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Núcleo de Educação Popular 13 de Maio - São Paulo, SP .

CRÍTICA SEMANAL DA ECONOMIA


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EDIÇÃO Nº 1180/1/2 – Ano 28; 4ª Sem. Fev. 1ª/2ª Mar 2014.

CORRIENTES 348 . JOSÉ MARTINS.


Por trás das atuais turbulências cambiais na Argentina uma histórica
violência econômica e sua expressão política do maior genocídio social do
pós-guerra em um grande Estado moderno.
Domingo Cavallo, ministro argentino da Economia entre 1991 e 2002, implantou e
administrou o Plano de Conversibilidad. Era um plano esquizofrênico de câmbio fixo 1
peso=1 dólar. Na prática equivalia a uma dolarização informal da economia. Para cada
peso em circulação internamente, deveria existir um dólar estocado nas reservas
internacionais do BC argentino. Por esta e por outras coisas piores Cavallo foi um
criminoso político como outro qualquer. Mas era um economista bem informado. Sabia,
por exemplo, que o valor de uma moeda nacional e, portanto, sua correspondente taxa
de câmbio, é fundamentalmente determinado pela produtividade da economia nacional.
Correto, a moeda não cai do céu. Muito menos do BC. É uma forma do valor.
Depende, portanto, de como o capital é valorizado na economia nacional. Os bancos
centrais e suas políticas monetárias e cambiais giram em torno dessa determinação. Era
essa lição teórica que Cavallo tentava, em 1999, destrinchar em palestra para um bando
de idiotas empresários, economistas e jornalistas: “o peso poderia até flutuar em relação
ao dólar, mantendo a conversibilidade” – dizia o mago da conversibilidad – “desde que
essa situação reflita uma valorização do peso em consequência de fatores reais da
economia, como ganhos de produtividade, redução de custos internos, etc.” 1
Alguns meses depois, o país afundaria em uma das maiores crises da sua
história. A explosão da Conversibilidad de Cavallo confirmava praticamente, mais uma
vez, a lei do valor trabalho – quer dizer, o peso argentino sempre foi e será uma moeda
fraca, inconversível enquanto a indústria do país não for capaz de desenvolver uma
produtividade do trabalho nos mesmos níveis das indústrias daquelas economias cujas
divisas dominam o sistema monetário mundial.

FRAGILIDADE EM PROCESSO – E agora, as turbulências cambiais argentinas de 2014


repetem aquelas de Cavallo de doze anos atrás? A farsa mudou de cara, mas a tragédia
continua a mesma. Com um potencial ainda mais destruidor. Não aprenderam a lição da
lei do valor. A elevada produção e valorização do capital do período pós-
conversibilidad dos Kirchner, 2003-2014, que conferimos no boletim anterior, não
muda nada o caráter histórico de uma economia dominada na ordem capitalista mundial.
Confundir crescimento com desenvolvimento econômico é um erro gravíssimo.
O primeiro é quantidade, o segundo é qualidade. A regra é clara: na Argentina, como no
Brasil e nas demais economias dominadas do sistema, a produção pode ser muito alta ou
muito baixa, mas a produtividade sempre será baixa; pode-se aumentar o quanto quiser

1
Citado in José Martins – “Os Limites do Irracional – globalização e crise econômica mundial” – Editora
Fio do Tempo, São Paulo, 1999, pg.291.

1
a sua produção, mas isso não mexerá um milímetro da inabalável rigidez de sua
produtividade sistêmica. Esta regra, que estamos repetindo ipsis litteris há um bom
tempo é perfeitamente comprovada em investigações de dois excelentes economistas
argentinos.2 Kennedy e Graña concentram suas investigações “no estudo da evolução
dos determinantes dos ciclos econômicos na Argentina, observados na participação
assalariada, nos salários reais e na produtividade, para o conjunto da economia.” E
chegam a importantes conclusões: em primeiro lugar, na Argentina a taxa de lucro
esteve crescentemente relacionada mais com a queda do salário real do que com o
aumento da produtividade. Essa forma de valorização do capital nas manufaturas
através da extração de mais-valia absoluta é uma clara tendência observada pelos
autores desde os anos setenta, pelo menos.
Essa reviravolta no processo de valorização é crucial na economia e na
sociedade argentina, como veremos mais a frente. Mas por que essa nova forma de
mais-valia e a profunda deterioração do salário real na Argentina? Kennedy e Graña
fazem o diagnóstico correto de que esse processo encontra-se implícito na evolução
histórica recente da economia argentina, observando que nestes últimos quarenta anos
“a menor produtividade relativa da economia nacional e sua débil evolução implica
maiores custos relativos para as empresas capitalistas que devem ser compensados para
continuarem funcionando. A variável de ajuste é claramente o salário real... Para o
conjunto da economia a acumulação do capital encontrou uma fonte de ‘financiamento’
na deterioração do salário real, fonte que representa, desde meados dos anos setenta,
uma porção cada vez maior do lucro total.”
Esse processo de fragilidade produtiva pode ser mais bem visualizado
comparando-se a evolução dos salários reais e produtividade na Argentina e Estados
Unidos no longo prazo.

Evolução do salário real e da produtividade industrial. Argentina e Estados Unidos.


Evolução 1950-2008, 1970=100

Fonte: Kennedy e Graña, op. cit.

Salta à vista, primeiramente, a débil evolução da produtividade na economia argentina


desde a virada dos anos 1960 para 1970. Uma “inabalável rigidez de sua produtividade

2
Damián Kennedy e Juan M. Graña – “Salarios y productividad en la industria argentina. Perspectivas a
partir de una mirada histórica.” – Centro de Estudios sobre Población, Empleo y Desarrollo
(CEPED) – Universidad de Buenos Aires, 2013.

2
sistêmica”, essa característica histórica das economias dominadas, onde predomina a
mais-valia absoluta. Enquanto a produtividade argentina não cresceu mais que 68%
entre 1970 e 2008, a norte-americana foi impulsionada em 312%.
Portanto, a elevada brecha de produtividade atualmente observada entre as duas
economias iniciou-se e ampliou-se apenas nas últimas quatro décadas. Observando-se a
evolução entre 1950 e 2008, verifica-se que o incremento é relativamente menor, pois
enquanto a produtividade da indústria argentina expandiu em 319%, a estadunidense
expandiu em 560%. Em outros termos, enquanto a relação entre o crescimento das duas
indústrias para a todo o período é de 1,75 a favor dos EUA, quando se considera o
subperíodo 1970-2008 tal relação sobe para 4,6 vezes.
No mesmo sentido, enquanto o salário real na indústria argentina caiu 30%
entre 1970 e 2008, nos EUA essas remunerações reais elevam-se em torno de 40%. Se
for considerado todo o período 1950-2008, o salário real cai 11% na indústria argentina
e expande 129% na estadunidense. Essa evolução histórica dos salários e produtividade
revela aquele pesadíssimo câmbio da valorização do capital na Argentina da mais-valia
relativa para a mais-valia absoluta.

Anotação à margem: Podemos refletir que essa abrupta ruptura e fragilização


industrial marca uma profunda diferença da história econômica e social da Argentina
com as demais economias latino-americanas, particularmente suas duas maiores
(Brasil e México), que nunca experimentaram nenhum grande período de
desenvolvimento econômico (mais-valia relativa), como parece ter ocorrido com a
Argentina até os anos 1960. Essa violência material não poderia realizar-se sem um
correspondente desdobramento político e social. A partir de 1976, principalmente,
implantou-se um terrorismo de Estado na Argentina que executou a sangue-frio o
maior genocídio social do pós-guerra em um grande Estado moderno. Apoiado pelas
inúteis classes dominantes internas, o ataque imperialista sobre a classe trabalhadora
da Argentina quebrou as condições anteriores de desenvolvimento e organizou esse
retrocesso da economia observado nos últimos quarenta anos. O genocídio militarizado
sobre a sociedade ocorrido neste período foi, portanto, a expressão política adequada
deste trabalho sujo de quebrar as pernas do país e impor a sua submissão real às novas
cadeias globais de valorização do capital imperialista. Essa é a base da grande
tragédia argentina atual. Destruíram o corpo e retiraram a alma da orgulhosa
Argentina que sobreviveu até os anos sessenta. Completado o momento mais sinistro
deste genocídio, o neopopulismo peronista de Menem e dos Kirchner legitima e procura
administrar o aprofundamento da miséria e a paz dos cemitérios correspondentes às
novas condições produtivas e sociais do país.

SALÁRIO E CÂMBIO – A comparação da produtividade e salários na Argentina e EUA


confirma a teoria econômica dos trabalhadores (Marx e Engels) acerca das diferenças
salariais entre as nações. Resumidamente, enquanto na Argentina o salário real (poder
de compra) é muitas vezes menor do que nos EUA, acontece exatamente o contrário
com o salário relativo (relação entre a produção por trabalhador e a massa salarial), que
corresponde nas estatísticas correntes ao custo unitário do trabalho. O salário relativo,
ou valor da força de trabalho, é a medida mais precisa da produtividade, ou da taxa de
exploração (mais-valia). A diminuição do primeiro determina a elevação da segunda, e
vice-versa. Na Argentina, durante o período dos últimos quarenta anos,
aproximadamente, o salário real cai pesadamente e o salário relativo aumenta na mesma
proporção, jogando a classe trabalhadora no inferno da miséria e da fome absoluta. Nos
EUA, no mesmo período, o salário real se eleva, mas o salário relativo cai mais

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aceleradamente, jogando a classe operária daquele país no inferno da exploração, das
guerras, das variadas doenças da civilização e da loucura. A miséria e a exploração
fundem-se dialeticamente na unidade das duas formas de extração da mais-valia
(absoluta e relativa) e se realizam na totalidade do mercado mundial e da divisão
internacional do trabalho. Essa é a base real do desenvolvimento desigual e combinado
da acumulação capitalista global. Na hierarquia dessa totalidade, a Argentina cumpre
função subalterna e de baixa competitividade no comércio internacional. Torna-se
progressivamente menos competitiva frente às economias melhor preparadas.
A consequência necessária desta baixa produtividade é que seus preços de
produção estão continuamente se elevando na Argentina relativamente aos dos EUA.
Essa perda de competitividade ameaça a própria existência da indústria com a avalanche
de importações de mercadorias até então produzidas internamente. Para o capital
continuar existindo, a perda crônica de competitividade deve ser compensada
fundamentalmente por um profundo rebaixamento dos salários reais. É exatamente a
saturação dessa compensação à baixa produtividade que se manifesta periodicamente na
superfície do processo como súbitas desvalorizações cambiais. Na Argentina, estas
desvalorizações e consequentes crises cambiais, que ocorrem na esfera da circulação do
capital comercial e financeiro, apenas sancionam aquela crescente brecha de
produtividade entre a economia doméstica e a norte-americana, fato que se desenrola na
esfera da produção.

RENDA E CÂMBIO – Nesta frágil estrutura cambial argentina, a sobrevivência da própria


indústria passa a depender não só de rebaixamento dos salários reais mas também das
divisas geradas pelas exportações de produtos agrícolas e da renda fundiária apropriada
pela classe terrateniente. Outra poderosa classe proprietária age no processo, além da
burguesia industrial e financeira.
Na última semana de janeiro de 2014, por exemplo, o peso sofria uma
desvalorização de 17%. Se contasse com a boa vontade dos terratenientes para estancar
a desvalorização o governo não precisaria ter queimado naquela semana quantidades
enormes das suas já escassas reservas internacionais. Porém, os terratenientes são os
primeiros a especular com a crise cambial. A manobra consiste em postergar o
fechamento do câmbio (cambiar no BC os dólares das exportações por pesos) para
ganhar com uma maior desvalorização da moeda nacional. Assim, só na última semana
de Janeiro eles embolsaram aqueles 17% sobre as divisas em que estavam sentados.
Frente a denúncia do governo desta fraudulenta manobra, o presidente das
Confederações Rurais Argentinas, que atende pelo nome de Pedro Apaolaza, declarou a
uma rádio local que venderiam quando considerassem oportuno "porque este é um país
livre". E, continuando seu discurso de um típico economista neoclássico, concluiu:
"Cada um faz a economia que pode. O produtor vai comercializar quando considerar
oportuno". Devemos evitar qualquer critica moral a esta perfeita descrição darwiniana
das regras do mercado. A única discordância técnica que se pode fazer com o
representante dos patrióticos agroexportadores é que ele afirma que “o produtor vai
comercializar quando considerar oportuno”. Ora, quem comercializa essas mercadorias
não são seus produtores, mas, ao contrário, os próprios proprietários da terra e do capital
representados pelo presidente das Confederações Rurais Argentinas. Se as mercadorias
exportadas pela Argentina fossem controladas e comercializadas pelos trabalhadores
que as produziram a crise cambial seria certamente muito menos aguda.
Entretanto, a própria estrutura industrial argentina é refém da repartição das
divisas geradas e apropriadas pelos capitalistas e rentistas do agronegócio de exportação
de cereais (trigo e milho) e de soja. Esse problema de repartição da mais-valia social

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entre renda e lucro passa a ser um importante fator da estagnação produtiva nacional.
Depois da explosão da conversibilidad de Cavallo, em 2002, não houve nenhuma
transformação do aparelho produtivo nacional, mas uma proliferação de capitais na
forma de pequenas e médias empresas de baixíssima produtividade. Isso projeta um
aumento ainda maior da brecha produtiva com os Estados Unidos e outras economias
melhor preparadas. E levará necessariamente a uma pressão constante pela
desvalorização da taxa nominal de câmbio para manter o nível de atividade e do
emprego no país. Só uma elevação dos preços internacionais de matérias primas
(commodities), como ocorrido até 2011, poderia funcionar como um contrapeso para
manter a indústria a tona. Mas nas condições do ciclo global em curso essa elevação de
preços das commodities é muito improvável, exatamente porque a diminuição dos
preços das matérias primas é um importante fator de sustentação da taxa de lucro e de
acumulação no centro do sistema.

PONTO DE EBULIÇÃO – Se falta, portanto, a sustentação da renda fundiária para abortar


a iminente crise cambial e garantir a sobrevivência dos proprietários da indústria e do
lucro, resta a estes últimos apenas a ação compensatória de lançar os dados para uma
desvalorização cambial recorde. Esta reforçaria, como vimos, uma significativa redução
salarial, que, na verdade, já se encontra em curso com o brutal aumento dos preços dos
bens necessários à reprodução da força de trabalho – carne, trigo, leite, etc.
A inércia da expansão global pode fazer com que o momento da nova explosão
cambial possa ser arrastado pelos próximos doze meses, reestabelecendo-se certo
controle pelo governo. Mas essa possibilidade de arrastamento será testada nas ruas, no
decorrer do mês de Março a seguir, quando serão realizadas as “paritárias”, campanhas
salariais dos maiores sindicatos de trabalhadores do país. As decisões tomadas nestas
“paritárias” serão referências para os reajustes salariais de todos os trabalhadores,
incluindo informais, terceirizados, etc. Quanto deve ser o reajuste dos salários que
comandarão as campanhas salariais? A inflação dos últimos doze meses já está em torno
do 30%, muito longe dos indicadores manipulados pelo governo. A quanto ela chegará
em 2014? Calcula-se que só no mês de Janeiro houve um aumento dos preços ao
consumidor de 3,7 %, mais da metade da inflação brasileira dos últimos doze meses.
Uma coisa é certa: a luta de classes deve se acelerar e decidir, finalmente, a data
de explosão de um período de crise na Argentina muito maior que entre 2000 e 2002. Só
na esteira desta poderão surgir também as possibilidades de revolução e de eliminação
pela classe trabalhadora deste inadmissível Estado da morte encarnado nas classes
dominantes internas e no terrorismo imperialista internacional.

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