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Peões, Bispos e Reis no xadrez da política do século XIV.

No xadrez ocidental o Rei é a peça mais importante e está sempre em perigo,


como os reis medievais, constantemente ameaçados pelos barões e outros senhores seus
vizinhos e oponentes. Os movimentos dessa peça estão associados a estratégias
militares de cavaleiros, expressando a luta do bem contra o mal.1 Já o Bispo é a peça
menos importante e tem a função de defender o Rei de seus adversários, por isso muitas
vezes o sacrifício do Bispo dá lugar a uma sequência de xeques.

O rei medieval teve o seu fundamento ideológico estabelecido na passagem do


politeísmo ao monoteísmo. Desta maneira, ele é a imagem de Deus, ou seja, rex imago
Dei. Eusébio de Cesareia, na sua História Eclesiástica, identificou Constantino como
imago Dei. Porém, na figura de Cristo, o rei do medievo encontra identificação imediata
com a realeza de Cristo, Christus rex gloriae, o rei que entra aclamado em Jerusalém,
mas também com os reis do Antigo Testamento que se submetem à vontade de Deus,
estabelecendo assim uma dupla imagem de rei e sacerdote que se fez presente em todo o
período e alimentou as monarquias. Um grande exemplo é a entrada do rei em uma
cidade, cuja cerimônia faz acreditar no rei taumaturgo que é a imagem do Cristo
médico.2

Na Idade Média e no início do Renascimento, o confronto entre a Igreja e o


Estado, ou seja, entre o poder espiritual e o temporal -- fosse em disputas e conquistas
territoriais com o fim de consolidar poder político e territorial, fosse na afirmação do
poder espiritual emanado de Deus e manifesto na figura do Papa, o bispo de Roma, já
se fazia presente desde a queda do Império Romano do Ocidente, ou seja, durante a
Antiguidade tardia.

As teses de Santo Agostinho na Cidade de Deus sobre a predestinação da Cidade


dos Homens em tornar-se a Cidade de Deus e o fato de a Igreja assumir o papel de
herdeira do Império Romano, fizeram com que esta última desse início à oposição ao
projeto bizantino de conquistar o Ocidente e ao projeto de cristianizar os chamados
povos bárbaros que então ocupavam os territórios do antigo Império Romano do
Ocidente. Gradativamente, estes projetos da Igreja Romana conduziram à formação dos
Estados Pontifícios e ao estabelecimento do que se chamou Cristandade Medieval.

1
O’SULLIVAN, Daniel E. Chess in the Middle Ages and Early Modern Age. A Fundamental Thought
Paradigm of the Premodern World. Berlin/Boston: De Gruyter, 2012, pp.2-3.
2
LE GOFF, Jacques. Il re nell’occidente medievale. Roma: Laterza, 2006, pp. 6-7.
2

Os Estados Pontifícios e a monarquia temporal

O Papa Gregório Magno (590-640), ao assumir o pontificado, encontrou a Itália


Romana em ruínas devido à emergência de cercos, destruições e espoliações provocados
pelos lombardos, e também como fruto da impotência do exarco, representante do
imperador Maurício I de Bizâncio na Itália.

Os lombardos já controlavam a maior parte da península e seus constantes


ataques praticamente paralisaram a economia. Naquele momento, estavam acampados
diante dos portões de Roma e a cidade estava lotada de refugiados de todos os tipos,
vivendo nas ruas sem quaisquer condições de saúde e alimentação. Constantinopla, a
sede do governo, ficava muito distante e parecia incapaz de aliviar o sofrimento da
população local. Assim, pressionado pelos lombardos, o Papa Gregório Magno criou
um verdadeiro Estado Pontifício, sobre o qual seus sucessores exerceram a soberania.
Durante o seu pontificado, o Patrimonium Petri3 tornou-se uma incomparável fonte de
sustentação para Roma e territórios circunstantes.4

Por volta de 756, durante o pontificado de Estêvão II, intensificou-se o


afastamento da Igreja do Ocidente em relação ao Império Bizantino e à Igreja Oriental.
Entretanto, os lombardos ainda representavam perigo para Roma e para o papa. Por isso,
temendo a ofensiva do lombardo Astolfo5 contra Roma, o Papa Estêvão II recorreu a
Pepino, o Breve, rei dos francos. A intervenção dos francos apaziguou Astolfo
temporariamente, porém este voltou a sitiar Roma. O papa recorreu novamente a
Pepino, o Breve e este entregou ao papado o Exarcado de Ravena, o Ducado de
Pentápolis (bispados de Rimini, Pesaro, Fano, Senigália e Ancona) e a região de Roma,
conferindo ao Sumo Pontífice o domínio temporal de um Estado. Estêvão II ainda
lançou mão de um documento falsificado pela própria Cúria Romana e supostamente

3
Refere-se à doação de Constantino (Constitutum Constantini) ao Papa Silvestre I em 315. Trata-se de
um documento apócrifo conservado em uma cópia no Decretali do Pseudo-Isidoro (século IX) e, por
interpolação filológica, no Decretum Gratiani, do jurista Graciano (século XII).
O documento afirma: o primado do Bispo de Roma (Papa) sobre a Igreja Patriarcal Oriental
(Constantinopla, Alexandria do Egito, Antioquia e Jerusalém; a soberania do pontífice sobre todos os
sacerdotes do mundo; a soberania da Basílica de Latrão enquanto capital e vértice (caput et vertex) de
toda a Igreja; a superioridade do poder papal sobre o imperial.
4
RAIOLA, Marcella. “A ascensão da Igreja de Roma” In: ECO, Umberto. Idade Média. Bárbaros, Cristãos e
Muçulmanos. Vol.I. Afragide: Dom Quixote, 2011, p. 141.
5
Em 751, embora ameaçado por Roma, Astolfo capturou Ravena e cobrou pesados impostos pela
capitulação. No mesmo ano, conquistou e tomou dos bizantinos a região da Ístria.
3

encontrado três anos antes, conhecido como Doação de Constantino6, segundo o qual
Constantino I cedera ao Papa Silvestre I e sucessores, não somente o Palácio de São
João de Latrão (San Giovanni in Laterano), mas também a possessão de toda a
península Itálica e a dignidade imperial.

Na viagem que fez à França em 754, o Papa Estêvão II foi recebido por Pepino,
o Breve, e ambos assinaram um tratado criando os Estados Pontifícios, ficando doados
ao Papa o Exarcado de Ravena, da Córsega, da Sardenha e da Sicília. Em contrapartida,
o Papa reconhecia a dinastia carolíngia e aprovava a relegação imposta ao rei
merovíngio Childerico III. O documento é conhecido como Doação de Pepino e foi
confirmado por Carlos Magno em 774. Nesse ano, o rei Desidério, Duque da Toscana,
invadiu os Estados da Igreja e na ocasião, a pedido do Papa Adriano I, Carlos Magno
interveio em defesa da Igreja e assim as terras de Roma a Ravena e Bolonha,
excetuando-se Florença e Siena, formaram os Estados Pontifícios. No dia 25 de
dezembro de 800, o Papa Leão III coroou Carlos Magno como Imperador Romano.

Com a morte de Carlos Magno o seu império foi dividido e dissolvido.

6
Vide nota 3.
4

Em 951, Berengário II, governante da Lombardia, declarou-se rei da Itália,


buscando legitimar o seu poder. Diante da ameaça aos Estados Pontifícios, o Papa João
XII pediu o auxílio de Oto I, o Grande, que submeteu Berengário II e seu filho
Adalberto de Itália. Mesmo assim, Berengário II voltou a afirmar a sua independência.
Em 961, novamente a pedido do Papa João XII e de Humberto de Espoleto (vassalo de
Berengário II), Oto I invadiu a Itália e venceu Berengário, que em 962 viu-se forçado a
se retirar para a fortaleza de São Júlio, perto de Montefeltro. Em fevereiro do mesmo
ano, Oto I e o Papa João XII firmaram um acordo conhecido como Privilegium Othonis
ou Privilegium Ottonianum. O documento confirmou a Doação de Pepino concedendo
aos papas o controle dos Estados Pontifícios, e regularizou as eleições papais7 e as
relações entre os papas e os imperadores do Sacro Império Romano-Germânico. Poucos
dias depois o Papa coroou Oto I como imperador do Sacro Império Romano-
Germânico.

De Oto I (Dinastia Otoniana -- 962-1024) até o século XIII sucederam-se cinco


dinastias: Dinastia Saliana (1027-1125); Casa de Suplingerburgo (1133-1137); Dinastia
de Hohenstaufen (1190-1197); Casa de Guelfos (1198-1218); Dinastia de Hohenstaufen
(1220-1250).

No século XI, Gregório VII8 publicou a Dictatus Papae, um conjunto de vinte e


sete proposições e axiomas que tratam da autoridade e competência do papa no âmbito
do poder temporal e espiritual. Dentre as proposições assim estabelecidas, destaca-se a
VII: Que somente a ele (o Papa) é lícito legislar segundo as necessidades da época,
formular leis novas, reunir novas congregações, fundar uma abadia canônica e, por
outro lado, dividir um bispado que seja rico e unir os que sejam pobres.9

7
O documento afirma que a eleição papal somente seria realizada com o consentimento do Imperador
do Sacro Império Romano-Germânico e com a presença de seus representantes. Além disso, Oto
atribuiu a si o direito real e também a vigilância militar da cidade de Roma.
8
O Papa Gregório VII era beneditino. Nasceu entre 1020-1025 e faleceu em 1085. Foi o 157º papa da
Igreja Católica. Ascendeu ao pontificado em 1073 e governou a Igreja Católica até morrer. A Dictatus
Papae foi publicada em 1075, apenas dois anos após a sua eleição e ascensão ao papado.
9
VII: Quod illi soli licet pro temporis necessitate novas leges condere, novas plebes congregare, de
canônica abbatiam facere et e contra, divitem episcopatum dividere et inopes unire.
5

Gregório VII também arrogou a si o direito de: ser chamado de universal (II);
nomear bispos (III); usar a insígnia imperial (VIII); ter os pés beijados por todos os
príncipes e dissolver laços de fidelidade (lealdade) com um homem injusto (XXVII).
Além disso, o Papa também estabeleceu a superioridade do poder espiritual sobre o
temporal, justificando isso no axioma XXII: Que a Igreja Romana nunca errou, nem
errará por toda a eternidade, segundo o testemunho das Escrituras.10

Apesar da grande influência de Gregório VII na política e na vida religiosa da


Igreja durante o seu pontificado, as suas proposições nem sempre foram tomadas ao pé
da letra. A Questão das Investiduras ainda se manteve nos séculos XI e XII, se
considerarmos que Thomas Becket, ex-chanceler de Henrique II tornou-se arcebispo de
Canterbury e foi consagrado pelo Papa Alexandre III. Neste caso, a indicação do rei
prevaleceu. Assim sendo, apesar das definições da Dictatus Papae, a execução das
propostas e dos axiomas dependia de acordo entre o poder espiritual do papa e o poder
temporal dos reis.

10
Quod Romana ecclesia nunquam erravit nec imperpetuum scriptura testante errabit.
6

O poder temporal e o espiritual confundiam-se, especialmente na administração


dos Estados Pontifícios e também no que dizia respeito aos aspectos econômico,
territorial e político.

Na Cristandade Medieval a religião tinha um papel ideológico e tendia a explicar


e justificar as relações sociais no plano das representações e dos discursos, além de
constituir o sistema de práticas e comportamentos coletivos destinados a reproduzir
essas relações sociais. Também podia servir para reduzir os antagonismos nas relações
entre o homem e a natureza, superando-os no campo simbólico. Assim, a Cristandade
Medieval representou todo um sistema de relações entre a Igreja e o Estado que se
manifestou na sociedade, na cultura e na política da Idade Média11 e forneceu elementos
para que a Igreja justificasse o seu poder real na Idade Moderna.

No século XIII, às vésperas da dissolução desse sistema de relações, Santo


Tomás de Aquino escreveu:

A fim de ficar o espiritual distinto do terreno, foi, portanto, cometido o ministério deste
reino não a reis terrenos, mas a sacerdotes e, principalmente, ao Sumo Sacerdote,
sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, o Romano Pontífice, a quem importa serem sujeitos
todos os reis dos povos cristãos, como ao próprio Senhor Jesus Cristo. Assim, pois, como já foi
dito, a ele, a quem pertence o cuidado do fim último, devem submeter-se aqueles a quem
pertence o cuidado dos fins antecedentes, a ser dirigido por seu comando.12

A Igreja participou ativamente da economia nos séculos XI-XIII, especialmente


no desenvolvimento das construções, o que exigiu um financiamento que o jogo normal
da produção não podia proporcionar. A Igreja desentesourou e pôs em circulação
valores que havia acumulado. Ao longo de todo o período, a Igreja protegeu o mercador
e ajudou-o a vencer o preconceito que o tornava objeto de desprezo pela ociosa classe
senhorial.13

No início do século XIII, a cúria romana era um complexo de ofícios


(escritórios) que se ocupavam do trabalho legislativo, financeiro e executivo do papado,
o centro do mundo cristão ocidental. A sede do papado funcionava como outra corte,
ocupando-se das questões judiciais a serem submetidas a um tribunal supremo presidido

11
GOMES, Francisco José Silva. “A Cristandade Medieval entre o mito e a utopia”. Revista Topoi. Revista
de História. Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, Vol. 3, n. 5, pp. 221-222, jul-dez/
2002.
12
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Escritos políticos. Do reino ou do governo dos príncipes ao rei de Chipre,
XV. Tradução Francisco Benjamin de Souza Neto. Petrópolis: Vozes, 1997, pp.164-165.
13
LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. Vol. I. Lisboa: Estampa, 1995, pp. 114-116.
7

pelo papa. Como príncipe universal, o papa necessitava de uma corte que era o mundo
cristão e também de uma rede de ofícios independentes que se ocupavam da
administração de Roma e dos Estados Pontifícios.14

O cativeiro de Avignon

O século XIV, ou o Trecento, foi marcado por diversas questões de ordem


política, religiosa e social. Para compreender melhor esse momento do Renascimento e
suas implicações posteriores, iniciaremos pelo Cisma do Ocidente, que envolveu a
Igreja em uma crise monárquica e manteve papas e antipapas no poder entre os anos de
1309 a 1377. A questão se prolongou até 1417, quando o Concílio de Constança15 pôs
fim ao Cisma da Igreja.

As disputas políticas envolveram reis e papas, ou seja, era uma disputa entre o
poder espiritual e o poder temporal.

No decurso dos séculos XI-XIII, o conceito de soberania papal começara a


prevalecer sobre a concepção universalista de poder. Entretanto, no século XIII as
heresias dos Cátaros16, dos Patarinos17, dos Valdenses18 e também dos Espirituais
Franciscanos (Zelanti)19 contribuíram para minar a Plenitudo Potestatis20.

14
ULLMANN, Walter. Il papato nel Medioevo. Roma: Laterza, 1999, p.231.
15
Realizado entre os anos de 1414 e 1418, foi o 16º concílio ecumênico da Igreja Católica. O seu
principal objetivo foi resolver as questões relativas ao Cisma da Igreja Ocidental. Constança está situada
no sul da Alemanha e é a maior cidade nos arredores do lago de Constança. À época predominava a
escola teológica alemã. Quando o concílio foi convocado havia três papas, todos clamando legitimidade.
Alguns anos antes, em um dos primeiros golpes que afetaram o movimento conciliador, os bispos do
concílio de Pisa tinham deposto ambos os papas anteriores e eleito um terceiro, argumentando que, em
tal situação, um concílio de bispos tem mais autoridade do que um papa.
16
Do grego καϑαρός, katharós, que significa puro. Os cátaros eram um grupo religioso que se opôs ao
clero e a Igreja Católica e consideravam a política da Igreja corrupta tanto no plano moral, quanto
espiritual. Buscavam a pureza e tinham crenças dualistas. O catarismo se expandiu por toda a Europa
nos séculos XII e XIII, especialmente em Albi na França, motivo pelo qual foram chamados Albigenses.
17
O nome pataria está associado ao mercado milanês de tecidos. Os seguidores do movimento foram
pejorativamente chamados de patarinos, ou esfarrapados. Foi um movimento social e religioso que se
desenvolveu em Milão por volta do início do século XI. Tinha por objetivo a reforma do clero e do
governo eclesiástico na província e o suporte de sanções papais contra a simonia e o casamento clerical.
Os envolvidos no movimento, chamados de patarinos, se opunham aos desmandos do arcebispo Guido,
senhor de Milão nomeado pelo imperador, e de seus vassalos. Opunham-se também a um clero
profundamente corrupto (por exemplo, em Milão existia um verdadeiro tarifário de prestações
eclesiásticas).
18
Pedro Valdo era um comerciante de Lyon e o seu movimento, iniciado por volta de 1174, ficou
conhecido como Valdense. Ele renunciou aos seus bens, vendeu o que tinha e distribuiu aos pobres.
Encomendou uma tradução da Bíblia para a linguagem popular. Em seguida, sem ser sacerdote,
8

começou a pregar a Bíblia para o povo, gerando reações do Magistério da Igreja, que se considerava o
único capaz, por inspiração divina, de interpretar as Sagradas Escrituras. Desde o início os valdenses
afirmavam o direito de cada fiel ter a Bíblia em sua própria língua, sendo esta a fonte de toda
autoridade eclesiástica. Vale lembrar que muito antes de Wycliff e Lutero, os Valdenses já defendiam o
direito de que todos tivessem a Bíblia no seu idioma.
19
As origens dos Espirituais Franciscanos (Zelanti) estão relacionadas aos companheiros mais próximos
de Francisco, o Poverello, que muito cedo se retiraram com ele e passaram a viver em choupanas, com
simplicidade, sem posses, obedecendo apenas ao Testamento e à Regra de Francisco. Recusavam-se a
viver em conventos e levavam vida eremítica.
20
Plenitudo potestatis: termo jurídico medieval empregado para descrever o poder e a jurisdição papal.
Foi empregado nos escritos canônicos para designar a autoridade papal desde o pontificado de Leão I.
No entanto, o primeiro papa a usar o termo regularmente para descrever o poder governamental do
papa foi Inocêncio III. No século XIII, os canonistas usaram esse termo para caracterizar o poder do Papa
na Igreja. Abrangia a supremacia papal sobre as potências políticas do Ocidente e o poder de depor
cargos e benefícios em toda a Igreja.
9

Em 1292, final do século XIII, com a morte do Papa Nicolau V, desenvolveu-se


um longo processo eleitoral até que em 5 de julho de 1294 foi eleito Celestino V,
conhecido como Papa Angélico. Era um monge eremita que se sentiu incapaz de
enfrentar os problemas da Igreja e do mundo no seu tempo e por isso renunciou cinco
meses depois, no dia 13 de dezembro de 1294. Vago o trono papal, os cardeais elegeram
Bonifácio VIII no dia 24 de dezembro de 1294. Diferente do seu antecessor, Bonifácio
VIII era um canonista enérgico, consciente dos problemas papais, porém dotado de forte
personalidade e pouca inclinação para a diplomacia e a mediação. Não considerou o
crescente nacionalismo dos Estados, como as Repúblicas Italianas de Florença e
Veneza, ou da França e da Inglaterra, nem o questionamento de alguns juristas sobre o
direito do papa de exercer tanto o poder espiritual quanto o temporal.

Em Da Monarquia, escrita entre 1310 e 1314, referindo-se às relações entre o


poder temporal e o poder espiritual, Dante Alighieri escreveu:

Afirmo, então, que o poder temporal não recebe do espiritual nem a existência, nem a
faculdade que é a autoridade, nem mesmo o exercício puro e simples. Recebe, sim, do
poder espiritual aperfeiçoamentos acidentais: age com maior eficácia pela luz da graça
que Deus, no céu, e a bênção do Sumo Pontífice, na terra, lhe infundem. E, então, o
argumento peca na forma, porquanto o predicado da conclusão não é extremidade da
premissa maior. Raciocina-se assim: a lua recebe a luz do sol que é o poder espiritual; o
poder temporal é a lua; logo, o poder temporal recebe a autoridade do poder espiritual.
Na extremidade da maior põem "luz", no predicado da conclusão, "autoridade": são,
como vimos, coisas diversas no sujeito e na razão.21
As questões propostas por Dante refletem o conflito entre a Igreja Romana e o
rei da França, Felipe, o Belo, questão que teve início no pontificado de Bonifácio VIII.

Em 1294, ano da renúncia de Celestino V e da eleição de Bonifácio VIII, a


França e a Inglaterra entraram em conflito, depois de deflagrado um acordo secreto
franco-escocês contra Eduardo I da Inglaterra.

Ingleses e franceses combatiam pelo controle da Gasconha22. Entre 1294 e 1303


houve campanhas inconclusivas. Em 1300, Flandres foi ocupada por Felipe IV, que
também conquistou a Guiena, mas foi obrigado a devolvê-la aos ingleses, que em 1299

21
DANTE ALIGHIERI. Da Monarquia. III, IV. São Paulo: Abril Cutural. Coleção Os Pensadores, p. 222.
22
É uma região no sudoeste da França, que fez parte da Província de Guiena e Gasconha. A Gasconha foi
habitada por populações aparentadas dos bascos, que aparentemente falavam um idioma parecido com
a língua basca. O nome Gasconha provém da mesma raiz da palavra “basco”. Da Idade Média até o
século XIX, usava-se na região o dialeto gascão, variante da língua occitana, associada a Cyrano de
Bergerac e a d’Artagnan.
10

o haviam forçado a dar a sua irmã Margarida de França em casamento ao monarca


inglês.

Durante o conflito, objetivando obter recursos para a guerra, os monarcas


cobravam impostos sobre os bens eclesiásticos. Depois de diversas reivindicações de
clérigos, o Papa Bonifácio VIII publicou em 1296 a Bula23 Clericis laicos, proibindo
que ambos os reis taxassem bens eclesiásticos, direito exclusivo do papa.

Inicialmente, o Papa Bonifácio VIII acusa os reis de desejarem obter para si o


que é proibido, seguindo um comportamento manifesto desde a Antiguidade: [...] a
Antiguidade nos ensina que os leigos são extremamente hostis ao clero, fato explicitado
pelas experiências dos tempos atuais; além de ultrapassarem os seus limites,
empenham-se em obter o proibido e afrouxam as rédeas em busca do ilegal.24

Em seguida, acusa clérigos e religiosos de todas as condições de, tencionando


buscar uma paz transitória, cederem aos abusos dos reis, sem a autorização do pontífice.

Nenhum prelado, eclesiástico, monge ou secular de qualquer grau, condição ou


categoria deverá pagar, prometer ou concordar em pagar para leigos, a título de
impostos e/ou taxas, a décima, a vigésima ou a centésima parte de rendimentos ou bens
próprios ou da igreja - nem qualquer quantia, porção ou cota do valor real ou estimado
desses mesmos rendimentos ou bens, a título de auxílio, empréstimo, subvenção,
subsídio ou donativo, nem sob qualquer outro nome, forma ou pretexto.25

Por fim, proíbe que reis e nobres, sob qualquer justificativa cobrem impostos,
taxas, subsídios, donativos, etc., a qualquer eclesiástico, de qualquer condição.

A Bula Clericis laicos interferia diretamente nos planos de Filipe IV de se


apoderar de bens e do ouro dos Cavaleiros Templários, que prosperavam especialmente
na França. A riqueza da ordem provinha dos conventos, das propriedades, do comércio
entre o Levante e o Ocidente, das joias e de outros tesouros que possuía. Na posição
econômica em que se encontravam, os Templários se equiparavam aos banqueiros e

23
A Bula Pontifícia ou Papal (em latim bulla apostolica ou bulla pontificalis ou ainda bulla papalis) é uma
comunicação oficial em forma escrita emanada da Cúria Romana com o sigilo do Papa. O termo é
derivado do latim bulla e se refere ao sigilo do documento para descrever de forma solene cada decreto
ou carta simples emanada do Sumo Pontífice. Devido ao sigilo do documento e à sua pessoalidade, o
documento recebe uma bulla, ou seja, um lacre com uma pequena bola (em latim, bulla) de cera ou
metal, em geral chumbo (plumbo) com o selo do papa. Difere da Encíclica porque enquanto a bula é
destinada a uma pessoa, a encíclica destina-se a toda a comunidade dos fiéis católicos..
24
BULA CLERICIS LAICOS. Disponível em https://sourcebooks.fordham.edu/source/b8-clericos.asp.
Acesso em 18.9.2017.
25
Ibid.
11

mercadores da época. Essa privilegiada situação interessava a Filipe IV, que pretendia
financiar a própria expansão e consolidar suas intenções imperiais.26

Desde o reinado de Luís IX havia tensões com a monarquia sobre os direitos e


privilégios dos templários. A Crônica do Templário de Tiro referiu-se ao caso de João
de Tour, jovem tesoureiro do Templo de Paris, que emprestara ao rei, sem a autorização
do grão-mestre, quatrocentos mil florins de ouro, o que lhe valeu ser expulso da
Ordem.27

A frustração temporária das intenções de Filipe IV fica clara quando observamos


o que escreveu o Papa Bonifácio VIII na Clericis laicos:

Igualmente, nenhum imperador, rei, príncipe, duque, conde ou barão, podestade,


capitão, funcionário ou reitor, independentemente do título e de pertencer a qualquer
cidade, castelo ou lugar, ninguém, independentemente da proeminência, condição ou
cargo, poderá impor, extorquir ou receber tais pagamentos nem arrestar, apreender ou se
apropriar de pertences de igrejas ou de eclesiásticos, de bens depositados nos edifícios
sagrados, nem poderá ordenar o seu confisco, apreensão ou apropriação, nem recebê-los
caso sejam apropriados, apreendidos ou confiscados; também não poderá
conscientemente auxiliar, aconselhar ou favorecer tais atos, pública ou secretamente,
sob pena de ser condenado à excomunhão.28

O conflito entre o Papa Bonifácio VIII e o rei da França ainda se prolongou.


Primeiramente Filipe IV negou-se a aceitar a bula do papa e proibiu a exportação de
ouro e prata para Roma, o que dificultou as finanças do papado e levou o papa a fazer
concessões ao rei.

No ano jubilar de 1300, Bonifácio VIII organizou uma grande celebração com o
intuito de apresentar a grandeza do papado e sua superioridade sobre dos demais reis.
Entretanto, a ofensiva de Filipe IV veio em 1302, quando o papa retirou-lhe os
privilégios. Na ocasião, o rei reuniu-se à chancelaria, à universidade de Paris, queimou
publicamente a carta do papa e produziu um documento que acusava o pontífice de
vinte e nove graves crimes, dentre os quais impiedade, simonia, heresia, homicídio de
Celestino V e fornicação. Em resposta, o Papa Bonifácio VIII reuniu um concílio em
Roma e decidiu escrever a bula Unan Sanctam, no dia 18 de novembro de 1302.

26
ULLMANN, Walter. Il papato nel Medioevo. Roma: Laterza, 1999, p. 286.
27
GUILLAUME DE TYR. Historia rerum in partibus transmarinis gestarum, 695. Disponível em
https://sourcebooks.fordham.edu/halsall/basis/GuillaumeTyr5.asp. Acesso em 16.set.2017.
28
BULA CLERICIS LAICOS. Disponível em https://sourcebooks.fordham.edu/source/b8-clericos.asp.
Acesso em 18.9.2017.
12

Por imperativo da fé somos obrigados a acreditar e a assegurar que há apenas um


santo católico e a Igreja Apostólica [...] Portanto, a igreja é una e possui um só
corpo, um chefe, duas cabeças, como um monstro, isto é, Cristo e Pedro, vigário
de Cristo e sucessor de Pedro, porque o Senhor disse a Pedro: Apascenta as
minhas ovelhas. Minhas, disse ele, falando em geral e não em particular deste ou
daquele, que se compreende, que confiou a todos. [...] Como ensina a palavra do
Evangelho, esta Igreja se constitui de duas espadas, isto é, a espiritual e a
temporal [...] e quem nega a espada temporal se afasta de Pedro e interpretou
mal a palavra do Senhor quando disse: Embainha a tua espada [...] É necessário
que uma espada esteja abaixo da outra e que a autoridade temporal seja sujeita à
espiritual.29

Ao tomar conhecimento da bula Unan Sanctam, a reação de Filipe IV foi


imediata. Descobriu um documento que lhe permitia tornar pública a bula papal e assim
em 1303 reuniu os três Estados de França. Durante a reunião foram pronunciados
diversos discursos furiosos de eminentes personalidades e mestres da Universidade de
Paris, acusando o papa de propagar uma ideologia do passado que afetava a soberania
da França e considerava que o inimigo não era o rei, mas sim toda a nação. Então, o
papa resolveu publicar solenemente um decreto que vinha preparando havia quase um
ano exigindo o relaxamento do voto de fidelidade dos súditos ao rei da França. A
publicação estava prevista para 8 de setembro de 1303, no Palácio de Anagni. Para
evitar a publicação, na noite de 7 para 8 de setembro os soldados de Guglielmo de
Nogaret, jurista e chanceler de Filipe IV, invadiram o palácio papal de Anagni, exigindo
que o papa abdicasse imediatamente, se entregasse aos soldados e devolvesse os bens de
Giacomo Colonna30. O papa se negou a atender os soldados e ofereceu a própria vida, o
que Colonna não se negaria a aceitar. Porém, a morte de Bonifácio VIII naquelas
condições não traria benefício algum nem a ele nem ao rei de França, e por isso os
soldados prenderam o papa. A notícia correu e a humilhação do papa provocou a reação
dos habitantes de Anagni que nas primeiras horas do dia 8 de setembro libertaram o
prisioneiro. Um mês depois, no dia 12 de outubro, Bonifácio VIII, no limite das suas
forças, morreu e foi sepultado no mausoléu que mandara construir.31 Com Bonifácio
VIII encerrou-se um capítulo da história do papado e da afirmação do poder espiritual

29
BOLLA UNAN SANCTUM. Disponível em http://www.dtesis.univr.it/documenti. Acesso em 15.7.2017.
30
O cardeal Giacomo Colonna foi destituído por Bonifácio VIII em 1297 e teve seus bens confiscados
após a publicação do Manifesto di Lunghezza, datado de 10 de maio de 1297, apoiado por alguns
Espirituais Franciscanos, e que declarava inválida a abdicação de Celestino V e também a eleição de
Bonifácio VIII.
31
ULMANN, Walter. Il papato nel Medioevo. Roma: Laterza, 1999, pp.280-283.
13

sobre o temporal, que se iniciara com Gregório VII e se prolongaria até o final do século
XIII.

A violência do conflito entre a França e o papado teve efeitos traumáticos para


Roma e para o ambiente pontifício. Mesmo assim era preciso eleger um novo papa, o
que ocorreu apenas uma semana após a morte de Bonifácio VIII, com a eleição e
coroação de Bento XI, cujas primeiras medidas foram anular a maior parte das decisões
de seu antecessor contra o rei Filipe IV e retirar a excomunhão da família Collona, que
incluía os cardeais Giacomo e Pietro di Colonna.

Apesar do seu curto pontificado, Bento XI desenvolveu intensa atividade


diplomática. Aceitou a vassalagem da Sérvia e intermediou a paz entre a Dinamarca e a
Alemanha. Fez um acordo com Aragão regulando a posse da Córsega, da Sicília e da
Sardenha e também consegue a paz entre Pádua e Veneza. Não teve o mesmo sucesso
em Florença pois, mesmo tendo enviado o Cardeal Nicolas Albertini de Prato,
conhecido pelos florentinos por suas pregações, não conseguiu apaziguar o conflito
entre os Bianchi (Brancos) e os Neri (Negros), conflito esse que envolvia diretamente a
Ordem dos Pregadores (Dominicanos) e os Franciscanos. O papa faleceu em Perúgia no
dia 7 de julho de 1304. A Igreja esperaria até o ano seguinte para ter um novo papa,
porém este não governaria a partir de Roma, mas sim de Avignon.

Clemente V era francês, porém súdito de Eduardo I. Sua eleição se deu após um
longo conclave no qual se digladiaram cardeais franceses e italianos, incitados por
Filipe IV, sobre quem ainda pesavam os atos de Bonifácio VIII. Esse papa permaneceu
em Roma até 1309 quando, alegando a existência de tumultos, conflitos constantes e a
violência existente em Roma, mudou a sede o papado para Avignon. Iniciava-se o
Cativeiro de Avignon, assim chamado em alusão ao exílio do povo de Israel na
Babilônia.

O papado permaneceu em Avignon entre 1309 e 1377, quando o papa Gregório


XII decidiu voltar a Roma. Após a sua morte, em 1378, novos conflitos entre reis,
mercadores e o papado reacenderam a divisão, fomentando a eleição de papas e
antipapas em Roma, Avignon e Pisa até 1417.

No período de Avignon os papas são todos franceses. Entretanto, mesmo diante


de reações contra o chamado Cativeiro de Avignon, a Igreja empreendeu um
reordenamento gradual do seu aparelho, centralizando poderes extraídos de famílias
14

nobres e de instituições eclesiásticas locais. Por exemplo, retirou dos capítulos das
catedrais e dos bispos certos benefícios que desde muitos anos estavam sob suas
jurisdições, como o direito de nomear bispos e superiores de mosteiros. A Chancelaria
Eclesiástica e a Câmara Apostólica passaram a ser o aparelho burocrático financeiro
mais funcional da Europa, produzindo grande quantidade de documentos que
objetivavam a passagem de títulos ou a regularização da venda dos cargos burocráticos,
isto é, dos cargos internos: notários, abreviadores, secretários.32

Papas em Avignon Papas em Roma Antipapas em Pisa


Clemente V 1305-1314
João XXII 1316-1334
Bento XII 1334-1342
Clemente VI 1342-1352
Inocêncio VI 1352-1362
Urbano V 1362-1370
Gregório XI 1370-1378
Antipapas em Avignon
Clemente VII 1378-1394 Urbano VI 1378-1389

Bonifácio IX 1389-1404
Bento XIII 1394- Inocêncio VII 1404-1406
1417 Gregório XII 1406- Alexandre V 1409-1410
1417 João XXIII 1410-1417

Em Avignon, a principal arma usada para culpar os inimigos do papado foi a


acusação de heresia.

Logo após a fixação de Clemente V em Avignon, Filipe IV retomou o seu


projeto em relação aos Cavaleiros Templários.

32
RAIOLA, Marcella. “O grande cisma”. In: ECO, Umberto (Org.). Idade Média. Castelos, mercadores e
poetas. Vol. III. Afragide: Dom Quixote, 2011, pp. 58-59.
15

Em 1309 realizou-se o Concílio de Vienne33, ao qual compareceram em torno de


trezentos prelados. O objetivo era decidir sobre os bens dos Templários e também sobre
o desejo de Filipe IV de exumar e julgar o Papa Bonifácio VIII. O papado estava
resolvido a impedir esta ação do rei porque desejava evitar um precedente e o
espetáculo de humilhação pública de um papa que agira como vigário de Cristo. Ao
final do primeiro ano do pontificado de Clemente V, os Templários foram acusados de
sodomia e impiedade e condenados, tendo-lhes sido confiscados os conventos e as
posses. Em seguida, os papas que apoiaram os Templários foram acusados de heresia e
os bispos de todas as regiões foram instruídos a questionar a ortodoxia dos Cavaleiros
do Templo. Clemente V conseguiu adiar a decisão dessas questões para o Concílio
Geral de Vienne, que se realizaria em 1311.

Desde 1307 os Cavaleiros do Templo vinham sendo interrogados. Clemente V e


outros eminentes prelados se debruçaram sobre os relatórios e produziram um dossiê
que foi levado ao Concílio Geral de Vienne. Nos anos de 1311 e 1312, durante o
concílio, seguiram-se mais denúncias, interrogatórios e testemunhos contra os
Templários. Um dos objetivos era forçar a fusão dos Cavaleiros do Templo com os
Hospitalários, mas muitos cavaleiros mantiveram seus votos de fidelidade.

Para proteger a memória de Bonifácio VIII, Clemente V sacrificou os


templários.34 Sob tortura, mecanismo legal à época para se obter uma confissão, os
templários confessaram os crimes que lhes eram imputados pelo rei e pelos
inquisidores, sendo o principal Bernardo Gui.

O grão-mestre templário Jacques de Molay, acreditando no julgamento do papa,


não quis depor no concílio, fazendo com que as acusações se voltassem contra ele como
uma confirmação dos crimes. O processo se estendeu e em 1314, depois de longa
tortura, Molay confessou os crimes e foi executado na fogueira, apesar de ter voltado
atrás na confissão. Além de todas as acusações, recebeu mais uma: a de mentir ao
tribunal inquisitorial. Apesar de tudo, antes da execução, o Papa Clemente V perdoara

33
Vienne é uma comunidade no centro-leste da França, localizada a 40 km de Lyon, às margens do rio
Ródano.
34
MENOZZI, Filorano. Storia del cristianesimo. Roma: Laterza, 1997, pp. 281-282.
16

os Templários e autorizara Molay a celebrar missa na prisão, como prova o Pergaminho


de Chinon, redigido em 130835:

Cremos que o mesmo irmão Jacques, o Grão-mestre que abjurou [...] a qualquer heresia [...] e
juro pelos Santos Evangelhos de Deus requer também a humildade do benefício da absolvição
destes atos [...] nas formas da Igreja e o retorno à comunhão dos fiéis aos sacramentos
eclesiásticos.36

Em 1314, o rei exige uma decisão relativa à sorte dos prisioneiros. Clemente V,
já em estado terminal da sua doença, com violentas hemorragias internas que o
impediam de sair do leito, ordenou que uma comissão de bispos tratasse da questão.
Perante essa comissão, Jacques de Molay e Godofredo de Charnay proclamaram a
inocência de toda a Ordem face às acusações. Esse comportamento fez a comissão
decidir consultar a vontade do Papa. Prestes a morrer, Clemente V decidiu que os
prisioneiros fossem colocados em prisão perpétua, sob custódia apostólica, assegurando
ao rei a não recuperação da Ordem dos Templários. Mesmo assim, temendo que a
questão saísse do seu controle, Filipe IV ordenou que Jacques de Molay e Godofredo de
Charnay fossem raptados e executados na fogueira pouco depois do ofício das vésperas,
em 18 de março de 1314.

Sobre esses processos conduzidos pelo papa e o rei Filipe IV da França, Dante
Alighieri escreveu em Da Monarquia:

Não devem ser deixadas à decisão dos juízes aquelas matérias que a lei possa determinar. E
assim se deve proceder, por receio da cupidez que tão facilmente perturba o espírito dos homens.
Quando nada pode ser já apetecido, impossível se torna a cupidez, por isso que as paixões não
podem sobreviver ao desaparecimento dos seus objetos. Nada existe todavia que possa eximir-se
a ser objeto da vontade do monarca, porquanto a jurisdição deste termina no oceano.37

Os Templários não foram os únicos perseguidos pelos papas em Avignon.

Os Espirituais Franciscanos também sofreram perseguições, pois se recusavam a


viver em conventos e levavam uma vida eremítica. Foram apoiados por Celestino V e
com a renúncia do Papa Angélico opuseram-se a Bonifácio VIII, fazendo-lhe pesadas
críticas. Acusaram o papa de ter inspirado a renúncia de Celestino V e questionaram a

35
FRALE, Barbara. Os Templários e o pergaminho de Chinon. São Paulo: Masdras, 2005. Nesta obra a
historiadora italiana estudou o Pergaminho de Chinon, encontrado no Castelo de Sant’Angelo, no
Arquivo Secreto de Vaticano em 2001.
36
El pergaminho de Chinon. Disponível em http://osmthi.es/onewebmedia/TRADUCCI%C3%93N-DEL-
PERGAMINO-DE-CHINON.pdf. Acesso em 13.12.2016.
37
DANTE ALIGHIERI. Da Monarquia. I, XI . São Paulo: AbrilCutural. Coleção Os Pensadores, p. 198.
17

legitimidade do seu pontificado. Bonifácio VIII suspendeu a proteção e os privilégios


concedidos pelo seu antecessor e passou a perseguir os opositores, muitos dos quais
foram presos, feridos e mortos por inquisidores.

Após a morte de Clemente V, com a ascensão de João XXII ao trono papal,


iniciou-se uma campanha contra os Espirituais Franciscanos, que foram acusados de
heresia, tendo sido presos e torturados. O relato dessas perseguições está descrito em
Historia septem tribulationum ordinos Minorum, de Angelo Clareno. De acordo com a
obra, mediante tortura, um frade declarou: Eu sempre fui e sempre serei fiel cristão e
católico e outra coisa não vos falarei, mesmo que sob tortura e esta é a confissão que
vos faço, porque esta é a verdade.38

As críticas à presença da corte pontifícia em Avignon foram muitas. Em 1377,


no dia 17 de janeiro, o Papa Gregório XI retornou a Roma. Porém, com a morte deste
papa em 27 de março de 1378 houve novo conclave. No intuito de influenciar a escolha
do novo papa, uma grande perturbação se espalhou pela cidade de Roma. No dia 13 de
abril de 1378, esse conclave elegeu Urbano VI. Assim que receberam a notícia da
eleição do papa, os cardeais de Avignon o reconheceram.

Urbano VI iniciou o pontificado com pesadas críticas ao Colégio de Cardeais e


se negou a restaurar a sede pontifical em Avignon. Os cardeais italianos, sob a proteção
da Rainha Joana de Nápoles e de Bernardon de la Salle, retiraram-se para Anagni em
maio de 1378 e em julho para Fondi. Em seguida, iniciaram uma campanha contra a
eleição do papa e prepararam um segundo conclave, ocorrido no dia 20 de setembro,
quando treze membros do Colégio de Cardeais, reunidos em Fondi, escolheram
Clemente VII. Com o apoio do Reino de Nápoles, o novo papa se estabeleceu em
Avignon, iniciando assim o período em que a Igreja foi governada por um papa em
Roma e um antipapa em Avignon.

Os papas em Avignon eram reconhecidos por França, Aragão, Castela, Leão,


Chipre, Borgonha, Condado de Sabóia, Nápoles e Escócia; enquanto os papas de Roma
eram reconhecidos por Portugal, Dinamarca, Inglaterra, Flandres, o Sacro Império,
Hungria, Norte da Itália, Irlanda, Noruega, Polônia e Suécia.

38
Citado por MENOZZI, Filorano. Storiadelcristianesimo. Roma: Laterza, 1997, p. 283.
18
19

O conflito entre os papas -- que se excomungavam mutuamente e afirmavam a


sua hegemonia sobre a Igreja -- complicou-se ainda mais com a reunião do Concílio de
Pisa em 25 de março de 1409, que tinha por objetivo acabar com o Cisma. Esse concílio
depôs o Papa Gregório XII, que estava em Roma, e o Papa Bento XIII, de Avignon,
além de eleger Alexandre V, que permaneceu pouco tempo no poder. Logo após a sua
morte foi eleito João XXIII (antipapa). Somente o Concílio de Constança em 1414
colocou um fim ao Cisma, depondo todos os papas. Em 1417 foi eleito Martinho V e a
sede do papado permaneceu em Roma.

O prestígio da Igreja Romana foi muito abalado nesse período de conflitos e as


críticas se multiplicaram. Tais críticas lançaram as bases para o movimento de Reforma
Religiosa iniciado por Lutero em 1517, embora fundamentado na doutrina de John
Wycliff e Jan Huss, reconhecidos como os precursores desse movimento que abalou a
hegemonia da Igreja e lhe impôs uma revisão interna.

John Wycliff considerava incompatível a pregação do clero com a sua riqueza e


as suas propriedades. Propunha o retorno da Igreja à primitiva pobreza dos tempos dos
evangélicos e por isso criticou o poder temporal de papas e cardeais. Na visão desse
teólogo, o Estado deveria tomar posse de todas as propriedades da Igreja e encarregar-se
diretamente do sustento do clero. Na sua obra Summa theologiae, Wycliff afirmou que
nos assuntos de ordem material o rei está acima do papa e que a Igreja deveria renunciar
a qualquer tipo de poder temporal. De civili dominio (Oxford, 1376) contém dezoito
teses e nessa obra Wycliff se reportou ao papado em Avignon, onde residiu entre 1309 e
1377, criticando a venda de indulgências e a vida perdulária e luxuosa de muitos padres,
bispos e religiosos sustentados com dinheiro do povo. Suas teses se espalharam
rapidamente e a reação da Igreja acusando-o de blasfêmia, orgulho e heresia também foi
imediata. No dia 22 de maio de 1377, o Papa Gregório XI expediu cinco bulas para a
Inglaterra, sendo uma para a Universidade de Oxford, onde Wycliff era professor, outra
para o Rei Ricardo II e três para os prelados. Em todas as bulas o papa ordenava que se
tomassem medidas para silenciar o mestre da heresia, ordenando em todas que se
tomassem medidas imediatas e decisivas para obrigar o mestre da heresia a guardar
silêncio. Antes que as bulas chegassem ao destino, Wycliff foi julgado. A companhia de
dois príncipes e de uma multidão que se amontoou para pressionar os juízes deu
resultado e Wycliff foi libertado.
20

John Wycliff traduziu a Bíblia e colocou-a nas mãos do povo em um momento


em que somente o Magistério da Igreja tinha o direito de interpretar as Sagradas
Escrituras.39

Excedendo os limites da Inglaterra, o pensamento de Wycliff chegou à Boêmia


em 1402, por intermédio de Jerônimo de Praga, bacharel que havia estudado em Oxford,
logo influenciando Jan (ou John) Hus. Em 1403 a Universidade da Boêmia proibiu as
ideias de Wycliff e a discussão das quarenta e cinco teses dela extraídas.

Jan Hus defendia a simplicidade e a volta aos padrões evangélicos, assim como
Wycliff e, antes deles, Francisco de Assis. Hus defendia que qualquer cristão poderia se
comunicar com Deus sem a necessidade de interferência ou mediação sacramental ou
eclesial.

Em 1411, João XXIII (antipapa) declarou guerra a Ladislau, Rei de Nápoles,


com o objetivo de recuperar Roma, ocupada pelo rei. Para tanto iniciou a venda de
indulgências para angariar recursos. Hus denunciou a guerra e a venda de indulgências,
alegando que não correspondiam à mensagem evangélica. Mesmo repreendido,
continuou a pregar as teses de Wycliff, tanto na capela de Bethlehem (Belém) quanto na
Universidade de Praga, criticando a riqueza e o fausto do papado.

No final de julho de 1412 o cardeal Pietro degli Stefaneschi comunicou a


destituição da capela de Bethlehem, o processo movido contra Jan Hus e a anunciou
realização do sínodo da diocese de Praga para o dia 18 de outubro daquele ano. No dia
12 de outubro Hus reagiu na ponte de Praga, onde fez o seu “Apelo a Jesus Cristo, o
único juiz”, sublinhando a injusta sentença de excomunhão e o direito de apelar para o
julgamento dos dois concílios, o de bispos e o de bispos e clérigos, como acontecera
com João Crisóstomo. Em 1415, Hus foi levado preso a uma audiência pública para se
retratar, ao que se negou, alegando que somente Cristo é a cabeça da comunidade cristã.
No mesmo ano o Concílio de Constança ratificou um conjunto de trinta acusações
contra Hus, dentre as quais: a de acusar o papa de ser sucessor de Judas Iscariotes e não
de Pedro; a desobediência eclesiástica e às leis da Igreja e a insubordinação à lei de
Deus; de pregar de maneira injuriosa, ilegal e maliciosa; enfim, de cometer heresia.

39
Sobre John Wycliff, ver EVANS, G. R. John Wycliff. Westmont: InterVarsity Press, 2006.
21

Condenado, Hus foi executado na fogueira no dia 6 de julho de 1415. Os carrascos


receberam ordem de lhe queimar inclusive os cabelos, para não servirem de relíquia.40

As teses de Jan Hus e as acusações contra ele serviram para Lutero elaborar as
suas 95 teses, publicadas na porta da igreja de Wittenberg, Alemanha, em 1517.

40
Sobre Jan Hus, ver MOLNÀR, Amedeo. Jan Hus. Testimone della verità. Torino: Claudiana, 2004; COMI,
Armando. Verità e anticristo. L'eresia di Jan Hus. Bologna: Pendragon, 2007.

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