Resumo:
O texto tem dois momentos. Comenta o deslocamento que se operou
desde a semiótica dos anos 70 e 80, que concebia o texto
(enunciado) como ponto de partida e de ancoragem do sentido, para
a semiótica dos anos 90 e da virada do século, que ancora-o no
corpo-próprio e nas suas coerções extero-, intero- e proprioceptivas,
como lugar das precondições do sentido, de suas primeiras
oscilações e emergência significante. Discute as várias leituras sobre
essas coerções « ceptivas » e precondições, enfim, sobre a semiose-
em-ato, e propõe o conceito ou dispositivo de semiocepção, na forma
de uma metamorfose ou « catástrofe » qualitativa, que marca a linha
de partilha entre o que tem existência semiótica, faz sentido,
pertinente, pois, ao campo descritivo da disciplina, e o que não a
tem, qualquer mundo a-significante, anterior à operação de
semiocepção, fora da pertinência e da incidência do "olhar"
semiótico. Em seguida, propõe entre a semiótica e a psicanálise a
experiência interdisciplinar de comparabilidade entre os regimes das
paixões, das pulsões e das patologias, procurando uma maneira de
integrá-los na forma de um percurso gerativo da subjetividade
inconsciente, como participantes de um mesmo universo tímico
global.
Abstract:
The text has two moments. It says the displacement that happened
between the 70´s and 80´s semiotics, which conceived the text
(enunciation) as a starting point and anchoring place of the sense.
And for the 90´s and ahead semiotics, which puts it in the body-self
and in its exteroceptivity, interoceptivity, and proprioceptivity
coercion, as a place of the preconditions of the sense, to its first
oscillations and significant emergencies. It argues the multiple
understandings on these “ceptives” coercion and its preconditions, in
other words, on the semiosis-in-act. It brings the concept or
dispositive of semioception, as a metamorphosis or qualitative
“catastrophe”, which draws the division line between things that
have semiotics existence, i.e. it has a sense, and become pertinent in
the descriptive field of this discipline, and those which don’t have
this existence, as some non-significant world, former to
semiocepcion operation, out of the pertinence and incidence of the
semiotics “view”. In sequence, it brings, the interdisciplinary
experience between semiotics and psychoanalysis, comparing
passion, drive and pathology regimens, trying to find a way to
integrate them as a generative process of the unconscious
subjectivity as participants in the same thymic global universe.
Introdução
Todas essas vieram competir com a proposição, anteriormente dada, dos autores
do Sémiotique des passions (1991) – que reivindica com J. Fontanille maior
« prudência » no entendimento da semiose como emergindo das precondições do
sentido (1992: vii) –, da valência aquém dos valores, do pressentimento aquém dos
afetos, nível das direções, vetores, zonas energéticas, forças apenas esboçadas, tudo ao
modo de ondulações, sombreamentos, efeitos-foco (effet de visée), efeito-fonte (effet
source) ou efeito-fim (effet but), "horizonte de tensões apenas esboçadas", lugar não de
actantes, mas de protótipos, não de sujeito ou objeto, mas de quase-sujeito, quase-
objeto, lugar emergente das « potencialidades » de atrações e repulsões, tudo enfim no
desafio, quase desesperante, de pôr o dedo, por assim dizer, no barro adâmico mesmo
da menor oscilação do sentido (ébranlement du sens) (Greimas e Fontanille, 1991,
passim). 3
A questão está longe de ser resolvida. É enorme o problema de encontrar
explicação satisfatória para esse big-bang do sentido, no corpo-próprio. De minha parte,
isto é, do ponto de vista do que creio mais rentável para o trabalho descritivo e
progresso da semiótica, quanto aos efeitos estranhos e retumbantes do sentido, penso
atualmente que a orientação que procura fazer a semiose « elevar o umbral » e regredi-
la à auto-organização da matéria, que vem esticar o estatuto do semiótico até mesmo às
"reações físico-químicas complexas que constituem o metabolismo de um organismo
biológico" (Petitot: 1999: 129), requer reparos. A meu ver, criar uma pertinência de
largo espectro, ou pertinência maior, para o semiótico, mesmo que evite a peça do
provérbio "quem tudo quer nada tem", extrapola a competência do semioticista, por
levar a semiótica a cobrir os quatro cantos da intelecção do mundo, da física geral à
biologia minúscula.
Por sua vez, a solução dos autores do Sémiotique des passions e, em
complementação ou aprimoramento, a de P. Ouellet, também deixa no ar dificuldades
incômodas. Com efeito, J. Fontanille contesta em P. Ouellet o fato de que a
proprioceptividade não possa ser agregada como um novo valor noético, um "valor
acrescentado" como emergência « suplementar » no entrelaçamento com a
interoceptividade e a exteroceptividade (1992: vi-vii). A seu ver, isso seria contraditório
com a idéia da proprioceptividade como "condição de acesso" ao mundo do sentido;
pergunta-se então se não seria necessário examinar, antes, de que maneira a
proprioceptividade poderia assegurar, homogeneamente, tanto a expressão da intero e
da extero, como da proprioceptividade em si mesma. Ora, juntamente com Greimas,
Fontanille assegurava que a mediação do corpo « acrescenta » (ajoute) ao processo da
semiose o « perfume tímico » proveniente das categorias proprioceptivas (1991: 12).
Noto aqui, salvo equívoco, o mesmo acréscimo ou suplemento que critica em Ouellet.
Por outro lado, a homogeneização ou homogeneidade da existência semiótica,
tão cara e necessária de ser obtida ou preservada pela entrada do corpo na semiose,
também não fica satisfatoriamente explicada. Parece contentar-se mais como petição de
princípio do que como algo demonstrado. Com efeito, em Sémiotique des passions, ela
tem entrada na forma de um "reconhecimento": "reconhecimento de uma dimensão
autônoma e homogênea, de um modo de existência semiótica", "reconhecimento da
homogeneidade fundamental do modo de existência das formas semióticas" (1991: 10).
Em seguida, retorna sob a forma de uma « sugestão »: "sugerindo como… sua
homogeneidade interna pode ser vislumbrada" (p. 12); logo após, instala-se como
momento já assegurado: "a mediação do corpo… acrescenta, quando da
homogeneização da existência semiótica, categorias proprioceptivas", mais que isso,
produzindo já efeitos importantes, em que pese ser lançada ainda "a título de hipótese":
"esse processo de homogeneização pelo corpo – com suas conseqüências tímicas e
sensíveis – não poupa nenhum universo semiótico" (p. 12); no mesmo parágrafo, fica
encarregada da "suspensão do liame que conjunta as figuras do mundo com seu
significado extra-semiótico" (p. 12). Retorna adiante como uma "postulação": a
homogeneização do intero e do extero por meio do proprioceptivo vai ter a tarefa nada
pequena de instituir "uma equivalência formal entre os « estados de coisa » e os
« estados de alma » do sujeito" (p. 13-14). Por fim, não só institui a equivalência, mas
também se apresenta como um lugar, uma "dimensão semiótica da existência
homogênea", onde "se reconciliam" por meio da mediação somática os estados de coisa
e estados de alma do sujeito (p. 14) 4. Como se vê, a homogeneidade se instalou no seio
da semiose um tanto a frio, com a fragilidade de um reconhecimento, postulação,
sugestão, constatação… ainda a merecer melhor crítica e desenvolvimentos pelas
pesquisas a vir. No entanto, apesar disso, a sua proposição tem a vantagem, perante a
proposta da pertinência maior, vista acima, de situar o campo de exercício semiótico – a
exigir portanto alguma homogeneidade mais bem introduzida – numa região de
pertinência menor ou pertinência de fino espectro, numa alocação de tarefas mais
plausível (ao semioticista).
Diante dessas propostas, de minha parte considero útil lançar à discussão interna
do campo uma outra maneira de conceber a semiose, num limite de pertinência nem
além nem aquém do sentido, isto é, sem extrapolá-lo para a matéria do bios, mas
também sem se perder no emaranhado entrelaçamento « ceptivo » das suas (justas)
reivindicações frente ao corpo, à percepção, à sensibilidade.
Na leitura que faço das tentativas de equilibrar esse tripé perceptivo –
interocepção, exterocepção e propriocepção –, conquanto admitamos hoje que ele já não
apresenta mais o cunho por demais psicológico, denunciado por Greimas e Courtés (cf.
acima), temos de confessar que suas fronteiras, sua incidência entrelaçada no corpo,
suas áreas de abrangência, são difícil e insatisfatoriamente delimitáveis. Difícil
satisfazer-se com a postulação de uma hierarquia ou antecedência (lógica ? epigenética
?) entre eles; difícil também aceitar mansamente a hipótese de uma suplência ou
acréscimo – o proprioceptivo conferindo « perfume tímico » à semiose. Por sua vez,
também o conceito de percepção, mesmo depurado de seus psicologismos pelo trabalho
da filosofia (Husserl, Cassirer, Merleau-Ponty), juntamente com aquele de
intencionalidade, prestam-se a reconhecida dificuldade. Suas definições pecam ora por
elasticidades amplas ora por contração demasiada, já difíceis de controlar dentro do
próprio campo da filosofia, revelando o mais das vezes pouco consenso entre os
seguidores desses filósofos na delimitação e demarcação dos seus « raios » de ação
específicos.
Posta assim a dificuldade – e confessando de saída incompetência no campo da
« filosofia eterna » – proponho à discussão se, por medida de simplicidade, não seria
mais operatório, no rendimento descritivo do advento do sentido, lançarmos mão de
uma demarcação mais categórica, de antemão, entre o que não tem e o que tem
existência semiótica, entre o que é a-significante (o mundo das coisas) e o que é
« fisgado » (saisi) por uma mente que opere um trabalho mental de semiocepção. À
semiótica não importaria tanto que os estímulos que invadem a mente fossem exógenos,
captados exteroceptivamente do mundo, estímulos sensoriais externos chegados ao
corpo, que fossem endógenos, estímulos sensoriais e somáticos internos, sensibilidade
proprioceptiva proveniente do « fundo » do corpo, ou ainda que fossem interoceptivos,
da mente profunda e suas coerções cognitivas. Importaria sim se quaisquer deles,
isolados ou em concerto, fossem fisgados como sentido, semioceptizados.
Não é tudo o que o olho capta no horizonte, como registro ótico, que se
transforma numa semiocepção visual, isto é, significante. E às vezes há um poderoso
efeito de sentido construído justamente numa « falha » de captação visual. Neste exato
momento, em que escrevo, vejo o sol, seus raios atravessando as árvores e arbustos,
levanto a cabeça e percorro várias vezes o horizonte de mata frente à janela, mas minha
semiocepção se concentra no raciocínio que aqui me ocupa. Esse olhar que se
esparrama, não pensado, não fisgado, sem me tirar a atenção semioceptiva do
raciocínio, é ele um olhar « significante » ? Faz parte, nesse estatuto, de uma existência
semiótica, no sentido da pertinência menor, vista acima ? Respiramos continuamente,
sequer notamos a imensa complexidade rítmica, muscular, tensiva, que os órgãos do
corpo executam. É uma operação multiplamente « ceptiva ». Mas, no caso banal, é ela
semio-ceptiva ? Comparemos essa respiração, autômata, a-significante, assemantizada,
com a forte semiocepção que lhe confere o asmático. A crise de asma é bom exemplo –
Fontanille analisa as micro-narrativas e modalizações fortemente tensivas do caso
(1989) – para ilustrar a linha de partilha bem delimitada – e legítima, penso, do ponto de
vista teórico – entre uma respiração assemantizada, arriscaria « a-ceptizada », e uma
respiração tensivamente sôfrega, semioceptizada.
Uma ilustração mais saborosa pode-se provar num exemplo onírico que Freud
apresenta no capítulo de abertura de sua Interpretação dos Sonhos (1973), em que
percorre a literatura científica de sua época sobre os sonhos. O criador da psicanálise
discorre nesse momento sobre o papel dos "estímulos sensoriais externos" na formação
dos sonhos. Relata um sonho de Maury, tornado célebre (de resto bem representativo da
mobilização do psiquismo onírico) :
A esse sonho, Freud agrega outros três, que apresentam no fim da cena o ruído
badalante e longo de um sino de igreja, para o primeiro, um tilintar prolongado de sinos
de coleiras de cavalos, para o segundo, e o ruído do estilhaçamento demorado de uma
pilha enorme de pratos que se espatifam no chão, derrubados por uma empregada, todos
eles com a cenografia bem rica, característica dos sonhos. Enfim, os três sonhos são
despertados pelo ruído estridente justamente do relógio-despertador.
Ora, nos quatro sonhos há uma captação exteroceptiva feita pelo corpo, pelo
ouvido aqui, pela sensação de choque da vareta da cortina caída ao pescoço ali. É essa a
exterocepção significante ? O que decide o sentido desses sonhos, de onde ele advém ?
É o ruído físico exteroceptivo do despertador ou a semiocepção fisgada na cena onírica
que conta ao mundo da significação, e ao mundo da semiótica ?
Entendida pois como operação de fisgamento produtor do sentido – englobando
conjuntamente, sem hierarquia de antecedência ou de suplência o tripé «ceptivo»
(intero-extero e proprioceptivo), a semiocepção seria o termo de cobertura para a
percepção semioticamente informada; englobando ainda o engajamento total do sujeito,
ou de seu corpo-próprio, suas pré-disposições – sua « disposibilidade » (Lemelin) – sua
sensibilidade, tensividade, existência e competência modais, como também suas moções
pulsionais e patologias decorrentes (cf. adiante) – o conceito ou a operação de
semiocepção não teria necessidade de ser postulada como fator de homogeneização da
existência semiótica, nas « precondições » do sentido, nem ter o encargo « demiúrgico »
de fabricar uma equivalência formal entre estados de coisa e estados de alma. Em vez
disso, ela se apresentaria melhor como uma decisão do tipo « tudo ou nada », ou
existência semiótica ou existência a-significante. A semiocepção seria não uma
operação de homogeneização, mas de metamorfose radical, na acepção de raiz do
sentido, uma transformação fundante do universo do sentido, mutação ou « catástrofe »
qualitativa, que transporta – no sentido metáfora – os estados de coisa do real a-
significante, para os estados de alma da realidade mental (ou psíquica) significante. E
aqui poderíamos convocar e retomar trabalhos de investigação que privilegiam o papel
amplo da metamorfose (Cf. Silva, 1995), sobretudo na esfera do « pensamento
mítico », como por exemplo em Cassirer, entre outros:
"…o mundo próprio de nossa experiência imediata, esse mundo no
qual somos e vivemos todos perpetuamente, enquanto nos
encontremos fora da esfera da reflexão crítica e consciente, guarda
uma massa de traços que, do ponto de vista dessa mesma reflexão, só
podem ser chamadas de míticas […] O mundo de nossa percepção e,
pois, esse domínio que de um ponto de vista ingênuo designamos
como a « realidade » autêntica, manifesta em tudo essa sobrevivência
característica dos temas míticos fundamentais […] O mito … permite
à consciência escapar e se opor à simples receptividade das
impressões sensíveis" (Cassirer, 1972: 31).
Bibliografia