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Fazer Voluntariado ?

avassaladora, a contagem do número de vítimas mortais começa a


avolumar-se tragicamente. Dei então comigo a rever o meu juízo de valor
A maior ONG do Mundo - IV
sobre o que observava, não era mais um incêndio, mas o incêndio. As
imagens televisivas daquela madrugada ainda rodopiam na minha memória,
como um remoinho. O que se seguiu todos recordamos bem, em
simultâneo, desde a solidariedade mais genuína dos portugueses e em
contraponto, um passa culpas vergonhoso entre entidades abrangidas pelo
logro da Autoridade Nacional de Proteção Civil.

Como cidadão português e perante esta tragédia


inaudita impunha-se-me uma questão. Como poderia
eu ajudar no terreno as populações atingidas por este
nefasto acontecimento. Num post numa rede social,
tomei conhecimento que estavam a aceitar
voluntários para a Missão Esperança sobre a égide da ONG – Médicos do
Missão Esperança
Mundo. Tomada a decisão de abraçar o desafio dos Médicos do Mundo em

Renascer é possível… Castanheira de Pera, um conjunto de procedimentos começaram a ganhar


forma numa lista de material para levar a bom porto, esta minha primeira
Esse sábado tinha sido de trabalho intenso, dividido entre as notas
experiência como voluntário durante uma semana. Ou seja, Inscrever-me na
finais, trabalho final da pós-graduação e o trabalho de texto da peça de
missão; Consultar um mapa para definir o itinerário para Castanheira de
teatro “A máquina”. Quando à noite – finalmente – preparava o sono dos
Pera; Escrever uma lista de material a levar – logística; Agendar assuntos
justos, decidi fazer um último zapping, surgem então as imagens e a
pendentes; Escolher livros para ler durante os momentos de descanso;
atualização da informação sobre o incêndio que lavrava em Pedrógão
Terminadas as férias balneares a sul, o regresso a casa fez-se com
Grande. Num primeiro momento, a situação aparentava ser mais um
calma e demoradamente. Durante a longa viagem, a expetativa apoderou-
incêndio, as informações ainda eram escassas. Contudo numa vertigem
se do meu espírito. Um turbilhão de ideias, umas feitas outras envoltas em curvas e contracurvas, o frondoso arvoredo poupado às chamas, ainda
incertezas, sobre aquilo que iria encontrar no terreno. Nessa quinta feira, a alimentou em mim, um secreto desejo que as imagens mediáticas fossem
manhã teimava em permanecer estática. O derradeiro almoço descontraído um exagero dantesco. Chegado ao topo da montanha, a constatação do
em família, colmatava uma certa ansiedade, estando para breve a minha óbvio, a paisagem tinha–se transformado num cenário desolador e inóspito.
anunciava partida rumo a Castanheira de Pera.
No dia seguinte, durante a tarde escrevi o seguinte poema:
Iniciada a curta viagem até ao Pinhal Interior, parte do itinerário
coincidia com o IP3 Viseu – Coimbra, um asfalto familiar nas suas
contrariedades. A jornada decorria normalmente quando surgiu o meu
espírito aventureiro, decidira encurtar caminho tomando em Penacova a
direção de Vila Nova de Poiares e o resto a seguir se veria, consultando
demasiadas vezes o mapa das estradas desatualizado. Como diriam os
antigos, “Quem se mete em atalhos mete-se em trabalhos…”, apesar de o
saber, neste caso o adágio acabou por cumprir-se malogradamente.

Com as indicações rodoviárias certas inexistentes, às cegas lá fui


avançando no território desconhecido, como recompensa recebi o verde
das paisagens, o serpentear dos rios e ribeiras, a descoberta de vilas e
lugarejos que apenas conhecia do mapa. Chegado a mais uma encruzilhada
em Miranda do Corvo, como resposta à minha desorientação topográfica,
um ancião aconselhou-me que não subisse a serra em direção da Nossa
Senhora da Piedade. Por vezes, por mais insólito que possa parecer, o nosso
destino parece traçado a régua e esquadro, por mais que o evitemos.
Enquanto subia a montanha, nas primeiras subidas íngremes e nas imensas
Gargantas de Luto Diário de Bordo como Voluntário

Encostas calcinadas de negro Dia 1


árvores devoradas de pé
caminhos cobertos de fuligem  Viagem Viseu – Castanheira de Pera – atribulada “ Quem se mete em
casebres devolutos de vida.
atalhos mete-se em trabalhos”;
Terrenos sentenciados  Chegada à Vila e a procura da Praça da Notabilidade;
por uma erosão certa
incapazes para uma fertilidade  Receção no acolhimento ao voluntário;
num futuro próximo.  Preparação do jantar no espaço das refeições;

Num deserto negro de Atacama  Briefing sobre a distribuição de tarefas para o dia seguinte;
uma miragem dolorosa ao nosso olhar  Incorporado na equipa de limpeza de escombros das casas ardidas;
um frondoso bosque de esqueletos
quais varapaus sem préstimo.
Dia 2
Lentamente a vontade de renascer
sacudirá as faúlhas  Pequeno almoço em grupo;
da desgraça para longe.  Manhã suada na limpeza de
Semeará o bosque encantado escombros – Sarzedas do Vasco
à beira dos riachos translúcidos. – Casa da Ti Ermelinda – 1000
Os duendes tristes voltarão a sonhar
com os chilreios da passarada kilos de escombros removidos;
os homens e as mulheres levantarão
 Almoço no Forum – Espaço de
as suas cabeças cabisbaixas de medo.
refeições;
Com muita tenacidade resiliente
 Tarde passada a organizar front
e de viva voz...
Limparão das suas gargantas o luto office com a afixação de
numa luta sem tréguas... Zorb@ o Grego
quadros para contactos,
chaveiros e mapas indicativos;
 Tarefas a tornar habitável a futura casa do Sr. Alcides em Moredos – Dia 5
montagem da cama, aplicação de farmácia e limpezas do frigorífico;  Pequeno- almoço;
 Jantar no espaço de refeições;  Manhã nos escombros – Loja;
 Após a refeição, lavar loiça, limpeza dos espaços e pôr a mesa para o  Almoço;
pequeno almoço;  Tarde nos escombros – Curral junto do estábulo;
Dia 3
 Pequeno almoço tranquilo na companhia de todos; Dia 6 – Feriado Nossa Senhora da Assunção – 15 agosto
 A equipa dos escombros segue novamente para as Sarzedas do  Pequeno-almoço;
Vasco, para limpar uma cozinha e uma loja anexa;  Confeção da comida para os voluntários – Entradas e prato principal;
 Almoço no espaço de refeições;  Limpeza da cozinha – lavar loiça / acondicionamento de refeições;
 Aspirar e passar a esfregona no espaço de refeições;  Ida ao poço do eucalipto na Ribeira de Pera;
 Sesta de 20’ na camarata;  Jantar na sala de refeições;
 Limpeza de escombros das 17horas até 20h30m no mesmo local;  Briefing de coordenação e distribuição de tarefas para o dia
 Briefing para coordenar as tarefas para o dia seguinte; seguinte;
 Confraternização durante o aniversário de um voluntário; Dia 7
 Pequeno almoço com todos;
Dia 4  Limpeza de escombros nas Sarzedas do Vasco – Piso térreo;
 Manhã calma com tarefas de logística;  Almoço na sala de refeições;
 Almoço no espaço de refeições;  Tarefas na casa do Sr. Alcides – registo do material em falta.
 Tarde e noites livre - Conversa em amena cavaqueira entre Dia 8
voluntários sobre o ordenamento do território. Jogos e serão de  Pequeno almoço – Briefing;
música;  Saída para adquirir e carregar lista de objetos necessários para a casa
do Sr. Alcides;
 Limpeza do pátio do Sr. Alcides, arranjo da cama, colocação da ombro a ombro, olhos nos olhos e com a força dos braços de homens
farmácia e do espelho do quarto; e mulheres de boa vontade. Mesmo que o desafio seja ciclópico ou
 Viagem de regresso a casa – Viseu; até parecido com o mito de Sísifo, iremos desafiar os deuses,
empurraremos a pedra até ao topo da montanha, mesmo que ela
Terminava a minha missão sem ter passado pelo pavilhão da role montanha abaixo, teremos a resiliência, a constância e a
roupa, onde um conjunto de voluntárias(os) dia após dia faz um coragem de voltar à liça, porque contrariamente a Sísifo a nossa
trabalho excecional na triagem de roupa, debaixo de uma calor tarefa fará sempre sentido. Como voluntário devo isso a mim
sufocante. mesmo, aos meus camaradas de jornada e àqueles que o infortúnio
Voluntariamente recebi de braços abertos e de mangas delapidou momentânea toda uma vida material e espiritual. Viver na
arregaçadas a Missão Esperança sem reservas e de coração aberto. Castanheira estes dias marcantes, despertou em mim emoções e
O anonimato aparente dos voluntários seduz-nos a sermos nós, sem sentimentos que julgava cristalizados num recanto qualquer do meu
máscaras e disponíveis para partilhar os nossos talentos em prol do ser, estou grato pela oportunidade que tive de os reviver entre vós
bem comum. E aos poucos sentimos que chegamos a um lugar de uma forma tão intensa. Como já tive oportunidade dizer umas
especial, onde o coração deve enxergar mais do que os olhos. Somos linhas atrás, foi difícil cá chegar, mas foi muito mais difícil de partir.
mais um entre iguais, capazes de integrar um trabalho de equipa sem Uma certeza tenho porém, por muitas vezes que chegue e parta,
olhar a hierarquias. Aos poucos sentimos as aproximações dos nunca chegarei a partir verdadeiramente, porque estando de corpo
outros, a interagir de mansinho, pé ante pé, como uma aragem que presente em qualquer lugar, a minha cabeça e coração estarão
nos envolve. E o truque é sermos genuínos com as nossas sempre ao vosso lado.
fragilidades e as nossas forças de mudar o que podermos, sempre https://www.easypay.pt/form/?f=medicos-do-mundo
com a convicção que não temos a verdade absoluta. Saber ouvir os Carlos Cruchinho
Texto redigido segundo o novo acordo ortográfico
outros, incluindo aqueles que tudo perderam literalmente, serve
Créditos das fotos: Mauro Pereira, Carla Paiva e
sobretudo para compreender profundamente o que nos rodeia, as
Carlos Cruchinho.
tristezas, as angústias, o lacrimejar, a revolta contida e o desânimo. Poema – Gargantas de Luto – Zorb@ o Grego –
Mas na grande família da humanidade, as tragédias superam-se Pseudónimo de Carlos Cruchinho

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