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São Paulo, domingo, 28 de janeiro de 2001

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+ livros

"Teoria Geral da Política" reúne dezenas de ensaios do


italiano Norberto Bobbio

Uma defesa da filosofia política


Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha

Norberto Bobbio talvez seja, desde o finado são Tomás de


Aquino, o filósofo mais empenhado em distinguir conceitos.
Isso lembra que na capa do "Leviatã", de Hobbes, há um
desenho mostrando as distinções efetuadas pela filosofia
escolástica. Para Hobbes, um dos autores que Bobbio melhor
conhece, esse procedimento escolástico era estéril e inútil. Já
as diferenças conceituais que Bobbio se esmera em
aprofundar são fecundas e produtivas.
"Teoria Geral da Política" reúne dezenas de ensaios antes
dispersos de Bobbio. Seu sucessor em Turim, Michelangelo
Bovero, conseguiu dar-lhes coesão. Mas, por sua natureza
fragmentária, uns desses textos são repetitivos, outros só
alusivos.
Quem ainda não conhece Bobbio fará melhor em começar por
obras mais acabadas, como "Liberalismo e Democracia"
(Brasiliense), "Direita e Esquerda" (ed. da Unesp), "A Era dos
Direitos" (Campus) ou "O Futuro da Democracia" (Paz e
Terra). Este livro interessa mais a quem já leu algo deste que é
um dos grandes pensadores vivos da política.
Bobbio aqui promove uma defesa da filosofia política.
Contrasta-a com a ciência política. Entende que podemos
debater as questões atuais do poder com o arsenal dos
clássicos, isto é, dos filósofos da política. Talvez alguns
cientistas políticos não concordem, exigindo que se faça
pesquisa empírica. Mas fique claro que Bobbio não
desmerece a ciência política -o que faz é afirmar a capacidade
da filosofia para pensar o nosso tempo.
Tal atitude está ligada a um uso do tempo que é típico da
filosofia. Mesmo quando trata de temas que são também os
das ciências humanas, ela os aborda a partir de textos que,
embora afastados de sua origem, continuam vivos.
É o caso, também, das artes ou da literatura. A diferença é que
a filosofia compartilha, com as artes, a idéia do caráter perene
de suas obras e, com as ciências humanas, a ambição de falar
sobre o mundo, de compreendê-lo, de decifrar o que nele é
esfinge.
Liberdade antiga e moderna
Esse longo circuito dos textos filosóficos produz certos pontos
altos, como a análise das duas idéias de liberdade, a "antiga"
(ou afirmativa, ou socialista) e a "moderna" (ou negativa, ou
liberal), ou o capítulo sobre política e moral. Um fio condutor
de Bobbio está em procurar juntar o que há de melhor nas
posições em confronto e, embora se evidencie sua simpatia
pela democracia liberal, ele nem sequer cogita minimizar os
direitos sociais ou os ideais socialistas.

Estão ausentes nesta obra de Bobbio tanto a politização


do desejo e da felicidade quanto a dor ante as
experiências do mal na política

Distinguir é uma estratégia hábil no sentido de reduzir as


oposições, de promover o diálogo, de projetar sínteses que
reúnam o que há de mais positivo entre os antagonistas. Mas
aí temos um problema. As tipologias de Bobbio são ricas e
úteis; não só didaticamente ajudam o estudante ou o estudioso
a pensar, como permitem, no mundo prático, equacionar
vários problemas. Mas às vezes se tornam um fim em si (volta
com frequência o lema "é preciso distinguir"). Reduzem ou, o
que é mais sério, ignoram o teor passional da discussão.
Criam um descompasso entre a política como é vivida e como
é pensada.
Embora Bobbio recuse, com razão, separar o plano do político
e o do social (pág. 394), sua discussão separa-os do desejo.
Salvo erro, nesta obra não menciona o tema da felicidade. E
no entanto o fulgor das revoluções que abrem nosso tempo
deve muito à frase da Revolução Francesa, "a felicidade é
uma idéia nova na Europa" (de Saint-Just), e a um tema da
Revolução Americana, que é o direito à busca da felicidade
(Thomas Jefferson).
Uma das grandes novidades após 1968 foi quebrar os muros
entre a política das instituições, dos partidos e dos políticos,
por um lado, e a vida privada ou íntima, por outro. O sexo, o
amor, as relações pessoais se politizaram, mesmo que tenha
sido, às vezes, com certa ingenuidade. Isso não só criou novos
temas, mas mudou a forma de pensar os anteriores.

Regimes do desejo e da vontade


Se, como tenho sustentado, a democracia é o regime do
desejo, que leva os de baixo a lutarem por ter e ser mais,
enquanto a república é o regime da vontade, que controla o
desejo a fim de preservar o bem comum, então a reflexão de
Bobbio é mais republicana do que democrática. E, se for
assim, o que ele aplaude na democracia, nos direitos humanos
e na paz ainda expressa um olhar sobre as coisas mais de cima
(do viés do príncipe, mesmo que seja o príncipe eleito), do
que do ângulo de um povo cada vez mais plebe, cada vez
mais desejo, cada vez mais público do Ratinho ou da RAI
(Rádio e Televisão Italiana).
Talvez duas ausências, simétricas, nesta obra de Bobbio
atestem esse ponto. Tanto está ausente a politização do desejo
e da felicidade quanto a dor ante as experiências do mal na
política -o mal que as ditaduras causam. Há muita elegância e
até otimismo no trato teórico da política; há pouca paixão,
porém, seja no sentido de sofrimento, seja no de entusiasmo.
Quem sabe a política atual, para ser pensada, peça um pouco
menos de elegância e um pouco mais de pathos.

Renato Janine Ribeiro é autor de "A Sociedade contra o Social - O Alto


Custo da Vida Pública no Brasil" (Companhia das Letras) e de "Democracia
Versus República", em "Pensar a República" (Editora UFMG).

Teoria Geral da Política


720 págs., R$ 79,00
de Norberto Bobbio. Tradução de Daniela Versiani. Ed. Campus (r. Sete de
Setembro, 111,
16º andar, CEP 20050-002, RJ, tel. 0/xx/21/ 509-5340).

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