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cura, bem como compreender os cantos dos espíritos yovevo, citados ou transportados
através do corpo/casa do xamã romeya. Tal “fala-pensamento” possui diversas
semelhanças com a conhecida “linguagem torcida” (tsai yoshtoyoshto) yaminawa
estudada por Townsley (1993: 460), empregada “para examinar as coisas com cuidado –
para vê-las com clareza” (ibidem), como explicava um xamã ao autor. Guardadas as
devidas ressalvas com relação ao caso marubo – para o qual o uso da ayahuasca não
articula um xamanismo baseado exatamente na experiência visionária individual, tal
como entre outros povos pano2 –, a afirmação é válida para a dinâmica de pensamento
subjacente às fórmulas poéticas que examinaremos aqui. Válida, sobretudo, por indicar
o caráter necessário do emprego metafórico da linguagem no xamanismo, uma vez que
ele oferece ao xamã o conhecimento sobre o surgimento (wenía) ou a formação (shovia)
de todos os entes do cosmos – conhecimento, aliás, cujos elos de transmissão estão
ameaçados nos dias de hoje. É por desconhecerem tal emprego da linguagem, por
exemplo, que os jovens adoecem: adoecem porque “não têm pensamento” (chinã
yama); não conhecem as entidades existentes em sua completude e estão, portanto,
permanentemente sujeitos às ameaças do campo sociocósmico.
Ora, mas o que é isso que a “fala-pensamento” permite apreender e que escapa
aos jovens? Trata-se de algo referido pelos termos yochĩ ou vaká, normalmente
traduzidos pela etnografia como “alma”, “espírito” ou “essência vital”. Chinã, termo
polissêmico, pode, além de “pensamento”, designar também algo que as “coisas” têm
(chinã aya) ou não (chinã yama); é traduzido por “vida” por alguns Marubo, que muitas
vezes escolhem esse mesmo termo para traduzir yochĩ ou vaká. Townsley diz muito
rapidamente em seu artigo que “em um sentido, então, um yoshi [o correlato yaminawa
do yochĩ marubo] é simplesmente o conjunto das características empíricas da coisa à
qual está associada, hipostasiado e alçado ao patamar de um ser independente – uma
essência” (idem: 453). Diz ainda que “na mesma medida em que yoshi são uma parte da
natureza e dos corpos que animam, estão ao mesmo tempo muito além deles, em um
domínio onde até mesmo os yoshi de árvores e insetos vivem vidas inteligentes e
2
Os Marubo não fazem uso da ayahuasca (Banisteriopsis caapi) combinada com a chacrona (Psychotria
viridis). As sessões xamânicas nas quais o uso da ayahuasca pura se faz presente não são, portanto,
orientadas pelas experiências visionárias individuais bastante comuns em outros xamanismos pano,
tukano e arawak, mas sim pela diplomacia sociocósmica e visitas dos espíritos yovevo que chegam no
corpo/maloca dos xamãs romeya. Utiliza-se da infusão do cipó Banisteriopsis caapi para que seu dono ou
espírito, Oni Shãko ou “Broto de Ayahuasca”, auxilie a pessoa a cantar, a memorizar longos cantos e a
permanecer desperta por toda a noite. A experiência visionára ou excorporada propriamente dita é
realizada pelo duplo/alma do xamã romeya, o foco de atenção dos outros membros de uma sessão ritual.
Mais considerações em minha tese de doutorado (Cesarino 2008) e em Montagner (1985, 1996).
3 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
volitivas” (idem: 452). Natureza, sobrenatureza e certa relação entre matéria e essência
(ou alma ou espírito) estão portanto aí articuladas, assim como em diversos outros
estudos sobre xamanismos amazônicos e ameríndios: em que medida são, porém,
suficientemente acurados tais pressupostos para a compreensão da articulação suposta
pelo xamanismo entre uma entidade visível e seu aspecto invisível? Mais ainda, o que
determina o corte entre o “natural” e o “extra” ou “sobre”natural? Porque “até mesmo”
árvores e insetos podem viver vidas inteligentes? Porque são entes, digamos, de baixa
estatura ontológica se comparados a humanos? E segundo qual conjunto de
pressupostos?
Em um estudo sobre os Kaxinawá (também falantes de Pano, tal como os
Marubo e os Yaminawa), Keifenheim diz que, “na visão de mundo dos Kashinawa, toda
coisa existente é constituída de matéria e de espírito. Os dois são fenômenos da criação
e não podem em caso algum existir isolados uns dos outros.” (2002: 99; ver algo similar
em Lagrou 1998: 49; 2002: 35). A articulação entre dois (elementos? substâncias?
posições?) é mesmo um dado incontestável das ontologias xamanísticas, mas não os
termos a partir dos quais costuma ser descrita ou traduzida. É sabido que a noção de
natureza (e também a sua oposta complementar, a de cultura) coloca entraves para o
estudo dos xamanismos ameríndios, como têm mostrado Viveiros de Castro (2002) e
Descola (1986): não dá conta da peculiar dinâmica personificante que os constitui e
precisa, portanto, ser reconfigurada para que seja capaz de traduzi-la. O mesmo poderia
ser dito da noção de “criação”: como pensá-la para as cosmologias ameríndias?3
Também a relação entre matéria e espírito – outro dos pares conceituais que tanto
determinam os pensamentos ocidentais – deve ser considerada cum grano salis, para
que não se empreste ao pensamento alheio uma base hilemórfica. O filósofo Gilbert
Simondon descreve bem o quadro de fundo do qual tal terminologia analítica parece ser
tributária:
“Não são apenas a argila e o tijolo, o mármore e a estátua, que podem ser pensados
segundo o esquema hilemórfico, mas também um grande número de fatos de formação,
de gênese e de composição, no mundo vivente e no domínio psíquico. A força lógica
desse esquema é tal que Aristóteles pôde utilizá-lo para sustentar um sistema universal
de classificação que se aplica ao real, tanto segundo a via lógica quanto segundo a via
3
Esboço alguma considerações nessa direção, ainda a serem aprofundadas, em Cesarino (2008: 200 e
segs). Ver também Tedlock (1983) para o caso maya-quiché.
4 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
4
Ver também Surralés (2003), Vilaça (2002) e Coelho de Souza (2002).
5
Entre diversos exemplos possíveis, veja o que diz Vilaça sobre os Wari’: “A alma dos xamãs, as únicas
pessoas que possuem uma alma onipresente, é simplesmente um corpo animal” (2002: 361).
6
3DEM 3ª pessoa demonstrativo; RFL reflexivo; TP tópico; ENF enfático.
5 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
externa), que têm para si mesmos um corpo e que vêem como uma maloca isso que nós
vemos como um corpo/carcaça. A-ri ã taná-ro shovo-rvi (3DEM-RFL entender-TP
maloca-ENF). Partindo de um trabalho de Roy Wagner (1991), Lima expôs o caso
juruna nos seguintes termos, que podem ser tomados de empréstimo para interpretar a
situação marubo:
Por seu vínculo com aparatos conceituais tais como os descritos por Simondon,
“alma” e “corpo” traduzem mal a dinâmica recursiva que caracteriza a pessoa marubo e
outras ameríndias, marcadas pela reprodução de um mesmo esquema em escalas
distintas, por um comportamento fractal portanto, e não por uma cisão entre duas
substâncias (hilemorfismo) ou por uma relação entre parte e todo (mereologismo). A
cisão ou separação entre duplos e corpos pode ser mais bem interpretada, portanto,
como uma questão de posicionalidade e não de vitalismo: a relação tem mais peso do
que os termos relacionados. Ora, esse ensaio é sobre dilemas de tradução e,
paralelamente aos frequentes embaraços conceituais com os quais se envolve o trabalho
etnográfico, cabe aqui considerar o que podemos pensar que pensam os marubo, por
exemplo, sobre a reflexão tradutiva. Tal reflexão, ativa e agentiva, visa justamente
capturar as singularidades existentes em seus dois aspectos: seus duplos e seus corpos.
Se o esquema é válido para a pessoa (fractal, que replica o ambiente externo no
ambiente interno), também o será para quaisquer singularidades existentes, isto é,
qualquer coisa que se desdobre em seu suporte corporal ou carcaça (awẽ kaya, awẽ
shaká) e seu duplo (awẽ yochĩ, awẽ vaká). É precisamente no monitoramento de tal
relação que reside a lógica da chinã vana ou “fala-pensamento”. Dentre as
singularidades existentes – todas cindidas entre duplos e corpos –, algumas possuem
duplos humanóides (yochĩ ou kayakavi, “vivente”) e outras apenas duplicatas
(kayakavima, “não-vivente”). Este último caso é, por exemplo, o dos besouros,
minhocas, facas ou agulhas, que podem introduzir suas duplicatas na carne de uma
pessoa: tais duplos-projeções serão então sugados por um espírito yove que atua através
6 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
7
Tais cantos são análogos aos koshoiti sharanawa (Déléage 2006) e yaminawa (Townsley 1993), que
parecem operar por um esquema similar. Ver também Briggs (1994) para os cantos de cura warao.
8
A diferença pode ser compreendida a partir das considerações de Hugh-Jones (1994) sobre os
xamanismos vertical e horizontal do noroeste amazônico.
9
Isso porque o objetivo é atuar sobre os duplos (yochĩ) que agridem o corpo, em uma direção similar à
apontada por Townsley (1993) em sua pertinente revisão do clássico texto de Lévi-Strauss (1970) sobre a
7 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
Cherõpapa que me explicasse melhor a natureza dos espectros yochĩ e de suas ameaças,
bem como das técnicas10 utilizadas em sua neutralização. Eu perguntava pelas sucuris:
P: Askáveise, vẽcha...
E a sucuri?
P: M, ãtsamashta nĩkãtsiki.
Sim, quero escutar um pouco.
eficácia simbólica. A exposição detalhada de tal performance e dos próprios cantos shõki demandaria um
estudo em separado, que não pode ser desenvolvido aqui.
10
E aqui estou de acordo com Townsley, para quem o xamanismo yaminawa é “um conjunto de técnicas
para conhecer” (1993: 452).
8 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
Awẽ yanikaro
O alimento deles [dos duplos da sucuri]...
11
Cherõpapa está aí citando as palavras pertencentes ou ditas pelo duplo da sucuri – mas o faz de
memória, pois tais duplos não estão ali em presença falando através de seu corpo, tal com ocorre em uma
sessão xamânica de cantos iniki (cantos/fala dos espíritos). Um espectro ou duplo fala aí por sua
coletividade (donde a oscilação entre singular e plural). Estabeleço uma distinção entre os termos na
tentativa de esclarecer a diferença entre “duplos” de quaisquer entidades e “espectros”, sobretudo, dos
mortos (yorã vaká): todo espectro é um duplo (vaká, yochĩ, destacado ou associado a um corpo), mas nem
todo duplo é um espectro, isto é, um ente potencialmente agressivo e ameaçador. Espíritos-pássaro, por
exemplo, são duplos (vaká) de seus corpos ou carcaças (kaya, shaká), isto é, de seus bichos (awẽ yoĩni)
que voam pelo céu, mas não são agressivos e insensatos como os espectros dos mortos (de antigos
guerreiros assassinos, por exemplo) ou de determinados animais tais como as sucuris e os macacos-preto
(iso).
12
Somam ou juntam torpor de ayahuasca (oni sanĩ) ao seu vento (we).
10 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
13
Algo similar pode ser encontrado no xamanismo sharanawa (cf., Déléage 2006), yaminawa (Townsley
1993) e desana (Buchillet, 1987, 1990), entre outros.
11 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
sucuri” como um todo, mas aqui se detêm apenas em alguns exemplos. O esquema da
“fala-pensamento” aplica-se virtualmente a quaisquer singularidades ou coletividades,
tal como no caso do lixo (matsô), também ele cindido entre seu corpo e seus duplos:
Matsô yochĩ askásevi, matsô potati, matsô potati yochĩ aivoro shaẽshki...
Os espectros do lixo também, do lixo jogado, os espectros do lixo jogado,
estes são ditos “feitos de tamanduá”,
Tsaõma, nitxĩki.
Não está sentado, está de pé.
Aská avaikĩ a yora, a yora aka askásevi vei shaẽ vesõseki avai,
Assim fazem e então a sua pessoa, a sua pessoa fazem com rosto de tamanduá-morte,
14
Isto é, do conjunto visível de detritos.
12 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
é trazido por seu espectro, tal como quando vem chegando insônia.
15
Cabe aqui compreender tal pensamento estritamente a partir das considerações sobre a bricolagem
mítica desenvolvidas por Lévi-Strauss no Pensamento Selvagem (1970)? O sistema xamanístico marubo
permuta elementos em funções vacantes, desloca-se ao longo dos eixos paradigmático e sintagmático;
opera portanto, como diz Lévi-Strauss, a partir de elementos “pré-constrangidos” (idem: 40). Ainda que
esta não delimite um repertório fixo de elementos (“os cantos são intermináveis, não podemos esgotar as
formações”, dizem os kẽchĩtxo com frequência), aponta entretanto para um conjunto fechado formado por
animais e vegetais, cujas partes corporais e outros elementos servirão de estoque para a proliferação de
imagens da mitopoiêsis xamânica. Ora, mas as séries de montagem/transformações poderiam se estender
indefinidamente por todas as entidades existentes, uma vez que muitos de seus processos de formação
estão previstos dentro dos cantos-lista saiti (os cantos-mito) que servem de fonte para o conteúdo
mobilizado pelos cantos-ação shõki (os cantos de cura e de pensamento). Esta indeterminação ocorre
porque as singularidades estão cindidas entre seus duplos e seus corpos. Tal cisão gera uma replicação
infinita de subjetividades e pontos de vista, que precisam ser conhecidos e monitorados em suas
formações (o trabalho do bricoleur).
13 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
16
Termos como vaká e yochĩ possuem um campo semântico em comum e são quase sempre sinônimos, na
medida em que designam aquele aspecto/duplo (humanóide ou não) que, junto ao corpo/carcaça,
completa as diversas singularidades. Uma análise detalhada das noções envolvidas em tais termos levaria
a um outro artigo. Ver Cesarino (2008: 224 e segs) e Déléage (2006) para mais considerações sobre o
assunto.
14 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
alteridade, seja no caso dos coletivos de espíritos yovevo, de duplos de corpos tais como
os da sucuri ou de espectros yochĩvo, seja no caso de coletivos de povos estrangeiros,
tais como as outras populações indígenas ou os próprios brancos e seus objetos
tecnológicos. É esse esquema que permite a discriminação, por exemplo, dos
brancos/estrangeiros (nawa) a partir de seus distintos surgimentos e, consequentemente,
de seus distintos agrupamentos coletivos (conforme Cesarino 2008: 428 e segs).
Há “estrangeiros bons” (nawa roapavorasi) tais como os professores, os
médicos e os missionários, e os “estrangeiros ruins” (nawa ichnarasi) ou “bravos”
(nawa onipavorasi). Tais estrangeiros são auxiliados pelos espíritos “sabiás do rio
grande” (noa mawa). Sabiás são espíritos loquazes e seguem acompanhados do
classificador noa, nome do grande rio de onde vêm os estrangeiros, identificado a
Manaus, Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo. (Estariam marcados por outras classes,
se tratássemos dos espíritos auxiliares de xamãs marubo). Diz-se de tais espíritos-sabiá
que são “surgidos do néctar de tabaco branco” (rome osho nãkoki); “surgidos das flores
caídas da samaúma branca” (shono osho menokotõsh wenía), “dos pedaços, flores
caídas e fluxos de seiva da palmeira marajá” (cha chini maská nasotanairi atõsho, cha
chini owa menokoatõsho, cha chini recho avátõsho). O esquema formulaico, vê-se aí, é
o mesmo utilizado no caso dos duplos da sucuri e do lixo examinados acima: as
variações operam apenas ao longo dos sintagmas e paradigmas.
Os estrangeiros bravos, aqueles habitantes das cidades adjacentes à Terra
Indígena Vale do Javari, são por sua vez pensados a partir das seguintes fórmulas,
novamente relativas aos seus surgimentos: surgidos “a partir do néctar da árvore-bravo”
(siná tama nãkõshki), “do néctar da árvore-amargo” (moka tama nãkõshki) e a partir dos
“tabacos-morte” (vopi romerasi). Seus corpos/carnes (kaya, nami) são pensados pela
fórmula “feitos a partir do traseiro de hárpia” (tete txeshopashõ shovia). Distribuem-se
em quatro coletividades: os tsoka nawa (“estrangeiros-tensão”), shetxi nawa
(“estrangeiros-calafrio”), vopi nawa (“estrangeiros-morte”) e siki nawa (“estrangeiros-
tontura”). São “tomadores caldo de taboca-tontura” (siki tawa yanikaivorasi) e de
“caldo de taboca-amargo” (moka tawa yanikaivorasi), metáforas para a cachaça, que os
torna bravos. Os policiais e soldados, por sua vez, são cantopensados através das
seguintes fórmulas: “surgidos a partir das flores caídas do tabaco-bravo” (siná rome
owãshkirasi), “surgidos a partir das flores caídas do tabaco-branco” (rome osho
owãshkirasi), “surgidos a partir das flores de paxiúba-bravo” (siná nisti owãshki) e das
“flores da samaúma-bravo” (siná shono owãshki).
16 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
Tais fórmulas, mais uma vez, poderiam se desdobrar em longos cantos shõki
referentes às diversas coletividades de estrangeiros, através dos quais estes seriam
pensados/monitorados em seus distintos surgimentos, nas distintas formações de seus
corpos, em seus lugares e alimentos. O xamanismo marubo, vemos bem aí, repousa
sobre o múltiplo: seja no caso dos estrangeiros ou de outros espíritos, a variação de
coletivos já se faz presente desde os tempos do surgimento e, antes como agora, é
justamente sobre suas ameaças que a atividade ritual deve se voltar. Naquele outro
aspecto da complexa vida ritual marubo que não examinamos aqui, referente aos
eventos em que cantam os espíritos yovevo através dos xamãs romeya, também a
multiplicidade é o traço central: os xamãs citam/transportam o que os espíritos,
provenientes de suas infindáveis moradas, vêm dizer aos seus parentes aqui desta terra
(cf., Cesarino 2008; ver Viveiros de Castro 1986 para uma situação análoga entre os
Araweté e Baer 1994 para os Matsiguenga). A separação entre duplos e corpos se dá
contra o “fundo de socialidade virtual” (Viveiros de Castro 2002: 419) que caracteriza a
cosmologia marubo e tantas outras ameríndias. A diferença reside apenas no fato de
que, nos tempos atuais, tal separação engendra dilemas e ameaças cosmopolíticas, sobre
as quais a atividade xamanística deve se voltar permanentemente.
(Este texto poderia ter sido escrito a partir de um outro viés igualmente
complexo do xamanismo marubo e intimamente ligado ao que aqui vai sendo exposto:
os modos de aquisição do conhecimento, os processos de iniciação, a análise detalhada
17 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
das sessões xamânicas nas quais vêm cantar os espíritos yovevo, um estudo de seus
cantos e do papel da polifonia. Ali também a figura do estrangeiro e o problema da
tradução são essenciais – o sistema marubo, como tantos outros ameríndios, é
propriamente “excentrado” e pode ser pensado à luz do conceito de “afinidade
potencial” desenvolvido por Viveiros de Castro (2002)17. Aqui, entretanto, trata-se
situar o papel dos estrangeiros no pano de fundo da multiplicidade em que estão
também envolvidos, de apresentar as estratégias a partir das quais os xamãs kẽchĩtxo
podem, com sua “fala pensada”, traduzir e monitorar a diferença.)
Não há neste início, portanto, uma unidade original, uma base universal humana
anterior à fragmentação das línguas, à dispersão dos sentidos: no início era o múltiplo e
não o uno, como postulam as metafísicas monistas ocidentais e seus antecedentes greco-
judaicos. Os coletivos de espíritos demiúrgicos estão presentes desde os tempos
primeiros: não há aqui espaço para a palavra imperativa bíblica, para o gesto criador
derivado de uma única fonte18. É o que disse um Marubo a Melatti: “O Americano [isto
é, o missionário da Novas Tribos] disse que Deus fez sozinho o rio. Mas o rio têm
muitas coisas, coisas do rio têm muito. Não foi ele que fez vẽsha [sucuri] não, não foi
ele que fez peixe não, foi gente (yora shovima) que fez” (1985: 19-20). O interlocutor
de Melatti está aí se referindo aos espíritos demiurgos fazedores do rio (os Matsi Toro e
Ene Voã), cujos feitos são relatados pelo longo canto-mito Waka Vana saiti. É de um
canto como este que são retiradas, por exemplo, as fórmulas utilizadas para pensar e
atuar sobre as singularidades-sucuri (ver depoimento acima); são estas as coletividades
de espíritos que “montam” ou “fazem” as coisas todas a partir de pedaços de animais e
vegetais dos tempos primeiros. É por estarem tais coletividades de duplos e espíritos
suspensas na virtualidade que o xamanismo, indispensável para a manutenção do
parentesco e do viver bem nos tempos atuais, pôde ser caracterizado com perspicácia
17
Um bom exemplo disso é o papel do dom nos processos de iniciação xamanística: o aprendiz deverá,
em um determinado momento de sua trajetória, sonhar com uma pessoa outra, um parente indefinido
(yora wetsa) que lhe entrega, entre outras coisas, filhotes de arara, recipientes de rapé ou então rádios e
gravadores. Estes últimos são uma metonímia para o “pensamento/vida” chinã e para a habilidade de fala
(vana) que a figura onírica transporta ao sonhador, assim capaz de aprender longos e eficazes cantos. O
caso é bastante próximo do xamanismo sharanawa: ver a exposição do processo de iniciação feita por
Déléage (2006: 320 e segs, em especial 328 e 332). Ali também os elementos dos brancos fazem parte de
processos de iniciação: “É então um estrangeiro (nahua) que aparece como o mestre da ayahuasca e a
imagem implícita, aqui, era a de uma loja tal como as que encontramos na cidade mestiça de Esperanza:
uma grande casa repleta de mercadorias (...).” (2006: 329). Trata-se de mais uma formulação da relação
do xamanismo com a exterioridade e a afinidade potencial, tal como observou Viveiros de Castro (2002).
A relação entre mercadoria, alteridade e xamanismo foi bem observada por Bonilla (2005) em seu estudo
sobre os Paumari.
18
Ver o que diz Tedlock (1983: 136, 261 e segs) sobre o Popol Vuh e seus dilemas de tradução.
18 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
“Mas a relação em que pensamos, esta relação muito íntima entre as línguas, é
aquela de uma certa convergência original. Ela consiste no fato de que as línguas não
são estrangeiras umas às outras, mas, a priori e feita a abstração de todas as relações
históricas, são aparentadas entre si naquilo que pretendem dizer.” (Benjamin 1971: 264
– trad. minha).
Na cosmologia marubo, não parece haver lugar para uma convergência original
anterior às dispersões babélicas que, bem ao contrário, sempre estiveram presentes no
tempo mítico, horizonte desta “diferença infinita, mas interna a cada personagem ou
agente (ao contrário das diferenças finitas e externas que caracterizam o mundo atual)”,
como bem escreveu Viveiros de Castro (2002: 419). Havia ali sim um horizonte de
comunicação, uma capacidade de compreensão interna à diversidade interespecífica, a
partir daquilo que este mesmo antropólogo chamou de “um contexto comum de
intercomunicabilidade idêntico ao que define o mundo intra-humano atual” (2002: 354).
Não havia, porém, uma palavra humana derivada do logos divino19, pois “humano” já é
aqui uma outra coisa. A tarefa do xamanismo é, pois, a de manipular e transitar sobre a
multiplicidade de duplos e coletivos (seus distintos modus vivendi, suas distintas
línguas...) que não bateu em retirada para um passado inacessível das “origens” mas,
bem pelo contrário, permanece suspensa na virtualidade, de modo contíguo ou paralelo
ao presente. Viveiros de Castro novamente: “A transparência absoluta se bifurca, a
partir daí, em uma invisibilidade (a alma) e uma opacidade (o corpo) relativas –
relativas porque reversíveis, já que o fundo virtual é indestrutível ou inesgotável” (2002:
419-420). Ao diversificarem os estrangeiros em seus distintos coletivos, os xamãs
marubo fazem uso de uma operação similar à empregada, por exemplo, para os espíritos
de outros patamares celestes ou da gente da referência sub-aquática. Desde sempre, aí
19
Benjamin, novamente: “Ce retard infini du verbe muet dans l’existence des choses par rapport au verbe
qui, dans le savoir de l’homme, leur donne un nom, et, à son tour, de ce verbe lui-même par rapport au
verbe créateur de Dieu, voilà qui fonde la pluralité des langues humaines. C’est en traduction seulement
que le langage des choses peut passer dens le langage du savoir et du nom – autant de traductions,
autant de langues, dès lors que l’homme est déchu de l’état paradisiaque, lequel ne connaissait qu’une
seule langue.” (1971: 92-93).
19 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
está essa miríade de estrangeiros (nawavo) ou povos, pela qual as palavras têm de
transitar.
20 Pedro Cesarino / 26ª RBA / 2008
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