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Cinema, antropofagia e transe

Profa Regina Mota

A adesão do Cinema Novo à teoria da antropofagia como fato histórico de interpretação


da cultura brasileira encontra seus indícios não apenas em filmes explicitamente
antropofágicos como Macunaíma, Como era gostoso o meu francês, Brasil ano 2000 ou
O Homem do Pau Brasil mas está presente enquanto procedimento estético e conceitual.

Entre as obras mais exemplares dessa evidência, Terra em Transe se destaca pela prática
intencional de seus fundamentos, e demonstra a relação entre transe e antropofagia com a
construção de novas categorias estéticas para o audiovisual. Em Di/Glauber, o
procedimentto se explicita no ritual xamânico tupinambá, encenado pelo diretor. Em
ambos os filmes, o eixo teórico da antropofagia é afirmado pelo conflito, estabelecido em
todas as dimensões possíveis da linguagem cinematográfica1, assumindo a face
politicamente incorreta da desigualdade social, ilustrada pelos protagonistas dos poderes
em crise. A atitude anti-hierárquica, que afirma o lugar do atraso como ponto de partida e
de chegada de uma consciência possível, conduz sem vacilo a trajetória do herói ao
marco zero.

Diferença e alteridade, conceitos centrais da antropofagia, são as utilizadas pelo diretor


para manter também instável o vínculo com o espectador, sem guias ou marcas
reconhecíveis para seguir a história.

Manifestos
A análise dos manifestos e textos teóricos modernistas e sua conexão com o Cinema novo
brasileiro demonstrou a centralidade da Teoria da Antropofagia como base conceitual do
movimento, bem como a importância do legado do seu marco histórico, o Manifesto
Antropófago (ANDRADE, 1995). Os primeiros passos dessa polêmica teoria foram
ensaiados nos procedimentos inovadores da linguagem literária que se distanciava da
1
O conflito em Terra em Transe é a constante que promove o estado de crise representada
semióticamente na instabilidade entre som e som, entre som e imagem, entre imagem e imagem, entre os
personagens, entre figura e fundo, entre luz e contra-luz, entre os objetos orquestrado pela violência das
transições permitidas pelo movimento da câmera de mão.
escrita tradicional ao se aproximar do cinema ou do cinematógrafo, na utilização dos seus
recursos estilísticos e de sua linguagem.

É possível identificar uma transubstanciação antropofágica no texto modernista de Mário


e Oswald na produção de uma obra que projeta o cinema no literário, enquanto
montagem e imagem, simultaneidade, ritmo e polifonia já configurando um quase-cinema
(MOTA, 2007). Essa presença da linguagem cinematográfica, como elemento da
inovação literária na expressão das novas idéias na obra modernista, facilitou o seu
resgate pelos cinemanovistas, quase quarenta anos depois.

A conseqüência imediata da invenção modernista é a ocorrência de uma práxis estética


que coloca em relevo os aspectos filosóficos inerentes ao fazer artístico. Expressar na
tecitura da linguagem a multiplicidade própria do conflito enquanto procedimento
heterônimo, cujo efeito é o choque de alteridade - a descoberta do próprio. Mais do que
operar um ato rebelde de destruição do parnasianismo romântico, a nova escrita exibia
dotes pouco conhecidos da cultura erudita, mas comuns às manifestações populares da
cultura miscigenada da América. Sonoridade e ritmo apelando aos ouvidos para fazer o
chamamento da consciência recalcada e adormecida em bons costumes.

A renovação da língua incorpora o oral popular e sua “milionária contribuição de todos


os erros” (ANDRADE, 1995), deixando as marcas da diversidade e pluralidade de
processos de criação artísticos que trazem as colaborações de tradições ibéricas mouras e
judaicas e medievais européias que vão se constituir em formas orais literárias tais como
o repente e o cordel. As narrativas das danças dramáticas brasileiras, coletadas e
analisadas por Mário de Andrade, são complexos intertextos cuja principal característica
narrativa é a modulação da tradição e do contemporâneo, mostrando já na sua forma e
estrutura a abertura da obra, que se faz atemporal e antropofágica, absorvendo novidades
como elemento de atualidade.

A pesquisa de linguagem incluiu o circo, fonte de inspiração de alguns artistas


modernistas, que seguiam liturgicamente as apresentações do palhaço Piolim, em São
Paulo. Merece destaque nesse encontro com a linguagem popular circense, a presença do
cinema nas pantominas criadas pelo palhaço. Segundo Orna Messer Levin (1996:65)
“Piolim revelou terem sido na realidade as comédias cinematográficas de sua
época a maior e mais estimulante fonte de inspiração de tais pantominas.
Chaplin, Buster Keaton e Harold Lloyd, aquelas figuras inocentes expostas ao
convívio permanente com uma ação violenta, na qual se mesclam os elementos de
agressão e frivolidade, serviram de modelo para as improvisações paródicas dos
nossos clowns. Em lugar da literatura, muitas vezes o ritmo acelerado dos filmes
realimentou a hilaridade do circo, promovendo a simpatia dos espectadores que
gargalhavam com a atmosfera brincalhona das novas farsas.”

Antônio de Alcântara Machado (1940) afirmava que o circo representava a única


expressão de fidelidade às nossas formas populares e aos elementos verdadeiramente
nacionais em comparação com o teatro profissional que ainda mantinha os trejeitos
franceses, o que visto pelo prisma Pau Brasil, parecia facultar a essa manifestação
popular, a redescoberta da improvisação espontânea, leve e pura.

A Oswald de Andrade, particularmente, não passou desapercebida a antropofagia inerente


ao processo de criação dessa farsa circense, que unia a expressão teatral popular e
tradicional ao cinema mudo internacional. Ela será apropriada como estrutura e
inspiração para a renovação dramatúrgica utilizada na peça O Rei da Vela, cujo
protagonista, Abelardo, tinha o mesmo nome do palhaço Piolim, e deveria ser encenada
pelo mesmo. “A peça toma de empréstimo a hilaridade dos pequenos esquetes e
entremezes circenses criados pelos palhaços Chincharrão, Harris, Chic-chic, Arrelia e
Piolim, cujas interpretações alcançaram enorme sucesso entre 1918 e 1938.” (LEVIN,
1996:65)

O Rei da Vela, peça encenada uma única vez no Brasil pelo Teatro Oficina em 1968, foi
dirigida por José Celso Martinez e se transformou, juntamente com o filme Terra em
Transe, em marco do movimento neo-antropofágico do Tropicalismo. Segundo Orna
Levin, a montagem era a imagem exemplar do diagnóstico da mesmice e de absoluta
estagnação estrutural do país apresentado entre quatro paredes aos espectadores que
também quisessem se bestificar com a percepção do escuro enorme que a peça iluminou.
Um manifesto da chacriníssima2 realidade nacional que reabilitava o poder de reinvenção
da arte, e da criatividade para combater a falta de história – síntese do nosso oportunismo.

No plano das idéias, Mário e Oswald assumem uma nova perspectiva para pensar a
cultura brasileira, que acentua o aspecto do conflito presente desde sempre no encontro
forçado das diferentes tradições que aqui tiveram que se encontrar, sobreviver e se
reinventar. Ao atribuir uma positividade ao estado de barbárie, o fato etnográfico inscrito
no ritual Tupinambá de morte e devoração do inimigo capturado servirá simultaneamente
de metáfora, diagnóstico e terapêutica, como analisa Benedito Nunes (ANDRADE,
1995). Essa atitude frente ao outro, o inimigo, se coloca de forma anti-hierárquica
restabelecendo uma positividade que emerge da situação do atraso.

Na violência desse golpe, o movimento modernista produz uma antinomia, ao valorizar o


que deveria ser destruído, superado e apagado da memória – a barbárie e o primitivo.
Reconhece nas relações estabelecidas pela miscigenação étnica e cultural e pela
dominação jesuítica e colonial a energia criativa que resulta da resistência às normas
civilizadas e às boas maneiras modernas. Oswald de Andrade avisa aos crentes: “Nunca
fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos foi Cristo
nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará” (ANDRADE, 1995:48).

Cinema e antropofagia
Nos anos 1960, alguns artistas realizaram a vingança dos seus parentes modernistas,
devorados e mal interpretados pela validação acadêmica, à maneira Tupinambá, ao
reeditarem as idéias, textos, imagens e sons de suas obras nas formas audiovisuais do
cinema, da música, do teatro e das artes plásticas. No cinema, Joaquim Pedro de Andrade

2
Referência a Chacrinha, por sua vez também palhaço e Abelardo, que já ocupava espaço no vídeo
da televisão brasileira desde 1957, quando estreou na Tupi com sua Discoteca do Chacrinha, responsável
pelo lançamento de vários e importantes talentos nacionais. Apesar do tom pejorativo utilizado pela autora,
os tropicalistas, ao contrário, tinham na sua atuação, figurino e uso do corpo em cena, uma autêntica fonte
de inspiração.
e Glauber Rocha são assumidamente seguidores dos precursores modernistas, e alguns de
seus filmes poderiam ser interpretados como ensaios neoantropofágicos.

As obras cinematográficas de Joaquim Pedro de Andrade são testemunhos da vitalidade


da teoria da antropofagia no plano cultural dos anos 1960. Macunaíma, o emblema da
renovação narrativa da literatura nos anos 1920, é recriada para o contexto político
cultural da ditadura pós AI-5. Joaquim, como um antropófago, não nega ao filme a
necessária violência destruidora do véu cordial, traçando a cadeia de valores que resulta
nas formas naturais de baixo canibalismo próprias das relações sociais presentes na vida
cotidiana brasileira – “o Brasil devora os seus cidadãos, os cidadãos devoram o Brasil e o
Brasil devora a si mesmo”3, diz o diretor. Essa fusão do erudito com o popular capaz de
sintetizar oposições e dissolver dualismos, como afirma Ivana Bentes, (1996:10)
propiciou a reaproximação do público com o cinema novo, nos seus mais de 2 milhões de
espectadores. O filme é propedêutico da antropofagia porque Joaquim Pedro interpreta
Mário pelos olhos radicais de Oswald, atualizados na sua própria visão desiludida mas
vigorosa e ainda crente no poder desestabilizador da obra de arte.

Pensar o brasileiro é destruir mitos e dessa ruína extrair o que nos é vital, essa a arte de
Macunaíma, anti-herói moldado com pedaços de lendas, raças, comidas, costumes e de
vária geografia. Capaz de ser e não-ser ao mesmo tempo ao afirmar aquilo que nega na
produção igual de solução e enganação. O país é refletido no espelho distorcido
construído com a fina ironia antropofágica dos autores modernistas e do próprio diretor.

Se em Macunaíma é possível assistir ao encontro entre os dois movimentos, modernismo


e cinema novo, por meio de uma obra emblemática, nos outros filmes de Joaquim Pedro
de Andrade, a antropofagia está subjacente às perspectivas adotadas com indícios em
profusão até o paroxismo de O Homem do Pau Brasil, homenagem explícita a Oswald de
Andrade. Quincas opta por assumir nesse filme outra visão do cinema:
Eu me interesso de um tempo para cá em coisas que aparentemente não dão um
filme. É uma provocação que a gente se faz para cair num terreno cheio de

3
acessado em http://www.filmesdoserro.com.br/film_hp.asp
obstáculos, mas divertido e criativo. Foi um pouco assim que fiz o Oswald. Não
estou mais interessado no cinema como instrumento, mas sim no cinema como
objetivo. E, como Oswald, mais aberto, desarmado e solto na maneira de compor
a conversa.
Os filmes de Glauber Rocha adicionam a essa visão um desenvolvimento teórico,
enunciado pelo cineasta no seu Manifesto Estética da Fome, no qual reinterpreta Oswald
de Andrade para o contexto cinematográfico, afirmando o seu caráter de topos da
antropofagia nos anos 1960.
De Aruanda a Vidas secas, o cinema novo narrou, descreveu, poetizou, discursou,
analisou, excitou os temas da fome: personagens comendo terra, personagens
comendo raízes, personagens roubando para comer, personagens matando para
comer, personagens fugindo para comer...(ROCHA, 2004:65)
Ao assumir a violência como única expressão legítima da fome, incorpora e valoriza o
primitivo como revolucionário, restabelecendo a metáfora canibal ao apontar para o
inimigo (interno e externo), que é incapaz de compreender a força da cultura que ele nega
ou explora. Essa violência, que não incorpora o ódio, reconhece a necessidade do outro
como margem e fronteira de sua existência e autonomia, representada em Deus e o diabo
na terra do sol pelo amor brutal de Rosa, que ao destruir o mito (Sebastião), permite
entrever o devir. Sara, movida pela mesma energia amorosa, abandona Paulo em sua
agonia, e volta pela mesma estrada, apontada no gesto de Rosa.

Mais que um filme, Terra em Transe é um acontecimento, um fato que marcou a cultura
brasileira e cinematográfica, no final dos anos 1960. No contexto da ditadura, foi alvo da
censura que tentou sem sucesso compreender a mensagem subversiva do filme e acabou
convencida de que o cineasta não sabia fazer direito um filme4. No cenário internacional,
teve o reconhecimento no festival de Cannes e foi ovacionado pela crítica francesa e
européia, garantindo ao diretor um lugar de autor cinematográfico. Foi mal digerido pela
maioria da inteligência brasileira, à esquerda e à direita confirmando a tese de Darcy

4
Essa aparente ironia, vem sendo repetida pelos críticos contemporâneos de Glauber Rocha, que como o
censor citado, também afirmam a incompetência técnica e narrativa presentes nos filmes do diretor. Visão
que sugere uma forma de resistência ao embate proposto pelo mau comportamento dos procedimentos
cinematográficos adotados por ele e que, a meu ver, apenas atestam a atualidade do autor e de sua obra.
Ribeiro sobre a “difícil tomada de consciência de si” (1995:132) que marca desde sempre
a relação da sociedade brasileira com a imagem bárbara do país.

Alex Viany atenta para isso, ao relativizar a importância do filme ter tido um público
restrito enfatizando no entanto o seu papel na cultura, comparando-o à Semana de Arte
Moderna, “cuja influência se foi espalhando em círculos excêntricos, influindo primeiro
naqueles que estavam mais preparados e que por sua vez trataram de passar a mensagem
a terceiros e quartos, num movimento sempre mais amplo e mais profundo.”
(CINEMAIS, 2005:73-74) Para o crítico e cineasta, Glauber criou em Terra em Transe
um compêndio das dores e mazelas da América Latina, se tornando um profeta do
subdesenvolvimento.

A fortuna crítica publicada na ocasião permite dimensionar o incômodo gerado pela obra,
que como disse Nelson Rodrigues, ficava agarrada em quem a ela se expunha. A
metáfora do vômito foi usada tanto para criar a imagem provocada pela película como
para definir a sensação diante de prato tão desagradável - o Brasil cordial sendo
atravessado e massacrado pela anamorfose da verdadeira barbárie. Segundo o
dramaturgo, o que acontecia é que
“estávamos cegos, surdos e mudos para o óbvio. Terra em Transe era o Brasil.
Aqueles sujeitos retorcidos em danações hediondas somos nós. Queríamos ver
uma mesa bem posta, com tudo nos seus lugares, pratos, talheres e uma
impressão de Manchete. Pois Glauber Rocha nos dera um vômito triunfal. Os
Sertões, de Euclides, também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte,
para ter sentido no Brasil precisa ser esta golfada hedionda!” (CINEMAIS,
2005:80-81)

A metafísica bárbara
Oswald de Andrade dizia no Manifesto Antropófago que “O espírito recusa-se a
conceber o espírito sem o corpo” (ANDRADE, 1995:?), sendo essa marca física uma
característica do próprio modo de conceber o mundo para o eu americano. Glauber
transfere para a câmera o sentido desse aforismo, que se comportará dando substância
corporal às imagens. Por sua vez, os corpos serão o objeto privilegiado na composição do
quadro, transformados em esculturas vivas (FAVARETO, 1995:30).

Pensar com o corpo e “atender ao mundo orecular (sic!)” são os pressupostos do percurso
na consciência agônica do protagonista de Terra em Transe - nossa própria saga rumo ao
vazio constituído pelas ilusões modernistas, que o filme destrói ao optar pela perspectiva
do transe, que conduz o olhar do espectador. Corpos em transformação, imagens
instáveis, mudança contínua, apontam para a impossibilidade de redução das inúmeras
faces dos conflitos apresentados.

A produção desta inquietação, uma constante do barroquismo glauberiano, não nos


permite extrair de suas parábolas e construções alegóricas qualquer interpretação dualísta,
maniqueísta, realista ou panfletária.

O filme é um ensaio político e poético, situado num terreno em que o onírico nasce do
real. Toda a linguagem é distorcida por falas literárias, textos projetados, repetições,
discursos tipificados que no seu conjunto estão a serviço da destruição dos significados
prévios e estereotipados das interpretações da nossa história política. É na violência
antropofágica que Glauber Rocha acorda o espectador que busca um líder, ou um
caminho a seguir para compreensão do filme.

Aqui também não há redenção possível como anuncia o melancólico e antropofágico fim
de Macunaíma, ao som da marchinha patriótica embalando a bandeira verde
ensangüentada, resto da devoração do herói pela Uiara. O intelectual, poeta, jornalista e
político Paulo Martins é um emblema para significar toda uma classe social que se
mobilizava para pensar mudanças no Brasil dos anos 1960.

O retrato criado dos caudilhos delirantes, dos populistas autoritários, e da herança


colonial determina o lugar e função do povo que só aparece no último plano, compondo o
quadro da elite e de seu apetite insaciável. Os fatos concretos são pretextos para a
encenação do conflito, da luta que é travada na alma do moribundo que revê e dá sentido
aos momentos de sua vida que se esvai. O fracasso e a fraqueza de um percurso que se dá
no transe entre dois senhores, entre duas mulheres e entre a política e a poesia.

Glauber produz uma crítica atroz aos messianismos populistas e seus voluntarismos
românticos, construindo uma visão supra-real, na qual o continuum da devoração de
fracos e fortes é produzido pelo movimento do transe, proposto ora pela imagem, ora pelo
som ou pela montagem. Esse texto, escrito com um uso original do dispositivo
cinematográfico, não se entrega fácil ao espectador, obrigado ele mesmo, a se deslocar e
perder sua própria consciência, ao entrar em contato direto com a obra, como desejava o
diretor.

Para Glauber Rocha, a problemática da consciência presente em todos os seus filmes, não
é abordada como programa didático, mas na forma cinematográfica do transe que não
visa alcançar nem a boa, nem a má consciência, mas a possibilidade do movimento e da
mudança. Por isso impede qualquer tipo de proselitismo, ou mensagem política explícita
não deixando os personagens escaparem da sua análise crítica, que se faz pela distorção e
exagero, operadores estéticos da arte barroca.

Ao escolher a agonia do intelectual para narrar a epopéia de Eldorado, Glauber Rocha


denuncia o abismo que separa os que pensam serem os donos da consciência, como os
intelectuais pensadores brasileiros e a realidade do país. O filme é um espelho
multifacetado cuja imagem polimorfa não coincide mais com qualquer referente,
impedindo a identificação em nível temporal ou espacial e na qual as sonoridades, a trilha
e a fala poética é que constroem o sentido.

Glauber incorpora ao método antropofágico uma outra forma presente nas culturas
tradicionais indígena e africana, que é a de tomar posse do outro pela alteração do estado
de consciência, como ocorre no transe místico, estabelecendo um novo pacto com o
espectador. A começar por reconhecer que todos têm o direito a sua própria consciência,
no estágio em que ela estiver, pertencente à classe social, política ou cultural a que
pertencer, boa ou má, à esquerda ou à direita, a favor ou contra os poderosos, a favor ou
contra o povo, ou aos menos favorecidos, inclusive da própria consciência.

Alteração de si
O filme anuncia o transe logo na primeira cena onde vemos o mar e o continente do país
interno – Eldorado, embalado por um canto africano, o mesmo som do candomblé de
Barravento, primeiro filme de Glauber, onde ele denunciava a alienação das crenças
africanas as quais estavam submetidos os pescadores e a comunidade de Buraquinho,
praia do litoral da Bahia. No segundo momento, entramos no transe por meio de dois
dispositivos: a câmera de mão de Dib Lutfi, e o som quase histérico de uma bateria que
simula tambores militares e coreografa os inúmeros deslocamentos dos personagens no
terraço de Vieira, vivendo a crise da deposição do governador.

Não há como resistir, e somos tomados por essa onda de ritmo e movimento que nos
levará de um lado ao outro até o fim do filme. É como se na primeira cena o espectador
fosse vítima de um passe mediúnico no qual baixaria o santo obrigando-o a atravessar
junto a agonia do narrador póstumo, e fio condutor da epopéia. Isso se dá porque o
particular nessa história é o Brasil de ontem e sempre, mas também a América Latina e
suas relações colonialistas e de poder com os países externos,(Europa e os Estados
Unidos). Na sua reversibilidade (externo-interno), oprimidos, opressores, oprimidos
opressores, opressores oprimidos, a saga de Paulo Martins, além de ser a nossa, diz
respeito a todos os seres humanos e atinge aí o universal.

Esse fluxo de imagem e som que se segue propõe mais do que a fruição ou a reflexão
(como em Eisenstein e Rossellini), mas uma experiência real, um contato com o ser
Brasil, construído e reconstituído em alegorias pela combinação cuidadosa e detalhada de
seus emblemas. Em cada quadro, está assegurado o lugar para o representante das elites,
das forças armadas, da militância política, do poder executivo, das forças populares, da
santa igreja católica, signo esse proliferado na evocação da cruz e da fé. Não há no
entanto, qualquer figuração naturalista, o que impediria a ampliação dos sentidos e a
compreensão das parábolas dentro da visão de cada espectador.
As formas criadas não buscam parâmetros, padrões que permitam qualquer mensagem
explícita, porque tudo, absolutamente tudo, leva ao conflito, a um estado de instabilidade.
Não há um instante em que o movimento cesse, sempre proposto em mais de um registro.
O quadro enquanto dispositivo da construção metafórica do país é arruinado a cada
momento por um movimento brusco da câmera de mão ou por uma fala ou gesto
violento. O constante estado alterado de consciência do moribundo narrador produz a fala
delirante e poética do personagem, nos conduzindo sempre ao simbólico, ao abstrato, em
choque com a dureza realista das imagens, com as quais temos que nos identificar.

Tudo aqui está em excesso. A floresta, a floresta, a floresta. O sol, o sol, o sol. A
exuberância tropical é sufocante em contraposição a todos os estados de carência e de
falta presentes nas situações apresentadas. Na falta de terra para os pobres, na falta de
sinceridade dos políticos, na falta de coerência dos intelectuais, na falta de visão das
esquerdas, na falta de compaixão das direitas, na falta de coragem dos oprimidos, na falta
de saída para o pais. O ceticismo da elite e dos brasileiros é ilustrado pela fala do
magnata Júlio Fuentes, que ao ouvir de Paulo Martins a afirmação de que o país tinha
outra saida que não a dos caudilhos Fernandes ou Diaz, pergunta, para onde?

Apesar de uma aparente marcação que estrutura o papel desempenhado pelas


representações dos personagens no grande quadro brasileiro, no qual o povo é fundo, ator
coadjuvante ou mera figuração a não ser quando é folclorizado, ou incitado a falar, as
situações são quase sempre cambiantes, tendendo a desordem, ao descontrole. Nos
diversos eventos onde o povo está presente, a dialética homem – massa, passivo –
revolucionário é posta violentamente em questão. Uma interpretação afirmando que
Glauber quer mostrar a passividade, a fragilidade do povo brasileiro diante dos
poderosos, ou a incoerência dos intelectuais, comprometidos com a própria visão da
classe a que pertencem, seria reduzir a movimentação das consciências internas e
externas ao filme, ali expostas na crueldade das falas e das imagens implacáveis, sem
qualquer traço paternalista ou de boa consciência. A estética da fome é radicalizada no
intuito de captar o invisível do visível, de fazer ouvir o que não é audível e que só cabe
no drama, que a todo momento nos remete às formas polivalentes do barroco.

A principal delas é a polifonia composta entre as falas, trilha sonora e sons incidentais,
quase sempre percussivos, sem qualquer relação imediata com as imagens. Daí o adjetivo
operístico utilizado de forma apropriada em várias análises do filme, já que ele funciona
como uma ópera orquestrada ao som dos brasileiros Carlos Gomes, Villa Lobos e Sérgio
Ricardo e do compositor italiano, Verdi. Sobre esse último, Sérgio Magnani descreve os
elementos da sua ópera realçando o papel do coro, como o do povo, do anseio coletivo,
da paixão pela pátria e da terra e da angústia de luta e de libertação. Segundo ele,

“Em tal atmosfera incandescente, pouco importa a palavra em si, interessa um


teatro de situações, marcado por uma tensão ética rumo à catarse final, com
personagens de todos os relevos, verdadeiras apenas no sentido de uma humanidade
ideal, absolutamente boa ou absolutamente má, incapaz de concessões hipócritas ou de
arrependimentos.” (MAGNANI, 1996:183)

Todas essas afirmações serviriam para caracterizar analogamente o tratamento do filme


como um todo e demonstra a intensidade de significados da trilha para a expressão
fílmica, nos variados momentos em que a misé-en-scénè é coreografada e regida pela
música e pelo som.

Enquanto um elemento fundamental do transe místico do camdomblé, da Umbanda e dos


rituais indígenas, as músicas, a percussão e as metralhadoras como os atabaques dos
terreiros prefaciam e finalizam os diversos momentos de ocorrência do transe no filme.
Em quase todas as sequências, há um desenvolvimento rumo ao transe, num crescendo
que no lugar de distender a tensão, amplia e aprofunda o conflito, o choque encenado
pela câmera anímica que coloca o corpo do próprio diretor em cena. Câmera tátil que toca
pele e osso, e quase sempre sangra junto com os personagens, aviltados, assassinados,
violentados ou ensandecidos.
Por uma postura e escolha brechtiana, Glauber não faz melodrama, produzindo
estranhamento e distanciamento no lugar de identificação, com a penúria distorcida das
ações e reações dos personagens, em nada agradáveis. O filme toca sonoramente os
nervos dos espectadores convidados ao contato quase físico com tudo o que constitui a
essência do drama social e político do país. As elites decaídas e desumanas, a sede de
poder, o interesse privado acima do interesse público, as ilusões esquerdistas, o
caudilhismo, o peleguismo, a exploração da imagem de um povo chucro sem qualquer
autodeterminação, e sobretudo com a incipiência da consciência representada pelo
protagonista vacilante, romântico, anarquista e irremediavelmente vencido.

A densidade do transe é também construída no iconográfico, no pictórico ou cenográfico


num desfile de formas compostas entre a luz natural e o barroco tropical das plantas,
árvores, jardins luxuriantes, quadros naturalistas, esculturas de Aleijadinho, compondo e
ornamentando os personagens. Esse aspecto, também comum à cinematografia brasileira,
foi responsável pelo grande clichê da bonomia tropical registrada em signos de cartão
postal (bananas, abacaxis, coqueiros, corpos nus, pão de acúcar etc).

Aqui a matéria é outra. Eldorado era o sonho dos colonizadores, uma terra mítica, rica em
metais preciosos, florestas, pássaros e animais raros que contagiaram o imaginário dos
exploradores europeus. A atmosfera do filme produz um efeito de ressonância no espaço
ampliado, como se as ações pudessem reverberar no cenário da floresta, ou na luz tropical
estourada. Tomadas aéreas e planos gerais nos dão a dimensão das áreas verdes e mesmo
do chão (filmadas no Parque Lage) tomamos contato com as plantas da floresta da Tijuca,
com seus excertos de mata atlântica.

O personagem Porfírio Diaz é a constante do transe, apresentado sempre em tom de


desvario, trazendo para o primeiro plano as imagens da tradição cristã, do arcaico e da
herança colonial, esculpidas em alegorias carnavalescas onde o luxo é acentuado. Nas
cenas de interior da sua casa, locadas no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com seus
vitrais franceses, colunas e corrimões dourados completam o perfil do personagem
solitário e poderoso. A figuração de Diaz é criada em contraposição a qualquer tipo de
racionalidade ou explicação, o que acaba por produzir uma estranha verossimilhança com
a cena nacional em qualquer momento histórico ou histérico do Brasil. Impossível
reconhecer nele apenas uma referência como a do insano e popular Jânio Quadros ou de
Carlos Lacerda. Na sua verve barroca, caberia uma galeria de homens públicos que
encenaram e encenam a tragicomédia da política brasileira.

A montagem é metalinguagem do transe. Algo que se dá entre as coisas, que cria ou


rompe os elos possíveis, transformando os estados pré-existentes. Segundo os registros
do filme, o primeiro montador pediu demissão porque Glauber quebrava todas as regras
de edição fílmica. É aí que se revela o seu intuito e digamos, o seu método. Segundo o
diretor, a montagem era parabólica, em curva e não em linha reta, e como nas parábolas
da Bíblia, deveria falar de uma coisa para dizer outra, como nas construções alegóricas,
cujo sentido nasce da destruição, da ruína da coisa representada. Apesar de ser narrado
em flash-back, o que justifica os saltos, trafegamos na memória do protagonista, sem que
a narrativa busque uma coerência do ponto de vista da linearidade. Os quadros são
montados de maneira a aprofundar o conflito que ocorre internamente a ele, acentuado
pela movimentação, pela representação emblemática, pela rigidez ou fluidez da relação
fundo figura.

O transe da consciência

Narrado em flash-back, por um moribundo, o filme reconstitui a memória de Paulo


Martins, poeta que se encontra à morte e recupera todo o processo político e pessoal que
aspirava uma articulação entre sua poesia e a política. Segundo Picado (1991:54),
“essa é uma visão privilegiada do autor, como constituição de sua consciência –
que se desdobra em formulações precisas, ainda que não denotadas, sobre a
questão da nacionalidade como fundada numa filosofia da consciência (grifo
meu).”

Como é característico da obra de Glauber, não há a figura do herói já que o próprio poeta
encontra-se emaranhado nesse processo, frustrando a nossa tendência natural em idealizar
o protagonista, que é visto pelo diretor de maneira crítica. Para Robert Stam (1981;41-2),
isso caracteriza uma recusa das convenções do realismo dramático, na criação de um
narrador póstumo, como em Brás Cubas de Machado de Assis. Assim, a memória de
Paulo Martins se constitui numa auto-análise implacável de onde surge o passado de
Eldorado, sem qualquer encantamento. Picado (1990:57) chama atenção para a forma
como essa memória vai ser erigida caracterizando uma reflexividade do olhar e uma
recusa de Glauber em fazer coincidir o pensamento com a realidade. Para ele,
“A imagem virtualizada da memória do poeta em Terra em Transe é uma unidade
entre um modelo não atualizado de lembrança e uma imagem conceitual, produto
de uma intelectualização do processo de articulação das imagens.”

A imagem de Diaz condensa de forma alegórica todos os signos das nossas tradições
étnicas, religiosas e culturais que, segundo Picado, faz com que vejamos “esses seus
traços constituidores atribuídos pela imagem, de uma forma quase instantânea – seria
quase que uma atribuição sem narração”(1990:60).

A categoria estética do transe assume abertamente a impossibilidade de se falar o Brasil


de uma forma coerente, lógica numa perspectiva lúcida. Então resta ao diretor a
possibilidade de fazer mover as consciências sem que isso se apresente como uma
direção, um foco, uma “boa consciência”. Os heróis glauberianos são fracos, indecisos, se
alternando entre aquilo que idealizam para si e para o país e aquilo a que se submetem,
num transe contínuo, onde a consciência oscila entre o delírio e a realidade, submetido a
uma tortura, como protagoniza Paulo Martins. Mas também os outros personagens estão
entre o estado de lucidez e de inconsciência, e assim o espectador não tem a quem seguir,
estranhando a cada movimento do pensamento a condição de sua própria consciência: o
que eu penso diante da afirmação de que o povo é imbecil e analfabeto?
Entre a boa e a má consciência, Glauber produz em nós uma consciência em transe,
fazendo com que o público se identifique não com o filme, mas com o país, e assim tome
consciência da sua própria existência.

Sua propedêutica diz respeito aos elementos para a construção também de uma
linguagem em transe, que elege o gênero da epopéia como narrativa, elevando a
representação de personagens à generalidade do humano. A épica, que para Glauber é
uma prática poética que do ponto de vista estético projeta o ético, narra uma determinada
saga dos povos da América Latina e do terceiro mundo, e daí a importância de marcar
com elementos da realidade o seu caráter. Criar emblemas que facilitam e ampliam o
significado de cada personagem, sempre sugerindo uma galeria de tipos de tal forma bem
construídos que podem resistir ao tempo e às mudanças que ocorreram na sociedade
brasileira por que refletem os mitos estruturantes dessa realidade.

Glauber reconhece o potencial ideogramático do audiovisual que se justifica porque


sendo o mito um ideograma primário, ele serviria para nos auto-reconhecermos. Aliando
isso ao traço fundamental de uma cultura historicamente ligada à saga, ao épico, onde a
língua e o mito materializam as tradições, as crenças e principalmente as relações
arcaicas de dominação. O ideograma se prestaria à criação de um cinema que não se
pretendia enquanto discurso mas enquanto experiência.

Em Terra em Transe, as alegorias são o procedimento que permite a transição entre essas
imagens esculpidas no movimento entre mostrar e mascarar, até que se cumpra a
significação, que é resultado dos contínuos massacres e ruínas processadas ora na
imagem, ora nas falas ou no som, ampliadas pela eficiência simbólica que regula a
montagem.

No filme Di/Glauber, quase dez anos depois da realização de Terra em Transe, Glauber
retoma o tema da morte e do transe, experimentando um formato que incorpora o
documentário, a videoarte e a televisão.

Di e a manducação glauberiana.

“Di foi pra sempre embalsamado, como um faraó, num documentário de


Glauber que constitui, na minha opinião, a mais eloqüente negação da
morte em toda a história das Artes no Brasil.. filme que transformou um
velório no MAM na mais pertubadora obra de arte jamais exibida num
museu...Glauber tinha aprontado Di para a eternidade. Além dos quadros
e desenhos, Di ia durar ele próprio.” (Antônio Calado in: FINKELSTEIN,
1986: p8-9)

O enterrro de Di Cavalcanti serve a Glauber para reavivar a memória dos seus


antepassados, recalcada pela “catequese e pela repressão colonial”, e libertar suas
imagens e sons, aprisionados por um trauma secular.

O filme se baseia no confronto das forças que fabricam e marginalizam a cultura


brasileira, que jaz no caixão. Mote inicial do rito funerário poético que será construído ao
longo dos seus 18 minutos, sem perder nunca de vista a ambigüidade que potencia o
canibalismo que ali será praticado como dispositivo retórico, aspecto esse nem sempre
bem compreendido pela intelectualidade crítica de Oswald de Andrade e pelos analistas
dos filmes de Glauber.

O filme é um ato de vingança. Vingança no estilo Tupinambá, vingança dos parentes


devorados pelos contrários e também anúncio da futura vítima, que é o próprio diretor. A
vingança como instituição que produz a memória do grupo, já que ela não é outra coisa
que essa relação com o inimigo, que permite que uma morte individual dê vida longa ao
corpo social (CASTRO, 2002:233-234). Isso filia o filme ao modernismo e se realiza
como neo manifesto antropofágico5, em que operam as palavras desordenadas, o conflito
entre as imagens e o choque harmônico musical.

Na vingança antropofágica só existem iguais6. Por isso a atitude fundamental da


antropofagia oswaldiana é a anti-hierárquica, contrária à noção naturalizada de atraso

5
Aqui é a forma que está em questão, já que a antropofagia é um pressuposto assumido pelo diretor em
toda sua obra.
6
Para Rubens Caixeta “o princípio antropofágico tal como praticado pelos índios americanos pressupunha
grupos sociais distintos partilhando em pé de igualdade de um mesmo universo cultural, no qual nenhum
era ou se considerava superior ao outro.” In CAIXETA, 1999. p.41. Segundo ele, a antropofagia não
poderia se dar entre modernistas e vanguardistas europeus porque não haveria pé de igualdade entre eles. A
meu ver, o autor não compreende o seguinte: 1.A antropofagia Oswaldiana modernista é uma metáfora que
simboliza a recuperação da força ancestral para combater o trauma cultural herdeiro da repressão jesuítica
que instituiu essa diferença que não existia entre os tupis da Costa e os europeus que aqui chegaram. Esses
grupos, como demonstram os relatos de viajantes e padres, tinham desejos mútuos de absorção de valores
devida a decalagem de tempo e espaço que os povos da periferia mundial estariam
condenados, já que por origem habitam as margens do centro. A perspectiva
antropofágica é crítica e produtiva ao estabelecer a troca com os outros desejados, e para
determinar o lugar do significado cultural inscrito nas próprias obras.7

Na antropofagia modernista o outro é uma heteronomia necessária para a constituição de


autonomia, o que inverte e supera tanto a sua assimilação hierárquica quanto qualquer
idéia de atraso ou de descompasso. Na antropofagia ritual Tupinambá, a devoração do
outro é constante por duas razões fundamentais - para manter as relações de troca que
produzem o movimento e para garantir a mudança e a permanência do mundo. Essa é a
herança Tupinambá que Oswald de Andrade soube capturar na sua essência, muito antes
de Lévy-Strauss escrever suas Mitologias. Portanto, a carência do outro na cultura
brasileira não se deve a uma falta contingente (pobreza, atraso, indigências de qualquer
tipo), mas por um desejo sempre irrealizado de transformação, que estava pré-figurado na
filosofia dos habitantes da costa brasileira do século XVI. Aqui a morte é concebida
como positividade necessária para a fabricação do futuro (CAIXETA, 1999:42).

Di/Glauber é um efeito demonstração da antropofagia no qual Glauber reedita as


principais características do ritual de captura, morte e devoração do inimigo, resgatando a
memória dos seus antepassados modernistas. O filme marca na obra de Glauber uma
transformação como a operada pelos guerreiros Tupinambá, que depois do ritual
mudavam de status dentro da tribo, ganhando um novo nome, escarifações, mulheres e
principalmente, o poder de falar em público, ampliando o grau de autonomia frente ao
grupo (ALMEIDA, 2002). Glauber fecha um ciclo do seu trabalho nesse filme, criando

uns dos outros. No Manifesto Antropófago, Oswald inverte a hierarquia da absorção dos valores
eurocêntricos demonstrando que esses dependeram em muitos casos da descoberta do outro americano. Diz
ele, “Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.” 2.A antropofagia
modernista vai permitir o diagnóstico dessa situação produzindo pela linguagem ou metáfora poética, a sua
superação.
7
Isso vem se materializando hoje nos movimentos das periferias dos grandes centros urbanos como atesta a
neo antropofagia proposta pela Semana de Arte Moderna 2007 conceituada em seu Manifesto da
Antropofagia Periférica. http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG79089-6014-
487,00.html
novas possibilidades de interação entre a obra, o real e o espectador o que será
posteriormente desenvolvido na sua atuação para o Programa Abertura e levado ao cabo
em A Idade da Terra. Essa liberdade de absorver a heteronomia adquirida na devoração
de toda e qualquer diferença é transubstanciada na afirmação de uma autonomia frente a
linguagem cinematográfica.

Sobre o cadáver de DI Cavalcanti


O trabalho de Glauber em Di é decalcar, como faz o restaurador de imagens ao retirar as
camadas de tinta que escondem o veio da madeira, que será depois lixada e encerada para
ser vista nua.

Para realizar essa transformação, o filme toma como objeto a morte, a morte no cinema, a
morte do ciclo modernista, a morte enquanto impossibilidade de realização de um projeto
autônomo da cultura nacional, para questioná-la. Di/Glauber, representa tanto o
movimento das idéias e da cultura, condensados na obra e vida do pintor Di Cavalcanti
como a própria situação do cineasta, nesse mesmo cenário. Fundido ao ilustre cadáver,
Glauber vai utilizar os recursos do cinema para encenar a devoração ritualística do artista,
ou nas suas palavras, para vencer o dragão, entidade que representa a dimensão mítica
das forças contrárias e poderosas que impedem a afirmação e o reconhecimento de uma
cultura genuína e vigorosa. É o dragão da maldade em sua eterna luta contra o santo
guerreiro, São Jorge, que Glauber também encarna como seu próprio personagem no
filme (ROCHA, 198?).

Para comer Di, Glauber vai incluir na sua desnarração todas as formas literárias e
midiáticas de produção de notícias, de fatos, de eventos da televisão, do rádio ou do
cinema. A página policial, o fait-divers, a crítica especializada, a narração de futebol são
utilizadas como formas iconoclastas que operam a dessacralização do ritual católico,
transformando-o em ato xamânico antropofágico (FONSECA, 1999: 50-57). Glauber
assume a figura do afim incumbido de levar Di do mundo dos vivos ao mundo dos
mortos, utilizando personagens e aspectos narrativos do mito de Orfeu e Eurídice. Essa
operação crítica que funde fato e mito causa imediato estranhamento no espectador que
não sabe mais sob qual registro deve acompanhar o desenrolar do funeral.

O documentário foi realizado entre o período da ditadura e a abertura política que


começava a ser tramada nos gabinetes do poder. Glauber politiza sua estética: ressuscita
JK e Jango, retirando o Brasil do caixão. No mito órfico, mote da narrativa, Orfeu desce
aos infernos para resgatar a alma de Eurídice, ousando ver o invisível. O cinema se presta
a essa operação – fazer ver o invisível. Portanto, o que vemos é a construção de um ritual,
de uma celebração que tenta pela intensa movimentação, pela música e pela dança fazer
jus à cor, a forma e intensidade da pintura viva de Di.

Logomaquia glauberiana

Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos. (Jornal do Brasil, quinta-


feira, 28/10/1976. Primeiro Caderno, página 15.)
Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos.
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12. Corta!
Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul
marinho, casaco azul claro... Corta!
(...)
Filmagem causa espanto e irrita filha e amigos.
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12. Corta!
Agora dá um close na cara dele! Barba por fazer, calça de brim azul
marinho, casaco azul claro, camisa esporte quadriculada, sapatos
marrons.

Um ritual antropofágico cinematográfico modernista do cinema novo. Glauber opta nesse


filme por uma elaboração audiovisual estrito senso. Não escrever ou dizer com imagens e
sons, baseando-se ainda nas referências textuais ou da palavra dita. Produzir ideogramas
copulativos como queria Eisenstein, mas a partir da destruição da matéria fílmica. Morte
das formas pré-existentes para sua recriação.

O conflito de imagem e som tem origem no trauma repressor simbolizado pelo funeral
católico, que faz da morte uma tragédia e ato de constrição, opondo violentamente a ele a
vitalidade da obra de Emiliano Di Cavalcanti, orquestrada pelo ritmo do corpo de Pitanga
ao som de Lamartine Babo, ambos parentes do morto. A despeito do valor atribuído pela
crítica cultural, as imagens resgatam aos nossos olhos, o vigor, a beleza e espontaneidade
registradas nos quadros, animados pela dança da câmera e do ator Antônio Pitanga.

Os índios Tupinambá tinham pavor de apodrecer e de serem enterrados e comidos pelos


vermes, daí preferirem ser devorados pelos inimigos ou por seus afins. É o que Glauber
Rocha tenta evitar que aconteça ao cunhado. Ao unir-se ao corpo do artista, Glauber leva
ao paroxismo uma das dimensões da antropofagia enquanto devoração, que é seu poder
curativo e terapêutico, capaz de “libertar o morto de sua hipócrita-trágica condição”
(GLAUBER, 198?).

Mas é o debate final entre o executor e o cativo que é exemplarmente metaforizado no


filme, na produção de uma verdadeira logomaquia, gênero que o diretor inventou e
desenvolveu com absoluta maestria. Nesse acerto final de contas, entre o que vai matar e
o que vai morrer se dá todo o sentido da cultura Tupinambá. A arenga que acusa o outro
de ter devorado os parentes é o signo da vingança que ali se completa, e se mantém na
réplica do cativo prometendo que os seus o vingarão e confessando que aquela carne que
será comida é também a daqueles contrários já alterados em si. Essa é a revelação do
significado do tempo e da memória contidos nessa guerra de palavras.(CASTRO, 2002).
Em Di, o conflito se dá entre as vozes que se multiplicam acionadas pelo próprio
narrador, variando pelo tom, pela contrariação das afirmações, pela violência explícita:

A palavra do Di Cavalcanti! A palavra do Di Cavalcanti!


Di por Di! As vozes do túmulo: “sou um gênio, um velho, uma gloria
nacional! Não encham o meu saco!”

Tacapeando valores estéticos, destruindo a noção de discurso e promovendo uma


mudança perceptiva no espectador, Glauber tira seu canto novo, como dizia Mário de
Andrade (1982), explicando a formulação da disputa que ocorre no interior do repente
nordestino, utilizado como forma narrativa pelo diretor.
Transe e barroco
Pelo transe entre imagem e som é criada a polifonia e polimorfia barroca, explicitada na
menção feita por Glauber, da influência dessa arte na obra de Di. O diretor nos mostra a
percepção de uma série de percepções que conformam e deformam a visão da arte
brasileira. No centro, a arte popular, as manifestações da cultura popular, as
representações da imagem e dos sons do país animados ao ritmo de sambas e cantos
tradicionais e de Villa-Lobos. Os modernistas redescobriram o país e inventariaram suas
formas folclóricas que Glauber ali exprime em tons fortes, revelando o traço vigoroso
dessa multiplicidade.

“Dorival Gomes Machado, diz que a pintura de Di Cavalcanti é uma


expressão que apanhou, em sua tecitura vital, a realidade brasileira. E
com tal identidade e essência, que faz lembrar a milagrosa
correspondência entre o barroco seco de Minas Gerais e a feição desta
província misteriosa. Talvez, se pudesse ir mais longe, há algo de
semelhante entre a mulatização de Nossa Senhora nos céus da capela
franciscana de Ouro Preto, levada a cabo por Ataíde, e a madonização da
mulata na pintura de Di Cavalcanti.”

Um Brasil lusitano, africano, indígena, massarábico (sic)!

Na cinematografia de Glauber é possível identificar o traço barroco como uma marca da


sua concepção imagética e da produção de formas plurais e polifônicas. Numa busca
constante de produção do descontrole, de maneira a propor a prevalência do acaso sobre
o roteiro criando momentos únicos decorrentes ou que evoluem para o transe.

O transe como categoria estética plurívoca permite a passagem entre estados emocionais,
que leva a momentos de crise e aponta para o que ainda não há. Essa escolha sempre
arriscada revela o desejo irresistível de libertar o espectador da imobilidade da
consciência, forçado a entrar na dança das imagens, palavras e sons.
Com poderes mágicos de um pagé, o diretor homenageia o Quarup, festa indígena de
celebração dos mortos e ressuscita Di. A morte em Di, como afirma Glauber, é um
massacre dialético que se autodefine na síntese fílmica e “é do expurgo que sobram as
metáforas vitais.” Glauber descreve aqui o procedimento alegórico, recorrente na
elaboração parabólica de suas obras, onde a destruição e a violência operam a
consciência. Para o autor, filmar a morte de Di além de ser um o ato de humor
modernista-surrealista era uma forma de resistência. Fênix Glauber, morto e renascido, se
identifica com o defunto, com a morte de um ciclo (o dos modernistas brasileiros) que se
encerra naquele caixão. Como prato de um banquete antropofágico, Glauber oferece aos
espectadores o debate vivo da cultura brasileira que suscita as “grandes indagações
metafísicas”, como ironiza o diretor.

Transe – um operador estético da antropofagia

No seu livro Diários Índios, Darcy Ribeiro (1996) anota aspectos cotidianos dos grupos
Urubu e Kaapor, do alto-xingú narrando seu cotidiano. Segundo o antropólogo, um
desses grupos costumava acordar diariamente com um choro de criança em torno das
3:30 da manhã, e então começava uma intensa movimentação em torno do fogo para
fazer o chimbé, seguido do entoamento de cantos e danças que contaminavam toda a tribo
e se transformava numa animada cerimônia, antes mesmo do galo cantar. Assim ficavam,
por quase duas horas quando então voltavam às suas redes para descansar, principalmente
em dias de chuva.

Essa disposição natural para a alteração do estado de consciência de maneira coletiva é


algo que podemos testemunhar em todas as tardes de domingo nas diversas fases dos
campeonatos nacionais de futebol. Rumores, gritos, tensão, chingatórios ou gritos de
alegria sem fim, culminados em foguetório. O seu paroxismo é atingido na festa máxima
da nação – o carnaval, expressão absoluta do transe, em que a alteração pode ser vivida
sem qualquer repressão. Também os rituais religiosos brasileiros, de maneira mais
regrada, são lugares para sua expressão, incluindo igrejas pentecostais, o catolicismo
carismático que parecem necessitar da energia liberada no transe para fazer face aos
rituais dos inúmeros espiritismos, da umbanda, do candomblé e xamanismos. A vivência
do transe numa sociedade cuja constância é a crise nos é familiar e necessária. Ela parte
de um princípio simples e acessível a todos de que se há um lado, há também outro que
se pode sempre atravessar. O movimento inscrito no transe une vida e morte, o visível e o
invisível criando um lugar que só existe no seu próprio fluxo. Aquilo que Rosa chamou a
terceira margem do rio, do qual foi o seu maior mestre. O transe antropofágico poético
modernista, cinemanovista ou tropicalista que se dá na linguagem, ou na produção de
uma língua que recria a memória e inventa o mundo.

Portanto, o que Glauber produz como um marcador do seu pensamento audiovisual, na


operação do transe presente nos dois filmes analisados é ao mesmo tempo uma expressão
de um modo de ser de uma sociedade, fruto ela mesma de um intenso trânsito étnico e
cultural, sempre atravessado de violência, conflito e perigo. A matéria fluida do transe é
metáfora da incerteza, da instabilidade, de transformação e mudança sempre colocando
em risco os estados pré-existentes. Por isso sua propedêutica incluía a excitação, a contra-
informação para a produção do acaso, encarnado na crise dos personagens. São inúmeros
os depoimentos de atores e técnicos que trabalharam com o diretor e sofreram com o seu
método implacável.

Se nada fica intocado pela metralhadora implacável do diretor, é desse arruinamento que
surge a obra de arte, nesse fluxo de dor e sangue, declarando na morte insignificante do
protagonista de Terra em Transe, o triunfo da beleza e da justiça. O princípio estético é
indagado a todo momento e colocado às vistas para a nossa perplexidade ao mesmo
tempo que nele reconhecemos algo que nos é próprio e que diz respeito a nossa
originalidade. Para Stam (1981:38), no entanto, há nesse filme uma espécie de exorcismo
artístico no qual Glauber Rocha purga seu próprio romantismo. O filme mostraria que
atitudes românticas não teriam mais lugar num mundo sujeito ao transe, o que ele mesmo
levou a cabo, provando com a sua morte prematura que a poesia e a política eram demais
para um só homem.
Terra em Transe se representa e reitera a contradição da alma brasileira, entre o que
espera que o país seja e aquilo que é, propõe que essa impossibilidade se transforme em
trunfo, em base para uma futura sociedade humana mundial, como sugere Jarbas
Medeiros (1987). Ou nas palavras de Glauber, “Construir uma civilização na América
Latina a partir de sua realidade mesma de dor, de podridão, do circo.” (MEDEIROS,
1987).

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