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Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 27 de novembro

Todos os “movimentos sociais” atuantes no Brasil, sem exceção, bem como as


entidades que os representam e as leis baseadas nas suas reivindicações, nasceram da
seguinte maneira:

1. Com dez, vinte, trinta anos de antecedência, os intelectuais esquerdistas de


maior peso discutem e elaboram os conceitos e a linguagem das novas idéias destinadas
a revigorar e ampliar o movimento revolucionário mundial.

2. Em seguida essas propostas passam à alçada das grandes fundações bilionárias


e organismos internacionais, onde o segundo escalão intelectual – técnicos, planejadores
sociais, publicitários, ativistas — lhes dá o formato operacional para transmutá-las em
propostas concretas.

3. Essas propostas são então espalhadas pelo mundo por meio de uma infinidade
de livros, artigos, conferências, filmes, espetáculos de teatro, sempre subsidiados pelas
mesmas fontes, mas apresentados como iniciativas independentes, de modo a dar a
impressão de que a mudança planejada provém de uma fatalidade histórica impessoal e
não de uma ação organizada. Ao mesmo tempo, desencadeia-se um conjunto de operações
preventivas destinadas a neutralizar, reprimir e, se necessário, criminalizar toda
resistência.

4. Só então as propostas chegam aos países do Terceiro Mundo, por meio de


ONGs e agentes pagos que as inoculam primeiro nos círculos de intelectuais mais ativos,
que as retransmitem aos estudantes e à mídia, não raro apresentando-as como suas
criações pessoais e originalíssimas, de modo que a multidão dos aderentes não tenha a
mais mínima idéia da existência de um empreendimento internacional organizado por trás
dos efeitos políticos que se seguem inexoravelmente.

5. A última etapa é a produção desses efeitos, por meio dos agentes políticos –
militância organizada, agentes de influência, legisladores – que transformam as propostas
em leis e instituições.

Na última etapa, as origens intelectuais das propostas, bem como sua base
internacional de sustentação financeira e organizacional, já se tornaram praticamente
invisíveis para a população em geral, de modo que toda a discussão a respeito, destinada
a fazer com que a adoção das novas medidas pareça surgir do fluxo normal e espontâneo
da vida democrática, se atenha às definições nominais e aos aspectos mais periféricos das
questões respectivas, sem possibilidade de examinar seja o esquema de poder que
articulou a seu belprazer a situação de debate, seja as implicações históricas de longo
prazo que advirão das transformações pretendidas. Quando essas conseqüências se
revelam catastróficas, a culpa pelo erro que as produziu já está tão disseminada pela
sociedade que toda tentativa de rastrear e responsabilizar os autores das propostas iniciais,
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caso ainda ocorra a alguém a tentação de empreendê-la, começa a parecer rebuscada e


artificiosa como uma “teoria da conspiração”.

A primeira condição para a existência de um movimento conservador ou liberal é


a formação de equipes de estudiosos qualificados para fazer esse rastreamento e expor
aos olhos da multidão o processo inteiro da “transformação social”, para que ela perca
seu prestígio místico de fatalidade histórica ou vontade divina e possa ser discutida às
claras como qualquer outro projeto de poder.
Infelizmente, as forças econômico-sociais cuja sobrevivência a longo prazo
depende do sucesso de um movimento liberal-conservador – principalmente a classe
empresarial que é a concorrente número um dos planejadores e burocratas iluminados –
têm um horizonte de visão histórica muito restrito e dificilmente compreendem a
necessidade de uma estratégia de longo prazo. Concentram-se na defesa dos seus
interesses imediatos reais ou imaginários e, sem perceber, acabam colaborando com os
planos mais vastos e gerais da esquerda, seja por meio de concessões conscientes que lhes
parecem muito espertas na hora, seja por meio de resistências pontuais arbitrárias e
inconexas que sempre podem ser absorvidas e neutralizadas no quadro maior da estratégia
esquerdista, seja por meio da adaptação passiva, lenta e quase imperceptível à linguagem
e à cosmovisão de seus inimigos.

O domínio do tempo histórico das transformações político-sociais tornou-se


monopólio da elite esquerdista internacional. O mero fracasso econômico das propostas
socialistas não diminui em nada o poder hipnótico que exercem sobre a multidão nem o
controle hegemônico da esquerda sobre o processo histórico, porque esse fracasso é
apenas um fato, e os fatos não se transformam por si em elementos de persuasão quando
não integrados como símbolos num universo imaginário, isto é, quando não trabalhados
dentro de um plano cultural abrangente e de longo prazo, precisamente o que falta por
completo às forças liberal-conservadoras.

O próprio preconceito economicista que se apossou dessas forças, induzindo-as a


esperar que a fraqueza econômica do socialismo se transmute automaticamente
em fracasso político-cultural do movimento esquerdista, já mostra o quanto o imaginário
liberal-conservador foi infectado e moldado pela cosmovisão esquerdista, hoje
“onipresente e invisível” como a desejava Antonio Gramsci.

Desse preconceito, em simbiose com o imediatismo político, nasce o profundo


desinteresse que os liberais e conservadores têm pelo debate interno de idéias na esquerda.
Como o conteúdo desse debate lhes parece falso e alucinatório e por isso supremamente
tedioso, não percebem que por trás dessa falsidade e alucinação há um método e uma
estratégia. Nem muito menos que a falsidade louca de uma idéia jamais foi obstáculo ao
seu sucesso político. Enquanto os liberais e conservadores discutem economia, criando
esquemas saudáveis e racionais que jamais serão levados à prática, os esquerdistas, a
salvo de qualquer fiscalização crítica da parte de seus adversários, inventam as mentiras
e alucinações com que dominarão a consciência das multidões e conduzirão o processo
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histórico para onde bem entendam, com a facilidade com que um menino-pastor puxa um
búfalo de uma tonelada pela argola do nariz.

Vou dar aqui um único exemplo de doutrina alucinatória que jamais vi despertar
o interesse dos liberais e conservadores brasileiros e que por isso mesmo consegue
praticamente dominar o ambiente universitário, cultural e midiático nacional,
influenciando o curso dos acontecimentos e impondo derrotas humilhantes à
racionalidade econômica liberal-conservadora.
Refiro-me à escola “desconstrucionista” de Jacques Derrida, Jean-François
Lyotard, Paul de Man, Gianni Vattimo e outros, que torna inviável toda idéia de
veracidade objetiva e instaura em seu lugar o primado da ficção militante.

Como em artigos vindouros pretendo abordar aqui vários fenômenos da política


brasileira que jamais teriam podido produzir-se exceto num ambiente intelectual
dominado por essa escola, a utilidade essencial de conhecê-la se tornará mais evidente
nas próximas semanas.
Usei o termo “escola”, mas os próprios desconstrucionistas o rejeitam. Também
não aceitam que o desconstrucionismo seja definido como uma filosofia, um método de
interpretação, um projeto acadêmico ou qualquer outra coisa. Não aceitam definição
nenhuma, o que já coloca o recém-chegado na obrigação de escolher entre embarcar às
cegas na aventura sem nome ou, ficando de fora, não poder criticá-la sem ser acusado de
incompreensão leiga. À entrada do templo desconstrucionista, portanto, um cartaz em
letras de fogo já anuncia: “Ame-o ou deixe-o.” Mas deixá-lo significa excluir-se a si
próprio da comunidade acadêmica e ser considerado um ignorante ou reacionário, um
escravo do universo lingüístico pré-desconstrucionista e, portanto, um virtual objeto de
desconstrução. Não há terceira alternativa entre desconstruir e ser desconstruído – e esta
última hipótese não significa apenas ser objeto de análise corrosiva, mas de destruição
social e profissional.

A desconstrução parte da premissa lingüística de Ferdinand de Saussure de que a


língua é um sistema no qual o sentido de cada palavra é a diferença entre ela e todas as
outras. O sacerdote supremo do desconstrucionismo, Jacques Derrida, joga essa premissa
contra as pretensões científicas da própria lingüística, ao concluir daí que, se a língua é
um sistema de diferenças entre signos, ela não tem qualquer referência a um “significado”
externo. Tudo o que o ser humano diz, escreve ou pensa é apenas a exploração das
possibilidades internas do sistema. Não tem nada a ver com “realidade”, “fatos” etc. O
universo inteiro ao alcance dopensamento humano é constituído de “textos” ou
“discursos”, mas, como não há nenhuma realidade externa pela qual esses discursos
possam ser aferidos, não tem sentido falar de discursos “verdadeiros” ou “falsos”. Não
existe representação da realidade. Todo discurso é livre invenção de significados.
Obtida essa conclusão, Derrida interpreta-a em sentido nietzscheano, afirmando
que, se o dircurso não é representação da realidade, é expressão da “vontade de poder”.
Mas isso não quer dizer que por trás do discurso exista um “eu” manifestando sua vontade
de poder. A idéia de um eu estável e autoconsciente é ela própria uma representação da
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realidade. Como nenhuma representação da realidade pode funcionar, o eu também não


existe: só o que existe é o ato de poder que cria uma ficção chamada “eu”. Se a língua
estava totalmente separada da realidade por ser apenas um sistema de diferenças, o
desconstrucionista vai agora separá-la do próprio sujeito pensante, acrescentando à mera
“différence” a “différance”, com “a”, termo criado por Derrida para designar o intervalo
de tempo entre o sujeito como autor do discurso e o mesmo sujeito considerado enquanto
assunto do discurso. Em português ele não precisaria inventar esse trocadilho medonho,
pois aí existe a palavra “diferição”, sinônima de “adiamento”, que, por aquela mistura de
pedantismo e ignorância, típica do meio acadêmico nacional, os tradutores brasileiros se
recusam a usar, preferindo o neologismo francês para dar a impressão de que se trata de
uma nuance sutilíssima. Qualquer que seja o caso, Derrida está falando simplesmente de
uma diferição, de um lapso de tempo: o eu do qual você fala não é nunca o eu que está
falando. Mas, se é assim, o eu como assunto do discurso não está nunca presente a si
mesmo. Separado doobjeto pela circularidade do sistema, o discurso está também
separado do sujeito pela diferição, ou, se preferem, “différance” (como diria Dirty
Harry: Cazzo!). Diga você o que disser, ou pense o que pensar, será sempre uma ausência
falando de outra ausência.

Se o eu não existe e o objeto que ele pensa também não existe, só o que existe é o
ato de poder que cria uma ficção chamada “eu” e outra ficção chamada “objeto”. O motivo
que produz a necessidade de criar essa ficção é o desejo de escapar da morte, da
aniquilação. Mas a morte é inescapável, é a “realidade”. Portanto a função de todos os
discursos é negar a realidade e a sua tradução cognitiva, a verdade. Nisso consiste o poder,
a genuína liberdade. O Evangelho (João, VIII:32) dizia que a liberdade
nasce do conhecimento da verdade. Para Derrida e os desconstrucionistas em geral, a
liberdade consiste em negar a verdade, afirmando, com isso, o próprio poder.

No início alguns marxistas ficaram alarmados com a nova filosofia, que, ao negar
a realidade, punha em xeque toda pretensão de conhecer as leis objetivas doprocesso
histórico. Mas Derrida logo conseguiu acalmá-los, mostrando que, se o
desconstrucionismo era ruim para a teoria marxista, era bom para o movimento
revolucionário, dando-lhe não só os meios de corroer toda a cultura ocidental por meio
da negação do significado em geral, mas também de afirmar o seu próprio poder
ilimitadamente: livre das coerções da realidade objetiva, imune portanto a qualquer
cobrança na esfera dos argumentos racionais, ele poderia impor sua vontade por todos os
meios ficcionais possíveis, enquanto seus adversários, travados por escrúpulos de
realidade e lógica, observariam inermes a sua ascensão irresistível.

Todo o empreendimento desconstrucionista é, de fato, uma resposta prática ao


apelo formulado pelo marxista húngaro Georg Lukacs, ao perceber que o grande
obstáculo ao comunismo não era o poder econômico da burguesia, mas dois milênios de
civilização judaico-cristã. “Quem nos livrará da civilização ocidental?”, perguntava
angustiado Lukacs. Quem logo se apresentou como primeirão da fila foi o nazista Martin
Heidegger. Destruição – Destruktion – é a palavra-chave de tudo o que ele fez na vida:
desde escrever e depois desescrever Ser e Tempo até aplaudir a ascensão do Führer e
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recusar-se a esclarecer o assunto depois da II Guerra, deixando seus fãs numa dúvida
perturbadora que dava à sua filosofia ainda mais sex appeal. A essência da filosofia de
Martin Heidegger consiste em abolir o Logos, o verbo divino que faz a ponte entre o
pensamento humano e a realidade externa, e colocar em seu lugar a “vontade de
poder” do Führer. Heidegger foi o primeiro herói da guerra contra o “logocentrismo”. A
convergência entre seus esforços filosóficos e os objetivos de Georg Lukacs foi o pacto
Ribbentropp-Molotov da filosofia. Mas Heidegger, afinal, não criou como substitutivo
para a civilização judaico-cristã nada além da filosofia de Martin Heidegger, que só serve
para quem a entende. Derrida et caterva transmutaram essa filosofia num projeto
acadêmico indefinidamente subsidiável e num movimento político do qual milhões
podem participar sem entender coisa nenhuma do que estão fazendo. Tinha de ser mesmo
um sucesso triunfal.

Ainda mais triunfal foi essa ascensão no Brasil, onde o temor reverencial à moda
acadêmica francesa, o prestígio sacral do discurso incompreensível e a síntese de
pedantismo e ignorância que constitui a forma mentis inconfundível da nossa classe
universitária erigiram o desconstrucionismo num culto fanático que não apenas repele
contestações mas nem mesmo admite a existência delas.

Um traço peculiar do desconstrucionismo, que no Brasil foi acentuado até suas


últimas conseqüências, é que, ao negar a existência da verdade, ele não abdica de atacar
a “mentira”. Quando ele o faz perante um público que desconhece a nuance específica
que o termo tem para um desconstrucionista, a platéia acredita que ele está defendendo a
“verdade”. Mas, no círculo interno, sabe-se que não existe verdade. “Mentira”, pois, é
apenas aquilo que se opõe à ficção preferida dogrupo desconstrucionista, à sua “vontade
de poder”. Inversa e complementarmente, o termo “verdade”, ao ser usado pelo
desconstrucionista perante os leigos, significará para estes uma representação adequada
da realidade comprovável, mas, entre os iniciados, sabe-se que isto não existe e que o
emprego do termo se destina apenas a explorar as ilusões do público para induzi-lo a
submeter-se às ilusões e desejos do grupo ativista. Nesse sentido, pode-se e deve-se
estigmatizar como “mentira” os fatos mais amplamente comprovados e impor como
“verdade” qualquer mentirinha boba conscientemente inventada para vitaminar a
“vontade de poder” do movimento.

Objetivamente falando, o valor inteiro do projeto desconstrucionista depende da


premissa saussuriana de que o sentido de uma palavra é apenas a diferença entre ela e
todas as outras. Essa premissa é falsa. Suponham a frase: “Jacques Derrida morreu.” A
diferença entre Jacques Derrida e todos os outros seres dotados de nomes humanos é a
mesma quer ele esteja vivo ou morto. A diferença entre morrer e estar vivo, por sua vez,
é a mesma quer você esteja vivo ou morto. Mas, se Jacques Derrida morreu, a diferença
entre ele e todos os outros continua intacta, enquanto ele, o indivíduo Jacques Derrida,
não será mais visto por aí dando palestras e encantando milhões de idiotas. Ou a expressão
“Jacques Derrida” significa algo mais do que a diferença entre ela e todas as outras, ou
tabnto faz Jacques Derrida estar morto ou vivo. Do mesmo modo, uma frase como “Não
há mais comida” é a mesma – e suas diferenças em relação a todas as outras são as mesmas
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— quer você a diga como puro exemplo verbal ou como expressão de um estado de fato.
A diferença neste último caso está na presença ou ausência física de comida, que não é a
mesma coisa que a “ausência doobjeto” na mera formulação saussuriana do significado
como diferença entre uma frase e todas as demais. Esta diferença é a mesma com comida
ou sem comida. A falta de comida não é bem isso.

Reparando em detalhes como esse, o próprio Jacques Derrida foi obrigado a


moderar as pretensões do seu método, reconhecendo a existência de “indesconstruíveis”
e, no fim, admitindo que entre eles estava – que raiva, pô! – o próprioLogos. Desconstrua
você o que desconstruir, estará sempre, pelo simples fato de pensar e falar, dentro de um
quadro de referências balizado pelo Verbo Divino ou por seus reflexos na tradição
metafísica. No fim das contas, a Destruktion, como o projeto nazista, pode destruir muitas
coisas em torno, mas se destrói a si mesma – e àqueles que embarcaram na sua proposta
– em escala infinitamente maior. Proclamando que a liberdade consiste em negar a
verdade, o desconstrucionista só exerce sua liberdade de viver da ficção e sentir um
gostinho de poder até o momento em que a morte substitui todas as ficções por uma
verdade “indesconstruível” e a vontade de poder pela impotência definitiva dos
cadáveres. Expressão modernizada da revolta gnóstica contra a estrutura da realidade, o
projeto desconstrucionista está destinado ao fracasso, mas o fracasso cognitivo pode ser
um sucesso político-social, na medida em que arraste na sua voragem milhões de idiotas
hipnotizados pela atração do abismo.

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