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tradere #15

Maio 2009 K Selecção de Textos & Composição Gráfica Daniel Curval K Biblioteca Municipal da Póvoa de Varzim
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DESEMPACOTANDO A MINHA BIBLIOTECA


Ich packe meine Bibliothek aus
[1931]

WALTER BENJAMIN
Tradução de João Barrento
Edições Assírio e Alvim, 2004

Uma palestra sobre o coleccionador utilidade para um escritor? As palavras que se


seguem têm, de qualquer modo, a intenção de
vos revelar algo de menos oculto, de mais
Estou a desempacotar a minha palpável: o que me move é dar-vos uma ideia da
biblioteca. É verdade, os livros ainda não estão relação de um coleccionador com as peças da
nas prateleiras, não os envolve ainda o tédio sua colecção, uma perspectiva da actividade de
silencioso da ordem. Não posso também coleccionar, mais do que de uma colecção.
caminhar ao longo das suas fileiras para os Faço-o, de modo arbitrário, reflectindo sobre os
passar em revista em presença de um auditório diversos modos de adquirir livros. Esta decisão,
benevolente. Não tendes de temer nada disso. ou qualquer outra, é apenas um dique contra a
Peço-vos apenas que me acompanhem nesta maré das recordações que avança na direcção de
desordem de caixotes abertos, no ar cheio de pó qualquer coleccionador que se ocupa do que
de madeira, no chão cheio de papéis rasgados, adquiriu. Toda a paixão está próxima do caos,
sob as pilhas de livros que acabaram de ver de mas a de coleccionar confina com o das
novo a luz do dia depois de dois anos de recordações. Mas direi mais ainda: o acaso, o
escuridão, para partilharem um pouco comigo o destino, que tingem o passado diante dos meus
estado de espírito, nada elegíaco, antes tenso, olhos, estão também presentes na desordem
que eles despertam num autêntico colec- familiar destes livros. De facto, o que é esta
cionador. É, de facto, alguém desta estirpe que colecção senão uma desordem na qual o hábito
vos fala, e, no fundo, vos fala só de si. Não seria se instalou de tal modo que ela pode apresentar-
presunção insistir aqui numa pretensa se como ordem? Já ouviram falar de pessoas que
objectividade, enumerando-vos as peças ou as adoecem pela perda dos seus livros, e de outras
secções mais importantes de uma biblioteca, ou que para os adquirir se tornam criminosos.
a história da sua génese, ou mesmo a sua Nestes domínios, toda a ordem mais não é do
que um estado periclitante à beira de um infantil que no coleccionador se encontra com o
abismo. senil. As crianças têm a capacidade de renovar a
«O único conhecimento exacto que existe», existência graças a uma prática múltipla e nunca
disse Anatole France, «é o do ano de publicação complicada. Nelas, nas crianças, o coleccionar é
e do formato dos livros.» De facto, se existe um apenas um processo de renovação; outros são o
contraponto para a desordem de uma de pintar os objectos, de recortar, de decalcar, e
biblioteca, é o da ordem do seu inventário. toda a escala dos modos de apropriação das
Assim, a existência do coleccionador crianças, do tocar até ao nomear. Renovar o
assenta numa tensão dialéctica entre os pólos da mundo velho - é este o impulso mais enraizado
desordem e da ordem. na vontade do coleccionador de adquirir peças
Mas, naturalmente, está ligada a muitas novas, e por isso o coleccionador de livros
outras coisas. A uma relação muito enigmática antigos está mais perto da fonte do coleccionar
com a propriedade, sobre a qual ainda direi do que os que se interessam por reimpressões
mais. Depois, a uma relação com as coisas que bibliófilas. Algumas palavras agora sobre o
não coloca em primeiro plano o seu valor modo como os livros ultrapassam o limiar de
funcional, portanto a sua utilidade, mas as uma colecção, como passam a ser propriedade
estuda e ama enquanto palco, teatro do seu de um coleccionador, em resumo, sobre a
próprio destino. O mais profundo história da sua aquisição.
encantamento do coleccionador é o de fechar a De todas as formas de obter livros, a que
peça individual num círculo mágico em que ela, se considera mais louvável é escrevê-los. Alguns
enquanto é atravessada por um último calafrio - de vós estarão a pensar, divertidos, na grande
o da sua aquisição -, fica petrificada. Tudo o biblioteca que o mestre-escola Wuz de Jean
que é recordação, pensamento, consciência, se Paul foi acumulando com o tempo, recorrendo
torna pódio, moldura, pedestal, fecho da sua ao expediente de escrever ele próprio todas as
propriedade. A época, a região, a manufactura, obras cujos títulos lhe interessavam nos
o proprietário anterior - tudo isto se transforma catálogos das feiras, mas que ele não podia
para o verdadeiro coleccionador, em cada uma comprar. Os escritores são de facto pessoas que
das suas peças, numa enciclopédia mágica cuja escrevem livros, não por pobreza, mas por
quinta-essência é o destino do seu objecto. insatisfação com os livros que poderiam
Aqui, neste campo estreito, é possível começar a comprar, mas não lhes agradam. Direis, minhas
conjecturar como os coleccionadores, como os senhoras e meus senhores, que se trata de uma
grandes fisionomistas - e os coleccionadores são definição bizarra do escritor. Mas bizarro é tudo
os fisionomistas do mundo das coisas — se aquilo que se diz a partir do ponto de vista de
tornam intérpretes do destino. Basta observar um autêntico coleccionador. Entre os modos de
como um coleccionador manipula os objectos aquisição mais correntes, o mais conveniente
na sua vitrina. Mal lhes pega, sente-se logo para o coleccionador seria o de os pedir
inspirado para olhar através deles para a emprestados, sem depois os devolver.
distância de onde vêm. Encerremos este lado Os grandes especialistas em pedir livros
mágico do coleccionador, do seu retrato- emprestados, que estamos a considerar, revela
quando-velho, poderia dizer-se. Habent sua fata ser um inveterado coleccionador de livros, não
libelli: talvez esta expressão tenha sido pensada tanto pelo fervor com que guarda o seu tesouro
como uma proposição geral sobre os livros. emprestado, fazendo orelhas moucas a todas as
Os livros, como A Divina Comédia, a Ética de advertências da legalidade corrente, mas muito
Espinosa ou A Origem das Espécies, têm o seu mais porque também ele não lê esses livros.
destino. O coleccionador, porém, interpreta Se quiserem acreditar na minha experiência,
diferentemente esta máxima latina. Para ele, digo-vos que muita gente me devolveu livros
não são os livros, mas os exemplares, que têm emprestados, mas muito poucos os leram. E isso
um destino. E para ele, o mais relevante destino de não ler os livros, perguntarão, é uma
de um exemplar é o seu encontro com ele, com característica do coleccionador?
o coleccionador e a sua colecção. Não exagero Só se for de agora.
quando digo que para um coleccionador a Não, os especialistas confirmar-vos-ão que é
aquisição de um livro antigo significa o seu uma das coisas mais velhas do mundo. Lembro
renascimento. É nisso que consiste o lado aqui apenas a resposta que novamente Anatole

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France tinha na ponta da língua para dar ao de dolorosas desilusões, os achados mais felizes.
idiota que admirava a sua biblioteca, Lembro-me, por exemplo, de um dia ter
terminando com a pergunta obrigatória: encomendado um livro com ilustrações
«E o senhor leu tudo isto, senhor France?» - coloridas para a minha colecção de livros
«Nem a décima parte! Ou será que o senhor infantis antigos, só porque ele continha contos
come todos os dias no seu serviço de Sèvres?» de Albert Ludwig Grimm e tinha sido editado
Tirei, aliás, a contraprova da em Grimma, na Turíngia. Precisamente de
legitimidade deste tipo de atitude. Durante anos Grimma procedia um livro de fábulas editado
- durante mais de um terço da sua existência -, a por esse mesmo Albert Ludwig Grimm. E o
minha biblioteca não consistiu em mais que exemplar que eu possuía, com as suas dezasseis
duas ou três fileiras de livros que cresciam ilustrações, era o único testemunho preservado
anualmente apenas alguns centímetros. Foi o do grande ilustrador alemão Lyser, que viveu
seu período marcial, em que nenhum livro nela em Hamburgo em meados do século passado.
podia entrar sem que eu lhe soubesse a senha, Ora, a minha reacção à coincidência dos nomes
sem que o tivesse lido. Talvez eu nunca tivesse fora muito exacta. Também neste livro descobri
chegado a reunir aquilo a que se pode chamar trabalhos de Lyser, precisamente uma obra
uma biblioteca sem a inflacção, que de repente - Linas Mãhrchen-buch [O Livro de Contos de
veio alterar o valor das coisas e transformar os Lina] - desconhecida de todos os seus
livros em objectos de valor, ou pelo menos bibliógrafos, e que merece uma referência
difíceis de obter. Pelo menos, era assim que as explícita como esta, que é a primeira.
coisas se me apresentavam na Suíça. E foi de A compra de livros não se resume a uma
facto aí que fiz, à última hora, as minhas questão de dinheiro ou de conhecimento
maiores encomendas de livros, pondo a salvo especializado. Nem mesmo as duas coisas juntas
coisas tão insubstituíveis como Der Blaue Reiter bastam para fundar uma biblioteca, que tem
ou Die Sage von Tanaqui 1, de Bachofen, que sempre, ao mesmo tempo, alguma coisa de
nessa altura ainda se podiam arranjar no editor. misterioso e de inconfundível. Quem compra
Agora, pensareis que, depois de tantos desvios, por catálogo, tem de ter, para além disso, um
já é altura de enveredar pela estrada larga da faro muito apurado. Datas, nomes de lugares,
aquisição de livros, a da compra. É com certeza formatos, donos anteriores, encadernação, etc.,
uma estrada larga, mas nada cómoda. A compra tudo isto tem de lhe dizer alguma coisa, e não
do coleccionador tem muito pouco a ver com as apenas enquanto factos isolados e áridos; estas
que fazem numa livraria um estudante, quando coisas têm de se harmonizar, e é pela
precisa de um compêndio, um homem do harmonização e pela precisão da convergência
mundo, quando quer dar um presente à sua de elementos que ele tem de saber reconhecer se
dama, ou um viajante, para encurtar a próxima tal livro lhe convém ou não. Já um leilão exige
viagem de comboio. As minhas compras mais do coleccionador capacidades totalmente
memoráveis fi-las em viagem, como transeunte. diferentes. Para o leitor de um catálogo, o que
A propriedade e o ter subordinam-se à táctica. deve contar é o livro em si, e eventualmente o
Os coleccionadores são pessoas com instinto
seu anterior proprietário, se for indicada a
táctico; a sua experiência diz-lhes que, ao
proveniência do exemplar. Quem quiser intervir
tomarem de assalto uma cidade, o mais
num leilão, terá de dividir a sua atenção, em
pequeno alfarrabista pode ser um forte, a
partes iguais, pelo livro e pelos concorrentes, e
papelaria mais fora de mão uma posição-chave.
ainda manter a cabeça fria, para - como
Quantas cidades não se me abriram nas
acontece tantas vezes - não se deixar levar pela
caminhadas que fiz em busca de livros!
luta com a concorrência e acabar na situação de
Não tenho dúvidas de que apenas uma
ter de pagar um preço de arrematação demasia-
pequena parcela das aquisições mais
do alto, porque fez a sua oferta mais para
importantes se faz na livraria. Os catálogos
afirmar uma posição do que por interesse pelo
desempenham um papel muito mais relevante.
livro. Por outro lado, uma das recordações mais
E ainda que o comprador conheça muito bem o
belas do coleccionador é a daqueles momentos
livro que encomenda por catálogo, o exemplar é
em que saiu em defesa de um livro em que
sempre uma surpresa e na encomenda há
nunca tinha pensado nem tinha desejado,
sempre uma ponta de acaso. Acontecem, a par

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porque ele estava tão abandonado e sozinho Sem chamar a atenção da assistência, o leiloeiro
numa venda pública, e ele o comprou, como o passou à arrematação, com a costumeira
príncipe fez com a bela escrava nos Contos das fórmula «Ninguém dá mais?» e as três pancadas
Mil e Uma Noites, para o libertar. E que para o - que a mim me pareceram separadas por
coleccionador de livros a verdadeira liberdade intervalos de uma eternidade. Para um
de qualquer livro encontra-se algures nas suas estudante como eu, a soma era ainda bastante
estantes. Ainda hoje La peau de chagrin, de elevada. E a manhã seguinte na casa de
Balzac, se ergue, entre longas fileiras de livros penhores já não faz parte desta história. Em vez
franceses, como monumento da minha mais disso, prefiro falar de um acontecimento que
excitante experiência num leilão. Foi em 1915, vejo como o negativo de um leilão. Foi no ano
no leilão Rümann, organizado por Emil Hirsch, passado, num leilão em Berlim. O catálogo
um dos maiores conhecedores de livros e ao oferecia uma série de livros, muito desiguais em
mesmo tempo um dos mais distintos qualidade e temas, entre os quais se
comerciantes. A edição em questão foi encontravam algumas obras dignas de nota,
publicada em 1838 em Paris, na Place de la sobre ocultismo e filosofia natural. Fiz as
Bourse. Ao pegar no meu exemplar, vejo não minhas ofertas para algumas delas, mas reparei
apenas o número da colecção de Rümann, mas num senhor que, nas primeiras filas, esperava
até a etiqueta da livraria onde, há mais de apenas pela minha oferta para cobri-la com a
noventa anos, o primeiro dono o comprou por sua, e sem limite. Depois de ter repetido esta
um preço cerca de oitenta vezes inferior ao de experiência várias vezes, perdi toda a esperança
hoje. Na etiqueta lê-se: Papeterie I. Flanneau. na aquisição do livro que mais me interessava.
Belos tempos aqueles, em que se podia comprar Eram os raros Fragmente aus dem Nachlasse
numa papelaria uma edição de luxo como esta - einesjungen Physikers [Fragmentos Póstumos de
as gravuras foram concebidas pelo maior um Jovem Físico], que Johann Wilhelm Ritter
desenhador francês e executadas pelos maiores publicou em Heidelberg em 1810, numa edição
gravadores. Mas o que eu queria contar era a em dois tomos.
história da aquisição do livro. Fora à loja de A obra nunca mais foi reimpressa, mas o
Emil Hirsch para ver as obras antes do leilão, preâmbulo, em que o autor-editor evoca o
tive nas mãos quarenta ou cinquenta livros, e amigo anónimo supostamente falecido - que
este com o desejo ardente de nunca mais o não é senão ele próprio -, fazendo o relato da
largar. Chegou o dia do leilão. Por um acaso, a sua própria vida, é para mim uma das mais
ordem da venda incluía, imediatamente antes significativas peças de prosa pessoal do
deste exemplar de La peau de chagrin, a série Romantismo alemão.
completa das gravuras numa tiragem separada No momento em que o leiloeiro anunciou o
em papel da China. Os adjudicatários estavam número desta obra, veio-me uma inspiração.
sentados a uma mesa comprida; em linha Era bastante simples: uma vez que a minha
oblíqua à minha frente, o homem que nas oferta iria infalivelmente permitir ao outro ficar
ofertas que se seguiram concentrou sobre si com este número, o que eu tinha a fazer era
todos os olhares; o célebre coleccionador de evitar a oferta. Dominei-me, e fiquei calado. O
Munique, barão von Simolin. Interessava-lhe que eu esperara aconteceu: nenhum interesse,
aquela série, tinha concorrentes, em suma, nenhum lance, o livro foi retirado. Achei que
houve uma luta acérrima cujo resultado foi o seria sensato deixar passar ainda alguns dias. E
mais alto preço de todo o leilão, uma soma de de facto, quando, ao fim de uma semana, voltei
mais de 3000 Reichsmark. Ninguém parecia ao alfarrabista, lá estava o livro. A falta de
contar com uma soma tão alta, e uma agitação interesse por ele acabou por reverter em meu
passou por todos os presentes. Emil Hirsch não proveito.
deu muita atenção a isso, e, ou para poupar
Quantas coisas não voltam à memória
tempo, ou por qualquer outro motivo, passou
quando nos aventuramos na montanha de
ao número seguinte no meio da desatenção
caixas, para retirar dela os livros no nosso
geral. Anunciou o preço, eu ofereci um pouco
trabalho diurno, ou melhor, nocturno. Nada
mais, com o coração acelerado e com a plena
torna mais evidente o fascínio de desempacotar
consciência de não poder concorrer com
do que a dificuldade de dar por terminada a
nenhum dos grandes coleccionadores presentes.
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tarefa. Tinha começado ao meio-dia, e já era noite. Afluem outros pensamentos, diferentes
meia-noite quando decidi atirar-me às duas daqueles de que falei. Pensamentos, não:
últimas caixas. Mas nesta ponta final caíram-me imagens, memórias. Recordações das cidades
nas mãos dois volumes cartonados, já em que encontrei tanta coisa: Riga, Nápoles,
desbotados, que, em rigor, não deviam estar Munique, Danzig, Moscovo, Florença, Basileia,
numa caixa com livros: dois álbuns com Paris; recordações das sumptuosas salas de
vinhetas que a minha mãe tinha colado em Rosenthal em Munique, da «Stockturm» (Torre
criança, e que eu herdei. São as sementes de dos Brasões) de Danzig, onde vivia o falecido
uma colecção de livros infantis que continua a Hans Rhaue, da cave cheia de livros e de mofo
crescer, ainda que já não no meu jardim. de SüBengut, em Berlim Norte; recordações dos
Não há biblioteca viva que não albergue um quartos onde tinha esses livros, do meu
certo número de criaturas livrescas provenientes alojamento de estudante em Munique, do meu
de zonas-limite. Não têm de ser álbuns de quarto em Berna, da solidão de Iseltwald no
vinhetas ou de família, nem autógrafos ou Lago de Brienz, e finalmente o meu quarto de
encadernações com pandectas ou textos criança, de onde provêm apenas quatro ou
edificantes: alguns terão mais propensão para cinco dos muitos milhares de livros que
folhas volantes e prospectos, outros para começam a avolumar-se à minha volta. Sorte do
facsimiles de manuscritos ou dactiloscritos de coleccionador, sorte do particular! Nunca
livros inacessíveis; e as revistas podem também, ninguém procurou menos por detrás de alguém,
e ninguém se sentiu tão bem nesse papel como
por maioria de razões, constituir as margens
aquele que pôde continuar a sua existência
prismáticas de uma colecção. Mas, para voltar
desacreditada atrás da máscara de Spitzweg2.
aos álbuns referidos: uma herança é a maneira
Na verdade, no seu interior alojaram-se
mais segura de formar uma colecção. A atitude
espíritos, pelo menos geniozinhos que levam a
do coleccionador em relação às peças que possui
que, para o coleccionador - falo do autêntico,
vem do sentimento de responsabilidade do
do coleccionador como deve ser -, a posse seja a
dono para com os objectos que possui. É, pois,
mais profunda forma de relação que se pode ter
no sentido mais elevado, a atitude do herdeiro. com as coisas: não por elas estarem vivas nele,
O título de glória de uma colecção será sempre mas porque é ele mesmo quem vive nelas.
o da sua hereditariedade. Ao dizer isto, tenho O que fiz foi levantar diante dos vossos olhos
plena consciência - e é bom que o saibam - de uma das suas moradas, cujos tijolos são livros.
que a revelação que vim fazendo do mundo E agora, como convém, o coleccionador vai
mental implícito no acto de coleccionar desaparecer dentro dela.
reforçará em muitos de vós a convicção do
carácter intempestivo desta paixão e a 1
Der Blaue Reiter [O Cavaleiro Azul]: o almanaque do grupo de artistas de
desconfiança em relação ao tipo humano do Munique com o mesmo nome, organizado por Kandinsky e Franz Marc em 1912
coleccionador. Longe de mim querer abalar-vos A Lenda de Tanaquil é uma narrativa de Johann Jakob Bachofen, publicada em
Heidelberg em 1870, Benjamin escreveu um ensaio sobre Bachofen.
nas vossas convicções e na vossa desconfiança.
Só quero deixar mais uma nota: o fenómeno do 2
Carl Spitzweg (1805-1885): pintor do «Realismo burguês» alemão. A alusão de
coleccionar perde o seu sentido logo que perde Benjamin remete para um dos seus quadros mais conhecidos, «Der Bücherwurn»
o seu sujeito. Se as colecções públicas podem ser [O bibliómano], de cerca de 1850.

vistas como menos chocantes pelo lado social e


mais úteis pelo lado científico do que as
privadas, o facto é que só nestas os objectos têm
a sua razão de ser. De resto, sei que, para o tipo
de pessoa de que vos falei e que eu próprio, um
pouco ex officio, represento, começou já a cair a
noite. Mas, como diz Hegel: a coruja de
Minerva só inicia o seu voo ao cair da noite..
Só quando se extinguir, o coleccionador será
compreendido.
Entretanto, estou diante da última
caixa, meio vazia, e já passa muito da meia-

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