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Psicanálise e Cuidados Paliativos: do sem-sentido à invenção

Sílvio Memento MACHADO*

* Psicólogo. Psicanalista. Mestre em Educação. Professor da Universidade José do Rosário Vellano – UNIFENAS e da
Faculdade de Direito de Varginha – FADIVA. silvio.memento67@gmail.com

“Assim que nasce, o homem já tem idade suficiente para morrer”.


Heidegger

Recebido em: 05/07/2015 - Aprovado em: 05/11/2015 - Disponibilizado em: 18/12//2015

Resumo:O presente artigo traz uma discussão sobre o que pode um psicanalista diante de um paciente terminal
emcuidadospaliativos. Trata-se de um trabalho baseado na experiência do autor e referenciado na teoria psicanalítica.
Conclui-se que diante do sem-sentido da morte, o que resta é a chance de se inventar saídaspossíveis, o que cada sujeito
faz de um modo singular.
Palavras-chave: Paciente Terminal. Cuidados Paliativos. Morte. Psicanálise. Invenção.

Abstract:Thisarticlebringsusaboutwhat a psychoanalystcan do in the face of a terminal patient in palliativecares.


That’s a workbased in theauthorexperienceandreferable in psychoanalitictheory. Wecanconclude in face
tothewithoutsensedeath, thechance ofinventionofpossibleexitsthatwhatremains, whatanyonecan do in a singular way.
Key words: Terminal Patient. PalliativeCares. Death. Psychoanalysis. Invention.

Introdução se lidecom perdas de pessoas próximas, com a


decadência da vitalidade do corpo por
Ao ser convidado para participar de doenças ou pelo processo natural do
umsimpósio sobre Cuidados Paliativos, na envelhecimento, a morte é sempre a do outro,
condição de palestrante, o autor deste artigo nunca a própria. Assim, optou-se por falar
se perguntou sobre o que um psicanalista teria sobre a relação que se tem com a morte.
a dizer a respeito do tratamento de uma
pessoa cuja morte, a princípio, já tem uma A morte, a psicanálise e os cuidados
data marcada. Normalmente, trata-se alguém paliativos
que almeja operar mudanças na sua vida num
tempo que se espera seja longo, ou pelo Do ponto de vista social, a morte é
menos o suficiente para isto. Aliás, talvez uma “sem lugar”. Relegada à UTI dos
com poucas exceções, vive-se como se a hospitais, na maioria das vezes, a morte
morte, como fim, não fosse um fato ou que simplesmente não combina com uma
existisse apenas num tempo muito distante, ao sociedade que prega, a todo instante, que o
final de uma vida longa e feliz. Por mais que grande barato é curtir, é não sofrer. Nem

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sempre foi assim. Historicamente, a morte, dia vai se chegardepois da morte. Por mais
embora sempre vivida com dor e sofrimento, estranho ou mesmo espantoso que isto possa
já fez parte do cotidiano da vida das parecer a alguns, ou a vários, à luz da
pessoas,numa época em que os ideias de psicanálise a vida não tem nenhum sentido, o
juventude eterna e de prazer permanente não que não significa que ela não tenha valor,a
eram soberanos. não seraquele quese constrói à medida em que
Quando não pensar sobre a morte se vive.
torna-se impossível, cria-se explicações Todavia, ao contrário do que se possa
transcendentes: aponta-se para uma outra pensara princípio, esta não é uma visão
vida, numa dimensão diferente daquela em pessimista da vida; é uma forma de encarar a
que se viveaqui, ou encontra-se um suposto existência numa dimensão mais real e menos
propósito para a vida retratado nos termos: idealizada, colocando o sujeito humano como
missão, destino, carma, sina, vontade divina e responsável pelo que lhe acontece, sem que
tantos outros. Enfim, de diferentes formas, o nada possa servir de desculpas para a
que se quer é dar um sentido à vida diante da acomodação, para a “des-
angústia que a morte, como fim, mobiliza. responsabilização”pela própria vida.Assim, a
A psicanálise, como campo de psicanálise está na via oposta à do pagodeiro
conhecimento e de intervenção sobre o que canta: “deixa a vida me levar, vida leva
sofrimento psíquico, não se confunde com eu”.
nenhuma perspectiva filosófica ou religiosa Essa posição de responsável pela
sobre a vida. Portanto, ela não compartilha própria vida, no entanto, não significa que se
com uma visão que remete o homem a uma está no comando de tudo o que acontece. Para
transcendência. Isto não significa que ela seja serfiel à própria psicanálise, tem-se que levar
contrária a que as pessoas busquem em conta as determinações inconscientes que
explicações religiosas sobre a vida e a morte. se expressam, sem o controle da consciência,
Isto é sempre algo muito particular e a através dossonhos, dos atos falhos
psicanálise não pretende substituir nenhuma (esquecimentos, trocas de nomes, etc), de
dessas convicções. Nada mais avesso à atitudes na vida (as repetições) e também
psicanálise do que a pretensão de se valer para dossintomas (a forma com que se adoece).
todos, ser universalizante. Igualmente, tem-se que considerar os
Os psicanalistas, simplesmente não imprevistos, aquilo que emerge como
trabalhamcom a noção de sentido da vida surpresa nocotidiano: um acidente, uma
como algo já definido previamente na doença... Certamente, não se escolhetudo.
histórica pessoal, ou como aquilo a que um Mas mesmo diante das fatalidades com as
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quais o ser humano se depara, ele é frequentemente, são aqueles na comunidade
responsável pela forma como respondea essas convocados a estar presentes nesses
situações (FORBES, 2012). momentos e que, embora negando a morte
Dito isto, como lidar com aquele cuja como fim - pelo contrário, afirmando ser a
morte já se avista no horizonte? Freud morte apenas uma passagem – historicamente
(1905/1977) contraindicava a análise para não se furtam a esse encontro.
idosos dentre outras razões porque eles teriam Kübler-Ross (1988), a partir da sua
pouco tempo de vida para fazer as mudanças prática com pacientes terminais, trouxe uma
que o próprio tratamento poderiasuscitar. valiosa contribuição ao formular os estágios
Atualmente, em função, inclusive, do novo pelos quais esses pacientes passam, desde a
lugar que o idoso ocupa nasociedade, não se negação, passando pela raiva, pela barganha,
trabalhamais com essa restrição de Freud. pela depressão, até a almejada aceitação da
Acredita-se que é possível se fazer um morte. Não se pretende deter aqui nessa
paralelo entre o idoso, que vê seus dias teorização por não ser o objetivo deste
contados, e o paciente que, embora em trabalho e também por estarem já bastante
qualquer idade, não vê perspectivas de tempo difundidas as ideias dessa autora.
de vida pela frente. Cabe destacar, no entanto, A psicanálise, como já se disse neste
que quanto mais cedo a morte chega, mais ela artigo, não nega a morte; ao invés disto, a
surpreende e mais difícil é a sua aceitação, afirma. Ao se fazer uma pequena digressão
haja vista a frase tantas vezes repetida: teórica, constata-se que Freud (1920/1976),
“Morreu tão jovem, tinha tanta vida pela nos anos vinte do século passado, formulou
frente”. Se não se recuamais diante do idoso um dos seus conceitos mais enigmáticos: a
por que o faria diante de um paciente pulsão de morte. Ele chegou a esse conceito
terminal? através dos fenômenos clínicos relacionados à
Então, para além dos cuidados compulsão à repetição. Ele se perguntava
paliativos, tão importantes para que alguém sobre o que fazcom que alguém se coloque
tenha uma vida (ainda que breve) e uma morte repetidamente na vida em situações
dignas, que cuidados do ponto de vista dolorosasdas quais a própria pessoa chega ao
subjetivo poderia ser ofertado a um paciente consultório se queixando. O que Freud
terminal? Há trabalhos muito interessantes descobriu, a partir disto,foi a existência
realizados porpsicanalistas junto a pacientes, nofuncionamento psíquico de uma tendência,
familiares e profissionais que lidam com essa de uma força, que objetiva, em última
clientela. Destaca-se, também, o importante instância, levar o organismo a um estado em
papel desempenhado pelos religiosos que, que não haja mais nenhuma tensão no
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aparelho psíquico, ou seja, à morte. A pulsão fala do seu cliente, também não moraliza
de vida, por sua vez, é o queleva a fazer laços, comportamentos, não aconselha quanto ao
vínculos, a investir na vida para que a morte que fazer, não se coloca, enfim, como aquele
se dê de forma natural e não que de antemão sabe o que é melhor para o
precipitadamente. Portanto, a pulsão de vida outro. O que ele faz então? Oferece a sua
não é o contrário da pulsão de morte, ela está escuta com a finalidade de que quem fala
a serviço desta última. Ainda, segundo Freud, também se escute (coisa que pode ser muito
pulsão de vida e pulsão de morte se estranha, mas igualmente reveladora). Quando
entrelaçam durante toda a existência. se fala, num contexto de análise, nunca se diz
De alguma forma, e muitos exatamente o que se quer conscientemente
profissionais podem atestá-lo, lidar com a dizer; a palavra ganha autonomia em relação
morte do outro, por maiores que sejam ao eu e expressa aquilo que surpreende a
asdefesas pessoais, é também se perguntar consciência. Não é raro, após ouvir o que se
sobre aprópria vida e como se está nela disse, alguém comentar: “nunca tinha pensado
empenhado, como dela se responsabiliza. nisso” ou “isso nunca me ocorreu antes”. O
Sabe-se que a prática com pacientes analista está ali para sublinhar, destacar isto,
terminais, mesmo a partir da psicanálise, para não deixar que essa fala reveladora (uma
comporta especificidades. De qualquer forma, vez que comporta algo da verdade
não existe uma psicanálise aplicada a inconsciente do sujeito) passe despercebida,
determinadas doenças ou faixas etárias. Os para não permitir que ela seja recoberta por
instrumentos dos quais o psicanalista se valee outra (LACAN, 1986).
o sujeito a quem se destina o tratamento são Nesse percurso, o sujeito pode se
os mesmos. Convoca-se esse sujeito a que apropriar, ainda que parcialmente, daquilo
fale e, em contrapartida, se ofereceaescuta. que do inconsciente o causa; um saber vai se
Mas se poderiaperguntar: “não é o mesmo que construindo a partir do não-saber enigmático
uma outra pessoa, um religioso ou um outro do sintoma - “não sei o que está acontecendo
profissional fazem? Afinal eles também comigo” – qualquer que ele seja. Destaca-se
escutam.” Não há dúvidas de que qualquer que esse saber não é o saber que o analisa
forma de escuta pode ser benéfica,terapêutica. possa ter sobre a psicanálise; é um saber de si
Todavia, o que a psicanálise propõe e que produzido pelo próprio sujeito. Dizer a
marca a sua especificidade é o acolhimento da alguém sobre as possíveis causas do seu
fala (ou até da recusa dela) na sua mais sintoma, à luz da teoria, nada muda no
radical singularidade. Ou seja, um psicanalista sintoma propriamente; ao contrário, pode até
não visa a dar nenhum sentido antecipado à fortalecê-lo. Desse saber que se revela, o
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sujeito extrai consequências que podem Rosscom as quais ela conclui o seu clássico
implicar em remanejamentos significativos na livro:
sua vida. Em linhas gerais, uma análise
transcorre assim. Aqueles que tiveram a força e o
amor para ficar ao lado de um paciente
Quanto ao paciente terminal, quando moribundo com osilêncio que vai
este se dispõe a se questionar nesse momento, além das palavras saberão que tal
momento não é assustador nem doloroso,
mesmo que ele não faça uma análise, no mas um cessar em paz do funcionamento
do corpo.Observar a morte em paz de um
sentido mais convencional do termo, o fato de ser humano faz-nos lembrar uma
ter sido tocado por essa dimensão reveladora estrela cadente. É uma entre milhões
de luzes do céu imenso,que cintila
da palavra, possibilitada pela escuta de um ainda por um breve momento para
desaparecer para sempre na noite
analista, talvez contribua para que ele possa sem fim. Ser terapeuta de um paciente
inventar algum sentido para o que lhe ocorre. que agoniza é conscientizar-se da
singularidade de cada indivíduo
Destaca-se “inventar”, pois não se trata aqui neste oceano imenso da
humanidade. É uma tomada de
de aderir a um sentido já construído, dado a
consciência da nossa finitude, do
priori. nosso limitado tempo de vida.
Nesse curto tempo de vida,muitos
Não é uma tarefa fácil, para nenhum dentre nós criam e vivem uma biografia
dos dois lados, pois implica bastante trabalho, única e nós mesmos tecemos a trama da
história humana(KÜBLER-ROSS,
lidar com a angústia e com uma certa dose de 1988, p. 282).
solidão. Sem dúvidas, é menos trabalhoso
aderir a uma rede de sentidos já construída e Finaliza-se destacando a seguinte

sentir-se pertencente a um grupo. No entanto, expressão utilizada por essa autora: “o

se assim funciona para muitos, sempre haverá silêncio que vai além das palavras”. E é isto

um para quem as respostas prontas, embora mesmo: a morte, por mais que diversos

apaziguadoras, não o contemplam como discursos possam dela falar - religião,

sujeito da sua própria vida e, porque não filosofia, medicina e a própria psicanálise -

dizer, no caso do paciente terminal, sujeito da remete sempre ao limite, não só da

sua própria morte. Para este, a psicanálise palavra,mas também do sentido. Diante desse

pode fazer alguma diferença. vazio - de palavras, de sentido - cada um, na


sua singularidade, é convocado a se
posicionar de uma maneira criativa
Considerações finais
transfigurando, assim, o horror em

Por conta do que se expôs, considera- investimento e amor à vida.

se relevante citar as palavras de Kübler-

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REFERÊNCIAS:

FORBES, J. Inconsciente e
responsabilidade: psicanálise do século
XXI. Barueri (SP): Manole, 2012.

FREUD, S. Sobre a psicoterapia. In: Edição


standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud, vol. 7. Rio de
Janeiro: Imago, 1977. (Trabalho original
publicado em 1905).

FREUD, S. Além do princípio do prazer. In:


Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud,
vol. 18. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
(Trabalho original publicado em 1920).

KÜBLER-ROSS, E. Sobre a morte e o


morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LACAN, J. O seminário – livro 1: Os


escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1986.

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