-
cia, esse poder, não importa sua aparente solidez ou estabilidade, será sempre um poder de fato. Se, todavia, buscao poder sua base de
apoio menos na força do que na competência, menos na coerção do que no consentimento dos governados, converter-se-á então num
poder de direito”.
4  Ao dissertarem sobre os negócios jurídicos, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016, p. 588) pontuam que deve haver uma “necessá-
ria limitação da liberdade de determinação do conteúdo negocial (no mais das vezes estabelecidas unilateralmente pelas grandes empre-
sas e grupos econômicos), com maior intervenção estatal, através de normas de ordem pública, para assegurar a primazia da cidadania”.
5  Parte da doutrina tem criticado essa denominação, visto que nem sempre a relação entre os particulares acontece de maneira horizontal,
porquanto, sobretudo nos contratos travados entre pessoa física e pessoa jurídica, estas tendem a ser muito mais poderosas em relação
a aquelas. Sobre isso, trata Sarlet (2010, p. 13).

170
indivíduo certa tutela perante os arbítrios estatais. Nada obstante, com o transcorrer do tempo,
passou-se a discutir acerca da possibilidade da incidência dessa proteção também no âmbito
das relações privadas. Por conta disso, ensejou-se a aparição de algumas teorias que, doravante,
provocaram e provocam, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, acalorados debates e dis-
cordâncias constantes.
Os norte-americanos não admitem a possibilidade da eficácia dos direitos fundamen-
tais no direito privado, salvo em raras exceções6. Eles adotam a teoria do state action doctrine7,
segundo a qual somente o Estado está vinculado às normas constitucionais que visam proteger
os bens essenciais aos indivíduos e à coletividade. Aqui não há de se falar em eficácia horizon-
tal (drittwirkung), mas tão somente na obrigatoriedade estatal no dever de alinhamento com os
direitos fundamentais. Está presente, na verdade, a eficácia vertical dos direitos e garantias, cuja
revelação se dá no momento em que o Estado, a despeito do seu poderio – e sobretudo por conta
dele – encontra-se limitado pelos ditames constitucionais.
Dentre os argumentos utilizados pelos países que adotam a state action doctrine, des-
tacam-se aqueles atinentes à necessidade de proteção da autonomia privada. Ademais, sobretu-
do nos Estados Unidos, evidencia-se a justificativa do federalismo, segundo a qual compete aos
estados legislarem sobre o direito privado e não à União (SARMENTO; GOMES, 2011, p. 63).
Há, todavia, países que defendem a eficácia indireta dos direitos fundamentais no di-
reito privado. Assim se posiciona a maioria da doutrina Alemã, bem como a jurisprudência do
Tribunal Constitucional da Alemanha, que tem perfilhado esse posicionamento8. Com a eficácia
indireta, reconhece-se a tutela mediata das normas de direitos fundamentais nas relações entre
particulares. Desta forma, tais direitos e garantias só seriam aplicáveis quando, nos negócios
jurídicos, constassem “clausulas gerais”, as quais, para gerar efeitos concretos, precisariam ser
interpretadas conforme a Constituição. Destarte, no tocante ao direito privado, as garantias
fundamentais, conforme essa teoria, consistem em vetores interpretativos que auxiliam na her-
menêutica contratual.
Quem adota essa teoria entende que a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fun-
damentais nas relações privadas acabaria por resvalar na limitação do legislador, bem como no
cerceamento da autonomia da vontade. Todavia, é de relevante importância considerar que os
limites do legislador já estão delineados pelas Constituições (sobretudo nos modernos Estados,
dotados de texto constitucional rígido e supremo). Além disso, nenhum direito é absoluto, não
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

6  Sobre isso, disserta Bruno Fontenele Cabral em excelente artigo publicado na revista Jus Navegandi (2011) quando pontua que a pri-
meira das exceções é a “public puntion exception”, que pode ser vislumbrada quando o requerente alegar que o seu direito fundamental
foi ferido numa relação entre particulares, mas a outra parte envolvida estava no exercício de uma função pública. Outra exceção digna
de nota é o caso de “entanglement exception”, situação desenhada na hipótese em que o Estado delega a um particular determinada
função essencialmente estatal.Aqui, faz-se mister ainda fazer uma pontuação sobre a 13ª Emenda da constituição dos Estados Unidos
da América, através da qual proibiu-se a escravidão naquele país. Esse direito fundamental, conforme pontua Daniel Sarmento e Fábio
Rodrigues Gomes (2011, p. 63), possui eficácia “erga omnes”, porquanto vincula não somente o Estado, mas também os particulares.
7  A expressão pode ser traduzida para o português, de maneira aproximada, como a “doutrina da ação do Estado”.
8  A respeito do tema, importante é a observação feita por Daniel Sarmento e Fábio Rodrigues Gomes (2011, p. 66): “A teoria da eficácia
horizontal mediata ou indireta dos direitos fundamentais foi desenvolvida originariamente na doutrina alemã por Günter Dürig, em obra
publicada em 195612, e tornou-se a concepção dominante no direito germânico, sendo hoje adotada pela maioria dos juristas daquele
país e pela sua Corte Constitucional”.

171
sendo diferente com a autonomia da vontade, também sujeita às ponderações necessárias a fim
de efetivar outros direitos na máxima medida possível9.
Assim sendo, parece o constituinte brasileiro ter perfilhado pelo melhor caminho, por-
quanto consagrou a incidência direta e imediata dos direitos fundamentais no direito privado.
Isso se explicita na análise do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, mormente em seu
§1°, quando este positiva que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata”. Este preceito deve ser interpretado em sentido amplo (latu senso) de
forma a vincular não somente o Estado, mas também os negócios jurídicos realizados na esfera
cível. A majoritária doutrina brasileira, bem como o Supremo Tribunal Federal tem reafirmado
tal posicionamento constantemente, dando cores nítidas a um fenômeno relativamente recente,
mas de sumária importância, que é a constitucionalização do direito privado10. Por esse prisma,
o reconhecimento da vinculação dos particulares às normas de caráter fundamental revela a
supremacia normativa da nossa Constituição Federal de 1988.
Neste ínterim, ela prevê, inclusive, a impossibilidade de deliberação sobre propostas
de Emendas à constituição tendentes a abolir os direitos e as garantias fundamentais (artigo 60,
§4ª, IV). Mas, a despeito disso, o constituinte não fez clara referência às limitações contratuais,
as quais, atualmente, não se sujeitam ao controle de constitucionalidade.
Na prática, contudo, acontecem inúmeros abusos, sobretudo nos contratos de adesão,
cujo conteúdo, não raro, está repleto de cláusulas abusivas em nítida afronta ao texto constitu-
cional, mormente aos princípios e às garantias de direito fundamental. Por isso, cabe ao Estado
não apenas respeitar os direitos previstos pela constituição, mas obrigar que os particulares os
cumpram. Sobre isso, disserta Ingo Wolfgang Sarlet:

Com efeito, é possível argumentar que justamente pelo fato de os direitos fundamentais
estarem sujeitos a violações oriundas direitos uns dos outros (no mínimo é possível
partir de um dever - juridicamente vinculativo - de respeito e não-violação por parte
dos sujeitos privados) é que o Estado, por estar vedado ao particular cuidar ele próprio
da tutela dos seus direitos (salvo em casos excepcionais), possui um dever de proteção.
(SARLET, 2010, p. 19)

3 A SUPREMACIA NORMATIVA CONSTITUCIONAL E O CONTROLE DE


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

CONSTITUCIONALIDADE

A própria unidade do sistema jurídico pressupõe a existência de uma norma funda-

9  Para Robert Alexy, o que distingue as regras dos princípios é que havendo um conflito entre regras, este deve ser resolvido no plano da
validade, mas quando existir uma colisão envolvendo princípios, deve ser resolvida por meio da ponderação, devendo ser cada um dos
princípios colidentes, enquanto mandamento de otimização, ser aplicados na máxima medida possível. (SILVA, 2002, p. 26)
10  Sobre isso, disserta Sarlet (2010, p. 1) quando pontua que “um dos principais fenômenos operados no âmbito justamente dessa evolução
constitucional referida é o da constitucionalização, por conta, em especial, da afirmação da supremacia da Constituição e da valorização
da força normativa dos princípios e dos valores que lhes são subjacentes, de toda a ordem jurídica”.

172
mental da qual emane a validade de todos os princípios e regras produzidos em determinado
Estado11. A Constituição Federal de 1988 consiste, portanto, num conjunto de normas supremas.
Consoante Dirley da Cunha (2016, p. 24), “as normas constitucionais das Constituições rígidas,
independentemente de seu conteúdo, têm estrutura e natureza de normas jurídicas, ou seja, são
normas providas de juridicidade, que encerram um imperativo”. Destarte, o texto constitucional
é a lei inaugural, a lei das leis, na qual deve estar embasado todo o ordenamento jurídico, sob
pena de resvalar em vícios de inconstitucionalidade, que resultam na invalidade da lei ou do ato
do poder público. Sobre isso, importante síntese faz Fernando Jovanovichs Driwin:

Assim, pressupondo a supremacia da Constituição Federal e um escalonamento


normativo, o legislador encontra no texto constitucional o fundamento de validade
dos atos normativos, devendo obedecer aos trâmites previstos para a elaboração das
leis, o que confirma que a rigidez constitucional provoca a ideia de fiscalização e
controle. (DRIWIN, 2015, p. 9).

O fato é que a supremacia normativa da constituição implica necessidade da existência


de, pelo menos, um órgão competente para aferir a validade formal e material das leis e dos
atos do poder público em relação ao texto constitucional12, rígido e hierarquicamente superior a
quaisquer regras ou princípios infraconstitucionais.
O controle de constitucionalidade surgiu em 1803, nos Estados Unidos da América,
quando –no caso líder (leading case) Marbury vs. Madison– o Chefe de Justiça John Marshall
afirmou a supremacia da Constituição e declarou a competência do judiciário para apreciar a
constitucionalidade das leis e dos atos do poder público (SILVA, 2009, p. 197).
Com o supracitado caso envolvendo William Marbury e James Madison, consagrou-se
o sistema de revisão judicial ( judicial review). Doravante, nos Estados Unidos da América, to-
dos os juízes ou tribunais estavam legitimados a apreciar a conformidade das leis e dos atos do
poder público (controle difuso) ante um caso concreto (controle incidental ou por via de defesa).
Assim, tratava-se de controle subjetivo porquanto sua realização se dá mediante um litígio en-
volvendo interesses intersubjetivos desenhados num conflito presente numa demanda judicial13.
É importante, entretanto, trazer à baila a inovação implementada por Hans Kelsen
quando fora convocado para redigir a constituição austríaca no início do século XX. Foi através
da obra de Kelsen que a Europa recepcionou o sistema de controle de constitucionalidade origi-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

nalmente criado nos Estados Unidos, conquanto tal modelo tenha sido absorvido com estrutura
bastante distinta:

11  Nesse sentido, disserta Norberto Bobbio em Teoria do ordenamento jurídico (1995, p 71).
12  Como bem salientam Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, “[...] a validade destas normas infraconstitucionais está
condicionada aos limites formais e materiais que lhes são impostos pela Constituição – que confinam a forma pela qual devem ser
elaboradas e a sua substância/conteúdo. Uma norma inferior que exceda esses limites é ilegítima, porquanto inquinada pelo vício da
inconstitucionalidade. ” (DIDIER JR., 2002, p. 320)
13  Ressalte-se, entretanto, que embora todo órgão judicial esteja legitimado à realização do controle de constitucionalidade, a Suprema
Corte assume relevante papel hegemônico no sistema da judicial review of legislation. Isso porque os norte-americanos adotam o princí-
pio do stare decisis, ou seja, as decisões da Corte Suprema têm caráter vinculante. Nesse sentido é a ressalva também feita pelo professor
Dirley da Cunha Jr. (CUNHA JÚNIOR, 2015, p. 230).

173
De feito, Kelsen concebeu um sistema de jurisdição constitucional “concentrada”, no
qual o controle de constitucionalidade estava confiado, exclusivamente, a um órgão
jurisdicional especial, conhecido por Tribunal Constitucional. (CUNHA JR, 2015,
p. 232)

Nesse prisma, a construção teórica de Hans Kelsen instituiu um novo paradigma de


controle de constitucionalidade, doravante realizado de forma abstrata, concentrada, cujas deci-
sões geram efeitos erga omnes, isto é, contra todos.
No Brasil, contudo, a opção do constituinte foi fazer uma espécie de combinação entre
os modelos de controle difuso e aquele inaugurado por Hans Kelsen, concentrado. Sendo assim,
a nossa Constituição Federal de 1988 positivou a possibilidade de controle abstrato de consti-
tucionalidade, que deve ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é
a guarda da mesma14. Nesse caso, o controle abstrato (pela via principal) pode ser suscitado
independentemente de haver demanda concreta, bastando quaisquer dos legitimados arguirem
a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo do poder público perante a nossa Corte
Suprema.
Além disso, o controle pode ainda ser realizado por qualquer juiz ou tribunal, indepen-
dentemente da instância. Todavia, nesse caso, a apreciação da constitucionalidade só pode ser
feita perante demanda concreta, de maneira incidental, cuja decisão vincula apenas as partes
(efeitos inter partes). É bem verdade que o próprio Supremo Tribunal Federal pode acabar jul-
gando recursos extraordinários oriundos de litígios reais e intersubjetivos. Contudo, diferente-
mente dos Estados Unidos, onde as decisões da Suprema Corte são vinculantes (stare decisis),
com eficácia em face de todos, as sentenças proferidas pelo STF geram efeitos apenas no litígio
concreto julgado, não vinculando, portanto, outros juízes ou tribunais.
Com efeito, no que diz respeito às violações de direitos fundamentais na esfera civil,
com o ordenamento vigente é impossível anular determinado contrato sob o fundamento deste
transgredir com os ditames constitucionais. Ora, se a Constituição é a Lei Maior dotada de su-
perioridade hierárquica, parece-nos um desmedido contrassenso admitir que negócios jurídicos
inconstitucionais permaneçam intocáveis por não se sujeitarem ao controle de constitucionali-
dade. O ministro Luís Roberto Barroso (2012, p. 33) pontua que “a supremacia da Constituição
se irradia sobre todas as pessoas, públicas ou privadas, submetidas à ordem jurídica nela funda-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

da”. Logo, outra não pode ser a consequência lógica de tal pressuposto: se a Constituição Fede-
ral de 1988 é documento dotado de supremacia capaz de vincular todas as normas produzidas
pela sociedade, não podem os contratos de adesão na esfera cível manterem-se válidos quando
ferem aquilo que prescreve o seu texto.
Tal problemática ganha ainda maior relevo na sociedade contemporânea, marcada pe-
los constantes ataques aos direitos fundamentais que, não raro, partem dos entes privados.

14  Nesse sentido, reza o caput do artigo 102 da Constituição Federal: “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda
da Constituição [...]”.

174
Aliás, a ideologia capitalista, formadora e conformadora do mundo líquido moderno15, parece
fomentar as mais diversas agressões à dignidade humana porquanto torna realidade a coisifica-
ção dos indivíduos e, por conseguinte, a sua massificação. Essa realidade pode ser depreendida,
sobejamente, a partir da crescente utilização dos contratos com cláusulas de adesão nos negó-
cios jurídicos celebrados16.

4 O (NECESSÁRIO) CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DOS NEGÓCIOS


JURÍDICOS COM CLÁUSULAS DE ADESÃO

Se a Constituição Federal de 1988 é rígida e, portanto, suprema, serve ela como


fundamento que confere validade jurídica às normas infraconstitucionais. Destarte, encontran-
do-se qualquer lei ou ato normativo em dissonância formal ou material com a vontade do cons-
tituinte, verifica-se o vício da inconstitucionalidade17. Todavia, neste contexto, com a afirmação
da incidência dos direitos fundamentais de maneira imediata também nas relações travadas en-
tre particulares, não há que se obstar o controle da constitucionalidade dos negócios jurídicos18.
Após a Constituição Federal de 1988, a primeira vez que o STF se deparou com a dis-
cussão acerca da incidência dos direitos fundamentais na esfera privada foi em 1995, quando
apreciou o Recurso Extraordinário nº 160.222, cujo relator era o ministro Sepúlveda Pertence.
Aqui, discutiu-se a conduta da empresa De Millus S.A., fabricante de roupas íntimas que obri-
gava as suas funcionárias à revista íntima, a fim de prevenir o furto de mercadorias. O gerente
da empresa foi condenado em primeira instância por constrangimento ilegal, mas, no Supremo
Tribunal Federal, a questão sequer chegou a ser julgada, pois acabou prescrevendo antes da
decisão da Corte.
Um outro caso, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, chegou ao Supremo através
do Recurso Extraordinário nº 158.215-4/RS. Aqui tratava-se de discutir ato de determinada
cooperativa que, negando o direito de defesa, acabou excluindo do seu quadro determinado
funcionário. Assim, o STF pontuou a necessidade do devido processo legal ser assegurado na
hipótese de exclusão de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos. Destarte, deve
ser garantido o direito fundamental à ampla defesa e ao contraditório.
Mais recentemente, a 2ª turma da nossa Corte Maior julgou o Recurso Extraordinário
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

15  Aqui, faz-se referência ao termo utilizado por Zygmunt Bauman (2011, p. 7), quando ele pontua: “o mundo que chamo de ‘líquido’
porque, como todos os líquidos, ele jamais se imobiliza nem conserva sua forma por muito tempo. Tudo ou quase tudo em nosso mundo
está sempre em mudança: as modas que seguimos e os objetos que despertam nossa atenção (uma atenção, aliás, em constante mudança
de foco, que hoje se afasta das coisas e dos acontecimentos que nos atraíram ontem, que amanhã se distanciará das coisas e aconteci-
mentos que nos instigam hoje) ”.
16  Sobre isso, disserta Eduardo Scaravaglioni em artigo publicado no site JusNavegandi em julho de 2000.
17  Luis Roberto Barroso (2012, p. 38) afirma que o raciocínio é irrefutável. Diz ele: “se a Constituição é a lei suprema, admitir a aplicação
de uma lei com ela incompatível é violar sua supremacia. Se uma lei inconstitucional puder reger dada situação e produzir efeitos regu-
lares e válidos, isso representaria a negativa da vigência da Constituição naquele mesmo período, em relação àquela matéria.
18  Both the problem of constituition and the problem of conflict are the result of a fundamental difference between state-citizen and citi-
zen-citizen relations. The state-citizen relation is a relation between a constitutional right holder and a non-right-holder. By contrast, the
relation between citizens is one rights-holders (ALEXY, 2009, p. 355).

175
nº 201.819-8. Tal caso envolvia a União Brasileira de Compositores, que também excluiu um
associado, negando-lhe o direito à ampla defesa e ao contraditório. Neste diapasão, a despeito
da relatora, Ellen Gracie, afirmar que o princípio do devido processo legal não incidiria na hi-
pótese, mas tão somente deveria ser observado o estatuto social da UBC, seu voto foi vencido.
O fato é que a mais recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é pacífica no
sentido de vincular os entes privados aos direitos fundamentais. Todavia, como é possível notar
diante dos casos acima mencionados, toda essa análise da compatibilidade material dos atos
praticados pelos particulares tem sido feita de maneira incidental, através dos Recursos Extraor-
dinários, e suas decisões apenas incidiram sobre esses casos concretos.
Com efeito, em nosso sistema de controle de constitucionalidade, impossível é arguir,
pela via principal, a inconstitucionalidade de determinado ato emanado de relação privada. Tal
dissonância com a Constituição pode até ser apreciada, desde que de maneira incidental, envol-
vendo interesses subjetivos desenhados num litígio concreto, de tal maneira que a decisão do
STF só gerará efeitos no caso apreciado. Essa situação, em verdade, acaba por obstar um contro-
le mais efetivo, sobretudo no âmbito dos negócios jurídicos que envolvem contratos de adesão,
não raro eivados de vícios de inconstitucionalidade. Assim sendo, especialmente na socieda-
de brasileira hodierna, marcada pelas enormes diferenças sociais, faz-se mister a observância
constante dos preceitos constitucionais, a fim de aplicá-los de forma sistemática na prática, de
maneira a evitar os possíveis abusos tanto dos setores públicos quanto dos entes privados. Sar-
mento e Gomes (2011, p. 84), ao debruçarem seus olhos sob esta problemática, defendem que:

Essas tristes características da sociedade brasileira justificam um reforço na tutela


dos direitos humanos no campo privado, em que reinam a opressão e a violência. Tal
quadro impõe ao jurista a adoção de posições comprometidas com a mudança do
status quo. Por isso, a eficácia dos direitos fundamentais na esfera privada é direta e
imediata no ordenamento jurídico brasileiro.

Destarte, parece correto defender a possibilidade também do controle de constitucio-


nalidade dos negócios jurídicos pela via principal, pelo menos no que diz respeito àqueles con-
tratos cujas cláusulas estão postas, cabendo apenas a parte contrária aderir. Para tanto, talvez se
fizesse necessário a criação de um órgão próprio, homólogo ao Supremo Tribunal Federal, a fim
de apreciar tais inconstitucionalidades. Uma excelente solução seria a criação de um Tribunal
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Constitucional brasileiro, idôneo para julgar apenas as ações suscitadoras de inconstitucionali-


dades, que nesse caso devem envolver não apenas as leis e os atos do poder público, mas tam-
bém os atos negociais firmados na esfera privada decorrentes de contratos de adesão.
Imagine-se, para exemplificar, que determinada Faculdade de Direito privada, no
seu contrato (com cláusulas de adesão, indiscutíveis) veda a utilização de turbante pelo seu
alunado nas dependências da instituição. Dessa forma, o direito à liberdade de consciência e
crença está explicitamente violado. Assim, o que o estudante deve fazer? Submeter-se à im-
posição contratual, mesmo sendo inconstitucional, ou arguir a dissonância do contrato com

176
os mandamentos constitucionais?
Não se pode obliterar, ainda, o fato desses abusos incidirem sobretudo perante os mais
vulneráveis, como o trabalhador necessitado que precisa submeter-se às condições do empre-
gador ou ainda aquele cidadão de conhecimento jurídico limitado, induzido a firmar negócios
jurídicos abusivos sem, sequer, notar o vício da inconstitucionalidade19.
É com base nessas pilastras argumentativas que parece plausível afirmar a necessidade
da criação de um Tribunal Constitucional no Brasil, cujas funções abarquem a apreciação da
inconstitucionalidade dos atos do poder público e das leis, mas também dos negócios jurídicos
firmados pelos particulares.
Poder-se-ia, entretanto, argumentar a impossibilidade de se adotar tal medida no sis-
tema vigente. Isso porque o nosso judiciário encontra-se atolado de processos, de maneira a
inviabilizar a racionalidade desse novo paradigma na prática. Todavia, este argumento não se
sustenta, pois com a criação de um Tribunal Constitucional competente para apreciar quaisquer
inconstitucionalidades, restando ao STF a prerrogativa de ser o tribunal supremo do país, o pro-
blema restaria resolvido. Nesse sentido, o sistema brasileiro se aproximaria ainda mais daquele
desenhado na Europa, de acordo com o qual, nas palavras de Louis Favoreu:

[...]o contencioso constitucional, que distinguimos do contencioso ordinário, é da


competência exclusiva de um Tribunal especialmente constituído para este fim, que
pode estabelecer preceitos, sem que possamos falar propriamente de litígios, por
meio da provocação desse Tribunal pelas autoridades políticas ou jurisdicionais e
até mesmo por particulares, com decisões que têm efeito absoluto de coisa julgada.
(FAVOREU, 2004, pp. 17-18).

Relevante também é a observação feita pelo professor Jorge Miranda (2003, p. 10), ao
pontuar que os atos perpetrados pelas entidades privadas, dos quais resultem violação de di-
reitos, garantias e liberdades não se configuram como inconstitucionais. Depreende-se, então,
que para o eminente constitucionalista, o Direito Privado apresenta mecanismos legítimos à
contenção de tais violações nas relações particulares20, devendo estes serem acionados quando
se fizer necessário. Com todas as licenças (e vênias) ousamos discordar de tal posicionamen-
to. Isto porque, se existem meios para o controle dos atos privados na própria esfera civil, é
bem verdade que aqueles não parecem adequados e idôneos à realização de efetiva contenção
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

quando estes vêm a transgredir com o previsto na Constituição Federal de 1988. Isto porque,
conforme a vivência prática mostra, não é incomum notar o frequente dissenso entre a conduta
das grandes empresas e as balizas funcionais que emanam do sistema de garantias e direitos

19  Neste ínterim, é preciso ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor implicou importante avanço no tocante à proteção do
consumidor ao positivar a possibilidade de anular contratos com cláusulas abusivas. Entretanto, tal lei não é suficiente para sanar a pro-
blemática aqui debatida porquanto nela não estão estabelecidos os abusos decorrentes de inconstitucionalidade. Com efeito, a proteção
despendida pelo CDC não se estende a todos os negócios jurídicos travados pelo cidadão no dia-a-dia. Ao contrário, não abarca, por
exemplo, os contratos trabalhistas.
20  Esta é a conclusão de Luis Roberto Barroso (2012, p. 33) quando afirma que “as condutas privadas violadoras da Constituição são
igualmente sancionadas, mas por via de instrumentos diversos”

177
consolidados. Por isto, os contratos de adesão, quando em disparidade com a normatividade
constitucional, devem ser fulminados, porquanto inválidos, por vício de inconstitucionalidade.
É natural que esta tese, por pioneira que é, seja alvo de críticas. Todavia, o Direito deve
constituir-se enquanto sistema aberto, de tal modo a adequar-se com as vicissitudes postas pelas
transformações da realidade. Assim, segundo Dworkin (2007, p. 291), o sistema jurídico em sua
integridade “pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito seja estruturado
por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal
adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se apresentem”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se a Constituição Federal de 1988 é rígida e suprema perante o ordenamento jurídi-


co, seus mandamentos devem imperar no Direito21. Por conseguinte, a fim de emprestar-lhe a
potencialidade normativa vinculante tanto na esfera pública quanto no âmbito privado, faz-se
mister desenvolver um sistema de controle de constitucionalidade diferente do que hoje con-
cebemos. Nestes meandros, parece-nos adequado sustentar a possibilidade da criação de um
Tribunal Constitucional brasileiro, incumbido de apreciar – pela via principal e de forma direta-
os possíveis vícios de inconstitucionalidade presentes não apenas nas leis e nos atos do poder
público, mas também nos negócios jurídicos travados entre os particulares, quando decorrentes
de contratos com cláusulas de adesão. Neste caso, a decisão da Corte Constitucional geraria
efeitos contra todos (erga omnes), de maneira a anular demais contratos similares.
Aqui não se defende, ressalte-se, o controle de constitucionalidade dos atos jurídicos
travados após discussão entre as partes, que estabelecem as cláusulas através do consentimento
mútuo, em respeito também às condições de existência e de validade negociais. Nesse caso,
deve prevalecer a autonomia privada, salvo quando o ato negocial ferir um direito fundamental
indisponível ou possua vícios de natureza civil.
Tal mudança sistemática é imprescindível à adequação do Direito aos deslindes da
sociedade. Isso porque, conforme asseveram Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,
(2016, p. 588) “afirma-se uma necessária limitação da liberdade de determinação do conteúdo
negocial para assegurar a primazia da cidadania”. Do contrário, de nada adiantaria falar em
constitucionalização do direito privado, porquanto tal expressão tornar-se-ia inócua. Em suma,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

obstar o contencioso constitucional dirigido aos atos firmados entre particulares é colocar os
contratos acima da Constituição Federal, já que mesmo em claro desatento aos direitos funda-
mentais, eles podem permanecer válidos e com plena eficácia.
Em síntese, aqui se defende a criação de um Tribunal Constitucional com o escopo
de apreciar quaisquer inconstitucionalidades (tanto nas leis e nos atos públicos quanto aquelas

21  The concept of the supremacy of the constitution confers the highest authority in alegal system on the constitution. Stating this princi-
ple does not mean just giving arank order of legal norms. The point is not solely a conflict of norms of differing dignity. The principle of
the supremacy of the constitution also concerns the institutional structure of the organs of State. (LIMBACH, 2001, p. 1)

178
presentes nos contratos com cláusulas de adesão). Por outro lado, ao Supremo Tribunal Federal
estaria resguardado o dever de julgar os Recursos Extraordinários, permanecendo como tribu-
nal supremo no Brasil.
Com isso, ressalte-se, além de proporcionarmos um novo modelo de controle de cons-
titucionalidade, se conferiria maior celeridade, eficiência e fluidez às demandas do STF, por-
quanto à Corte Suprema somente estaria outorgado o poder julgador, mas lhe seria subtraída a
competência de exercer o controle abstrato, provocado por via principal. Para isso, como já fora
dito alhures, existiria um órgão especial: o Tribunal Constitucional, que exerceria, exclusiva-
mente, a apreciação abstrata da constitucionalidade.

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THE INCIDENCE OF FUNDAMENTAL RIGHTS BETWEEN INDIVIDUALS: THE


CONSTITUTIONALIZATION OF PRIVATE LAW AND THE JUDICIAL REVIEW

ABSTRACT
This article is taking the incidence of fundamental rights in the private
law under consideration, analyzing if it is possible to develop a different
constitutional review system, different from the current one, in order
to apply it in legal business with adhesion clauses. Therefore, a com-
parative study about the efficiency of civil rights in the private law was
made as well as considerations about the form of American, Austrian
and Brazilian constitutional review. Finally, it is discussed the possi-
bility of judicial review in contracts of adhesion and it was concluded
that is necessary to think about a new model, whose premises were
proposed in this paper.
Keywords: Fundamental rights. Private law. Judicial Review. Adhesion
Contracts.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

181
Recebido 23/02/2017
Aceito 02/05/2017

EUTANÁSIA: O LIAME ENTRE A DIGNIDADE, A AUTONOMIA E A MORTE

Júlia Gabriela de Sena Nepomuceno1

RESUMO
O direito à vida, previsto no art. 5º da Constituição Federal, é um direito
fundamental do ser humano e goza de ampla proteção jurídica. Entre-
tanto, não raro, surgem situações existenciais degradantes que colocam
em xeque a faculdade ou a obrigatoriedade do viver. Amparado nessa
discussão, o presente artigo objetiva analisar a problemática da eutaná-
sia no contexto do direito brasileiro, à luz do princípio constitucional da
dignidade humana e do princípio civil da autonomia privada. Parte-se do
pressuposto de que a manutenção de uma vida degradante não é expres-
são de dignidade e que a indisponibilidade da vida não deve ser absoluta.
Palavras-chave: Eutanásia. Dignidade. Direito de morrer. Autonomia
privada.

“Se não se reconhece ao indivíduo o direito a uma morte racional,


voluntariamente decidida, a humanidade não pode chegar a aceitar
culturalmente a sua própria mortalidade”.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

(Rámon Sampedro)

1 INTRODUÇÃO

Graças ao caráter cidadão da Constituição Federal e ao fenômeno hodierno de perpe-


tuação dos princípios constitucionais nos vários estratos do ordenamento jurídico, o direito bra-

1  Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

182
sileiro, em sua completude, passou a ser norteado pelos fundamentos e pilares constitucionais.
Dentre eles, destacam-se a dignidade da pessoa humana, a inviolabilidade do direito à vida e à
liberdade, e a noção do ser humano como fim, fonte e fundamento de todas as normas jurídicas,
por quem e para quem o direito é criado e executado.
Em função disso, as questões que envolvem o homem e sua integridade física, moral e
psíquica são palcos de grandes discussões e debates no âmbito jurídico contemporâneo. A prá-
tica da eutanásia, por exemplo, tem suscitado, há décadas, controvérsias e polêmicas. Apesar da
tipificação do crime de homicídio no art. 121 do Código Penal brasileiro, muito se discute acerca
da retirada da vida de uma pessoa nas condições excepcionais e peculiares da eutanásia, quais
sejam: nas condições de um paciente que aguarda a morte certa e iminente, ou de uma pessoa
acometida por doença incurável ou quadro clínico irreversível.
Situado numa área cinzenta de incertezas e divergências teóricas, o debate moral, ético
e jurídico em torno do problema ganha especial contorno nos dias atuais, por conflitar direitos
fundamentais – a saber, o direito à vida e à liberdade –, por ameaçar a tutela cível do direito ao
corpo e, especialmente, por erigir a pertinente pergunta acerca dos alcances e das limitações
dos direitos da pessoa humana no que concerne a sua própria vida e a sua autonomia privada.
Objetiva-se, portanto, dentro da seara civil constitucional, do campo da bioética e do biodireito,
discutir a possibilidade do direito à morte digna, bem como, desconstruir o entendimento de
vida como dever e obrigatoriedade.

2 COMPREENSÃO CONCEITUAL, HISTÓRICA E CULTURAL DA EUTANÁSIA

O termo “eutanásia” foi originalmente proposto pelo filósofo Francis Bacon, no século
XVII, em sua obra “Historia vitae et mortis” e provém da palavra grega euthanatos, em que
eu designa “bom” e thanatos, “morte”. A eutanásia pode ser definida como sendo a morte an-
tecipada, acarretada por sentimento de piedade e compaixão à pessoa que sofre – portadora de
doença incurável, grave ou degradante, ou que está em estado terminal. É a busca pelo alívio
instantâneo e indolor de um sofrimento lancinante e irremediável, vivenciado constantemente
por alguns pacientes. Trata-se, portanto, de uma morte com motivações e preocupações huma-
nísticas.
Antes, a eutanásia denotava tão somente a antecipação da morte de pacientes termi-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

nais. Hodiernamente, contudo, como explica Claus Roxin (2008; p. 189), ela tem sido com-
preendida como o auxílio prestado a uma pessoa seriamente enferma, por pedido de vontade
expresso ou presumido, objetivando oportunizar uma boa morte, condizente com a sua própria
concepção de dignidade humana.
No decorrer da história, a eutanásia esteve presente em diversas épocas e culturas. Em
Esparta, por exemplo, era comum arremessar idosos e recém nascidos deformados do topo do
Monte Taigeto com o fito de evitar uma vida de sofrimentos e limitações. Em Atenas, o Senado
estabelecia que fosse ministrado veneno aos anciãos enfermos incuráveis. Comunidades pré-ce-

183
ltas e celtas, por sua vez, conservavam consigo a tradição de que os filhos eliminassem os pais
quando estes estivessem demasiado velhos ou doentes. Já na Índia, os gravemente enfermos
eram atirados no rio Ganges com barro em suas bocas e narinas. Na América do Sul, povos
nômades e rurais costumavam matar seus inválidos, em função de sua condição de fragilidade.
Em Roma, os próprios doentes, fatigados com a dor, a desesperança e o sofrimento advindos de
sua condição, procuravam os médicos para que lhes dessem descanso e tranquilidade através
da morte. Até mesmo enquanto imperava a soberania da Igreja Católica, durante a Idade Mé-
dia, dava-se aos guerreiros feridos em batalhas um punhal para que tirassem a própria vida e
eliminassem a dor e o sofrimento.
Longe de ser um debate exclusivo da atualidade, as ponderações acerca da eutanásia
remetem a um processo de reflexão antigo, que tem se construído no decorrer da história e sido
objeto de estudo de vários pensadores ilustres. Na Grécia antiga, por exemplo, Platão, Sócrates
e Epicuro argumentavam que a agonia, a dor, e a angústia advindas de uma enfermidade atroz
justificavam a morte e o suicídio. No Egito antigo, por sua vez, Cleópatra, ao considerar o tema,
ordenou que um grupo de sábios analisassem procedimentos de morte mais benevolentes e
menos brutais. Thomas More, Thomas Hobbes e o próprio Francis Bacon, ao propor o termo,
afirmavam que a eutanásia era o tratamento correto para as doenças incuráveis e defendiam o
procedimento desde que praticado pelos médicos. Mais recentemente, no século XX, o jurista
espanhol Jiménez de Asúa e o jusfilósofo Giorgio Del Vecchio, discorreram sobre o direito de
morrer, discutindo sobre o homicídio piedoso e sobre a distinção entre eutanásia e eugenia,
respectivamente. No Brasil, a primeira obra a abordar a eutanásia data da década de 30 e é atri-
buída ao médico Januário Cicco.2
A diversidade de maneiras pelas quais se observou a eutanásia no decorrer da história
da humanidade, a multiplicidade de culturas e povos que abrangeu, bem como os novos trata-
mentos surgidos com a medicina contemporânea, ensejaram grande confusão conceitual acerca
do tema – Motivo pelo qual se faz imprescindível três distinções principais.
A eutanásia não deve ser confundida com procedimentos como a distanásia, a ortota-
násia e o suicídio assistido. O primeiro deles, também chamado de obstinação terapêutica ou
tratamento fútil, corresponde ao prolongamento excessivo e artificial do processo de morte de
um enfermo terminal, resultando na extensão temporal de seu sofrimento. A ortotanásia, por
sua vez, significa, etimologicamente, “morte correta” (em que o prefixo grego orto quer dizer
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

“certo”, “correto”, e thanatos, morte). Trata-se, assim, da morte que segue seu processo natural,
sem qualquer interrupção ou prolongação. Nesse caso, o médico está encarregado apenas de
ministrar medicamentos que aliviem o sofrimento físico do paciente, até que a morte natural lhe
ocorra. O suicídio assistido, por fim, ocorre quando o doente assume a posição de agente ativo,
e, com o auxílio de terceiro – médico ou não – mata a si próprio.
Para melhor compreender as questões em torno da eutanásia, faz-se mister, ainda, uma

2  CICCO, Januário. Euthanásia. Rio de Janeiro: Editora Irmãos Pongetti, 1937.

184
breve exposição acerca de sua classificação. A eutanásia pode ser ativa ou passiva. Na eutanásia
ativa, tem-se a efetuação de atos comissivos, praticados por terceiros, que objetivam interrom-
per a vida do enfermo, a fim de livrá-lo de um sofrimento intolerável e desumano. Nesse caso,
são utilizadas terapias e métodos clínicos que acarretam a morte, como medicamentos contro-
lados, overdoses ou injeções letais. A eutanásia passiva ou negativa, por sua vez, traduz-se na
omissão de tratamento ou qualquer outro meio que mantenha a vida do enfermo, quando ela
está completamente comprometida. Nesse caso, o tratamento é negado ou suspendido e os apa-
relhos sustentadores da vida vegetativa são desligados, acelerando o processo da morte.
Diversos países, no decorrer do tempo, passaram a legalizar e a regulamentar a práti-
ca da eutanásia em seus ordenamentos jurídicos, dados os confrontos que se insurgiam com a
ausência de disposições legais sobre a questão. O Uruguai, por exemplo, inseriu a eutanásia em
seu Código Penal3 no ano de 1934, quando estabeleceu o homicídio piedoso, segundo o qual é
facultado ao juiz a isenção do castigo àquele que, portador de antecedentes honráveis, praticou
o homicídio por motivo benigno, tendo sido impulsionado por sucessivos pedidos da vítima. O
homicídio piedoso enseja isenção de pena, também, na Colômbia4, onde foi aprovado prelimi-
narmente em 1997, pela Corte Constitucional do país e, posteriormente, em 2015, pelo Ministé-
rio da Saúde, com a ressalva de que, para a lei colombiana, é necessário o consentimento prévio
do paciente terminal. (MOLINARI, 2014, p. de internet).
A Holanda, por sua vez, adotou legislação específica5 acerca da eutanásia em 2002,
quando aprovou abertamente a prática da eutanásia ativa, desde que ela ocorra a pedido do
enfermo incurável e que a irreversibilidade de seu estado seja confirmado por dois médicos.
Assim como na Holanda, a eutanásia foi expressamente legalizada, também, na Bélgica6.
Já países europeus como a Suíça, Suécia, França, Grã-Bretanha, Alemanha, Áustria,
Dinamarca, Noruega, Hungria, República Tcheca, Espanha e Portugal, apesar de não autoriza-
rem a eutanásia, permitem que seja fornecida ajuda de terceiro para que o paciente terminal,
por si mesmo, ponha fim a própria vida – legalizando, portanto, a prática do suicídio assistido.
Na Suíça, especificamente, é permitido, inclusive, o funcionamento de organizações como a
Dignitas e a Exit, que oferecem serviços para a morte assistida mediante o pagamento de uma
taxa. Na maioria dos casos, permite-se ao enfermo recusar o tratamento médico ou solicitar
ajuda clínica para morrer, sendo exigido, muitas vezes, apenas o pedido expresso do paciente,
que pode ser oral ou escrito, à depender do local.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Nos Estados Unidos da América, o assunto também tem sido objeto de discussões ju-
rídicas. Estados como Oregon, Washington, Vermont, Montana e a Califórnia, autorizaram, na

3  URUGUAI, Lei nº 9.914, de 1934, Código Penal. Art. 37 (Del homicídiopiadoso).


4  Resolução nº 1216, de 20/04/2015, expedida pelo Ministério da Saúde da Colômbia autoriza a eutanásia. A resolução foi uma determi-
nação da Corte Constitucional colombiana, que, através da sentença T-970 de 2014, ordenou ao Ministério da Saúde garantir o direito à
morte digna nas clínicas do país.
5  Lei de 12 de abril de 2001, relativa ao Término da Vida sob Solicitação e Suicídio Assistido e alteração do Código Penal e da Lei de
Entrega do Corpo. A lei altera os arts. 293 e 294 do Código Penal holandês.
6  “Lei relativa à Eutanásia”, de 28 de maio de 2002, autorizou a eutanásia na Bélgica.

185
última década, a possibilidade de recusa de tratamento médico, o suicídio assistido e a eutanásia
passiva7.
Observa-se, desde já, a existência de um debate à nível global acerca do tema, razão
que torna evidente a necessidade de uma discussão a respeito das implicações jurídico-sociais
da eutanásia, também, em terras brasileiras.

3 EUTANÁSIA E DIREITO BRASILEIRO: UM CONFRONTO PAUTADO NA


SUPREMACIA DO DIREITO À VIDA E NO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA

Conforme os ensinamentos de Farias e Rosenvald (2015, p. 33-44), o ordenamento ju-


rídico brasileiro tem como valor fundamental, instituído pela Constituição Federal, a dignidade
da pessoa humana, cujo principal corolário é a elevação do homem ao cerne de todo o sistema
jurídico e seu consequente reconhecimento como razão e finalidade das normas de direito. A
dignidade da pessoa humana engloba a afirmação da integridade física, psíquica e intelectual
do indivíduo; garante a autonomia e o livre desenvolvimento da personalidade e, ademais, serve
como mola propulsora da inviolabilidade do direito à vida. Este último, por sua vez, previsto no
art. 5º da Constituição Federal, é o mais fundamental dos direitos constitucionais, uma vez que,
nas palavras do ministro Luiz Edson Fachin “é condição essencial de possibilidade dos outros
direitos”. A partir dessa conjuntura, prosperou no ordenamento jurídico brasileiro a noção de
supremacia da vida humana. (FACHIN, 2007, p. 46 e ss.)
Aliado a esse cenário, vivencia-se um fenômeno de constitucionalização do direito
privado, que tem gerado como importante resultado a aplicabilidade dos direitos fundamentais
às relações privadas e, segundo Farias e Rosenvald, tem implicado no dever, também cível, de
assegurar a proteção da vida humana de forma integral e prioritária. Nesse sentido, a dignida-
de e o direito à vida, por sua condição hierárquica suprema, passam a se infiltrar em todos os
ramos do direito brasileiro.
Essa acepção é expressa, por exemplo, através dos direitos da personalidade, que, mes-
mo integrando o direito civil, vertente essencialmente privada do direito, revestem-se do espec-
tro dos valores constitucionais, à medida que consistem em “direitos atinentes a tutela da pessoa
humana, considerados essenciais a sua dignidade e integridade”.8 Os direitos personalíssimos
tutelam, por exemplo, a vida, o corpo, a liberdade, a honra e a imagem do homem. Dada sua
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

pertinência à pessoa, tais direitos são intransmissíveis, inalienáveis, absolutos, imprescritíveis,


extrapatrimoniais, vitalícios e relativamente disponíveis.9

7  A prática foi permitida no estado do Oregon em 1997, através do “DeathwithDignityAct”. Em Washington, a


autorização ocorreu mediante referendo popular, em 2008. Vermont e a Califórnia, por sua vez, utilizaram-se
do processo legislativo, promulgando o Act 39 (Vermont PatientChoiceandControlattheEndof Life Act), em
2013, e a lei SB-128, de 2015, respectivamente. Já em Montana, a autorização da eutanásia se deu judicialmen-
te, através do caso Baxter vs. Montana, de 2009.
8  TEPEDINO apud FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 140.
9  FARIAS; ROSENVALD; 2015, p. 142-146.

186
Essa configuração constitucional do direito privado, entretanto, não foi sempre de tal
maneira. No início do século XX, por exemplo, as disposições cíveis limitavam-se a regular
as relações patrimoniais, através dos direitos reais e das obrigações. O princípio norteador do
direito privado era a autonomia da vontade, de modo que todas as demais situações do ser hu-
mano estavam a ela subordinadas.
Com o avançar do tempo, contudo, essa estrutura passou paulatinamente por uma série
de mudanças que visavam a correção dos desequilíbrios provocados nas relações sociais pela
noção absoluta da autonomia da vontade. A transformação paradigmática no direito privado
decorreu do surgimento dos regimes totalitários – como o stalinismo, o fascismo e o nazismo
– que em nome da supremacia do Partido e do Estado, ensejaram completo descaso para com
o ser humano, resultando numa gama de atrocidades, como campos de extermínio e bombas
nucleares. A situação de terror advinda dos governos totalitários provocou uma necessidade
mundial de proteção do ser humano, que se concretizou com a implementação do princípio da
dignidade da pessoa humana e com sua expansão rumo a todas as esferas do direito.
Dotada de um pluralismo conceitual, a dignidade da pessoa humana é uma concepção
pertencente tanto à religião, quanto à filosofia e ao direito. Na primeira esfera, ela se revela na
crença cristã de que o homem foi criado à imagem e à semelhança de Deus. Seus pressupostos,
difundidos por meio da Doutrina Social da Igreja10, possibilitaram que a dignidade humana se
tornasse o alicerce de várias instituições sociais. No âmbito da filosofia, por sua vez, a noção de
dignidade esteve muitas vezes atrelada à ideia de honra, títulos e destaque. Foi apenas a partir
de Kant que ela surgiu como essência da humanidade. Para o filósofo, o ser humano deve ser
um fim em si mesmo, jamais meio. Enquanto fins, ou as coisas possuem preços e podem ser
trocadas por outras equivalentes, ou possuem dignidade e ultrapassam qualquer limitação pa-
trimonial. O homem, para Kant, enquanto ser moral era, também, ser digno.
Na seara do direito, a dignidade da pessoa humana esbarra num leque amplo de defini-
ções doutrinárias, mas que se orientam pelo mesmo princípio: o da dignidade como o reconhe-
cimento do homem enquanto pessoa e, por conseguinte, enquanto sujeito de direitos e para além
disso, de seu reconhecimento como baliza e fundamento da ordem jurídica imperante. O Estado
e o direito não podem encontrar sua razão de ser em si mesmos. Ela, em sendo o fundamento
de tudo, deve estar no próprio homem e em sua dignidade.
Diante do exposto, com a ideia de dignidade da pessoa humana influenciando todo o
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ordenamento jurídico, o direito privado sentiu a necessidade de adequação de seus institutos


ao novo paradigma. Ocorreu, então, a transformação de uma disciplina exclusiva das relações
patrimoniais para uma disciplina atrelada à proteção global da pessoa humana.
A esses direitos e valores que exaltam a intangibilidade da vida e a primazia da digni-

10  A Doutrina Social da Igreja consiste num conjunto de ensinamentos católicos agrupados em encíclicas e
pronunciamentos papais, que carregam consigo a noção de dignidade da pessoa humana como fundamento. O
mais famoso desses documentos é a Encíclica RerumNovarum, de Leão XIII, de 1891.

187
dade do homem, contrapõe-se, a princípio, a prática da eutanásia. Esta, a um primeiro olhar, pa-
rece remeter àquele estado de liberdades absolutas, em que imperava a soberania da autonomia
da vontade, e que hoje foi suplantado por uma liberdade comedida afim de exaltar a dignidade
humana. Sem embargo, as entrelinhas que permeiam esses dois extremos são mais densas do
que se imagina.
Juridicamente, a questão parece estar acertada. A proibição da eutanásia verifica-se
consolidada, ainda que não expressamente, no art. 121 do Código Penal. Para o direito brasilei-
ro, a prática de permitir a morte de tal maneira, mesmo que consentida ou até implorada, cons-
titui conduta típica, ilícita e culpável, caracterizando-se como crime de homicídio. De acordo
com seu § 1º, o valor social ou moral que orientam a ação e o sentimento de piedade inerente à
conduta da eutanásia podem ensejar a redução da pena de um sexto a um terço (homicídio pri-
vilegiado). Não se pode, entretanto, por hipótese qualquer, reconhecer a licitude do ato – Afinal,
ainda que por razões pertinentes e humanitárias, trata-se da autorização da morte em face de
um ordenamento jurídico protetor da vida.
Ademais, as próprias regras orientadoras da conduta profissional médica, por dever de
obediência aos princípios supracitados, acentuam a proteção da vida e do homem. Pelo jura-
mento de Hipócrates11, o médico declara que “A ninguém darei, para agradar, remédio mortal,
nem conselho que o induza a perdição”. O Código de Ética Médica12, por sua vez, ao dispor
sobre a relação dos médicos com seus pacientes e familiares (Capítulo V), é preciso ao estabe-
lecer, em seu artigo 41, que é vedado ao médico abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido
deste ou de seu representante legal.
Exposta a força vinculante que o princípio da dignidade humana e o direito à vida
exercem no ordenamento jurídico brasileiro como um todo, tem-se justificada a magnitude do
problema que envolve a eutanásia. No último século, a medicina evoluiu exponencialmente no
que se refere ao retardamento da morte. O funcionamento das unidades de terapia intensiva e o
grande volume de pesquisas que vem se desenvolvendo acerca da cura de doenças permitem a
manutenção artificial da vida por longos períodos. Esse prolongamento da longevidade humana
é, indubitavelmente, uma forma de materialização do princípio da dignidade, uma vez que per-
mite ao paciente maiores chances de tratamento e de sobrevivência.
Contudo, há entre os beneficiados, um grupo específico de pacientes que – tomados
por doenças incuráveis, reduzidos a um degradante estado vegetativo ou, ainda, acometidos por
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

dores permanentes e insuportáveis – preferem a morte à manutenção clínica de suas vidas.


Origina-se, por conseguinte, um conflito pautado na contraposição entre os valores cons-
titucionais previamente expostos e a disponibilidade da vida. O princípio da dignidade da pessoa
humana é, portanto, colocado em xeque, pois ao mesmo tempo em que impossibilita a destruição
da vida e que confere ao indivíduo o direito de viver, o obriga a suportar uma situação existencial

11  O juramento de Hipócrates é um juramento solene, realizado pelos médicos, através do qual eles se comprometem a exercer a medicina
legal e honestamente. Disponível em: <http://www.cremesp.org.br/? siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em 20/02/2017.
12  Resolução nº 1.931/2009, do Conselho Federal de Medicina.

188
deplorável, marcada pelo sofrimento e pela dor, que é, em verdade, no mínimo, indigna.

4 SISTEMATIZAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Face ao exposto, basta refletir a respeito da condição degradante do paciente para que o
explicitado no ordenamento jurídico seja contestado e para que sejam formuladas duas questões
fundamentais: até que ponto o Estado pode interferir na liberdade, na autonomia da vontade e
no poder de autodeterminação do indivíduo; e, principalmente, até que ponto cabe ao paciente
o poder de escolha sobre a própria vida. A resposta para essas indagações depende substan-
cialmente dos estados de consciência e de capacidade dos pacientes no momento da tomada de
decisão.
Dessa maneira, a exemplo da divisão feita pelo jusfilósofo americano Ronald Dworkin13,
é possível sistematizar a problemática da eutanásia, a princípio, em três grandes grupos de re-
flexão: o grupo que engloba pacientes conscientes e capazes; aquele com pacientes conscientes,
mas incapazes; e um terceiro, com pacientes inconscientes e incapazes.
Fala-se em consciência e capacidade, por exemplo, nos casos em que uma pessoa, até
então saudável, descobre-se portadora de uma doença grave, crônica e incurável, que incorrerá
em drásticas consequências futuras e cujo resultado certo e inevitável é a morte. Não queren-
do submeter-se ao tratamento e enfrentar suas adversidades, por saber o fim que lhe espera, a
pessoa opta pela interrupção de sua vida. Essa situação ocorreu, por exemplo, no famoso caso
estadunidense, datado de 1990, em que uma senhora, Janet Adkins, diagnosticada com Mal de
Alzheimer em estado inicial, preferiu recusar o tratamento e buscar um médico (Dr. Kervokian,
também conhecido como Dr. Morte) que evitasse seu sofrimento futuro.
Nesse caso, contudo, em razão de o paciente ter consciência de seu estado degradante
e ter a capacidade de tirar a própria vida, ou de recorrer diretamente ao auxílio de terceiros para
tal, acaba-se incorrendo no puro suicídio – que, por si só, é um irrelevante penal – ou no suicídio
assistido, que, conforme já foi exposto, consiste numa prática, em regra, distinta da eutanásia.
À vista disso, apenas os dois últimos grupos de reflexão se mostram relevantes para a discussão
em pauta, razão pela qual necessitam ser melhor explorados.

4.1 A eutanásia em pacientes conscientes, mas incapazes


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Fala-se em consciência e incapacidade, por sua vez, nas situações em que uma pessoa,
com funcionamento pleno de suas faculdades mentais e apta, biologicamente, a continuar viva,
prefere a morte, devido a uma condição pessoal debilitante, que ela encara como degradante,
humilhante e detestável. Nesses casos, embora a pessoa tenha a vontade consciente de tirar a
própria vida, não possui a capacidade física necessária para fazê-lo.
Impossível não relacionar à situação o caso verídico do espanhol Ramón Sampedro.

13  DWORKIN apud SÁ, M. F. F; Oliveira, P. M. G, 2005, p. 114-117.

189
Tetraplégico por 28 anos, Sampedro lutou para obter autorização da justiça espanhola para
morrer, a qual foi, entretanto, reiteradamente negada. Em requerimento por ele formulado e en-
dereçado às cortes judiciais da Espanha14, Ramón comenta que a ilicitude da eutanásia implica
numa condenação à vida, quando, na verdade, “viver é um direito, mas não uma obrigação”.
Como aponta Pessini (2002, p. 86-88), o paciente, nessas circunstâncias, vive cercado
pela dor física; pela dor psíquica, decorrente da perda de sonhos e esperanças; pela dor social,
fruto do isolamento e da supressão de seu papel sociofamiliar; e pela dor espiritual, expressada
através da desesperança, da impotência e da falta de significado da vida, deixando-a vazia. Em
somatória, tem-se um sofrimento global do ser humano. A morte, nessas condições, destitui-se
de toda sua carga axiológica negativa e assume a conotação de alívio e paz.
Nesses casos, julga-se imprescindível levar em conta a autonomia do paciente no que
diz respeito às suas escolhas conscientes, pois afinal, se possuísse a capacidade física para
concretizá-las, o faria por si mesmo. É indispensável salientar que a defesa da autonomia, aqui
propalada, não impede que se entenda como necessária a criação de determinados limites legais
para ordenar o procedimento da eutanásia, de modo que ele estivesse sempre pautado nos bons
costumes e na razoabilidade. A definição de determinadas formalidades e limitações permitiria
que a eutanásia fosse realizada de forma comedida e sensata, evitando incorrer em condutas
dolosas ou interpretações extensivas prejudiciais ao paciente.
Num exercício de direito comparado, basta recorrer às disposições internacionais pre-
viamente mencionadas acerca da questão, para se dar conta de que é possível o império da
autonomia da vontade de forma prudente e ordenada. Critérios como exigir que a irreversibili-
dade do estado clínico seja atestada por mais de um médico; ou que a expressão de vontade do
paciente se dê por via oficial, reconhecida pela justiça; e, até mesmo, formalidades como exigir
uma avaliação psicológica, ou um tempo mínimo entre o início da condição hospitalar e a práti-
ca da eutanásia, são, em seu conjunto, critérios passíveis de serem adotados para a boa execução
da eutanásia no grupo de pacientes em questão.

4.2 A eutanásia em pacientes inconscientes e incapazes

O terceiro caso em que se observa a possibilidade de ocorrência da eutanásia, por fim,


é nas situações de pacientes inconscientes e, portanto, incapazes. Aqui, tem-se uma conjuntura
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

em que inexiste qualquer possibilidade de reestabelecer a saúde do paciente, confinando-lhe a


um estado vegetativo permanente, em que subsistem tão somente algumas poucas funções fisio-
lógicas. Nesses casos, embora o paciente possa, às vezes, apresentar ciclos de alternância entre
a vigília e o sono e possam, até mesmo, em alguns quadros excepcionais, respirar sem a ajuda
de aparelhos, ele já não demonstra qualquer capacidade de percepção do meio, nem de resposta
consciente aos estímulos externos.
Nessas circunstâncias, os tratamentos sequer beiram a cura; eles detêm-se, quando

14  Processo de nº 19.6.1993, da 1ª instância nº 5 de Barcelona.

190
possível, no estacionamento da doença e no alívio efêmero da dor. Diante da insuficiência das
faculdades mentais, da total incapacidade de compreensão do mundo e de execução de ações
próprias, o paciente reduz-se ao estado degradante e indigno de uma maquinaria biológica,
mantida por aparelhos artificiais, que nada é e nada pensa por si só.
Conforme analisa Horta (1999, p. 2) “Na sociedade tecnológica moderna, morrer é
algo que acontece no hospital. E o moribundo, frequentemente, já está inconsciente e se en-
contra numa UTI”. Desse modo, situações que se enquadram no terceiro estado de pacientes
são demasiado frequentes. Tem-se, por exemplo, o emblemático caso estadunidense de Terry
Schiavo que, em decorrência de uma parada cardíaca e de disfunções cerebrais, esteve em esta-
do vegetativo por 15 anos até que seu marido conseguisse autorização judicial para desligar os
aparelhos que a mantinham viva.
No caso particular em que os pacientes se encontram incapazes de exercer sua autono-
mia, é necessário a existência de providências eficazes que protejam seus direitos e interesses.
No ordenamento brasileiro, essa garantia da autodeterminação é proporcionada pelo testamento
vital, que para além de disciplinar o destino dos bens do testador, pode disciplinar, também,
o tratamento médico que deseja receber – em decorrência do disposto no § 2º do art. 1.857 do
Código Civil, segundo o qual são válidas as disposições testamentárias não patrimoniais, ainda
que só a elas se atenha o testador.
As diretivas antecipadas de vontade15, especialmente sob a forma de testamento vital,
consistem no documento livremente revogável através do qual o cidadão maior de idade e ca-
paz, sem qualquer comprometimento de suas faculdades psíquicas, expressa antecipadamente
sua vontade consciente, livre e esclarecida acerca dos cuidados de saúde que pretende ou não
receber, em caso de tornar-se, por razão qualquer, incapaz de manifestar sua vontade pessoal e
autonomamente. O cidadão pode optar, por exemplo, por não ser submetido à manutenção ar-
tificial de suas funções vitais ou a tratamento fútil e inútil, cujo único resultado seria o retardo
do processo natural de morte. Bem como, deve ser a ele permitido dispor quais procedimentos
devem ser levados à cabo numa situação de estado vegetativo permanente, tudo em conformi-
dade com aquilo que melhor se coaduna com suas concepções de vida boa.
As diretivas antecipadas de vontade permitem, ainda, a nomeação de um procurador
de cuidados de saúde, que poderá, na incapacidade do autor, interpretar as vontades dispos-
tas, orientando-se sempre no sentido de exigir que a vontade do outorgante seja cumprida e
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

defendendo seus valores, mesmo que estes contraponham os seus próprios. Na ausência do
outorgante, poderá recair sobre o procurador o poder de decisão quanto a aceitação ou não de
determinado tratamento médico que o primeiro venha a precisar. É importante salientar que
deve sempre prevalecer a vontade do outorgante em detrimento da do procurador, atuando este
tão somente, nos pontos e questões em que aquele se manter omisso.
Desse modo, diante das situações de inconsciência, os médicos, no dever de respeitar a

15  Resolução CFM nº 1.995/2012, que dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.

191
autodeterminação do indivíduo, estariam aptos a praticar a eutanásia, se assim fosse da vontade
do paciente, tal qual previamente estabelecida, proporcionando-lhe uma “boa morte” e poupan-
do-lhe dos sofrimentos de um estado terminal vegetativo. Ocorre, entretanto, que a resolução
responsável por regulamentar as diretivas antecipadas de vontade afirma que as preferências
e desejos em desacordo com o Código de Ética Médica devem ser desconsiderados pelos mé-
dicos – Motivo que, por óbvio, impossibilita a efetivação da eutanásia por simples querer do
indivíduo.
Entende-se, diante disso, a indispensabilidade de uma aceitação global – e não apenas
fragmentária – da autonomia privada e da liberdade do indivíduo no ordenamento jurídico
brasileiro. A decisão de um sujeito, capaz e consciente, acerca da própria morte e do próprio
sofrimento não cabe ser ditada pelo Estado ou por terceiros – Ao revés, ela deve ser respeitada,
pois é um direito do paciente salvaguardar sua dignidade como pessoa, até mesmo no momento
de sua morte.
De fato, deve-se preservar os ditames da proporcionalidade e da razoabilidade nos atos
de manifestação da vontade privada – motivo pelo qual julga-se como indispensável a aplicação
dos critérios anteriormente elencados para autorização da eutanásia. De igual modo, entende-se
que, inexistindo as diretivas antecipadas de vontade, bem como, na ausência de uma declaração
que autorize a eutanásia, feita lúcida, clara e reiteradamente, ainda que de maneira informal,
pelo paciente a um familiar próximo, o procedimento deve permanecer interdito– uma vez que,
ausentes essas circunstâncias, torna-se impossível determinar, com certeza, a real vontade do
enfermo. Não obstante isso, sempre que a escolha couber ao próprio paciente, e este estiver em
condições de fazê-lo, não há razões plausíveis para tirar-lhe a autonomia de decisão acerca da
própria morte.

5 O DIREITO DE MORRER DIGNAMENTE

Diante das considerações tecidas anteriormente, é substancial perceber que, indepen-


dente do estado de consciência ou de capacidade em que se encontre o paciente, a imposição
de tratamentos inúteis e a manutenção forçada da vida sem qualquer qualidade resultam numa
existência desumana e cruel; bem como, na obrigação ao sofrimento, o que por si só, se opõe
ao princípio constitucional da dignidade humana (SZTAJN; 2002, p. 55). Nesse sentido, reitera
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Martins (2003, p. 115):

A dignidade deve acompanhar o homem desde seu nascimento até a sua morte, posto
que ela é da própria essência da pessoa humana. Assim, parece-nos que a dignidade
é um valor imanente à própria condição humana, que identifica o homem como ser
único e especial, e que, portanto, permite-lhe exigir ser respeitado como alguém que
tem sentido em si mesmo.

De igual modo, Farias e Rosenvald declaram que “ao direito de viver com dignidade,

192
haverá de corresponder como espelho invertido o direito de morrer dignamente”. (2015, p. 310).
Como traz Sampedro, em sua carta de requerimento, o absurdo da eutanásia não está no pedido
de disposição da vida como forma de correção da dor irracional, mas sim, está na atitude médi-
ca e judiciária que propõe diversas formas de morrer, exceto a maneira voluntária e legalmente
autorizada. A omissão da justiça em proporcionar um procedimento médico que oportunizasse
uma morte rápida e indolor e, portanto, digna, obriga o paciente a submeter-se a processos jul-
gados ilícitos ou a métodos inapropriados e mais tortuosos – como a recusa do tratamento ou da
alimentação – para que se possa obter a morte.
Importante esclarecimento é trazido à baila pela professora de antropologia e pesqui-
sadora da Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), Débora Diniz (2004, p.
124-125). Ela postula que existem dois princípios éticos que devem ser analisados para ponderar
questões acerca da eutanásia: o princípio da autonomia e o princípio da dignidade. No primeiro
caso, cabe perceber que a eutanásia deve ser concebida como o exercício de um direito indivi-
dual e, portanto, deve ocupar a esfera dos aspectos da vida humana sobre os quais o poder de
regulamentação do Estado não atinge, por ser tão específico, próprio e pessoal do indivíduo, que
diz respeito somente à sua consciência e vontade.
No concernente ao segundo caso, ao ponderar os limites legais que a dignidade da
pessoa humana teoricamente impõe a eutanásia, Diniz avalia que é fundamental questionar-se
em que medida pode-se considerar digna a vida de uma pessoa incapaz de executar por si só
suas funções vitais, de uma pessoa inconsciente ou descrente, cujo desejo mais profundo – dado
seu estado degradante – é a morte. Não há sentido falar em vida digna quando ausente qualquer
condição, ou sequer perspectiva futura, de bem-estar físico, mental e social.
Nesse sentido, se por um lado a dignidade se impõe como obstáculo ao direito de mor-
rer, por outro, ela se mostra como seu principal argumento. Negar a eutanásia consiste na nega-
ção da defesa da dignidade da pessoa humana e de sua liberdade de consciência. Desse modo,
ao invés de ser visto como uma afronta aos direitos fundamentais que o ordenamento jurídico
confere ao indivíduo, o direito de morrer deve ser compreendido como forma de respeito do
Estado para com o cidadão. Afinal, como salienta o filósofo Hans Jonas16, existe sim um direito
à vida, mas não uma obrigação de viver. Rámon Sampedro, ao requerer às cortes espanholas e
ao Supremo Tribunal Europeu de Direitos Humanos seu direito de morrer, sustentou:
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Quando o direito à vida se impõe como dever, quando se penaliza exercer o direito
a liberar-se da dor absurda que degrada a existência de uma vida absolutamente
deteriorada, o direito se converte em absurdo e a vontade das pessoas que o
fundamentam, normativizam e impõem é uma verdadeira tirania.

Não sendo a vida um dever e estando a eutanásia intimamente entrelaçada à garantia

16  Hans Jonas foi um filósofo alemão, autor da obra O princípio responsabilidade (1979), no qual discutia os
dilemas éticos surgidos na sociedade em decorrência do avanço da tecnologia.

193
da dignidade da pessoa humana no momento da sua morte, insta frisar que o direito à morte
não viola a integridade e a saúde do paciente, uma vez que o estado por ele vivenciado é, por si
só, um desdobramento infindo de infortúnios e sofrimentos. Destarte, ao falar em ameaça ao
direito à vida e à dignidade, deve-se lembrar, primordialmente, que o indivíduo já não goza da
vida plenamente e que mantê-lo em estado tal, quando infeliz e desesperançoso, contra a sua
vontade, já não é, também, indício supremo de dignidade. Ao contrário, sua dignidade talvez
esteja, na verdade, na possibilidade de escolha do paciente, como expressão de sua autonomia
de vontade e de sua consciência, sempre que este o puder fazer.
Ao posicionar-se sobre a questão, Dworkin17 explica que a confusão em torno da dis-
ponibilidade da vida decorre do fato de que, para alguns, a vida humana não possui apenas um
valor intrínseco, mas também, um valor sagrado, que lhe confere um caráter de intocabilidade.
Essa visão, arraigada pela crença religiosa, é comumente empregada como argumento contrário
à eutanásia e alicerça-se, muitas vezes, na noção de vida como propriedade e domínio de Deus,
sendo Ele o único capaz de dá-la ou tirá-la. Cabe atentar, entretanto, para o fato de que o Estado
brasileiro é um estado laico, não devendo sujeitar suas leis e princípios jurídicos às concepções
religiosas.
Dworkin esclarece, ainda, que a vida humana, além de carregar consigo o princípio
religioso da santidade, carrega também, o princípio da sacralidade, que pode ser entendido tanto
pelo viés cristão quanto pelo viés secular. Quando percebida pelo prisma desta última acepção,
a vida assume o valor moral da existência humana, cujo cerne, numa visão essencialmente an-
tropocêntrica, está na dignidade do homem. Mas, ora, tendo o ser humano perdido seu respeito
e seu sentido como pessoa e estando, portanto, submetido a uma condição degradante, esta não
é um vida digna e, por conseguinte, não há significado em ser vivida.
Depreende-se, pois, que o direito à vida garantido pela Constituição Federal deverá
prevalecer como indisponível e inviolável sempre que se tratar de uma existência digna e proba.
Ao contrário, sendo ela, de acordo com os valores e a consciência de cada indivíduo, indigna
e degradante, seu caráter indisponível deveria ser desconsiderado, pois nessas condições, ela
já não se mostra como garantidora da dignidade, mas sim, como seu obstáculo. Não estaria a
verdadeira concretização da dignidade atrelada à realização da liberdade individual, ao invés
da coerção, da obrigatoriedade e da imposição da vida como dever?
Nessa perspectiva, para análise da eutanásia, faz-se mister considerar os interesses
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

fundamentais das pessoas e sua autonomia, devendo respeitar-se as decisões alheias, ainda que
delas se discorde, pois apenas a própria pessoa conhece seu verdadeiro interesse e vontade. A
autonomia da pessoa em decidir o que julga ser melhor para si – optando por submeter-se ou
não a determinado tratamento médico, por exemplo – é corolário necessário do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Cabe analisar, ainda, se a autonomia da vontade, fundamento jurídico-filosófico da li-

17  DWORKIN apud SÁ, M. F. F; Oliveira, P. M. G, 2005, p. 117-119.

194
berdade pessoal para disciplinar os próprios interesses patrimoniais, é capaz de alcançar a esfe-
ra existencial, conferindo ao paciente o poder jurídico de autodeterminar-se e decidir conforme
lhe convém acerca da própria morte.
A resposta para essa questão remete a uma bifurcação de correntes teóricas: a paterna-
lista e a liberal (Dworkin; 2003, p. 270). Para a primeira delas, o indivíduo é incapaz de decidir
sobre a própria morte, pois diferente do médico, não sabe o que é melhor para si. Essa corrente,
que imperou nos países latino-americanos, confere uma atitude paternalista à própria conduta
médica, que implica na obrigatoriedade da vida a despeito da vontade do paciente.
O ponto de vista liberal, por sua vez, preza pela autodeterminação da vontade como
respeito ao princípio da dignidade. No que se refere ao fim da vida, seria dada ao paciente a
possibilidade de escolher aquilo que julga ser melhor para si, podendo submeter-se ou não a
determinado tratamento médico e podendo optar ou não pela interrupção da própria vida.
A autonomia resta prevista, também, no art. 5º da Declaração Universal sobre Bioética
e Direitos Humanos da UNESCO18, segundo o qual a autonomia da pessoa no concernente à
capacidade de tomar decisões deve ser respeitada, desde que sejam assumidas suas responsabi-
lidades consectárias e desde que seja respeitada a autonomia de terceiros.
Na legislação brasileira, por sua vez, disciplina-se a autonomia do paciente no art. 15
do Código Civil, que estabelece que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco
de vida a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. De fato, o objetivo primeiro da lei era
assegurar que ninguém seria coagido a tratamento compulsório que aumentassem as possibili-
dades de risco de vida. Contudo, adequando-se a norma à realidade, entende-se como perfeita-
mente plausível a interpretação extensiva do artigo no sentindo de que o paciente referido pode
ser um paciente terminal e, ademais, no sentido de que este, como qualquer outro, desde que
não prejudique terceiros, possa recusar o tratamento médico que não lhe convier ou que não
expressar sua vontade.
Longe de configurarem-se como meras abstrações, as ideias acima defendidas encon-
traram suporte no novo projeto do Código Penal19, ainda em tramitação, que apesar de tipificar
a eutanásia em seu art. 122, prevê nos parágrafos 1º e 2º a possibilidade de isenção de pena e
de exclusão de ilicitude, respectivamente, desde que observadas as particularidades do caso
concreto:
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Eutanásia
Art. 122. Matar, por piedade ou compaixão, paciente em estado terminal, imputável
e maior, a seu pedido, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável em razão de
doença grave:

18  Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, UNESCO, 2005. Aprovada pela 33a. sessão da Conferência Geral da UNES-
CO em Paris, em 19 de Outubro de 2005.
Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0017/001798/179844e.pdf>. Acesso em: 20/02/2017.
19  Projeto Lei do Senado nº 236, de 2012.

195
Pena – prisão, de dois a quatro anos.
§ 1º O juiz deixará de aplicar a pena avaliando as circunstâncias do caso, bem como
a relação de parentesco ou estreitos laços de afeição do agente com a vítima.
Exclusão de ilicitude
§ 2º Não há crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter
a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que essa circunstância
esteja previamente atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou,
na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

A introdução de um dispositivo no direito brasileiro que excluísse a antijuridicidade


da prática da eutanásia, seria o primeiro passo para a concretização do princípio da dignidade
da pessoa humana, uma vez que funcionaria como auxílio para todos aqueles que se encontram
confinados permanentemente a uma situação degradante, deplorável e tormentosa. Aliado a ele,
o poder de autodeterminação do indivíduo, hoje revestido de um caráter existencial, torna-se
apto a estender o véu de alcance da dignidade ao momento da morte.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão acerca do direito de morrer é complexa, pois confronta uma série de direi-
tos fundamentais e traz para o cerne do problema a finitude da natureza humana, que embora
seja a maior certeza do homem, é, por igual, sua maior negação. A contraposição entre a neces-
sidade constitucional de proteção da vida e a autonomia privada do indivíduo acarreta, no de-
bate da eutanásia, a necessidade de ponderação entre dois aspectos existenciais do ser humano
que são, via de regra, irrenunciáveis. A resposta para o conflito encontra-se na ponderação entre
a vida e a autonomia, devendo preponderar aquela que, no caso concreto, mais se aproxime da
dignidade humana.
Ora, conclui-se, pois, que optar pela vida nas condições de um paciente cuja existência
é orientada pelo sofrimento físico e psíquico de uma doença incurável não constitui expressão
de dignidade. Um direito que nega a liberdade de escolha e a dignidade das pessoas no que diz
respeito à decisão da própria morte não passa de um direito pincelado por nuances de autori-
tarismo. A democracia pressupõe a convivência de consciências plurais e, principalmente, o
respeito às decisões individuais, mesmo que delas se discorde, desde que elas não prejudiquem
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ou violem o direito alheio.


Buscou-se, portanto, ao longo desse artigo, demonstrar que as concepções de dignida-
de humana são múltiplas, e que a eutanásia significa, sobretudo, o direito de escolha: a possi-
bilidade de decisão a respeito da própria morte. Afinal, não cabe ao Estado, à Igreja ou a outro
terceiro qualquer decidir em lugar do indivíduo sobre aquilo que lhe é mais íntimo e essencial:
sua dignidade.

196
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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido.


São Paulo: Cultural Paulista, 2002.

197
EUTHANASIA: THE BOND BETWEEN DIGNITY, AUTONOMY AND DEATH

ABSTRACT
The right to life, provided on article 5 of the Federal Constitution, is a
fundamental right of the human being, and possesses a broad legal pro-
tection. However, there are some degrading existential situations, which
put in check the faculty or the obligatoriness to live. Based on that, the
present article aims to analyze the euthanasia issue in the context of the
Brazilian Law, in the light of the constitutional principle of Human Dig-
nity and the civil principle of private autonomy. It will be assumed that
a degrading life is not an expression of dignity and that life’s protection
should not be absolute.
Keywords: Euthanasia. Dignity. Right to die. Private autonomy.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

198
Recebido 23/01/2017
Aceito 02/05/2017

JUÍZES SONHAM COM OVELHAS ELÉTRICAS?: A (DES)NECESSÁRIA


EFICIÊNCIA DO MAGISTRADO E A INFORMATIZAÇÃO DA ATIVIDADE
JUDICANTE NO BRASIL

Carlos Humberto Rios Mendes Júnior1

RESUMO
A utilização de novas tecnologias pelo Poder Judiciário, que surge como
uma forma de aumentar a eficácia da atividade judicante, é de implan-
tação recente e evolução constante. Baseado nessa assertiva, o intuito
deste trabalho é traçar um histórico do processo de informatização da
atividade judicante no país, sobrepondo-o ao questionamento da real
motivação por eficiência na atuação do magistrado. Desta forma, per-
mitir-se-á a compreensão e a separação os ganhos realmente possíveis
com a utilização de novas tecnologias, do que é apenas um pensamento
desejoso a travestir problemas institucionais de muito maior gravidade.
Palavras-chave: Eficiência. Magistrado. Informatização. Brasil.

“The true measure of a man is […] how quickly can he respond to the
needs of others and how much of himself he can give.”
(Philip K. Dick)
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

A introdução de inovações tecnológicas em campos usualmente avessos a mudanças


sistêmicas é um evento complexo, apto a produzir choques que reverberam nos diversos estratos
de organização pré-estabelecida em dito campo. Setores que inerentemente giram em torno da

1  Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

199
tecnologia, como o científico (em sentido estrito), o médico e o industrial, rapidamente se ade-
quam e se moldam à inovação, com mínimo de “choque estrutural”. Isto, pois é de sua natureza
não apenas agregar novas tecnologias, mas recebê-las de braços abertos, visto que aumentam a
produtividade, diminuem o tempo de produção e, no geral, permitem mais comodidade e segu-
rança para aqueles que laboram delas fazendo uso.
Nas áreas humanas, pela sua própria característica de se desenvolver em sua maior
parte, no mundo da razão, das palavras e da filosofia, a introdução de novas tecnologias é
evento raro, de ocorrência mínima. Pode-se assim e com certa finalidade admitir que, antes da
invenção dos computadores, a última grande inovação tecnológica a causar impacto maciço nas
ciências humanas foi a prensa de Gutenberg.
Isto dito, fato é que o direito, no que pese ser fonte constante de adaptação, sofrendo
perene maleabilização apta a adequá-lo à realidade social (e, portanto, garantindo sua eficácia),
é tradicionalmente um campo que, por formal e formalista, é caracterizado pelo apego ao es-
tado atual das coisas (status quo), à burocracia, ao império do papel, das pastas, dos processos
físicos.
Os tempos, contudo, mudam.
Nas décadas que se seguiram à Constituição de 1988, a demanda crescente de pro-
cessos judiciais por um lado demonstrou a facilitação do acesso à justiça pela população, que
cada vez mais ingressa no judiciário, talvez último dos Poderes a gozar de verdadeira confiança
institucional.
Todavia, tal demanda criou uma sobrecarga no sistema judiciário, que se vê abarrotado
muito além de sua capacidade operacional, com números absurdos de litígios judicializados e
com uma proporção processo/juiz que paira perigosamente no limiar de um “ponto sem retor-
no” do funcionamento das atividades judicantes, onde o número de processos novos irá sobre-
por o número de processos julgados em muito, efetivamente impossibilitando quaisquer ações
para a redução da quantidade de processos existentes.
É diante deste necessário, de crescimento intenso de judicialização de litígios, que
os olhos da sociedade se voltam para o funcionamento do Poder Judiciário, pressionando a
atividade do juiz por uma produtividade muitas vezes desarrazoada no clamor por celeridade
processual.
A utilização de novas tecnologias pelo Poder Judiciário surge, então, como uma forma
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de aumentar a eficácia da atividade judicante e, consequentemente, sua produtividade. O intuito


deste trabalho, assim, é traçar um histórico do processo de informatização da atividade judican-
te no país, sobrepondo-o ao questionamento da real situação quanto à eficiência da atuação do
juiz, e as contribuições de tal processo para tanto.

2 OFERTA E DEMANDA: A (IN)EFICIÊNCIA DOS JUÍZES

Juiz, do latim judex, que deriva por sua vez de jus, designa a Justiça; “juiz de direito”,

200
portanto, unifica as duas ideias que são basilares para um Estado Democrático de Direito, a de
Direito e de Justiça. É assim, embebida nesta ideia de concretização e forma de atuação de fun-
damentos tão primordiais, que temos a figura do juiz como personificação do Poder Judiciário,
exercendo uma tarefa essencial, que é a de julgar (MIRANDA, 1993, p.323).
Julgar, por sua vez, seria resolver os conflitos subjetivos de interesse, aplicar a lei ou o
direito objetivo, tutelar processualmente os direitos violados, individuais e sociais. Não se trata
apenas de emitir um julgamento, enunciar um juízo lógico; é a aplicação processual e coativa
do direito objetivo (MIRANDA, 1993, p.323).
Trata-se, assim, de atividade essencial.
É nesta essencialidade que reside o maior problema com o qual a Magistratura do Esta-
do Democrático de Direito se depara, contudo: a sua demanda. Isto pois com uma mudança es-
trutural na repartição dos Poderes que o Estado Democrático de Direito trouxe, houve também
uma mudança no papel e na importância do Poder Judiciário como foco decisório do Estado, o
que implica por sua vez em uma intensa e crescente demanda da população por seu uso.
Expliquemos.
No Estado Liberal, o foco do poder era o Legislativo; no Estado Social, tal foco foi
transferido para o Executivo (visto o caráter fortemente intervencionista do Estado); já no Esta-
do Democrático de Direito, contudo, inércias do Executivo e a falta de atuação do Legislativo
passam a poder ser supridas pelo Judiciário em determinadas circunstâncias. Isso
pois tendo o Constituinte optado por um Estado intervencionista (que visa uma sociedade mais
justa, com a erradicação da pobreza, diminuição das desigualdades etc.), era de se esperar que
os programas especificados na Constituição com este fim fossem seguidos pelos Poderes Exe-
cutivo e Legislativo de maneira natural (STRECK, 2014, p. 65). Todavia, as normas-programa
da Constituição não estão sendo cumpridas e, na falta de políticas públicas de que demanda o
Estado Democrático de Direito conforme o conhecemos, relega-se ao Poder Judiciário o papel
instrumental de resgate de direitos não realizados.
Assim, tem-se o Judiciário como uma “solução mágica” para os problemas dos fra-
cassos e insuficiências do Estado de bem-estar social. Fala-se até em verdadeiro paternalismo
juridicista, que faz com que cidadãos venham se socorrer no Judiciário em vez de reivindicarem
seus direitos no campo da política (STRECK, 2014, p. 65).
A discussão se tal modelo de Estado é praticável ou não, ou ainda se inversamente a
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mudança de tal modelo acarretaria em redução no acesso à justiça ou, pelo contrário, na amplia-
ção de sua efetividade, não nos cabe neste momento, no que pese sua importância. O que nos
cabe é apontar que em 2014 tramitaram aproximadamente 99,7 milhões de processos na Justiça
brasileira (70,8 milhões de casos pendentes, 28,9 milhões de casos novos), com o crescimento
de casos novos no acervo processual a um percentual de 17,2% no período 2009-2014 (CONSE-
LHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015, p. 34).
Esses números são absolutamente preocupantes.
Extrapolando os dados daquele ano (mais recentes disponíveis), para o atual, isto sig-

201
nifica que, ao final de 2016, para cada 2 (dois) brasileiros, 1 (um) possui processo aguardando
julgamento na Justiça. Ou seja, metade da população brasileira estará judicializada.
Para trazer ao leitor uma perspectiva do pulo quantitativo sofrido no número de pro-
cessos ajuizados, quando da promulgação da Constituição Federal, em 1988, existia na justi-
ça brasileira 350 mil processos em curso (LENZA, 2000, p. 105). Um aumento, portanto, de
28.385% (vinte e oito mil trezentos e oitenta e cinco por cento).
O Conselho Nacional de Justiça chegou, inclusive, a afirmar em seu relatório Justiça
em Números 2015, que se o Poder Judiciário fosse paralisado conforme se encontra agora, sem o
ingresso de novas demandas, seriam necessários quase dois anos e meio de trabalho para zerar
o estoque (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2015, p. 34).
Tal quantidade maciça de processos, em número tão alto que chega a ser pensado
em níveis abstratos [mas lembremos que cada processo significa um litígio, uma necessidade
específica de ponderação, um jogo de valores fundamentais para a vida de quem espera uma
proteção jurisdicional, como bem disse Gomes (2010, p. 370)], implica na necessidade de um
corpo forte de juízes.
Infelizmente, contudo, a força de trabalho da magistratura brasileira é extremamente
reduzida: o país contava com meros 16.927 juízes em 2014 (CONSELHO NACIONAL DE JUS-
TIÇA, 2015, p. 34). Essa força de trabalho reduzida implica, por sua vez, no alarmante fato de
que cada juiz é responsável individualmente, em média, por seis mil processos judiciais.
A pressão crescente de mais processos para menos juízes, então, faz com que costu-
me-se aplaudir como juiz mais operante aquele que produz muito em quantidade, raramente
se questionando a qualidade de suas decisões, ou seja, seu teor de análise, ponderação, justiça
e equidade (GOMES, 2010, p. 370). A construção de sentença, contudo, não é algo mecânico,
dependendo de profunda pesquisa, busca na doutrina, jurisprudência, ordenamento jurídico;
tudo apenas se encerrando em período próprio de convencimento, pois que a assunção de ele-
vada responsabilidade do julgador, quando tem que tratar dos direitos e garantias individuais,
demanda reflexão que pode durar mais tempo do que os ditames da produtividade reclamam
(MADALENA, 2008a, p. 90), ressalve-se.
A chamada morosidade judicial, ademais, não é um problema restrito ao Brasil: nos
Estados Unidos, a tramitação em 1º grau de um processo de matéria civil dura de três a cinco
anos, enquanto na Inglaterra a média é de 2,78 anos (PELEJA JÚNIOR, 2009, p. 259). No nosso
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

país não existe ainda uma aferição do tempo médio dos processos em geral [o CNJ (2015, p. 15)
afirma que a partir da versão 2016 do seu relatório Justiça em números tal informação já estará
disponível)], embora não seja uma inferição muito absurda a de que será superior à daqueles
países, levando-se em conta principalmente a demanda processual elevada que caracteriza o
Brasil. Apenas a título de comparação parcial, no entanto, temos a duração média de um pro-
cesso de execução fiscal na Justiça Federal brasileira, conforme aferido por estudo do IPEA:
oito anos, dois meses e nove dias (INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA,
2011, p. 6).

202
A efetividade da jurisdição, contudo, pressupõe o equilíbrio entre a celeridade, encar-
tado no direito fundamental à duração razoável do processo, e a segurança jurídica, mas tam-
bém deve levar em conta o princípio da máxima coincidência, ou seja, o resultado mais próximo
possível do direito material (FREIRE, 2009, p. 389).
Assim, na medida em que se abarrotam as varas e juizados, multiplicam-se os litígios
e se sobrecarrega o percentual de processos por magistrado, diminui-se a quantidade de horas
disponíveis para cada processo, prolonga-se sua duração média e, consequentemente, aumenta-
-se o tempo entre o ingresso da petição inicial e a respectiva sentença concessiva ou não do bem
da vida almejado. Ou seja, prejudica-se não apenas a celeridade processual, mas com menos
horas dedicadas a cada processo, escanteia-se também o princípio da máxima coincidência.
Uma justiça mais demandada, mas, ao mesmo tempo, mais demorada e menos efetiva,
em uma situação de sobrecarga pela qual a eficiência do julgador é a última responsável, mas a
primeira responsabilizada.

3 A NECESSIDADE DA INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

No apagar das luzes do século XX, autores apontavam para a necessidade da adoção
de práticas e métodos de trabalho que levassem em conta inovações tecnológicas na atuação do
Poder Judiciário (DALLARI, 1996, p. 6), bem como que a consequência direta do não acom-
panhamento pela Justiça de um ritmo desenvolvimentista, que imitasse o praticado nas indús-
trias em termos de eficiência, eficácia e produtividade, seria ou a relegação da justiça comum
à morosidade, com o consequente aumento dos meios alternativos de solução de conflitos, ou a
inclusão da inexistência de um órgão jurisdicional ágil no chamado “custo Brasil”, com empre-
sas evitando suas vindas para o país pela demora na resolução de possíveis pendências judiciais
(LENZA, 2000, p. 106).
Há 20 anos, o professor Dalmo de Abreu Dallari (1996, p. 156) já tratava da questão
específica da informatização do Judiciário quando da sugestão de melhorias nas rotinas e no
ambiente do trabalho de dito Poder. Afirmava que tal informatização seria um aspecto de ordem
prática de modernização de utilidade evidente, isso mesmo ante “às distorções que acompa-
nham todos os modismos”.
Sua maior preocupação, contudo, foi a de que a informatização do Judiciário não ocor-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

resse sem a prévia racionalização, e que se desenvolvesse em conjunto com uma nova menta-
lidade no tocante às concepções relevantes para a justiça e o conteúdo das decisões dos juízes
(DALLARI, 1996, p. 156).
Não sabemos se dita evolução no tocante à mentalidade dos julgadores de fato veio a
acompanhar a modernização do judiciário, mas esta ocorreu a passos largos nas últimas déca-
das, partindo de iniciativas discretas, que previam a realização de atos processuais por fax, até
os sistemas atuais como o do Processo Judicial eletrônico, que se desenvolve, salvo as audiên-
cias, inteiramente no meio virtual.

203
Todavia, importante lembrar que o processo, ainda que virtual, não dispensa a mani-
festação real, pois a ação instrumental da máquina não substitui o pensar. Há quem defenda
que, para a grande maioria dos processos que aguarda julgamento, a virtualização pouco con-
tribui (OLIVEIRA, 2008, p. 97).
No entanto, em pesquisa realizada junto a 570 juízes, distribuídos em cinco estados
(Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Goiás e Pernambuco), a informatização dos serviços
judiciários está no topo do grau de importância quando questionados os juízes sobre como
agilizar o Judiciário, com 93,2% de índice de concordância entre os entrevistados, quando so-
madas as respostas que a classificam como “extremamente importante” e “muito importante”
(SADEK, 2010, p. 22).
Fato é que a falta de informatização rouba tempo do juiz e dos serventuários da justiça.
Sentenças praticamente idênticas umas às outras, mudando apenas o nome e as qualificações
das partes envolvidas e o tipo de questão em litígio, requeriam a repetição manual de toda a
operação antes do início do processo de informatização (SADEK, 2010, p. 22).
Isto posto, para além do mero uso de computadores no labor diário da vara ou juizado,
a implantação de um sistema virtual de tramitação de processos traz vantagens inúmeras que
também economizam tempo e tornam a prestação judicial mais célere e menos burocrática.
O sistema virtual automatizado elimina as etapas manuais desenvolvidas no processo,
cabendo-se citar a organização do fólio processual, com a criação de uma capa para os autos
processuais, perfuração dos documentos e numeração de folhas; a saída dos autos da secretaria
mediante vista às partes processuais; o registro de saída e retorno dos autos processuais após a
concessão de vistas às partes processuais, eliminando a possibilidade de extravio dos autos; a
juntada, pelos servidores, das petições protocoladas pelas partes; a dispensa da publicação dos
atos judiciais no diário oficial e certificação da publicação; e a emissão de certidões e pagamen-
tos das custas processuais respectivas (LIRA, 2013, p. 107).
Ademais, a informatização contribui no solucionar de parcela da burocracia proces-
sual quando levando-se em conta similitudes entre processos, permitindo-se a identificação de
demandas de massa e processos repetitivos com idênticos fatos e argumentos jurídicos em um
clique, possibilitando seu julgamento em bloco de maneira efetiva (OLIVEIRA, 2008, p. 97).
Aponta-se ainda que, ademais, a assimilação do processo eletrônico que se encontra
atualmente em curso no Poder Judiciário brasileiro tem como virtude também a capacidade de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

fornecer importante subsídio ao serviço de estatística e de controle de produtividade, pois pode


detectar a quantidade de horas que os operadores permanecem com os autos virtuais (MADA-
LENA, 2008b, p. 108).

4 A EVOLUÇÃO DA INFORMATIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO

A informatização do judiciário seguiu uma evolução gradativa, que apresentou essen-


cialmente três fases bem delineadas: a primeira, veio com o uso de dispositivos informáticos

204
para a elaboração dos atos processuais, como os processadores de texto e as planilhas (LIRA,
2013, p. 118), substituindo as velhas máquinas de escrever que povoavam as salas de julgamento
pelo país e que tornavam o uso do tempo atrelado à destreza do serventuário-datilógrafo, aos
quais o juiz ditava intermináveis sentenças (SADEK, 2010, p. 22).
A segunda fase tratou da criação de um sistema de acompanhamento do anda-
mento processual eletronicamente, e pelo desenvolvimento de uma rotina para a publicação dos
atos e decisões pelo diário oficial eletrônico de maneira prática. Por fim, a terceira fase englobou
(e engloba) a efetiva virtualização do processo judicial, onde todas as atividades necessárias
para o desenvolvimento da função jurisdicional são manufaturadas, arquivadas e processadas
digitalmente (LIRA, 2013, p. 118).
A primeira das legislações que tratou da questão da informatização do judiciário, o fez
de maneira indireta e muito discreta. A Lei Federal 9.492/972, que regulamentou o protesto de
títulos, trouxe no parágrafo único do seu artigo 8º que “poderão ser recepcionadas as indica-
ções e protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços por meio magnético ou de
gravação eletrônica de dados”.
Por sua vez, a Lei Federal 9.800/993 foi a peça legislativa que efetivamente deu início
à informatização judicial propriamente dita. Tal Lei autorizava a utilização de sistema de trans-
missão de dados e imagens tipo fac-simile (fax) ou similar, para a prática de atos processuais
que dependessem de petição escrita.
A “Lei do Fax”, assim, permitiu que se praticasse atos processuais via tal aparelho,
possibilitando que não perdesse a parte seu prazo pela incapacidade de comparecer fisicamente
à secretaria da vara.
Contudo, tal comparecimento não foi dispensado ou substituído, apenas dilatado: o
parágrafo único do seu artigo 2º determinava que os originais da petição deveriam ser entregues
necessariamente em até cinco dias após a data do término do prazo ou, quando não sujeito o ato
a prazo, em até cinco dias após a data da recepção do material transmitido.
A função maior da referência a dita lei, visto que fazia apenas com que os prazos pro-
cessuais fossem ampliados, já que não obrigava os Tribunais a oferecer qualquer meio material
para a recepção de documentos, é a de fixar o marco em que o legislador sentiu a necessidade de
começar a inserir no Poder Judiciário as ferramentas ofertadas pela tecnologia da informação e
da comunicação (MACHADO, 2010, p. 219).
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Critica-se a omissão da lei quanto à segurança da transmissão de documentos por meio


eletrônico, pois lhe faltava a exigência do uso de certificação digital (MACHADO, 2010, p.
218). Acreditamos tal omissão, contudo, compreensível, tendo em vista o fato de que o sistema
de transmissão de fax não incorporava tal mecanismo de segurança, o qual sequer havia sido

2  Define competência, regulamenta os serviços concernentes ao protesto de títulos e outros documentos de


dívida e dá outras providências.
3  Permite às partes a utilização de sistema de transmissão de dados para a prática de atos processuais.

205
inventado à época.
Neste sentido, um pequeno parêntesis: foi apenas com a edição da Medida Provisória
2.200/014 que se criou o sistema nacional de certificação digital ICP-Brasil, Infraestrutura de
Chaves Públicas Brasileiras, um conjunto de normas, padrões técnicos e regulamentos elabo-
rados para tornar possível o estabelecimento do sistema criptográfico de certificação digital no
país. A certificação digital funciona através da emissão de um par de chaves criptográficas, uma
pública e uma privada que, quando combinadas, servem para atestar a identidade de um indi-
víduo, empresa ou órgão digitalmente. Enquanto a chave privada fica com o indivíduo, a chave
pública, pelo sistema de Infraestrutura de Chaves Públicas, fica com um órgão emissor. Quando
se assina um documento digitalmente com a chave privada, o órgão emissor faz a comparação
com a chave pública equivalente, que é apenas do seu conhecimento, e dessa forma se comprova
ou não a autenticidade do assinante. 5
A Certificação Digital é hoje ferramenta imprescindível sem a qual não poderia haver
um sistema de processamento judicial eletrônico. Mas nos adiantamos. Voltemos à ordem cro-
nológica das leis de informatização da justiça.
Em 2001, com a criação dos Juizados Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal
através da Lei Federal 10.259/016, houve preocupação específica com o ajuizamento eletrônico:
em seu artigo 8º, §2º, facultou aos Tribunais a organização do serviço de intimação das partes e
de recepção de petições por meio eletrônico; no seu artigo 14, §3º, dispôs que a reunião de juízes
domiciliados em cidades diversas deverá ser feita pela via eletrônica; no seu artigo 24, autoriza
ao Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal e as Escolas de Magistratura
dos Tribunais Regionais Federais a criarem programas de informática necessários para subsi-
diar a instrução das causas submetidas aos Juizados (MACHADO, 2010, p. 218).
Com a Emenda Constitucional nº45/2004, que introduziu no título “Dos Direitos Fun-
damentais” a garantia à razoável duração do processo e aos meios que efetivem a celeridade
de sua tramitação, havendo, portanto, a consagração constitucional do princípio da celeridade
processual (DIAS SOARES, 2011, p. de internet), surgiram produções legislativas diversas com
pequenos avanços aptos a virtualizar diferentes aspectos de atos processuais e procedimentais
das varas e juizados (MACHADO, 2010, p. 219).
São eles: a) a Lei Federal 10.520/027 que, regulamentando o Decreto 5.450 de 31 de
maio de 2005, instituiu o pregão no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

4  Institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP-Brasil, transforma o Instituto Nacional de Tec-
nologia da Informação em autarquia, e dá outras providências.
5  INSTITUTO NACIONAL DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO. Sobre Certificação Digital. Disponível
em: <http://www.iti.gov.br/acesso-a-informacao/96-perguntas-frequentes/1743-sobre-certificacao-digital>.
Acesso em: 29 maio 2016.
6  Dispõe sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal.
7  Institui, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 37, inciso XXI, da
Constituição Federal, modalidade de licitação denominada pregão, para aquisição de bens e serviços comuns,
e dá outras providências.

206
permitindo que essa modalidade de licitação na forma eletrônica, mediante lances realizados na
rede mundial de comunicação, fosse utilizada para aquisição de bens e serviços comuns (DIAS
SOARES, 2011, p. de internet); b) a Lei Federal 11.280/068, que além de alterar diversos artigos
do Código de Processo Civil de 1973, introduziu no artigo 154, parágrafo único, a autorização
para que os tribunais, no âmbito da respectiva jurisdição, disciplinassem a prática e comuni-
cação oficial dos atos processuais por meios eletrônicos, desde que atendidos os requisitos de
autenticidade, integridade, validade jurídica e interoperabilidade da Infraestrutura de Chaves
Públicas Brasileiras ICP-Brasil; e c) a Lei Federal 11.382/069, mais uma vez alterando disposi-
tivos do CPC, mas agora relativos ao processo de execução, permitindo a utilização do sistema
eletrônico para requisição de informações sobre a existência de ativos financeiros em nome do
executado e determinar sua indisponibilidade.
A maior e melhor contribuição para a informatização da atividade judicante até o pre-
sente momento, todavia, veio com a Lei Federal 11.419/0610, que disciplinou a matéria de forma
abrangente, incorporando a comunicação eletrônica dos atos processuais, o processo eletrônico
e os pormenores da juntada de documentos, digitalização e autenticação de segurança.
Dita lei vislumbrou uma atuação judicial totalmente digital, da petição inicial à senten-
ça, inclusive com citações, intimações, notificações e remessas realizadas também de maneira
eletrônica, e com a consideração dos documentos produzidos eletronicamente e juntados aos
processos virtuais como originais para todos os efeitos, sem a necessidade de submissão de
cópia física, se assim implantado e determinado pelo respectivo Tribunal.
Permitiu a Lei Federal 11.419/06 também, de maneira programática, que os órgãos
do Poder Judiciário desenvolvessem sistemas eletrônicos próprios de processamento de ações
judiciais por meio de autos total ou parcialmente digitais, e determinou a regulamentação dos
seus pormenores pelos próprios Tribunais, bem como pelo CNJ o qual, por sua vez, editou di-
versas resoluções que padronizaram e orientaram a utilização da tecnologia da informação e
da comunicação, inclusive a utilização do domínio “jus.br” na rede mundial de computadores
(MACHADO, 2010, p. 220).
Quanto aos softwares que permitiram a implantação do processamento eletrônico, o
mais difundido entre os órgãos do Poder Judiciário foi inicialmente implementado e executado
pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5). O projeto PJe (Processo Judicial eletrô-
nico), foi retomado pelo CNJ em 2009, que o havia iniciado junto aos cinco tribunais regionais
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

federais anteriormente, mas cujo TRF5 prosseguiu sozinho na implementação após a paralisa-
ção da parceria.

8  Altera os arts. 112, 114, 154, 219, 253, 305, 322, 338, 489 e 555 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil,
relativos à incompetência relativa, meios eletrônicos, prescrição, distribuição por dependência, exceção de incompetência, revelia, carta
precatória e rogatória, ação rescisória e vista dos autos; e revoga o art. 194 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.
9  Altera dispositivos da Lei nº5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, relativos ao processo de execução e outros
assuntos.
10  Dispõe sobre a informatização do processo judicial; altera a Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código
de Processo Civil; e dá outras providências.

207
O CNJ percebeu durante a retomada que o projeto do TRF5 era o que mais atendia à
necessidade de uso de software aberto e às restrições mais críticas que diziam respeito à neces-
sidade de o conhecimento ficar dentro do Judiciário e ao fato de se observar as demandas dos
tribunais (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010, p. 8).
Em seu início, o projeto foi coordenado pela Comissão de Tecnologia da Informação
e Infraestrutura do Conselho Nacional de Justiça, onde foi iniciada uma discussão democrática
a abarcar a implantação e o desenvolvimento do PJe com a participação de juízes auxiliares,
membros do Ministério Público, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da
Advocacia Geral da União, da Defensoria Pública da União e de procuradores de Estado e de
município. O primeiro órgão judiciário a receber o sistema foi a Subseção Judiciária de Natal/
RN, em abril de 2010 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2010, p. 8).
Com o PJe, percebe-se uma ampliação tanto da publicidade interna (partes e procu-
radores), com a desnecessidade da concessão de vistas fora da secretaria (pois o processo en-
contra-se integralmente disponível online), o acesso ilimitado, ininterrupto e independente da
distância (bem como a visualização para além do horário forense); como também da publici-
dade externa, que é restringida apenas no que resvale no princípio fundamental à intimidade
das partes processuais (LIRA, 2013, p.156): sendo o processo ostensivo, qualquer pessoa pode
visualizar as decisões e sentenças emitidas pelo julgador, após a devida cientificação das partes.
Por fim, neste breve avanço cronológico no processo de informatização da atividade
judicante, trazemos o leitor às disposições do Novo Código de Processo Civil de 2015 (NCPC),
Lei Federal 13.105/15, que entrou em vigor no início de 2016.
O NCPC, no que pese não ter trazido a unificação dos procedimentos relativos à tra-
mitação judicial por meio eletrônico, regrou pontos interessantes quanto à prática processual
virtual11
Vejamos algumas:
a) a indicação de endereço eletrônico pelo advogado na procuração (art. 287), e pelo
autor e réu na petição inicial (art. 319, II, §2º);
b) a citação e intimação por meio eletrônico do perito ou assistente técnico (art. 477,
§4º), do devedor para cumprir a sentença (art. 513, §2º, III), e do Ministério Público para se
manifestar em agravo de instrumento (art. 1.109, III);
c) a exigência de cadastro nos Tribunais por empresas, para efeito de recebimento de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

citações e intimações (art. 246, V, §1º);


d) a permissão de alienação por leilão judicial eletrônico em o requerimento do exe-
quente (art. 879, II, §3º);
e) o agravo de instrumento eletrônico, com a dispensa da juntada das cópias da petição

11  BARRETO, Ana Amelia Menna.  Novo código de processo civil traz regras para processo eletrôni-
co.  2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-22/ana-amelia-processo-judicial-eletronico-
-cpc>. Acesso em: 28 maio 2016.

208
inicial, da contestação, da petição que ensejou a decisão agravada, da própria decisão agravada,
da certidão da respectiva intimação ou outro documento oficial que comprove a tempestividade
e das procurações outorgadas aos advogados do agravante e do agravado (art. 1.017, §5º).
O NCPC, ainda que não remova a necessidade de regulamentação da prática proces-
sual virtual e da comunicação oficial de atos processuais por meio eletrônico (o que há de ser
feito pelo CNJ e pelos Tribunais respectivos), cria parâmetros base sobre os quais os novos atos
regulamentadores deverão ser construídos12, logo sua importância.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, a evolução na informatização da atividade judicante, no que pese ser um


processo extremamente novel na história do Poder Judiciário brasileiro, avança a passos largos
rumo a uma tramitação inteiramente virtual.
Suas contribuições para o funcionamento dos diversos órgãos do Poder Judiciário são
maciças, permitindo maior celeridade de tramitação em diversos níveis, seja na redução de
tempo de montagem, busca e vistas de processos físicos, seja na facilitação de acesso, juntada
de atos e envio de documentos pelas partes, serventuários da justiça e magistrados.
Ademais, permite a identificação, separação e solução de litígios similares, resolvidos
em bloco quando possível, o que seria absolutamente impraticável no “velho mundo” dos pro-
cessos físicos, espalhados em locais diversos e limitados pela catalogação a olho nu.
Por fim, a informatização contribui na celeridade da atividade judicante de maneira in-
direta, quando permite um melhor acompanhamento dos processos e das soluções a eles dadas,
bem como o tempo dedicado a cada litígio, pelos órgãos de controle, que podem então criar as
devidas metas e programas de cumprimento de demanda.
Todavia, posta toda essa contribuição que a informatização e a virtualização proces-
sual produzem, chegamos à conclusão de que o problema maior da morosidade do Poder Judi-
ciário é indevidamente relegado à questão da eficiência dos juízes, a qual errônea e indevida-
mente deveria ser parcialmente solucionada com os avanços tecnológicos e a implementação de
verdadeiras “linhas de produção” de sentenças
A culpa da morosidade da justiça brasileira, em uma rasa análise, reside na total des-
proporção entre a demanda por soluções judiciais e a quantidade de magistrados. Os pouco mais
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de dezesseis mil juízes atualmente existentes se aventuram em pilhas de processos, os quais


recentemente chegaram ao absurdo número de 100 milhões, metade da população brasileira.
Não se pode, assim, taxar o magistrado de ineficiente, sugerir a implementação de
métodos informáticos, e se esperar que a situação periclitante pela qual passa o Poder Judiciário
brasileiro se resolva. Tal expectativa ou é leiga ou má intencionada.

12  BARRETO, Ana Amelia Menna. Novo código de processo civil traz regras para processo eletrônico. 2016. Disponível em: <http://
www.conjur.com.br/2015-mai-22/ana-amelia-processo-judicial-eletronico-cpc>. Acesso em: 28 maio 2016.

209
Pior ainda é perceber que a informatização do judiciário se tornou ela também não
apenas um instrumento, mas mais uma forma de exercício da pressão institucionalizada por
metas que parece assolar o julgador brasileiro na última década e que, conforme já apontado,
confunde e privilegia a produtividade quantitativa, e não qualitativa.
A “androidização” do juiz deriva de uma premissa errada de ineficiência, alimentada
pelo respaldo cada vez maior da sociedade na atividade judicante. O que se diz querer, afinal, é a
automação do judiciário; o que se quer é a automação do próprio juiz, enquanto o problema sis-
têmico e fundamental, que é a demanda exponencial, segue sem previsão de controle ou solução.

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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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processo de execução fiscal na Justiça Federal. Brasília: IPEA, 2011. (Comunicados do IPEA).
Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/110331_
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LENZA, Vitor Barboza. Magistratura ativa. Goiânia: AB, 2000.

210
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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

DO JUDGES DREAM OF ELECTRIC SHEEPS? : THE (UN)NECESSARY


EFFICIENCY OF THE MAGISTRATE AND THE INFORMATIZATION OF THE
JUDICIAL ACTIVITY IN BRAZIL

ABSTRACT
The use of new technologies by the Judicial Power, which appears as a
way to increase the efficiency of the judicial activity, is a recent implan-
tation and constant evolution. Based on this assertive, the purpose of

211
this work is to draw the history of the informatization process of judi-
cial activity in the country, overlapping it to the questioning of the real
motivation for efficiency in the judge’s activity. Therefore, it will allow
the understanding and the separation of the real possible gains from the
use of new technologies, from those which are just wishful thinking
hiding institutional problems of much more seriousness.
Keywords: Efficiency. Magistrate. Informatization. Brazil.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

212
Recebido 17/02/2017
Aceito 02/05/2017

LEVANDO O DIREITO À LIBERDADE A SÉRIO: UMA ABORDAGEM A PARTIR


DE RONALD DWORKIN

Vinícius de Godeiro Marques1

RESUMO
O arranjo conferido ao direito à liberdade é um dos temas centrais em
todo Estado democrático. Notadamente, a forma como as liberdades
são distribuídas na sociedade impactam diretamente o campo de ação
de cada cidadão, condicionando o exercício de todos os seus direitos. O
presente artigo tem como objetivo apresentar a abordagem proposta por
Ronald Dworkin, na obra “Levando os direitos a sério”, sobre como o
direito deve encarar a liberdade e, mais particularmente, uma cláusula
geral de liberdade a partir de uma compreensão forte do conteúdo dos
direitos fundamentais.
Palavras-chave: Direito geral à liberdade. Ronald Dworkin. Igual con-
sideração e respeito.

1 INTRODUÇÃO
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A instauração, no Brasil, de um Estado constitucional democrático após anos de res-


trições às liberdades humanas fez refletir, na constituição, a ânsia por concretizar um amplo rol
de liberdades. E, assim, a constituição fez constar em seu conteúdo um extenso número de ga-
rantias específicas a diferentes liberdades, entendidas como prerrogativas fundamentais a que
todo homem tem direito. Mas a noção de liberdades ainda suscita divergência acerca da identi-
ficação de seu conteúdo, se destinando o presente trabalho a tratar de pelo menos uma hipótese

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

213
de como, e quando, é possível afirmar que a liberdade de um grupo ou indivíduo foi violada.
Com esse intento, na seção de número 2, será abordada a defesa acerca da existência
de um direito geral à liberdade. Para os autores que defendem tal corrente, na constituição ha-
veria uma cláusula geral capaz de fornecer juridicidade às mais diversas pretensões possíveis e
guarnece-las da intromissão indevida do Estado em assuntos nos quais não detém legitimidade
para impor certo comportamento. A liberdade se justificaria pela necessidade dela mesma, sen-
do essa a origem de sua força jurídica. No mesmo recorte, também se atentará para a existência
de autores que renegam uma concepção de liberdade assim concebida, defendendo um conceito
mais estrito e voltado ao entendimento de que o Estado possui autoridade para cercear parcela
dos comportamentos possíveis em nome de outros interesses também relevantes.
Em seguida, na seção de número 3, será apresentada a forma com a qual o autor es-
tadunidense Ronald Dworkin encara uma cláusula geral de liberdade a partir, principalmente,
dos estudos desenvolvidos ao longo de seu primeiro livro publicado: Levando os direitos a sé-
rio. Introduzindo a temática, será abordado de que forma é possível dizer que existe um direito
frente ao Estado ou terceiros, bem como de que maneira tal construção se distingue da noção
popularmente atribuída ao mesmo conceito, incapaz de informar ao cidadão qual direito efeti-
vamente possui.
A partir dessa perspectiva, a abordagem do direito à liberdade se dividirá em quatro
subseções. Na primeira, partindo da distinção entre duas noções deste direito – como licença
e como independência – será defendida a impossibilidade de se conceber a liberdade como a
emancipação de qualquer amarra aos comportamentos que venham a ser desejados, notabiliza-
da através de uma cláusula geral. Na segunda, será defendida a existência de liberdades especí-
ficas, informadas por um conteúdo que lhes é implícito, mas independe dela por si mesma. Em
seguida, serão introduzidas as concepções de igualdade que perfazem o direito à igual conside-
ração e respeito para defender a capacidade de tal direito regular a intervenção do Estado nos
caminhos que um homem pode decidir trilhar. Por fim, encerrando o desenvolvimento do texto,
será abordada a ideia de que o direito à igual consideração rege o conteúdo mínimo do direito à
liberdade, sendo esse o seu pressuposto básico.

2 CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DO DIREITO À LIBERDADE


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

A liberdade ocupa papel central na estrutura da sociedade e é tida como uma das
principais condições para o desenvolvimento do homem e dos seus planos de vida. Em seu
nome rogam-se inúmeros significados; contudo, ao Direito apenas é pertinente a sua conotação
jurídica, aquela empregada quando invocamos o direito à liberdade para proteger uma posição
que esteja sendo ameaçada pela interferência de outros. Isso porque existe um notável destaque
quando se reconhece a sua juridicidade: quem, de fato, possuir direito à liberdade, terá a seu
favor um compromisso de não obstrução às escolhas que desejar eleger.
Desta forma, a sua caracterização não compreende uma possível vastidão de sentidos,

214
mas tão somente aqueles escolhidos pelo ordenamento jurídico para delineá-la. Assim, dentro
da área de abrangência deste direito, se compreende o rol de liberdades específicas e aquilo que
se convencionou chamar de direito geral de liberdade.
Sob a perspectiva dessa última concepção, o direito à liberdade é encarado não apenas
como uma mercadoria a ser colocada à disposição em diferentes fatias, mas sim enquanto uma
qualidade passível de ser atribuída a pessoas, ações e sociedades (ALEXY, 2011, p. 219). Os
homens são livres para agir, bem como para escolher não tomar qualquer atitude, e essa é um
característica que lhe é inerente enquanto titular de liberdades. Portanto, o objeto desta será
sempre uma alternativa de ação, a possibilidade de fazer ou não fazer algo sem assinalar qual
conduta deve ser adotada, impondo-se aí uma abstenção ao Estado.
Nesse sentido, quando se diz que alguém é livre para fazer algo, se presume a ausên-
cia de bloqueios à sua vontade. Contudo, isso não esgota o conteúdo desse direito, na verdade,
a inexistência de embaraços é apenas uma forma através da qual o homem pode ser livre e,
infelizmente, não garante por si só essa esfera de autonomia. Quem não tem recursos para pro-
mover o seu sustento está tão limitado quanto aquele que tem grande parcela de seus ganhos
confiscados pelo Estado. Nos dois casos, as possibilidades de escolha estarão suprimidas, seja
pela total ausência de recursos, seja pela atuação ilegítima do Estado. A liberdade figura, pois,
como condição para a proteção da dignidade humana, lhe oferecendo suporte e compondo o seu
conceito ao lado de outros princípios (ALEXY, 2011, p. 358-359).
Em Alexy (2011, p.341-392), a liberdade é encarada através de uma perspectiva negati-
va na qual se sobressai uma alternativa de ação conferida ao homem enquanto possibilidade de
fazer ou deixar de fazer algo sem que ele esteja obrigado a escolher qualquer opção. Será livre,
pois, aquele que dispor de escolhas para trilhar o seu caminho e puder elegê-las voluntariamen-
te. Consoante o referido autor (2011, p. 343):

a liberdade geral de ação é uma liberdade de se fazer ou deixar de fazer o que se quer.
[...] De um lado, a cada um é prima facie – ou seja, caso nenhuma restrição ocorra –
permitido fazer ou deixar de fazer o que quiser (norma permissiva). De outro, cada
um tem prima facie – ou seja, caso nenhuma restrição ocorra – o direito, em face do
Estado a que este não embarace sua ação ou sua abstenção, ou seja, a que o Estado
nelas não intervenha (norma de direitos).
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Seguindo essa linha, para Sarlet (2012, p. 430-431), em interpretação conjunta com o
§ 2° do art. 5° da constituição2, um direito geral de liberdade está em sintonia com a ideia de
liberdades implícitas e pode funcionar como um mecanismo de integração, no nosso sistema,
de outras liberdades previstas em tratados internacionais, somente sendo possível deixar de
aplica-la quando estiver em conflito com alguma cláusula especial já consagrada no texto da
constituição.

2  “Art. 5° [...] § 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

215
Assim “a positivação de um direito geral de liberdade tem a vantagem de introduzir no
ordenamento jurídico uma cláusula geral que permite dela derivar, por meio de interpretação
extensiva, outras liberdades não expressamente consagradas no texto constitucional” (SAR-
LET, 2012, p. 431). Segundo o constitucionalista, a liberdade encarada enquanto cláusula aberta
persegue um fim: o de ampliar as possibilidades de escolha ao máximo, garantindo ao indivíduo
uma parcela de livre escolha.
Entretanto, como assevera José Afonso da Silva (2005, p. 232), há um problema no
conceito de liberdade assim desenhado. Esta concepção, em oposição a qualquer espécie de
autoridade, ignora que cada cidadão guarda o direito de se opor ao autoritarismo, a leis iníquas,
mas não à autoridade legítima. O direito à liberdade não consiste em se fazer o que quer, mas
em poder fazer tudo aquilo que a lei permite.
Esse também é o ponto de vista sustentado por Daniel Sarmento, para quem uma
leitura da Constituição “basta para verificar que a liberdade que ela pretende assegurar não é
a mera liberdade formal ou negativa, circunscrita à ausência de constrangimentos externos ao
comportamento dos agentes” (2010, p. 175). O reconhecimento dos direitos sociais e a crescente
preocupação em concretiza-los através de uma atuação positiva do Estado denotam a sua preo-
cupação com a efetivação da liberdade e transformam este direito em condição para a consecu-
ção de suas promessas.
Esses dois autores defendem uma concepção de liberdade muito mais restrita do que
aquela difundida por Alexy. Enquanto o jurista alemão compreende estar clara na concepção de
direito à liberdade uma abertura para a realização de toda ação (fazer ou não-fazer), José Afon-
so da Silva e Daniel Sarmento como citado, negam esse direito geral para dizer que não haverá
liberdade quando a lei exigir tal ou qual comportamento. Na verdade, quando Alexy reconhece
que – ao mesmo tempo em que diz haver um direito contra o Estado de não embaraçar as pos-
sibilidades de ação – só é permitido fazer aquilo sobre o qual não paire nenhuma restrição, está
ele a descrever algo muito próximo ao princípio da reserva legal3.
Essa distinção entre liberdade geral e diferentes liberdades específicas é ainda mais
acentuada em autores liberais, como John Rawls e Dworkin4. Em Rawls (2008, p. 07), a liber-
dade consiste num padrão de convivência determinado pela estrutura das instituições de uma
comunidade. Contudo, para o filósofo, nem todas as suas formas estão enumeradas na lista de
liberdades fundamentais e, por isso, não estão guarnecidas pela proteção de seus princípios.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Com efeito, o seu primeiro princípio de justiça – de que cada pessoa deve ter direito ao sistema
mais extenso de iguais liberdades fundamentais compatível com um esquema de liberdades

3  O art. 5º, inciso II, da Constituição Federal brasileira assim dispõe: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei.
4  A distinção entre as teorias de Robert Alexy e Ronald Dworkin não se restringem ao tratamento dado à ideia de liberdade geral, da
maneira como será abordada ao longo do texto. Pelo contrário, estando o primeiro intimamente vinculado ao modelo de Estado social, a
diferença observada para com autores filiados ao liberalismo não é dificilmente percebida. Não à toa alerta Oliveira (2008) para a clara
disparidade entre a forma com a qual os conceitos de norma, regra e princípio são encarados por cada um. Não há, pois, uma linearidade
entre as suas obras.

216
iguais para outros – roga apenas “que certos tipos de leis, aquelas que definem as liberdades
fundamentais, se apliquem igualmente a todos e permitam a mais abrangente liberdade compa-
tível com uma liberdade semelhante para todos” (RAWLS, 2008, p. 77).
Conforme Teixeira (2007, p. 50-51), Rawls deixa de lado a distinção existente entre
liberdades negativas e positivas para se concentrar nas restrições impostas ao homem e nas
formas pelas quais ele pode ser ou não ser livre. A cláusula geral e irrestrita de autonomia para
se fazer o que quer não entra na concepção de sua teoria da justiça. Nela, a liberdade é vista
como a aplicação regular e indiscriminada das liberdades básicas, distribuídas equitativamente
dentre a coletividade.
Porém, ainda assim ao legislativo não é dado o poder de limitar a esfera de igual liber-
dade arbitrariamente, ou com base em vantagens sociais e/ou econômicas. O primeiro princípio
de justiça, tal como apresentado, representa uma defesa forte às exigências de eficiência e gan-
hos econômicos em detrimento de liberdades básicas de um grupo. Disso resulta que a única
razão para se restringir liberdades fundamentais é resguarda-las de interferências capazes de
gerar uma ofensa ainda maior à esfera de autonomia humana (RAWLS, 2008, p. 264).
Somente a liberdade pode cercear a si própria e nisso consiste a primazia da liberdade
defendida por Rawls (2008, p. 301-311). Portanto, ganhos utilitários, de qualquer natureza, não
concorrem com as exigências de igual liberdade e nem servem para justificar a inserção de uma
cláusula geral em um sistema jurídico.
Como será visto no decurso do texto, Dworkin sofreu grande influência de Rawls e
elaborou sua própria concepção de “igual liberdade” ao longo das páginas da obra Levando os
direitos a sério (2008), a qual será agora abordada.

3 A IGUALDADE COMO GUIA PARA A DETERMINAÇÃO DA PARCELA DE


LIBERDADE QUE NOS É EXIGÍVEL

Havendo um confronto entre um direito resguardado constitucionalmente e algum


comportamento que lhe é contrário, a constituição exigirá e garantirá o seu ajuste em favor do
fortalecimento dos seus princípios. Desde as lições de Konrad Hesse (1991, p. 9-34), entende-se
que a constituição de um país nasce para ser cumprida, para preservar e realçar a vontade en-
cartada em seu conjunto normativo. Além de descrever um contexto histórico e político, a razão
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de ser da constituição consiste na sua vigência e no dever de conferir às suas normas a maior
eficácia possível.
Portanto, enquanto a democracia pressupõe a ideia de soberania popular, de vontade
do povo e de governo da maioria; o constitucionalismo traduz a ideia de poder limitado e res-
peito aos direitos fundamentais e individuais, abrigados, como regra geral, em uma constituição
escrita (BARROSO, 2013, p. 87-88). Há, em meio a essa dualidade, uma tensão que, muitas
vezes, obscurece a separação entre aquilo que se deseja fazer, mas os limites impostos pela
convivência em sociedade não autorizam; o que é permitido fazer, ainda que o ordenamento não

217
forneça um suporte a essa prática; e o que não apenas é permitido, mas também é resguardado
que se faça.
Não raras vezes os indivíduos são levados a entrar em desacordo sobre o que é o di-
reito e quais são suas exigências. Havendo dúvida razoável, utilizam-se os critérios que são
fornecidos para saná-la. Nesses termos, alguns conceitos ou ideias são compartilhados quando
se concorda com uma definição que estabelece os critérios para a aplicação precisa do termo
ou frase a eles associados (DWORKIN, 2010, p. 15). Nesse sentido, pode-se afirmar que o esta-
do do Acre compõe a república federativa do Brasil porque se localiza dentro de seu território
nacional ou que um copo é um copo porque apresenta a sua forma cilíndrica característica.
Comparado o objeto de análise com o conceito, pode-se visualizar se aquele se encaixa nesse e
oferecer uma resposta segura se determinado território faz parte do nosso país ou se um objeto
cilíndrico é um copo, e não uma garrafa ou uma taça.
Em outras situações, é possível ter certeza do que constitui o objeto em análise porque
outros conceitos podem ser formulados com base naquilo que a sua estrutura física ou biológi-
ca diz. Mesmo havendo alguma dúvida ao se diferenciar aço de ferro, uma análise química da
estrutura de cada material facilmente nos demonstraria as suas propriedades específicas, assim
como uma análise de DNA pode discriminar aquilo que há de singular entre um maltês e um
labrador.
Entretanto, certos conceitos encontram-se envoltos em uma imprecisão inafastável por
testes como os anteriores. Dentre eles, os de liberdade e de muitos outros institutos jurídicos
funcionam como “conceitos interpretativos que nos estimulam a refletir sobre aquilo que é
exigido por alguma prática que elaboramos, bem como a contestar tal construto” (DWORKIN,
2010, p. 17).
Logo, o seu significado só pode ser definido dentro das particularidades que a ele se
apresentem. E mais, existindo um profundo desentendimento acerca de seu conteúdo, a com-
preensão de um conceito interpretativo passará a exigir a melhor interpretação das regras e
convenções da sociedade, bem como do ordenamento jurídico.
Com efeito, o direito não se refere a questões que deveriam ser concretizadas, mas
àquelas que devem ser satisfeitas exatamente por existir um direito a determinada tutela. Às
vezes é possível dizer que alguém deve tomar determinada atitude por ser uma conduta correta
e moralmente requerida; outras vezes, que é possível se comportar de certa forma porque as
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

normas a que se está obrigado o permitem e, em outras circunstancias, que existe uma obriga-
ção de fazer algo não apenas porque agir de forma diversa aparenta ser errado, mas porque é
juridicamente exigido que se comporte de determinada maneira.
Dentro desse contexto, é provável que um ganhador da loteria seja censurado por não
destinar parcela de seu ganho a alguma causa humanista, enquanto gasta a fortuna de forma
desregrada; é concebido que ele tem a faculdade de ajudar o próximo; mas dificilmente admite-
-se que alguma organização sem fins lucrativos tenha o direito de lhe exigir auxílio financeiro
ou que exista o dever jurídico que imponha tal encargo. Apesar de ser moralmente aceito que

218
ajudar o próximo é uma virtude desejável, um sujeito excessivamente rico é livre para não
prestar auxílio financeiro a instituições de caridade enquanto gasta seu dinheiro como melhor
entender. Ao final, é perfeitamente possível que alguém tenha o direito de fazer algo considera-
do errado, como também é possível que não tenha o direito a fazer a coisa certa (DWORKIN,
2002, p. 290).
Nesse sentido, quando fala-se em “direito”, pressupõe-se a existência de algo cogente,
capaz de impor certo comportamento; de alguma norma que exija ou proíba determinada con-
duta. Contudo, esse uso não exclui outros significados comumente atribuídos ao mesmo termo
direito.
Assim, dentro do imaginário daquilo que comumente entende-se por direito, é pos-
sível afirmar que cada um dispõe de um direito à liberdade porque é desejável que o homem
possua a maior parcela desta possível, porque não tê-la é errado ou porque essa é uma condição
estritamente necessária ao bom desempenho das atividades cotidianas. Com base nesse argu-
mento, um direito geral à liberdade toma uma feição nitidamente privada e passa a ser informa-
do pelos desejos individuais do justo e do correto. Tal direito existirá, pois, enquanto for alvo
das aspirações de cada homem.
No entanto, parafraseando o exemplo formulado por Dworkin (2002, p. 413), um di-
reito desse tipo não se diferencia e não diz muito mais do que a afirmação de que existe um
direito geral a um aparelho de ar-condicionado em dias quentes, simplesmente por desejarem
um ambiente climatizado nesses dias de calor ou que podem exigir felicidade porque esse é
um objetivo a que todos desejam alcançar. Na verdade, essa concepção de liberdade descreve
um direito em sentido fraco (DWORKIN, 2002, p. 413) e não possui força suficiente para fazer
nascer uma obrigação exigível.
Entretanto, em outra percepção, se diz que existe um direito em sentido muito mais
forte. Nesse espírito, quando se constata que alguém tem o direito de fazer algo, concorda-se
que seria errado interferir na sua ação ou, pelo menos, que se fazem necessárias razões espe-
ciais para justificar qualquer ingerência (DWORKIN, 2002, p. 289). Reconhecida a sua exis-
tência, um direito como esse passa a ser encarado como uma prerrogativa própria ao homem e,
existindo de fato o direito a alguma prestação, resta errado que o governo ou qualquer indivíduo
prive esse direito, mesmo sendo do interesse geral proceder dessa forma.
Nos dizeres de Dworkin (2002, p. 294-295), “se ele tiver um direito moral à liberdade
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de expressão, terá então o direito moral de infringir qualquer lei que o governo, em virtude
daquele seu direito, não tenha autoridade para adotar” de forma que admitir o contrário equiva-
leria a negar a própria existência desse direito.
Esse tipo de direito tem a potência necessária para proteger cada cidadão singular-
mente considerado dos efeitos das preferências e aversões da sociedade, ou de alguma parte im-
portante dela. Deter um direito individual como esse implica conceber que qualquer um possa
lançar mão dele para proteger uma posição jurídica ameaçada e, faz-se necessário esclarecer,
a consequência natural de guardar um direito individual é poder valer-se dele contra a vontade

219
da maioria.
Sob essa perspectiva, através do direito à liberdade “não só deve ser permissível que os
indivíduos façam ou não façam determinada coisa, mas também o governo e as outras pessoas
devem ter a obrigação jurídica de não obstruir” (RAWLS, 2008, p. 248-249). Trata-se, pois,
de uma obrigação, colocada contra o Estado e terceiros, de não obstar as realizações pessoais,
refletindo-se na posição jurídica do ofendido em se valer da justiça para efetivar o seu direito,
mesmo quando se elabore uma lei contra a parcela de liberdade em questão.
Conforme Dworkin (2002, 413-415), só é possível alegar a existência de um direito do
primeiro tipo, em sentido fraco, depois de diluir muito a ideia do que é um direito e uma con-
cepção como essa já não tem valor em um debate político ou em uma argumentação jurídica.
Com efeito, o condão de um direito baseado apenas no que interessa ao homem possuir não é
capaz de rivalizar com aquilo que lhe é inerente enquanto pessoa dotada de igual consideração
e respeito. Portanto, se verdadeiramente existe um direito à liberdade, ele deve se encaixar nessa
última distinção.

3.1 Distinção entre liberdade como licença e liberdade como independência

Para John Stuart Mill (2000, p. 33-34), o Homem se diferencia dos animais pela apti-
dão ao progresso e por constantemente evoluir com a correção de seus erros e a formulação de
novas verdades. Conforme o autor, a originalidade constitui o caminho para o desenvolvimento
racional e, para alcançar esse objetivo, faz-se necessário um espaço mínimo dentro da sociedade
para que o erro seja corrigido e a verdade fomentada através da discussão livre de novas ideias.
Esse espaço diz respeito à parcela da conduta humana que não causa prejuízos a ter-
ceiros e deve permanecer intocável enquanto parte fundamental da liberdade que todo homem
deve dispor. Tendo em vista não raro o povo desejar oprimir parte de sua totalidade (MILL,
2000, p. 9-10), se faz necessário limitar o poder do governo e das opiniões dominantes sobre os
indivíduos. Entretanto, apesar de defender a liberdade, nos dizeres de Dworkin (2002, p. 404-
406), o autor se refere a um tipo bastante específico de liberdade.
A acepção tradicional entende que a liberdade implica a ausência de frustração e de
obstáculos às escolhas e atividades possíveis, a inexistência de obstrução nos caminhos que um
homem pode decidir trilhar conforme seus desejos de vida. Trata-se de um conceito de liberda-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

de como licença, que se vê indiferente à esfera de ação individual e busca maximizar o conjunto
de comportamentos permitidos no seio de uma comunidade através da ausência de constrangi-
mentos. Nesse sentido, o homem deve gozar da mais absoluta licença para concretizar seus de-
sejos pessoais e o Estado deve se deter à regulação das estruturas sociais e dos comportamentos
mais básicos (DWORKIN, 2002, p. 404-405).
Aparentemente, esse é um tipo de liberdade que potencializa a emancipação de cada
indivíduo e, por isso, bastante desejável. Entretanto, em última instância, um direito em sentido
forte a uma liberdade como licença prejudicaria qualquer limitação imposta pelo convívio em
sociedade, e essa é uma consequência grave para um sistema que busca regular o comportamen-

220
to de um corpo social. Para Dworkin (2010, p. 159-160):

se é assim que entendemos a liberdade, torna-se evidente de imediato que a liberdade


do lobo é a morte do cordeiro. Se for assim que entendemos a liberdade e estivermos
comprometidos com a liberdade assim compreendida, torna-se bastante plausível
que esse compromisso entrará muitas vezes em conflito com outros compromissos,
inclusive com aqueles de caráter minimamente igualitário. [...]. Podemos dizer: a
liberdade não é a liberdade de fazer aquilo que se quer; é liberdade de fazer o que se
quer na medida em que se respeitem os direitos morais, devidamente compreendidos,
das outras pessoas. É a liberdade de usar recursos legítimos ou negociar sua propriedade
legítima de maneira que lhe aprouver. Assim entendida, porém, sua liberdade não
inclui a liberdade de se apropriar dos recursos alheios nem de prejudicar alguém com
métodos eu você não tem o direito de usar.

Seguindo um caminho diverso à defesa da não existência de amarras em um direito


como licença, Dworkin (2002, p. 405) esclarece que há ainda uma esfera de liberdade como
independência que assegura ao indivíduo a não ingerência das opiniões de outros sobre as suas
e é inerente ao status de uma pessoa independente e igual, capaz de se autodeterminar sem se
submeter às vontades de outros. Busca-se, aqui, garantir que cada indivíduo, disponha de um
espaço igual para desenvolver suas concepções de bem e seus padrões de vida boa sem a inter-
ferência das convicções de outros.
Trata-se do poder de cada um governar a sua própria vida e seus próprios interesses,
de decidir aquilo que é bom para si e se guiar conforme essa escolha dentro dos limites impos-
tos pelos direitos de terceiros (SARMENTO, 2010, p. 154). É, pois, o reconhecimento “de que
cabe a cada pessoa, e não ao Estado ou qualquer outra instituição pública ou privada, o poder
de decidir os rumos de sua própria vida, desde que isto não implique lesão a direitos alheios”
(SARMENTO, 2010, p. 154).
Para Mill, leis que restringem a liberdade de todos ou condicionam o exercício des-
sa com o objetivo de evitar possíveis calamidades não ofendem ninguém; entretanto, leis que
restringem a liberdade de grupos específicos e os tornam subservientes aos ideais de outros,
ofendem profundamente. Na verdade, para ele, “o único propósito de se exercer legitimamente
o poder sobre qualquer membro de uma comunidade é evitar danos aos demais” (MILL, 2000,
p. 17).
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Em leitura de sua obra, Dworkin (2002, p. 407-408) assevera que o autor se referia à
liberdade como independência quando se opunha à tirania da maioria exatamente por buscar
o respeito à individualidade do homem frente às opiniões dessa e não a liberdade ilimitada de
satisfazer os desejos inquisitivos de uma parcela da população.
Em um sistema jurídico cujo propósito seja exercer o seu papel regulador, um direito
em sentido forte à liberdade como licença, ou a alguma espécie de cláusula geral, não pode
existir. Isso porque não é concebível que, ao mesmo tempo em que busque restringir a esfera
de liberdade ao prescrever condutas proibidas ou devidas, conceda também a possibilidade de

221
pratica-las, ou não, com base em um direito geral de ação. Mesmo que se deseje com grande
intensidade e se conceba que essa é uma condição fundamental para cada um viver sua vida,
não existe liberdade quando o direito exige o contrário. Na verdade, se a ninguém é dado deixar
de fazer algo que o direito impõe porque possui(ria) liberdade para não fazê-lo, a utilidade de
uma cláusula geral de liberdade se torna questionável, principalmente quando não possui força
para proteger a esfera de autonomia do homem.
Mesmo assim, a existência de um direito à liberdade como independência não é um
mito, mas está condicionada a um pressuposto muito mais fundamental que o próprio apelo à
liberdade.

3.2 Liberdades específicas e o seu conteúdo implícito

Nesse ponto, a posição original cunhada por John Rawls (2008, p.13-21) ao formular
sua teoria da justiça oferece um bom subsídio para a discussão acerca do conteúdo encartado no
rol de liberdades individuais. Segundo o autor, esse é um momento inicial de igualdade no qual
será celebrado o contrato social que irá reger a vida dos participantes. Ali poderão estabelecer
um interesse em resguardar o maior grau de liberdade possível. Contudo, sabem que esse não
será um direito exigível, que uma liberdade como licença não é um direito forte porque, se o
fosse, não admitiria sequer que uma norma penal básica pudesse restringir a liberdade de ação
individual.
Nesse instante inicial no qual tudo está sendo definido e aquilo a que cada um terá
direito ainda não foi escolhido, todos os interesses importam. No entanto, as partes presentes
na posição original logo entenderão que a liberdade como licença não distingue entre as formas
de conduta, que toda lei prescritiva de comportamento diminui parcela considerável daquela e
que somente poderão guarnecer outros interesses igualmente importantes se deixarem de lado
a ideia de liberdade geral.
Mesmo existindo uma grande preocupação em se resguardar a maior parcela de liber-
dade possível, sabem que não podem tornar uma cláusula geral juridicamente exigível. Por-
tanto, outro direito deverá assumir o papel de guia central para a justiça social e as estruturas
básicas da sociedade (DWORKIN, 2002, p. 277). E mais, esse direito terá a tarefa de justificar a
quantidade de liberdade compatível com esses distintos interesses que só podem ser protegidos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mediante restrições aos atos de outros.


Como bem observa Daniel Sarmento (2010, p. 155), a autonomia privada não é absolu-
ta. Pelo contrário, deve ser conformada com uma idêntica quota de liberdade a ser conferida aos
demais e com outros valores igualmente relevantes à democracia, tais como a autonomia pú-
blica, a solidariedade e a segurança. Em verdade, “se a autonomia privada fosse absoluta, toda
lei que determinasse ou proibisse qualquer ação humana seria inconstitucional” (SARMENTO,
2010, p. 155).
Com efeito, é necessário distinguir o desejo de resguardar liberdades particulares ba-
seadas na ausência de restrições a atos considerados relevantes – como a participação política e

222
o direito ao voto direto e secreto – da recusa a uma liberdade como licença (DWORKIN, 2002,
p. 277). O constitucionalismo atual tem como marca distintiva a garantia de direitos em sentido
forte a certas liberdades individuais. Nessa perspectiva, é inviolável a liberdade de consciência
e de crença. Porém, diferentemente da noção de liberdade como ausência de restrições, essas
liberdades se apoiam no ideal de independência que cada homem carrega e na noção do que é
imprescindível ao convívio em sociedade para retirar a sua força jurídica. Há, aí, algo a mais,
revelado pela incorporação de valores considerados importantes no texto fundamental.
Este é um ponto relevante. Seguindo o exemplo utilizado por Dworkin (2002, p. 414),
também está constitucionalmente consagrada em nosso ordenamento a liberdade de locomoção,
mas, ao mesmo tempo, dificilmente se diria que as normas de trânsito não devem ser observa-
das, que existe um direito (em sentido forte) de dirigir rotineiramente em contramão e que um
apelo à ideia de liberdade geral seria suficiente para desobrigar alguém dessas limitações. No
entanto, restrições a posições mais fundamentais não são percebidas da mesma forma: se aceita
que existe um direito à liberdade de expressão, de manifestação do pensamento, de consciência,
religião e convicção e que a restrição a esses comportamentos é muito mais gravosa que aquela
imposta por uma regra de trânsito. Embora a construção de ciclovias possa reflexamente res-
tringir a liberdade de locomoção dos motoristas de veículos automotores ao destinar uma faixa
exclusiva para as bicicletas, uma possível restrição da capacidade de debate público de ideias e
opiniões, ainda que também reduza parcela da liberdade, parece ser uma questão diferente, as-
sim como parece sê-lo uma restrição ao direito de locomoção de grupo específico da população
em situações nas quais não exista uma justificativa plausível para tanto.
Notadamente, esse sentimento indica que o impacto sobre as liberdades básicas vai
além da própria ideia de liberdade. Bem por isso, “o que temos um direito não é, em absoluto,
a liberdade, mas sim os valores, interesses ou posições que essa restrição particular frustra”
(DWORKIN, 2002, p. 417).
Não é possível exigir um direito à liberdade por si própria, mas sim em razão das po-
sições mais fundamentais sobrepostas nela (DWORKIN, 2002, p. 415-419): são essas posições
que, quando afetadas, permitem distinguir a força de um direito comparado a outro e observar
que a supressão de uma parcela da liberdade é percebida de forma diferente conforme esses
diferentes direitos específicos sejam afetados. Incontestavelmente, vários direitos em sentido
forte carregam consigo o anseio pela liberdade, mas pelo menos um deve desempenhar o papel
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

central na teoria a respeito de qual é o conteúdo das prerrogativas mais básicas.

3.3 O direito à igual consideração e respeito como orientador das liberdades básicas

Vale esclarecer, aqui, que a existência de um contrato nos moldes expostos pela posi-
ção original foi uma circunstância criada por John Rawls (2008, p.127-208) para tornar nítida a
medida de equidade que seus dois princípios de justiça pressupõem. Portanto, “trata-se de um
artifício de representação que pode ser adotado em qualquer momento, devendo o acordo ela-
borado pelas partes ser considerado como hipotético e não identificado historicamente” (TEI-

223
XEIRA, 2007, p. 46). É exatamente a medida de justiça e sensatez resultante da posição original
que é útil para testar a adequação dos mais diversos argumentos à estrutura de uma sociedade
bem ordenada, desprovida de aversões e preconceitos contra certos grupos e preferências com
relação a outros.
Através da estrutura de uma posição original, é possível lançar mão sobre o que seria
do interesse antecedente fazer e daí retirar uma solução para o conflito em questão. A situação
de igualdade à qual se está submetido e a aceitação proporcionada pela fixação prévia das regras
que irão reger a escolha conferem a isenção necessária para a decisão tomada pelo grupo.
Portanto, mesmo durante a elaboração de seu contrato social, as partes não são livres
para agir arbitrariamente; ao contrário, enquanto condição para a própria posição original lhes
é garantido o direito de ser tratado como igual, independentemente de seus gostos pessoais
(RAWLS, 2008, p. 22-23). Todos têm direito a igual participação na formulação do contrato e
o debate deve ocorrer sem que uns julguem sua posição merecedora de maior consideração que
a dos demais.
Assim, da mesma forma que na posição original, a existência de um direito à igualdade
em uma sociedade bem ordenada decorre da potencialidade em desenvolver uma personalidade
moral. Trata-se de uma prerrogativa básica devida a todo homem enquanto seja capaz de ela-
borar uma concepção do próprio bem, um plano racional de vida, e de possuir e agir segundo
um senso de justiça. Para Rawls (2008, p. 622-630), esse é um traço característico do homem
que o diferencia dos animais e obriga que seja tratado com base nos seus princípios de justiça.
Conforme o autor, à justiça igual basta a capacidade de desenvolver uma personalidade moral,
sem que ela mesmo seja necessária. Daí resulta que “não existe raça nem grupo reconhecido
de seres humanos aos quais falta essa capacidade, ou sua realização em um grau mínimo, e a
não-realização de tal capacidade é consequência de circunstâncias sociais injustas ou empobre-
cidas, ou de contingências fortuitas” (RAWLS, 2008, p. 625).
Dessa forma, todo homem possui um direito a igual consideração e respeito. Existem,
contudo, dois significados ao alcance desse conceito (DWORKIN, 2002, p 249-352). O primeiro
deles é o direito a igual tratamento, a igual distribuição de bens, oportunidades, recursos ou en-
cargos. É nesse sentido que, em uma democracia, todos têm resguardado em seu voto a mesma
força de decisão que os demais, sem que seja permitido a um grupo deter maior peso na escolha
a respeito de quais indivíduos irão representar a população. O segundo é o direito a ser tratado
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

como igual, trata-se da exigência de igual consideração e respeito nas decisões políticas que
serão tomadas para definir como tais bens e oportunidades serão distribuídos, de considerar os
cidadãos igualmente merecedores de estima.
Ainda que o direto a igual tratamento seja imparcial às necessidades individuais, não
age com igual respeito, ou seja, trata como igual, quem destina a mesma quantia de verbas pú-
blicas a duas cidades quando uma delas é vítima de uma catástrofe natural e necessita de uma
parcela maior de recursos para garantir a sobrevivência de seus cidadãos. Também não trata al-
guém como igual quem julga as suas reivindicações desimportantes simplesmente pelo que elas

224
representam diante das próprias convicções. O direito a ser tratado como igual é fundamental,
o direito a igual tratamento é seu derivado, em certas circunstâncias um implicará no outro,
mas não em todas (DWORKIN, 2002, p. 421). Sob esse raciocínio:

O governo deve tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres
humanos capazes de formar concepções inteligentes sobre o modo de como suas vidas
devem ser vividas, e de agir de acordo com elas. O governo deve não somente tratar
pessoas com consideração e respeito, mas com igual consideração e respeito. Não deve
distribuir bens ou oportunidades de maneira desigual, com base no pressuposto de que
alguns cidadãos têm direito a mais, por serem merecedores de maior consideração. O
governo não deve restringir a liberdade, partindo do pressuposto de que a concepção
de um cidadão sobre a forma de vida mais adequada para um grupo é mais nobre
ou superior do que a de outro cidadão. Considerados em conjunto, esses postulados
expressam [...] uma concepção de igualdade e não uma concepção de liberdade como
licença (DWORKIN, 2002, p. 419-420).

O procedimento comum ao sistema democrático, enquanto mecanismo de represen-


tação política, emprega a regra da maioria para estabelecer os direitos e deveres dos cidadãos.
No entanto, mesmo não sendo possível apelar a uma noção de liberdade geral para contestar a
validade de determinado ato normativo, os trabalhos legislativos encontram como barreira in-
transponível o respeito aos direitos fundamentais e, nesse aspecto, o direito à igualdade exerce
um papel central.
Nenhuma restrição deve se basear na ideia de que existem formas de vida intrinse-
camente mais valiosas que outras. Assim, não age com igual consideração e respeito quem
discrimina um negro por acreditar que esse não pode/deve ocupar um cargo de notoriedade
dentro da sociedade, também não se comporta assim quem, pelo mesmo serviço prestado, paga
menos a uma mulher do que pagaria a um homem; mas não há dificuldade nenhuma em afirmar
isso, pelo contrário, essas são conclusões mais ou menos bem incorporadas à moral geral como
um todo. A complexidade aumenta quando se tratam de questões controversas.
Com efeito, as reivindicações que uma sociedade pode abrigar devem conservar o
mesmo peso e capacidade de influência no debate público, sem pressupor que quem detém de-
terminado tipo de crença possui uma concepção de vida de alguma forma mais pura que quem
professa outra fé. Ao final, “a humanidade ganha mais tolerando que cada um viva conforme
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

o eu lhe parece bom do que compelindo cada um a viver conforme pareça bom ao restante”
(MILL, 2000, p. 22).

3.4 Igual consideração e liberdade como independência

Agora é possível prosseguir com argumento acerca da liberdade, no qual se alcançou


um ponto crucial. Foi dito que, embora uma regra de trânsito diminua parcela da liberdade
enquanto licença, a censura a convicções pessoais e a outros direitos básicos atinge a popula-
ção de maneira diferente e que não existe um direito geral à liberdade, mas a certas liberdades

225
guarnecidas por valores que a elas são conexos. Contudo, nada foi dito acerca da liberdade
como independência.
Kant (2008, p. 09-18) oferece uma boa perspectiva para elucidar esse ponto. Para o
autor, o “esclarecimento” equivaleria à saída do homem do seu estado de minoridade, entendi-
do como a incapacidade de “se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro”.
Segundo o filósofo alemão, a fim de alcançar esse objetivo bastaria a liberdade para a reflexão
e o uso público da razão em um ambiente livre de limitações à expressão dessas opiniões
individuais sob pena de, não havendo espaço para o livre pensar, o homem ter seu agir limitado
pelas reflexões de outrem.
Ao homem seria natural refletir e a falta de liberdade necessária a essa faculdade ca-
racterizaria uma lei contra a natureza humana exatamente por retirar dele uma prerrogativa
que lhe é inerente. Quando se fala em direito à liberdade de expressão, pressupõe-se o direito
fundamental a ser tratado como igual; é desse direito em sentido forte que se retira a sua força
jurídica.
O direito à liberdade como independência segue o mesmo caminho: existe porque a
medida da liberdade exigida para o livre discernimento sem a interferência de outros é resulta-
do do que foi chamado de direito a ser tratado como igual (DWORKIN, 2002, p. 421). Quando
se submete a liberdade de trafegar nas ruas às normas de trânsito não se ofende nada mais que
a própria noção de liberdade como licença; de forma diversa, quando uma liberdade como
independência é cerceada atinge-se diretamente o direito a ser tratado como igual, e esse é o
pressuposto fundamental das liberdades básicas que um indivíduo dispõe.
Dessa forma, a ofensa à prerrogativa de ser tratado como igual implica uma mácula às
liberdades e, como assevera Dworkin (2002, p. 305), “se os direitos têm sentido, a violação de um
direito relativamente importante deve ser uma questão muito séria. Significa tratar um homem
como menos que um homem ou como se fosse menos digno de consideração que outros homens”.
Decerto, os direitos individuais a diferentes liberdades podem ser reconhecidos quan-
do for possível demonstrar, ao menos, que o direito fundamental a ser tratado como igual os
exigem. Nesse sentido, Mill (2000, p.27-84) acreditava na existência de um direito à liberdade
de expressão porque negá-lo equivaleria a aceitar a tirania da maioria sobre a minoria, a admitir
a existência de uma parcela da população mais digna que outra. Dizer que certas opiniões de-
vem ser merecedoras de menor consideração diante das demais ou que o modo de vida de uns
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

é menos nobre frente à de determinado grupo demonstra ser o direito à igual consideração e
respeito que é violado, e não um suposto direito à liberdade.
Dworkin (2002, p. 421) propõe que

os direitos individuais a diferentes liberdades devam ser reconhecidos somente quando


se puder mostrar que o direito fundamental a ser tratado como igual exige tais direitos.
Se isso for correto, o direito a diferentes liberdades não entra em conflito com nenhum
suposto direito à igualdade concorrente; ao contrário, decorre de uma concepção de
igualdade que se admite como mais fundamental.

226
Reconhecidamente, todos têm direito a ser tratados como pessoas e o Estado tem o
dever de não discriminar os planos de vida de seus cidadãos, elegendo uns em detrimento de
outros. Com efeito, quando se proíbe que alguns defendam os seus ideais políticos, o Estado
ofende diretamente a parcela de igual liberdade que cada um deveria dispor enquanto mem-
bro de sua sociedade e merecedor de igual consideração e respeito. E nisto consiste seu ideal
igualitário: “o governo deve agir para tornar melhor a vida daqueles a quem governa, e deve
demonstrar igual consideração pela vida de todos” (DWORKIN, 2005, p. 169)
Até esse momento, chegou-se à conclusão de que a liberdade não é valiosa por si
mesma, mas por servir de instrumento para resguardar outros valores. Entretanto, isso não
quer dizer que ela também não ocupe um papel fundamental. Na verdade, a compreensão da
igualdade na forma aqui apresentada faz da liberdade também uma questão de igualdade, ao
invés de um ideal independente e em conflito (DWORKIN, 2005, p. 158). Se não é possível
exigir qualquer direito à liberdade que entre em conflito com as exigências de igual respeito e
consideração, resta evidente que aí não há um direito à liberdade, ao menos não no sentido forte
aqui trabalhado.
Portanto, respeitar a liberdade implica respeitar a igualdade. Disso decorre que a liber-
dade não está subordinada à igualdade, mas sim intrinsecamente ligada a ela, compondo um
único ideal humanista (DWORKIN, 2005, p. 177-178).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão acerca das liberdades é extremamente fecunda e, por isso mesmo, o pre-
sente artigo teve como norte apresentar apenas uma concepção de direito à liberdade, capaz de
informar qual o seu conteúdo mínimo, sem pretender esgotar as diferentes faces que um direito
assim concebido possui. Para tanto, buscou-se esclarecer que, quando o termo direito é invo-
cado, é necessário levar a sério as exigências feitas em nome desse ideal, não figurando apenas
como um jargão performático sem normatividade. Ao contrário, dizer que existe um direito
fundamental a algo reflete o reconhecimento de uma posição jurídica inegociável, inalienável
e, assim, inafastável. Nesses moldes, deter um direito à liberdade implica não poder ter essa
parcela de autonomia restringida.
Entretanto, embora seja defensável a existência de uma cláusula geral e irrestrita de
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

liberdade por ser desejável possuí-la, uma concepção como essa não se amolda ao desenho ins-
titucional de uma sociedade regida pelo direito. Dito isso, não é concebível que alguém tenha o
direito (prerrogativa) de fazer ou deixar de fazer algo quando o próprio direito (ordenamento ju-
rídico) imponha o contrário. Alegar a existência de um direito geral à liberdade, nesses moldes,
equivaleria a reconhecer a incapacidade do sistema jurídico em impor uma obrigação.
Com efeito, a liberdade como licença não constitui um direito em sentido forte, em-
bora seja possível que grande parcela da população a deseje. Dessa forma, o direito à liberdade
de expressão (e tantas outras prerrogativas consagradas pelo ordenamento jurídico) existe em

227
virtude do que a sua proteção representa no cenário político. É uma liberdade individual porque
garante a parcela de independência e autodeterminação de cada homem e, nesse sentido, busca
tutelar o seu direito à igual consideração e respeito.
Não sendo possível exigir um direito à liberdade com base em um preceito geral, de-
fende-se um direito às liberdades básicas não porque é possível exigir força jurídica delas por
si só, mas porque uma lesão a esses direitos atinge cada um de uma forma que vai além do seu
impacto sobre a liberdade mesma, alcançando outros valores resguardados constitucionalmen-
te. Nesse aspecto, o direito a ser tratado como igual representa o compromisso mínimo com
a liberdade a que o direito deve se submeter. Portanto, nenhuma restrição à liberdade deve ter
como base a existência de formas de vida mais ou menos valiosas, transformando-a, pois, em
uma questão de igualdade.
De tudo isso, conclui-se que não existe um direito geral à liberdade, mas liberdades
básicas que se conferem pelo valor somado a ela e que existe, pelo menos, o direito à liberdade
que o direito a ser tratado como igual exigir.

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FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

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v. 9, n. 85, p.40-62, jun./jul, 2007.

TAKING THE RIGHT TO FREEDOM SERIOUSLY: AN APPROACH BASED ON


RONALD DWORKIN.

ABSTRACT
The arrangement assigned to the right to freedom is one of the central
themes in any democratic State. Notably, the way freedoms are dis-
tributed in a society affect directly the action field of every citizen, in-
fluencing the exercise of all their rights. This article aims to present
the approach proposed by Ronald Dworkin in the book “Taking Rights
Seriously”, particularly, a general clause of freedom from a strong com-
prehension of the fundamental rights content.
Keywords: General right to liberty. Ronald Dworkin. Equal concern
and respect.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

229
Recebido 17/02/2017
Aceito 02/05/2017

O DIREITO À (BUSCA DA) FELICIDADE COMO NORTEADOR DO DIREITO DAS


FAMÍLIAS

Arthur Ferreira de Oliveira1

RESUMO
O presente artigo trata da análise acerca do Direito à felicidade como
direito fundamental e sua respectiva aplicação no ramo do Direito das
Famílias, atuando como norteador desse. Apesar da dificuldade de con-
ceituação do que se entende por felicidade, desde os clássicos aos con-
temporâneos se intentou compreender a influência desse sentimento na
sociedade, reconhecido em várias normativas históricas. O Direito à
busca da felicidade tem uma especial aplicação no Direito das Famí-
lias, de sorte que, com base nele, a jurisprudência do STF tem fixado
precedentes que vêm a superar as concepções conservadoras sobre os
arranjos familiares. O desenvolvimento deste trabalho resulta de pes-
quisas bibliográficas e documentais, ordenadas sob o método dialético,
confrontando-se ideias antitéticas para, ao final, se chegar em uma sín-
tese e em uma conclusão satisfatória.
Palavras-chave: Felicidade. Direito à (busca da) felicidade. Famílias.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é


infeliz à sua maneira”.

(Liev Tolstoi)

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

230
1 INTRODUÇÃO

Desde os pensadores clássicos, principalmente entre os gregos antigos, a felicidade - e


o direito de buscá-la -, já era estudada e apontada por muitos autores como a finalidade precípua
da sociedade e o próprio fim em si da vida.
Dada a relevância histórica e política do tema em questão, passou-se a se discutir a
possibilidade da existência de um direito à busca pela felicidade, apontado, por alguns, como um
direito fundamental, e, portanto, passível de reclamação de seu estrito cumprimento ao Estado.
Com efeito, várias normativas históricas introduziram o direito à felicidade em seus
textos, alçando-o como verdadeiro dever estatal e direito do cidadão. Apesar de que no ordena-
mento jurídico brasileiro não há nenhuma menção específica à expressão em comento.
Contudo, doutrina e jurisprudência vêm aplicando o direito à felicidade como uma es-
pécie de decorrência lógica e material dos preceitos que informam o ordenamento pátrio, como
a dignidade da pessoa humana, o direito à liberdade, igualdade e o objetivo estatal de promoção
ao bem de todos.
Nesse passo, o direito à (busca da) felicidade irradiaria sobremaneira nos diversos ra-
mos do arcabouço normativo, destacando-se, ainda mais, no Direito das famílias, uma vez que
tal sentimento é ínsito deste núcleo social, atuando como princípio implícito dessas relações, e
sendo, portanto, um de seus elementos norteadores.
Não diferente, é possível perceber alguns julgados da corte constitucional brasileira
citando o direito à felicidade para dirimir questões relacionadas ao direito de família, tal como
o paradigmático julgado da união homoafetiva.
Destarte, o objetivo deste trabalho é elucidar a possibilidade e existência de um Direito
à felicidade e a sua implicação no direito das famílias, atuando como uma das bases herme-
nêuticas desse sub-ramo do direito. Para esse mister, foram utilizadas as fontes bibliográficas,
legislativa e jurisprudencial, assentando-se no método dialético.

2 DO DIREITO À FELICIDADE

Conforme alude Maria Berenice Dias (2016, p. 201), se há uma peculiaridade inerente
a todos os humanos, esta consiste no sonho com a tão buscada felicidade. Sempre foi assim e
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

sempre será. Na maioria das vezes, a vida é planejada em favor disso, atuando a busca pela fe-
licidade como uma espécie de vetor dos nossos atos.
Desta maneira, um assunto tão caro e ínsito à humanidade não poderia ficar alheio ao
campo de pesquisa dos mais diversos ramos do saber. E não ficou. A literatura nos mostra que
estudos sobre a felicidade, sob as mais variadas perspectivas, consta desde os clássicos, perpas-
sando pelos modernos e não cessando entre os contemporâneos.
Sob essa ótica, entre os clássicos, Epicuro (retirado de DIAS, 2016, p. 201) aduzia que
“não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça e não existe prudência, beleza e justiça

231
sem felicidade”. Aristóteles ( retirado de PINHEIRO, 2016, p. 01), a seu turno, dizia “que a fe-
licidade é a finalidade da natureza humana, como dádiva dos deuses, a felicidade é perfeita”, e
que “é na busca da felicidade que se justifica a boa ação humana, sendo os outros bens meios
para atingir o bem maior felicidade”.
Nesse passo, entre os modernos, vemos em Hobbes (1651 retirado de RUBIN, 2016,
p. 42) uma ideia de felicidade ao “sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos
em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens
chamam felicidade; refiro-me à felicidade nesta vida”.
Já Kelsen, na pós-modernidade, fazia um paralelo entre felicidade e justiça, trazendo
uma noção de felicidade coletiva, aduzindo que “o anseio por justiça é o eterno anseio do ho-
mem por felicidade. Não podendo encontrá-la como indivíduo isolado, procura essa felicidade
dentro da sociedade. Justiça é felicidade social, é a felicidade garantida por uma ordem social”.
(KELSEN, 2001, apud retirado de RUBIN, 2016, p. 43).
Com efeito, ao longo da história, diversas normativas jurídicas citaram o direito à
felicidade como uma finalidade da sociedade e como um direito do cidadão. É o que se denota
da Declaração da independência dos EUA, que traz as palavras de Thomas Jefferson: “Conside-
ramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais,
dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e
a procura da felicidade.”2
Outrossim, também retira-se da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1793, que: “O fim da sociedade é a felicidade comum. O governo é instituído para garantir ao
homem o gozo destes direitos naturais e imprescritíveis.”3
Cumpre ressaltar ainda a carta com os Princípios Constitucionais para uma África do
Sul Democrática, subscrita por Nelson Mandela, em 1991, por meio da qual se prezava pelo
acesso a direitos que subsidiassem as pessoas a ter reais e efetivas oportunidades de buscar
a felicidade. Nesse mesmo sentido, David Cameron, então 1º ministro da Grã-Bretanha, afir-
mou que os políticos deveriam se preocupar sobre como fazer as pessoas mais felizes. Nicolas
Sarkozy, ex-presidente da França, discursando juntamente a dois Prêmio Nobel de Economia,
Joseph Stiglitz e Amartya Sen, anunciou a inclusão da felicidade nos indicadores de progresso
econômico do país. (LEAL, 2015, p. 230)
Apesar de que a relevância histórica e política dada ao tema, dificultosa é a conceitua-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ção do que se entende, objetivamente, por direito à felicidade.


Nesse intento, Saul Tourinho Leal (2015, p. 237) vê o direito à felicidade como uma
derivação do princípio de justiça apresentado por Jeremy Benthan, e, portanto, teria fortes bases
no utilitarismo, corrente teórica que teve o filósofo político como precursor.

2  EUA. Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. Disponível online em: <http://www.arqnet.pt/portal/teoria/
declaracao_vport.html>. Acesso em: 27/01/2017.
3  FRANÇA. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível online em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/
dec1793.htm>. Acesso em: 27/01/2017.

232
Na visão de Benthan, citado por Leal, qualquer decisão, seja ela pública ou privada,
deveria ser avaliada segundo seu impacto na felicidade de todos aqueles a que diz respeito,
devendo haver uma igualdade de tratamento. É o princípio da felicidade maior: a ação certa é a
que produz a maior felicidade geral. (LEAL, 2015, p. 237)
Leal, por sua vez, apresenta o seu conceito de Direito à (busca da) felicidade, como
sendo “o direito de não sofrer interferências ilegítimas por parte do Estado, ou do particular, na
execução de projetos racionais de realização de preferências, Eventuais interferências impõem
fundamentação, pois limitam a liberdade”. (LEAL, 2015, p. 237)
Mostra-se claro, no conceito do autor referido, uma natureza obrigacional negativa do
Estado face aos particulares, no sentido de não serem criados óbices, embaraços ao projeto de
vida que o cidadão julgue ser o mais adequado à consecução da sua felicidade.
Além disso, percebe-se a intrínseca ligação entre felicidade e liberdade, uma vez que o
indivíduo somente poderá ter oportunidade de ser feliz se tiver sua liberdade plena.
Nessa esteira, outro autor que também realizou essa inferência foi o filósofo inglês
John Stuart Mill, sucessor declarado dos ideais utilitaristas de Benthan.
Mill acreditava no que se passou a chamar de “princípio do dano”, uma vez que o indi-
víduo somente teria sua liberdade tolhida quando seus atos danosos extrapolassem a sua esfera
individual e adentrassem na esfera de outrem. Assim, de acordo com o princípio do dano, “o
único fim para o qual as pessoas têm justificação, individual ou coletivamente, para interferir
na liberdade de ação de outro, é a autoproteção, cuja função é prevenir dano a outros”. (LEAL,
2015, p. 249-250)
Assim, Stuart Mill (retirado de LEAL, 2015, p. 232-233) afirma que “uma pessoa não
pode corretamente ser forçada a fazer ou a deixar de fazer algo porque será melhor para ela que
o faça, porque a faça feliz, ou porque, na opinião de outros, fazê-lo seria sensato, ou até correto”.
Logo, “as pessoas têm mais a ganhar em deixar que cada um viva como lhe parece bem a si, do
que forçando cada um a viver como parece bem aos outros”.
Nesse diapasão, Layard (retirado de LEAL, p. 233), suscita a existência de um chama-
do “princípio da felicidade maior”, sendo ele é “fundamentalmente igualitário (a felicidade de
todos deve ter o mesmo valor) e fundamentalmente humano (o que importa é o que as pessoas
sentem)”. Diz o referido autor que “todo direito humano tem de ser justificado como um modo
de evitar sofrimento (ou promover a felicidade)”. Sob essa ótica, a Constituição e as normas
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

infraconstitucionais seriais essenciais para o alcance da felicidade.


Além da perspectiva individualista da felicidade, há ainda uma visão publicista, que
pode ser encontrada em Hannah Arendt (retirado de LEAL, p. 234), vez que a autora assevera
não haver democracia verdadeira sem o exercício desembaraçado do direito à felicidade pública.
Nessa ótica, a felicidade pública consistiria “na satisfação sentida pelo ser humano ao se
perceber como parte de uma comunidade política, notadamente, quando ele participa das deci-
sões de impacto coletivo”. Assim, “a partir do momento em que esse senso cívico é desenvolvido,
estabelece-se uma forte conexão entre a causa pública e o ser humano”. (LEAL, 2015, p. 234)

233
Sem embargo, apenas a prestação, positiva ou negativa, do direito à busca da felici-
dade, que tem claras bases jurídicas na liberdade aliada à dignidade, não seria suficiente à sua
otimização, posto que deve ser concedido ao homem, antes de tudo, aquele bloco de direitos
básicos entendidos como mínimo existencial – condições de saúde, educação, alimentação, hi-
giene, qualidade de vida -, pois, só assim ele será verdadeiramente livre. (LEAL, 2015, p. 239)
Nesse sentido, “Os direitos socioeconômicos, chamados também de “direitos ao pão”,
celebram o compromisso com o bem-estar das pessoas, a parte objetiva do direito à felicidade”.
(LEAL, 2015, p. 240)
Doutro turno, é possível se denotar que em determinados momentos o direito à felici-
dade é apontado nas normativas numa pela perspectiva coletiva, não raras vezes sob a forma de
expressões correlatas, tais como “felicidade, bem-estar, bem-estar subjetivo, e satisfação com a
vida, entre outros”. É o que percebe da leitura de alguns artigos da Constituição. (LEAL, 2015,
p. 240-241)
São exemplos do acima exposto, na Constituição: o preâmbulo, que firma um com-
promisso com o “bem-estar”; O §1º do artigo 231, o artigo 182 e o inciso IV do artigo 186, que
tratam, respectivamente, das políticas de propriedades indígenas, urbanas e rurais, balizadas
de acordo com o bem-estar de todos; o artigo 193, que trata da ordem social brasileira, tendo
como base o primado do trabalho e como objetivo o “bem-estar” e a justiça social; o artigo 219,
que regula o mercado de interna de forma a fomentar o “bem-estar” da população; e o art. 230,
que impõe o dever solidário entre família, a sociedade e o Estado de amparar as pessoas idosas,
assegurando o seu “bem-estar” (LEAL, 2015, p. 241-244).
Com efeito, fora imbuído desses ideais que o Senador Cristóvão Buarque, no ano de
2010, apresentou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 19 (BRASIL, 2016), a chama-
da “PEC da felicidade”, com o fito de incluir o vocábulo “felicidade” no texto do artigo 6º, da
Constituição Federal de 1988, artigo que prevê o rol (não exaustivo) de direito sociais.
Sustentava o senador que os direitos deixaram de transmitir os sentimentos que deve-
riam representar, sendo necessário criar um novo paradigma na elaboração e na execução de po-
líticas públicas. Afirmava Buarque (BRASIL, 2016, p. 01) que o direito de ser feliz está atrelado
aos direitos sociais e não ao subjetivismo de cada qual. Porém, a PEC não recebeu aprovação,
sendo arquivada em 2014.
O insucesso da proposta do senador Buarque talvez resida no problema da concretiza-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

ção fática de um direito fundamental à felicidade, dada a imprecisão terminológica. Isso porque
a aplicação de tal direito seria um grande desafio aos profissionais do direito. Apesar de que
a Constituição expõe em seu texto diversos conceitos abertos e cláusulas gerais, de modo que
cabe ao legislador infraconstitucional e ao judiciário dar conformação ao texto.
Sem embargo, Maria Berenice Dias (2016, p. 202) enxerga que, tendo em vista que o
artigo 6º apresenta um rol exemplificativo, pode-se dizer que o direito à felicidade, mesmo sem
a aprovação da PEC, existe e precisa ser assegurado a todos, de sorte que “não só pelo Estado,
mas por cada um, que além de buscar a própria felicidade, precisa tomar consciência que se trata

234
de direito fundamental do cidadão, de todos eles” (DIAS, 2016, p. 203).
Hodiernamente o Direito à felicidade segue como um campo de estudos ainda embrio-
nário, mas já é possível se notar estudos em diversos países. Nos EUA, destaca-se um campo
autônomo de investigação denominado “law and happiness”, direito e felicidade, que, com fun-
damento também em outras ciências, visam a formulação de políticas que buscam aumentar a
felicidade geral das pessoas (PINHEIRO, 2016, p. 07).
Doutro turno, no Butão, em contrapartida ao índice do Produto Interno Bruto (PIB),
surgiu um novo indicador para medir o desenvolvimento social: a Felicidade Interna Bruta
(FIB), tratando-se louvável inovação (DIAS, 2016, p. 203).
Nesse pórtico, o conceito de Felicidade Interna Bruta “baseia-se no princípio de que o
verdadeiro desenvolvimento de uma sociedade humana surge quando o desenvolvimento espi-
ritual e o material são simultâneos, se complementando e reforçando mutuamente”. O cálculo
da “riqueza” deve considerar outros aspectos além do desenvolvimento econômico, como a
conservação do meio ambiente e a qualidade de vida das pessoas (DIAS, 2016, p. 203).
Nada mais adequado. Afinal, outra coisa diversa não devem ter imaginado as pessoas
do povo ao tacitamente “assinar” o contrato social a que aludem os filósofos contratualistas:
o Estado garantirá a todos o direito à busca da felicidade. No entanto, salutar a lição de Ives
Gandra (retirado de PINHEIRO, 2016, p. 08), no sentido de que é preciso fazer a distinção entre
fins e meios. O bem comum é a finalidade e os direitos sociais, os meios para promovê-lo. Nesse
diapasão, não se poderia colocar a felicidade como direito a ser garantido pelo Estado.
Nessa ótica, o dever do Estado consistiria em assegurar os meios para que cada um
possa chegar à felicidade. Com efeito, ninguém pode impor ao outro uma “fórmula da felici-
dade”, vez que cada um tem pra si o seu próprio conceito de felicidade. Ou como diria Almir
Sater: “Cada um de nós compõe a sua história. Cada ser em si carrega o dom de ser capaz; de
ser feliz” (SATER; 1991, p. 01).
Sob essa perspectiva aduziu Luiz Edson Fachin (2014, p. 142), observando que a supra-
citada “busca da felicidade não pode ser barrada por preconceitos. Aqui não se subscreve, nem
de longe, o desvario individualista do consumo de tudo e a própria reificação do ser. Dignidade
e responsabilidade se conjugam com a liberdade”. Apesar de que “Em qualquer situação, con-
tudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria”.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

3 A APLICAÇÃO DO DIREITO À FELICIDADE NO DIREITO DE FAMÍLIA

É sabido, sem necessidade de apontar estudos mais aprofundados, que o melhor fun-
cionamento da família guarda forte ligação com a felicidade das pessoas e com uma maior
satisfação com a vida. Porém, o legislador brasileiro, mesmo no estado avançado da sociedade,
ainda se prende a dogmas secularizados que criam óbices à consecução desse fim.
Nesse passo, Maria Berenice Dias (2015 p. 84), mesmo antes da entrada em vigência da
Emenda Constitucional 66/2010, que extinguiu o instituto da separação judicial do nosso orde-

235
namento pátrio, assim como suas elementares (culpa, prazos...), já apresentava forte divergência
ao chamado “fetichismo” do legislador pelo casamento como instituição imutável e imprescin-
dível, que vinha desde o Código Civil de 1916.
Aduz a autora que, mesmo rompido o vínculo afetivo que une as pessoas ao matrimô-
nio, o legislador optava por impor a permanência das pessoas dentro do casamento. Primeiro, o
casamento era indissolúvel. Mesmo depois da edição da Lei do Divórcio, havia uma injustificá-
vel resistência em aceitar a sua dissolução.
Ora, a família nada mais é do que a conjugação de indivíduos ligados entre si por laços
afetivos e ancorados em fatos de ordem biológica ou de ordem afetiva, tendo uma de suas fina-
lidades à busca de alegria e felicidade.
Apesar da aprovação da Emenda Constitucional 66/10, setores conservadores ainda
seguem aquela linha de pensamento, alçando o casamento num patamar superior à família em
si, na tentativa dissimulada de desonerar o Estado dos seus deveres para com os integrantes do
núcleo familiar, tolhendo destas pessoas a liberdade para buscar a sua felicidade, finalidade e
razão da vida, como disseram os autores citados alhures.
É por meio dessa liberdade que se alcança o autêntico momento de propiciar à família
a felicidade pessoal de seus membros, que gera a efetivação da personalidade individual, e, por
isso, cabe ao Estado libertar qualquer barreira que impeça ou impossibilite a almejada felicidade.
Sem embargo, considerando-se que o Direito além de uma ferramenta para a solu-
ção dos conflitos humanos é, em essência, um instrumento de pacificação social, infere-se sua
orientação teleológica para a construção de um mundo no qual as pessoas possam buscar, livre-
mente, a felicidade, quaisquer que sejam as dimensões materiais e imateriais.
Dessa maneira, o vínculo do afeto tornou-se condição de princípio jurídico oriundo
da dignidade da pessoa humana, visto que é por meio do afeto que as famílias se aproximam e
garantem o direito à felicidade e a uma vida digna, sendo pautadas pelo afeto e não por meras
formalidades como a do casamento civil.
Assim, o afeto pode ser considerado um laço que une não só integrantes de uma famí-
lia, mas que une qualquer pessoa, com a finalidade de garantir a felicidade de todos que perten-
ce àquele meio, seja amigos, familiares ou conviventes.
Nessa ótica, assentando-se no direito à felicidade e na liberdade de orientação sexual
como princípio constitucional, impõe-se, a título de exemplo, a naturalidade e a proteção estatal
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

dos homossexuais expressarem seu modo de ser e exteriorizar a sua sexualidade, seja por meio
de união estável homoafetiva ou casamento homoafetivo, pois o que deve prevalecer é a felici-
dade, com o reconhecimento de seus direitos constitucionalmente assegurados.
Ainda nessa seara, Fachin (2014, p. 56) cita, no contexto da discussão do direito ao
nome de transexuais, o direito a mudança do sexo no registro civil, como garantia da concreti-
zação do direito à felicidade e qualidade de vida do indivíduo.
Destarte, o direito à felicidade, à liberdade e o princípio da dignidade da pessoa hu-
mana constituem uma proteção ao ser humano, contra quaisquer preconceitos da sociedade,

236
não podendo o Estado deixar de conceder às famílias homoafetivas, às famílias simultâneas,
monoparentais, unipessoais, de poliamor, qual seja a sua forma, o direito de constituir família
e terem total proteção estatal, não devendo o Estado interferir numa situação de clara natureza
privada e íntima, ao impor aos novos arranjos familiares uma forma de família secularizada que
pode não satisfazer o seu direito de ser feliz. (PESSANHA, 2016 p. 08).
Corroborando com o exposto, vê-se decisões importantes de supremas cortes respei-
tadas que têm reconhecido a felicidade como um direito e, por meio dela, assegurado outros
direitos. Todavia como bem observa Maria Berenice Dias, em que pese à não inclusão do direito
à felicidade no rol dos direitos sociais, não seria exagero algum asseverar que o direito à busca
da felicidade estaria materialmente assegurado no texto constitucional, como corolário da dig-
nidade da pessoa humana, fundamento da república, além do dever estatal de promover o bem
de todos, sem exceção. (BRASIL, 1988)” (LEAL, 2015, p. 231).
Assim sendo, apesar do silêncio do legislador no tocante à felicidade como direito, tal
omissão não inibe a justiça de invocar o direito à felicidade para colmatar as lacunas da lei. Isso
posto, O STF (BRASIL, 2006 e 2011), citando o direito à felicidade, recentemente decidiu:

E M E N T A: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO -


ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA
QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS - LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONAL DO RECONHECIMENTO E QUALIFICAÇÃO DA
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA COMO ENTIDADE FAMILIAR: POSIÇÃO
CONSAGRADA NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
(ADPF 132/RJ E ADI 4.277/DF) - O AFETO COMO VALOR JURÍDICO
IMPREGNADO DE NATUREZA CONSTITUCIONAL: A VALORIZAÇÃO
DESSE NOVO PARADIGMA COMO NÚCLEO CONFORMADOR DO
CONCEITO DE FAMÍLIA - O DIREITO À BUSCA DA FELICIDADE,
VERDADEIRO POSTULADO CONSTITUCIONAL IMPLÍCITO E
EXPRESSÃO DE UMA IDÉIA-FORÇA QUE DERIVA DO PRINCÍPIO DA
ESSENCIAL DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. (grifos acrescidos)4.

[...] cumpre registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério
da doutrina, apoiando-se em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da
analogia e invocando princípios fundamentais (como os Direito fundamental à
felicidade da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

da igualdade, do pluralismo, da intimidade, da não discriminação e da busca


da felicidade), tem revelado admirável percepção do alto significado de que se
revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à orientação sexual,
de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva
como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de
parceiros homossexuais, relevantes consequências no plano do direito e na esfera das

4  BRASIL. Acordão da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 do Supremo Tribunal Federal.


Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635>. Acesso em:
30/11/2016.

237
relações sociais.” (ADI 3300/DF, de 03/02/2006, Rel. Min. Celso de Mello). (grifos
acrescidos)5

Assim, a Suprema Corte, na sua missão de “guardiã da constituição”, já deixou clara a


sua posição. Corretamente, diga-se de passagem.
Sobre esse ponto, faz-se o questionamento se seria papel do Judiciário assegurar felici-
dade para as pessoas. A resposta mais adequada tem fulcro na ideia de que, no regime jurídico
brasileiro pós-88 todo juiz pode, e deve, apreciar a conformação da Constituição aos casos
concretos, podendo afastar os atos normativos que não se coadunam com o que pretendeu o
constituinte. Assim, tendo em vista que o direito à felicidade, em que pese a sua não positiva-
ção, pode ser cristalinamente encontrado na hermenêutica do princípio da dignidade humana e
no princípio da liberdade, o judiciário pode, sim, assegurar tal direito.
Por exemplo, no precedente vinculante da união homoafetiva, acima citado, coube ao
STF fixar a interpretação ao artigo 1.723 do Código Civil, que reconhece, como entidade fa-
miliar, a união estável entre homem e mulher, decidir que a referida união também abrangeria
casais do mesmo sexo, apesar de o dispositivo constitucional falar em “homem e a mulher”,
conforme a dicção do texto do seu artigo 226, §3 (LEAL, 2015, p. 249).
No voto de Ayres Britto (retirado de LEAL, 2015, p. 250), a decisão do STF estaria
denotando “o reino da igualdade pura e simples, pois não se pode alegar que os heteroafetivos
perdem se os homoafetivos ganham. Significa que a decisão amplia a situação de bem-estar dos
homoafetivos, sem mitigar, em nada, a situação vivenciada pelos heteroafetivos”. Conforme se
vê, o voto do ministro fora bastante embasado na teoria do dano de Mill.
A seu turno, e no mesmo sentido, o Ministro Celso Mello afirmou que a decisão não
causaria tensões nas relações humanas, nem tampouco dividiria pessoas, grupos ou institui-
ções. Inclusive, ela seria útil em longo prazo, uma vez que estimularia a união da sociedade em
torno de um objetivo comum, fato este que aumentaria a sensação de fraternidade e ampliaria,
por conseguinte, a felicidade coletiva.
Em seu voto, Celso Mello abriu um tópico denominado: “O direito à busca da felici-
dade, verdadeiro postulado constitucional implícito, como expressão de uma ideia força que
deriva do princípio da essencial dignidade da pessoa humana”. O ministro reconheceu que o
direito à busca da felicidade representa derivação da dignidade humana, atuando como um dos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

mais proeminentes postulados constitucionais implícitos (LEAL, 2015, p. 250).


Cumpre citar ainda o caso “Obergefell v. Hodges”, apreciado pela Suprema Corte dos
Estados Unidos, tratando do casamento entre pessoas do mesmo sexo, no qual se definiu ma-
joritariamente que o casamento é “um dos mais vitais e essenciais direitos pessoais para que um
homem livre busque a sua felicidade”, em contrapartida de pensamentos minoritários de que o
casamento serve unicamente à procriação. (LEAL, 2015, p. 251).

5  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Re Agr/mg nº 477554, Segunda Turma. Relator: Min. CELSO DE MELLO. Diário de Justiça da
União. Brasília, 25 ago. 2011

238
É nesse sentido que Maria Berenice Dias (2015, p. 52), citando Giselda Hironaka, aduz
que a posição que o indivíduo ocupa na família ou a forma do arranjo familiar são questões que
ficam em segundo plano, posto que “o que importa é pertencer ao seu âmago, é estar naquele
idealizado lugar onde é possível integrar sentimentos, esperanças, valores e se sentir, por isso, a
caminho da realização de seu projeto de felicidade”.
A autora ainda afirma que “há a necessidade de o Estado atuar ele modo a ajudar as
pessoas a realizarem seus projetos racionais ele realização de preferências ou desejos legítimos.
Não basta a ausência de interferências estatais”. Ou seja, evidencia-se de forma patente que “O
Estado precisa criar instrumentos (políticas públicas) que contribuam para as aspirações de
felicidade das pessoas, municiado por elementos informacionais a respeito elo que é importante
para a comunidade e para o indivíduo” (DIAS, 2015, p. 52).

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste trabalho foi elucidar a existência e validade do direito à felicidade no


ordenamento jurídico pátrio, e a sua especial aplicação no ramo do Direito das Famílias, por
vezes entrelaçado com o princípio da afetividade.
Destarte, restou sobejamente demonstrado, seja na doutrina, nos clássicos, no direito
comparado, nos precedentes da Suprema Corte, que não resta nenhum óbice ao reconhecimento
do direito à felicidade como decorrência lógica e material do ordenamento pátrio e da vigência
do Estado Democrático e Constitucional de Direito.
Nesse rumo, inegavelmente quem constitui uma família nada mais almeja do que ser
feliz, de sorte que o Estado deve prover os meios para que essas pessoas atinjam tal mister, re-
conhecendo e concedendo agasalho jurídico àquelas.
Por fim, como ficou evidenciado, o presente trouxe algumas noções do que alguns
doutrinadores entendem por felicidade, de forma que não se pretendeu apresentar um conceito
definitivo, fechado, dessa que seria o fim último da humanidade. Tal ideia diz respeito ao íntimo
de cada um.
Sobre esse ponto, Cazuza dizia que a felicidade não estaria na chegada, ou seja, no
alcance do objetivo, mas sim no caminho até lá. Talvez esteja nos dois. Quem sabe?
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

REFERÊNCIAS

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da Felicidade). Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/97622>. Acesso em: 28 nov. 2016.

DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.

239
DIAS, Maria Berenice. Direito fundamental à felicidade. Disponível em: <http://faa.edu.br/
revistas/docs/RID/2011/RID_2011_13.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2016.

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sem cirurgia de redesignação. Revista Brasileira de Direito Civil. Volume 1 – Jul / Set 2014.
Disponível em: <https://www.ibdcivil.org.br/image/data/revista/pdf/03---rbdcivil-volume-1-
--o-corpo-do-registro-no-registro-do-corpo;-mudanuca-de-nome-e-sexo-sem-cirurgia-de-
redesignaucueo.pdf>. Acesso em 11/12/2016.

LEAL, Saul Tourinho. O direito à felicidade no Brasil e na África do Sul. Revista


Publicum, Vol. 1, No 1, 2015, p. 229-256 UERJ. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.
uerj.br/index.php/publicum/article/view/20025>. Acesso em: 11 dez. 2016.

PESSANHA, Jackelline Fraga. Princípios Constitucionais: A efetivação de direitos


fundamentais da Família Homoafetiva. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/
artigos/?cod=0501b4e3f17a759d>. Acesso em: 25 nov. 2016.

PINHEIRO, Raphael Fernando. A positivação da felicidade como direito fundamental:


o Projeto de Emenda Constitucional n. 19/10. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/
portal/conteudo/positivação-da-felicidade-como-direito-fundamental-o-projeto-de-emenda-
constitucional-n-191>. Acesso em: 29 nov. 2016.

RUBIN, Beatriz. O direito à busca da felicidade. Disponível em: <http://www.esdc.com.br/


RBDC/RBDC-16/RBDC-16-035-Artigo_Beatriz_Rubin_(O_Direito_a_Busca_da_Felicidade).
pdf>. Acesso em: 26 nov. 2016.

THE RIGHT TO (SEARCH FOR) HAPPINESS AS A FAMILY RIGHTS’ GUIDANCE

ABSTRACT
This article aims to analyze the right to happiness as a fundamental
right and its application in the Family Rights field, working as its guid-
ance. Despite the difficulty in conceptualizing happiness, from the clas-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

sical to the contemporary ones, people have been trying to understand


the influence of this feeling in society, renowned by several historical
rules. The right to search for happiness has a special application in Fam-
ily Rights, so that, based on it, STF’s jurisprudence has been fixing
precendents that have overcome the conservative conceptions regarding
family organization.
Keywords: Happiness. Right to (search for) happiness. Families.

240
Recebido 20/02/2017
Aceito 02/05/2017

O RECONHECIMENTO DO CUIDADO COMO VALOR JURÍDICO E SUA INSERÇÃO


NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Lucas Leal Sampaio1

RESUMO
O presente estudo tem como intuito o reconhecimento da valoração ju-
rídica do dever de cuidar e suas implicações na seara forense. Para tan-
to, aborda o conceito do dever de cuidar e suas implicações no meio fa-
miliar. Posteriormente, busca entender os novos paradigmas do Direito
de Família com o advento da Constituição Federal de 1988 e do Código
Civil de 2002, bem como demais legislações infralegais pertinentes ao
assunto. Ademais, será feita uma análise de julgados do Superior Tri-
bunal de Justiça acerca do tema em comento, com enfoque no Recurso
Especial nº. 1.159.242/SP, concluindo pela obrigação jurídica do dever
de cuidar.
Palavras-chave: Cuidado. Valor jurídico. Direito de Família. Recurso
Especial nº. 1.159.242/SP. FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

A família é, desde os primórdios da humanidade, o alicerce da sociedade, isto é, o pri-


meiro grupo social com quem o indivíduo tem contato e que o ensina as regras de convivência
e os limites dos direitos e deveres em face ao corpo social. Nesse contexto, o novo indivíduo
começa a aprender até onde pode ir o direito individual de cada um, bem como as regras e
costumes que norteiam as ações de todos, regras estas que vão muito além da esfera jurídica,

1  Graduando do curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

241
adentrando no campo moral. Com base em tais ensinamentos, esse ser inicia seu contato com
outros grupos, aprendendo na vivência do cotidiano a aplicar o que aprendeu.
As lições aprendidas no seio familiar moldarão ainda a sua personalidade, sua for-
ma de agir, suas crenças, seus sonhos, a forma de tratamento para com os demais membros
da sociedade, mostrando a importância do papel do pai e da mãe, líderes do núcleo familiar,
na construção do caráter de cada um. A função deles é de natureza fundamental, auxiliando
no desenvolvimento biológico, psíquico e emocional de seus descendentes através do zelo, do
cuidado, do afeto e de garantir que o novo indivíduo possua um ambiente favorável para o seu
crescimento, promovendo sua subsistência, educação, saúde, moradia e proteção até que este
seja capaz de promover sua individualidade e sobreviver sozinho.
Muito embora a ideia de cuidado tenha uma relação estreita com a questão de filiação,
é imperioso destacar que tal tema abrange ainda as questões referentes aos idosos, que após
uma longa vida promovendo o desenvolvimento de seus descendentes, chegam a um estágio da
vida em que necessitam do amparo daqueles que auxiliaram, uma vez que não possuem mais
as mesmas faculdades físicas e mentais. Este tema mostra-se abrangente por esta razão, visto
que mesmo com a diminuição da necessidade do dever de cuidado em alguns momentos da
vida, o ser humano raramente não se encontra em um estágio onde está cuidando ou recebendo
cuidados de outra pessoa.
Não obstante, a relevância deste assunto logo atraiu os olhares do direito, recebendo a
tutela do Direito de Família. Este trabalho analisará os contornos atuais do dever de cuidar em
face da nova perspectiva civil-constitucional com o advento da Constituição Federal de 1988 e
do Código Civil de 2002, onde ocorreu a inserção de novos valores jurídicos no âmbito familiar,
sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana. E, assim como as relações sociais, o
conceito de família se encontra em constante transformação, com o fim do ideal do núcleo for-
mado por pai, mãe e filhos e a criação de novas entidades familiares.

2 DA CLARIFICAÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA

Inicialmente, mostra-se necessário contextualizar o que seria a família hodiernamen-


te. Durante séculos a visão de família seguia sempre os mesmos moldes: pai, mãe e filhos. No
entanto, esse ideal patriarcal, com a paternidade diretamente ligada ao sustento da família e da
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

maternidade ligada ao dever de cuidar da casa, do marido e dos filhos foi deixado para trás.
Desta forma, não se pode mais colocar como algo inovador ou tabu a existência de
casais homoafetivos, famílias em que a mãe é a fonte de subsistência, famílias decorrentes de
união estável ou mesmo famílias monoparentais. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona
Filho se destacam ao demonstrar a evolução do conceito de família, afirmando que esta é “um
núcleo existencial integrado por pessoas unidas por um vínculo socioafetivo, teleologicamente
vocacionada a permitir a realização plena dos seus integrantes” (2011, p. 45). Esta nova pers-
pectiva foi decorrente de uma construção social que levou mais de um século para ser aceita, e

242
assim como na sociedade, coube ao direito acompanhar tal evolução.
Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2016, p. 57) também seguem a mesma filosofia,
afirmando que “a entidade familiar está vocacionada, efetivamente, a promover, em concreto, a
dignidade e a realização da personalidade de seus membros, integrando sentimentos, esperan-
ças e valores, servindo como alicerce fundamental para o alcance da felicidade”.
Tal evolução foi ainda abordada nas lições de Flávio Tartuce (2016, p. 1203-1205),
destacando que as “novas categorias legais valorizam o afeto, a interação social existente entre
as pessoas no âmbito familiar”, ampliando o conceito de família, seguindo o entendimento que
o rol constitucional familiar é exemplificativo (numerus apertus) e não taxativo (numerus clau-
sus), firmando uma verdadeira cláusula geral de inclusão.
A tutela do direito dessas novas entidades se deu, primordialmente, com o advento
da Constituição Federal de 1988, representando os novos paradigmas jurídico-sociais. Nesse
contexto, foram alterados todos os parâmetros referentes aos conceitos de poder e convivência
familiar, sendo a Constituição Federal de 1988 um marco histórico no tocante a abordagem da
família.
Da mesma forma, seguindo as diretrizes constitucionais, o Código Civil de 2002, o
Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso trouxeram inovações e a caracte-
rística do dever de cuidado àqueles que, sob a ótica forense, se encontram em uma situação de
desvantagem, exigindo tratamento jurídico diferenciado, seja pelo momento de desenvolvimen-
to do seu potencial, no caso dos primeiros, ou da desvalorização enquanto ser humano, no caso
dos segundos.

3 DO CONTEÚDO JURÍDICO DO DEVER DE CUIDADO

Finalizada uma abordagem inicial, será dado enfoque na questão central o presente
trabalho: o dever de cuidar, enraizado na natureza humana e sendo desta forma uma das suas
formas de expressão (WALDOW, 2006, p. 27; BOFF, 2012). O ordenamento jurídico brasileiro
aborda a questão do cuidado em diversos dispositivos legais, desde a Constituição Federal de
1988 até a legislação infralegal. Deste modo, o dever de cuidar encontra-se implícito em diver-
sas normas de proteção que serão posteriormente abordadas, ainda que direta ou indiretamente.
Na Constituição Federal de 1988, o dever de cuidar tem como fundamento inicialmen-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

te o princípio da dignidade da pessoa humana, positivada em seu primeiro artigo2, sendo este
um dos pilares da República. De acordo com o Ministro Luís Roberto Barroso3 (2010, p. 22),
uma das características deste princípio é o seu valor intrínseco a todos os seres humanos, não

2  Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana.
3  BARROSO, Luís Roberto. A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo: Natureza Jurídica, Conteú-
dos Mínimos e Critérios de Aplicação. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2010/12/Dignida-
de_texto-base_11dez2010.pdf>. Acesso em: 15. ago. 2016.

243
dependendo de concessão, não podendo ser retirado, transferido ou perdido. Por tal motivo,
não tem como requisito nem a razão, estando presente em bebês recém-nascidos, jovens e até
mesmo incapazes.
Neste viés, percebe-se a importância deste princípio no desenvolvimento dos seres
humanos e, por consequência, sua influência nas relações familiares. Ana Carolina Brochado
(2005, p. 74-75) demonstra em suas lições que a dignidade alterou a posição das crianças e
adolescentes no ordenamento jurídico pátrio, salvaguardando seus direitos e preservando seus
interesses:

A dignidade da pessoa humana foi sedimentada em novos pilares, os quais se acredita


serem mais próprios ao novo papel da criança e do adolescente. Para melhor embasar
a interpretação crítica e construtiva do poder parental, é necessário encontrar o novo
“lugar” ocupado pela criança e adolescente na ordem civil-constitucional, bem como
analisar como a dignidade foi para eles vertida [...] uma das maiores demonstrações
do fenômeno da personalização foi o tratamento prioritário dado à criança e ao
adolescente, como pessoas em desenvolvimento, e alvo da proteção integral da família,
da sociedade e do Estado, cujo melhor interesse deve ser preservado a qualquer custo.
Este também constitui uma verdadeira mudança epistemológica no Direito de Família
[...]. Os menores além de serem dotados de dignidade, como qualquer pessoa, são
também sujeitos de Direito.

Baseado na dignidade, destaca-se na Constituição Federal de 1988 o artigo 2264, em


seu sétimo parágrafo, o qual eleva a paternidade responsável a princípio constitucional, de-
terminando a responsabilidade paterna e materna em fornecer aos seus descendentes o dever
jurídico de sustento, guarda e educação, independente de vínculo matrimonial e respeitando o
princípio do melhor interesse da criança que, mesmo não expresso constitucionalmente, encon-
tra amparo no Estatuto da Criança e do Adolescente, abordado a seguir.
No seu artigo 2275, a Constituição Federal de 1988 trouxe expressamente o dever fa-
miliar de assegurar o bem do jovem, em caráter prioritário, garantindo a este saúde, alimen-
tação, cultura, respeito, liberdade e outros direitos essenciais, além da proteção da criança ou
adolescente de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
ou opressão. Desta forma, percebe-se a intenção do legislador em garantir ao jovem todas as
condições necessárias ao seu pleno desenvolvimento, além da sua proteção dos males que asso-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

lam a nossa sociedade. Maria Berenice Dias leciona (2015, p. 50):

A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como pessoas em

4  Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.


§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal,
competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por
parte de instituições oficiais ou privadas. 
5  Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivên-
cia familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão.

244
desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. Daí a consagração
constitucional do princípio que assegura a crianças, adolescentes e jovens, com
prioridade absoluta, direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária. Também são colocados a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CF 227).

Outrossim, também merece destaque o dispositivo constitucional que trata do dever da


prestação de alimentos. Apesar de terem base familiar, os alimentos são de interesse de toda a
sociedade, justificando, deste modo, a existência de normas de ordem pública para a sua regu-
lamentação. Nesse sentido, os alimentos compreendem as necessidades vitais daqueles que, em
razão da sua condição de incapacidade, não conseguem prover o seu próprio sustento, impondo
aos seus parentes o dever de proporcionar-lhe condições mínimas de sobrevivência, com um
caráter de reciprocidade, conforme disposto no artigo 2296.
Continuando a abordar a questão da reciprocidade mencionada no artigo anterior, o
artigo 2307 faz menção ao dever de cuidar dos idosos, amparando aqueles que, devido à idade
avançada, encontram-se em uma condição especial. No mesmo sentido a Lei nº. 10.741/2003,
popularmente conhecida como Estatuto do Idoso, apresenta alguns dispositivos que abordam
a necessidade de proteção especial quando existir desigualdade nas relações sociais com os
demais indivíduos, em função do fator etário e das consequências provenientes desta condição.
Portanto, o cuidado não se restringe apenas dos ascendentes aos descendentes, mas é obrigação
de todos os membros da relação familiar.
Além do Estatuto do Idoso, a Lei nº. 8.069/90, também conhecida como Estatuto da
Criança e do Adolescente, traz inúmeros dispositivos relacionados, direta ou indiretamente, ao
dever de cuidar dos pais em relação aos filhos. Além destes dispositivos, é imperioso destacar
o já mencionado princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, em consonância
com o disposto na Constituição Federal de 1988, afirmando que todas as ações relativas a esses
sujeitos devem levar em consideração aquilo que mais interesse a eles, uma vez que, nesse con-
texto, o maior desafio dos pais é converter seus descendentes em sujeitos de direito, que visem
o melhor para a sociedade em sua vida adulta.
Não menos importante, o Código Civil de 2002 também traz alguns dispositivos re-
lativos ao dever de cuidado, seguindo os paradigmas constitucionais. Merece destaque a parte
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

referente ao exercício do poder familiar, competindo aos pais o dever de criar e educar a sua
prole8. Não obstante, caso estes deveres não sejam cumpridos, o Código Civil de 2002 traz em

6  Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais
na velhice, carência ou enfermidade.
7  Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade,
defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
8  Art. 1.634: Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em,
quanto aos filhos:
I - dirigir-lhes a criação e a educação.

245
seus artigos 16379 e 163810 a possibilidade de suspensão e extinção do poder familiar em virtude
do abuso de autoridade, falta de cumprimento dos deveres inerentes à sua posição e abandono
do menor.
Importa ressaltar, ainda, a presença de tratados internacionais que versam sobre a te-
mática. A Declaração dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em
1959 traz como princípio o direito ao amor e compreensão para o desenvolvimento harmonioso
da personalidade do jovem. Já em 1989, A Convenção sobre o Direito da Criança, ratificada pelo
Brasil através do Decreto Legislativo nº. 28 de 14 de setembro de 1990 e promulgada através do
Decreto nº. 99.710 de 21 de novembro de 1990, reconhece que para o pleno desenvolvimento da
criança, esta deve crescer em um ambiente de felicidade, amor e compreensão.
Desta forma, o cuidado, visto no direito clássico apenas de forma objetiva, compreen-
dendo a cautela e atenção, isto é, como fundamento de responsabilização jurídica no caso de
não observância do dano causado em outrem pelo agir de um indivíduo, seja ele de forma dolosa
ou culposa, transforma-se e assume papel de tamanha relevância no contexto das relações entre
pessoas, no sentido de afeto, solidariedade e proteção. A família aparece, então, como instru-
mento ou lugar privilegiado para o exercício do dever de cuidar.
Portanto, com essa mudança na visão deste instituto, o dever de cuidar começou a ga-
nhar dimensões jurídicas muito superiores às que lhe eram dadas outrora, com a existência de
condições concretas para a sua realização e com o intuito do estreitamento dos laços familiares,
auxiliando aqueles que necessitam não apenas em relação aos obstáculos da seara jurídica,
mas em relação àqueles presentes na vida real como um todo. Em outras palavras, o cuidado
deve ser visto em um sentido de maior amplitude, separando-se do ideal de reparação de danos
para assumir uma postura de fornecer as condições necessárias para o desenvolvimento físico
e emocional adequado dos dependentes, além do auxílio na parte final da vida daqueles que já
o forneceram e, por não possuírem mais o vigor que anteriormente os caracterizava, precisam
de apoio.
Nesse contexto, o cuidado engloba ainda o sentimento do convívio familiar, do afeto,
cumplicidade, da confiança, ou seja, de solidariedade de uns para com os outros, sendo, por
consequência, uma responsabilidade humana como pessoa e cidadão. Pode ser considerado,
inclusive, um interesse de caráter público, fundado na cidadania e solidariedade. A responsa-
bilidade assume, então, uma qualidade secundária, ficando relegado aos casos onde se observa
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

uma assimetria na relação familiar, onde se configura abuso ou alienação, ensejando a perda do
poder familiar. Nas palavras de Tânia da Silva Pereira (2008, p. 309):

9  Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe
ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus
haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.
10  Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que:
(...)
II - deixar o filho em abandono.

246
O cuidado como ‘expressão humanizadora, preconizado por Vera Regina Waldow,
também nos remete a uma efetiva reflexão, sobretudo quando estamos diante de
crianças e jovens que, de alguma forma, perderam a referência da família de origem(...).
A autora afirma: ‘o ser humano precisa cuidar de outro ser humano para realizar a sua
humanidade, para crescer no sentido ético do termo. Da mesma maneira, o ser humano
precisa ser cuidado para atingir sua plenitude, para que possa superar obstáculos e
dificuldades da vida humana’.

Nem mesmo a dissolução do vínculo matrimonial é causa que exclui o dever de cuidar
dos pais em relação aos filhos. Muito embora ocorra uma mudança significativa na relação in-
terfamiliar, os deveres parentais não são finalizados com o fim do casamento, cabendo a ambos
o dever de guarda, sustento e educação, bem como os demais deveres peculiares durante a vi-
gência da relação matrimonial, conforme estabelecido no artigo 1632 do Código Civil11.
De acordo com Tartuce (2016, p. 1409), este dispositivo traz um direito à convivência
familiar e, da mesma forma, um direito aos pais de terem a companhia dos filhos. Afirma ain-
da que reside neste artigo o fundamento jurídico necessário para a responsabilização civil por
abandono afetivo. Deverá ser observado, nesse caso, o princípio do melhor interesse da criança,
de forma que a situação entre seus pais não interfira em seu desenvolvimento.

4 DECISÕES DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACERCA DO DEVER DE


CUIDAR

Dentre as inúmeras decisões dos Tribunais Superiores acerca do Direito de Família


e da relação entre pais e filhos, duas decisões do Superior Tribunal de Justiça, de relatoria da
Ministra Nancy Andrighi, foram fundamentais e pioneiras ao utilizarem o cuidado como seu
fundamento, elevando-o ao patamar de valor jurídico.
A primeira delas, no Recurso Especial nº. 1.106.637/SP, faz menção ao reconhecimento
do interesse do padrasto na destituição do poder familiar do genitor e, posteriormente, a pos-
tulação da pretensão de adotar sua enteada, pautado nos critérios socioafetivos e no dever de
cuidar, tendo ambos os pedidos julgados procedentes. O fundamento do pedido consistiu no
estabelecimento de uma forte relação afetiva entre o padrasto e a enteada, além da formação
de uma verdadeira entidade familiar entre a adotanda, seu padrasto, sua mãe e a outra filha do
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

casal. Tal entidade familiar promoveu todos os cuidados necessários e inerentes ao dever dos
pais, não existindo qualquer favorecimento em relação aos filhos, seja qual for sua procedência,
através do cuidado e da reciprocidade entre seus membros. Em relação ao cuidado, a Ministra
preleciona:

Sob essa perspectiva, o cuidado, na lição de Leonardo Boff, representa uma atitude

11  Art. 1632: A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao
direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos.

247
de ocupação, preocupação, responsabilização e envolvimento com o outro; entra na
natureza e na constituição do ser humano. O modo de ser cuidado revela de maneira
concreta como é o ser humano. Sem cuidado ele deixa de ser humano. Se não receber
cuidado desde o nascimento até a morte, o ser humano desestrutura-se, definha, perde
sentido e morre. Se, ao largo da vida, não fizer com cuidado tudo o que empreender,
acabará por prejudicar a si mesmo por destruir o que estiver à sua volta. Por isso o
cuidado deve ser entendido na linha da essência humana.12

Percebe-se na passagem do acórdão do julgamento a posição de destaque ocupada pelo


dever de cuidar no âmbito das relações familiares, influindo inclusive nos critérios relativos à
condição efetiva de paternidade, com uma preterição do critério biológico em relação ao so-
cioafetivo em virtude da ausência desse requisito.
Contudo, o caso de maior destaque em relação ao dever de cuidar foi o Recurso Es-
pecial nº. 1.159.242/SP. Esta decisão faz menção a um caso em que houve abandono afetivo e
material de um pai em relação à filha durante sua infância e juventude, tendo o seu genitor se
omitido da prática de ações inerentes à paternidade. A filha então entrou com uma ação plei-
teando danos morais, recebendo a quantia de 200 (duzentos) mil reais de indenização.
Entretanto, o que torna o caso interessante não é o valor recebido pela descendente,
mas algumas passagens do voto da Ministra Andrighi, nas quais o cuidado assume caráter fun-
damental nas obrigações entre pais e filhos e seu efetivo reconhecimento como valor jurídico,
conforme se pode verificar a seguir:

Vê-se hoje nas normas constitucionais a máxima amplitude possível e, em paralelo,


a cristalização do entendimento, no âmbito científico, do que já era empiricamente
percebido: o cuidado é fundamental para a formação do menor e do adolescente;
ganha o debate contornos mais técnicos, pois não se discute mais a mensuração do
intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou
parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar.13

Desta forma, afirma a eminente Ministra que o cuidado assume status de obrigação
legal, e que muito embora não se possa obrigar ninguém a amar outra pessoa, o cuidado é dever
fundamental dos pais para com os filhos. Ela continua:

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos.
O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se,
pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-
jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado
por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação
e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas:

12  SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº. 1.106.637/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 01/06/2010. DJe 01/07/2010.
13  SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp nº. 1.159.242/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 24/04/2012. DJe 10/05/2010.

248
presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole;
comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre
outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes.

Por fim, Nancy Andrighi finaliza seu voto de forma brilhante, afirmando que “Em
suma, amar é faculdade, cuidar é dever”. Percebe-se, portanto, a condição assumida pelo dever
de cuidar nas relações familiares e a necessidade da sua valoração jurídica. Muito embora nem
todas essas relações sejam permeadas por vínculos de afeto, é indispensável para o devido de-
senvolvimento da criança a presença de condições mínimas de educação, saúde, lazer, cultura e
demais aspectos que devem ser promovidos pelos pais.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A constante mudança da realidade social interfere em todos os campos da vida em con-


junto, influenciando o pensamento, o modo de agir e a aceitação de novas formas de expressão.
Nesse contexto, é possível perceber a adequação do conceito de família à nova realidade, com o
fim da era patriarcal e difícil conceituação do que pode ser considerado família hodiernamente.
No entanto, é possível afirmar que o seio familiar é onde se encontram alguns elementos, tais
como proteção, solidariedade, cumplicidade e um elemento que atualmente vem se tornando
imprescindível: o dever de cuidar.
Nesse diapasão, percebe-se a necessidade da adequação da realidade jurídica à realida-
de social, não podendo o direito fechar os olhos e se manter conservador, deixando de tutelar di-
reitos legítimos em virtude de preconceitos ultrapassados. O reconhecimento do cuidado como
valor jurídico demonstra um avanço no âmbito das relações familiares, garantindo àqueles que
possuem uma situação de desvantagem, seja por estarem no primeiro estágio da vida ou por
sua condição etária avançada, a possibilidade de se desenvolver de forma adequada, com saúde,
educação, cultura e lazer ou aproveitar os dias restantes, após promover o cuidado dos seus
descendentes durante muitos anos.
Desta forma, o direito vem cada vez mais aceitando esse novo contexto em que a socie-
dade se encontra. Principalmente após a vigência da Constituição Federal de 1988 percebe-se
a adequação da legislação pátria, reconhecendo o cuidado como valor jurídico e dando a este
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

instituto uma qualidade de interesse público, uma vez que se fundamenta no princípio da digni-
dade da pessoa humana. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do
Idoso e o Código Civil de 2002 confirmaram os novos paradigmas constitucionais, garantindo
o cuidado a todos os membros da sociedade.
Por fim, o Superior Tribunal de Justiça parece partilhar do mesmo entendimento, com
duas decisões pioneiras elevando o cuidado à qualidade de valor jurídico. Percebe-se que muito
embora não seja possível obrigar uma pessoa a amar outra, sendo tal sentimento fora do alcance
da tutela jurídica, o cuidado, de caráter objetivo, pode ser considerado uma obrigação legal com
fundamento constitucional, e, pois, um dever imposto a todos.

249
REFERÊNCIAS

BOFF, Leonardo. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ética e na


espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2012.

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das famílias. 10. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. 7. ed.
São Paulo: Atlas, 2015. vol. 6.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. São
Paulo: Saraiva, 2011. vol. VI.

PEREIRA, Tânia da Silva. Abrigo e alternativas de acolhimento familiar. In: PEREIRA,


Tânia da Silva e OLIVEIRA, Guilherme de (Coord.). O Cuidado como Valor Jurídico. Rio
de Janeiro: Forense, 2008.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Família, guarda e autoridade parental. Rio de


Janeiro: Renovar, 2005.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6. ed. São Paulo: Método, 2016.

WALDOW, Vera Regina. Cuidar: expressão humanizadora da enfermagem. Petrópolis:


Vozes, 2006.

THE RECOGNITION OF CARE AS A LEGAL VALUE AND ITS INSERTION IN


THE BRAZILIAN LAW

ABSTRACT
This objective of this study is the legal recognition of the valuation of
duty of care and its implications for forensic scope. Therefore, discuss-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

es the concept of duty of care and its implications in the family. Later,
seeks to understand the new paradigms of the Family Law with the
advent of the 1988 Federal Constitution, the 2002 Civil Code and other
relevant infralegal legislation on this subject. Moreover, there will be
a trial analysis of the Superior Court of Justice on the subject under
discussion, focusing on the Special Appeal nº. 1.159.242/SP, concluding
that the duty of care is a legal obligation.
Keywords: Care. Legal value. Family law. Special Appeal nº. 1.159.242/
SP.

250
Recebido 15/02/2017
Aceito 02/05/2017

REELEIÇÃO E A INSTITUIÇÃO DO “POLÍTICO PROFISSIONAL”: UMA ANÁLISE


SOB O VIÉS DOS PRINCÍPIOS REPUBLICANOS

Karoline Fernandes Pinto Lopes1

RESUMO
O presente trabalho analisará, à luz dos princípios republicanos, a pro-
blemática da reeleição. Esse instituto, do modo como é utilizado na
prática, confronta o ideal de república democrática e fomenta o clien-
telismo político. Defender uma limitação na reeleição ou até mesmo o
seu fim já foi objeto de diversas Propostas de Emendas Constitucionais.
Assim, corrobora a presente pesquisa, pois a temporariedade dos man-
datos eletivos é elemento essencial para democracia. Desenvolver-se-á
essa análise a partir do uso da metodologia teórico descritiva, com con-
sulta à doutrina e a instrumentos legais, no intuito de discutir os entra-
ves em torno do instituto da reeleição.
Palavras-chave: República. Democracia. Reeleição.

“O meu ideal político é a democracia, para que todo o homem seja respeitado como indiví-
duo e nenhum venerado.”
(Albert Einstein)
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

Os direitos políticos integram um conjunto de garantias que permitem a participação


popular no processo decisório do país, seja direta ou indiretamente. Eles se dividem em duas

1  Graduanda do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

251
modalidades de exercício. Uma delas corresponde ao que se denomina de capacidade eleitoral
ativa, consubstanciada no direito de votar propriamente dito, e a outra diz respeito à capacidade
eleitoral passiva, que se refere ao direito de ser votado.
No ordenamento jurídico pátrio, há condições que devem ser preenchidas para que
ambas as capacidades possam ser praticadas. No que concerne à elegibilidade, estando em con-
formidade com os requisitos exigidos, o candidato que concorre a algum cargo e vence o pleito
exercerá o mandato eletivo no tempo determinado em lei, ficando a ele facultado concorrer à
reeleição por um único período consecutivo, no caso dos cargos do Executivo, ou indefinida-
mente, quando a disputa é para o Legislativo.
Embora a reeleição seja uma opção ofertada ao governante ou parlamentar já detentor
de mandato eletivo, percebe-se que nos dias de hoje o instituto é usado praticamente como
regra, servindo de instrumento para a manutenção das mesmas figuras no cenário político.
Diante disso, é possível questionar se a reeleição mostra-se um mecanismo salutar para o desen-
volvimento de um sistema político democrático.
Assim, o objetivo deste trabalho é apresentar os maiores problemas advindos do insti-
tuto da reeleição. Para alcançar esse propósito partir-se-á de uma breve análise da democracia,
inserida na forma republicana de governo, e identificar à relação desse instituto com alguns
princípios republicanos, a saber, os princípios da alternância, da limitação temporal e das con-
dições igualitárias de disputa eleitoral. Trabalha-se com a hipótese de que relação supracitada é
desarmônica, sendo a reeleição insustentável no cenário democrático.

2 A DEMOCRACIA COMO EXPRESSÃO DA FORMA REPUBLICANA DE


GOVERNO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

República está comumente associada a forma de governo que surgiu em contraposição


à monarquia. A vitaliciedade, a hereditariedade e a irresponsabilidade tão marcantes nessa últi-
ma deram espaços aos princípios da eletividade, temporariedade e responsabilidade.
Conforme assevera o filósofo alemão Immanuel Kant (2011, p.24) a Lei Maior do Es-
tado deve ser republicana. Esta deve ser instituída primeiramente segundo os princípios da li-
berdade dos membros de uma sociedade; como também, segundo os princípios da dependência
de todos a uma única Lei comum e, por fim, todos devem ser iguais como cidadãos. Isso se
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

apresenta como resultado da ideia do contrato originário, “[...] sobre a qual tem de estar fundada
toda legislação jurídica de um povo – é a constituição republicana”.
Para o supra filósofo alemão, a república difere do despotismo na forma de governar.
Além disso, ressalta a necessidade de separação dos poderes executivo e legislativo. A Cons-
tituição Civil pregada por Kant (2011) seria necessária para uma convivência harmônica entre
os cidadãos. Esses seriam tratados igualmente e exerceriam sua liberdade externa com certa
autonomia e observância a legislação comum.
Contribuindo para o estudo do republicanismo, José Alfredo de Oliveira Baracho

252
(1986, p. 6) assevera ser a República a forma de governo na qual as funções executivas e legis-
lativas são expressões da vontade do povo, e, por isso, deve ser constituída por eleição através
de mandatos transitórios para, assim, obter uma forma de governo pura.
Como no ideal de república, a igualdade e a liberdade participam da essência da de-
mocracia. Conforme Gomes (2015, p.39) a liberdade denota amadurecimento de um povo, que
passa a ser artífice de seu destino. É o próprio povo soberano que se governa. Do outro lado,
a igualdade significa que a todos é dado participar do governo. Assim, se observa o quanto a
democracia se assemelha aos máximos republicanos.
A democracia consiste em um ideal amplo e vago (GOMES, 2015, p.38), além de prin-
cípio estampado na Constituição, apresenta-se como fundamento basilar das sociedades con-
temporâneas. É bem verdade que o conceito de democracia é algo difícil de ser desenvolvido,
estando em permanente construção, tanto que como resultado dessa imprecisão muitos regimes
ditatoriais se passavam por democráticos.
Conforme assinala Ferreira (citado por Gomes, 2015, p.40), a democracia consiste no
“governo constitucional das maiorias, que, sobre a base da liberdade e igualdade, concede às
minorias o direito de representação, fiscalização e crítica parlamentar”. Pode-se depreender,
dessa maneira, que a democracia pode ser entendida como uma espécie de expressão da forma
republicana de governo. Todavia, cabe salientar que ela não se limita a definir uma forma de go-
verno, na qual é assegurada a participação do povo, mas deve ser entendida em sua completude
política, econômica e social.
A Constituição prevê, já em seu preâmbulo, que o Brasil é um Estado Democrático
de Direito. A Constituição, buscou-se estampar os princípios inerentes à dignidade da pessoa
humana, sendo esse o valor nuclear do Estado Democrático. Como forma de extrair de uma
vez por todas as reminiscências dos governos ditatoriais, que marcaram boa parte do cenário
político nacional antecedente, o constituinte originário, ao se referir, no enunciado do art. 1º, à
“República Federativa do Brasil”, deixa claro, desde logo, que a forma de governo adotada é a
republicana. Insta salientar que esse modelo fora ratificado pelos cidadãos brasileiros por meio
de um plebiscito, em sete de setembro de 1993. A partir de então, constitui-se no Brasil uma
República com configuração federal e democrática.
Inserida nesse contexto, a eletividade ocupa posição basilar no sistema republicano
democrático. Através do processo eleitoral, os representantes são escolhidos– pelos cidadãos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

– e passam a ocupar os cargos eletivos “transitoriamente”, nisso consiste o que se concebe


como sistema representativo. Assim, os mandatos eletivos são legitimados pelas eleições, que
tem como base o sufrágio geral, igual e direto. Nesse sistema, os votos dos cidadãos não mais
se diferenciam, mas possuem o mesmo peso, caracterizando-se também por sua imediatidade,
pessoalidade e periodicidade.
Salienta-se que o sistema representativo pressupõe também a existência de instrumen-
tos que possibilitem a predominância da vontade da maioria, sem esquecer o respeito às neces-
sidades das minorias. Nesse viés, é destacado o pluripartidarismo, a liberdade de opinião, de

253
reunião e de associação no processo eleitoral brasileiro.
No intuito de preencher possíveis falhas no sistema de representação foram criados
instrumentos que possibilitam a participação do cidadão no governo. Tais institutos buscam
diminuir a distância entre os cidadãos e os representantes eleitos, quais sejam: o plebiscito, o
referendo, a iniciativa legislativa que são previstos em nossa Constituição2.
Por fim, salienta-se que o poder legiferante originário preocupou-se em estabelecer
limites e mecanismos de defesa dos institutos republicanos. Como exemplos, elencam-se as
condições e restrições ao exercício da cidadania: ao participar de um processo eleitoral, o cida-
dão está submetido à satisfação de condições de elegibilidade (nacionalidade brasileira; pleno
exercício dos direitos políticos; alistamento eleitoral; domicílio eleitoral na circunscrição; filia-
ção partidária, e idade mínima a depender do cargo disputado – Art.14, §3º da Constituição),
assim como não pode incorrer em causas de inelegibilidade, as quais são previstas tanto na
Constituição3 como em Lei Complementar 64/90 “Lei das Inelegibilidades”.
A partir de uma interpretação sistemática com outros mandamentos constitucionais,
pode-se dizer que a Constituição também vinculou a atuação dos ocupantes de cargo eletivo
à observância dos princípios da legalidade, da impessoalidade, moralidade, publicidade e efi-
ciência (art.37 da Constituição). Dessa maneira, no exercício de suas atribuições devem ser
observados tais cânones.
As condutas de nossos representantes devem ser pautadas na imparcialidade e trans-
parência, com fulcro no interesse público. Isso se mostra deveras importante na atividade re-
presentativa, tanto que condutas em dissonância com tais preceitos podem resultar em atos de
improbidade administrativa, que, consequentemente, resultam na suspensão dos direitos polí-
ticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário,
conforme disposição expressa do art. 15, V, e do art. 37, § 4, da Constituição.
Todavia, não é o intuito da presente pesquisa esvaziar o campo das condições de ele-
tividade do candidato, nem tampouco analisar minuciosamente as condutas as quais este deve
se pautar. O estudo em questão busca traçar um paralelo entre os princípios que basearam e
nortearam a fundação da república brasileira com o rumo das infindáveis recandidaturas ao Po-
der Legislativo, tendo em vista a possibilidade de reeleição reiterada ao mandato parlamentar,
assim como da reeleição ao Executivo, ainda que uma única e sucessiva vez. Para isso, torna-se
necessário definir quais são esses princípios.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2  Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos
da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.
3  Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos ter-
mos da lei, mediante:§ 2º Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do serviço militar obrigatório, os
conscritos. (...) § 4º São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos. (...) § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilida-
de e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida
pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de
função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

254
3 PRINCÍPIOS REPUBLICANOS: PRINCÍPIOS DA ALTERNÂNCIA, DA
LIMITAÇÃO TEMPORAL, E DAS CONDIÇÕES IGUALITÁRIAS DE DISPUTA
ELEITORAL

Antes de adentrar na discussão acerca da temática principal, importa explicar que nor-
ma, regra e princípio não se confundem. José Jairo Gomes (2015, p. 37) elucida que a palavra
princípio não é uníssona, mas sim dotada de inúmeros sentidos. Normalmente, refere-se à causa
primeira, à razão, à essência ou ao motivo substancial de um fenômeno; significa, ainda, os
ideais iniciais, as regras inspiradoras que presidem e alicerçam um dado conhecimento. Alexy
(2008, p. 85), por sua vez, ensina que norma é a junção de regras e princípios. Tal união decorre
do fato de expressarem “dever ser”, formulando permissões e proibições. Assim, ao tratar-se da
distinção de regras e princípios, tem-se, na verdade, a distinção entre duas espécies de normas.
Segundo o mesmo autor, as regras devem ser aplicadas na exata medida do que pres-
crevem, não havendo outra saída além de sua realização ou não realização. Por outro lado, prin-
cípios são mandados de otimização, ou seja, devem ser aplicados na maior medida do possível.
Ademais, caracterizam-se por possuir graus diversos e cuja satisfação depende das possibili-
dades fáticas e jurídicas, as quais são determinadas pelos princípios e regras colidentes. Logo,
o que se percebe é uma diferenciação qualitativa entre essas normas e não meramente de grau
(ALEXY, 2008, p. 90-91).
O ordenamento jurídico pátrio está repleto de garantias fundamentais, constitucio-
nalmente delineadas na forma de princípios, que produzem efeitos sobre os diversos ramos do
Direito, desempenhando função hegemônica em nosso sistema, e não somente integrativa de
lacunas. Contudo, essa é uma situação relativamente recente, notadamente após a promulgação
da Constituição, quando os direitos fundamentais adquiriram força normativa e hierarquia su-
perior às regras jurídicas.
Nesse âmbito, encontram-se os princípios do Direito Eleitoral, normas mínimas de res-
peito à democracia, e como tais, devem seguir a lógica apresentada por Alexy (2008), buscan-
do-se aplicá-los da melhor maneira possível. Nos regimes republicanos podem-se destacar um
conjunto de princípios que os alicerçam e que coincidem com os princípios do direito eleitoral.
Para Gomes (2015, p.37), entre os princípios fundamentais que permeiam o campo do sistema
eleitoreiro, podemos citar: democracia, democracia partidária, Estado Democrático de Direito,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

poder soberano, republicano, federativo, sufrágio universal, legitimidade, moralidade, probida-


de, igualdade ou isonomia.
Conforme leciona Canotilho (1992, p.349) o princípio republicano, ao lado dos princí-
pios federativos e democráticos, configura, no dizer da doutrina, o “núcleo essencial da Consti-
tuição”. A partir dele podemos extrair os princípios da alternância, da limitação temporal e das
condições igualitárias de disputa eleitoral.
Conforme aponta Borja (1997, p. 1) a República é caracterizada como o regime em que
há periodicidade dos mandatos e a não reeleição dos cargos do Poder Executivo, assegurando-

255
-se, dessa forma, a efetiva alternância do poder. Sendo assim, a renovação dos mandatos é um
princípio importante na manutenção dos ideais republicanos.
O Princípio da temporariedade, como do próprio nome pode se extrair, marca a im-
portância de se limitar um lapso temporal para os mandatos. Não se pode conceber que em um
sistema republicano existam mandatos que se perpetuem eternamente. Nisso reside uma das
maiores críticas a reeleição indefinida para o legislativo.
Por fim, cabe salientar a importância do Princípio da igualdade nas disputas eleitorais.
Ao candidato já no exercício de mandato, a disputa nas urnas torna-se visivelmente mais fácil.
As eleições sucessivas acabam por desequilibrar a disputa entre os candidatos, pois ao candida-
to eleito, o uso da máquina pública, em favor de sua reeleição, é medida facilmente verificada
no cotidiano do certame eleitoral.
Depreende-se, portanto, que a república tem por fundamento a eletividade, a tempo-
ralidade e alternância de pessoas no comando do Estado. Assim, tanto o chefe do Poder Exe-
cutivo quanto os membros do Legislativo devem cumprir mandatos temporários. Não se pode
conceber o uso de instrumentos republicanos para se perpetuar, de maneira nada disfarçada, um
governo de oligarquias. Gomes (2015, p. 45) ressalta que o diferencial da república em relação
à monarquia assenta-se – justamente – na periodicidade das eleições e na temporalidade do
exercício do mandato, que devem ser observadas.
Atualmente, no cenário político brasileiro, nos deparamos com a formação de uma
nova carreira: o político profissional. A perpetuação dos políticos no congresso, em verdadeiros
mandatos vitalícios, acaba por ferir tais princípios republicanos. O acesso aos cargos represen-
tativos deve ser amplo e dado de forma igualitária, justa e temporária a todos os cidadãos que
anseiem em ser representantes do povo.

4 A INSUSTENTABILIDADE DA REELEIÇÃO NA PRÁTICA

Entende-se por reeleição a possibilidade de se estender um novo mandato para aquele


que já ocupa o cargo, ou seja, trata-se de um mandato consecutivo e renovado. Cabe salientar
que a volta de um político, depois de decorrido um intervalo temporal, ao mesmo cargo de ou-
trora não se caracteriza por reeleição.
Em nosso país, em consonância com os preceitos originais das Constituições de 1891,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1934 e 1988, a reeleição do Chefe do Executivo era proibida para o pleito imediatamente seguin-
te, todavia no final do primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique Cardoso a regra foi
alterada, com a aprovação da Emenda Constitucional n°16/974. A partir de então foi permitido
aos ocupantes do Poder Executivo Federal, Estadual e Municipal estender seu mandato por mais
um período. Através dessa “inovação” foi estabelecida nova redação ao § 5º do art. 14, ao caput

4  BRASIL. Emenda à Constituição n. 16, de 1997. Dá nova redação ao § 5º do art. 14, ao caput do art. 28, ao inciso II do art. 29, ao caput
do art. 77 e ao art. 82 da Constituição Federal, 04 jun. 1997. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/
Emc/emc16.htm >. Acesso em: 21 maio 2016.

256
do art. 28, ao inc. II do art. 29, ao caput do art. 77 e ao art. 82 da Constituição.5
Já em relação à reeleição parlamentar, não existe em nossa Constituição previsão que
limite, regularize e nem tampouco legitime. Surgem então questionamentos: por que o instituto
da reeleição é tratado diferentemente em relação ao legislativo? Se a reeleição para os parlamen-
tares não é prevista na constituição por que continua sendo “constitucional”?
Vale salientar que nem todas as repúblicas ocidentais permitem o instituto da reeleição.
Nos EUA, por exemplo, conforme assinala Rocha (1999, p. 200), foi aprovado, a partir de 1990,
em vinte e dois estados, o limite de mandato. Daí em diante ficou estabelecida a limitação de
mandatos eletivos estaduais, com a legitimidade dada por 23 milhões de americanos que vota-
ram - de forma expressiva - a favor dessa regularização eleitoral.
Para muitos, ao ter o mandato estendido por mais um período através da reeleição, o
“bom político” terá mais tempo para colocar em ação as metas traçadas em seu plano de gover-
no. Além disso, a reeleição pode ser tida como um atestado de qualidade e aprovação em relação
ao último exercício do mandatário, pois não pode se negar que a sucessão de mandatos possui
seu viés democrático, haja vista a legitimidade dada ao cidadão para optar, nas urnas, pela
continuação do mandato. Todavia, na prática - talvez por falta de amadurecimento e conscien-
tização política do eleitorado – esse instituto acaba por proporcionar um resultado desvirtuado
e privilegia certos candidatos.
O instituto da reeleição – como já apontado no tópico anterior – fere os princípios de
alternância no poder, da limitação temporal e, principalmente, da equidade nas condições de
competição política, permitindo a perpetuação das elites políticas no poder6. Esse continuísmo
político além de não oxigenar os quadros públicos acaba por personalizar o governo.
Na maioria dos casos, a reeleição acaba por ter sua finalidade desvirtuada, sendo usada
como via para os políticos se perpetuarem na vida pública. Muitos deles abandonam sua profis-
são de origem para passar a “viver de política”. Por exemplo: um médico que passa doze anos
ocupando cargo eletivo encontraria obstáculos para retornar ao exercício profissional de outro-
ra, pois quanto maior o tempo do afastamento, maiores dificuldades há para se reestabelecer no
mercado, o que acaba por incentivar a vontade de permanência como parlamentar.
Pertencer a partidos políticos grandes e organizados, já ter sido eleito (especialmente
na própria Câmara dos Deputados) e possuir alta capacidade de arrecadação de recursos fi-
nanceiros apresentam-se como condições determinantes para a vitória do candidato nas urnas
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

5  Art. 14 [...] § 5º O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido,
ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subsequente. Art. 28. A eleição do Governador e
do Vice-Governador de Estado, para mandato de quatro anos, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no
último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse
ocorrerá em primeiro de janeiro do ano subsequente, observado, quanto ao mais, o disposto no art. 77.
Art. 29 [...] II - eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos
que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores;
Art. 77. A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República realizar-se-á, simultaneamente, no primeiro domingo de outubro, em pri-
meiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato presidencial vigente.
Art. 82. O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição.
6  Como exemplo, podemos destacar a família Alves no Rio Grande do Norte, que na figura do Henrique Alves, se manteve no poder a
mais de 40 anos.

257
(CERVI e outros, 2014). O candidato que ocupa cargo político goza de privilégios que seriam
inerentes ao uso da máquina pública. Tendo em vista que esse candidato está exposto na mídia,
teria mais facilidade para arrecadar financiamentos e ainda pode utilizar de recursos governa-
mentais para angariar maior contingente eleitoral. Consequentemente, terá maior vantagem na
competição pelo pleito em questão.
Como já salientado, alternância no poder é um princípio basilar do sistema republi-
cano ora instituído. Além de a oxigenação dos cargos se apresentar como medida impres-
cindível, é através dela que existe a possibilidade de surgir novas lideranças políticas, pois
no momento que determinados políticos se perpetuam nos cargos isso acaba por dificultar a
descoberta de novas lideranças. Dessa maneira, faz-se necessário a existência de, no mínimo,
um intervalo entre os mandatos.
Pode parecer quase utopia uma mudança nesse quadro, contudo já se tem visto algu-
mas alterações significativas na sistemática eleitoral que fomenta passos para uma mudança na
estrutura da Eleição. Um exemplo disso é a Lei da Ficha Limpa7 (LC 135/10)8. Quando ainda era
projeto de lei causou muita incredulidade sobre sua aprovação. No entanto, não só foi aprovado,
como se destaca como um grande passo para a consolidação das nossas estruturas republicanas.
A regularização da eleição tanto pode acontecer por força conjunta dos próprios po-
líticos, como através de plebiscito. Os cidadãos poderiam decidir sobre essa questão em urnas
e sua decisão vincularia o poder legislativo. Por não possuirmos em nosso sistema a figura do
recall (revogação de mandatos), que consiste na destituição do político pela população, a pro-
positura de um plebiscito para solucionar esse dilema atuaria como uma ferramenta análoga.
Para alguns políticos, a maior preocupação não é fazer um bom governo, mas sim buscar
condições de se reeleger. Implantar um limite para reeleição ou até mesmo retirá-la do sistema
poderá resultar em um maior comprometimento do político com o plano de governo apresentado.
Defender uma limitação na reeleição ou, até mesmo, o seu fim já foi objeto de diversas
propostas de Emendas Constitucionais, que objetivavam dar uma nova redação ao §5° do art.14
da Constituição. Uma das manifestações nesse sentido partiu da senadora Lídice da Mata (do
PSB-BA), que apresentou Proposta de Emenda Constitucional n°32/20149, visando ao fim da
reeleição para os cargos do Executivo. Sua justificativa fundamenta-se na “imoral” aprovação
da EC n° 16/1997, que permitiu a reeleição dos chefes do poder executivo. Desde então, todos
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

7  Projeto de Lei criado através da iniciativa popular. Buscou combater a corrupção eleitoral e foi aprovado graças à forte mobilização dos
brasileiros. Tornou-se marco fundamental para a democracia e para a luta contra a corrupção e a impunidade no país. Fora sancionada
em 2010 e publicada em junho do mesmo ano. A lei contou com 1,3 milhão de assinaturas de cidadãos de todos os estados brasileiros
e do Distrito Federal. Apresenta-se como uma ferramenta legal que visa garantir que os mandatos eletivos, executivos ou legislativos,
sejam exercidos por representantes qualificados para a função, resguardando-se a probidade administrativa e prevenindo-se eventuais
desvios de conduta dos mandatários eleitos. Assim, a Lei da Ficha Limpa (LC 135/2010) veio em boa hora, com o objetivo de garantir a
probidade dos agentes políticos e a moralidade dos cargos públicos eletivos, ao elaborar uma série de proibições e normas de condutas
que devem ser observadas pelo candidato a um cargo eletivo.
8  Altera a Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o §9º do art. 14 da Constituição Federal, casos
de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a
probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.
9  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 32, de 2014. Estabelece o fim da reeleição para Presidente da República, Governa-
dores de Estado e do Distrito Federal e Prefeitos. Brasília, 29 out. 2014. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/
getPDF.asp?t=155695&tp=1>. Acesso em: 21 maio 2016.

258
os Presidentes da República que se candidataram e venceram nas urnas tiveram o direito de se
reeleger e foram eleitos!
A autora da referida PEC afirma também que a reeleição provoca desequilíbrios na
disputa eleitoral, não só em razão da indevida utilização da máquina estatal pelo candidato à
reeleição, como também pelo prejuízo causado à governabilidade, em razão da dedicação do
titular do mandato à sua campanha eleitoral. Além disso, a senadora ainda salienta que a reelei-
ção contribui para que ocorra a perpetuação de dinastias no poder e diminui a rotatividade dos
titulares – característica basilar da democracia.
No mesmo sentido, o Senador Walter Pinheiro (do PT-BA) apresentou para aprovação
a PEC n° 35/201410. Em sua justificativa, o parlamentar evidenciou que a reeleição permanece
como uma forma de subverter o princípio da alternância no poder, que é uma das características
essenciais dos regimes democráticos e facilita o uso indevido da máquina pública em proveito
próprio, por consequência influência desigualmente a disputa eleitoral.
O deputado Simplício Mário (PT-PI), foi mais além, propôs através da PEC n°
459/200511 que os candidatos a senadores, deputados federais, estaduais, distritais e vereadores
só poderiam ser reeleitos para um único período subsequente. Buscou, portanto, estabelecer li-
mites para a reeleição dos detentores de mandato representativo no âmbito do poder legislativo.
Para justificar sua proposta, afirmou que a legislação eleitoral brasileira ao permitir a sucessão
de mandatos ininterruptos de um único cidadão, favorece o surgimento e a disseminação, por
todo o país, de verdadeiros “feudos” eleitorais, inclusive nas grandes e médias cidades. Além
disso, assevera que permitir que a reeleição continue corrobora para a perpetuação no poder de
políticos favorecidos pelo poder econômico e pelas oligarquias partidárias, inibe a renovação da
representação parlamentar e favorece o personalismo político.
Nesse mesmo viés, a PEC n° 50/201412 - de autoria da senadora Vanessa Grazziotin
(PCdoB/ Amazonas) – propôs a regulação da reeleição dos detentores de mandatos eletivos do
legislativo. Em sua fundamentação, a parlamentar asseverou ser um dos mais graves problemas
da democracia brasileira o afastamento existente entre a sociedade e os seus representantes e
atribui como um dos fatores condicionantes desse resultado a profissionalização do “político”.
Com a aprovação, segundo a autora, evitar-se-ia a profissionalização da política e permitiria
uma renovação dos quadros dirigentes de nosso país.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

10  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 35, de 2014. Altera os artigos 14, 17, 27, 28, 29, 44, 46, 57 e 82 da Constituição, es-
tabelece a coincidência das eleições e a proibição da reeleição para cargos do Poder Executivo, dispõe sobre acesso ao fundo partidário,
estabelece regras de transição e submete a referendo as alterações relativas a sistema eleitoral. Disponível em: <http://www.senado.gov.
br/atividade/materia/getPDF.asp?t=155689&tp=1>. Acesso em: 21 de maio de 2016.
11  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 459, de 2005. Dá nova redação ao § 5º do art. 14 da Constituição Federal, dispondo
que os Senadores, Deputados Federais, Estaduais, Distritais e Vereadores poderão ser reeleitos para um único período subsequente.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=300441>. Acesso em: 21 maio 2016.
12  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição n. 50, de 2014. Acrescenta os incisos I e II ao § 5º, do art. 14 da Constituição, para
regular a reeleição dos detentores de mandatos eletivos do Legislativo. Disponível em: <http://www25.senado.leg.br/web/atividade/
materias/-/materia/119393>. Acesso em: 21 maio 2016.

259
Por fim, a PEC 113-A/201513, de autoria da Câmara dos Deputados, conhecida com a
emenda da “Reforma Política” propõe mudanças no sistema eletivo brasileiro. Entre seus pontos
está à proibição da reeleição para os cargos do executivo. Atualmente, o projeto está em discus-
são no Senado. Por falta de quórum a discussão da matéria foi suspensa em novembro de 2016.
Dessa maneira, instituir uma limitação/fim da reeleição de mandatos eletivos e esta-
belecer igualdade na disputa dos pleitos contribui para a moral política e renova os ideais de
república. Conforme acentuado por Bobbio (2002, p.59) o fenômeno do político profissional já
foi identificado por diversos cientistas políticos, merecendo reprovação quase unânime. Assim,
urge a necessidade de se colocar em pauta essa discussão.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição, paralelamente ao princípio republicano e da forma federativa de Es-


tado, princípios fundamentais da organização do Estado, incorporou o Estado Democrático
de Direito, conjugando o ideal democrático ao Estado de Direito, de forma a expressar não só
garantias legais e jurídicas, mas também conquistas democráticas, dentre as quais se encontra
o exercício ampliativo dos direitos políticos.
Nesse cenário, a escolha de representantes para o país implica necessidade de con-
dições que garantam a isonomia e mitiguem mecanismos que contribuem para a perpetuação
dos mesmos políticos nos cargos eletivos, como o instituto da reeleição. Muito embora possa
parecer que a possibilidade de a pessoa já detentora de mandato eletivo concorrer novamente
ao mesmo cargo ou inclusive a cargo distinto, seja fomentadora de um processo de eleição sem
limitação de escolhas o que ocorre, na verdade, é o reverso, uma vez que privilegia quem já está
no exercício do “poder”.
A democracia indireta tem por traço marcante a temporalidade no exercício das fun-
ções políticas, sendo que a reeleição desmedida fere frontalmente os princípios da alternância,
da limitação temporal e das condições igualitárias de disputa eleitoral, outrora já destacados.
Um dos maiores defeitos da reeleição reside no fato de o cargo acabar sendo tratado como um
patrimônio pessoal do governante ou parlamentar, que, não raro, pessoaliza a gestão, descarac-
terizando por completo o caráter de “coisa pública” e “governo do povo”.
Uma possível solução para minimizar os impactos negativos da reeleição pode ser tal-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

vez a regulação do instituto, na tentativa de estabelecer um maior comprometimento do político


com o plano de governo apresentado e coibir a mera perpetuação no cargo.

13  BRASIL. Proposta de emenda à Constituição nº 113a, de 2015. Reforma as instituições político-eleitorais, alterando os arts. 14,
17, 57 e 61 da Constituição Federal, e cria regra temporárias para vigorar no período de transição para o novo modelo, acrescentando
o art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/
materia/124425/pdf. Acesso em:20 janeiro 2016.

260
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Revista de Informação Legislativa. Brasília: a. 23, n. 90, p. 5-34. abr./jun. 1986.

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GOMES, José Jairo. Direito eleitoral. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

KANT, Immanuel. À paz perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2011.

ROCHA, Maria Elizabeth Guimarães Teixeira. Limitação dos mandatos legislativos: uma
nova versão do contrato social. Revista de Informação Legislativa, a.36, n.142, abr./
jun.1999). Disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/485/r1

42-16.PDF?sequence=4>. Acesso em: 17 de fev. 2017.

THE RE-ELECTION AND THE INSTITUTION OF THE “PROFESSIONAL


FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

POLITICIAN “: AN ANALYSIS UNDER THE BIAS OF REPUBLICAN PRINCIPLES

ABSTRACT
This analysis proposes to examine, according to republican principles,
the issue of re-election. This fact not only goes against the ideal of a
democratic republic, but also consolidates the political clientelism. De-
fending a limitation of re-election or even your order has been a subject
of several Proposals for Constitutional Amendments. In this sense, this

261
research is justified because the temporariness of elective mandates is
inherent to democracy. Making use of a descriptive theoretical method-
ology, this analysis is developed in order to rekindle the fire of discus-
sions surrounding the re-election institute.
Keywords: Republic. Democracy. Re-election.

FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

262
Recebido 27/12/2017
Aceito 02/05/2017

SER OU DEVER-SER, EIS A QUESTÃO: UM RESGATE DA FENOMENOLOGIA DA


JURIDICIZAÇÃO PONTEANA

Magdiel Pacheco Santos1

RESUMO
O presente artigo, desenvolvido metodologicamente na perspectiva de
revisão de literatura, analisou a teoria do fato jurídico na perspectiva do
pensamento ponteano. Inicialmente, a reflexão partiu da compreensão
da topologia dos mundos fático e jurídico, buscando, dentro da realida-
de cultural, alcançar o delimitado cenário do Direito e da norma jurídi-
ca. Por sua vez, contextualizada a reflexão nessa conjuntura, a análise
assumiu uma perspectiva lógico-formal para compreender a norma ju-
rídica e, por conseguinte, o fato jurídico. Por fim, a análise trouxe à tona
críticas doutrinárias e ponderações quanto à incidência do fato jurídico
e sua aplicação.
Palavras-chave: Incidência. Norma jurídica. Juridicização. Ser. Dever-
-ser. FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

1 INTRODUÇÃO

Diante da dinamicidade contemporânea, qualquer jurista pode incorrer numa precipi-


tação pragmática sem se permitir a devida reflexão sobre o Direito. Nesse cenário veloz, quando
não ocorre a devida cautela, uma postura de vigilância epistemológica, tanto na formação do
jurista quando no exercício cotidiano, é possível que reflexões cruciais sejam postas em segundo

1  Especialista em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Damá-
sio de Jesus. Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

263
plano, desenhando um cenário de genuína crise sobre o pensar jurídico.
Nessa conjuntura de resgate, é que está contextualizada a presente reflexão sobre a fe-
nomenologia da juridicização. O presente trabalho busca trazer à tona tal aspecto essencial para a
formação de qualquer jurista, mas que tem sido omitido ou abordado de maneira superficial. Ta-
manha é a imprudência do cenário da formação jurídica hodierna que não é incomum causar sur-
presa a menção a tal objeto de estudo. Assim, questionar sobre qualquer noção elementar de fato
jurídico ou de juridicização chega a soar como matéria alienígena à formação acadêmica básica.
Logo, não é possível admitir que, na formação acadêmica, se busque falar em efeitos,
obrigações, ações e pretensões, sem que se tenha detido momento mínimo sobre o entrelaça-
mento entre o mundo fático e o mundo jurídico. Entretanto, não são poucas as vozes que atestam
que o ser e o dever-ser já não têm espaço na formação fordista das universidades que confun-
dem o Direito, como ciência, com a repetição acrítica2 e padronizada do contexto concurseiro.
Então, buscando a reflexão sobre aspecto elementar do pensar jurídico, o presente tra-
balho, utilizando-se de pesquisa bibliográfica, faz o recorte na perspectiva lógico-formal pon-
teana e do professor Marcos Bernardes de Mello. Porém, antes, fez-se necessário a contextuali-
zação do debate no ambiente cultural e, posteriormente, no universo jurídico. Por conseguinte,
estabelecida a conjuntura da reflexão, então, foi tratada a estrutura normativa na perspectiva
não sancionista, buscando compreender os mecanismos que possibilitam a incidência da norma
jurídica.
Por fim, assentadas as noções básicas sobre norma jurídica e a incidência, foram trazi-
das à tona críticas e ponderações sobre a teoria do fato jurídico feitas por juristas atentos ao giro
linguístico, como Paulo de Barros Carvalho, Adrualdo de Lima Catão, Andreas Joachim Krell
e Torquato da Silva Castro Júnior.

2 DO UNIVERSO FÁTICO E DO UNIVERSO JURÍDICO: UMA


CONTEXTUALIZAÇÃO NECESSÁRIA

Desde os questionamentos mais naturais, através do desenvolvimento de narrativas


mitológicas, a mente humana sempre questionou as minúcias da aparente obviedade que é o
existir. Inclusive, para Kelsen (1992), o ponto de partida dessa busca pelo saber seria a própria
carência de confiança do ser humano em seus próprios sentidos, gerando certa inquietação com
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

este mundo autocriado e auto-ordenado de conhecimento.


Categorizando a compreensão da existência, conforme a terminologia adotada por Mi-
guel Reale (2004), haveria, então, duas espécies de realidade3: realidade natural e, outra, reali-

2  Sobre essa acriticidade na formação do jurista, Torquato Castro Junior (2010, p. 651) afirma sem rodeios que “todo mundo é capaz de
relatar: ‘seu rei mandou dizer que ...’. Ser isso uma ciência é que é outra questão”.
3  “Realidade é o modo de ser das coisas existentes fora da mente humana e independentemente dela, possuindo as qualidades de alteri-
dade e resistência em relação ao sujeito cognoscente. As dualidades mundo interior/mundo exterior e o mundo/espírito são frequente-
mente empregadas pelas ciências e pela filosofia quando se trata de definir o que é o real” (ARAÚJO, 2011, p. 15).

264
dade humana, cultural ou histórica.
Naquele primeiro âmbito, o táctil, o sensível, o observável norteia as apreensões si-
nestésicas do ser humano. Assim, como destaca Clarice von Oertzen (2011), tal universalidade
possui característica em termos de tempo e espaço, nos moldes de objetos físicos concebidos
pelo determinismo causal. Nesse aspecto, a faceta da realidade se mostra em seu estado bruto,
natural, não estando sob qualquer lapidação do intelecto humano.
Os seres e as coisas inanimadas se revelariam, então, sem interferência antrópica in-
tencional, submetidos a leis naturais regidas sob a égide da causalidade4. O dinamismo da vida
estaria pautado na relação de causa e efeito, tal como entre o calor e a dilatação; a morte da
presa e o alimento do predador. Conforme as palavras clássicas de Giorgio Del Vecchio (1979,
p. 559), “cada fenómeno, em vez de ser encarado na sua concreta singularidade, é visto nas suas
relações com o fenómeno antecedente que, ao produzir-se, necessariamente o determina”.
Entretanto, paralelamente a esse universo natural, haveria espaços com manifestações
interventivas da inteligência e da vontade humana. Na realidade cultural ou histórica, não ape-
nas existiriam mais coisas e homens; mas, sim, coexistiriam homens (REALE, 2004). E, justa-
mente por existir essa convivência, passaria a ser possível exsurgir um cenário para a atuação
criadora do homem, isto é, para a manifestação da cultura. Fala-se, então, de uma dimensão
social do homem, onde ocorre a transcendência da subjetividade do eu e se torna possível “a
polaridade do eu-tu” (COSTA, 2009, p. 27).
Destarte, nessa realidade cultural, não se fala apenas na ocorrência de fenômenos na-
turais, em descrições da facticidade; nessa seara da existência, o agir humano se manifesta de
forma inventiva, realizando inclusive juízos de valores sobre a realidade apreendida, isto é, em
apreensões, análises axiológicas ou teleológicas da realidade. Aqui, nesse aspecto, “o princípio
da causalidade não permite distinguir, pois, realidade e valor das coisas” (VECCHIO, 1979, p.
561). Então, fala-se não em juízo de causalidade, mas juízo de imputação. Justamente esse se-
gundo tipo de apreciação é que norteia, dentro da dinâmica da “outridade do ser-social” (COS-
TA, 2009, p.27), as instituições de controle social, como a Moral, a Religião e – em posição mais
destacada para a presente análise – o Direito.
Então, gravitando a reflexão agora no mundo cultural, é de se observar que se passa a
trabalhar com a categoria de juízo, isto é, de determinação de um predicado em relação a um
determinado objeto ou ente, não havendo apenas as conexões de causa e efeito – inerentes à su-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

pramencionada realidade natural. Tal aspecto de estabelecimento de um juízo e, por conseguin-


te, de um paradigma axiológico caracterizam as leis culturais. Conforme Miguel Reale (2004,
p.29, grifo nosso), uma lei cultural se constituiria numa “tomada de posição perante a realidade,
implicando o reconhecimento da obrigatoriedade de um comportamento, temos propriamente o
que se denomina regra ou norma”.

4  Sobre a causalidade no mundo fático, para Ihering, “…nada ocorre no mundo de per se (causa sui); tudo o que acontece, i. e., toda mod-
ificação no mundo sensível, é consequência de outra precedente, sem a qual ela mesma não teria surgido. Este fato postulado por nosso
pensamento e confirmado pela experiências designamos, como se sabe, por lei de causalidade” (IHERING, 1979, p. 01).

265
Nesse mesmo aspecto, Norberto Bobbio (1995, p. 135) é cirúrgico ao distinguir o juízo
de valor e o juízo de realidade – este último denominado por ele como juízo de fato:

(…) o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a
formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro
a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição
frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas
de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à
minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas.

Nota-se que, então, somente é possível falar em juízo de valor – e, por conseguinte,
em dever-ser e norma – no mundo cultural. Porém, a presente reflexão, como se tem sinalizado,
está atrelada ao Direito – havendo, assim, a necessidade de recortar a realidade cultural nessa
esfera. Como contextualiza Adriano Soares (2009, p. 158), “o Direito é objeto cultural, formado
pela intersecção dos dois mundos: ser e dever-ser, realidade e pura idealidade”. Nessa mesma
perspectiva, Eros Grau (2008, p. 20) assevera que “produto cultural, o direito é, sempre, fruto
de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e
atemporal”.
Logo, é imprescindível ter em mente que o universo cultural não se limita ao mundo
jurídico, havendo todo um horizonte de ideias muito além do ser e do dever-ser (COSTA, 2009,
p. 157):

Embora haja uma contraposição lógica entre ser e dever-ser, ontologicamente não
absorvem toda a complexidade do campo de objetos possíveis. Enquanto os objetos
reais se enquadram no domínio do ser, e os normativos (ética pura, p. ex.) no do dever-
ser, os objetos ideais (os números, as relações matemáticas etc.) e os culturais (jurídicos,
econômicos, históricos, éticos etc.) não se acomodam naquela redução lógica.

Entretanto, não obstante a delimitação da reflexão no mundo jurídico já representar


fixação relevante diante da vastidão do universo cultural, é imprescindível que o cenário reflexi-
vo seja mais bem delineado a fim de que não se incorra em qualquer confusão na análise da ju-
ridicidade. Para tanto, faz-se necessária a recordação de que o fenômeno jurídico se desenvolve
em três dimensões: dimensão política, dimensão normativa e dimensão sociológica (MELLO,
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

2014). Seguindo o apuro científico do professor Marcos Bernardes de Mello, cuja obra Teoria
do Fato Jurídico assume uma importância paradigmática nesse trabalho, é necessário contex-
tualizar a presente reflexão na dimensão normativa, convergindo principalmente no âmbito da
Teoria Geral do Direito.
Nesse instante, é válido ratificar que a distinção realizada entre universo natural e
o universo jurídico está bem distante de qualquer especulação desnecessária. Na verdade, tal
ponto de partida busca estabelecer, desde os primeiros passos da presente reflexão, o espaço
comunicativo entre o ser e o dever-ser sob o qual se manifesta a fenomenologia da juridicização.
Nesse mesmo sentido, as seguintes palavras de Pontes de Miranda (2012a, p. 59) estabelecem,

266
com a propriedade típica, a importância de discernir o mundo jurídico do universo maior em
que está inserido:

Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai ocorrer. O mundo
mesmo, em que vemos acontecerem os fatos, é a soma de todos os fatos que ocorreram
e o campo em que os fatos futuros vão se dar. Por isso mesmo, só se vê o fato como
novum no mundo. Temos, porém, no trato do direito, de discernir o mundo jurídico e
o que, no mundo, não é mundo jurídico. Por falta de atenção aos dois mundos, muitos
êrros se cometem e, o que é mais grave, se priva a inteligência humana de entender,
intuir e dominar o direito.

3 FENOMENOLOGIA DA JURIDICIZAÇÃO: NUANCES ENTRE O SER E O


DEVER-SER

Na celebrada obra Tratado de Direito Privado, em seu Tomo I, Pontes de Miranda


usa, como denominação para a introdução, a chamada ‘Mundo Jurídico e Existência dos fatos
jurídicos’. Tal título poderia bem sintetizar o presente momento desta reflexão, pois já houve a
contextualização do universo jurídico; e, agora, a análise transita especificamente para a deli-
mitação conceitual dos fatos jurídicos, isto é, sua existência e seus elementos. Posteriormente,
quando já estiverem assentadas as compreensões básicas sobre o fato jurídico, serão trazidas à
tona as divergências e os debates acadêmicos que entremeiam a incidência e a aplicação jurí-
dica.

3.1 Norma e Fato Jurídico

Inicialmente, como já se tem destacado desde as primeiras ideias nesse trabalho, o


universo jurídico tem a sua amplitude em conformidade com as dimensões do espaço relevante
para o ser humano. Como bem afirma Tercio Sampaio Ferraz Junior (2012, p. 01), “…o direito é
um mistério, o mistério do princípio e do fim da sociabilidade humana”. Logo, o estudo da gê-
nese do fenômeno jurídico, isto é, da leitura do dever-ser sobre o ser5, tem o lócus de abrangên-
cia os próprios limites existenciais do Direito. Como afirma brilhantemente Norberto Bobbio
(2001), chegamos a acreditar que estamos livres, mas, na verdade, estamos envoltos numa rede
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

espessa de regras de conduta que abrangem nossa existência desde o nascimento até a morte.
De todo modo, “a maior parte destas regras já se tornaram tão habituais que não apercebemos
mais da sua presença” (BOBBIO, 2001, p. 24).
Desta feita, como se tem tratado, os fatos da vida são encapados pela juridicidade,

5  “Se analisarmos qualquer dos fatos que classificamos de jurídicos ou que têm qualquer conexão com o Direito – por exemplo, uma
resolução parlamentar, um ato administrativo, uma sentença judicial, um negócio jurídico, um delito, etc. –, poderemos distinguir dois
elementos: primeiro, um ato que se realiza no espaço e no tempo, sensorialmente perceptível, ou uma série de tais atos, uma manifes-
tação externa de conduta humana; segundo, a sua significação jurídica, isto é, a significação que o ato tem do ponto de vista do Direito”
(KELSEN, 2006, p. 02).

267
apresentando-se como releitura normativa e jurídica da existência sensível e cultural. Entretan-
to, estabelecida a abrangência existencial do fenômeno jurídico, resta ainda em aberto a perqui-
rição que tem norteado a presente reflexão: o que vincularia o ser ao dever-ser? Isto é, como se
daria esse processo de juridicização da vida? No contexto epistemológico da Teoria Geral do
Direito, a resposta para tais questionamentos perpassa, necessariamente, pela compreensão da
norma jurídica e a dinâmica da sua incidência.
Dentre os aspectos que distinguem o Direito dos demais processos de adaptação social,
a força de incidência se mostra como característica duradoura, por corporificar a coercitividade
no impacto do ordenamento jurídico na busca pela estabilidade social (ARAÚJO, 2011). Como
se tem indicado, o mundo do Direito é formado por fatos jurídicos. Entretanto, a compreensão
dessa estrutura jurídica está intimamente relacionada ao discernimento da própria estrutura e
do exercício da norma jurídica; pois, como será visto detalhadamente, os fatos jurídicos resul-
tam da incidência da norma jurídica.
Seguindo a aspiração desta reflexão acadêmica, elenca-se a definição do professor
Marcos Bernardes de Mello (2014, p. 52) como conceito paradigmático de norma jurídica a fim
de serem destrinchados alguns aspectos cruciais de sua estrutura normativa:

[…] a norma jurídica constitui uma proposição através da qual se estabelece que,
ocorrendo determinado fato ou conjunto de fatos (= suporte fáctico) a ele devem se
atribuídas certas consequências no plano do relacionamento intersubjetivo (= efeitos
jurídicos).

Como se pode observar no ensino paradigmático do mestre alagoano, a completude de


uma norma jurídica está atrelada, necessariamente, a descrição do suporte fático e a prescrição
dos efeitos jurídicos a serem atribuídos a esse fato jurídico6. Doutro modo, como bem alerta o
autor em comento (MELLO, 2014), determinada proposição sem o suporte fático e sem o precei-
to poder-se-ia até se mostrar como uma proposição linguística completa, mas não teria sentido
algum na perspectiva lógico-jurídica. Então, na perspectiva lógico-formal, a norma jurídica,
como proposição hipotética, poderia ser expressa, pela linguagem da lógica tradicional – através
do processo denominado formalização (VILANOVA, 2010): ‘se SF então deve ser P’ – onde o
antecedente (ou hipótese) seria representado pelo suporte fático (SF) e o consequente (ou tese)
pelo preceito (P), estando tais elementos conectados por um modal deôntico. Assim, seguindo tal
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

perspectiva, tem-se como elementos da estrutura da norma jurídica: o suporte fático e o preceito.
Conforme ensino de Pontes de Miranda (2012a, p.77), o suporte fático – ou, no original
alemão, Tatbestand – da regra jurídica seria “aquêle fato, ou grupo de fatos que o compõe, e
sôbre o qual a regra jurídica índice”; sendo, na estrutura lógica da proposição normativa (p-nor-

6  É de se destacar, entretanto, que tal posição, adotada explicitamente pelo magistério do professor Marcos Bernardes de Mello, está
atrelada a perspectiva não sancionista da norma jurídica. Assim, para tal posição, adotada também por Pontes de Miranda, a norma
jurídica se apresentaria como proposição completa, limitando-se sua incompletude apenas a ausência de suporte fático ou ao preceito e
não à previsão (ou carência) de sanção.

268
mativa), o antecedente. Assim, nesse aspecto, a norma jurídica delimita o cenário fático sob o
qual incidirá. Dessa maneira, como se pode perceber, não há limites prévios que delimitem os
fatos juridicizáveis, isto é, fatos do mundo que podem ser atraídos para o universo jurídico ou,
ainda, “suscetíveis de entrada no mundo jurídico” (MIRANDA, 2012a, p. 82). Assim, tem-se a
manifestação da função classificadora da regra jurídica7, que “distribui os fatos do mundo em
fatos relevantes e fatos irrelevantes para o direito, em fatos jurídicos e fatos ajurídicos” (MI-
RANDA, 2012a, p. 77) – o que é denominado no Tratado de Direito Privado como “esquemati-
zação do mundo físico” (2012a, p. 79).
Logo, compreende-se, de forma patente, que o suporte fático ( fattispecie ou supuesto
de hecho) é conceito pertencente ao universo fático, ao mundo das coisas; podendo falar em sua
inserção no universo jurídico, como será visto, somente a partir da juridicização (aspecto que
se excetua, como será aprofundado, quando se tratar de outro fato jurídico como suporte fáti-
co). Como esclarece o ensino ponteano, “o suporte fáctico ainda está no mundo fáctico; a regra
jurídica colore-o, fazendo-o entrar no mundo jurídico” (MIRANDA, 2012a, p. 78).
Entretanto, como bem alerta Marcos Bernardes de Mello, a terminologia suporte fático
não tem conotação uníssona. Na verdade, conforme o momento no processo da juridicização, o
suporte fático pode conotar: ou a descrição do fato relevante, como parte do enunciado lógico,
condicionante para a incidência da norma jurídica; ou a designação propriamente dita do fato
quando já concretizado no mundo físico. Àquela primeira distinção, classifica-se como suporte
fático hipotético ou abstrato – já que sua existência está limitada à previsão hipotética esculpida
na norma. Por sua vez, suporte fático concreto designa os fatos previstos como hipótese que se
tornaram realidade no mundo fático (MELLO, 2014).
Sobre o suporte fático ainda, é pertinente destacar que, diferentemente do que se pode
inferir à primeira vista, a abrangência dessa regulação jurídica não se limita aos fatos da vida,
mas pode abarcar também fatos jurídicos e efeitos jurídicos. Assim, ainda que, pela didática, se
tem utilizado o universo fático como o campo de incidência da juridicização, não há óbice algum
que o fato do mundo, quando já também jurídico, não se constitua elemento de suporte fático
(MIRANDA, 2012a). Como assevera peremptoriamente Marcos Bernardes (2014, p. 87), “há
hipóteses em que são os próprios fatos jurídicos que constituem o suporte fáctico de outros fatos
jurídicos”. E.g., a personalidade jurídica das pessoas jurídicas de direito privado (art. 45, do Có-
digo Civil) é elemento dos suportes fáticos dos negócios jurídicos que tal pessoa jurídica realiza.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Ademais, aprofundando-se na análise cirúrgica do suporte fático, o ensino de Marcos


Bernardes de Mello destrincha essa parte estrutural da norma jurídica em elementos subjetivos
e objetivos; elementos nucleares; elementos complementares e integrativos.
Em primeiro lugar, o elemento subjetivo concretizaria a necessária “referibilidade a

7  Sobre a função classificadora, Lourival Vilanova (2010, p. 60, grifo nosso) faz a seguinte análise perspicaz: “O que a norma ou o Direito
positivo podem fazer, livremente, é selecionar as hipóteses e selecionar as teses ou consequências. É questão fora da lógica, extralógica,
optar pelo antecedente A’ ou A’’ ou A’’’, bem como escolher para consequência C’ ou C’’ ou C’’’. Tudo depende de atos de valoração,
sociologicamente situados e axiologicamente orientados. Mas, desde que foi posta normativamente a relação-de-implicação, daí em
diante entra-se na órbita das relações lógico-formais, no universo do ser do Direito: o logos como parte da ontologia do Direito”.

269
sujeitos de direito” (MELLO, 2014, p. 90), isto é, a que sujeito de direito a eficácia jurídica afe-
taria. Como esclarece Pontes de Miranda (2012a, p. 83), “os fatos juridicizáveis, estão, sempre,
ligados a alguma pessoa, ou porque digam respeito a ela (…), ou porque atinjam a sua esfera
jurídica, ou se refiram a seu modo de atuar”.
O elemento objetivo, por sua vez, são os bens da vida que podem integrar os suportes
fáticos. A possibilidade8 de tal integração jurídica deve ser tanto de natureza jurídica – isto é,
não deve existir norma jurídica que pré-exclua o liame jurídico – quanto pela própria natureza
atribuível ou apropriável por algum sujeito de direito – em outras palavras, não há que se falar
no Sol ou espaço cósmico como elemento objetivo de um suporte fático.
Em seu turno, os elementos nucleares, elementos complementares e elementos integra-
tivos do suporte fático também merecem ser compreendidos individualmente. De forma con-
trastante, os elementos complementares não estão atrelados à existência do fato jurídico – como
o são os elementos nucleares e completantes do núcleo –, mas, sim, buscam complementar o
fato jurídico. Tais elementos somente estão presentes nos negócios jurídicos, pois, na realidade,
se apresentam como pressupostos de validade ou eficácia dos negócios jurídicos. Desta feita,
não há que se falar no preenchimento, e.g., da capacidade de agir ou da perfeição da manifes-
tação da vontade quanto ao fato jurídico no sentido restrito, ato-fato jurídico ou de fato ilícito
sentido amplo.
Noutro ponto, os elementos integrativos estão atrelados especificamente apenas ao pla-
no da eficácia dos fatos jurídicos, isto é, “atuam no sentido de que se irradie certo efeito que
se adiciona à eficácia normal do negócio jurídico” (MELLO, 2014, p. 97). Exemplo clássico de
elemento integrativo é o registro, nos negócios jurídicos referentes aos direitos reais sobre imó-
veis, no Registro de Imóveis (art. 1.227, do Código Civil).
Em síntese, pode-se afirmar que os elementos nucleares (e os completantes), os ele-
mentos complementares e os elementos integrativos são facilmente identificados pelas conse-
quências de suas ausências. Enquanto as ausências dos elementos nucleares impedem a for-
mação do fato jurídico, as carências dos elementos complementares e os integrativos afetam a
eficiência do fato jurídico. Em outras palavras, a falta do elemento nuclear afeta a existência do
fato jurídico, enquanto a lacuna de elemento complementar ou integrativo acarreta a ineficácia
ou a invalidade do fato jurídico.
Pontes de Miranda (2012b, p. 253), enlaçando as reflexões feitas até o presente momen-
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

to, assim desenhou a entrada no mundo jurídico dissecando o suporte fático da regra jurídica:

O fato jurídico provém do mundo fáctico, porém nem tudo que o compunha entra,
sempre, no mundo jurídico. À entrada no mundo do direito, selecionam-se os fatos
que entram. É o mesmo dizer-se que à soma dos elementos do que, no mundo fáctico,

8  Lourival Vilanova esclarece que se a norma prescreve o que é factualmente impossível, que careça de sentido, ou prescreve o que é
factualmente necessário, tal norma teria sentido sintático, mas não sentido semântico. Em outras palavras, “[…]enunciados [destituídos
de sentido semântico] são exemplos bem construídos, com as partes da oração e as partes sintáticas da estrutura lógica em congruência
com os modelos. Mas se evitam o sem-sentido formal representam contra-senso factual” (VILANOVA, 2010, p. 38, grifo nosso) .

270
teríamos como fato, ou como complexo de fatos, nem sempre corresponde suporte
fáctico de regra jurídica: no dizer o que é que cabe no suporte fáctico da regra jurídica,
ou, melhor, no que recebe a sua impressão, a sua incidência, a regra jurídica discrimina
o que há de entrar e, pois, por omissão, o que não pode entrar.

Avançando, como já fora destacado, na perspectiva não sancionista adotada, além do


suporte fático, o preceito (ou disposição) é um dos elementos estruturais da norma jurídica.
O preceito, ou disposição, “constitui a parte da norma jurídica em que são prescritos
os efeitos atribuídos aos fatos jurídicos”, ou ainda, em outras palavras, “toda e qualquer conse-
quência jurídica que se atribua a um fato jurídico constitui eficácia jurídica, objeto, portanto de
um preceito” (MELLO, 2014, p. 111). Nessa parte da estrutura normativa, há a previsão quanto
a eficácia jurídica, isto é, a eficácia do fato jurídico.
Seguindo a ordem da presente reflexão, somente é possível falar em eficácia do fato
jurídico quando já ocorreu a eficácia normativa ou legal, ou seja, quando a norma já incidiu
sobre o suporte fático concreto. Assim, não é possível falar em eficácia jurídica sem que haja
eficácia normativa (GONÇALVES, 2001). Porém, é plausível que haja a eficácia normativa, isto
é, que exista o fato jurídico sem que haja eficácia jurídica, sem gerar efeitos. Isto ocorre, como
será tratado, porque a norma se estrutura por um modal de natureza deôntica, de uma relação
não necessária; uma relação que possibilita a ocorrência da hipótese de incidência, mas não a
ocorrência do fato do preceito. Logo, para Pontes de Miranda, “é a eficácia legal de que decorre
o fato jurídico, enquanto a eficácia jurídica assinala as consequências do fato jurídico já exis-
tente” (KRELL, 2010, p. 84).
Passada a compreensão sobre o suporte fático e o preceito, ainda sobre a estrutura
formal do p-normativo, é necessário, ligeiramente9, falar sobre o modal deôntico. Lourival Vi-
lanova (2010, p. 58), referência obrigatória em qualquer abordagem lógico-formal do Direito,
esclarece que o deôntico “não reside na hipótese como tal, mas no vínculo entre a hipótese e a
tese. Deve-ser o vínculo implicacional. Em outro giro: deve-ser a implicação entre a hipótese e
a tese”.
Logo, resgatando a dicotomia inicial entre universo fático e universo jurídico, a propo-
sição normativa ou deôntica possui o conectivo – ou functor – dever-ser que estrutura a relação
formal da implicação – corporificando, assim, juízo de imputação. Doutro lado, no universo
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

fático, a proposição – da espécie apofântica, isto é, de conteúdo descritivo – se apresenta na


estrutura sintática ‘S é P’, onde um modal alético, o conectivo apofântico ‘é’ implica o juízo de
causalidade na proposição (VILANOVA, 2010).
Por fim, é necessário esclarecer que, diferentemente do que pode ser compreendido
à primeira vista, o fato jurídico não se resume a uma específica norma – sobretudo quando o

9  Diante da dimensão e do objetivo da presente reflexão, a análise do modal deôntico não pode assumir uma perspectiva exaustiva, ad-
entrando nos meandros de sua função epistemológica, sua metalinguagem, as categorias modais, os modos alético e deôntico, etc. Para
apreciação madura e aprofundada sobre a matéria, cf. VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São
Paulo: Noeses, 2010.

271
legislador opta pela técnica da linguagem elíptica –, mas os fatos jurídicos devem ser compreen-
didos de forma integrada. Logo, a análise dos elementos do fato jurídico, já tratados, isto é, a
busca pelo suporte fático e pelo preceito não deve se limitar a leitura isolada e restrita de uma
norma jurídica individual. Como bem alerta Adriano Soares da Costa (2009, p. 177), a comple-
xidade do Direito está relacionada justamente com a postura multidimensional e global que o
jurista deve ter diante do universo jurídico, onde o Direito deve ser compreendido “como um
todo constituído por diversas partes relacionadas, as quais não se confundem com usa soma,
nem sozinhas contêm todas as propriedades do todo objetal”.

3.2 Fenomenologia da juridicização: distinguindo incidência e aplicação

Ultrapassada a análise estrutural da norma jurídica, destrinchando aspectos referentes


ao suporte fático e ao preceito, chega-se, então, ao momento no qual se justifica a teoria do fato
jurídico: a incidência da norma jurídica.
Desde os primeiros passos da presente reflexão, tem-se afirmado a centralidade do fato
jurídico no universo jurídico. Mas o que justificaria esse caráter primordial do fato jurídico?
Para teoria ponteana, e para o ensino de Marcos Bernardes de Mello10, a incidência da norma
jurídica seria o fator justificador dessa primordialidade do fato jurídico, pois a incidência jurí-
dica se apresenta como etapa inafastável de qualquer existir jurídico. Ou seja, “a incidência da
regra jurídica é que torna jurídicos os bens da vida” (MIRANDA, 2012a, p. 20).
A incidência da regra jurídica ocorre com a suficiência do suporte fático concreto. Isto
é, realizando-se no universo sensível os elementos fáticos delineados hipoteticamente, a norma
jurídica incide e, por conseguinte, juridiciza esse recorte fático da existência. Na verdade, como
destaca Edvaldo Sapia (2001), a ideia de suficiência (e, de forma antônima, de deficiência) do
suporte fático traz à tona a concreção (ou não) dos elementos estruturais do suporte fático já
tratados – quais sejam: elementos nucleares e completantes do núcleo.
Na obra Teoria do Fato Jurídico, assim está definida, com maestria, a incidência da
norma jurídica (MELLO, 2014, p. 116):

Composto o seu suporte fáctico suficiente, a norma jurídica incide, decorrendo, daí
a sua juridicização. A incidência é, assim, o efeito da norma jurídica de transformar
em fato jurídico a parte do seu suporte fáctico considerado relevante para ingressar
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

no mundo jurídico. Somente depois de gerado o fato jurídico, por força da incidência
é que se poderá tratar de situações jurídica e de todas as demais categorias de eficácia
jurídica.

Por sua vez, utilizando-se de uma metáfora com o processo de sublimação na estam-
paria, Pontes de Miranda (2012a, p. 65) esclarece o fenômeno da incidência jurídica, isto é, a

10  “O mundo jurídico, está claro, se vale dos fatos da vida e, mais que isso, é constituído por eles próprios; resulta da atuação (incidência)
da norma jurídica sobre os fatos, juridicizando-os, e não representa, por isso, uma decorrência natural dos fatos” (MELLO, 2014, p. 42).

272
fenomenologia da juridicização:

Para que os fatos sejam jurídicos, é preciso que regras jurídicas – isto é, normas
abstratas – incidam sôbre êles, desçam e encontrem os fatos, colorindo-os, fazendo-
os ‘jurídicos’. Algo como a prancha da máquina de impressão, incidindo sôbre fatos
que se passam no mundo […].

Na verdade, não obstante ser inolvidável a contribuição da fenomenologia da juridi-


cização para a história da doutrina jurídica no Brasil, atualmente, doutrinadores de formação
acadêmica lapidar – como Paulo de Barros Carvalho, Adrualdo de Lima Catão11, Andreas Joa-
chim Krell e Torquato da Silva Castro Júnior – levantam críticas e ponderações12 aos ensinos de
Pontes de Miranda e, por conseguinte, do professor Marcos Bernardes de Mello.
É possível afirmar, apesar das singularidades, que essas vozes críticas à ideia ponteana
da incidência convergem num paradigma filosófico para a construção de suas apreciações: a
linguagem. Nessa perspectiva, para que o destinatário da norma alcance a mensagem norma-
tiva, isto é, alcance as “expressões irredutíveis de manifestação do deôntico” (CARVALHO,
2015, p. 44), faz-se imprescindível adentrar na seara do jogo da linguagem. Como contrapõe
Adrualdo de Lima Catão (2010), na teoria ponteana, persistiria uma compreensão pré-linguísti-
ca da fenomenologia da juridicização, não havendo, assim, qualquer espaço para a construção
interpretativa tanto do fato puro quanto para o fato já qualificado como jurídico. Assim, ainda
para Catão (2010, p. 19 e 20), o pensamento tradicional afirmaria a apreensão dos fatos (tanto
puro quanto jurídico) como mera “ocorrência lógica decorrente do conhecimento humano do
fato puro correspondente ao suporte fático abstrato” – e o autor ainda questiona – “o conceito
de subordinação jurídica existe fora de um contexto linguístico próprio (jogo de linguagem)?”.
Na mesma perspectiva, mas centralizando a análise com campo do Direito Constitu-
cional e Administrativo contemporâneo, Andreas Joachim Krell (2010, p. 79) contextualiza a
teoria do fato jurídico ponteana como uma teoria eminentemente pré-hermenêutica e assevera,
de forma categórica, o seguinte julgamento:

Transferida para a área diferenciada dos conceitos legais abertos e plurissignificativos


do moderno Estado intervencionista, dotados de um teor altamente político e de
uma baixa densidade mandamental, a própria metáfora da ‘incidência no plano
dos pensamentos’ perde sentido, visto que resta duvidoso ser possível falar de uma
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

‘incidência infalível’ anterior à aplicação concreta dessas normas pelos órgãos estatais
competentes.

11  Como se verá, enquanto no capítulo ‘Uma visão pragmática da noção de fato no direito: o caráter interpretativo do fato jurídico’,
presente na obra coletiva Revisitando a teoria do fato jurídico, de 2010, Adrualdo de Lima Catão se revela como um dos críticos mais
contumazes à teoria ponteana, em obra posterior, já em 2013, esse mesmo autores passa a harmonizar a fenomenologia da juridicização
com a problemática da linguagem, reafirmando a acuidade do pensamento de Pontes de Miranda.
12  Outra proposta de leitura do pensamento ponteano que merece alusão é a perspectiva da semiótica jurídica. Nessa conjuntura, a obra
‘Incidência Jurídica: teoria e crítica’, da professora Clarice von Oertzen de Araújo, se mostra como leitura basilar onde elementos con-
ceituais da teoria peirceana e sua tríade semiótica trazem uma apreciação singular da incidência jurídica e do pensamento de Pontes de
Miranda.

273
Por sua vez, como mais um pensador atento ao giro linguístico (linguistic turn) e às
lições de Wittgenstein, Torquato da Silva Castro Júnior assevera que a teoria do fato jurídico
seria marcadamente uma construção de base metafórica muito forte, onde o mundo jurídico
ponteano seria o espaço imaginário ideal para o desenvolvimento da incidência da norma jurí-
dica. Entretanto, no ponto de vista pragmático, tal realidade teórica, para Torquato Junior (2010,
p. 646 e 648, grifo nosso), não seria aceitável, já que:

Para Pontes de Miranda, ‘o direito’ já existiria enquanto tal, antes mesmo do momento
da sua ‘aplicação. […] As regras e o sistema jurídico existiriam nesse modelo como
existem os sistemas lógicos, numa esfera de realidade ideal própria, mas não menos
verdadeira e real que o mundo dos fatos. […] em Pontes de Miranda, o “revestimento”
de juridicidade que a regra de direito empresta ao fato pela incidência decorre
instantaneamente, e como se independesse da intervenção humana, da coexistência
num determinado tempo. Assim ele encobre toda a problemática da interpretação
dos fatos e das regras.

Logo, agrupando as críticas, é possível vislumbrar que, para tais críticos, “as normas
não incidem por força própria” e “a percussão da norma pressupõe relato em linguagem pró-
pria: é a linguagem do direito constituindo a realidade jurídica” (CARVALHO, 2015, p. 35 e
36). Portanto, diferentemente da estrutura de pensar de Pontes de Miranda, não seria possível
falar na topologia de mundos (CASTRO JUNIOR, 2010) – fático e jurídico –, pois não haveria
questões puramente de fato. Dessa maneira, persistiria um problema grave ao transformar a
compreensão formalidade ponteana da incidência lógica da norma jurídica deixando de lado o
aspecto interpretativo do fato jurídico, já que a descrição normativa dos fatos são valorações
invariavelmente inseridas no jogo da linguagem (CATÃO, 2010).
Diante das críticas, como defensor da teoria ponteana, Adriano Soares da Costa se des-
dobrou especificamente em relação às ideias de Paulo de Barros Carvalho, mas se pode utilizar
como réplica às apreciações que gravitam em torno do giro linguístico. Para Adriano Costa
(2009, p. 53 e 54), o equívoco de tais críticas ocorre com a confusão entre o conceito de incidên-
cia e de aplicação da norma jurídica, que seriam aspectos inequívocos em Pontes de Miranda:

É pela incidência, no mundo do pensamento, que se dá a objetivação conceptual,


simbólica do processo de juridicização; é pela aplicação da norma jurídica que incidiu
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

que se dá a objetivação social na concretude da vida. […] A incidência da lei independe


da sua aplicação.

Logo, para Adriano Soares da Costa, as críticas fundamentadas na linguagem, sobre-


tudo o realismo linguístico de Paulo de Barros Carvalho, acabariam por restringir o universo

274
jurídico à manifestação de uma linguagem competente por um ato de autoridade13. Porém, para
tal réplica, a confusão entre incidência e aplicação excluiria da realidade jurídica as hipóteses
em que os homens se submetem espontaneamente aos ditames estatais (COSTA, 2009, p. 55,
grifo nosso):

Grosso modo, apenas seria Direito o que as autoridades dizem que é, no ato de
aplicação da norma. Essa amputação do fenômeno jurídico […] é um reducionismo
injustificado, que retira do Direito sua função de processo de adaptação social. […]
Se a pessoa pára o carro quando o sinal está vermelho, atende à norma jurídica que
determina ser essa a conduta devida; se o ultrapassa, sua conduta é ilícita. Há uma
significação social, meta-individual, no comportamento dessa pessoa: pouco importa
saibamos que tenha ocorrido, ou que tenha sido na calda da noite. A significação é
objetiva, e adjetiva esse fato como jurídico pela causalidade da incidência normativa.

Em seu turno, a obra de Marcos Bernardes de Mello que trata plano da existência do
fato jurídico reserva tópico específico para tratar das divergências doutrinárias em torno da teo-
ria de Pontes de Miranda. Porém, as contrarrazões do professor alagoano se limitam a rebater
especificamente as críticas de Andreas Krell e de Paulo de Barros Carvalho, não entrando, com
profundidade, no mérito da crítica quanto ao giro linguístico. Na verdade, Marcos Bernardes
de Mello (2014, p. 132, grifo nosso), basicamente, se atém a delinear a distinção entre aplicação
e incidência:

Se a norma jurídica NJ’, abstratamente, define os fatos ABC como suporte fáctico
do fato jurídico FJ¹, ao qual imputa o efeito jurídico E¹, e no mundo aquele suporte
fáctico (ABC) se concretiza, a norma NJ¹ incide sobre ele, criando o fato jurídico
respectivo (FJ¹), o qual poderá gerar a eficácia E¹. Esse processo ocorre na dimensão
dogmática (normativa) do direito, portanto, em plano lógico, de valência, não da
realidade fáctica social. Porque independe de ato humano, pois se dá à simples
concreção do suporte fáctico suficiente, a incidência é infalível e sua veracidade não
necessita ser comprovada, fisicamente, em face da impossibilidade de ser percebida
por nossos sentidos. A aplicação da norma jurídica, diferentemente, é ato humano
que se realiza no ambiente social, com a finalidade precípua de efetivar aquela eficácia
jurídica prevista, abstratamente, na forma incidente, de modo que, necessariamente,
é sempre posterius em relação à incidência.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Ademais, em outro ponto, Marcos Bernardes destaca duas contradições no discurso


carvalheano (2014, p. 134):

13  Nesse trecho, Paulo de Barros Carvalho (2015, p. 35, grifo nosso) centraliza a participação da autoridade na aplicação/incidência da
norma jurídica: “[…] é importante dizer que não se dará a incidência se não houver um ser humano fazendo subsunção e promovendo
a aplicação que o preceito normativo determina. As normas não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica, requerem o
homem, como elemento intercalar, movimentando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e abstratas outras gerais e ab-
stratas ou individuais e concretas e, com isso, imprimindo positividade ao sistema, que dizer, impulsionando-o das normas superiores
às regras de inferior hierarquia, até atingir o nível máximo de motivação das consciências e, dessa forma, tentando mexer na direção
axiológica do comportamento intersubjetivo […]”.

275
Na concepção de Paulo de Barros Carvalho, a ideia de que a norma somente existe
quando criada no ato de aplicação pelo intérprete inverte, totalmente, os termos do
processo segundo o qual se desenvolve o fenômeno jurídico, pois: (i) termina pelo
começo, se comparado com o modelo ponteano, uma vez que a incidência ocorreria ao
final do processo; (ii) a norma jurídica somente passa a existir após já concretizada a
situação fática que ela regula, deixando sem explicação convincente como uma norma
posterior pode ser referida a um fato anterior e como se pode exigir do indivíduo
segundo normas que não tem como conhecer, porque ainda não foram criadas.

Contudo, na obra Teoria do fato jurídico: uma abordagem lógica da decisão judicial,
o mesmo doutrinador Adrualdo de Lima Catão que fora listado como um dos críticos à teoria
ponteana, traz ponderações interessantes que buscam harmonizar a perspectiva jurídico-formal
da fenomenologia da juridicização e a problemática de linguagem14. Segundo Adrualdo Catão
(2013), solução do problema estaria na compreensão de que incidência não estaria limitada
a constatação do sujeito cognoscente da ocorrência do suporte fático concreto. Mas, sim, na
teoria ponteana, a incidência capta a ocorrência dos fatos no mundo como uma pressuposição
lógica. Logo, “a incidência, portanto, não pode ser negada. É fenômeno lógico, que se passa no
pensamento, mas não é simplesmente subjetiva. Sendo fenômeno lógico, não pode ser afastada”
(CATÃO, 2013, p. 60).
Assim, Adrualdo de Lima Catão, em profunda análise do sociologismo ponteano, sus-
tenta a compreensão da fenomenologia da juridicização no devido lugar epistemológico de for-
malização do Direito – compreensão esta que se coadunaria com o pensamento de Pontes de
Miranda do Direito como processo social de adaptação (CATÃO, 2013, p. 35):

[…] é possível afastar a identificação da Teoria do Fato Jurídico com uma teoria
interpretativa simplista do Direito, ou mesmo retorno a teses do positivismo legalista,
como a ideia de a subsunção servir como método de aplicação do Direito. Na verdade,
a separação entre incidência e aplicação do Direito. Na verdade, a separação entre
incidência e aplicação do Direito vai colocar a Teoria do Fato Jurídico em seu devido
lugar: o de servir como formalização do Direito, e não como uma teoria da interpretação.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

Após as reflexões sobre a teoria do fato jurídico, resta necessário gizar a envergadura
dessa teoria – e, logicamente, do pensamento de Pontes de Miranda – e a necessidade de maior

14  Na obra Teoria do fato jurídico, Adrualdo Catão (2013, p. 78 e 81) chega, no tópico em que problematiza o relativismo kelseniano, a
se contrapor ao pensamento de Paulo de Barros Carvalho, fazendo crítica acentuada: “Segundo essa visão [a visão kelseniana também
defendida por Paulo de Barros Carvalho], fatos não existem em si mesmos. O que existem são descrições linguísticas sobre eventos
contingentes e tais descrições são as únicas coisas que estão ao alcance do homem. […] Esse discurso, que leva a afirmações completa-
mente destoadas do senso comum, decorre da radicalização da especificidade da linguagem jurídica, que seria a única competente para
enunciar fatos jurídicos, e do não reconhecimento de que, mesmo diante da complexidade pragmática da decisão judicial, não podemos
abrir mão da noção de verdade, que aparece na forma da noção de incidência normativa”.

276
perscrutação desse objeto de estudo.
Como se notou, certas críticas e ponderações ainda não foram exaustivamente res-
pondidas pelos defensores da teoria ponteana do fato jurídico. As provocações fundamentadas
no giro linguístico, bem como do caráter metafórico do pensar ponteano, merecem um debru-
çamento mais exaustivo, não devendo persistir silêncio em relação às novas perquirições. Na
verdade, a problemática da linguagem e dos pensamentos wittgensteinianos se mostra como um
oceano de densidade filosófica que, pela dimensão da presente reflexão, sequer teve os pontos
elementares sinalizados. Nesse aspecto, a fim de que se tenha uma análise mais pragmática da
fenomenologia da juridicização, é imprescindível uma averiguação mais aprofundada nos parâ-
metros filosóficos que estão presentes na filosofia contemporânea.
Ademais, é de se ressaltar ainda que também existem perspectivas de análise do fato
jurídico que, diante do foco jurídico-formal desta reflexão, sequer puderam ser problematiza-
das – como, por exemplo, a teoria do fato jurídico da perspectiva da semiótica. Logo, tem-se
que, associada à própria densidade do pensamento ponteano, a possibilidade de estudos noutras
perspectivas, como o da semiótica peirceana, ratifica a compreensão final da necessidade de
maior debruçamento sobre a fenomenologia da juridicização, inclusive buscando gerar mais
espaço na cultura jurídica e, por conseguinte, na formação dos novos juristas.
Ao fim e ao cabo, acaba-se por compreender o presente trabalho como um momento
de contato preliminar à teoria do fato jurídico – obtendo êxito no objetivo de resgate –, sen-
do possível vislumbrar um objeto de estudo interessantíssimo para reflexões e pesquisas mais
aprofundadas e robustas. Na verdade, restou patente um convite a um debruçamento no pensar
ponteano, buscando transcender a conjuntura de autor do Tratado de Direito Privado, alçando
as provocações epistemológicas e metajurídicas desse pensador pernambucano.
Logo, a fenomenologia da juridicização é uma seara da teoria geral do Direito que me-
rece, pela sua importância no imaginário jurídico brasileiro, continuamente ser revisitada: seja
para compreender o átomo do universo jurídico, que é o fato jurídico, seja para contrapô-la com
a maturidade científica necessária.

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BEING OR OUGHT TO-BEING, THAT IS THE QUESTION: A RESCUE OF THE


PHENOMENOLOGY OF PONTES DE MIRANDA’S JURIDICATION

ABSTRACT
This article, methodologically developed from the perspective of liter-
ature review, has examined the theory of the legal fact from the point
of view conceived by Pontes de Miranda. Initially, the reflection started
with the understanding of the topology of the factual and legal worlds,
seeking, within the cultural reality, to reach the delimited scenario of
the Law and the legal standard. Thus, having defined the context of
the deliberation, the analysis assumed a logical-formal perspective to
understand the legal standard, and, therefore, the legal fact. Finally, the
analysis brought forth doctrinal criticisms and considerations about the
incidence of the legal fact and its application.
Keywords: Incidence. Legal standard. Juridication. Being. Ought
to-being.
FIDES, Natal, V. 8, n. 1, jan./jun. 2017.

279
Revista de Filosofia do Direito, do Estado e da Sociedade

w w w. r e v i s t a f i d e s . c o m

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