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AUGUSTO DE CAMPOS

parte 1

Ana Hatherly Francesca Cricelli Giulia Niccolai


Gonzalo Aguilar Marjorie Perloff Rafael Lemos
Rodolfo Mata Vinícius Carneiro
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Geraldo Alckmin| Governador
José Luiz Penna | Secretário de Estado da Cultura
Regina Célia Pousa Ponte | Coordenadora da Unidade de Preservação
do Patrimônio Museológico

POIESIS
INSTITUTO DE APOIO À CULTURA, À LÍNGUA E À LITERATURA
Clovis Carvalho | Diretor Executivo
Plinio Corrêa | Diretor Administrativo
Maria Izabel Casanovas | Assessora da Direção Executiva
Ivanei da Silva | Museólogo
Angela Kina | Design
Giany Blanco | Diagramação

CASA DAS ROSAS


ESPAÇO HAROLDO DE CAMPOS DE POESIA E LITERATURA
Marcelo Tápia | Diretor
AUGUSTO DE CAMPOS
parte 1
CIRCULADÔ
Revista de Estética e Literatura do Centro de Referência Haroldo de
Campos – Casa das Rosas
ISSN - 2446-6255
Diretor | Marcelo Tápia
Editor | Julio Mendonça
Assistente | Caio Nunes
Comissão Editorial: Aurora Bernardini, Claus Clüver, Gonzalo
Aguilar, Horácio Costa, Jerusa Pires Ferreira, Leda Tenório da Motta,
Lucia Santaella, Luiz Costa Lima, Márcio Seligmann-Silva, Nelson
Ascher, Susanna Kampff Lages
Design gráfico | Angela Kina
Diagramação | Giany Blanco
Revisão | Centro de Referência Haroldo de Campos

Revista CIRCULADÔ – Ano V – Nº 7 – dezembro 2017


Risco Editorial
Edição anterior: Revista Circuladô Ano V – Nº 6 – junho 2017
São Paulo – Poiesis / Casa das Rosas

A revista CIRCULADÔ é publicada em frequência semestral.

A revista CIRCULADÔ aceita, para publicação, apenas artigos ainda inéditos em


língua portuguesa e inglesa.
A extensão dos artigos pode variar de acordo com o tema abordado, sendo que a
Redação se reserva o direito de propor cortes ou sugerir ampliações.
As notas devem ser reduzidas ao mínimo e colocadas no final do texto. Os autores
devem fornecer informações biobibliográficas, até 400 caracteres (com espaços).
sumário

8
DOSSIÊ – AUGUSTO DE CAMPOS – Parte 1
9 • Palavras na câmera escura – artigo de Gonzalo Aguilar
18 • Augusto de Campos: política e tecnologia na mira da poesia
de vanguarda

29
INVENÇÃO
30 • Ana Hatherly – poemas
34 • Giulia Niccolai – poemas

ARTIGOS/ENSAIOS
41 • “Aumentando a temperatura referencial”: reverberações poundianas

40
na poesia concreta brasileira – artigo de Marjorie Perloff
63 • Pensando em Perec: o que seria uma transcriação haroldiana de
textos oulipianos? – artigo de Vinícius Carneiro
93 • Imagem, prosa e poesia de Giulia Niccolai: Um lance de frisbees
jamais abolirá o acaso – artigo e traduções de Francesca Cricelli

105 106
GALÁXIA HAROLDO
• Depoimento de Rodolfo Mata

114 SOBRE OS AUTORES


“[...] no quadro da massificação cultural
da informação, em que vivemos, não
se pode, a rigor, falar em assimilação
das vanguardas a não ser por grupos
muito reduzidos de especialistas,
que constituem os próprios guetos
experimentais das artes. [...] a própria
potencialidade subversora do ‘mosaico de
imagens’ das novas mídias, que sempre
fascinou os artistas modernos, não é
suficientemente explorada.”

Augusto de Campos
editorial

Aos 86 anos e a contrapelo dos muitos embates que mar-


caram sua intervenção no cenário cultural brasileiro,
Augusto de Campos já se encontra na posição de perso-
nagem fundamental e incontornável do século XX e de
precursor do XXI. Poeta (um dos criadores da poesia
concreta), tradutor e ensaísta, sua obra tem sido, recen-
temente, distinguida com importantes prêmios nacionais e
internacionais. Homenageado na edição 2015 da Ordem do
Mérito Cultural (governo brasileiro), recebeu no mesmo ano
o Prêmio Iberoamericano de Poesia Pablo Neruda (Chile) e,
em 2017, o Prêmio Janus Pannonius (Hungria), um dos prin-
cipais reconhecimentos internacionais a poetas vivos.

Nesta edição de Circuladô, prestamos tributo a Augusto


reunindo na seção Dossiê alguns textos que se voltam a
aspectos importantes de sua obra. Na seção Artigos/Ensaios,
um texto de Marjorie Perloff discute as relações entre a
obra de Pound e a poesia concreta brasileira, Francesca
Cricelli apresenta e traduz Giulia Niccolai, poeta italiana
pouco conhecida no Brasil e Vinicius Carneiro estuda a lite-
ratura do grupo Oulipo e algumas relações com a concepção
de tradução de Haroldo de Campos – um ensaio que é
resultado da pesquisa possibilitada pela Bolsa Haroldo de
Campos que recebeu em 2016. Há, ainda, um importante
depoimento do poeta e professor mexicano Rodolfo Mata
a respeito de Haroldo. Esperamos que apreciem a leitura.

7
DOSSIÊ
AUGUSTO DE CAMPOS
PARTE 1

8
PALAVRAS NA CÂMERA ESCURA
(SOBRE A POESIA DE AUGUSTO DE CAMPOS)
Gonzalo Aguilar*

9
O pulsar, 1975 (poema de Augusto de Campos).

10
Em um ensaio de Divagações inti- sobre preto: não é a marca da letra sobre
tulado “A ação restrita”, Stéphane Mallarmé o papel, mas sim a imagem na câmera es-
define a história do homem como “um cura.
prosseguir preto sobre branco”. A aparição
do humano erige-se na escritura sobre um Justamente em seu ensaio, Mallar-
fundo branco e este era, precisamente, o mé adverte sobre a impossibilidade de
mundo no qual se movia Mallarmé. Um duração de uma escritura sobre o campo
mundo tipográfico que, com os meios de escuro, algo que – de alguma forma – tor-
massa – principalmente a imprensa – teve na-se possível com o cinematógrafo (não
uma trajetória fulgurante que marcou todo só a escritura está em seu nome – o grafos
o século XIX. De fato, para compor Un –, como também alguns diretores, como
coup de dés, Mallarmé inspirou-se – se- Robert Bresson, referiram-se a seu métier
gundo Marshall McLuhan – na distribuição como escritura). Ainda que obviamente
dos espaços tipográficos nos periódicos, Mallarmé refira-se ao caráter de fulgores
impressionado pelo lugar destacado que instantâneos, precários e descontínuos da
ocupava “a ficção ou o conto imaginativo iluminação poética, os tentáculos metafó-
no jornal”. Para o poeta francês, os jornais ricos não deixam de ser instigantes:
anunciam uma nova era para a poesia: a
da competência na fundação do “moder- Você notou, não se escreve, luminosa-
no Poema popular”. Mallarmé considera o mente, sobre campo obscuro, o alfabeto
jornal, e a sua arte da justaposição, re- dos astros, só ele, assim se indica, esbo-
volucionário e democrático, no sentido de çado ou interrompido; o homem prosse-
que permite a cada leitor ser um artista.1 gue preto sobre branco 3.

A presença tipográfica da impren- Com todas as afinidades que


sa persiste, mas desde o fim do século Augusto de Campos tem com Stéphane
XIX convive com outros sistemas de re- Mallarmé, sua poesia evidencia a passa-
produção que são regidos por outra lógi- gem de uma forma de escritura tecnológica
ca: o cinema, e depois, já no século XX, a para outra e não seria exagerado dizer que
televisão e os meios digitais. Desde este Augusto de Campos é o primeiro poeta da
ponto de vista, a definição antropológica câmera escura. As letras não se imprimem
de Mallarmé é também um canto do cisne: sobre o papel, mas sim parecem surgir de
o ano em que se publica “A ação restrita” – um fundo escuro que pode ser tanto a noi-
1895 – é o mesmo do nascimento do cine- te (“Pulsar”), a memória (“Memos”) ou o
ma. Em fevereiro desse ano, Mallarmé pú- rumor (“Tudo está dito”). Provavelmente
blica em La Revue Blanche, com o título de inspirado nos experimentos da arte concre-
“Variations sur un sujet”, o texto que dois ta dos anos cinquenta, sua poesia subverte
anos depois publicará em Divagações2. Em ou suspende a lei gestáltica da relação fi-
março, os Lumière fazem a primeira exi- gura-fundo. A página, que em quase todos
bição pública de sua nova invenção e pro- os poetas é apenas um suporte contingen-
jetam A saída dos operários da fábrica. O te, em Augusto de Campos é a unidade de
homem como tipo (tinta sobre papel) con- composição, o campo de batalha onde os
vive desde então com o homem como pro- signos afloram e se dissolvem: o fundo que
jeção (luz sobre tela). O modelo inverte-se também é figura. Não era um produto de
e o homem prossegue, mas agora branco seus delírios alucinógenos quando Hélio

11
Oiticica afirmava, a propósito de “Dias dias
dias” de Poetamenos: roçamos a intensidade da experiência de
sua poesia. Por isso a pergunta que tenta-
eu acho que o branco… bom uma coisa rei responder poderia se formular assim:
louca que eu descobri quando tem aque- que traz para a obra de Augusto de Cam-
le negócio: “a” e depois “mor” é “amor”, pos a câmera escura?
mas é “morte”, mas aí você nunca… a
gente fica assim imediatamente com- Em primeiro lugar, o fulgor de
pletando “mor”, com morte mas a sílaba um brilho. O que a câmera escura capta
“T-E” na realidade o branco tá cobrindo são os reflexos da luz que se projetam
ela é a meu ver a gente tem muita dessa sobre um papel durante um tempo de-
coisa assim do pó aparecer e desapare- terminado de exposição. Em poesia, essa
cer nesse… […] não é livro são assim es- luz, esse brilho, se manifesta como ins-
paços fílmicos, Blocos-espaços-fílmicos.4 tante.Em outro ensaio sobre a poesia de
Augusto de Campos, apontei a importância
A página é um elemento dinâmico, da figura da espiral em sua poesia e a ex-
não um fundo qualquer sobre o qual se periência de angustia e de perda do sujei-
lê a letra, mas uma matéria com limites to que implica. Uma intradução, entre ou-
próprios (o retângulo, mas também pode tros poemas, serviria de exemplo. “A Rosa
ser um círculo como em “Código” ou um Doente”, versão de um dos poemas de
cubo como em “Tudo está dito”), que ad- inocência de William Blake, se perdia em
quire diferente cores (os Expoemas com seu centro como uma rosa e encontrava
Omar Guedes) e que se dobram como nos sua destruição imanente: a do ciclo vital.5
recortados e vincados dos Poemóbiles. Um O mecanismo da câmera escura também
“bloco-espaço-fílmico” que adquire movi- pode ser observado em outra versão de
mento (cinematismo) com os suportes Blake, neste caso “O tygre” que, como “A
digitais e que expulsa Augusto de Campos Rosa Doente”, está incluído em Viva vaia:
da escritura poética (preto sobre branco)
para devolvê-lo como um fugitivo estrangei- tygre! tygre! brilho, brasa
ro que traz de seu exilio um novo tesouro: que ‘a furna noturna abrasa
uma literal experiência de iluminação.
Na intradução, uma imagem de
Palavras, brilhos um tigre feito com as inscrições tomadas
de um mural dervixe do século XIX se
Não basta dizer que há uma passagem da imprime branco sobre preto com se fos-
translação tipográfica à captura da câmera se o rastro do “brilho” do mesmo animal.
escura. Não é suficiente mostrar que essa “Briluz” como se lê na tradução do “Jabbe-
dinâmica da página (o que antes era fun- rwocky” de Lewis Carrol ou o “brIlha”,
do neutro) domina a poética de Augusto de “bRilha”, “Brilha”, “briLha” do poema de
Campos. Tampouco é tranquilizador afir- e.e. cummings incluída já em 10 poemas.6
mar que há uma lógica ex-poética ou não- A palavra torna-se materialmente branca,
-poética que se expressa e mantém pelo luminosa, e sua forma é como se fosse o
menos desde a composição de Poetamenos resultado final de um trajeto, de uma pro-
em 1953. Porque com estas definições – jeção de um fundo que cada poema define
uteis, porém um pouco técnicas – apenas (no caso de “O Tygre”, “a furna noturna”).

12
SOS, 1983 (poema de Augusto de Campos).

13
O poema que evidencia esta lógica cumprir-se integralmente: o que Mallar-
da câmera escura com mais nitidez é “Me- mé denominou “a desaparição elocutória
mos”, de 1976. Neste caso, a câmera alia- do eu”. Já dizia Ludwig Wittgenstein que
-se com a memória que funciona, assim “o espaço visual não tem essencialmen-
como mostrou Sigmund Freud, como um te nenhum dono e não contem o menor
bloco mágico. Segundo Freud, a memória rastro de sujeito”. No Profilogramas o poe-
retém, ao mesmo tempo que apaga, as ta nem sequer trabalha com fotografias
marcas mnêmicas, como um bloco mágico próprias, de modo que suas composições
(um artefato constituído de uma prancha carecem de um ponto de vista deliberado
encerada, um celuloide e um punção: a e em todo caso sua expressão se encontra
primeira conserva o que se escreve na se- na montagem. Semelhante ascetismo (um
gunda, cuja escritura se apaga). Em “Me- poeta que prescinde das palavras) marca
mos”, o que se pretende reter é o “instante o início de um novo percurso que, justa-
luz”, registrado pela memória e ao mesmo mente, terá entre um de seus objetivos
tempo apagado por ela. No entanto, se em desconstruir poeticamente o postulado
termos humano-biológicos o processo é mallarmeano: em 1975, os “Stelegramas”
de pura perda (“memória assassina”), em recuperam a escritura e estabelecem o
termos poéticos o instante aparece fixado campo de ação (a página em branco ou
pela câmera escura do poema. Ali estão em preto) em que ficarão não só os indí-
as letras brancas em diferentes tipografias cios ou rastros de uma experiência, mas
que surgem de uma vez e para sempre do também as lentas e trabalhosas marcas
fundo escuro da memória. Se a memória que começam a deixar os sujeitos, seja
está associada à morte (“moria”, “assassi- em primeira (“Miragem”) ou em segunda
na”), o próprio poema, seu jogo de tipo- pessoas (“O Pulsar”, “O quasar”). Nessa
grafias e correspondências, é a resposta câmera escura, que é um oco que registra
para a pergunta do poeta: “como parar”. o brilho efêmero das experiências, ressoa
Para-se ou detêm-se com a câmera escura o eco de um dos sujeitos espectrais que,
do poema. tão logo aparecem, também já somem.

O uso da fotografia em Augus- O brilho ou o instante luz reme-


to de Campos remonta aos Popcretos de tem-nos à lógica do olhar que guia a pro-
1964 (em “Olho por olho” e “Psiu!”) e aos dução de Augusto de Campos: o amor
Profilogramas que começa a publicar em pela transparência do olhar desemboca
1966 (“hom’cage to webern”, “Sousân- na opacidade da ilegibilidade da imagem7.
drade 1874-1974”, “Janelas para Pagu”). O sujeito inscreve-se como um efeito
Não é difícil calibrar a violência que implica desse encontro.
esta irrupção da fotografia na obra de um
poeta. A passagem da palavra à imagem O poema dos “Stelegramas” que
suspende mesmo o que no concretismo tematiza mais detalhadamente essa visu-
tinha se apresentado como seu elemento alidade do signo é “Miragem”, título que
mais vanguardista: a busca de estruturas faz referência a um fenômeno de ilusão
alternativas ao verso. Mas, se com a foto- de ótica. Além da tipografia (que sugere
grafia se abandonava essa postura polê- certa tontura ou hipnotismo), o poeta vol-
mica (dissolvendo o antagonismo), outro ta a dizer “eu”, algo que não fazia desde
dos postulados é extremado ao ponto de Poetamenos. A “inserção” do sujeito no

14
olhar gera o espelhismo e uma espécie ma em código braile, o alfabeto criado es-
de reflexos que confundem as dimensões pecialmente para cegos, e embora não se
(distante/perto), as noções de verdade registrem mudanças entre ambas, os dife-
(“incerto”) e de estabilidade das identi- rentes formatos supõem diferentes efeitos
dades (“miragem que em mim mira”). O de leitura. No caso de Expoemas, trata-se
poema encerra com os seguintes versos: de uma serigrafia de 40 x 36cm que deve
“eu tento tanto tântalo / sonhar mas des ser posicionada verticalmente, como um
perto” (o espaço visual intercalado na úl- quadro, pondo em questão o estatuto de
tima palavra admite duas leituras: “des- espectador ao incitá-lo a violar o mandato
perto” e “perto”). De um modo peculiar, de “não tocarás” próprio das artes visu-
“Miragem” (como “O Pulsar”, “Memos” e ais.9 Na versão de Despoemas, a página
“Po a poe”), entra no mundo noturno. A de um livro leva o leitor a estabelecer uma
negrura da página é como o oco no qual a relação táctil pouco habitual. O poema é
escritura branca trama seus ecos. Em “Mi- composto com a tipografia futura, mas,
ragem”, há um jogo com o engano que se diferente de seu uso nos anos cinquenta,
infiltra no olhar distanciado e na ameaça em um degradê de cores que vão do azul
de dissolução ou naufrágio que repousa na ao celeste até chegar ao branco, de forma
ambição por metamorfosear-se no espaço que as letras se confundam com a pági-
da página, como se a aspiração de Valéry8 na e apenas sejam visíveis se observadas
só fosse possível com a eliminação da cor- na diagonal. Mais uma vez, engana-se o
poreidade e como se estes poemas tentas- olho e joga-se com as limitações da per-
sem, em compensação, realizar o impossí- cepção. “Anticéu” pode ser lido, em vários
vel, como Tântalo: elevar a materialidade sentidos, como uma ReVisão do mito de
do corpo e do olho “à potência do céu es- Ícaro: no mito, Ícaro cai por aproximar-se
trelado”. Em “O Pulsar”, o eco-oco “escuro demais do sol; no poema, a queda ou per-
esquece”, em “Memos” não se pode reter o da da visão se produz pelo “brilho das es-
instante que passa, em “Po a poe” os “po- trelas”. Enquanto, como consequência de
bres” poetas “afogam a lua na água”. São seu acidente, Ícaro cai na água, na nova
poemas do fracasso, mas neles a experi- versão o poeta “mergulha no anticéu”. Fi-
ência do poetizar suspende ou estabelece nalmente, se a queda de Ícaro na água é
um desvio nesse mesmo fracasso. Se o literal, no poema o “mergulho” é na pági-
olhar distanciador engana e a identificação na em branco, último reduto da verdade
oprime, que novas estrelas, então, pode do poeta. Como em “Miragem” (em que
nos entregar o poema? O poema não é, se menciona a Tântalo), este poema – lido
paradoxalmente, testemunho de um nau- desde uma perspectiva icárica – põe em
frágio e, ao mesmo tempo, resto luminoso cena uma transgressão: se no poema de
na linguagem de uma experiência? “Stelegramas” o que se transgride é a di-
visão entre vigília e sono, em “Anticéu” é
Na relação entre olhar e palavra, a a relação entre linguagem e experiência.
obra mais impactante é “Anticéu”, incluída Trata-se de uma experiência que supera
originariamente na pasta-livro Expoemas o engano do visual e que tem como prova
(1980-1985), integrada por serigrafias outro tipo de sensorialidade. O tato, en-
feitas em colaboração com Omar Guedes tão, aparece em cena, não apenas para
e, posteriormente, no livro Despoesia. As traduzir (é óbvio que os cegos não são os
duas versões incluem a escritura do poe- leitores implícitos do poema), mas sobre-

15
tudo para palpar a página ou, como diz o no ato de tocar o contato visual anula-se
poema, “a pele do papel”. O característi- e acontece um novo tipo de relação: uma
co de “Anticéu” é que podemos seguir as relação de “mergulho”, para dizê-lo com
marcas de seu processo por meio do tato: uma das palavras do poema.
o corpo e o papel são a mesma coisa e exi-
gem ser acariciados. O “anticéu” da pági- Do “falso brilho” a “brancas no
na nos entrega uma experiência em que a branco brilham”, as palavras de Augusto
palavra aparece e desaparece, está e não de Campos deixam uma marca. Cada uma
está, se apresenta na diagonal e como um tem peso, materialidade, forma, resso-
sonho. Apenas o tato nos oferece uma cer- nância, luz. Ao mesmo tempo, cada uma
teza que, embora estranha (quem pode- é oca e o sentido fulgurante que assumem
ria manipular ambos registros?), é, enfim, não provém de si mesmas, mas da combi-
certeza. A câmera escura encontra seu nação em que entram uma vez impressas
próprio limite (o efeito de luz) e se abre a no papel. O homem prossegue, mas agora
uma nova lógica tátil que, tematizada em branco sobre o preto.
“Anticéu”, é continuada nos poemas mani-
puláveis de Poemóbiles ou nos poemas in-
terativos “caoscage”, “Criptocardiograma”
e “Portas do ouver”, nos quais o “usuário”
deve recorrer ao mouse e fazer interagi-
rem olho e mão.10

A situação do sujeito (“mergulho”)


recorda os poemas em espiral com o “Sos”,
mas também a “Canção noturna da baleia”
e “Po a poe”, os outros dois poemas de Au-
gusto com paisagem aquática. Ali também
o sujeito se diluía na negrura do negro e
na brancura do branco, extremando a de-
finição de Mallarmé: “o homem prossegue
preto sobre branco”. Se no concretismo
ortodoxo houve uma “desaparição elocu-
tória do eu” segundo o postulado do po-
eta francês, na obra posterior de Augusto
de Campos assistimos a uma reaparição
espectral do eu: mal se mostra sobre a
superfície da página, volta a fundir-se
nela. O eu não pode ver-se vendo-se,
nunca pode adquirir essa transparência
absoluta: a opacidade impõe-se em seu
caminho pela aparição do trompe-l’œil
ou, como em “Anticéu”, porque o que está
escondido é, além de tudo, absurdo. No
entanto, a saída não está fora do poema,
mas sim dentro do poema mesmo, já que

16
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Notas

*Traduzido do espanhol por Caio Nunes

Aguilar, Gonzalo: “Augusto de Campos: la 1


Texto de McLuhan incluído em Gerald Emanuel Stearn et
traducción del nombre”, en Cuadernos del al: McLuhan: caliente & frio, Buenos Aires, Sudamericana,
Sur, número 34, 2005. 1973, pp. 184-185.
Freud, Sigmund: “La pizarra mágica” 2
Agradeço a Sandra Stroparo, da Universidade Federal do
(Edição brasileira: “Uma nota sobre o bloco Paraná e grande especialista em Mallarmé, os dados que
mágico” in O Ego e o Id e outros trabalhos me deu sobre as datas de publicação deste ensaio.
(1923-1925) (Edição Standard Brasileira 3
“La acción restringida” em Divagaciones, Lima, Pontifi-
das Obras Psicológicas de Sigmund Freud, cia Universidad Católica del Perú, 1998, p.228. [O texto
volume XIX). São Paulo, Imago, 2006. aqui usado corresponde à tradução de Fernando Scheibe
Mallarmé, Stéphane: Divagaciones, Lima, de “L’action restreinte”, das Divagations de Mallarmé, pre-
Pontificia Universidad Católica del Perú, 1998. sente em Divagações, Florianópolis, Editora UFSC, 2010.]
Stearn, Gerald Emanuel y otros: McLuhan: 4
O texto pertence a uma das fitas que Hélio Oiticica gra-
caliente & frío, Buenos Aires, Sudamerica- vou, dedicadas a Augusto, no dia 19 de março de 1974.
na, 1973, pp.184-185. 5
Faço uma leitura de ambas traduções em “Augusto de
Süssekind, Flora: “Augusto de Campos e o Campos: la traducción del nombre”, em Cuadernos del Sur,
Tempo” em A voz e a série, Río de Janeiro, número 34, 2005.
Sette Letras/ Belo Horizonte, UFMG, 1998. 6
Trata-se da primeira edição das traduções que Augusto de
Valéry, Paul: “Le Coup de Dés” en Variedad Campos fez do poeta norteamericano, publicada em 1960
I, Buenos Aires, Losada, 1956. pelo Ministério de Educação e Cultura.
7
Ver “Augusto de Campos: la truducción del nombre”, op. cit.
8
Paul Valéry fala, a propósito do poema de Mallarmé, so-

bre “elevar a página à potência do céu estrelado” em “Le

Coup de Dés”, em Variedad I, Buenos Aires, Losada, 1956,

p. 146.
9
Sobre estas relações, ver o ensaio de Flora Süssekind:

“Augusto de Campos e o Tempo” em A voz e a série, Rio de

Janeiro, Sette Letras/Belo Horizonte, UFMG, 1998.


10
Também haveria uma relação sonora que, obviamente,

dialoga ao mesmo tempo que excede a presença da câme-

ra escura que vemos neste trabalho.

17
AUGUSTO DE CAMPOS:
POLÍTICA E TECNOLOGIA NA MIRA
DA POESIA DE VANGUARDA
Rafael Lemos

Os artistas são as antenas: um animal que negligencia os avisos de suas


percepções necessita de enormes poderes de resistência para sobreviver.
Ezra Pound

Tudo digerido. Sem meetings culturais. Práticos. Experimentais. Poetas.


Oswald de Andrade

O poeta Augusto de Campos publi- os sobre o objeto apresentado. Estes co-


cou no ano de 1967 uma série de artigos mentários, lidos hoje e postos em relação
no Correio da Manhã que, sob forma ligei- com sua obra poética e teórica, permitem
ramente modificada, encontram-se hoje que se busque uma reflexão inventiva
reunidos sob o título Arte e Tecnologia na própria de Augusto de Campos acerca do
nova edição de Poesia, Antipoesia, Antrop- lugar da poesia de vanguarda em uma so-
ofagia & Cia1. Embora os artigos tenham ciedade de massa, entendida não somen-
por fim principal a divulgação, resenha te sob seu aspecto estético, mas também
e crítica do sexto número da revista The como instância política, posição esta que
Structurist, datada do ano anterior, Au- encontra vozes consonantes e dissonantes
gusto não se exime de tecer comentári- entre os teóricos de sua época.

18
Retomada histórica
Entender a vanguarda como busca febri-
É necessário contextualizar esse citante do novo pelo novo, como mera
momento, ainda que brevemente: a poe- estética do provisório e do extravagante,
sia concreta, em sua fase heróica (1955 a é desentender totalmente a raiz de sua
1959), ocupou-se com a forma do texto, necessidade. O que fizeram as vanguar-
sua estrutura e relações internas, com a das das primeiras décadas foi criar os
criação de uma linhagem de precursores pressupostos da linguagem artística de
através de uma operação de, por assim di- nossa época, correspondendo à Revolu-
zer, síntese sincrônica destes precursores ção Industrial e antecipando a revolução
e o reconhecimento de técnicas e parâme- tecnológica, no contexto da evolução
tros, buscando assim uma espécie de “ato- científica e das transformações sociais
mização” e retomada da linha evolutiva do mundo moderno. E o que fizeram as
da poesia baseada, entre outros, em dois novas vanguardas da segunda metade
postulados poundianos: “make it new” ou do século foi retomar e desenvolver es-
“literatura é novidade que permanece no- sas propostas, que a catástrofe das duas
vidade” (POUND, 1977, 33) e a noção de grandes guerras e a intervenção opres-
paideuma: “a ordenação do conhecimen- sora dos regimes totalitários de esquer-
to de modo que a próxima geração possa da e de direita haviam interrompido e
achar, o mais rapidamente possível, a par- sufocado. (CAMPOS, 2015: 291).
te viva dele e gastar um mínimo de tempo
com itens obsoletos” (idem, 1977: 161). A defesa da posição da vanguar-
A leitura de Pound torna mais compreen- da não tem, nas palavras de Augusto, um
sível o projeto concreto: na classificação mero significado estético, considerando
presente no ABC da Literatura está a no- que as trocas simbólicas e a manipulação
menclatura dos “Inventores. Homens que dos signos ocorresse numa esfera à par-
descobriram um novo processo ou cuja te do “mundo real”. Ao contrário, em sua
obra nos dá o primeiro exemplo conhecido definição, o poeta octogenário enfatiza
de um processo” (idem, 1977: 42). Tra- a relação dos eventos históricos com as
tando-se de um empenho no sentido de transformações na arte, fazendo com que
recuperar a via experimental da poesia e a posição de vanguarda assuma também
colocá-la em sintonia com as demais artes contornos políticos. Como se verá adian-
no pós-guerra, a poesia concreta não pode te, a maneira como Augusto de Campos
ser entendida como outra coisa que não um encara a recuperação das propostas da
movimento de vanguarda, residindo aí a vanguarda não é fruto de uma reconside-
sua afinidade com o postulado poundiano ração tardia, mas já figura de forma cons-
da “invenção”. Não confundir, porém, os ciente e programática na poesia concreta
inventores com os “lançadores de moda”. e em seus desdobramentos. Da mesma
Ainda em Pound, logo após a listagem de forma, é uma posição que este não assu-
sua classificação, lê-se: “Enquanto o leitor me sozinho, mas que pode ser igualmen-
não conhecer as duas primeiras categorias te percebida na obra de Décio Pignatari e
[inventores e mestres], será incapaz de Haroldo de Campos.
distinguir ‘as árvores da floresta’” (idem,
1977: 43). É nesta linha de pensamento A política nacional, na passagem
que Augusto de Campos dirá: dos anos 50 para os 60, acenou de for-

19
ma otimista para a realização de certas Em Invenção nº3, o reforço des-
reformas de base, desenvolvimento indus- te posicionamento: associando o conceito
trial, aumento relativo do bem estar social de “informação nova” ao já mencionado
e conta com o apoio de artistas e intelec- conceito de “invenção”, a poesia concreta
tuais. Com base em passagens dos textos coloca-se numa posição de resposta e diá-
teóricos dos poetas concretos - por exem- logo crítico à esquerda. Lê-se “Sem o rigor
plo, a que consta no plano-piloto para poe- da informação certa - inclusive informação
sia concreta: “o poema concreto é um ob- existencial (se se pode dizer) - tendo em
jeto em e por si mesmo, não um intérprete vista a revolução, cai-se no pragmatismo
de objetos exteriores e/ou sensações mais mero. E o pragmatismo é a ideologia do
ou menos subjetivas” (CAMPOS, 2006: 216) mercado” (INVENÇÃO 3, 1963: 3). Parece
- surgem críticas (equivocadas) à poesia con- haver ainda, neste período, um giro no eixo
creta por um suposto não-engajamento, uma da forma: se, num primeiro momento, a
não-tomada de posição, que cresceriam a preocupação dos concretos era a construção
partir do golpe militar de 1964, especial- da forma, em seu momento de engajamen-
mente por parte da esquerda mais próxima to aberto a problematização passa a ser a
ao Partido Comunista. semantização da forma em sua relação iso-
mórfica e dialética com o conteúdo.
Em 1960, os poetas concretos
engendram o que Décio chama de “pulo Conforme dito anteriormente, esta
conteudístico-semântico-participante” tomada de posição à esquerda e a cons-
(INVENÇÃO 1, 1962: 66)2 e ampliam sua ciência do aspecto político da linguagem
pesquisa acerca da linguagem. Se em sua estão presentes na problematização le-
fase anterior os textos e manifestos po- vantada pela poesia concreta desde o
deriam sugerir uma primazia de estrutura início. Antes do golpe, existia no Brasil
sobre o conteúdo e afirmavam o poema um socialismo de caráter populista e na-
concreto dentro do princípio de uma “co- cionalista13. Em poesia e paraíso perdido,
municação de formas, de uma estrutura- texto de 1955, Haroldo de Campos re-
-conteúdo, não da usual comunicação de bate críticas provenientes desta espécie
mensagens” (CAMPOS et al., 2006: 217), de nacionalismo:
dando margem às acusações de alienação
em relação a realidade, no editorial de In- Outro tipo de estética, que se pretende
venção nº1 (a segunda “dentição” de re- revolucionária sob o ponto de vista con-
vistas da poesia concreta) é possível ler: teudístico, constrói, com ligeiras modifi-
cações, seu paraíso doméstico, negando
O artista é um produtor de idéias sen- pura e simplesmente qualquer integra-
síveis, quando não acionantes, e a luta ção da literatura brasileira num plano de
contra a marginalidade a que o conde- experiência internacional, por razões de
nam não deve levá-lo a fazer o jogo de tropicalismo porquemeufanista, como se
uma sociedade utilitarista, como a nos- lhe fosse destinado, sem remissão, o pa-
sa,[...] Está condenado. Alienado. Tra- pel de literatura exótica ou de exceção”
balha sob pressão e opressão e é nessa (CAMPOS et al., 2006: 45).
condição que deve lutar e construir” (IN-
VENÇÃO 1, 1962: 2)

20
Sete anos depois, a questão do É notável nos textos teóricos dos
nacionalismo seria retomada em um texto poetas do grupo Noigandres a rejeição a
chamado Poesia concreta e a realidade na- um nacionalismo folclórico, quase pastoril.
cional. Trata-se de um texto onde Haroldo Antes, chamam a atenção para a necessi-
sustenta a tese oswaldiana da possibi- dade de uma integração inter-artes e en-
lidade de existência de uma poesia de tre as artes e a tecnologia. No prefácio a
exportação em um país subdesenvolvido, sua série de poemas coloridos, poetame-
no qual escreve: nos, de 53, Augusto de Campos escreve
“luminosos, ou filmletras, quem os tive-
Entendo que, ao contrário de um nacio- ra!” (CAMPOS et al., 2006: 29). Demoraria
nalismo ingênuo, fechado numa idéia ainda uns anos, mas, em 97, sairiam seus
temática, que corre o risco de se trans- primeiros video-poemas, vertente da poe-
formar, inclusive, em literatura exótica, sia ainda pouco explorada no Brasil. Em
naquilo que Oswald chamava de ‘ma- um artigo onde analisa a produção do mo-
cumba para turistas’, e que repele o vimento de poesia concreta em relação a
confronto com técnicas estrangeiras por situação política do país, ressaltando jus-
temor de servilismos e desconfiança de tamente seu aspecto intersemiótico e seus
sua capacidade de operação e superação desdobramentos nas futuras gerações de
das mesmas, se pode falar num nacio- poetas, Charles Perrone ressalta que
nalismo crítico [...] Este nacionalismo
sabe que nacional e universal são uma A televisão brasileira, que ainda não ha-
correlação dialética, da mesma maneira via decolado quando o plano-piloto foi
que forma-conteúdo (tendendo para o publicado, não se tornou um fator maior
isomorfismo fundo-forma) o são. (TEN- na formação da consciência nacional até
DÊNCIA 4, 1962: 89) a década de 1970. Neste sentido, a poe-
sia concreta estava bem à frente de seu
Haroldo explicita, desta forma, a tempo no Brasil; mais do que uma uma
estreiteza dos laços entre política e estéti- resposta, ela representava uma anteci-
ca no programa da poesia concreta. Mais pação dos novos meios de comunicação.
do que isto: na medida em que realiza Os poetas de Noigandres, operando em
uma retomada da linha evolutiva da poe- tempos de crescimento democrático e
sia experimental pautada em uma “meto- afirmação cultural, buscavam reconciliar
dologia crítica”, esta relação dialética se formalismo, tecnologia e relevância so-
dá no patamar da contemporaneidade, cial. (PERRONE, 1991)
não somente entendendo a confecção da
“informação certa” - a invenção - como O poeta e a sociedade contemporânea
crucial para o encaminhamento da revo-
lução (mostra disto é o célebre post-scrip- É possível encontrar nos manifes-
tum do plano-piloto com a frase de Maia- tos da poesia concreta uma tomada de
kóvski “sem forma revolucionária não há posição acerca do poeta e sua função na
poesia revolucionária”), mas entrelaçando contemporaneidade. Mais do que isto, há
os aspectos estéticos e políticos com uma também uma reflexão acerca dos meios
terceira dimensão, já referida no início de através dos quais o poeta pode realizar-se
nosso texto: a tecnológica. enquanto tal. A respeito disto, são emble-
máticas duas frases do plano-piloto:

21
“poesia concreta: produto de uma evolução formulador de tôdas as sensibilidades”
crítica de formas” (CAMPOS et al., 2006: (CAMPOS, 1967: 3). E emenda com a pro-
215) e “poesia concreta: tensão de pala- posição-síntese de McLuhan: “O meio é a
vras-coisa no espaço-tempo” (idem: 216). mensagem”, ou seja, o meio de comunica-
Conforme dito acima, a adequação do poe- ção não diz nada senão a si mesmo, não
ta e do poema aos meios de comunicação se refere senão a si mesmo: antes de ser
contemporâneos sempre foi uma preocu- um objeto para a experiência, o meio é a
pação dos poetas concretos. A noção de própria condição dessa experiência, uma
“evolução crítica” não pretende, portanto, vez que age como possibilitador - media-
que a história da poesia experimental con- dor - da relação entre o homem e seu con-
figure uma linha reta. Antes, como Haroldo texto. Sendo a condição de experiência da
escreveria mais tarde, a “evolução crítica” realidade, prossegue Augusto, “os novos
seria uma tradição de rupturas. contextos são sempre ‘canibalísticos’: eles
desnudam e comem o homem vivo”. Lon-
Retornando aos artigos publicados ge de entender esta canibalização como
no Correio da Manhã: nos anos 60, Au- uma instância negativa da evolução dos
gusto de Campos adota Marshall McLuhan meios de comunicação e seu crescimento
como principal teórico para suas reflexões em poder e importância, o poeta concre-
acerca dos meios de comunicação na so- to atenta novamente para Mcluhan, que
ciedade de massas e, em um de seus arti- afirma: “qualquer tecnologia pode fazer
gos, dedica-se a comentar uma entrevista tudo, menos somar-se ao que já somos”
com o teórico canadense. Mcluhan enten- (MCLUHAN, 1974: 26).
de a passagem da modernidade para a
contemporaneidade - em termos de meios Numa tentativa de explicação, po-
de comunicação - como a passagem da demos recorrer a outro artigo da série,
fragmentação para a contração. Diz: onde, comentando a relação entre tecno-
logia e natureza nas artes, o poeta pau-
A reestruturação da associação e do lista parafraseia Eli Bornstein e opta pela
trabalho foi moldada pela técnica de síntese, ao invés da manutenção da dua-
fragmentação, que constitui a essência lidade: ”... a ideia de que a tecnologia e
da tecnologia da máquina. O oposto é a natureza são antitéticas é um resquício
que constitui a essência da tecnologia da do século XIX. Ela deixa de compreender
automação. Ela é integral e descentrali- que a tecnologia e tudo o que ela impli-
zadora, em profundidade, assim como a ca não passam de uma natural extensão
máquina era fragmentária, centralizado- nos sistemas muscular, sensorial e ner-
ra e superficial nas relações humanas” voso do homem” (CAMPOS, 1967: 4).
(MCLUHAN, 1974: 21-22). Embora seja uma reflexão simples, sem
maiores esquemas filosóficos, seu senti-
O meio de comunicação não pode do é igualmente claro: toda comunicação
ser, porém, entendido como uma mera e informação produzida por parte do ho-
técnica instrumentável pelo e para o uso mem não poderá ser outra coisa que não
humano. Antes, o contrário disto. Nas humana. Se os novos ambientes e meios
palavras de Augusto: “O meio de comu- de comunicação são sempre “canibalísti-
nicação [...] cria um novo contexto, uma cos”, Augusto de Campos observa seme-
nova extensão da vida sensorial e um re- lhança entre a observação de McLuhan

22
e a antropofagia de Oswald de Andrade. ciações do corpo humano ou mesmo da
Uma breve incursão ao Manifesto Antro- mente a uma máquina. (Um parêntese:
pófago pode mostrar que a relação entre o hoje, na época do p2p, da arte-ambiente,
pensador canadense e o poeta modernis- do design individualizado, de formas de
ta não se resume ao emprego da mesma resistência política experimentais, é sin-
analogia. Em Oswald lê-se “Antropofagia. tomático, para o bem e para o mal, que
A transformação permanente do Tabu em ressurjam neo-hippies, que retornem ao
Totem” (ANDRADE, 1978: 15) e, adiante: vestuário peças de roupa antiga, que haja
“Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. surtos vintage de uma forma geral, que
Para transformá-lo em Totem” (idem: 18). apareça uma geração apaixonada por no-
Lembrando a menção de Haroldo de Cam- velas - ainda que via Netflix -, que o mo-
pos em sua definição de um “nacionalismo vimento político de esquerda muitas vezes
crítico”, antropofagia oswaldiana é a con- ainda insista em “matar amanhã o velho-
versão de uma instância auto-proibitiva te inimigo que morreu ontem”...). Em si,
(tabu) em centro de irradiação de uma or- não há nada de positivo ou negativo nis-
ganização social (totem)4. A canibalização to: são ações e estão dentro da ambiência
não funciona aqui como uma destruição, proporcionada pelo meio de comunicação
mas, mais propriamente, como a apro- vigente. McLuhan nota: “não deixa de ser
priação de um poder, a princípio, estranho bastante típico que o ‘conteúdo’ de qual-
e, a partir disto, a criação de algo mais quer meio nos cegue para a natureza des-
forte. Não existe, na antropofagia oswal- se mesmo meio” (MCLUHAN, 1974: 23) e
diana, devorador e devorado; são ambos prossegue: “A mensagem da luz elétrica
irrelevantes: o importante é o trabalho é como a mensagem da energia elétrica
“[d]a síntese [...] a invenção / a surpresa” na indústria: totalmente radical, difusa e
(idem: 7) para “acertar o relógio império” descentralizada” (idem). A velocidade dos
(idem: 9) através da “milionária contribui- meios de comunicação é, assim, o propul-
ção de todos os erros” (idem: 6). sor de uma pulverização da imagem, isto
é, ela cria um ambiente onde as imagens
Da mesma maneira, o canibalismo são recolhidas de forma desencontrada,
de McLuhan não pretende que o homem sem prioridade. É preciso entender esta
se renda passivamente aos desígnios do descentralização de forma dialética. Virilio
meio, mas que se mantenha num diálogo nos diz: “velocidade é poder”. No mundo
ativo e consciente em relação a sua exis- cego pelo excesso da imagem, quem hie-
tência, função e poder. Ainda de acordo rarquiza e prioriza nossa recepção destas
com McLuhan, se o meio é a mensagem imagens é o poder: na época de Augusto
e comunica a si mesmo, o conteúdo des- de Campos e McLuhan, o rádio e posterior-
ta mensagem é sempre o meio anterior. mente, a televisão; na nossa, Google, Fa-
Isto explicaria, por exemplo, a obsessão cebook e demais veículos de informação.
das vanguardas do início do séc. XX com
a máquina: uma vez que a luz elétrica já Aqui entra a consideração acerca
havia revolucionado a forma do ser hu- da função do artista. O artista é o encar-
mano estruturar a vida, suas ações e as- regado de explorar as novas mídias e criar
sociações, a máquina foi elevada a uma a consciência do novo contexto. Augus-
espécie de culto nostálgico como obra de to de Campos escreve em sua coluna no
arte, sendo possível ouvir até hoje asso- jornal: “Como deve o artista responder

23
a um mundo elétrico em que tudo ocor- respectivamente de Norman O. Brown e
re simultaneamente? Em primeiro lugar, Henry David Thoreau: “a sintaxe é a es-
o artista deve tornar patente a existên- trutura do exército” e “quando ouço uma
cia desse mundo e não se deixar perder sentença ouço pés marchando” (CAMPOS,
pelo interesse na velha maquinaria da era 1986: 224). Diferentemente, a estrutura
industrial precedente” (CAMPOS, 1967: do poema concreto se oferece como estru-
3) e “A arte deve ser vista, então, como tura aberta, de sintaxe relacional pautada
uma tentativa de estender a consciência. pelo princípio da gestalt, onde cada ele-
A tarefa da arte, agora, é estender a cons- mento possui sua forma de relação com
ciência para dentro do contexto, criar um os demais e o todo não é simplesmente a
contexto que seja, êle próprio, totalmente soma destas relações internas, mas antes
consciente.” (idem). Sob o signo da con- um sistema descentralizado, orgânico, po-
tradição e da disputa, aparece novamente livalente, propondo uma equivalência en-
o aspecto político do poeta. Em outras pa- tre a estrutura da era elétrica e o poema.
lavras, a tarefa do artista é justamente jo-
gar na falha e na contramão deste poder, A poesia de Augusto de Campos
trabalhar a velocidade (tecnologia) contra
o poder, operar a conscientização, não sis- Esta preocupação é evidente tam-
temática ou doutrinária, mas libertadora bém na obra poética de Augusto de Cam-
da existência da estrutura de poder e da pos. Se o circuito elétrico cria um mundo
lida com o meio de comunicação atual, sua de sucessão desorganizada de eventos, o
estrutura e não somente o conteúdo por artista responde a isto com o happening.
ele providenciado. Desta maneira, poesia Em 1964, Augusto, Waldemar Cordeiro
é resistência quando é design do mundo, e Damiano Cozzella executaram um ha-
atuando conjuntamente ao meio, i.e., na ppening na Galeria Atrium, em SP, como
reelaboração das sensibilidades, mas con- abertura à exposição dos popcretos: entre
trariamente ao poder. Entendido assim, o serrotes, pedaços de móveis e sucata de
trecho do plano-piloto que diz “o poema automóveis, a tomada de posição. Numa
concreto é um objeto em e por si mesmo, época onde a arte não-representacional já
não um intérprete de objetos exteriores e/ garantia seu lugar como peça decorativa e
ou sensações mais ou menos subjetivas” item de mercado, surge uma manifestação
(CAMPOS, 2006: 216) ganha um signifi- artística que dura exatamente o tempo de
cado não somente diferente, mas oposto sua instauração, impossível de venda, mas
ao que seus críticos tentaram impor-lhe: o só de experiência. Experiência do quê?,
poema concreto rejeita ser um “intérprete perguntariam alguns. Experiência da cons-
de objetos exteriores” porque não resiste cientização do meio em que já se vive: “se
a esgotar-se no conteúdo proporcionado tomarmos um fragmento do contexto e o
pelo meio de comunicação atual (e, por- colocarmos dentro de uma galeria de arte,
tanto, pelo poder). Ao invés disto, sua mi- este é um modo de anunciar que, daqui
litância se dá ao nível da estrutura, rom- para diante, o próprio contexto é uma obra
pendo mesmo pactos basilares da sintaxe de arte” (CAMPOS, 1967: 3), diz Augusto
tradicional, uma sintaxe de subordinação, de Campos. É a época da semantização da
ordenação e categorização. Em O Anti- arte concreta. No catálogo da exposição
crítico, Augusto de Campos recupera por dos popcretos está o texto arte concreta
intermédio de John Cage duas citações, semântica, de Waldemar Cordeiro, que diz:

24
[...] o problema é deslocar a arte ob- pio, múltiplo: a SS nazista, eSSo, geSSy
jetivo-condutal da infra-estrutura para Lever, Soviete Supremo, cifrões, a miSS, o
a superestrutura, passando da esfera progreSSo e, sobre Cuba, “Sem Sanções”.
da produção para a esfera do consumo. Diante da pluralidade dos “detalhes-detri-
Deslocar a pesquisa do estudo racional tos da realidade” (idem) e seu processo de
do comportamento diante de fenômenos referenciação imediata, porém, a unifor-
ópticos para o do comportamento diante midade da sigla é fria: ao contrário de um
de fatos visíveis carregados de intencio- nome, que é capaz de evocar um signi-
nalidade e significação dentro de contex- ficado sem que esteja imediatamente re-
tos histórico-sociais (CORDEIRO apud metido a um contexto, a sigla não aponta
MEDEIROS, 2007: 83) para nenhum referente-de-mundo, a me-
nos que já se encontre atrelada ao nome
O “pulo da onça” dos anos sessen- que ela signifique ou o contexto lhe em-
ta fará com que os poetas concretos - em preste sentido. Funciona mais como uma
especial, Augusto - se interessem pelo articulação fonética desprovida imediata-
mapeamento do consumo e sua relação mente de sentido do que como um signo.
com a produção de informação. Este inte- Augusto constrói, portanto, com o “semi-
resse aparecerá não somente na poesia: -signo” SS, não associações a significados
os músicos filiados ao movimento Música imediatos, mas, dentro desta justaposição
Nova rapidamente redirecionarão sua pes- de “detalhes-detritos da realidade”, uma
quisa de formas para a cultura de massa, rede de denotações onde, de forma mais
sendo o encontro com a música pop e o próxima ou mais distante, todas as pala-
surgimento da Tropicália um dos resulta- vras encontram-se dentro de um grande
dos mais frutíferos e claros desta relação. campo semântico: nas palavras de Au-
O intuito desta empreitada não é atingir gusto, “o caos antropofágico brasileiro”.
ou repelir o consumo de massa, mas au- Este caos antropofágico, no entanto, não
mentar a quantidade de informação nova é uma carnavalização de questões sociais,
circulando na arte pop. Mais uma vez, o mas a evidenciação de uma ligação entre
projeto não se deu sem enfrentamentos. regimes de exceção (a polícia nazista, o
Em entrevista, Augusto de Campos re- Soviete), o poder do capital internacional
corda que “terminada a mostra [dos pop- (eSSo, geSSy Lever, progreSSo) e a socie-
cretos, na galeria Atrium], quando fomos dade do espetáculo (miSS). A este proce-
retirar os trabalhos, todos estavam danifi- dimento, Augusto dá o nome de “concre-
cados com insultos e palavrões. Num dos ções semânticas” (idem: 124). Ainda, ao
meus poemas escreveram a palavra ‘lixo’. dispor recortes retirados de jornais, Au-
Foi o toque para o poema LUXO…” (CAM- gusto compõe a estrutura do poema con-
POS, 2015). forme a estrutura da informação elétrica:
atomizada e sem prioridades. A respeito
Os popcretos são resultado deste da era da eletricidade, McLuhan afirma:
redimensionamento da pesquisa da van- “Eletricamente contraído, o globo já não é
guarda. Em SS, por exemplo, a colagem mais do que uma aldeia. A velocidade elé-
de recortes de jornais joga com a “ambí- trica, aglutinando todas as funções sociais
gua SSemântica das SSiglas” (CAMPOS, e políticas numa súbita implosão, elevou
2000: 123). A sigla SS, aparece assim, a consciência humana de responsabilida-
como índice plural, como signo, a princí- de”(McLUHAN, 1974: 19). Trazendo esta

25
responsabilidade para o campo da arte, o bilitando uma plurileitura do poema. Com
poeta assinala: aparência de panfleto ou cartaz, o poema
Muitas pessoas ainda gostam do transita entre vários níveis de informa-
seu invólucro e se apegam ao papel de ção a ser consumida pelo leitor: seguindo
consumidor. Mas a nova forma de arte a escala, em amarelo vibrante aparece a
simplesmente requer que o público seja inscrição do dollar americano: “DEUS SAL-
produtor e não consumidor! Isso deman- VE A AMÉRICA”. Com um detalhe: ao lado
da uma grande dose de energia e de em- de “DEUS” há um cifrão: DEUS$”, justapo-
preendimento da parte do espectador. sição que pode aludir tanto a uma espécie
(CAMPOS, 1967: 3) de par fonético “deus-dollar” quanto ao
jogo de siglas do popcreto SS. Em letras
E, finalizando seu comentário à de mesmo tamanho, mas em verde-ban-
entrevista de McLuhan: deira, está escrito: “O BRASIL O BRASIL O
“... a função da arte não é desen- BRASIL DIZ”. Aqui, outro componente de
volver resíduos e incrustações de tipo fós- redundância: verde e amarelo formam as
sil; mas mover-se rapidamente, à maneira cores da bandeira do Brasil e formam um
de guerrilhas, em novas esferas de ação par por oposição a “yes eua yes oea” que
e enfrentar conjuntamente novas espécies estão escritos em vermelho e azul, cor da
de contextos, criar novos tipos de cápsulas bandeira americana.
de tempo e de espaço em que o homem
possa sobreviver, a despeito de suas pró- É preciso lembrar o que significa
prias fantásticas invenções.” (idem) a temperatura informacional estética de
um texto: “esgotamento, pelo artista cria-
Na obra de Augusto de Campos dor, das possibilidades de diversificação e
há ainda exemplos de posicionamento nuanceamento do arsenal lingüístico de
político mais explícito. Diana Sorensen, que dispõe, reduzindo ao mínimo a redun-
em livro que comenta a década de 60 na dância e elevando ao máximo o número
América Latina, observa que “os primeiros de opções sintático-semânticas” (CAM-
anos da Revolução Cubana conduziram a POS et al., 2006: 192). Desta maneira,
novas configurações de prática radical e optando pela síntese que remete a lemas,
ideologias de transformação que ocupa- palavras de ordem e cores de bandeiras
ram muito do imaginário social da Améri- (elementos de rápido consumo e comu-
ca Latina nos anos 60” (SORENSEN, 2007: nicação), Augusto dá uma mostra do que
15). Um exemplo disto é cubagramma, seria uma poesia concreta “panfletária”. E,
publicado em Invenção 2. O poema reto- no entanto, apesar do material reduzido,
ma o emprego de cores como identificação há uma grande variedade de leituras pos-
de núcleos de leitura, como acontece em síveis. Por exemplo: ao trecho “O BRASIL
poetamenos. A isto acrescenta-se o pro- DIZ” segue-se o “QUE NÃO”, de “IANQUE
cedimento mallarmaico de determinação NÃO”. E é possível ler logo acima, em le-
da prioridade da mensagem pelo tamanho tras menores “para o progr esso”, possi-
da fonte. Assim, lê-se em letras vermelhas bilitando a leitura: “o Brasil diz que não
garrafais o núcleo fundamental do poema: ao progresso”. Na medida em que aglu-
“CUBA SIM IANQUE NÃO”. Gravitando em tina parte da palavra “ianque” e destaca
torno deste núcleo, os demais núcleos ar- a palavra “esso” (fazendo nova referência
ticulam-se internamente e entre si, possi- à exploração do petróleo por parte do ca-

26
pital internacional), fica claro qual o tipo No mesmo texto, recorda a produ-
de progresso que está sendo rejeitado: o ção do clip-poema Pulsar, em 1984, como
“progresso” amparado em multinacionais sendo finalmente a realização dos “filmle-
e investimentos estrangeiros, que resulta tras”, almejados no prefácio de poetame-
rapidamente em dependência, exploração nos; menciona, por fim, o poeta Kenneth
e retrocesso. Goldsmith, fundador do site-arquivo de
poesia experimental ubu.web, mostrando
Inconclusão que, mesmo octogenário, está a par dos ca-
minhos que a poesia toma. Em seu esforço
Não se limitando às experiências de frisar a necessidade de uma retomada
da década de 1960, Augusto de Campos de uma linha evolutiva e evitar a diluição,
acompanhou de perto os desdobramen- ele afirma: “A informática [...] fornece ao
tos do uso da tecnologia na arte. Nos ar- poeta um instrumental enorme para imple-
tigos incluídos na edição mais recente de mentar as propostas das poéticas das van-
Poesia, Antipoesia, Antropofagia & Cia., guardas, que se repotencializam, auguran-
Augusto dá ênfase ao tema. Como quem do uma ultramodernidade antes que uma
atentasse para a necessidade do reconhe- pós-modernidade” (idem: 318)
cimento de uma linhagem de precursores
e de uma retomada desta linha evolutiva Apesar deste balanço, Augusto de
(mantendo-se fiel, assim, ao projeto con- Campos, em entrevista na ocasião do lan-
creto), o poeta destaca a obra de Erthos çamento de seu livro de poemas mais re-
Albino de Souza, talvez o primeiro a fazer cente, Outro, lançou a provocação: “Não
uso sistematicamente de computadores sei se o que faço é ainda poesia concre-
na produção de poesia no Brasil, Walde- ta. Fiquei talvez mais ‘pop’. Mas sempre
mar Cordeiro, precursor da Computer Art, ‘verbivocovisual’” (CAMPOS, 2015). No-
Décio Pignatari e Rogério Duprat, que já menclaturas à parte, as “antenas” ainda
em 1964 tentavam compor uma “sonata estão em sintonia com o “gênio da lín-
de Mozart” através da identificação do es- gua”: em tempos de novo golpe, Outro
tilo de Mozart por cálculos feitos no com- traz uma versão atualizada de Brazilian
putador. Em Do Concreto ao Digital, texto Football, um poema de 1964 onde os gri-
publicado pela primeira vez, faz um verda- tos de “goal” (gol) são, numa sutil mu-
deiro balanço da trajetória da poesia con- dança, substituídos pelos gritos “gaol”
creta e lembra: (cadeia). Por jogadas como esta, Augusto
de Campos mostra porque a última parte
Sob o influxo da revolução tecnológi- deste texto não poderia se chamar “con-
ca, os novos experimentos convergiram clusão”: resistente e com fôlego, o poeta
para a valorização da interdisciplinari- (que, ultimamente, ao falar sobre nosso
dade [...] já nos anos 1980 e 1990, às momento político, tem frisado que passou
mais diversas explorações intermidiáti- por duas ditaduras e não esperava passar
cas com apelo ao neon, à holografia, ao por outro golpe) mostra que ainda está
laser e ao vídeo e a levariam [a poesia em campo, com um olho no jogo e ou-
concreta] finalmente ao universo digital, tro na história, atento aos lances e não
estendendo-se às manifestações multi- dá mostras de cansaço nem de que será
midiáticas. (CAMPOS, 2015: 317) substituído. Auguri, Augusto!

27
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SORENSEN, Diana. A Turbulent Decade
Remembered. Scenes from Latin Ameri-
ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à An- can Sixties. California: Stanford University
tropofagia e às Utopias. Rio de Janeiro: Press, 2007.
Civilização Brasileira, 1978. TENDÊNCIA 4. Belo Horizonte: Imprensa
CAMPOS, Augusto de. O Anticrítico. São da Universidade de Minas Gerais, 1962.
Paulo: Cia. das Letras, 1986.
_________. Poesia, Antipoesia, Antropofa-
gia & Cia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
_________. viva vaia: poesia 1949-1979. Notas
São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. 1
A versão contida no livro é que foi publicada no mesmo
_________. Aos 84 anos, Augusto de ano no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo.
Campos lança livro inédito e fala sobre 2
A tese de Décio, Situação atual da poesia no Brasil, tam-
trajetória da poesia concreta. Entrevista. bém está publicada em Contracomunicação.
In: O Globo (edição online). Disponível 3
Para compreender a formação e difusão na cultura brasilei-
em: https://oglobo.globo.com/cultura/ ra do sentimento nacional, cf. o livro O Mistério do Samba,
livros/aos-84-anos-augusto-de-campos- de Hermano Vianna (Jorge Zahar; Editora UFRJ,1995). O
-lanca-livro-inedito-fala-sobre-trajetoria- triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, também
-da-poesia-concreta-16807757 é um retrato deste nacionalismo (embora levado às últimas
_________. A arte na era eletrônica. In: conseqüências). Para um panorama da situação política bra-
Correio da Manhã. 1 de janeiro de 1967, sileira pré-golpe e dos primeiros anos da ditadura militar, cf.
4º caderno, p. 3. Cultura e política, 1964-1969, de Roberto Schwarz.
_________. As transformações técnicas e 4
cf. FREUD, Sigmund. Obras completas Volume XIII:
a arte. In: Correio da Manhã. 19 de março Totem e Tabu e outros trabalhos. Imago.
de 1967, 4º caderno, p. 4.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo
de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia
concreta. São Paulo: Ateliê Editorial, 2006.
INVENÇÃO 1. Revista de arte de vanguar-
da. São Paulo: GRD, 1º trimestre de 1962.
INVENÇÃO 3. Revista de arte de vanguarda.
São Paulo: Edição Invenção, junho 1963.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comu-
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MEDEIROS, Givaldo. Dialética concretista:
o percurso artístico de Waldemar Cordei-
ro. In: Revista do IEB, nº45 p. 63-86, se-
tembro de 2007.
PERRONE, Charles. The Imperative of In-
vention: Brazilian Concrete Poetry and In-
tersemiotic Creation. Disponível em http://
www.ubu.com/papers/perrone.html
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Pau-
lo: Cultrix, 1977.

28
INVENÇÃO

29
ANA HATHERLY
Estou em ti como a alma está no corpo
Morrer e ressuscitar no céu
Sem título

30
31
32
33
GIULIA NICCOLAI
Poemas & objetos

whole (Legenda: whole: inteiro hole: buraco)


steep (Legenda: steep: íngrime step: degrau)
scrivere giusto sbagliato (Legenda: escrever certo errado)
to knit (Legenda: to knit: tricotar knot: nó)
scultura (Legenda: escultura)

34
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38
39
ARTIGOS/
ENSAIOS

40
“AUMENTANDO A
TEMPERATURA REFERENCIAL”:
REVERBERAÇÕES POUNDIANAS NA
POESIA CONCRETA BRASILEIRA*
Marjorie Perloff**

41
Ezra Pound em “vortografia”
de Alvin Langdon Coburn

42
Em 26 de janeiro de 1953, Ezra Pound, Os brasileiros tinham enviado a Pound a
encarcerado no hospital psiquiátrico St. Eli- primeira edição de sua nova revista de
zabeths, em Washington, DC, onde passaria poesia NOIGANDRES, cujo título foi tirado
mais de uma década por ter sido acusado do Canto 20 de Pound. Aqui está a carta
de traição por suas atividades pró-fascis- de Pound, sob a forma de uma pequena
tas durante a Segunda Guerra Mundial, “rima” (conforme o poeta a designa), es-
escreveu uma carta de agradecimento a crita uns quarenta e seis anos antes, uma
três poetas brasileiros – os irmãos Augusto ocasião, diz ele, de “viajar como prelúdio
e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. para Kulchur”1:

Spaniard 1906 Where from?”


young
American Traveler:
“America”
Sp. = “del Norte o del Sud?”
Am. Tr.
“Estados Unidos”

Sp. (with all the ironic contempt


Of Andalusia pre-
Columbus)

“Los Estados Unidos


de America, Señor, o
los Estados Unidos
de BraTHil?

Haroldo de Campos manifestou-se muito satisfeito com este “ideograma anedó-


tico-poético”, tão coerente, observou, com os Cantos (H. de Campos, “Cartas” 225). A
próxima carta de Pound, datada de 27 de novembro de 1953, é ainda mais característica
do seu estilo epistolar. Começa assim:

Bright Brazilians , blasting at bastards


no mais prohundo hundo das prohundar

my brazialian [sic] wd/ be broken worse than that if I tried to


continue for more than 3 lines of Camoens

A alusão se refere a Os Lusiadas de Luis de Camões, que contém as linhas:

No mais interno fundo das profundas


Cavernas altas, onde o mar se esconde,
La donde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde, (...) (Citado em SR 220)

43
Em The Spirit of Romance, Pound citou esta passagem, observando: “Há uma
refinada ressonância estrondosa nisto” (220). Sua própria tradução arcaizante lê:

In th’ inmost deep of the profound


High caverns, where the sea doth hide him,
There, whence the waves come forth in madness,
When to the wraths of wind the sea respondeth

Mas na carta aos poetas de Noi- “Não é uma questão de salário alto, nem
gandres, Pound, evidentemente citando a mesmo de salário”.
passagem de memória, substitui “ interno”
por “ profundo” e, trocando por brincadei- O desejo fugaz de Pound não era,
ra o “f” português pelo “h” castelhano, faz naturalmente, ser atendido. Mas sua pre-
a versão burlesca dessas intimidades do sença como espírito tutelar para a comu-
oceano profundo, agora, duplamente pro- nidade de vanguarda do concretismo bra-
fundo. O poeta, vemos, não perdeu seu sileiro dificilmente poderia ter sido mais
senso de humor2. Em uma nota em aste- acentuada. Como e por quê? Como acon-
risco no final da página, ele observa: “ I teceu que o poeta que, nos EUA da déca-
shld / have stated: thank god that after da de 1950, era regularmente denunciado
nearly five decades or better thank Ren- por seu fascismo, tenha se tornado mes-
nert [Hugo Rennert, Professor of Romance tre de poesia para poetas brasileiros de
Languages at Penn] for having forced me esquerda, como Pignatari e os irmãos de
to do 1 term in portagoose, contra voglia, Campos? E não apenas para os poetas. Em
I can still follow yr/meaning and given six sua autobiografia de 1997, Tropical Truth:
weeks in Sao P / cd/ probably buy a tram A Story of Music and Revolution in Brazil, o
ticket or a cup of coffee”. famoso cantor, compositor e ativista polí-
tico Caetano Veloso repetidamente presta
À medida que os anos se passa- homenagem a Pound. Na verdade, quando
ram em St. Elizabeths, a conexão “porta- conheci Veloso no Rio, alguns anos atrás,
goose [um trocadilho com ‘portuguese’]” sua primeira pergunta foi por que o gran-
parece ter se tornado mais atraente; em de poeta americano contemporâneo John
uma carta de 21 de dezembro de 1957, Ashbery não parecia apreciar seu precur-
Pound perguntou se os poetas de Noigan- sor modernista mais notável.
dres não poderiam, talvez, tirá-lo do hos-
pital psiquiátrico. Talvez, ele perguntou, É uma boa pergunta (não tanto
uma proposta pudesse ser feita ao “Minis- sobre Ashbery, que recentemente me dis-
tério da Educação” no sentido de que “my se que está ocupado em reler os Cantos),
presence wd/ conduce to the further edu- mas sobre diferença nacional e cultural. No
cation of the DeCampos and Co/etc. and/ caso do Brasil, o advento do modernismo,
or the animal life and denizens of the Los como Augusto de Campos argumentou em
Estados Unidos de Brazil (“minha presença um ensaio de 1965 (“Pound Made (New) no
ajudaria o aprofundamento da educação de Brasil”), foi adiado pelas duas Guerras Mun-
DeCampos e Co / etc. e / ou a vida animal diais. Até 1945, os livros, jornais, música e
e habitantes de Los Estados Unidos do Bra- obras de arte da vanguarda europeia es-
sil”). E ele acrescenta melancolicamente: tavam em grande parte indisponíveis para

44
aqueles que se encontravam na distante peças teatrais lhes parecia o caminho a se-
América do Sul. Não surpreende, dado o guir”(“ Pound Made “276)3.
isolamento dos poetas brasileiros durante
os anos de guerra, que a chamada geração Foi a geração brasileira do pós-
de 45 - a primeira geração de poetas do -guerra - uma geração que não estava
pós-guerra – tenha reagido com cautela à diretamente envolvida na tragédia das
nova poesia. Eles, observa Augusto, ouvi- guerras mundiais e pronta para absorver
ram falar de Ezra Pound, o poeta louco que as invenções estéticas que ocorreram no
cometeu traição contra seu próprio país, ápice de 1914 - que descobriu Pound. Os
um poeta que era o autor de um poema concretistas escolheram como título de
difícil e fragmentário chamado The Cantos. sua nova revista, lançada em 1952, a pa-
Mas não fizeram nenhum esforço para en- lavra noigandres, extraída do Canto 20,
frentar este texto ameaçador, preferindo a onde Pound lembra a consulta que fez ao
companhia mais segura de TS Eliot, “cuja grande especialista provençal Emile Lévy,
evolução regressiva”, observa Augusto,”- professor em Freiburg, a respeito da poe-
do modernismo de The Waste Land para sia de Arnaut Daniel. Aqui está a passa-
o neoclassicismo dos Four Quartets e das gem em questão:

And he said: Now is there anything I can tell you?”


And I said: I dunno, sir, or
“Yes, Doctor, what do they mean by noigandres?”
And he said: Noigandres! NOIgandres!
“You know for seex mon’s of my life
“Effery night when I go to bett, I say to myself:
“Noigandres, eh, noigandres,
“Now what the DEFFIL can that mean!” “(20 / 89-90) 4

“Esta palavra intrigante”, escre- provavelmente se referindo a uma flor


ve Mary Ellen Solt em seu estudo clássico que poderia expulsar o tédio. Na verdade,
Concrete Poetry (1970), “adequou-se mui- apenas algumas linhas após a anedota de
to bem aos propósitos dos poetas brasilei- Lévy no canto 20, Pound refere-se ao “The
ros; pois eles estavam trabalhando para smell of that place— d’enoi ganres “ [na
definir um novo conceito formal. O nome tradução dos Campos e de Pignatari: “O
Noigandres era, ao mesmo tempo, relacio- aroma dêsse lugar — d’enoi ganres ] (90).
nado com a herança poética internacional A palavra noigandres, outros provençalis-
e de impossível definição para os especia- tas mostraram, também pode se referir
listas”(12). Mas, como o próprio Augusto ao noix de muscade (noz-moscada), que é
de Campos observou – eu discuto o as- um afrodisíaco.
sunto mais detidamente no livro Unorigi-
nal Genius ([O Gênio Não-Original]65-66) Até que ponto os poetas de Noi-
– Pound sabia muito bem que “Old Lévy” gandres conheciam estas etimologias
havia, de fato, partido a difícil noz em quando escolheram a palavra noigandres
questão, estabelecendo que noigandres não está claro, mas nos anos subsequen-
era uma palavra provençal composta de tes iriam explorá-las completamente. Na
enoi (ennui) e gandir, afastar, remover, verdade, apenas algumas semanas atrás,

45
Augusto de Campos me escreveu sobre Mas o novo “método de composi-
sua descoberta, na biblioteca da Univer- ção”, com o seu apelo por uma justaposição
sidade de São Paulo, da edição original do “analógica” em vez de “lógica-discursiva”,
Wörterbuch de Lévy, com a definição de não é, de forma alguma, como se supõe,
gandir (schiltzen, wahren, retten), que, um chamado para alguma forma de pic-
assim Augusto conseguiu estabelecer, torialismo. Em um importante ensaio de
Pound tinha visto enquanto escrevia o 1960, “A temperatura Informacional do tex-
canto 20. Quanto ao significado secundá- to”, que retira a sugestão do seu nome do
rio – noz-moscada – acrescenta picância, teorema de Benoit Mandelbrot , Haroldo co-
embora Augusto acredite que deva ser menta sobre a seguinte passagem no pre-
considerado com cautela. “Como JJ [Ja- fácio de Pound de 1936 ao Chinese Written
mes Joyce] poderia dizer”, Augusto grace- Character de Ernest Fenollosa (Haroldo se
ja ,”‘place all space in a notshall-—Nois- refere a Basic English de C. K. Ogden, pri-
danger’ [“notshall” – palavra portmanteau meiro publicado em 1929):
envolvendo a palavra inglesa “nutshell”
(casca de noz); “Noisdanger” – palavra Muitos dos substantivos na lista de Og-
portmanteau que evoca “noigandres” ] (“ den composta de 850 palavras poderiam
To MP “, 19 de março de 2014). muito bem servir como verbos, o que
emprestaria uma força consideravel-
Por que o fascínio pela etimolo- mente maior a esse breve vocabulário. [.
gia? No “Plano Piloto da Poesia Concreta”, . .] Sugiro ademais que a gama limitada
publicado primeiro em Noigandres n. ° 4 de ações incluídas por Ogden nesse vo-
em 1958, a ênfase é dada, como se pode- cabulário essencial poderia ser conside-
ria esperar, ao famoso aforismo de Pound rada quase como uma derivação de um
Dichten = Condensare, com o corolário de conjunto de possibilidades radicais ainda
seu chamado pela concreção, intensidade, mais breve. (Qtd. Ill Novas 229)5
o detalhe luminoso, e, claro, o ideograma
- ou melhor, a montagem de ideogramas, Evidentemente, Haroldo postula,
que é a técnica de The Cantos: Pound está defendendo uma “poesia bá-
sica”, aos modos do Inglês Básico, uma
a poesia concreta começa por tomar poesia que “tem seu lexico potencial não
conhecimento do espaço gráfico como em função de uma redução da linguagem
agente estrutural. espaço qualificado: para efeito de facilitação da comunicação
estrutura espaciotemporal, em vez de semântica, mas sim em função da co-
desenvolvimento meramente temporís- municação de um produto poemático de
tico-linear. daí a importância da ideia de cuja realização esta contenção básica é
ideograma, desde o seu sentido geral um princípio estrutural “(Novas 229). A
de sintaxe espacial ou visual, até o seu “riqueza” de The Cantos, sugere Harol-
sentido específico (fenollosa / pound) de do, resulta de sua” alta temperatura in-
método de compor baseado na justapo- formacional “ou, com mais precisão, sua
sição direta – analógica, não lógico-dis- alta “temperatura referencial”, ou seja, o
cursiva – de elementos. (Novas 217) uso do que os poetas de Noigandres cha-
maram constelações, condensados “com-
plexos referenciais” de “fatos, eventos,
personagens, contextos culturais” (229).

46
Na verdade, ele cita uma carta de 1935 Pound de se vincular; à medida
de Pound a Ogden que declara: “I propose porém que a obra progride, com
starting a nice lively heresy, to effek, that essa mutabilidade estilística que
gimme 50 more words and I can make aspira à monumentalidade ar-
Basic into a real licherary and muledrivin’ tesanal, ocorre, paralelamente,
language, capable of blowin Freud to hell a fragmentação do discurso, o
and gettin’ a team from Soap Gulch over processo de montagem ideogrâ-
the Hogback. You watch ole Ez do a basic mica invade a microestrutura da
Canto “(L 266). composição e – a partir dos “Can-
tos Pisanos” – pode-se dizer que
“Este ‘cantar básico’, explica Haroldo, a tensão para o “Basic Canto” a
todo momento reponta no deta-
Está implícito na própria ma- lhe. (Novas 230)
croestrutura ideogrâmica dos
Cantos, que critica a linguagem E Haroldo dá o seguinte conjunto
discursiva à qual ainda não deixa de exemplos:

what’s the name of that bastard? D’Arezzo, Gui d’Arezzo


notation

3 on 3
chiacchierona the yellow bird
to rest 3 months in bottle
by the two breasts of Tellus
(auctor)

ou:
Hot hole hep cat
ou:

8th day of September


f f
d
g
write the birds in their treble scale
Terreus! Terreus.

Ou ainda (de Rock-Drill):

They who are skilled in fire

shall read tan the dawn. (citado em Novas 230)

47
“A opção da estrutura”, escreve “Uma imagem”, Pound insistira
Haroldo, “a escolha entre ”n” estruturas, já em 1913, é aquilo que apresenta um
daquela que realiza o particular problema complexo intelectual e emocional em um
do poema” (233), é a melhor maneira de instante de tempo “(LE 4). Observe o ad-
aumentar a “entropia negativa” do texto jetivo “intelectual”, aqui. No momento em
(Novas 232). Embora não explique as pas- que Pound publicou sua transcrição do
sagens em questão, Haroldo está sugerindo ensaio de Fenollosa The Chinese Written
que o ideograma poético em sua máxima Character as a Medium for Poetry, o texto
realização é o que James Joyce, o outro he- que, conforme Haun Saussy observa em
rói literário dos concretistas, chamou, em sua importante edição crítica, passou a ser
Finnegans Wake, um complexo verbivoco- considerado pela geração da Black Moun-
visual. No primeiro exemplo, do canto 79 (C tain como um manifesto da Nova Poética,
507), a referência abreviada a Guido d’Are- o sucessor da imagem – o ideograma – foi
zzo, já invocada na página anterior (“thus proposto para se referir à representação
what’s his name” [“assim como é o nome pictórica direta. A virtude da língua chi-
dele”] [C 506]), que desenvolveu o sistema nesa, foi este o argumento, era que as
de hexacordes, fazendo evoluir a pauta de palavras realmente se assemelham às coi-
duas linhas para a atual de cinco linhas – sas que elas representam: “O signo do sol
aqui “2 em 2” e “3 em 3” – é justaposta emaranhado nos ramos do signo da árvore
a três ideogramas chineses (para amare- = leste” e assim por diante (Fenollosa e
lo, pássaro e repousos), o epíteto italiano Pound 46)6.
para aquele pássaro amarelo (chiacchiero-
na , “Cackler”), a forma adequada de en- A versão de Pound de Fenollosa,
velhecer o vinho (“3 months in bottle”) e como mostram Saussy e seus colegas edi-
os seios da Terra – a deusa Tellus. A alta tores, não foi, de forma alguma, precisa.
temperatura referencial neste caso depen- O poeta, por exemplo, minimizou delibera-
de da entropia negativa, pela qual a ima- damente a discussão de Fenollosa sobre a
gem visual, o som e a referência semântica dimensão sonora do caracter escrito chinês
são agrupados em trinta e duas palavras (ver Saussy 17). Mas, mesmo supondo que
curtas, muitas delas parte do inglês básico Pound tenha entendido direito Fenollosa,
(“what’s the name”, “two”, “3”, “ to rest” e Haroldo explica no livro Ideograma (1986)
assim por diante). No caso de “hot hole hep que o conceito de ideograma de Pound,
cat”, do canto 80, os monossílabos imitam conforme descrito em The Chinese Written
o som do “hup two three four” do sargen- Character (ou no ABC of Reading, onde
to de perfuração enquanto o “hep cat” que Pound insiste que o ideograma “é uma
emerge de um “buraco quente” (notar a in- imagem da coisa” e dá o seu agora famo-
sinuação sexual de Hole = pussy [boceta]) so exemplo de “ vermelho” como sendo um
funciona como uma referência semântica amálgama dos ideogramas para “ROSA”,
ao “Prowling night-puss” (“Gato noturno “CEREJA”, “FERRUGEM” e “FLAMINGO”),
em busca de presa”) descrito algumas li- deve ao final ser subordinado à prática real
nhas mais tarde, que procura comida de dos cantos.
gato apenas para ser advertido pelo poeta
que “you can neither eat manuscript nor O ensaio principal de Ideograma,
Confucius” (518). A estrutura dos Cantos que data de 1977, põe em questão toda
não permite desperdício de movimento. a premissa de que em chinês as palavras

48
estão muito mais próximas das coisas do mais tarde, a iconicidade pretendida pela
que em inglês, que supostamente tem uma poesia concreta - está sempre subordina-
predileção para a abstração7. Em primeiro do à necessidade de estrutura relacional,
lugar, Haroldo contesta, “no uso comum, o pelo que, para ampliar o alcance da tese
leitor chinês trataria os ideogramas à ma- de Jakobson, qualquer coincidência fonoló-
neira do usuário das línguas alfabéticas, gica ou visual é sentida como parentesco
isto é, como símbolos convencionaliza- semântico. A linha “hot hole hep cat”, no
dos, sem mais distinguir neles a metáfora canto 80, ressoa porque remete aos ideo-
visual – a etimologia visível – que tanto gramas chineses para “How far is” e, mais
impressionou Fenollosa” (Novas 294). Em adiante, “the cat-faced eucalyptus nib “[“o
segundo lugar, ele argumenta , The Chine- cara-de-gato, rebento de eucalipto”, na tra-
se Written Character, pelo menos do modo dução de José Lino Grünewald – nota do
como foi adaptado por Pound, mostra uma tradutor], que se torna o talismã do poeta:
compreensão imprópria do que Roman Ja- o rebento não é apenas “cat-faced”, mas
kobson chamou de função poética: também se assemelha a “croce di Malta” e
“fi gura del sol” (linha 9). O rosto do sol:
Enquanto para o uso referencial aqui está a referência ao “calor” novamen-
da língua não importa descobrir te, mesmo que a imagem visual de “hep”
a palavra “astro” dentro do adje- seja repetida nas “ hebrew scriptures “ que
tivo “desastrado” ou do substan- o “Prowling night-puss” [“gato noturno em
tivo “desastre”[. . .] para o poe- busca de presa] é avisado para não comer.
ta “achados” desse tipo são algo O “palimpsesto de ideografias” de Pound
que primacialmente releva. Em (Novas 231) depende de tais conjunções:
poesia – adverte Jakobson – toda é nesse sentido que a materialidade sig-
coincidência fonológica é sentida nifica. Na verdade, Haroldo argumenta,
como parentesco semântico [...] antecipando o argumento de Haun Saus-
num processo fecundante geral sy, “o aspecto importante do ensaio de
de pseudo-etimologia ou etimolo- Pound-Fenollosa não é o argumento”pic-
gia poética. [...] O que o exemplo tográfico”(o ideograma como uma pintura
chinês encarecia para Fenollosa de ideias por meio das coisas), mas sim
era a virtude homológica e homo- o argumento “relacional” (o ideograma
logadora da função poética. (No- como processo relacional, como metáfora
vas 294-95) estrutural) “(309).

Haroldo complicará mais tarde essa Lido de forma relacional, o ideo-


teoria do significado incorporando Charles grama Poundiano pode ser entendido,
Sanders Peirce e Derrida, mas para nossos não como um caráter escrito chinês ou
propósitos a referência a Jakobson é cen- como uma imagem, mas como uma figu-
tral, ajudando-nos a compreender não só ra de densidade etimológica e, como tal,
Fenollosa, mas também a poesia concre- um modelo-chave para a posterior poesia
ta. Poesia, Haroldo sugere, é precisamen- construtivista do século XX de Zukofsky e
te esse discurso em que astro e desastre Reznikoff aos poetas da Language Poetry
caminham juntos, mesmo que no discurso e além. Para os poetas brasileiros, operan-
comum não haja relação significativa entre do em um clima onde a experimentação
os dois. O aspecto icônico do ideograma - e modernista havia sido contida por tanto

49
tempo, era a concepção de Pound da es- A ordenação do conhecimen-
trutura poética - não suas teorias financei- to de modo que o próximo ho-
ras ou mesmo seu antisemitismo ofensivo mem (ou geração) possa achar,
- que importava. O método ideogrâmico o mais rapidamente possível,
também andou de mãos dadas com outro a parte viva dele e gastar um
princípio que os concretistas derivaram de mínimo de tempo possível com
Pound: o conceito de tradução como rein- itens obsoletos. (LE 75)
venção de poesia anterior ou estrangeira
- o que Haroldo chamaria de transcriação. “Crítica pela tradução” no modelo
do Cavalcanti de Pound ou das Odes de
TRANSCRIAÇÃO Confúcio pode ser encontrada em uma sur-
preendente série de “transcriações” con-
Em uma tradução verdadeiramen- duzidas por Augusto e Haroldo como, por
te criativa como Homage to Sextus Pro- exemplo, seu livro de artista conjunto Pa-
pertius de Pound, Haroldo argumentou, naroma do Finnegans Wake, que contém
traduções de fragmentos selecionados do
[...] não se traduz apenas o signi- Wake juntamente com comentários críticos
ficado, traduz-se o próprio signo, e acadêmicos e obras de arte8. Ou conside-
ou seja, sua fisicalidade, sua ma- re a versão de Augusto de Porta-Retratos
terialidade mesma [. . .] O sig- de Gertrude Stein, de 1989. O retrato na
nificado, o parâmetro semântico, capa (reproduzido como frontispício), uma
será apenas e tão somente a ba- rosa para Gertrude é projetado para expor
liza demarcatória do lugar da em- a ênfase de Stein no “presente contínuo”
presa recriadora. Está-se, pois, em “Composition as Explanation”. Sua rosa
no avesso da chamada tradução vermelha, composta por três círculos con-
literal (ou servil). (Novas 315-16) cêntricos, reencontra bem esse conceito. A
frase Uma rosa é uma rosa é uma rosa. . .
Na melhor das hipóteses, a trans- não começa nem termina em qualquer lu-
criação não só transforma textos mui- gar; comece a ler os círculos concêntricos
to conhecidos, como o inglês arcaico de onde você quiser e a oração continuará.
Seafarer, em algo novo, mas, como Pound Além disto, a sequência “roseisarose” con-
pontuou em “Date Line” (1934), produz tém a palavra “eis” – no sentido de “aqui
um novo tipo de crítica: está”. Aqui, de fato, está a própria rosa.
Em inglês, a sentença de Stein permanece
2. Excernment [expressão prova- linear, uma sequência unidirecional segui-
velmente extraída do vocabulário da de um período. Na sua variante visual,
da fisiologia, significando “excreção Augusto encontrou uma maneira de apli-
de superfluidades” – Nota do tra- car os outros dois princípios de Stein de
dutor]. O ordenamento geral e a “Composition as Explanation”, também:
eliminação do que foi de fato rea- começar repetidas vezes e usar tudo. Seu
lizado. A eliminação de repetições. ideograma de capa, portanto, fornece o
O trabalho análogo ao que uma boa contexto necessário para as traduções
comissão de seleção ou um curador contidas no livro: “A Portrait of One: Har-
realizaria em uma National Gallery ry Phelan Gibb”, “If I Told him”, “Georges
ou em um museu de biologia; Hugnet” e “Identity: A Tale”9.

50
Capa do livro “Cantares” (1960), de Ezra Pound, com tradução
de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari.

51
Mas para nossos propósitos aqui, tos empreendidos pelos irmãos de Cam-
o projeto transcriativo mais impressionante pos foi a recuperação do poeta brasileiro
dos concretistas é a edição de 1985 da do século XIX Joaquim de Sousândrade
poesia de Pound traduzida para o portu- (1832-1902), quase desconhecido em seu
guês, uma seleção que percorre de Per- país natal nos anos 50, quando os con-
sonae, Ripostes, Cathay e Lustra a Drafts cretistas se interessaram por seu trabalho,
and Fragments. As traduções, em si, fo- o qual permanecia amplamente inédito e
ram na sua maior parte produzidas nos disperso em várias bibliotecas obscuras10.
anos 60 por Augusto e Haroldo de Cam- Sousândrade nasceu no estado nortista do
pos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald Maranhão, obteve seu diploma em enge-
(um dos principais intelectuais brasileiros) nharia mineira em Paris, depois mudou-se
e o poeta Mario Faustino, mas a edição para Nova York e, mais tarde, para Lon-
de 1985 foi projetada como um livro de dres, fechando um círculo completo no
artista, com a sua impressionante capa e fim, ao morrer em seu local de nascimen-
contra-capa, sua série de fotografias dra- to. Do décimo canto de seu longo poema
máticas e sua disposição de poesia, pro- episódico e desigual “O Guesa Errante”,
sa explicativa, notas, excertos das cartas Augusto e Haroldo selecionaram um epi-
de Pound e ensaios específicos, principal- sódio que eles chamaram de “O inferno
mente por Augusto e Haroldo, a respeito de Wall Street” (uma tradução em inglês
de ideograma, tradução (a relação tradi- de Robert E. Brown pode ser encontrada
tore = traduttore) e visitas de Haroldo a como um apêndice para a bela terceira edi-
Rapallo e Veneza. Pound foi melhor servi- ção da Re Visão de Sousândrade [2002];
do por seus editores no Brasil distante do o volume contém ensaios críticos, uma
que em seu próprio país: não temos em antologia da poesia de Sousândrade e
inglês nenhuma seleção de textos diversos elaborada bibliografia e documentação).
de Pound – um Guia de Leitura de Pound, “O Inferno de Wall Street “ é um poema
por assim dizer – que se compare à deles. que inclui a história no sentido poundiano.
Contextualizando obras tão diversas como Ele emprega uma montagem de citações de
Cathay, Hugh Selwyn Mauberley e 17 Can- empresários americanos - “Stockjobbers,
tares (publicados inicialmente em 1956) Pimpbrokers, etc. etc.” (A. e H. de Cam-
com aforismos e breves declarações sobre pos, Re Visão 585) - e tipografia experi-
ideograma, tradução, fragmento épico, mental, e cria um círculo infernal dantesco
etc., os concretistas preparam a cena para (ver “Pound made (new) in Brazil, “82-83)
trabalhos multimídia e de gênero híbrido, usando fragmentos de diálogo retirados de
das obras multilingue de rádio de Oyvind fontes históricas e jornalísticas. Augusto
Fählstrom às recriações de Leevi Lehto, os observa que seu modelo era o método
poemas de Charles Bernstein e a recriação arqueológico de Frobenius como Pou-
de Rachel Galvin do livro Courir les rues de nd descreve no Guide to Kulchur: ”’Onde
Raymond Queneau. encontramos esses desenhos de rochas,
sempre havia água a menos de seis me-
A transcriação – que o próprio tros da superfície.’ Esse tipo de pesquisa
Pound chamou de uma espécie de prática não passa apenas pela vida passada e
de curadoria (LE 75) – , é de se notar, não esquecida, mas aponta para o abasteci-
se limita a modelos extraídos de literatu- mento de água para o futuro” (GK 57).
ras estrangeiras: um dos grandes proje-

52
Aqui está a abertura do poema:

(O GUESA, tendo atravessado as ANTILHAS, crê-se livre dos


XEQUES e penetra em NEW-YORK-STOCK-EXCHANGE;
A Voz dos desertos:)

-Orpheu, Dante, Eneas, ao inferno


Desceram, o Inca há de subir. . .
= Ogni sp’ranza Iasciate,
Che entrate. . .
-Swedenborg, há mundo por vir?

(XEQUES surgindo risonhos e disfarçados em Railroad-managers,


Stockjobbers, Pimpbrokers, etc., etc., apregoando:)

- Harlem! Erie! Central! Pennsylvania!


= Milhão! cem milhões!! mil milhões !!!
- Young é Grant! Jackson,
Atkinson!
Vanderbilts, Jay Goulds, anões!11

(A. e H. de Campos, Re Visão 585)

Isto tem pouco da complexidade OS PRAZERES DE APENAS CIRCULAR


de Pound: os catálogos de exclamação
do poema que fustigam os Vanderbilts e A poesia concreta, argumentou
Goulds e – sombras de Pound! – os ju- Haroldo, substitui a “riqueza do vocabulá-
deus de Nova York, são muitas vezes rio” por “riqueza de estrutura”, reduzindo
bombásticos e moralistas. Ainda assim, severamente o campo da linguagem para
é notável encontrar no Brasil do final do evitar todo o excesso e, portanto, a re-
século XIX um poema documental com dundância (Novas 234). Também mantém
tão alta temperatura referencial. Essa viva uma tradição: transcender o mera-
mistura barroca de altos e baixos, de mente local , conforme Pound ensinou aos
hino e comentários terra-a-terra, carac- poetas de Noigandres. Referindo-se à sua
teriza a própria poesia de Haroldo, como magnus opus, Galáxias, conceituada como
em Galáxias (1984, escritas entre 1963 e sua “barrouca mortopopéia ibericaña”, Ha-
1976), aquela obra-prima escrita no que roldo observou em “Razão Antropofágica”:
eu chamei, em outro lugar, “prosa con-
creta”, um poema que é verdadeiramente Escrever, hoje, na América Latina
poundiano em sua mudança de registros como na Europa, significará, cada
e sua complexa rede de citações, ideogra- vez mais, reescrever, remastigar.
mas, trocadilhos e repetições12. Hoi bárbaroi. Os Vândalos, há

53
muito, já cruzaram as fronteiras A noção de fragmento como mar-
e tumultuam o senado e a ágora ca d’água, uma imagem do livro inteiro,
[ . . .] Que os escritores logo- certamente teria interessado a Pound,
cêntricos, que se imaginavam embora os Cantos nunca tenham sido pla-
os usufrutuários privilegiados nejados como as Galáxias, desenvolvidas
de uma orgulhosa koiné de mão matematicamente.
única, preparem-se para a tarefa
cada vez mais urgente de reco- Em 1959, en l’an trentieme de
nhecer e redevorar o tutano di- son age, Haroldo viajou para a Euro-
ferencial dos novos bárbaros da pa pela primeira vez e fez uma parada
politópica e polifônica civilização em Rapallo para visitar Pound. Em suas
planetária. (Novas 177) memórias dessa visita, que incluem um
diálogo entre ele e “E”, Haroldo faz um
Como trazer esse “tutano diferen- retrato emocionante, mas também preo-
cial” para a poesia? Na nota de Haroldo cupante, do poeta enquanto velho que
para Galáxias, lemos: recebe seu convidado em pijama e pedin-
do desculpas pela sua má saúde atual e
Audiovideotexto, videotextogame, a deterioração do estado mental. É uma
as galáxias se situam na fronteira pena, Ezra continua falando com Harol-
entre prosa e poesia. Há neste do, que você não tenha me conhecido há
livro caleidoscópico um gesto épi- vinte anos. E ele é muito sincero, obser-
co, narrativo [. . .] mas a imagem vando, no que diz respeito aos Thrones,
acaba por prevalecer, a visão, a quão difícil é “escrever o Paraíso” (Pou-
vocação para o epifânico. Nesse nd, Poesia 245). “Você tem um plano
sentido, o polo poético termina para completar os Cantos?” Haroldo per-
por se impor ao projeto, e o re- gunta (245). A resposta imediata é não.
sultado são cinquenta “cantos Dante, Pound explica, poderia ter um nú-
galáticos”, num total de mais de mero fixo de cantos, baseada como foi
2000 versículos (cerca de 40 por sua topologia na teologia de Santo Tomás
página). Este livro permutável de Aquino, mas o mundo confucionista,
tem, como vértebra semântica, que Pound agora adota como seu, “era
um tema sempre recorrente e um mundo em movimento, em processo
variado ao longo de todo ele: a “(245). Consequentemente, ele observa,
viagem como livro e o livro como The Cantos só poderia ser um trabalho
viagem [...] Dois formantes, ti- em fragmentos.
pografados em itálico, o inicial
(começo-fim: “e começo aqui “) A conversa muda para Camões e
e o terminal (fim-começo-reco- Cavalcanti, Henry James e William Carlos
meço), balizam o jogo de páginas Williams, Mallarmé e Gaudier-Brzeska. Ha-
móveis, intercambiáveis à leitu- roldo encontra Pound tão engajado como
ra, onde cada fragmento isolado sempre com sua “tradição viva”, mas relu-
introduz sua “diferença”, mas tante em assumi-la na situação da poesia
contém em si mesmo, como em no pós-guerra. Após os doze anos de pri-
linha d’água, a imagem do livro são e desgraça, realmente não se poderia
inteiro. (“Nota do autor”) esperar um resultado positivo, e Pound,

54
uma figura cada vez mais alienada, sa- A resposta me surpreendeu. Sim,
bia disso. Para os concretistas, no entan- Pound fez escolhas políticas ruins, mas, dis-
to, ele permaneceu o emblema da “boa” seram Augusto e Haroldo, assim também o
influência da vanguarda, em oposição à fizeram muitos outros poetas da época, de
influência “traumática” do surrealismo na Ungaretti e Valéry a Eliot e Pessoa:
América Latina. Quando, em 1994, entre-
vistei Augusto e Haroldo sobre concretis- HC: Um poeta tão reacionário
mo, definiram como inimigo o surrealismo, como Pound, e que atacou outros
com toda a sua “ênfase no inconsciente e com a mesma violência que en-
na figuração” (Perloff, “Brasilian Concrete” contramos em Pound, foi Dante.
175). “Eu acho”, diz Augusto, que “a poe- Há um belo ensaio de Eduardo
sia francesa não se libertou do surrealismo Sanguinetti sobre isso. Dante
até agora. Eles não entenderam o Un coup queria que os italianos recebes-
de dés“(175). sem de braços abertos o monarca
alemão, que ele acreditava que
Essa dispensa por atacado do sur- reinava por direito divino. Dan-
realismo é, sem dúvida, um ponto cego, te foi um dos primeiros poetas
mas o que os concretistas estão sugerindo a serem exilados por convicções
- e eles têm um ponto - é que o surrea- políticas - e muito reacionárias,
lismo, embora politicamente radical, era quanto a isso. Pound, uma espé-
formalmente conservador, um retrocesso cie de Dante moderno, tinha uma
ao romantismo em sua ênfase no sonho, concepção corporativa medieval
fantasia erótica e assuntos pesadamente da sociedade, centrada em torno
cifrados, e em seu uso de gêneros líricos e do “bom governante”. (176)
narrativos tradicionais. A “obscuridade” de
Pound, diz Haroldo, “é uma obscuridade Quando eu aleguei que as ideias
de referência. . . . Ele se opõe à ambigui- de Dante, fossem o que fossem, “não
dade característica do surrealismo “(Pou- eram idiotas ou ofensivas, enquanto que
nd, Poesia 145). E, novamente, “nenhum muitas das de Pound assim o eram, pelo
poeta após Mallarmé”, diz Haroldo, “foi menos na minha mente” (176), Augusto
tão radical como Mallarmé. Nem mesmo respondeu que sim, mas e as ideias de es-
Apollinaire. Apollinaire é decorativo onde critores stalinistas como Neruda?
Mallarmé é estrutural” (Perloff, “ Brazilian
Concrete “ 175). Augusto acrescenta iro- Eu diria que todos estavam erra-
nicamente: “Décio Pignatari tem uma boa dos em um sentido ou outro. Todo
definição para isto. Ele diz que o Brasil mundo foi enganado pela utopia
nunca teve surrealismo porque o país todo política, seja da esquerda ou da
é surrealista”(176). Esta é uma referência direita. Prefiro ver esta questão
às intermináveis crises governamentais do ponto de vista ético. Eu acho
que abalam o Brasil, e isso me levou a de- que Pound era um homem ético.
safiar e repor a pergunta: e a política de Ele não era um oportunista. Neru-
Pound? A ideologia de Pound afeta o valor da, por exemplo, tinha muito de
de sua poesia? oportunista. Ele obteve grandes
benefícios por sua fidelidade para
com a União Soviética – cargos

55
diplomáticos, e assim por dian- des digitais e de performance, bem como
te. E Jorge Amado no Brasil, que da poesia sonora. Ele é, por exemplo, um
obteve o prêmio Stalin, o Prêmio herói de ubuweb.com.
Lenin e toda a sua obra divulgada
em todo o mundo em tradução. Isso me traz de volta às Galáxias.
Pound não obteve nenhum bene- Uma vez que discuto alguns poemas da
fício de suas idéias políticas. Ele “prosa concreta” de Haroldo em um en-
era um homem pobre. Suas in- saio publicado recentemente em Moder-
tenções eram boas. (177) nist Cultures (“Refiguring”), eu quero me
concentrar aqui numa Galaxia em parti-
Haroldo acrescenta: cular, que já foi musicada e executada no
Brasil atual. O que segue depende muito
E há outro ponto. O fascismo de de um ensaio de Sergio Bessa, o editor de
Pound veio de uma posição anti- Novas, que agora está escrevendo um es-
-burguesa e anti-capitalista. Eu tudo completo sobre Noigandres. Bessa,
mesmo, desde que era muito jo- ele mesmo um pesquisador de literatura
vem, era sempre pelo socialismo, comparada e tradutor transformado em
mas por um socialismo democrá- curador de museu, tem um excelente sen-
tico. Eu sempre fui contra o sta- so de invenção verbivocovisual.
linismo. Nós, como grupo, acre-
ditávamos no socialismo e fomos Ao retornar de Rapallo a São Paulo em
atacados pelos poetas realistas 1959, como Bessa conta, Haroldo deci-
socialistas do Brasil, que nos cha- diu que, à luz de suas novas experiências
maram de formalistas. Mesmo europeias, era hora de fazer uma viagem
que nossa posição pública fosse de “redescoberta” em seu próprio país. O
claramente definida como uma “outro Brasil” de Recife e das cidades do
posição de esquerda. (177) Nordeste foram mais tarde evocados no
que seria o # 15 das Galáxias, “Circuladô
Este não é o lugar para assumir de fulô”, que Bessa traduziu para o inglês:
o que certamente será uma controvér-
sia contínua. Ironicamente, no entanto,
o Brasil contemporâneo alcançou, pelo
menos parcialmente, os pontos de vista
socialistas democráticos de Haroldo e Au-
gusto. Rejeitada nos anos 70 e 80 como
excessivamente formalista e apolítica, no
novo Brasil muito mais democrático, sua
obra é tratada com grande respeito: há
um museu literário, a Casa de Rui Barbosa
[estava assim no original]13, dedicado ao
seu trabalho. Haroldo morreu em 2003,
mas Augusto, ainda forte, viu sua poesia
tratada por uma geração norte-americana
mais nova (incluindo Kenneth Goldsmith)
como pioneira no estudo das possibilida-

56
’rounded by flowers under god’s under the devil’s mercy god shall
guide you for I myself can’t guide godbless those who give me
’rounded by flowers and those who are still to give sounding like a
shamisen made of a tensed wire a stick and an old tin can at the
end of the partyfair at highnoonhigh but for many that music did
not exist it could not because it could not popplay if not sung that
music is not popular if not in tune it does not atone nor tarantina
and yet struck in the gut of misery in the tensed gut of the
meagerest physical misery aching aching like a nail in the handpalm
a rusty blind nail in the palm clasping palm of the handheart
exposed as a tensed nerve retensed a renigrated blind nail
everlasting in the palmpulp of the hand in the sun while selling for
meager cruzeiros gourds in which the good form is fine meagerness
of matter morphing famineform of halfbaked clay in the rottenroot
of distress until others vomit their plastic plates of embroidered
borders empirestyle for mistress misery for this is popular for the
patrons of the people but people create and people engender and
people wonder people are the languageinventor in the malice of the
mastery in the smartness of marveling in the vein to improvise
stuttertrying to traverse oiling the sun’s axis for people know no
servitude pure or quasi metaphor people are il miglior fabro in the
hammering gait aiming the impossible in view of the nonviable in
the crux of the incredible oiled hammergait and the sunaxis but the
wire that wire bladewire painpained like a demented plangent wire
hammering its widowed dischord in blazing brasses of howling
hunger ‘rounded by flowers ‘rounded by flowers ‘rounded by
flooowers for I myself cant guide check this book this object of
consumption this undergodunderthedevilsmercybook which I arrange
and disarrange which I unite and disunite voyages of a vagamonde
in the vagaries of vague moons god shall guide the devil shall guide
you then for I can’t don’t dare or care don’t trick nor touch or trade
but only for my change my pennies my pains my rings my fingers
my minuses my nadas in the antennas in the galenas in these nests
in these rests as we’ll verify in the verbenas in the sugary açucenas
or minor cizircumstances I know all this don’t count all this
disappoints I’m not sure but listen how it sings value how it tells
savor how it dances and don’t propose that I guide don’t pose
dispose that I guide unguided that I pray for promise that l trust
you leave me forget me let me go untie me so that at the end I
stand erect at the end I revert at the end I concert and for the end
I reserve myself as it will be seen that I am correct it will be seen
that there is a way it will be seen that it’s been done and that
through wrongs I made it right that from a scent I made a cent and
if I do not guide I do not lament for the master who taught me
does not teach any longer baggage of mirrormoon in the mirage of

57
the second that through inversion I was dexterous being inverted by
the sinistrous I do not guide because I do not guide because I can
not guide and don’t ask me for mementos just dwell on this
moment and demand my commandment and do not fly just defy do
not confide defile for between yes and no I for one prefer the no in
the knowing of yes place the no in the ee of me place the no the no
will be yours to know (Novas 125)” 14

Como Bessa explica:

“Circuladô de fulô” é o tributo de Campos à arte popular dos cantadores praticada no


nordeste brasileiro. O texto, inspirado por uma música que Campos ouviu em uma
feira pública, possivelmente nos arredores de Recife, foi escrito entre 21 e 24 de feve-
reiro de 1965. Suas duas primeiras linhas (circuladô de fulô ao deus ao demodará que
deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda
quem falta me dá” [’rounded by flowers under god’s under the devil’s mercy god shall
guide you for I myself can’t guide godbless those who give me ’rounded by flowers and
those who are still to give] parece ser uma citação direta da canção original, que, pelo
que sei, nunca foi gravada ou impressa. Não há informações nem do autor da música.
Felizmente, sabemos o suficiente sobre essa tradição... de trovadores ou cantadores,
no nordeste brasileiro, [que] acredita-se ter suas raízes na tradição provençal através
de Portugal e o poeta rei Dom Diniz, com suas “cantigas de amigo e de amor”. . . .

O interesse de Campos por esse tipo de literatura é afetuoso e intelectualizado. Em


certo sentido, ele está “redescobrindo o Brasil” através de Pound. Deve-se lembrar
que o livro de traduções dos Cantos de Pound de 1960 (junto com Augusto de Campos
e Décio Pignatari) foi intitulado Cantares, embora a palavra “canto” tenha o mesmo
significado em português. Campos também compara o instrumento artesanal usado
pelo cantador com um shamisen, o clássico instrumento japonês usado no Kabuki. O
espírito de Pound é mais diretamente invocado por uma alusão ao “il miglior fabbro”. .
. Além disso, a indeterminação da expressão “circuladô de fulô” também traz à mente
o dilema sobre a palavra Noigandres ... Embora tanto “circuladô” quanto “fulô” sejam
erros ortográficos, não há dúvida de que “fulô” significa “flor”. Mas “circuladô” pode ser
tomado por “circulado”, o particípio passado do verbo “circular”, que significa “cerca-
do”, ou pelo substantivo “circulador”, que significa “girador”, como em “aquele que faz
as flores girarem. “ (Bessa: tradução adicionada entre colchetes)

58
Na sua tradução, Bessa opta pela OBRAS CITADAS
primeira solução porque chama a atenção
para a imagem do cantador como trova- Andrade, Oswald de, Haroldo de Campos, Mario
dor errante. de Andrade, e Paulo Prado. Oswald De Andrade:
Pau Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2000. Print.
E a música? Bessa acredita que Bessa, A. S. “Introduction.” Haroldo de Campos,
o trecho original, citado por Haroldo, foi “from Galáxias” n.p.
“escrito no estilo popular da sextilha, uma de Campos, Augusto. “Ezra Pound: ‘Nec Spe Nec
estrofe composta por seis linhas de sete Metu (introdução).” Pound, Poesia 15-40. Print.
sílabas cada uma”. Mas o que torna a mú- —. “Pound Made (New) in Brazil.” In A Mar-
sica tão intrigante para um público con- gem Da Margem. São Paulo, Brasil: Editora
temporâneo é que temos uma versão da Schwarcz Ltda., 1989. 99-112. Tradução mi-
música popular composta e interpretada nha. Originalmente publicada em Cahiers de
por Caetano Veloso, um amigo íntimo dos L’Herne, Numéro Ezra Pound. Paris: Editions de
concretistas e ele próprio nativo de uma l’HIerne, 1965. Print.
pequena cidade no nordeste. Sua versão —. Gertrude Stein’s Porta-Retratos. Santa Cata-
emula o modo sprachgesang (canto fa- rina, Brazil: Editora Noa Noa, 1989. Print.
lado[nota do tradutor]) dos cantadores, —. “To MP.” Emails para Marjorie Perloff, 19 de
proporcionando-nos o circuito completo Março de 2014 e 7 de Maio de 2014.
para a lírica trovadoresca de Pound. de Campos, Augusto and Haroldo. Panaroma
do Finnegans Wake. 2d ed. São Paulo: Editora
“Pelo avesso fui destro sendo Perspectiva, 2001. Print.
avesso pelo sestro”, lemos na última se- —.Re-Visão de Sousândrade, Textos Críticos,
ção de Circuladô, o que nos leva de volta Antologia, Glossário, Biobliographia, 3d ed. São
aos primeiros poemas de Pound em Per- Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
sonae, “Cino”, onde o bardo se refere a si de Campos, Haroldo. “Author’s Note.” Haroldo
mesmo (ou são seus rivais?) como “O Si- de Campos, Galaxias: English translation by Odi-
nistro” (PT 25). “Circuladô” tornou-se uma le Cisneros with Suzanne Jill Levine. University
música popular, encontrada em várias of Alberta, n.d. Web. 23 September 2015.
versões no YouTube, incluindo a própria —. “Cartas de Ezra Pound ao grupo NOIGAN-
interpretação de Veloso. E, portanto, Ezra DRES.” Pound, Poesia 223-33.
Pound, que nunca recebeu a homenagem —. “from Galáxias: ‘Circulado de fulô.’” Ubuweb:
que desejava em seu próprio “país meio Ethnopoetics. Ed. Ierome Rothenberg. Ubuweb,
selvagem” (PT 549) torna-se, através da 2002. Web. 23 de setembro de 2015.
versão tropicalista de Caetano Veloso da —. “ldeograma, Anagrama, Diagrama: Uma
Galáxia de Haroldo de Campos – baseada Leitura de Fenollosa.” In Haroldo de Campos,
como é essa prosa concreta nos Cantares Ideograma, Logica, Poesia, Linguagem. São
de Pound –, uma espécie de herói popular. Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
É uma boa ironia. 1994. 23-116.
—. Novas: Selected Writings. Ed. Antonio Sergio
Bessa and Odile Cisneros. Evanston, IL: North-
westem UP, 2007. Print.
Fenollosa, Ernest and Ezra Pound. The Chine-
se Written Character as a Medium for Poetry
a Critical Edition. Ed. Haun Saussy, Jonathan

59
Stalling, and Lucas Klein. New York: Fordham crimination.” Fenollosa and Pound 1-40. Print.
UP, 2008. Print. Solt, Mary Ellen, and Willis Barnstone. Concrete
Huang, Yunte. “Basic English, Chinglish, and Poetry: A World View. Blooming-
Translocal Dialect.” In English and Ethnicity. Ed. ton: Indiana UP, 1970. Print.
Janina Brutt-Criffler and Catherine Evans Davis. Veloso, Caetano. Tropical Truth: A Story of Mu-
New York: Palgrave, 2006. 75-103. Print. sic and Revolution in Brazil. Ed. Barbara Einzig.
Perloff, Marjorie. “Brazilian Concrete Poetry: Trans. Isabel de Sena. New York: A. A. Knonf,
How it Looks Today: Haroldo and Augusto de 2002. Print.
Campos Interviewed,” Arshile: A Magazine of
the Arts 3 (1994). Rpt. in Haroldo de Campos:
A Dialogue with the Brazilian Concrete Poet. Ed.
K. David Iackson. Oxford: Centre for Brazilian
Studies, 2005. 165-79. Print.
—. “Refiguring the Poundian Ideogram: From
Octavio Paz’s Blanco/Branco to Haroldo de
Campos’s Galáxias,” Modemist Cultures 7.1
(Maio 2012): 40-55. Print.
—. Differentials: Poetry, Poetics, Pedagogy.
Tuscaloosa: U of Alabama P, 2004). Print.
—. Unoriginal Genius: Poetry by Other Means
in the New Century. Chicago: U of Chicago P,
2010. Print.
Pound, Ezra. Guide to Kulchur. New York: New
Directions, 1970. Print.
—. Carta para [Augusto e Haroldo de Campos e
Décio Pignatari]. 27 de novembro de 1953. TS.
Coleção de Augusto de Campos, São Paulo, Brasil.
—. Carta para [Augusto e Haroldo de Campos e
Décio Pignatari]. 21 de dezembro de 1957. TS.
Coleção de Augusto de Campos, São Paulo, Brasil.
—. Carta para [Augusto e Haroldo de Campos e
Décio Pignatari]. 26 de janeiro de 1953. MS. Co-
leção de Augusto de Campos, São Paulo, Brazil.
—. Literary Essays of Ezra Pound. Norfolk,
Conn.: New Directions, 1954. Print.
—. Poesia, Edição do Centenário de Nascimen-
to de EP. 2d ed. Trad. Augusto e Haroldo de
Campos, Décio Pignatari, J. L. Grünewald, Mario
Faustino. Textos críticos de Haroldo lie Campos.
São Paulo: Editora Hucitec, 1985. Print.
—. The Letters of Ezra Pound, 1907-1941. New
York: Harcourt, Brace, 1950. Print.
—. The Spirit of Romance, ed. Richard Sieburth.
New York: New Directions, 2005. Print.
Saussy, Haun. “Fenollosa Compounded: A Dis-

60
Notas 9
Este parágrafo é reimpresso, com pequenas mudanças na

* Ensaio originalmente publicado na revista PAIDEUMA Vol. redação, a partir do livro Unoriginal Genius 70.

42/2015 [National Poetry Foundation]. 10


Pound escreve em “Date Line”: “O trabalho [do crítico] é

**Traduzido do inglês por Julio Mendonça análogo ao que uma boa comissão de seleção ou um cura-
1
Agradeço a Augusto de Campos por me fornecer cópias dor realizaria em uma National Gallery ou em um museu

fac-símile desta e de outras cartas citadas. Partes dessas de biologia” (LE 75).

cartas com transcrições e tradução para o português po- 11


Nota do tradutor: Na edição original deste ensaio, M.

dem ser encontradas em Haroldo de Campos, “Cartas”. Perloff utiliza, nesta altura, a tradução para o inglês de
2
Em um e-mail de 7 de maio de 2014, Augusto de Cam- Robert E. Brown, mencionada por ela linhas acima.

pos me assinalou que a caverna de Neptuno, mencionada 12


Veja meu artigo “The Invention of ‘Concrete Prose’: Ha-

algumas linhas mais tarde na passagem de Camões, cer- roldo de Campos’s Galáxias and After” nos Differentials

tamente é associada por Pound com sua própria “caverna” 175-93 e “Refiguring the poundian ideogram”.

em St. Elizabeths. 13
Nota do tradutor: A autora, aqui, ao referir-se ao mu-
3
A única exceção, observa Augusto, foi o radical poeta mo- seu literário que é dedicado à obra de Haroldo de Campos

dernista Oswald de Andrade, que aplicou intuitivamente as como sendo a Casa de Rui Barbosa (situada no Rio de Ja-

técnicas de Pound na montagem de citações que usou em neiro), talvez tenha sido traída pela memória; na verdade,

Pau Brasil (1925). Ele também mostrou a conexão entre trata-se da Casa das Rosas, em São Paulo.

Pound e Joyce. 14
A configuração das linhas no texto de Haroldo não é re-
4
Na tradução dos irmãos Campos e Décio Pignatari, se produzida aqui devido às limitações do espaço; suas linhas

pode ler: são muito mais longas.[ Nota do tradutor: Segue o texto

E ele disse: “Bem, em que posso servi-lo?” original desta página de Galáxias:

E eu: “Não sei, meu senhor, isto é

Sim, Doutor, o que querem dizer com noigandres? “

E ele disse: “Noigandres! NOIgandres!

Faz seis meses já

Toda noite, quando fou dormir, digo para mim mesmo:

Noigandres, eh, noigandres,

Mas que DIABO querr dizer isto! “ (Pound, Poesia 181-82)


5
Para um estudo detalhado da resposta de Pound ao BA-

SIC (inglês básico), veja Huang.


6
Conforme exposto em Fenollosa e Pound, “The Chinese

Written Character” foi publicado pela primeira vez em qua-

tro números sucessivos da Little Review em 1919 e incluído,

em seguida, no volume Instigations de estudos críticos de

Pound (1920). Em 1936, o ensaio apareceu como um livro

fino (edição City Lights) com novos prefácios, notas, apên-

dice e ilustrações. Esta é a base para a edição de 1964.


7
Uma versão abreviada deste ensaio aparece em Novas

como “Poetic Function and Ideogram” (287-311). O texto

completo, “Ideograma, anagrama, diagrama: Uma leitura

de Fenollosa”, foi publicado como introdução ao livro Ideo-

grama ( 9-113).
8
Apresentei lista de algumas traduções relacionadas no

livro Unoriginal Genius (O Gênio Não-Original); Veja 69 e

180 n.4o.

61
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não

posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me

dá soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e

uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para

outros não existia aquela música não podia porque não podia popular

aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não

tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais

megera miséria física e doendo como um prego na palma da mão um

ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo

tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol

enquanto vendem por magros cruzeiros aquelas cuias onde a boa forma é

magreza fina da matéria mofina forma de fome o barro malcozido no choco

do desgosto até que os outros vomitem os seus pratos plásticos de bordados

rebordos estilo império para a megera miséria pois isto é popular para

os patronos do povo mas o povo cria mas o povo engenha mas o povo cavila

o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha

no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol

pois não tinha serventia metáfora pura ou quase o povo é o melhor artífice

no seu martelo galopado no crivo do impossível no vivo do inviável

no crisol do incrível do seu galope martelado e azeite e eixo do sol

mas aquele fio aquele fio aquele gumefio azucrinado dentedoente como

um fio demente plangendo seu viúvo desacorde num ruivo brasa de uivo

esfaima circuladô de fulô circuladô de fulô circulado de fulôôô

porque eu não posso guiá veja este livro material de consumo este aodeus

aodemodarálivro que eu arrumo e desarrumo que eu uno e desuno vagagem

de vagamundo na virada do mundo que deus que demo te guie então porque eu

não posso não ouso não pouso não troço não toco não troco senão nos meus

miúdos nos meus réis nos meus anéis nos meus dez nos meus menos nos meus

nadas nas minhas penas nas antenas nas galenas nessas ninhas mais pequenas

chamadas de ninharias com veremos verbenas açúcares açucenas ou

circunstâncias somenas tudo isso eu sei não conta tudo isso desaponta não

sei mas ouça como canta louve como conta prove como dança e não peça que

eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa

que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu

acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo

e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito

que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio

não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento bagagem de

miramundo na miragem do segundo que pelo avesso fui destro sendo avesso

pelo sestro não guio porque não guio porque não posso guiá e não me peça

memento mas more no meu momento desmande meu mandamento e não fie desafie

e não confie desfie que pelo sim pelo não para mim prefiro o não

no senão do sim ponha o não no im de mim ponha o não o não será tua demão

62
PENSANDO EM PEREC:
O QUE SERIA UMA
TRANSCRIAÇÃO
HAROLDIANA DE
TEXTOS OULIPIANOS?1
Vinícius Carneiro2

sobre o tronco sonoro da língua do ão


Portugal reuniu vinte e duas orquídeas desiguais.
“Noturno de belo horizonte”, Mário de Andrade

63
Introdução 1. Sobre de La Disparition

O grupo literário Oulipo (Ouvroir de 1.1 O romance em outras línguas


littérature potentielle [Ateliê de Literatura Há registros de tal proposta res-
Potencial]) surgiu na década de 1960, na tritiva desde Lasos d’Hermione, que com-
França, e postulava, a partir da aproxima- pôs pelo menos dois poemas sem a letra
ção entre literatura e matemática, a utiliza- “sigma” do alfabeto grego, como afirma
ção de restrições formais, as contraintes3, Perec em “História do lipograma”4. No
para a criação literária e para os estudos século XX, além da obra citada do escri-
sobre literatura. Conforme o Oulipo, que tor francês, há três livros relativamente
tinha entre seus integrantes Raymond conhecidos escritos sem uma ou mais
Queneau, Italo Calvino, Jacques Roubaud letras: os norte-americanos Gadsby, de
e Georges Perec, toda a obra literária pos- 1939, escrito por Ernest Vincent Wright,
sui restrições formais, cabendo ao escritor e Ella Minnow Pea, de 2001, escrito por
ter consciência desse processo. Um dos ro- Mark Dunn5, e o japonês Zanzō ni Kuchi-
mances que tornaram o grupo famoso foi beni o, de Yasutaka Tsutsui6, de 1989. Os
La Disparition, de 1969, escrito sem a le- dois últimos, por sinal, são lipogramas
tra mais utilizada em francês. Nessa obra, progressivos, ou seja, ao longo das nar-
a restrição está intimamente ligada a um rativas mais e mais letras desaparecem.
jogo metatextual, em que se alude cons-
tantemente à ausência da vogal. No caso do romance de Perec,
como já entoado em vários estudos7,
Por meio de uma critica das pos- o seu traço distintivo está na regra espe-
síveis traduções do romance de Georges cífica que delimita o léxico do romance.
Perec La Disparition, este artigo ambiciona Trata-se de uma experiência linguística
refletir sobre o romance e a obra do autor em que a restrição formal é amputar do
francês, sobre as obras produzidas a partir texto a letra mais utilizada – no caso da
de restrições formais e, em ultima instân- língua francesa, a vogal “e”. Isso cria inú-
cia, sobre a tarefa do tradutor. Para tanto, meros questionamentos na hora de versar
num primeiro momento monta-se um pa- o romance para outra língua, o que se evi-
norama sobre as traduções já realizadas dencia nas diversas propostas tradutórias
do romance e as escolhas envolvidas e a já feitas.
dados sobre a frequência da vogal mais
utilizada em português. Em seguida, abor- O romance já foi traduzido para
da-se a importância das inscrições auto- inúmeras línguas8, sendo que em algumas
biográficas e das formas literárias na obra delas não há maiores debates sobre qual
de Perec para, apenas depois, especular- elemento do alfabeto deveria ser deixado
-se sobre as bases lógicas à tradução dos de lado, pois a letra mais usada no idioma
seus textos. Por fim, retoma-se ao livro La de destino é a mesma que em francês. São
Disparition. Almeja-se assim demonstrar o estes os casos das traduções para:
que seria a sua transluciferação, conforme
o conceito de Haroldo de Campos, e os ris- – o alemão, Anton Voyls Fortgang, de
cos de uma tradução sem riscos à tradição Eugen Helmle (Rowohlt, 1988);
cultural brasileira. – o inglês, A Void, de Gilbert Adair (Har-
per Collins Publishers, 1994), assim como

64
as inéditas A vanishing, de Ian Monk (ma- Na maioria dos casos dos que es-
nuscrito, s. d.), Omission, de Julian West colheram tirar do texto traduzido a letra
(manuscrito, s. d.), Vanish’d!, de John “e”, mesmo não sendo esta a mais usada
Lee (1989); na língua-alvo, o objetivo é se distanciar
– o holandês, ‘t Manco, de Guido van de o menos possível do original. Tal escolha
Wiel (De Arbeidersper, 2009). almeja uma maior proximidade com o ro-
mance escrito, repetindo ao máximo as
Os dilemas surgem quando o “e” imagens e os jogos de palavras da vogal
não é a letra (ou elemento equivalente) em francês. Ficar próximo do texto de ori-
mais frequente no idioma de destino. Nes- gem significa, então, redizer o que disse
tes casos, há duas escolhas básicas. Al- o texto-fonte. Consequentemente, o argu-
guns optaram por traduzir o livro sem a le- mento de fundo, por mais que não se ex-
tra mais utilizada no francês, mesmo que plicite, é a ideia de fidelidade ao original.
esta fosse distinta do elemento de maior
ocorrência na língua alvo9. Estamos falan- Esse desejo tem como justificati-
do das versões para: va o traço autobiográfico (nomeado acima
como extratextual), como se a escolha do
– o italiano, La Scomparsa, de Piero Fal- “e” estivesse ligada ao nome de Perec ou
chetta (Guida Editori, 1995); como se a letra fosse fundamental para o
– o sueco Försvinna, de Sture Pyk (Albert autor. A dedicatória da autoficção de Perec
Bonniers, 2000); de 1975 W ou a memória da infância “Pour
– o turco Kaybolus, de Cemal Yardımcı E” é normalmente trazida como a grande
(Ayrıntı, 2006); evidencia. Nesse sentido, o “E” poderia ser
– o romeno Disparitia, de Serban Foarta a letra inicial da tia Esther Bienenfeld, que
(Editura Art, 2010); adotou Perec após a deportação da mãe
– o croata Ispario, de Vanda Miksic e para Auschwitz, ou de Ela Bienenfeld, sua
Morena Livakovic (MeandarMedia, 2012); prima. Ou poderia bem se referir à vogal
– o português O Sumiço, de Zèfere (Au- inicial de enfance (infância), desmemoria-
têntica, 2015). da em W. Poderia aludir também, é claro,
a eux (eles), visto que a pronúncia do “e”
O depoimento presente em artigo átono em francês é idêntica ao pronome.
pelas tradutoras croatas Vanda Mikšić, e Portanto, “eles” faria referência, de ma-
Morena Livaković é lapidar para compreen- neira mais específica, à morte do pai de
der as motivações desse tipo de escolha: Perec, Icek Peretz, combatente da resis-
tência, em 1940, e da mãe, Cyrla Szule-
A alternativa, portanto, seria manter a le- wicz, desaparecida depois da deportação
tra “e”, a fim de preservar o máximo de em Drancy à Auschwitz, em 194311; ou
aspectos textuais com o mínimo de trans- faria referência, de modo mais genérico,
formações – considerando igualmente que a todos que sucumbiram no Holocausto,
o nome do autor, por conter quatro ocor- ou a todos que perderam suas vidas na
rências de “e” [Georges Perec], pode assu- Segunda Guerra Mundial. Vide o trecho
mir a maioria dos 7 aspectos extratextuais, abaixo de W, inumeráveis vezes lembrado
visto que o patronímico de origem hebraica nos estudos sobre Perec:
Perec significa buraco e simboliza, portan-
to, o tema global de La Disparition10.

65
Escrevo: escrevo porque vivemos jun- parition é um cenotáfio, uma espécie de
tos, porque fui um no meio deles [parmi memorial fúnebre para o povo judeu ex-
eux no original], sombra no meio de suas terminado pelos nazistas. Segundo o au-
sombras, corpo junto de seus corpos; tor, trata-se de um texto “cujo único tema
escrevo porque eles deixaram em mim é a Shoah, o Holocausto, o genocídio, com
sua marca indelével e o vestígio disso é essa peculiaridade: o tema central do ro-
a escrita; a escrita é a lembrança de sua mance está tão ausente do livro como a
morte e a afirmação de minha vida12. letra ‘e’”13.

Caso seguirmos essa linha de ra- Mas também seria um roman-


ciocínio, a motivação para a escrita de ce que repercute questionamentos exis-
Perec como um todo, e do livro W em tenciais do autor, sendo o “e” apagado o
específico, está atrelada àqueles desapa- mesmo de écrivain (escritor) ou écriture
recidos, fazendo eco assim à dedicatória (escrita) ou de je (eu) ou de Perec.
“Pour E/eux” (Para E/para eles). Porém,
estamos falando da dedicatória do livro W, Ou seria ainda uma obra que se
uma obra híbrida em que se misturam um refere ao gênero feminino como um todo
texto tradicionalmente reconhecido como (já que a terminação “e” é marca do fe-
autobiográfico ou autoficcional e outros minino em francês), o que acusaria uma
notadamente romanescos, como o relato maternidade ausente.
sobre a ilha distópica de W. A dedicatória
“Pour E”, assim, coloca em diálogo as duas Ou poderia ser, para pararmos por
obras, é evidente, mas isso se dá de modo aqui, o “e” de mère (mãe) e père (pai).
indireto, pois estamos diante de um jogo
de palavras que Perec se vale para falar Estamos diante, na verdade, de
daqueles que estão ausentes. Esse jogo de uma série de ilações construídas a partir
palavras ocorre não por ser o “e” a letra de um signo linguístico. Se fosse outro sig-
preferida ou a mais importante para Perec no, outras ilações seriam formuladas para
ou na obra de Perec, mas por ser, de fato, denotar interpretações semelhantes. Isso
uma jogada de letra, uma brincadeira com porque ao desaparecimento linguístico da
o alfabeto: o livro tem o nome de uma le- vogal se adiciona desaparecimentos corre-
tra (W) e é dedicado a outra (E), sendo latos. O livro possui vinte e seis capítulos
que as letras têm formatos semelhantes. (número de letras do alfabeto francês), e
seis partes (o número de vogais, contando
1. 2. As jogadas de letra enumerada o “y”), sendo que não há nem o quinto
de Perec capítulo (o “e” na série alfabética) nem a
O romance de 1969 seria então segunda parte (o “e” na série de vogais).
um livro que trata metafórica-linguistica- Além da distribuição dos capítulos e sub-
mente da temática do desaparecimento, capítulos, a restrição informal invade o
de uma experiência catastrófica de geno- universo da história, de modo que várias
cídio, supressão, exclusão ou execução. peripécias, locações, prenomes e patroní-
Tais experiências são comumente associa- micos sugerem metatextualmente a reti-
das, como vimos, à questão da Shoah. O rada da letra mais frequente no alfabeto.
psicanalista e escritor Ali Magoudi chega a
afirmar, em La lettre fantôme, que La Dis-

66
Por exemplo, as principais perso- de especialista da obra de Perec, Bernard
nagens descendem de uma poderosa tribo Magné, que são recorrentes. De manei-
de origem albanesa composta de vinte e ra especial, os números primos 11, 43 e
seis membros (número de letras do alfa- 37/7315.
beto), cada uma com muitos descenden-
tes. Para evitar que as sucessivas divisões Primordialmente temos aqueles
das heranças não diminuíssem o patri- conectados à data oficial do desapareci-
mônio comum, uma lei é adotada: o filho mento da sua mãe, o 11 de fevereiro de
mais velho é o único herdeiro, condenan- 1943, e ao dia e mês de nascimento de
do os outros à miséria. A severidade gera Perec, 7 de março de 1936 (Perec guarda
inveja e derramamento de sangue, o que o 7 e o 3). Em relação ao 11, se olharmos
ameaça a existência do clã. A solução é li- para a narrativa publicada em 1966 Quel
mitar a um o número de filhos por família. petit vélo à guidon chrome au fond de la
Todos os outros serão mortos após o nas- cour?, verificamos que são exatamente 11
cimento. Mas a regra não é respeitada por o número de palavras desse título insólito
uma mulher, a qual, sem o conhecimento e 11 as aparições da palavra “onze” no li-
do marido, dá à luz a trigêmeos. Dois de- vro. Essa predileção pelo 11 deve-se ain-
les são entregues a uma ama de leite, que da a um aspecto formal, pois o número é
foge. Vinte anos depois, após descobrir o um palíndromo, podendo ser lido nos dois
ocorrido, o pai, o Barbu d’Ankar (Barbudo sentidos16. Repensando a citação de W an-
de Ankara), constrangido pela letra fria da tes exposta, “a escrita é a lembrança de
lei, mata seu filho, jurando vingança aos sua morte e a afirmação de minha vida”,
dois outros e seus descendentes. Eis a ra- identificamos que escrever é lembrar o 11
zão do morticínio do romance14. (morte) e afirmar o 43 (nascimento). Ve-
jamos o trecho abaixo, presente no que
Há inúmeros momentos em que seria o segmento “puramente ficcional”
algumas das personagens se aproximam (diferente não “explicitamente autoficcio-
da vogal proibida, ou seja, da verdade nal”) de W:
sobre suas origens. Nesses momentos, a
letra é evocada. Vide quando se faz uma Nasci em 25 de junho de 19…, por volta
referência às formas gráficas “e” ou “E”; das quatro, em R, pequeno vilarejo de
quando falta, em uma determinada série, três casas, não longe de A. Meu pai pos-
um quinto elemento (como na série alfa- suía um pequeno empreendimento agrí-
bética) ou um segundo elemento (como cola. Morreu das consequências de um
na série de vogais); quando se faz refe- ferimento, quando eu ia completar seis
rência a um conjunto formado por “cinco anos. Deixava pouco mais que dívidas,
ou seis” elementos, abundante na narrati- e toda a minha herança se limitava a al-
va, ou por “vinte e cinco ou vinte e seis” guns objetos de uso pessoal, lençois, e
elementos, menos frequente; ou como fo- três ou quatro peças de louça17.
nema, quando a vogal é pronunciada, mas
não escrita – é claro. Aqui, o 43 surge deslocado e cru-
zado, na formulação “três ou quatro”:
Quanto à repetição dos números, deslocado pois presente na história de W
podemos ainda alçar voos mais altos. Há e separado do seu complemento “19...” e
determinados, conforme o primeiro gran- cruzado pois invertido (34 em vez de 43).

67
Deste modo, o número pode ser lido nos […] acredito que se trata-se de reatar
dois sentidos como autobiografema, tal meus diferentes livros entre eles, fabri-
como se fosse o 11. car uma rede em que cada livro incor-
pora um ou vários elementos vindos de
Em La Dispariton, a relação entre um livro anterior (ou mesmo posterior:
ambos passa a ser aritmética. Vejamos as de um livro ainda em estado de projeto
estruturas temporais jour sur jour (dia so- ou construção), essas autorreferências
bre dia), nuit sur nuit (noite sobre noite) e começam a aparecer em La Disparition
mois sur mois (mês sobre mês): mais do (que começa como uma tradução sem
que adaptações de expressões utilizadas “e” de Um homem que dorme); elas se
com a preposição après (após), esses pa- desenvolvem, mais ou menos conscien-
líndromos de palavras formam o número temente, em La Boutique obscure, Es-
4 + 3 + 4, os quais, somados, dão 11. De pèces d’espaces, W, e estão muito mais
igual modo, os inúmeros “cinco ou seis” evidentes em A Vida, modo de usar, que
do romance ecoam também o 11, uma vez utiliza elementos vindos de quase todos
que 5 + 6 = 1118. os meus textos21.

Já o 37/73 está ligado à data de Conforme o autor, é em La Dis-


nascimento de Perec, segundo W: parition que o jogo intertextual começa.
Porém, tal comentário de Perec não pode
Nasci num sábado, no 7 de março ser superdimensionado. Primeiro porque a
de 193619. própria afirmação é falsa, pois tais rela-
ções ocorrem antes mesmo do romance de
Perec vai guardar o dia (7) e o mês 1969, como anteriormente mostrado em
(3), formando o 73 e, na ordem inversa, Quel petit vélo à guidon chrome au fond
o 37. Esses números servem para regular de la cour?, de 1966. Segundo porque o
estruturas. Como exemplo do uso de 73, fato de uma personagem reaparecer em
Magné aborda o texto “Tentative de satura- um outro romance não nos permite rein-
tion onomastique de J.R.”, em que consta a terpretar o texto de origem. Um exemplo
lista de 73 microbiografias sobre persona- envolve a vogal “e” na obra de Perec. Com
gens reais e/ou imaginários, cujas iniciais exceção do monovocalismo em “e” Les
são J e R. Em relação ao 37, vide o capitulo Revenentes, de 1972, a vogal em questão
37 de W, os 37 projetos de “Quelques-unes não reaparece com protagonismo ou com
des choses qu’il faudrait tout de même que destaque nos textos do autor. Além disso,
je fasse avant de mourir”, entre outros20. temos a obrigação mesmo de ponderar a
constituição de Les Revenentes, que não
Através de tais exemplifições, fica deve ser lido como o livro em que a única
evidente que há uma série de relações en- vogal empregada é o “e” de La Disparition,
tre os textos de Perec. Além dos números, mas sim como um monovocalismo em que
tais conexões se dão por meio da repetição só se utiliza a vogal mais utilizada no idio-
de personagens, situações e temáticas. Ao ma em que é escrito.
ser perguntado em entrevista sobre o as-
sunto, o autor comenta: Outro equívoco seria pensar que o
mito do Golem presente em Récits d’Ellis
Island, de 1980, remete ao “e” de La Dis-

68
parition. Escrita em colaboração com Ro- Frédéric Marteau, fragmentos como este
bert Bober, a obra trata da imigração euro- ratificam um poder peculiar dos sinais grá-
peia aos EUA entre o final do século XIX e ficos, capaz de subjugar o ser humano no
início do XX. Nesse contexto, Perec evoca momento em que o reduz a um sintoma,
o mito judaico e a sua intrínseca relação de suspender o seu futuro pela letra – ou
com o alfabeto: ao pé da letra – ao mesmo tempo que lhe
permite avançar. O mito do Golem se vale-
na lenda do Golem, é dito que basta es- ria do mesmo paradoxo: a letra é tanto um
crever uma palavra, Emet, na testa da sinal de vida como de morte24. Portanto, o
estátua de barro para que ela ganhe vida elemento que une os relatos não é a letra
e lhe obedeça, e apagar uma letra da pa- “e” e o seu estranho poder, mas o alfabeto,
lavra, a primeira, para que ela volte a pois, assim como no mito do Golem, “tam-
ser pó22. bém em Ellis Island o destino tinha a face
de um alfabeto”25.
A letra em questão é o “e” de Perec, que não se autodenominava
Emet. Pouco depois, o livro fala dos exa- um escritor, mas um “homem de letras”26,
mes realizados por agentes de saúde nos identifica no abecedário a fonte de vida e
recém-chegados. Após uma rápida con- de extermínio, de nascimento e de desa-
sulta, os agentes escreviam com giz uma parecimento, de memória e esquecimen-
letra no ombro daqueles que considera- to, de 43 e de 11. Ou, conforme trecho do
vam suspeitos de portarem doenças ou romance Les Revenentes que reaparece
enfermidades: em A Vida, modo de usar, um jogo entre
“o eterno e o efêmero”27.
C, a tuberculose Logo, quando lemos o narrador di-
E, os olhos zer em 53 jours, romance inacabado pu-
F, o rosto blicado postumamente em 1989, que “a
H, o coração verdade que eu busco não está no livro,
K, a hérnia mas entre os livros […] é preciso ler as
L, a claudicação diferenças, é preciso ler entre os livros como
SC, o couro cabeludo se lê nas ‘entrelinhas’”28, não estamos tra-
TC, o tracoma tando de uma inter-relação referencial en-
X, o retardo lental tre as suas obras. Partindo da ideia de que
a expressão “ler nas entrelinhas” significa
os indivíduos marcados eram sujeitos compreender um sentido escondido em um
a exames muito mais minuciosos. Eles texto29, que está implícito ou subentendido,
eram retidos na ilha por várias horas, em Perec essa leitura designa uma aplica-
vários dias ou várias semanas a mais, ção do princípio da intertextualidade30. Se
sendo às vezes deportados23. pegarmos o exemplo de La Disparition e
propor uma leitura entre os livros como
Tal como W, temos aqui uma ilha lemos as entrelinhas, não é a vogal “e” o
caracterizada pela opressão. Além disso, sentido oculto, mas o que ela representa
em Ellis Island, um sinal (no caso, grama- quando é referida, assim como outras tan-
tical) é a marca da agonia, da segregação tas referências: a falta, a ausência, a falha.
ou da morte, assim como a estrela amarela E essa relação não se dá apenas na obra
o foi durante o nazismo. Como bem pontua de Perec, mas também com Moby Dick,

69
Doutor Fausto, Fausto, Aleph…31. De fato, É por este motivo que há uma ter-
estamos diante de “um autor para quem a ceira proposta tradutória para o romance,
intertextualidade é essencial”32, como afir- mais arrojada, sem a conveniência tradu-
ma Jean-Luc Joly. tória de reescrever o lipograma em “e” com
Como consequência, podemos no um léxico maior que o disponibilizado por
mínimo relativizar o ponto de vista de Ali Perec. Tal proposta, que se atem à lei ou-
Magoudi no já referido La lettre fantôme. lipiana, parte da ideia que o primeiro pas-
Isso porque, ao lermos o acúmulo de even- so para traduzir o livro seria identificar e
tos disfóricos do lipograma (vide a série de extinguir a letra (ou elemento equivalente)
assassinatos, suicídios e desaparecimen- mais utilizada(o) no idioma de destino. En-
tos, mas também de esquecimentos, rou- quadram-se nesse caso as traduções para:
bos, perdas, maldições, sequestros, etc.),
percebemos que a obra não se limita à – o espanhol, El Secuestro, de Marisol Ar-
temática do Holocausto, como argumenta bués, Mercè Burrell, Marc Parayre, Her-
Magoudi. A ressonância de outros eventos mes Salceda e Regina Varga (Anagrama,
dentro do universo amalucado do romance 1997), em que se apaga o “a”, a letra mais
corrobora tal leitura mais ampla e ampli- utilizada no idioma.
ficadora, como a Guerra da Argélia e Maio – o russo, Исчезание, de Valery Kislov
de 196833. Ou ainda, se pensarmos no po- (Ivan Limbakh, 2005), em que se oblitera
der de atualização de uma obra aberta, o “o”, letra mais utilizada no idioma, den-
a ausência da principal letra do alfabeto tre outras supressões, para que se atinja
acaba aludindo a todo e qualquer exemplo o mesmo nível de dificuldade que Perec
de genocídio, estratégia fundamental na enfrentou.
conquista do continente americano (vide o – o japonês, En-metsu, de Shuichiro Shiot-
massacre dos povos ameríndios), tão fre- suka (Suiseisha, 2010), na qual se elimina
quentes no século XX e ainda hoje, infeliz- todas as notações silábicas que incluem a
mente, em moda. vogal “I” e todos os caracteres chineses,
É importante refletir sobre tais os caracteres latinos e os números cuja
questões pois, quando estamos falan- pronuncia inclui a vogal “I”34.
do de La Disparition, o princípio utilizado – o catalão, L’Eclipsi, de Adriá Pujol Cruells
para a escrita não é o autobiográfico nem 2017, em que some a letra “a”, tal como
o intertextual. Perec não escreveu o ro- em espanhol.
mance porque o “e” é sua letra favorita,
porque o “e” tem a mesma pronúncia que 1. 3. A letra mais utilizada em português:
eux (homofonia que não faz sentido para uma questão de números e tradução
quem não fala francês), porque a vogal “e” Em português, conforme Rogé-
está no nome de Perec ou porque é a sua rio Reis, a letra “a” possui frequência de
maneira de falar da Shoah. O romance é 13,9%, enquanto o “e” possui frequência
um lipograma em “e” porque o princípio é de 12,2%35. De acordo com Viktoria Tkotz,
linguístico: retirar do alfabeto a sua letra a presença da vogal “a” no nosso idioma
mais frequente. Todas as noções de vácuo, é, na verdade, de 14,63% e a da vogal
sumiço, desaparecimento, assim como os “e”, 12,57%36. É evidente que “a” é a le-
jogos de palavras e as referências auto- tra mais utilizada em português, variando
biográficas são feitas a partir da restrição de 1,7% a 2,06% a distância em relação
no alfabeto. a segunda letra mais frequente. Cruzando

70
as duas pesquisas, podemos afirmar, sem 2. A estética da ausência e as retri-
arredondamentos, que a média da ocor- ções oulipianas ou Tradução: modos
rência do “a” é 14,26% e do “e”, 12,38%, de gerar
sendo 1,88% a distância média. E, se con-
siderássemos apenas as duas vogais, o “a” 2.1 Uma leitura da judeidade em Perec
aparece de 13,93% a 16,38% a mais que 2.1.1 Marca indelével
o “e”, respectivamente segundo Rogério Em um texto basilar sobre a ju-
Reis e Tkotz. deidade na obra de Perec, Marcel Béna-
bou fala de uma “estética da falta”, a qual
Não estamos falando de pouca coi- estaria ligada a um sentimento agudo de
sa. Dentro do universo em questão, uma ausência característico de muitos intelec-
diferença em torno de 2% entre a ocor- tuais judeus do pós-guerra,
rência das vogais é enorme, equivalendo
a milhares de vocábulos. Mesmo 0,5% é um caminho que começa no conforto
uma quantidade elevadíssima. Pensar num (ao menos aparente) da ignorância e
dado independentemente do seu contexto da recusa [da judeidade] que leva à in-
é ignorância ou má-fé, uma vez que po- conformidade ligada ao sentimento de
demos constatar, apenas para nos ater ao uma ruptura, de uma não-pertença, de
estudo de Tkotz, que essa distância é a uma falta37.
segunda maior na língua portuguesa, per-
dendo apenas para os 2,92% entre a letra No caso de Perec, a falta não é
“o” e a letra “s”. identitária, mas dos próprios parentes.
Assim, para o “homem de letras” francês,
Não sendo irrisória a diferença ser judeu se situa na junção de uma dupla
entre “a” e “e”, nos cabe entender o que ausência/luto:
significa a contrainte na obra de Perec. É
inegável que o autor de W era dado a es- […] luto de uma memória sufocada (uma
crever sob o nível máximo de dificuldade. vez que “a História com seu grande agá
Percebe-se isso nas inúmeras restrições a rotar”38 reduziu a nada o passado),
para a confecção dos “romances” de A luto de um futuro que deixou de ser con-
Vida, modo de usar, de 1978, no Le grand cebível (o judeu que ele poderia ter sido,
palindromme, de 1969, à época o maior semelhante aos outros judeus)39.
do mundo, e nos poemas heterogramáti-
cos que constam em Alphabets, de 1976, O entendimento da questão judai-
e La Clôture, de 1980. Esses textos, con- ca no autor de A Vida, modo de usar estaria
tudo, têm em comum não a presença da ligado a um sentimento de ausência e per-
letra X ou Y ou da personagem W ou Z, passaria a sua produção literária. Bénabou
mas a representação do vazio, da ausên- chama a presença dessa ausência como
cia, da falta, do erro, da falha. “estética da falta” e aponta que ela se ma-
nifestaria em dois sentidos. Um estaria li-
gado ao processo criativo oulipiano e seria
o motor do ato de escrever perecquiano.
Em uma declaração inúmeras vezes repeti-
da por estudiosos de Perec, este afirma:

71
[…] escrevo porque eles deixaram em tão passar ao longo diante de nossos olhos
mim sua marca indelével e o vestígio inúmeros abandonos e abandonados (as),
disso é a escrita: a lembrança deles apagões e apagados (as), ausências e au-
está morta na escrita; a escrita é a lem- sentados (as), brancos e embranquecidos
brança de sua morte e a a rmação de (as), cortes e cortados (as), destruições e
minha vida40. destruídos (as), eliminações e eliminados
(as), fendas e fendidos (as), mutilações e
Bénabou sugere que essa “marca mutilados (as), mutismos e mudos (as),
indelével” seria o desaparecimento dos perfurações e perfurados (as), quebras e
parentes e, por conseguinte, da memória, quebrados (as), vazios e esvaziados (as),
da memória de sua infância. É sobre essa viuvez e viúvos (as)41.
falha que surge a necessidade de escrever,
de preencher buracos, de inventar histó- Haveria ainda um segundo tipo de
rias. Por outro lado, ao rechear de escrita falta, que seria uma característica particu-
o espaço vazio das páginas brancas, si- lar de Perec, o diferenciando de seus pa-
multaneamente nega-se e ratifica-se tais res: a capacidade de transformar o tema
lacunas em grandiloquente silêncio. da carência em estratagema. Ou seja, sua
Mas a relação entre falha e escrita capacidade de garantir que aquilo que é
vai além do papel de motor primordial da geralmente simples objeto de escrita se
escrita. Além de instigar o ofício em Perec, torne, em suas mãos, “gerador da escrita”.
talvez mesmo fazer dele um autor, a fal- No caso da falta como estrata-
ta será incessantemente afirmada na sua gema, esse uso tomou várias formas, as
obra. Essa constância da carência, segun- quais se dividiriam também em duas cate-
do Bénabou, se revelaria de duas manei- gorias: falta como geradora de estruturas
ras básicas: uma por meio do tema, outra narrativas e falta como geradora de novas
por meio de estratagemas. formas literárias. No primeiro caso, tería-
mos como exemplo mais evidente La Dis-
2.1.2 A falta: do tema ao estratage- parition. Conforme Bénabou, diferente de
ma, sem geração de nada per si outros romances em lipogramas, a força da
Quanto à temática do vazio, omni- obra desse lipograma não está ligada à sua
presente na obra de Perec, Bénabou chega extensão, que amputa do alfabeto a sua
a falar de uma “isotopia da falta”, isto é, ha- letra mais utilizada, mas ao fato de que o
veria uma proliferação da supressão tanto romance trata do início ao fim dessa remo-
nas suas encarnações concretas como me- ção. Todas as personagens e episódios
tafóricas. Bénabou nos lembra que Magné
certa vez esboçou uma “tentativa de in- […] giram obstinadamente em torno de
ventário de algumas palavras evocando a um único tema, que é precisamente o
falta encontradas ao longo da leitura de A misterioso desaparecimento de uma le-
Vida, modo de usar”. Acrescentamos que tra, a qual evidentemente nunca pode
poderíamos fazer o mesmo exercício em ser nomeada, mas somente sugerida42.
Um homem que dorme, La Disparition, Es-
pèces d’espaces, etc., sem maiores pro- Por este motivo, Bénabou afirma
blemas. É preciso apenas de tempo para que a restrição lipograma é geradora da
enumerarmos séries e mais séries de es- narrativa, ecoando uma leitura do poeta e
paços, lacunas e orfandades. Veremos en- crítico Jacques Roubaud ainda da década

72
de 197043. Nos dois casos, estamos dian- gra geradora, um tanto ingênua, que pode
te da reprodução de uma visão oulipiana acarretar equívocos de leitura. Um desses
de literatura em que “geração de narra- equívocos é identificar como responsável
tiva” se aproxima da concepção de má- pela gênese do livro, mais do que o lipo-
quina textual oulipiana, “uma tecnologia grama, a letra “e”. Isso atribuiria à letra
a serviço da escrita”44. Ambas repousam um papel sobrenatural que, de fato, ela
sobre a ideia de que, após a confecção da não exerce. Ao suplantar tal desentendi-
restrição, esta seria a responsável pela mento epistêmico, a paisagem fica livre
produção do texto – por isso, geradora da para vislumbrarmos a ideia básica de Bé-
narrativa. O próprio Perec contribuiu para nabou, compartilhada pelos principais crí-
a criação desse mito: ticos de Perec e que nos interessa aqui: a
ausência é o tema principal de La Dispa-
Eu me impus uma disciplina temporal, rition. Tal preferência é apenas mais um
ou seja, muita estrita, decidi escrever exemplo da obsessão perecquiana pelo
tantas linhas por hora, tantas horas por falso e pela falha, que se inscrevem na já
dia, sem nenhum plano, sem nenhuma nomeada estética da falta. Logo, o rele-
história, simplesmente a narração veio, vante no lipograma de 1969 não é o “e”,
cresceu, escrevi esse livro em um esta- mas o vazio que representa retirar a letra
do de júbilo. Eu me senti como um pe- mais usada no idioma.
dreiro, como um… você sabe alguém que
põe um tijolo, que o cobre com cimento, 2. 2 A falta como base à criação de
que põe mais um tijolo, cada gesto en- formas literárias
tão fazendo surgir uma casa. Outra informação que corrobo-
Eu me senti assim, quero dizer, o livro ra esse argumento sobre o lipograma é o
crescia, crescia, mas sem nenhuma difi- último estágio da representação da falta
culdade […]45. na obra de Perec. Tal representação seria
sua, só sua, e advinda do mundo das le-
Porém, conforme estudo de Yû tras, mais precisamente do alfabeto. Na
Maeyama sobre La Disparition, Perec fala criação de novas formas literárias, Perec
de uma facilidade e simplicidade do pro- vale-se do mesmo princípio da escrita de
cesso inventivo que não condizem com La Disparition: “introduzir a falta no alfa-
as notas preparatórias do romance. Na beto amputando-o de um de seus elemen-
verdade, os manuscritos mostram a cons- tos”. Como exemplo, Bénabou nos lembra
trução de seu lipograma de maneira mais três alfabetos sob restrições formais pere-
hesitante, cheia de idas e vindas, menos cquianos. Um deles é Les Beaux présents,
sobrenatural. Segmentos são cortados, o qual utiliza apenas das letras do nome
outros acrescentados, tendo ainda aque- da pessoa que se quer enaltecer. Nessa
les completamente modificados. Há perso- mesma lógica funciona o epitalâmio ou-
nagens que ganham enxertos de trechos lipiano, poema ofertado aos cônjuges no
que não lhes eram inicialmente destina- dia do matrimônio e constituído apenas
dos; enquanto que outros personagens e com as letras dos nomes do marido e da
trechos desaparecem46. mulher, “como se o casamento os unissem
numa língua somente deles”47.
Deste modo, deve-se evitar a ter-
minologia gerador(a) da narrativa ou re-

73
O segundo é a La Belle absente, ABOLIUNTRES Aboli, un très art nul ose
baseado na ideia de um alfabeto sem as ARTNULOSEBI
letras “k”, “w”, “x”, “y”, “z”. Em cada um BELOTSURINA bibelot sûr, inanité (l’ours-babil:
dos versos dessa forma poética, todas as NITELOURSBA
letras devem ser utilizadas, salvo uma, BILUNRATESO un raté…) sonore
inscrevendo-se assim o nome dissimulado NORESAUTLIB
da homenageada. A ausência das letras ERANTSILBOU Saut libérant s’il boute
do nome de alguém, portanto, assegura a TELABUSNOIR l’abus noir ou le brisant
sua presença. OULEBRISANT trublion à sens:
TRUBLIONASE
A terceira forma é a mais radical: NSARTEBLOUI Art ébloui?51
os já citados poemas heterogramáticos.
Esses poemas são uma variação sofistica- Lado a lado, vemos as duas ver-
da do anagrama, que, no Brasil, ganhou sões, sendo a da direita uma espécie de
notoriedade sobretudo com o estudo de “tradução em prosa do poema”52. Como já
Haroldo de Campos sobre Iracema, de vimos, a quantidade de letras não é à toa:
José de Alencar48. Inicialmente concebido em 11 de fevereiro de 1943 que sua mãe
no poema “Ulcérations”49, a forma consiste foi declarada desaparecida. Portanto, no
num bloco de onze “versos”, cada um com poema heterogramático, o elemento auto-
onze letras, sendo elas “e”, “s”, “a”, “r”, “t”, biográfico funciona não como chave her-
“i”, “n”, “u”, “l”, “o”, “c”, as mais frequentes menêutica, mas como proposição elemen-
do alfabeto francês. A restrição mais cruel tar e fundamental que serve de base ao
é que uma letra só pode ser repetida após molde da restrição. A contrainte se cons-
o uso de todas as outras. O procedimento titui como tal na linguagem, a partir da
é semelhante ao da música serial, na qual seleção do corpus “alfabeto” e do critério
não se pode repetir uma nota sem antes “ocorrência”, tal como em La Disparition.
utilizar todas as outras.
Voltando ao poema, ele é o se-
Para fazer com que essa forma gundo em “a” de Alphabets, talvez o mais
fosse mais fecunda, uma solução foi acres- famoso, sobretudo por fazer referência ao
centar outras letras. No caso dos poemas célebre soneto de Mallarmé em “yx”, “Abo-
de Alphabets, emprega-se as dez mais re- li bibelot d’inanité sonore” (“Falido bibelô
correntes em francês (“e”, “s”, “a”, “r”, “t”, de inanição sonora”):
“i”, “n”, “u”, “l”, “o”) e uma letra suplemen-
tar. Há então onze poemas em “b”, onze
poemas em “c”, e assim por diante. No
total, são onze alfabetos completos, isto
é, 176 poemas, apresentados, assim como
“Ulcérations”, de duas maneiras, uma via-
bilizando a leitura, outra evidenciando a
restrição50. Observemos um dos poemas
de 10 + “b” de Alphabets:

74
Puras unhas no alto ar dedicando seus ônix,
A Angústia, sol nadir, sustém, lampadifária,
Tais sonhos vesperais queimados pela Fênix
Que não recolhe, ao fim, de ânfora cinerária

Sobre aras, no salão vazio: nenhum ptyx,


Falido bibelô de inanição sonora
(Que o Mestre foi haurir outros prantos no Styx
Com esse único ser de que o Nada se honora).

Mas junto à gelosia, ao norte vaga, um ouro


Agoniza talvez segundo o adorno, faísca
De licornes, coices de fogo ante o tesouro.

Ela, defunta nua num espelho, embora,


Que no olvido cabal do retângulo fixa
De outras cintilações o séptuor sem demora53.

As imagens evanescentes contra- tal comparação. No seu artigo “Georges


põem-se à restrição formal avant la lettre Perec: mise en cadre, mise au carré”, o
de Mallarmé, de rimas em “-yx”, que, so- crítico chega a afirmar que o quadrado dos
madas à estrutura do soneto, criam uma poemas em questão é
materialidade linguística lancinante. Essa
materialidade das rimas é de tal concretude […] um espaço de tipo mallarmaico em
que constrói uma peculiaríssima sonorida- que a estrutura permite levar até as últi-
de, sugerindo, simultaneamente, a inde- mas consequências a tentativa de subs-
finição de sentido da linguagem, a qual é tituir o construído pelo fortuito e de eli-
reforçada pelas imagens fluidas, etéreas minar o acaso54.
(“puras”, “alto”, “ônix”, “sol”, “nadir”, etc.).
Se remontarmos a “Um lance de dados”, Em qualquer quadrado perecquia-
o poeta simbolista apresenta-se como no, devido à seleção das letras e à regra
figura importante para se pensar a poe- serial, cada elemento estaria necessaria-
sia de Perec. Entre outras ilações, o sonho mente conectado aos outros.
mallarmaico do Livro total, de certa manei-
ra, concretiza-se no projeto de Alphabet. Poligrafia, bi-quadrado quenina, quadra-
Isso porque os poemas heterogramáticos do mágico, heterogramas, todos esses
dessa obra, que, tal como em Mallarmé, algoritmos são rotas fixas, redes para lu-
conduzem ao silêncio (no caso, das letras gares estritamente determinados, tam-
excluídas de cada poema), ambicionam bém obedecendo a uma dupla exigência
um conjunto, uma unidade, uma totalida- de integridade e rentabilidade: espaço
de. Conforme Joly, trata-se de um sonho esquadrinhado em que se trata de ocu-
impossível de plenitude. Magné corrobora par a totalidade com a maior economia

75
de meios. O quadrado é então o local de […] levada ao extremo, uma pesquisa
uma dupla recusa: recusa do acaso, re- formalista pode resultar em distancia-
cusa do inútil .
55
mentos consideráveis, até incontrolá-
veis, quanto ao significado, a tal ponto
A vacuidade de significação parti- que as diferenças acabam prevalecendo
lhada por ambos é então explorada não sobre as semelhanças. É o risco de que
com imagens, mas com a espacialização Marc Parayre [um dos tradutores de La
da forma poética, que, como um quadro Disparition em espanhol] parece correr
fechado, templo das letras, faz a pala- ao traduzir até a restrição formal, que
vra perder a importância referencial dela então se torna a supressão da letra mais
comumente esperada. O ritmo brota das frequente do idioma usado – logo, o “a”
repetições incessantes das onze cartas do em espanhol –, em vez do “e”, a letra
baralho alfabético, fruto da restrição for- mais utilizada em francês. A questão
mal. A explosão em prosa tradutória seria não surge em inglês. Mas é curioso notar
tão somente a promessa frustrada de sen- que aquele (Parayre) cuja dissertação de
tido. O heterograma pode ser visto, nesse mestrado oportunamente lembra ao tra-
sentido, como “paragens do vago onde dutor a complexidade da tarefa deste,
toda realidade se dissolve”56, nas quais se atribui-se outra igualmente difícil58.
atinge a inadequação entre poesia e lin-
guagem discutida em A Crise do Verso: Lee parte da ideia de que o tra-
dutor deve buscar uma “equivalência se-
[…] negando, num traço soberano, o mântica” e uma “equivalência formal”. A
acaso remanescente nos termos apesar primeira refere-se ao conteúdo enquanto
do artifício de sua retêmpera alternada que a busca formal estaria ligada à lei ou-
entre o sentido e a sonoridade, e vos lipiana. Logo, ser formalista “ao extremo”
causa esta surpresa de não ter jamais significa ficar mais longe do “sentido”, o
ouvido esse fragmento ordinário de elo- qual estaria ligado a alguns elementos
cução, ao mesmo tempo que a remi- precisos: as referências autobiográficas de
niscência do objeto nomeado mergulha Perec, os jogos metatextuais em francês.
numa nova atmosfera57. Portanto, se suprimir uma letra diferente
do “e” “pode resultar em distanciamentos
2.3 Teorias tradutórias concretas para consideráveis, até incontroláveis, quanto
se pensar Perec ao significado”, a sua tradução inglesa,
Para dar conta da complexidade Vanish’d, ainda inédita, estaria mais próxi-
de uma obra de arte verbal (ou melhor, al- ma do texto original, por excluir a mesma
fabética) como a de Perec, é indispensável letra que Perec eliminou.
ter um entendimento preciso do proces-
so tradutório. Há duas propostas básicas. Seguindo a lógica de Lee, haveria
Uma delas prevê a supressão da mesma um sentido primeiro, preso ao texto de
letra que Perec eliminou em francês. Con- Perec. Este texto estaria conectado, por
forme John Lee, um dos tradutores do ro- sua vez, à vida do autor, no mais das ve-
mance para o inglês, não fazer isso é ar- zes, interpretada a partir de W59. Logo, ao
riscado demais: recriar tudo que se refere ao “e” em “a”,
como se fez em espanhol, perderíamos o
“e” autobiográfico de Perec, o “e” que re-

76
mete às letras do nome do autor e ao tro- Mesmo que indiretamente, os
cadilho com o pronome eux. tradutores espanhóis acabam remetendo
ao mesmo problema quando falam estar
Seguindo a lógica de Lee, pode- cientes do risco de produzir a versão do li-
mos inferir que traduções para línguas que pograma El Secuestro. Vide as palavras de
eliminam outra letra ou que não utilizam o Hermès Salceda, outro membro do grupo
alfabeto latino estariam, essencialmente, de tradutores:
mais distantes, sendo assim mais fracas,
piores, menores. Logo, desqualifica-se a Para o tradutor, o perigo desta escolha,
priori as versões do romance em japonês se a lógica é levada até as últimas con-
e em russo e, por que não, a própria tarefa sequências, é produzir no idioma alvo um
do tradutor ou o ofício da tradução, pois novo original, um texto gerado por regras
a riqueza de uma obra estaria restrita a equivalentes cujos conteúdos e números
algumas línguas, as línguas em que há a de estruturas já não terão nenhuma rela-
vogal “e”. ção mais com o romance de Perec61.

Seguindo a lógica de Lee, Lee se- O perigo então é, ao tentar repro-


ria um dos privilegiados, pois “controlaria” duzir o que Haroldo de Campos nomeou
mais o “sentido” do original. como “concretude da linguagem”, no caso
do lipograma intrinsecamente conectada à
O equivoco de Lee é promover amputação da letra mais importante, não
uma dissociação entre estrutura e senti- recriar os trocadilhos e as demais brinca-
do, como se houvesse um significado mais deiras alfabéticas. Essa temeridade, não
próximo do “literal” e uma forma vazia, a por acaso, faz parte tanto do ofício da poe-
ser preenchida por este. Em obras como sia segundo Augusto de Campos (“Poesia
La Disparition, forma e conteúdo são indis- é risco”62) como do ofício da tradução se-
sociáveis (tal como o foram para a poesia gundo José Paulo Paes (“A tradução é um
concreta brasileira) e remetem primordial- risco muito grande”63).
mente ao vazio, à falta, à ausência, como
pudemos ver na análise de Bénabou. Para evitar ser vitimado, é difícil
não pensar em outra proposta tradutó-
Curiosamente, ao comentar sobre ria diferente da formulada pelo autor de
os riscos da tradução em espanhol, Lee re- Galáxias. No seu texto clássico “A tradu-
mete, velada ou inconscientemente, aos ção como criação e como crítica”, a prá-
contratempos que vitimaram a tradução em tica haroldiana é caracterizada por uma
inglês publicada, A Void, de Gilbert Aidar. A análise do texto original, “uma vivência
versão passa ao lado de vários jogos de pa- interior do mundo e da técnica do tradu-
lavras, referências à vogal ausente e inter- zido”, para só então desmontar e remon-
textos, por vezes acrescentando elementos a tar a “máquina da criação”. Aqui, trata-se
bel-prazer de Aidar. Nela vemos o aumento e de propor uma recriação do texto fonte
a modificação aleatórios de listas, enumera- “através de equivalentes em português,
ções, citações, como se o tradutor estivesse de toda a elaboração formal (sonora,
deslumbrado com o próprio trabalho, cons- conceitual, imagética) do original”. Nes-
truindo, sem motivo aparente, um romance se momento, podemos, por fim, colocar o
consideravelmente maior que o original60. texto “à sua matriz teorética” e reviver “a

77
sua ‘praxis’”, concluindo o que seria uma Digamos que Queneau inventou um jogo
leitura verdadeiramente crítica64. e estabeleceu as regras durante uma
partida, esplendidamente jogada em
Após a experiência das traduções 1947. Fidelidade significava entender as
de Dante e Goethe, Haroldo se vale das regras do jogo, respeitá-las, e depois jo-
metáforas de luz do Paraíso para remode- gar de novo o jogo com o mesmo núme-
lar a sua proposta tradutória. Metafórica, a ro de movimentos66.
nova concepção almeja obliterar o original
para o fazer ressurgir por transparência. O ponto de partida para Eco é a
Nessa tradução dos infernos, o texto em identificação das regras do jogo (ou seja,
língua estrangeira ilumina-se às avessas, as restrições) na língua francesa, para re-
pois brilha através da criação do novo. Por peti-las (ou adaptá-las) na língua alvo e
isso a referência a Lúcifer, estrela da ma- assim jogar novamente a partida em ita-
nhã e senhor das trevas, ambiguidade in- liano (embora isso leve a alguns resulta-
conciliável, tal como a tradução65. dos inesperadas).

Tal perspectiva relativa à tradução Caso seguíssemos a práxis de Ha-


é uma presença constante nas propostas roldo, somada a de Eco, para traduzir os
tradutórias de obras sob contrainte, muito poemas de Alphabets, o primeiro passo
provavelmente devido à tradução de Um- para o desmonte da máquina da criação
berto Eco do texto oulipiano avant la lettre seria compreender a regra do jogo, isto é,
de Raymond Queneau Exercícios de estilo. identificar que se trata de uma restrição
O italiano comentou sobre a idiossincra- no abecedário: as dez letras mais utili-
sias da tradução dos jogos de palavras: zadas no idioma francês, mais a letra da
sequência alfabética, em que uma letra
Em suma, nenhum exercício deste livro é repetida somente após a utilização das
é exclusivamente linguístico, e nenhum outras dez. O remonte se daria pela iden-
é totalmente estranho a uma língua. tificação das dez letras mais utilizadas em
português somadas à letra da sequência
Na medida em que não é apenas linguís- alfabética idêntica ou equivalente, quando
tico, cada um está ligado à intertextuali- for o caso. O passo seguinte é reconstruir
dade e à história; e, na medida em que o profundo e complexo do texto e seus in-
está ligado a uma língua, é tributário do tertextos. Para uma tradução do poema de
gênio da língua francesa. Em ambos os Alphabets antes exposto, teríamos então
casos, mais que traduzir, deve-se recriar “a”, “e”, “o”, “s”, “r”, “i”, “n”, “d”, “m”, “u”
em outra língua e em referência a outros + “b”. A partir deste ponto, reelabora-se o
textos, a outra sociedade e a outro pe- material sonoro, conceitual e imagético, de
ríodo histórico. maneira a transluzir os sentidos sugeridos
e os intertextos enredados do texto base
[...] no novo jogo.

Para concluir, tratava-se de determinar No nosso processo ritualístico, al-


o que significava, ao lidar com tal livro, mejamos alcançar a transluciferação ha-
ser fiel. O que ficou claro era que não roldiana: obliterando o original no exato
significava ser literal. momento em que o iluminamos. Para a

78
tradução dos poemas de Alphabets, temos a percepção de privação no uso do idio-
que identificar então no idioma de desti- ma, deve-se buscar outras estratégias, tal
no as dez principais letras e daí transcriar como se fez em russo e em japonês.
o poema, colhendo de todos os modos os
meios para cultivar a coerência temática, Na escolha de retirar outra letra
lexical e trocadilhesca presente em fran- que não a mais utilizada, como ocorreu
cês. O texto então surgiria bastando-se na tradução recém publicada em portu-
por si, uma forma poética pronta, a ser guês, subjaz duas motivações maiores.
introduzida em português. Seguindo o Em primeiro lugar, uma supervalorização
mesmo raciocínio, para traduzir La Dispa- da importância da letra “e” nas obras de
rition, o mais coerente com a proposta de Perec, em detrimento da primazia da no-
Haroldo/Eco e com a contrainte tal como ção da falta a partir do alfabeto. Em segun-
utilizada por Perec seria apagar a letra do, uma concepção biografista da obra do
mais utilizada no idioma de destino, pois a autor trasvestida em interpretação da au-
lei oulipiana está no abecedário (escrever toficção W, em que o texto publicado em
sem a letra de maior frequência). A no- 1975 funcionaria como uma espécie de bí-
ção de ausência fundamental teria que ser blia da qual emanariam as interpretações
transluciferada partindo-se dessa carência da obra perecquiana e, mais do que isso,
fundamental alfabética. da psique do próprio autor (das relações
com a família, do seu passado, etc.).
3. Uma outra proposta tradutória para
La Disparition Isso acontece uma vez que se
confunde a ordem dos fatores. Quanto a
3.1 O equívoco de fazer uma leitura La Disparition, Perec não tem uma letra
biografista da autoficção favorita, a partir da qual desenvolve jogos
Assim, para o romance, o desmon- de palavras, mas sim confecciona tais jo-
te da máquina de criação parte da ideal gos a partir da letra mais utilizada no idio-
primordial de que estamos diante de um ma em que é escrito o texto. Logo, afirmar
texto sem a letra mais utilizada no idioma que os jogos existiriam por se tratar da
de origem, falha a partir da qual se cons- letra preferida do escritor, como se fosse o
troem uma rede de referências intertex- seu bibelô de estimação, porque ligada à
tuais e metatextuais. Muito dos estudos sua vida, trata-se de um simples equívoco
para esse desmonte foi efetivado no tra- de raciocínio.
balho mais exaustivo sobre as restrições
formais no romance de 1969, Lire La Dis- O mesmo vale para o argumento
parition, do tradutor espanhol antes citado de que a letra amputada (e os apareci-
Marc Parayre67. mentos e desaparecimentos de todas as
personagens) estariam ligados ao patro-
Para remontar essa máquina nímico do autor Perec, “pai” de nome im-
transcriativamente, deve-se escolher a pronunciável. O psicanalista Claude Bur-
letra mais utilizada na língua de origem. gelin estimulou muito essas leituras com
Este é exatamente o caso do português, um dos seus pertinentes estudos sobre o
assim como o foi o da tradução espanhola. autor. De acordo com o crítico,
Quando escolher uma letra (ou elemento
equivalente) não é suficiente para instituir

79
A cicatriz [o Barbudo d’Ankara] de con- lor autobiográfico. Por isso é nomeada a
tornos rousselianos, com a inscrição do æncrage, neologismo formado por ancra-
branco na borda do lábio, é uma assina- ge (ancoragem) e encrage (aplicação de
tura do autorretrato68. tinta)72. Essa capacidade estrutural da
æncrage permite a transformação de um
Partindo da homofonia em francês acontecimento biográfico, no mais das
entre auteur (autor) e ôter (assassino), vezes trágico, em motor da escrita. De
essa interpretação assegura que esse “pai” acordo com essa concepção, as narrativas
barbudo possui uma cicatriz em cima do perecquianas possuem resquícios muito
lábio (tal como Perec), sendo o progenitor bem delimitados da energia vital que as
das personagens (tal como Perec em rela- formou. Tal energia localiza-se em W, obra
ção às personagens do romance) e aquele que abre a válvula criativa/criadora para
que lhes tira a vida (tal como Perec o faz que outras histórias sejam contadas.
ao escrever). Quanto à referência à ima-
gem do autor “real”, podemos assegurar A contribuição de Magné aos es-
que não se trata de um recurso insólito, tudos perecquianos é indiscutível. Toda-
sendo possível reencontrá-lo, por exemplo, via, a consequência lógica de colocar W
no romance de Salman Rushdie Os versos no centro da produção do escritor francês
satânicos. Nele, Deus surge à imagem e são duas, ambas funcionando como freios
semelhança do autor, alguém que “estava hermenêuticos. A primeira é a conclusão
ficando careca, parecia ter caspa e usava lógica de identificar as æncrages como
óculos”69. Em ambos os textos, temos a so- restrições formais, o que faria com que a
breposição das imagens de criador e escri- obra de Perec servisse basicamente para
tor (sendo que, em La Disparition, soma-se interpretar… a obra de Perec. Felizmente
ainda a ideia de assassino). há leituras que deslocam o epicentro da
obra Perec para outros pontos. Dominique
Porém, por mais que o jogo de pa- Moncond’huy, por exemplo, sugere que
lavras auteur/ôter homofônico seja produ- Espèces d’espaces ocupa essa função irra-
tivo, o risco é atrelar a leitura do texto ao diadora de sentidos, no momento em que
escritor escrevendo o romance e, assim, pode ser lido simultaneamente como um
justificar escolhas tradutórias. A interpre- livro-soma (pois replica toda a sua obra
tação de Burgelin deriva-se (ou pelo menos desde As coisas), um livro-virada (marco
é muito estimulada) da crítica de Magné, na direção de W, evocando os projetos a
que identifica como pedra de toque para ler serem feitos) e um livro-autorretrato (de
toda a obra de Perec a parte autobiográfica um ser cujo fracionamento do espaço o
de W ou a memória da infância70. Em enun- condena à errância)73.
ciados dessa obra, são identificados ves-
tígios da história da vida do autor (como A segunda consequência de identi-
a data de desaparecimento da mãe), os ficar a autoficção de 1975 como pedra de
quais são ressignificados em cada um dos toque é mais crítica e deriva-se de um dé-
seus textos na forma de encriptações auto- ficit de leitura. Muitos são os que buscam a
biográficas, os autobiografemas71. verdade dos fatos em W, confundindo a sua
leitura com a biografia de David Bellos so-
Para Magné, essa encriptação bre Perec. Ambos os livros seriam as fontes
é um signo cujo significado tem um va- para leituras biografistas. Este é o caso das

80
ilações biografistas entre W e La Disparition de palavras de Perec, é trazer à discussão o
presentes em La lettre fantôme de Ali Ma- nome de família dos que o adotaram após
goudi e em diversos outros textos menores, a perda trágica dos pais: David e Esther
como o estudo “Réflexions d’un dénicheur Bienenfeld, sobrenome alemão que signi-
d’œufs et d’oiseaux”, de John Lee: fica “campo de abelhas”. Voltando ao que
está sendo relatado em W, o narrador nos
Lipograma: observamos o vínculo entre fala que a lembrança da “terrível” picada de
o W e o “e”. Além disso, o trocadilho com abelha está atrelada a outra lembrança, de
bourdon (lapso tipográfico ou inseto) um castigo injusto. Não fica difícil perceber
pode ter sido inspirado por uma lem- que Perec está fazendo um comentário ve-
brança da infância, estando associada lado à sua criação junto ao casal Bienen-
ao castigo divino74. feld, cujas punições são piores que picadas
de vespão. Lee, como tantos outros, no afã
Neste trecho, como em outros tan- de provar a sua tese, deixa o rigor de lado.
tos, tenta-se atrelar o bourdon presente em
La Disparition (em francês simultaneamen- A tradução de La Disparition sem o
te lapso tipográfico e zangão) a uma lem- “e” em português, língua na qual a letra “a”
brança de infância transcrita em W: é a mais frequente, em última instância de-
riva-se de um desses ruídos na compreen-
Uma abelha pousou em minha coxa es- são dos estudos de Magné. A contrainte ou-
querda. Levantei-me bruscamente e ela lipiana é “escrever sem a letra mais usada
me picou. Minha coxa inchou de forma em um determinado alfabeto”, e não “sem
realmente colossal (foi nessa ocasião a letra mais importante para um determi-
que aprendi a diferença que há entre nado autor”. A partir dessa lei maior, são
uma vespa, essencialmente inofensiva, traços os autobiografemas, assim como as
e uma abelha, cuja picada pode em cer- referências literárias, as traduções lipogra-
tos casos ser mortal; o zangão não pica, máticas de poemas, etc. Por exemplo, Pe-
mas o vespão, felizmente raro, é ainda rec retoma personagens, trechos e temas
mais temível que a abelha). Para todos de seus livros anteriores, assim como o
os meus colegas, e sobretudo para mim faz com personagens, trechos e temas de
mesmo, aquela picada foi a prova de que obras de amigos como Raymond Queneau
eu havia trancado a garotinha: o bom e Harry Mathews, ou de escritores outros
Deus é que me havia punido75. como Victor Hugo e Melville, Borges e Bioy
Casares. Na sub-restrição “livro”, uma das
Em busca de uma conexão direta 42 de A Vida, modo de usar, percebemos
entre os textos (uma inspiração, quiçá), com clareza a equivalência entre intertex-
Lee passa por cima do ato de ler W com a tos próprios e alheios:
desconfiança jocosa-reflexiva que a litera-
tura do autor requer. Na autoficção, afirma-
-se que a abelha tem uma picada mortal,
enquanto que a vespa é por natureza ino-
fensiva. Ora, quem já foi picado por esses
insetos já sentiu na pele que isso não é ver-
dade. Onde estaria então o elemento auto-
biográfico? Uma resposta, típica dos jogos

81
Restrição76 Livro

7b

O Caso dos Dez Negrinhos


a
(Agatha Christie)
La Disparition
b
(Georges Perec)
O homem sintético
c
(Théo Sturgeon)
Moby Dick
d
(Herman Melville)
The Conversions [As conversões]
e
(Harry Mathews)
Pierrot meu amigo
f
(Raymond Queneau)
Cem anos de solidão
g
(Gabriel García Márquez)
Hamlet
h
(William Shakespeare)

i O Graal

Ubu
j
(Alfred Jarry)

Do mesmo modo, as citações (fal- por causa do “e”, sem se dar conta que ele
sas ou não), as enumerações e o romance relacionaria o lipograma ao vazio, ao bu-
policial em si como gênero, dentre tantas raco, ao branco, não importando que letra
outras relações possíveis, estão presentes fosse, desde que fosse a mais utilizada no
em todas as obras de Perec, majoritaria- idioma. Nada mais evidente quando per-
mente submetidas às regras formais, às leis cebemos que jogos com o alfabeto e com
oupianas, às contraintes. a (ou atrelados à) noção de falta surgem a
todo o momento em sua obra. Nada mais
3.2 As consequências do equívoco: elucidativo que a obra Alphabets, anterior-
uma não transluciferação mente apresentada.
Sendo assim, reduzir a leitura de
La Disparition à descoberta de que o bar- Uma das consequências da relati-
budo se trata de Perec é simplesmente re- vização da primazia do espaço do alfabeto
duzir o romance. Mais grave ainda seria na produção de Perec como um todo e, em
pensar que Perec escreveu o lipograma particular, em La Disparition, é imaginar

82
que a letra apagada só poderia ser “e” Podemos falar mesmo de um cria-
uma vez que apenas o “e” seria capaz de dor de gêneros textuais, parafraseando o
reproduzir os fenômenos linguísticos que título do estudo Georges Perec, ou le dia-
o lipograma efetiva em francês. Por exem- logue des genres78, valendo-se do conceito
plo, julgar que retirar o “e” em português de gênero de Baktin79 e remontando à ca-
é importante porque só desta maneira se pacidade inventiva sugerida por Bénabou.
pode reproduzir os desvios propositais da
norma culta presentes no original. Veja- Inês Oseki-Dépré afirma em artigo
mos o seguinte trecho: sobre Jacques Roubaud e a tradução de
Quelque chose noir, que “o solo da litera-
un roman d’Isidro Parodi, ou plutôt d’Ho- tura brasileira, a sua memória de língua,
norio Bustos Domaicq77 não é comparável à memoria da literatura
francesa”80. Logo, mesmo com todo labor
Honorio Bustos Domaicq, lipogra- empreendido no seu Algo: preto, ou seja,
ma de Honorio Bustos Domecq, é o pseu- a recriação dos ritmos, das disposições
dônimo fictício do autor Adolfo Bioy Casa- dos versos, dos ecos, das rimas internas
res. Em francês, a pronúncia do ditongo e repetições, haveria necessariamente
“ai”, [ɛ], é idêntica a de “è”, assim como a uma amnésia da tradução brasileira, um
pronúncia dos digramas “am” e “an” [ã], é diálogo que o texto faz com a tradição no
idêntica a dos digramas “em” e “en”. Logo, original e que não ocorre em português
no idioma gaulês, o patronímico Domaicq brasileiro, visto que nossa história literá-
é idêntico foneticamente a Domecq. Se ria é menos extensa, mais jovem. O mes-
pensarmos o sobrenome verdadeiro do mo, obviamente, podemos dizer de Perec:
autor citado, poderíamos dizer que o “e” a memória da língua na qual produziu, a
átono em português tem comportamento enriquecendo, não é comparável à da lite-
semelhante, sendo pronunciado como “i”, ratura brasileira.
[ɨ]. Assim, escrevendo Casaris, como pro-
põe a tradução em português publicada, O que Oseki-Depré não nos diz é
estaríamos diante da ausência gráfica e que traduções rigorosas como a sua, que
presença sonora do “e”. auscultam por todos as vias os instrumentos
e os modos de recriar o sentido das formas,
O deslize aqui pode ser valer-se de contribuem para complexificar a nossa histó-
uma solução tradutória como argumento à ria letrada. A cada Algo: preto publicado em
própria tradução. No romance original, é português, realiza-se a tarefa mais impor-
importante salientar que esses erros não tante da tradução segundo Haroldo de Cam-
são um dos recursos mais importantes do pos, “a configuração de uma tradição ativa
romance, indo o trabalho criador muito […] da qual nasça uma pedagogia […] fecun-
além. Perec é por excelência um inventor da e estimulante”81. Infelizmente, ao esco-
de formas literárias, cuja poética simul- lher retirar outra letra que não seja o “a” na
taneamente se inscreve em uma tradição primeira versão brasileira de La Disparition,
literária (lembremos os epitalâmios, o li- não se faz o esforço de inscrever a obra e a
pograma) e a inova, a enriquece, aumenta forma lipograma na nossa tradição literária,
as suas formas e possibilidades (vide os de fazer “surgir em nosso idioma uma poé-
poemas heterogramáticos, para ficarmos tica inédita, herdeira de formas e tradições
num exemplo). diversas, ausentes na nossa memória”82.

83
Em O Sumiço recém-publicado, o minino ou marca de feminino83, reatando
romance de Perec passa a ser o lipogra- circunstancialmente a ligação entre a vogal
ma da letra mais importante para o autor, e o desaparecimento da figura materna.
o lipograma autobiográfico, o lipograma
de uma produção literária que irremedia- Perde-se a possibilidade de jogar
velmente faz referência a ela mesma, e com o “a” como primeira letra do alfabeto
não o romance em que a ausência da le- ou como primeiro elemento de uma sé-
tra mais importante do idioma representa rie, consequências de se escolher o termo
a ausência das coisas mais importantes mais utilizado no nosso idioma.
dentre as coisas, estando, por isso, eter-
namente presente. Perdem-se os sentidos profundos
do extermínio do passado narrativo pela
No texto em português, o make it impossibilidade da escrita de toda e qual-
new de Pound não se completa, pois nasce quer forma do imperfeito do indicativo, to-
old, cronológica e linguisticamente limita- das com a presença de “a”. Tirar o “a” em
do: temos que saber as informações da português seria a interdição de dizer “Era
vida de Perec e do eux em francês para uma vez…”.
entender o romance. O romance torna-se
então um jogo de cartas marcadas, uma Perde-se o extermínio do con-
caça ao rato hipoteticamente predita por junto dos verbos do primeiro grupo em
Perec e cuja resposta verdadeira existe português, os terminados em -ar, o mais
apenas na língua de François Rabelais e numeroso e o mais importante. Perder
Alfred Jarry. os verbos é, por definição, perder ações,
modos, sentimentos.
O leitor brasileiro fica de fora do
jogo em que se desaparece com a vogal Perdem-se o chiste da inexistên-
mais utilizada no seu idioma, da brincadei- cia das homofonias entre o “a” artigo que
ra de ver e ouvir o item central do seu alfa- define no singular e “há” do verbo haver,
beto sem lê-lo, passando a ser tão somente entre “as” artigo que define no plural e a
um contemplador do que o tradutor fez. carta do baralho mais importante, o ás.

Perde-se a oportunidade de negar Perde-se a pronúncia de “a”


a brincadeira com o prefixo “a” em portu- quando dizemos a letra “h” e a letra “k”.
guês com a acepção de negação, uma vez Ou de que a falta de ar típico dos asmá-
que o romance é o romance da privação ticos pode ser a falta de “a”, assim como
de uma letra. no romance original há personagens que
têm falta de air.
Perde-se a chance de ver sumir
o prefixo a como protético, de nature- Perde-se de ver na forma de “A”
za popular (ajuntar, alevantar, amostrar, um triângulo com perna, o cume de uma
arrecuar, assoprar, ateimar, etc.), como se montanha, um pinheiro com neve no pico,
tirar a letra fosse excluir a fala do povo. um tricórnio, etc.

Perde-se a potência da eliminação Perdem-se as semelhanças entre


do “a” como artigo feminino, pronome fe- o “A” invertido e a letra “V” ou o número

84
romano 5, já que cinco são as vogais sem pensável”, pois
“a”, sendo o número recorrente especifica- […] se eu não consigo reproduzir todos
mente em La Disparition tal como o 3, o 6, os processos construtivos de um poeta,
o 25 e o 26. em todas as passagens em que eles apa-
recem, devo acrescentar em outras pas-
Perde-se, por fim, a ideia de uma sagens procedimentos que são inerentes
transluciferação do original, uma vez que ao trabalho criador no original84.
este não desaparece com o primeiro tex-
to traduzido em português. Ao se remover Umberto Eco, em Dizer quase a
o “e”, identifica-se a necessidade de co- mesma coisa, vai no mesmo caminho ao
nhecer a pronúncia do “e” em francês e a nos lembrar do princípio de “negociação”
homofonia com eux; de saber a coincidên- inerente a qualquer tradução. No processo
cia entre a vogal mais utilizada no alfabe- tradutório, conforme Eco, o tradutor deve
to francês e as vogais do sobrenome do estar suficientemente comprometido em
autor; enfim, de ter ciência dos jogos de negociar as perdas e as compensações na
palavras e intertextos que existem para os busca de um equilíbrio entre as implica-
leitores francófonos e/ou que surgem da ções menores e maiores de um texto85.
escolha da vogal mais frequente no idioma
gaulês. Força-se, assim, que o leitor brasi- Seguindo o princípio de Schnai-
leiro compreenda o que o “e” representa e derman e Eco, teríamos que compensar,
significa em francês e as suas respectivas é claro. No caso de nossa solução tradu-
aparições fonológicas, para entender do tória, por hora fazemos com que o leitor
que trata o livro em português. pronuncie a vogal ausente sem que ela
esteja presente, como no original. E dei-
3.2 Uma outra proposta xemos para outro momento, mais propí-
Baseados na ideia de que transpor cio, a transcriação de um vocábulo em que
a contrainte em português (isto é, apagar se pronuncia o “a” sem o escrever. Na lín-
o “a”) em nada interfere no jogo entre de- gua portuguesa, a grande ocorrência des-
saparecimento da letra e desaparecimen- se fenômeno fonético encontramos nos
to como tema, tal como definiu Bénabou, estrangeirismos. Levando-se em conta a
apontamos outras soluções para uma tra- esquizofrenia brasileira para pronunciar
dução de La Disparition. Por exemplo, por palavras estrangeiras e a presença abun-
mais que pudéssemos escrever em por- dante de estrangeirismos no romance, por
tuguês um nome próprio como “Honorio”, que não os trazer ao romance?
preferimos fazer algo muito frequente na
nossa língua, a abreviação do nome, de Estamos falando de termos em “a”
modo a fazer com que o leitor pronuncie o como: bike, blush, brunch, bus, bye-bye,
“a” do nome da letra “h” sem o escrever. byronismo, byte, checkout, check-up,
Conforme Boris Schnaiderman, Haroldo ti- close-up, country, copyright, copywriter,
nha por hábito trabalhar com a noção de cowboy, cup, design, designer, diet, down-
“lei das compensações em poesia” para hill, drive, drive-in, drive-thru, duty-free,
casos em que o texto traduzido parecia freestyle, full-time, funk, goodbye, hi-fi,
“mais forte que o original”. Ao falar de Ha- high-tech, high society, iceberg, insight,
roldo de Campos, Schnaiderman chega a junkie, ketchup, king-size, know-how,
dizer que tal prática é, na verdade, “indis- light, lingerie, lounge, low-profile, mise-

85
en-scène, mouse, night, noir, out, out- mento introduziu [a], de modo que o leitor
door, outsider, Ph. D., pinup, point, pol- reconheça o vocábulo, pronuncie a vogal
tergeist, pub, punch, punk, rendez-vous, obliterada e não a veja. Por exemplo, ny-
rottweiler, round, rugby, sir, slide, sniper, lon em vez de náilon, toilette em vez de
soutien, spy, rush, time, timer, timing, toalete, boîte em vez de boate, etc.
T-shirt, underground, voucher, WC, White
House, zeitgeist. O princípio para esta ou aquela es-
colha é manter ao máximo o “jogo delicado
Temos ainda palavras estrangei- de equilíbrios entre a inventividade da res-
ras que possuem duas maneiras de se- trição na língua de chegada e a necessidade
rem enunciadas, uma mais próxima da de preservar essencialmente dos conteúdos
pronúncia do idioma de origem e outra do texto fonte”, como nos diz um dos tra-
aportuguesada. São os casos de puzzle, dutores espanhóis do romance, Hermès Sal-
self-service, trust, surf e windsurfe, plug, ceda86. Um exemplo são os monovocalismos
club, entre outros vocábulos. unissilábicos, presentes no trecho em que
são enumerados elementos cujo sinônimo é
Outra solução para o caso dos er- uma palavra monossilábica em “e”. Na nossa
ros propositais do original, talvez a me- proposta, repetiram-se as palavras monossi-
lhor, seria manter a grafia de algumas lábicas em “a” tal como acontece no original
palavras estrangeiras cujo aportuguesa- (duas vezes boeuf e duas vezes oeuf):

un mort, un voyou, un auto-portrait; feu, gueux, je


un bouvillon, un faucon niais, un oisillon couvant boeuf, oeufs, oeufs
son nid;
un nodus rhumatismal; noeud
un souhait; voeux
ou l’iris malin d’un cachaIot colossal, oeil / yeux

Torcedor, tiete, tribo fã, fã, clã


girino, fumo com bétele, Deus grego dos ovinos rã, pã, Pã
Deus do Sol do Egito, Rá
pelo de ovino, lã
ou o gesso dos dentes perversos de Moby Dick […]87. cal

86
O ponto não é traduzir o senti- Au nom du salut public, un Marat pros-
do de cada elemento, mas refazer o que crivit tout bain, mais un Charlot Corday
Perec efetivou em francês com o mesmo l’assassina dans son tub89.
grau de dificuldade.
Num primeiro momento da tradu-
Dos trechos mais complicados, ção, tentou-se conservar o tom da piada
aqueles que envolvem humor são parti- original, que mescla uma personagem de
cularmente interessantes. Sob o título de esquerda com elementos da cultura de
“Oú l’on saura plus tard qu’ici s’inaugu- massa. Foi possível construir duas versões
rait la danation” [O princípio do Tormen- em que há guinadas surpreendentes.
to como em breve poderemos ver]88, são A primeira, presente em ambas as
assinaladas as mortes de vinte e cinco alternativas, seria a passagem de Martin
magistrados, magrebinos, negros, judeus, Luther King, líder de esquerda, para Ste-
um sacristão, um irmão – seu primo e seu phen e B. B. King, personagens ligadas à
vizinho –, um cônsul holandês, um mar- cultura de massa, tal como os irmãos Marx
quês de sapatos nacarados, um batalhão o são em francês.
inteiro, um cabo, habitantes de Lyon, um A outra guinada aconteceria quan-
campeão de aviação, um cretino, um ho- do do aparecimento do derradeiro elemen-
mem agonizando, ao menos três falsos to. Por exemplo, a inclusão de Kong, per-
cristãos, um bêbado, um farmacêutico, sonagem não humana e na qual King não
um motociclista, advogados, franciscanos, é mais sobrenome, mas parte do nome.
datilógrafos, aprendizes de padeiro, palha-
ços, meninos, prostitutas, comerciantes […] vinte e oito King (um Luther, três
de carvão, tipógrafos, tocadores de tam- Sthepen, seis B.B. e dezoito Kong)
bor, síndicos, habitantes de Pont-à-Mous-
son, camponeses, marinheiros, ricaços e Porém, acreditamos que Elvis (o rei do
greasers, entre outros. rock, isto é, “The King”), seja a figura mais
apropriada, sendo King um aposto.
A variedade dos eventos descri-
tos, com a desgraça chegando a órgãos […] vinte e oito King (um Luther, três
e instituições públicos, como prefeitura, Sthepen, seis B.B. e dezoito Elvis)
aeroporto e hospital, entremeada com si-
tuações cômicas, descortinam um roman- De qualquer modo, nas duas so-
ce que vai além do simples trabalho braçal luções manteve-se o traço inesperado no
que envolve escrever sem uma letra. Vide qual reside a graça: a troca do locus social
o jogo no final da enumeração de figuras da personagem, que passa da esquerda
históricas. Depois de “dix-huit Pasionaria, para a cultura de massa, e o surgimento
vingt Mao, vingt-huit Marx”, célebres fi- de King, que passa de sobrenome para ou-
guras de esquerda, surge Marx que, sur- tra função, seja para fazer parte do nome
preendentemente, não é o autor de O Ca- (King Kong), seja para ser um aposto (El-
pital, mas os comediantes irmãos Marx: vis, The King).
Já a proposta tradutória do trecho
[…] vingt-huit Marx (un Chico, trois Karl, seguinte é mais complexa:
six Groucho, dix-huit Harpo).

87
[…] Um Che, impedido de servir por mo- partir de “e”/”E”, é essencial para traduzir
tivos médicos, substitui o estetoscópio La Disparition em português omitir a letra
pelo fuzil em nome de um mundo menos mais utilizada em português.
opressor. Morre como guerrilheiro, forte
como um touro Escolhas que se prendem ao “e”
facilitariam o trabalho de tradução, dis-
Partindo do princípio de que não tanciando-se sobremaneira do projeto li-
há como repetir a referência ao quadro de terário radical de Perec e do Oulipo. Na
Marat na banheira, buscou-se manter o verdade, caso seguíssemos essa lógica,
sentido da revolução e da medicina a uma em última instância o romance só seria
imagem ícone. Por isso Che (Guevara). O traduzível em línguas que possuíssem
mundo menos opressor referido remete o “e”, o que desqualificaria a traduções
também à opressão linguística, que é a japonesa e russa, já renomadas. Mas o
ausência de uma letra central na língua, o mais grave é que por traz disso estão as
“a”. O humor presente no original (quem noções de fidelidade ao original (ater-se
morre no banho é quem cuida da saúde ao “e” é ater-se ao que Perec quis dizer
pública) foi mantido na tradução (médico “de verdade”) e de biografismo (o livro
vira guerrilheiro e, mesmo com uma doen- remeteria diretamente à sua vida). Am-
ça, a asma, morre em combate sem pro- bas são, no fundo, elitistas, pois seus
blemas de saúde). O acréscimo compen- sentidos são destinados aos especialistas.
satório na tradução parte da ideia de que
a asma é a falta de ar, isto é, falta de “a”. Tal perspectiva pode ser até valida,
desde que o objetivo seja uma concepção
Conclusão de que é possível ficar mais próximo do ori-
ginal e que a vida de um autor é essencial
Uma tradução de La Disparition para compreender a sua obra. Todavia, tais
que não seja lipogramática não faz senti- propostas tradutórias nada têm de trans-
do caso se considere que, antes de tudo, criadoras, em nada são transluciferações.
é central transpor a contrainte, e a con-
trainte em francês é a letra mais utilizada Para não se incorrer em erro, deve-
na língua. Assim, para dar conta da com- -se ficar atento para o fato que não se trata
plexidade formal e de sentido do romance de reconhecer os efeitos da ausência do “e”
e ser coerente com o rigor caraterístico da em francês e reproduzi-los em português.
obra de Perec, é preciso ater-se à restri- Esses efeitos são apenas consequências da
ção, ou seja, levar em conta que se trata restrição na língua francesa. Em português,
de um lipograma em que se exclui o ele- haverá outros efeitos, pois a restrição pos-
mento mais frequente do alfabeto, como sui outras consequências. Por meio delas,
no espanhol, no russo ou no japonês. o leitor brasileiro, o qual na sua maioria
desconhece francês, pode vivenciar o sen-
Levando-se em conta a restrição timento de ausência absoluta, como nos
oulipiana, fugindo da conveniência de uti- lembra Bénabou, e sua contraparte, a to-
lizar percentualmente mais vocábulos em talidade, como afirma Joly, e desfrutar do
português que Perec tinha a seu dispor romance como uma meditação filosófica
em francês e com a tarefa adicional de re- enquanto aporia entre a totalidade e a re-
criar imagens e referências construídas a presentação da totalidade90.

88
Notas ses Universitaires du Mirail-Toulouse, n° 7, printemps,
1
Este texto é o primeiro resultado da pesquisa realizada na 1983, p. 11-19, “Ce qui dit art maniaque dit oui”, in
Études

Casa das Rosas entre julho e agosto de 2016. littéraires, Québec, l’Université Laval, v. 23, n° 1-2, 1990,
2
Professor da Universidade Lille 3 e faz pós-doutorado na p. 79-86, “Vingt-trois shan du grand Li Po: histoire de ‘lipo-

Universidade de Aix-Marseille sob a supervisão da profes- gramme’”, in Nuova Corrente, Genoa, Tilgher-Genova, n°

sora Dra. Inês Oséki-Depré. 108, 1991, p. 317-348, “Une stratégie traductive pour La
3
Serão utilizados como sinônimos de contraintes basica- Disparition”, in Palimpsestes, Paris, Presses de la Sorbonne

mente os termos restrições, regras formais e lei. Todavia, Nouvelle, n° 12, 2000, p. 117-125, 2000, e “La Dispari-

é preciso ter em mente que os autores oulipianos resga- tion: Problem Translations: the Rough and the Smooth”, in

taram o vocábulo da tradição da retórica antiga, que di- Palimpsestes, op.cit, p. 137-157; de Vanda Mikšić e More-

zia aos poetas “submeter-se às restrições do metro e da na Livaković “Voyl, voile, voyelle, ou comment traduire le

rima”, in Schiavetta, Bernardo, Baetens, Jan. “Definir la vide. Stratégie, pertes et compensations dans la traduction

contrainte?”, Formules, Leuven, Reflet de Lettres, n° 2, de La Disparition par Georges Perec en croate”, in Pavelin

1998, p. 21. Nesse sentido, as relações entre uma escrita Lesic, Bogdanka (dir.), Francontraste 2. La Francophonie,

sob contrainte e a retórica clássica no estudo de Christelle vecteur du transculturel, CIPA, Mons, 2011, p. 245-254.

Reggiani Rhétorique de la contrainte – Georges Perec e 8


A tradução em ucraniano, Исчезновение, de 2001, não

l’Oulipo. Paris: Editions Interuniversitaires, 1999. Todas as é em lipograma. Disponível em: https://www.e-reading.

traduções de citações em língua estrangeira são do autor, club/bookreader.php/112826/Perek_-_Ischeznovenie.

salvo quando informado o contrário. Títulos e trechos de html. Último acesso: 10 nov. 2017.

obras traduzidas para o português foram utilizados. 9


Tais dados são informados pelos próprios tradutores nos
4
Perec, Georges, “Histoire du Lipogramme”, in Oulipo, Pa- prefácios de cada edição.

ris, Gallimard, 2010, p. 77-78. 10


Mikšić, Vanda; Livaković, Morena, “Voyl, voile, voyelle”,
5
Cf. o artigo de Mireille Ribière “Postérité de La Disparition: op. cit., p. 6-7.

l’exemple d’Ella Minnow Pea”, in Le Cabinet d’amateur. Re- 11


Tais implicações entre obra e autor foram demarcadas

vue d’études perecquiennes, 2006. Disponível em: http:// com maior astúcia por Philippe Lejeune em La mémoire et

associationgeorgesperec.fr/IMG/pdf/MRibiere.pdf. Último l’oblique e por Claude Burgelin em Georges Perec. Cf. Leje-

acesso: 10 mar. 2017. une, Philippe. La mémoire et l’oblique. Paris: P.O.L., 1991,
6
Cf. Shiotsuka, Shuichiro. “Deux romans lipogrammati- e Burgelin, Claude. Georges Perec. Paris: Seuil, 1988.

ques en japonais: la traduction de La Disparition et Met- 12


Perec, Georges, W ou a memória da infância. Tradução:
tons du rouge à lèvres sur l’image rémanente de Yasutaka Paulo Neves. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 54.
Tsutsui”, in Formules X - Oulipo@50, 2011. Disponível em: 13
Magoudi, Ali. La Lettre fantôme, Pais: Minuit, 1996, p. 10.
http://www.ieeff.org/f16shiotsukaok.pdf. Último acesso: 14
Para uma melhor visualização desse quadro familiar, cf.
10 mar. 2017. Salceda, Hermes. “La reconstruction de la mémoire dans
7
Destaco Marc Parayre “La Disparition: Ah, le livre sans e ! La Disparition”, in Le Cabinet d’amateur. Revue d’études

El Secuestro: Euh... un livre sans a?”, in Formules, Leuven, perecquiennes, 2011, p. 1-19. Revue d’études perecquien-

Reflet de Lettres, n° 2, 1998, p. 61-69, e “Disparition - en nes. Disponível em: http://associationgeorgesperec.fr/IMG/

onze lettres, bien sûr !”, in De Perec etc., derechef: Tex- pdf/HERMES_SALCEDA.pdf. Último acesso: 16 nov. 2016.

tes, lettres, règles et sens, Mayenne, Joseph K., 2005, p. 15


Cf. Magné, Bernard, “L’autobiotexte perecquien”, in Le

309-325; de Hermes Salceda “Traduire les contraintes de Cabinet d’amateur. Revue d’études perecquiennes. Toulou-

La Disparition en espagnol”, in L’Œuvre de Georges Perec, se: Les impressions nouvelles, n° 5, p. 14-20.

réception et mythisation, Rabat, Université Mohamed V, n° 16


Cf. Ibid., p. 20-23.

101, , 2002, p. 209-227; de Valéry Kislov “Traduire La 17


Perec, Georges. W ou a memória da infância, op. cit., p.

Dispariton”, Formules, Leuven, Reflet de Lettres, n° 10, 11, grifo nosso.

2006, 279-307; e de John Lee “Brise ma rime, l’ivresse 18


Cf. Magné, Bernard, “L’autobiotexte perecquien”, op. cit.,

livresque dans la Disparition”, Littératures, Toulouse, Pres- p. 19-20.

89
19
Perec, Georges. W ou a memória da infância, op. cit., p. 29. so: 20 set. 2017.
20
Cf. Magné, Bernard, “L’autobiotexte perecquien”, op. 36
Tkotz, Viktoria. Criptografia - Segredos embalados para

cit., p. 20-21. viagem. São Paulo: Novatec, 2005, p. 269. Há outra tabela
21
Perec, Georges. Entretiens et conférences.Nantes: Joseph disponível no trabalho de mestrado de Carlos André Bap-

K, 2003, v. II, p. 94. tista de Carvalho. Porém, conforme a sua bibliografia, seus
22
Perec, Georges; Bober, Robert. Récits d’Ellis Island, Paris, dados foram extraídos do site Aldeia NumaBoa (Disponí-

INA / Editions du Sorbier, 1980, p. 49. vel em http://www.numaboa.net.br/criptografia/criptoa-


23
Ibid. nalise/310-frequencia-portugues. Último acesso: 20 set.
24
Marteau, Frédéric. “L’obsession grammatographique - 2017). A tabela deste site, por sua vez, foi confeccionada

Ponge, Peec, Jabès”. In Textimage – Revue d’étude du dia- por Tkotz. Sendo assim, dispensamo-nos de citar o traba-

logue texte-image, n. 3 A la lettre, été 2009, p. 25. lho de Carvalho. Além disso, é bom informar que, ao que
25
Perec, Georges, Perec; Bober, oc. cit. tudo indica, os dados da pesquisa de Tkotz foram utilizados
26
Perec, Georges. Entretiens et conférences, oc. cit, p. 266. na página da Wikipédia em português sobre a frequência
27
Perec, Georges. La Vie mode d’emploi, Romans et Récits, das letras no nosso idioma (Disponível em: https://pt.wi-
Paris: Le Livre de Poche, 2002, p. 1274. kipedia.org/wiki/Alfabeto_português. Último acesso: 20
28
“Perec, Georges. 53 jours. Paris: Folio, 2001, p. 93. set. 2017).
29
Dicionário CNRTL. Nancy: CNRS, 2005. Disponível em: 37
Bénabou, Marcel, “Perec: De la judéité à l’esthétique du

http://cnrtl.fr/definition/ligne. Último acesso: 16 abr. manque”, in L’Œuvre de Georges Perec Réception et mythi-

2017. sation. op. cit.


30
Cf. Delemazure, Raul Une vie dans les mots des autres 38
A frase “l’Histoire avec sa grande hache” consta original-

– le geste intertextuelle dans l’œuvre de Georges Perec, mente em W. Nela, hache designa a letra inicial de “histó-

Tomo I, p. 139. ria” e “machado”, símbolo aqui da violêcia na história da


31
Para um inventário das intertextualides em Perec, cf. humaniade. Propomos por hora “a História com seu gran-

Delemazure, Raul Une vie dans les mots des autres – le de H a rotar”. Deste modo, mantém-se a letra “h”; faz-se

geste intertextuelle dans l’œuvre de Georges Perec, Tomo menção à noção de supressão da vida por meio de um

II, p. 32-44. instrumento, o garrote (subtendido no verbo “agarrotar”,


32
Joly, Jean-Luc. Connaissement du monde: multiplicité, homofonia de “agá a rotar”); e acrescenta-se o sentido de

exhaustivité, totalité dans l’oeuvre de Georges Perec. Tese uma história de movimentos circulares, cíclica, “a rotar”.

(Doutorado em Letras) – Letras Modernas, Toulouse 2, 39


Bénabou, Marcel, op. cit.
Toulouse, 2004, p. 39. 40
Perec, Georges, W ou a memória da infância, op. cit., p. 13.
33
Cf. Ibid. p. 990-991. 41
Magné apud Bénabou, op. cit. Cf. Magné, Bernard, “Le pu-
34
Cf. Bloomfield, Camille. “Traduire La Disparition de zzle mode d’emploi”, in Perecollages – 1981-1988, Toulou-

Georges Perec. Table ronde avec Valéri Kislov, John Lee, se, Presses Universitaires du Mirail-Toulouse, 1989, p. 44.

Vanda Mikšić, Marc Parayre et Shuichiro Shiotsuka”, in Assi- 42


Bénabou, Marcel, op. cit.

ses de la traduction littéraire à Arles, 2011. Disponível em: 43


“A restrição é aqui, ao mesmo tempo, princípio de escrita

https://www.academia.edu/2645162/Traduire_La_Dispari- do texto, seu mecanismo de desenvolvimento e seu senti-

tion_de_Georges_Perec. Último acesso: 20 set. 2017. do: La Disparition é um romance de um desaparecimento


35
Reis, Rogério. Tabelas de Frequências na Língua Portugue- que é o desaparecimento do “e”, sendo simultaneamen-

sa. Disponível em: http://www.dcc.fc.up.pt/~rvr/naulas/ te, portanto, o romance daquilo que conta e a narrativa

tabelasPT/. Último acesso: 20 set. 2017. Dados semelha- da restrição que cria o que é contato.” Roubaud, Jacques,

nes constam em Machiavelo, António; Reis, Rogério. “Uma “Deux principes parfois respectés par les travaux ouli-

introdução (ingénua) à Criptografia”, in Investigar em Edu- piens”, in Oulipo, Atlas de la littérature potentielle. Paris:

cação Matemática. Diálogos e Conjunções numa Perspecti- Gallimard, 2007, p. 55.

va Interdisciplinar, 2015. Disponível em: http://www.dcc. 44


Lapprand, Marc. Poétique de l’Oulipo. Paris: Rodopi,

fc.up.pt/~rvr/resources/Files/Cap-Cripto.pdf. Último aces- 1998, p. 119.

90
45
Perec apud Maeyama, Yû, “Les notes préparatoires à La 63
Paes apud Campos, Haroldo de. “Haroldo de Campos,

Disparition de Georges Perec”, in Le Cabinet d’amateur. Re- José Paulo Paes e Paulo Vizioli falam sobre tradução”, in Da

vue d’études perecquiennes, 2013. Disponível em https:// transcriação poética e semiótica da operação tradutora. Belo

associationgeorgesperec.fr/IMG/pdf/MAEYAMA.pdf. Último horizonte: UFMG, 2011, p. 149.

acesso: 2 dec. 2017, p. 18. 64


Campos, Haroldo de. “Da tradução como criação e como
46
Ibid. crítica”, in Da transcriação poética e semiótica da operação
47
Perec apub Bénabu, Marcel, op. cit. tradutora, op. cit., p. 42-44.
48
Campos, Haroldo. Metalinguagem & outras metas, São 65
Cf. Idem. “Post-scriptum: Transluciferação Mefistofáusti-

Paulo: Perspectiva, 2004, p. 127-145. ca”, in Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Paulo:
49
Oulipo. Atlas de littérature potentielle, op. cit., p. 337. Perspectiva, 1981, p. 179-209.
50
Sobre esses poemas heterogramáticos, cf. Magné, Bernard; 66
Queneau, Raymond. Esercizi di stile. Tradução de Umber-

Ribière, Mireille. Cahiers Georges Perec – Les poèmes hétéro- to Eco. Torino: Giulio Einaudi editores, 1983, p. XVII-XIX.

grammatiques, no 5, [S.l.]: Éditions du Limon, 1992. No caso 67


Parayre, Marc. Lire La Disparition. Tese (Doutorado em

de Alphabets, alguns poemas possuem restrições suplementa- Letras) – Letras Modernas, Toulouse 2, Toulouse, 1992,

res: a constituição de formas de letras como “L “e “V”. tomo I e II.


51
Perec, Georges. Alphabets. Paris: Galilée, 2001, p. 2. 68
Burgelin, Claude. Georges Perec. Paris: Seuil, 2002, p. 107.
52
Ibid., quarta capa. 69
“Para o Isaías de Blake, Deus era apenas uma imanên-
53
Mallarmé apud Campos, Augusto de et al. Mallarmé. São cia, uma indignação corpórea; mas a visão que Gibreel

Paulo: Perspectiva, 2002, p. 64-65. teve do Ser Supremo não era nada abstrata. Viu, sentado
54
Mansau, Andrée, Mises en cadre dans la littérature et na cama, um homem mais ou menos da mesma idade que

dans les arts, Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, ele, de estatura mediana, de constituição bastante pesada,

1999, p. 178. com barba grisalha cortada rente ao queixo. O que mais
55
Magné, Bernard; Ribière Mireille. Cahiers Georges Perec, o surpreendeu foi que a aparição estava ficando careca,

op. cit., p. 174-175. parecia ter caspa e usava óculos. Não era o Todo-Poderoso
56
Mallarme apud Campos, Augusto de et al. Mallarmé, op. que ele esperava” Rushdie, Salman. Os versos satânicos.

cit. p. 171. Tradução de Misael H. Dursan. São Paulo: Companhia das


57
Mallarmé, Stéphane. “Crise do verso”. Tradução de Luiz letras, 2014, p. 346-347.

Carreira e Álvaro Faleiros, [201-], p. 9. Disponível em: ht- 70


Cf. Magné, Bernard, “L’autobiotexte perecquien”, op. cit.,

tps://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7111/mod_resour- p. 5-42. Magné é um textualista, intimamente ligado ao

ce/content/1/crise%20de%20verso.doc. Último acesso: 2 teórico do nouveau roman Jean Ricardou, por isso não se

dez. 2017. baseia em informações da vida de um autor para pensar


58
Lee, John. “Une stratégie traductive pour La Disparition”, a obra. No caso de Perec, por exemplo, o importante para

op. cit., p. 118. Disponível em: http://palimpsestes.re- Magné era os dados contidos em W, ou seja, analisar os

vues.org/1645. Último acesso: 2 dez. 2017. textos de Perec e relacioná-los.


59
Mas não menos vezes a partir da biografia de David Bel- 71
Ibid.

los Georges Perec: A life in words, Random House: Londres 72


Cf. Magné, Bernard. Georges Perec. Paris: Nathan Uni-

1993 [livro eletrônico]. versité, 1999.


60
Cf. Lee, John. “La Disparition: Problem Translations. The 73
Moncond’huy, Dominique. “Espèces d’espaces: du vide

Rough and the Smooth”, op. cit., p. 137-157. Disponível à l’écrit, autoportrait d’un écrivain”. in Reggiani, Christelle

em: http://palimpsestes.revues.org/1649. Último acesso: (dir.). Relire Perec. Rennes: La Licorne, 2016, p. 285-305.

2 dez. 2017. 74
Lee, John. “Réflexions d’un dénicheur d’œufs et d’oi-
61
Salceda, Hermes. “Traduire les contraintes de La Dispari- seaux” [artigo inédito]. Acervo Assotiation Georges Perec,

tion en espagnol”, op. cit., p. 209 Biblioteca Arsenal, Paris, [198-?], p. 38.
62
Campos, Augusto de, et al. Poesia é Risco. Rio de Janeiro: 75
Perec, Georges. W ou a memória da infância, op. cit., p.

PolyGram, 1995. 1 CD. 155-156.

91
76
Georges Perec La Vie mode d’emploi – Cahier des char-

ges. Disponível em: http://escarbille.free.fr/vme/?l-

mn=28. Último acesso: 2 dez. 2017.


77
Perec, Georges La Disparition. Paris: Gallimard, 2009, p. 32.
78
Sirvent, Michel. Georges Perec, ou le dialogue des genres.

Paris: Rodopi, 2007.


79
Bakhtin, Mikhail. “Gêneros do Discurso”, in: Estética da

criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Mar-

tins Fontes, 2003. p. 261-306.


80
Oseki-Depré, Inês. “D’une traduction amnésique (à pro-

pos de Algo: Preto, de Jacques Roubaud)”, in Alea, Revue

d’Études Néo-Latines, Rio de Janeiro, v. 11, n° 2, p. 64-78,

jul.-dez., 2011, p. 401.


81
Campos, Haroldo de. “Da tradução como criação e como

crítica”, op. cit., p. 43.


82
Oseki-Depré, Inês. “D’une traduction amnésique”, op. cit.
83
O título do Jabuti de contos de 2016, Amora, de Natália

Polesso, brinca com essa terminação: remete ao mesmo

tempo à fruta e a um feminino de “amor”, evidenciando

que o livro trata de textos sobre mulheres.


84
Schnaiderman, Boris. “Haroldo de Campos e a trans-

crição da poesia moderna russa”, in Fragmentos, Floria-

nópolis, v. 4, n° 2, jul.-dez., 2003, p. 14. Disponível em:

https://periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/article/

download/2154/4100. Último acesso: 2 dez. 2017.


85
Cf. Eco, Umberto. Dire quasi la stessa cosa – esperienze

di traduzione. Milão: Tascabili Bombiani, 2012, p. 137-208

[livro eletrônico].
86
Salceda, Hermes. “Traduire les contraintes de La Dispari-

tion en espagnol”, op. cit., p. 210.


87
Perec, Georges. La Disparition, op. cit., 2009, p. 19
88
Ibid, p. 11.
89
Ibid, p. 13.
90
Joly, Jean-Luc. Connaissement du monde, op. cit., p. 1007.

92
IMAGEM, PROSA E POESIA
DE GIULIA NICCOLAI:
UM LANCE DE FRISBEES
JAMAIS ABOLIRÁ O ACASO1
Francesca Cricelli2

93
É difícil falar de Giulia Niccolai sem ticipou dos movimentos literários mais im-
correr o risco de deslizar no desejo fácil de portantes na Itália, nos últimos cinquenta
categorizá-la: poeta, tradutora, fotógrafa anos. Sua carreira começa nos anos ’50
ou até mesmo monja budista. Talvez pela como fotojornalista, trabalhando para re-
inerente dificuldade humana em aceitar vistas e jornais italianos, europeus e ame-
manifestações múltiplas e distintas de um ricanos. Desta intensa experiência nasce
autor na construção de sua obra, recorra- seu primeiro e único romance II grande
-se constantemente a ordenamentos pa- angolo, publicado pela Feltrinelli em 1966.
cificadores. Ilusão de que a compreensão O romance narra o percurso da jovem fo-
caminhe de mãos dadas com os rótulos. tojornalista Ita – sem esquecermos que o
Tentar circunscrever uma obra tão rica e segundo nome da autora é Margherita –
pungente como a de Niccolai em setores que observa o mundo e parece também
colocaria o leitor diante de uma armadilha ser observada por ele, através das lentes
ilusória. Embora as formas expressivas da de sua camera e tenta, por este meio, su-
autora tenham sido múltiplas, há um fio perar a dor e a lembrança do suicídio do
condutor que atravessa a fotografia, a poe- parceiro fotografo Domínguez. O impacto
sia concreta, os versos e a prosa de Nicco- estético e poético da fotografia marcam
lai. Toda sua forma imagética e fragmen- esta obra, imprimindo uma novidade: há
tária, sua paixão lúdica pela linguagem e uma transposição da linguagem fotográfi-
pelas línguas parecem caminhar, como ela ca para a narrativa como possibilidade de
mesma anuncia em seu Esoterico biliardo, visão, neste caso o eixo de observação dos
em direção a uma “renúncia à poesia”. eventos é grande-angular.

Filha de mãe americana e pai ita- O talento como fotógrafa não im-
liano, Giulia nasceu em Milão em 1934 e pediu que Niccolai abrisse mão deste meio
cresceu entre a Itália e os Estados Uni- de expressão no final dos anos ’60 para
dos. Durante a Segunda Guerra sua famí- se abrir definitivamente à escrita. O que
lia viveu no vilarejo de Menaggio próximo surgia como conflito ou frustração no cam-
ao lago de Como. Alguns fragmentos da po da fotografia, a multiplicidade de inter-
memória sobre aqueles anos, como por pretações de uma imagem, por exemplo,
exemplo a convivência com a professo- torna-se ponto de força para a criação
ra fascista e racista que a denominava a poética da autora. Sua poesia transita
“anglo-saxã”, estão recolhidas nas crôni- pela materialidade da linguagem, tanto no
cas poéticas de Esoterico biliardo. Seu bi- campo visual e concreto, quanto na ex-
linguísmo, assim como sua capacidade de perimentação linguística, a autora amplia
transitar entre várias outras línguas, é um seus horizontes através da interface com
elemento importante para compreender uma escrita entrelínguas. Três mulheres
seu trabalho. A tradução é fundamental participaram do grupo neovanguardista
em sua trajetória e está em diálogo com Gruppo ’633: Niccolai, Amelia Rosselli e
sua própria produção, bastando lembrar Carla Vasio. Vale a pena relembrar que em
que traduziu Gertrude Stein, Angela Car- 1964 a autora tornou-se secretária edito-
ter, Virginia Woolf, Patricia Highsmith e rial da revista Quindici, associada ao Gru-
Dylan Thomas. Não obstante a identidade ppo ‘63, e em 1970 fundou com o poeta
bilíngue, a maior parte de suas publicações Adriano Spatola a revista Tam Tam. Esta
ocorreram na Itália. A poeta e artista par- publicação foi certamente um marco his-

94
tórico para a literatura italiana na segunda Giorgio di Costanzo a autora diz que o hu-
metade do século XX; para além do âmbi- mor não é somente uma forma de resis-
to da Neovanguarda e do experimentalis- tência, como dizia Freud, mas a possibili-
mo ao qual pertencia, Tam Tam definia-se dade de criar um espaço e inscrever algo
como uma revista de “Poesia, apoesia e lá onde aparentemente espaço não há.
poesia total”. Spatola e Niccolai viveram
por alguns anos numa casa de campo pró- Com a conversão ao budismo nos
xima à cidade de Parma, em Mulino Bazza- anos ’90, Niccolai se afasta um pouco da
no. Nesta época nasce a experimentação noção de representação como meio de ex-
concreta e os trabalhos visuais, estes são pressão de si, direcionando-se para uma
organizados no volume Poeta & Oggetto, escrita como forma de escapar às preocu-
publicado pela editora Geiger, também de pações do Self. Permanece em toda sua
Spatola, em 1974. A poesia de Niccolai, poética uma estética do fragmento e um
no começo da década de 1970, mostra interesse pelos momentos passageiros e
também uma aproximação aos Novissimi, reveladores. Este elemento está presente
entre eles Nanni Balestrini, Antonio Por- em sua escrita desde II grande angolo até
ta e outros que postulavam a importancia a poesia visual dos anos ’70 e mesmo nos
fundamental do poema como linguagem e Frisbees, assim como na prosa de Esote-
não como conteúdo transcendental. rico Biliardo. Outra característica de sua
produção após a aproximação e conver-
Optamos, aqui, em recortar, tradu- são ao budismo é a força com que emerge
zir e reproduzir alguns poemas para ilustrar seu vínculo com a arte pictórica. Há fris-
diferentes fases da produção da artista, bees, mas também textos críticos, dedi-
dos poemas objeto [na seção Invenção da cados aos quadros de Hopper, Duchamp e
revista], aos poemas do grupo Novissimi De Chirico, assim como outros pintores do
até os Frisbees dos anos ’80. No começo da século XX, quase contemporâneos a ela.
década de ’80 a autora se aproxima da filo- Nestas observações há uma articulação do
sofia oriental e enfim ordena-se monja bu- pensamento em torno ao tempo e espa-
dista (1990). Neste período de mudança ço, ao esconder e revelar, ao significado
surgem os Frisbees: poemas para serem da luz, recursos que estão presentes em
lançados. Há uma sugestão, ou uma ima- sua criação desde o início, desde que seu
gem surpreendente, um convite, talvez, principal meio de expressão era a fotogra-
para que o leitor leia e lance de volta o fia. Ao observar a luz usada por Hopper,
poema. Os Frisbees são versos inspirados Niccolai nos diz:
pelo imediatismo, escritos feito anotações
num momento de percepção aguda ou de
iluminação. Percebe-se em toda produção
da autora que seu deleite maior está na
invenção linguística e no prazer do jogo
de palavras; literalmente o aspecto brin-
cante da língua, os trocadilhos e o “non-
sense”, por vezes cômico, formam a ur-
didura da produção desta década em que
os elementos poéticos emergem do coti-
diano. Numa entrevista em rádio cedida a

95
Se o silencio e o tempo imóvel da imagem
tem a ver com a eternidade e com essa
sua possível e aceita definição: a eterni-
dade é a ausência de tempo. Ausência da
sucessão ilimitada dos instantes. A sua-
ve e profunda tristeza e melancolia que
nos assalta a cada vez que observamos
a pintura metafisica de Hopper é o re-
sultado da percepção do eterno que ele
deve ter sido capaz de alcançar enquanto
olhava um determinado objeto (não im-
porta qual), que depois decide represen-
tar, imprimindo-lhe aquela inexplicável
e impronunciável emoção. Impalpável e
fugaz como a luz e o ar, aquela eternida-
de, aquele senso de eterno ao qual todos
almejamos (mesmo sem sermos cons-
cientes), mas advertindo, todos, sempre,
a falta de alguma coisa (do uníssono? da
não dualidade?) e sentindo-nos ao mes-
mo tempo prisioneiros de alguma outra
coisa (da inarrestável e obsessiva pro-
gressão do tempo?)4.

Esta pequena amostra de tra-


duções é um convite para instigar curio-
sidade e fome nos leitores brasileiros.
Abrimos uma fenda para jogar luz sobre
o pensamento e a arte de Giulia Niccolai.
Há elementos em sua produção que dia-
logam com os caminhos percorridos pela
poesia brasileira, do concretismo à poesia
contemporânea, assim como aqueles tri-
lhados por certa prosa experimental que
não exclui o ensaismo e a ficção. Que es-
tas breves anotações sejam um primeiro
lance de Frisbee.

96
ALGUNS POEMAS DE GIULIA NICCOLAI

Sostituzioni Substituições

Sostituisci alla perdita del centro Substitui à perda do centro


la distruzione del centro a destruição do centro
alla perdita di un senso à perda de um sentido
la negazione di un senso. a negação de um sentido.

Puoi individuarlo nella misura Pode encontrá-lo na medida


in cui è imprendibile: em que é inapanhável:
misurarne tutta la distanza medir-lhe toda a distância
dovunque (e in nessun luogo). em toda parte (e em parte alguma).

Così Assim
la reversibilità del segno a reversibilidade do signo
l’evanescenza del senso a evanescência do sentido
l’opposto dell’insensato o oposto do insensato

una moltiplicazione d’insensatezza uma multiplicação da insensatez


una farsa inventata con arte. uma farsa inventada com arte.

Positivo & Negativo Positivo & Negativo

Ogni cosa può accadere Tudo pode acontecer


avere un senso o non averlo. ter um sentido ou não ter.

Non ha verità da proporre Não há verdades a propor


mantiene aperto il significato mantém-se aberto o significado
il senso nasce nominando le cose. o sentido nasce nomeando as coisas.

Un’impaginazione Uma disposição de página


una comunicazione di forme uma comunicação de formas
l’ipoetesi di una realtà in movimento: a hipótese de uma realidade em movimento:
Una vertigine di inversioni Uma vertigem de inversões

97
[Sostituzioni, 1972]
“Beati i poveri di spirito”
Frisbees dovrebbe fare in inglese:
(poesie da lanciare) “Blassed are the half-wits”.
Invece è : “Blessed are the poor in spirit”.
1982-1985
(primi 10) (Anche per questo bevo sempre parecchio).

Una volta Vichinghi, Normanni e altri


aprendo il frigorifero (per lo più navigatori),
è capitato anche a me di dire: vengono solitamente raffigurati
“C’è qualcosa di marcio in Danimarca”. a prua, in piedi, che scrutano l’orizzonte.
(Alias infinito).
Un santo5 mi fa notare A un certo punto però anche loro
(durante l’intervallo di una mia lettura alla saranno costretti a dire: “Terra-terra”.
Pasticceria)
che il pane in Toscana viene fatto senza sale
e che Dante ha scritto:
“Tu proverai sì come sa di sale
Lo pane altrui ..
e ‘l salir per l’alturi scale”.
Ci rimango di sale.
E intanto Dante sale.

IS mi dice di aver visto vicino Porta Romana


un picolou ristouranti thaigliandeisi
“Ma, come”, dico io, “il ristorante si chiama
Italian Daisy?”
“Ma, come”, dice lui, “Italian Daisy?
Thailandeisi”.
“Ah, Thailandese!”, dico io.

(Lui, IS< mi stava parlando in italiano


e io lo stavo ascoltando in inglese).
E pensare che la più “bella”signora dell’orto
che io ero convinta si chiamasse Italia,
si chiama invece Margherita.

Non si gioca a Frisbee solo con le parole


È bene farlo anche con le braccia e con
le gambe.

98
Frisbees
(poesias para arremessar) “Benditos os pobres de espírito”
deveria ser assim em inglês:
1982-1985 “Blessed are the half-wits”
(primeiros 10) Mas ao contrário é: “Blessed are the poor
in spirit”.

Uma vez (Também por isso bebo bastante).


abrindo a geladeira
também me aconteceu de dizer: Viquingues, normandos e outros
“Há algo de podre no reino da Dinamarca”. (na maioria navigadores),
são normamente representados
Um santo6 me fez notar à prua, de pé, observando o horizonte.
(durante o intervalo de uma leitura minha (Alias infinito).
na Doceria) Em algum momento, porém, até eles
que o pão da Toscana é sem sal serão obrigados a dizer: “Terra à vista”.
e que Dante escreveu:
“Tu provarás como sabe de sal
O pão do outro ..
e do outro o subir escadas”
Fiquei pasma.
Para o Dante, um quiasma7.

IS me diz que viu próximo à Porta Romana


um pequeno restaurant tailhandeisi
“Como assim”, digo eu, “o restaurante se
chama Italian Daisy?”
“Como assim” diz ele, “Italian Daisy?
Thailhandeisi.
“Ah, Thailandês!”, digo eu.

(Ele, IS, falava-me em italiano


e eu escutava-o em inglês).
E pensar que a mais “bela” senhora da horta
que eu tinha certeza chamava-se Italia,
chama-se, ao contrário, Margarida.

Não se joga Frisbee só com as palavras


É bem que se faça também com os braços
e as pernas.

99
I Presidenti degli Stati Uniti,
da quando televisione è televisione
e quando parlano al popolo americano,
fissano sempre un punto sobre l’obiettivo della camera.

(Vedi: orizzonte. Vedi: infinito).


Ma, ce li hanno i piedi per terra?

La poesia
va da tutte le partie
così fo io.
Laudata Sia.

Bastano pochi Frisbees


e già c’entrano
– centrano –
poeti, santi e navigatori.
Siamo misti! Siamo mistici! Olé!

Per un po’di tempo


non voglio più fare
letture in pubblico.
L’ultima è stata alla Pasticceria.

100
Os Presidentes dos Estados Unidos
desde que existe a televisão8
quando falam para o povo americano,
olham fixamente um ponto sobre o objetivo da camera.

(Vide: horizonte. Vidi: infinito).


Mas, será que eles mantém os pés no chão?

A poesia
vai por todas as partes
assim eu faço.
Louvada Seja.

Bastam poucos Frisbees


e já entram
– centram –
poetas, santos e navegadores.
Somos mistos! Somos místicos! Olé!

Por algum tempo


não quero mais fazer
leituras públicas.
A última foi na Doceria.

101
È sempre imbarazzante per un tedesco chiedere
zwei dry martini
potrebbe chiedere
zwei martini dry
ma se chiede
zwei martini dry
gli danno i martini senza il gin.
È costretto a berseli?
No
perché lui e sua moglie
vogliono zwei dry martini
e NON zwei martini dry.
Potrebbe chiedere
zwei mahl dry martini
che tradotto in italiano diventa
due volte tre martini.
Allora gliene danno sei.
Sei un bevitore di dry martini?
Fanno diciotto.
Sei, sei dry martini?
Sei più sei dodici
sei per sei trentasei?
Non voglio né dodici né trentasei martini
voglio del gin perché sono G.N.
Giulia Niccolai.
Des dry martini! Neuf!
Pas des vieux bien sûr madame…
Anche un americano che chiede
nine dry martini
corre il rischio di non riceverne neanche uno
se il barman lo prende per un tedesco.
Dix dix dry martini!
Non je dis pas je dis pas je dis pas!

[Harry’s bar ballad, in Russky salad ballads, in Poemi & oggetti]

102
É sempre embaraçoso para um alemão pedir
zwei dry martini
poderia pedir
zwei martini dry
mas se pedisse
zwei martini dry
dão-lhe o martini sem o gin.
É forçado a bebê-los?
Não
porque ele e sua mulher
querem zwei dry martini
e NÃO zwei martini dry.
Poderia pedir
zwei mahl dry martini
que traduzido em italiano seria
duas vezes três martinis.
Então lhe dão seis.
Você é um bebedor de dry martini?
São dezoito.
Seis, seis dry martini?
Seis mais seis doze
seis vezes seis trinta e seis?
Não quero nem doze nem trinta e seis martinis
quero gin porque sou G.N.
Giulia Niccolai.
Des dry martini! Neuf!
Pas des vieux bien sûr madame…
Também um americano que pede
nine dry martini
corre o risco de não receber nem um
se o barman achar que é alemão.
Dix dix dry martini!
Non je dis pas je dis pas je dis pas!

[Harry’s bar ballad, in Russky salad ballads, in Poemi & oggetti]

103
PUBLICAÇÕES DE DESTAQUE amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna Bianco “Ti aspet-

II grande angolo (Feltrinelli, 1966). tavo nel tempo” (no prelo pela Mondadori, 2017). Possui

Harry’s Bar e altre poesie 1969-1980 graduação em Jornalismo e Ciência Política pela Univers-

(Feltrinelli, 1981) tà degli Studi di Firenze (Itália), mestre em Ciência Políti-

Frisbees, poesie da lanciare ca pela Universidade de São Paulo (USP). Traduziu plaquet-

(Campanotto, 1994) tes de Mario Luzi, Pier Paolo Pasolini, Giuseppe Ungaretti,

Esoterico biliardo (Archinto, 2001) Giacomo Leopardi e Jacopone da Todi. Traduziu o romance

Le due sponde (Archinto, 2006) de Elena Ferrante Dias de abandono (Biblioteca Azul, 2016) e

Frisbees della vecchiaia (Campanotto, 2012) Nas margens de mundos possíveis (Imago, 2010) do psicana-

Poemi & Oggetti, Poesia complete lista italiano Vincenzo Bonaminio.

(Le Lettere, 2012) 3


Movimento literário italiano de vanguarda constituido-se em

Palermo em 1963 que contrapôs à experiência neorealista,

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS já em declínio, a experimentação linguística com o desejo de

Niccolai, Giulia. Cos’è la poesia. Milão: elaborar também uma literatura que dialogasse com a nova

Edizioni del Verri, 2012. realidade social e economica italiana, dele participaram, entre

____________. Due sponde. Milão: outros, Edoardo Sanguineti, Umberto Eco e Giorgio Manganelli.

Archinto, 2006. 4
Tradução de Mirian Regini Nuti em comunicação de e-mail

____________. Esoterico Biliardo. Milão: em janeiro de 2017 a respeito da obra de Giulia Niccolai.

Archinto, 2001. Niccolai, Giulia. Due sponde. Milão: Archinto, 2006, p. 151.

____________. Le tre vite di Giulia Nicco- 5


Nella tipologia dei poeti santi e navigatori cui l’A. fa spesso

lai. Nápoles: 19/12/2014. Entrevista con- riferimento, un “santo”è un chiaroveggente.

cedida a Giorgio di Costanzo. https://www. 6


Na tipologia de poetas santos e navegadores aos quais se

youtube.com/watch?v=KDjQyJXuTY0 con- refere sempre A.,um “santo” é um clarividente.

sultado 20/12/2016. 7
[n.d.t] Passagem do poema cuja tradução é impossível sem

___________.Poemi & Oggetti. Poesie a perda do sentido ou sem uma explicação pontual, há o jogo

Complete. Org. Graffi, Milli. Firenze: Le de palavras contínuo ditado pelo “sale” (sal, e sobe do verbo

Lettere, 2012. subir). O modo de dizer italiano “rimanerci di sale” significa

“ficar pasmo”, sua origem é a passagem bíblica em que a

Notas esposa de Lot, ao fugir de Sodoma e Gomorra, controverteu


1
Cabe um agradecimento especial a Mirian Regini Nuti pelo a ordem e olhou para trás, foi então transformada numa es-

diálogo enriquecedor sobre a obra de Giulia Niccolai, pela tra- tátua de sal. Diz-se que esta é a origem da salinidade do Mar

dução de um trecho da obra de Niccolai, sugestões sobre este Morto. O verso continua dizendo que no entanto Dante “sale”,

ensaio, assim como por ter fornecido todos os livros citados Dante sobe. Escolhemos manter a sonoridade em “pasma” e

neste breve trabalho. Um agradecimento também a Giulia “quiasma” subvertindo o sentido, pelo menos em parte.

Niccolai pela disponibilidade e simpatia em conversar sobre 8


[n.d.t.]Perde-se aqui também o jogo da expressão italiana

seu trabalho com a autora. Compartilho com ambas os mé- “da che mondo è mondo”, substituída pela poeta com “da

ritos aqui presentes e me responsabilizo inteiramente pelos quando televisione è televisione”, o sentido do ditado é des-

erros e equívocos. de sempre, desde o começo dos tempos, segundo o dicioná-


2
Francesca Cricelli, poeta, tradutora e pesquisadora. Pu- rio de dizeres Hoepli citado pelo portal Corriere della Sera:

blicou o livro de poemas Repátria (Selo Demônio Negro, “Letterale: da sempre. Usato per sottolineare che una cosa è

2015) em português e italiano. É doutoranda em Estu- assolutamente normale, oppure codificata dall’uso, o ancora

dos da Tradução (Universidade de São Paulo, USP), tradu- data per scontata in quanto reale o naturale.” Ou seja, “desde

ziu e organizou as correspondências de Giuseppe Ungaret- sempre. Usado para destacar o que é absolutamente normal,

ti e Edoardo Bizzarri “Ungaretti e Bizzarri, Lettere 66-68” ou seja codificado ao uso, ou ainda algo que é tão real ou

(Scriptorium, 2013), transcreveu e organizou as cartas de natural que nem se dá atenção”.

104
GALÁXIA
HAROLDO

105
ENTREVISTA COM
RODOLFO MATA
A RESPEITO DE SEU CONTATO
COM HAROLDO DE CAMPOS

106
– Rodolfo, quando e como você teve ensaios que mais tarde soube que esta-
as primeiras notícias sobre a poesia vam incluídos na Teoria da poesia concre-
e o trabalho intelectual de Haroldo ta (1975) vinha da minha formação inicial
de Campos? como engenheiro industrial e de sistemas,
O primeiro contato com a obra de em 1982, no Instituto Tecnológico y de Es-
Haroldo de Campos de que eu me lembro tudios Superiores de Monterrey (ITESM).
com clareza foi a leitura do ensaio “poe- Foi uma grande e agradável surpresa achar
sia concreta-linguagem-comunicação”, que no ensaio do Haroldo a intervenção de uma
foi incluído por Hugo Gola, poeta argenti- lógica computacional operando no poema
no radicado no México, no volume El poe- “Terra”, de Décio Pignatari, lógica que in-
ta y su trabajo III (Centro de Ciencias del corporava as ideias de loop e feedback,
Lenguaje, Universidad Autónoma de Pue- as quais me eram familiares. Outro atra-
bla, 1983), junto a outros textos muito tivo importante para mim foi a menção
interessantes de Wallace Stevens, Robert de compositores como Pierre Boulez, pois
Creeley, Denise Levertov e Gary Snyder. A eu era seguidor assíduo da então chama-
série desses volumes, iniciada em 1980 e da “música contemporânea” ou “música
que chegou só até o seu quarto número, nova”. Aliás, eu conhecia dois compositores
em 1985, tinha a particularidade de reunir de música concreta, Pierre Henry e Pierre
textos de reflexão de poetas destacados Schaeffer, e me gabava de ter Musiques
sobre o seu próprio trabalho. Embora Gola pour une fête. Nenhuma destas caraterísti-
admitia abertamente que a seleção obede- cas estava presente nos outros autores da
cia às suas preferências pessoais e, por- série, mais preocupados pelo estritamente
tanto, era parcial, o seu atrativo era muito literário ou filosófico-literário.
grande para os interessados em escrever Devo ter lido esses ensaios em tor-
poesia. Eu desfrutei muitíssimo a leitura no de 1983, pois já nessa época fazia Le-
do conjunto desses ensaios, entre os quais tras na UNAM, como segunda graduação,
não faltaram “A filosofia da composição”, enquanto trabalhava como engenheiro na
de Poe, e “Acerca do Cemitério Marinho”, Cidade do México. Não descarto também a
de Valéry. O segundo volume também in- possibilidade de haver lido o ensaio “Teo-
cluía o ensaio “A moeda concreta da fala”, ría de la poesía concreta del Brasil”, de
de Augusto de Campos, e sua famosa ver- Ramón Xirau –poeta e filósofo nascido em
são da “Elegia” de John Donne. Os três Barcelona em 1924 e radicado no México,
textos dos irmãos Campos tinham sido a partir de 1939, como parte do chamado
traduzidos ao espanhol por Eduardo Milán. “exílio espanhol” no volume Poesía ibe-
Lembro-me que tive uma impressão muito roamericana: doce ensayos (SEP, 1972),
distinta dos ensaios de Haroldo e Augusto, estando ainda em Monterrey, pois a pu-
ao compará-los com os demais, devido ao blicação existe até hoje na biblioteca do
seu particular estilo teórico, que amalga- campus e eu comecei a me interessar por
mava aproximações à poesia a partir da poesia, a escrever poesia e a frequentar
linguística, da semiótica e da teoria da algumas aulas da graduação em Letras
informação, entre outras fontes, e tam- do ITESM já em 1979 ou 80. Mais tarde li
bém pela constante postulação da poe- a antologia da poesia de Haroldo Transi-
sia concreta como um passo à frente no deraciones/Transiderações (Tucán de Vir-
desenvolvimento da criação poética. Sem ginia, 1987), selecionada e traduzida por
dúvida, a simpatia que senti por esses dois Eduardo Milán e Manuel Ulacia.

107
– Quando se encontrou com ele pela México o acento vai para a tradição. Só
primeira vez e como foi o encontro? hoje é que os pesquisadores mais jovens
Encontrei com o Haroldo pessoal- estão prestando uma atenção diferenciada
mente pela primeira vez quando cheguei a e produtiva ao Estridentismo, lendo suas
São Paulo, no começo de 1992, para cur- obras com maior cuidado e pondo entre
sar o mestrado em Integração da América parênteses a polêmica sobre seus ataques
Latina, no PROLAM, na USP, com um pro- homofóbicos contra os Contemporâneos. É
jeto de pesquisa que culminou na disser- surpreendente, significativo e certamente
tação Octavio Paz e Haroldo de Campos: afortunado que a difusão do conhecimento
Contradições da Modernidade na América do Estridentismo no âmbito internacional
Latina (1994). Irlemar Chiampi, minha tenha acontecido através do romance Os
orientadora e então diretora do PROLAM, detetives selvagens, do chileno Rober-
me animou a propor esse tema para uma to Bolaño, que inclui uma crítica feroz ao
bolsa PECPG do CNPq durante uma viagem establishment literário mexicano (crítica
que ela fez ao México. Para concluir mi- também presente no romance 2666), ro-
nha graduação na UNAM, eu apresentara mance no qual Bolaño indica a existência,
a dissertação Dos Operaciones Textuales no México, de um forte fator de rejeição às
de Vanguardia: Manuel Maples Arce y Os- rupturas radicais. O Infrarrealismo, movi-
wald de Andrade (1990), também uma mento fundado no país, em 1975, ao qual
comparação entre as tradições literárias Bolaño pertenceu, teve a mesma sorte,
mexicana e brasileira, situada um pouco pois era praticamente ignorado até apare-
antes, no período modernista: a poesia cer no mesmo romance.
pau-brasil e a antropofagia oswaldianas A poesia visual mexicana também
versus o estridentismo mexicano, liderado sofreu por muito tempo essa marginaliza-
pelo poeta Maples Arce. Eu já havia cur- ção, que hoje felizmente está sendo cor-
sado as matérias de poesia brasileira que rigida. Tenta-se não só recopilar (muitas
Horácio Costa ministrava no México e meu antologias já foram publicadas), mas ava-
entusiasmo pela tradição poética brasileira liar e nutrir com novas perspectivas sua
me levou a aprender português por minha enfraquecida tradição e, sobretudo, esti-
conta, lendo com um dicionário ao lado, mular sua produção no presente. A poe-
fazendo minhas primeiras traduções ao sia concreta, sem dúvida, tem um papel
espanhol e assistindo a um curso de ini- importantíssimo nas raízes que podem
ciação à língua portuguesa no Centro de ser apontadas para essa tradição. Ulises
Estudos Brasileiros do México. O enfoque Carrión (1941-1989) narrador e poeta
que Haroldo e os concretos adotaram pe- mexicano que migrou para as artes plás-
rante a obra de Oswald e a reavaliação e ticas e se instalou em Amsterdam, autor
projeção que lhe deram foram para mim do volume Poesías (1972), totalmente
iluminadores. Representaram um olhar atípico dentro do cânone mexicano, e do
que jamais havia sido aplicado às duas brilhante ensaio poético “El arte nuevo de
vertentes do avant-garde mexicano, os hacer libros” (1975), importante na histó-
Estrindentistas e os Contemporáneos. ria dos chamados livros de artista teve
Usando e abusando do binômio com que contato com o movimento internacional da
Paz define a modernidade como “tradição poesia concreta, no qual participaram os
da ruptura”, poderia dizer que, enquanto poetas de Noigandres. Hoje, finalmente,
no Brasil existe uma ênfase na ruptura, no Carrión ocupa um lugar muito importan-

108
te nessa reconstrução histórica. O mesmo de Castro, outro de Lígia Clark e uns ossos
aconteceu com o livro de poemas visuais de vidro de Aguilar; a escada pela qual eu o
Lugares donde el espacio cicatriza (1974), vi descer várias vezes de seu estúdio; Dona
de Marco Antonio Montes de Oca, e com Carmen que, muito amável, nos serviu
os poemas concretos do artista plástico e uma taça de vinho do porto... É difícil lem-
arquiteto de origem polaco-alemã Mathias brar com precisão quais foram os temas da
Goeritz, que revolucionou a paisagem ur- nossa primeira conversa, pois as visitas se
bana da Cidade do México com suas escul- estenderam ao longo dos dois anos em que
turas monumentais e suas concepções ar- permaneci em São Paulo. É mais fácil lem-
quitetônicas. Os três artistas mencionados brar o contexto do momento. Octavio Paz
mantêm um diálogo, direto ou indireto, recebera o Prêmio Nobel de Literatura em
com a poesia concreta. outubro de 1990, fato que deu uma visibi-
Esse tipo de contatos e paralelos, lidade internacional inquestionável ao seu
que me chamavam a atenção e que não trabalho literário e que, finalmente, captu-
tinham mostrado então toda a sua impor- rou a atenção dos leitores e da indústria
tância, apareceram mais cedo na relação editorial brasileira. Haroldo já havia escrito
entre Octavio Paz e Haroldo de Campos. e publicado Transblanco (em torno a Blan-
Se, em 1967, Haroldo leu com grande co de Octavio Paz) (Editora Guanabara,
curiosidade El arco y la lira, Libertad bajo 1986), compilação de cartas, ensaios e tra-
palabra e o “Épilogue” (mais tarde incluído duções que forneciam dados para a parte
em El arco y la lira como o capítulo “Los central da minha pesquisa, como já men-
signos en rotación”), no ano seguinte Paz cionei. Haroldo era sumamente minucioso
recebeu com entusiasmo a Antologia Noi- e o seu roteiro de contato com Paz estava
gandres e o volume Teoria da poesia con- muito claro. Eu teria que procurar o lado
creta. E se Paz escreveu os poemas visuais oposto, pois na obra de Paz o contato com
que chamou Topoemas (1968), como ho- Haroldo e com a poesia concreta não era
menagem aos concretos, Haroldo traduziu tão claro, isto é, não estava explícito em
o poema Blanco. Esse foi justamente o nenhuma publicação.
núcleo histórico central da minha pesqui- Conforme ia avançando, fui perce-
sa de comparação entre os dois poetas e bendo que, se Haroldo, que era 15 anos
ensaístas, que depois se estendeu para a mais jovem que Paz, continuava seguindo
consideração do lugar do barroco na sua a trajetória do mexicano, especialmente
produção, o peculiar estilo da ensaística como ensaísta (e dialogando com ela),Paz
que cada um adotou, e suas idéias sobre movia-se em outra direção. Seu interesse
tradução, vanguarda, pós-modernidade e inicial pela poesia concreta já havia pas-
identidade nacional. sado: depois de Blanco (1967), Topoe-
O primeiro encontro que tive com mas (1968) e Discos visuales (1972), Paz
Haroldo foi justamente para conversar afastou-se da produção poética de caráter
sobre sua relação com Octavio Paz, tema vanguardista, um dos motivos de sua ad-
fundamental em minha pesquisa. Haroldo miração pelo grupo Noigandres, manifes-
me convidou a visitá-lo em sua casa na rua tada em ensaios como “¿Poesía latinoame-
Monte Alegre e me recebeu com a gentileza ricana?” e “Los nuevos acólitos”, ambos de
e a generosidade que sempre o carateriza- 1967. No entanto, a relação entre o brasi-
ram. Recordo a sala de estar penumbrosa, leiro e o mexicano se mantinha e Haroldo
cheia de quadros, talvez algum de Amílcar continuava participando do “Consejo de

109
Colaboración” de Vuelta e enviando es- – De que modo entende a relação en-
poradicamente algum texto seu à revista. tre Haroldo de Campos e Octavio Paz?
Vuelta, por sua vez, publicou resenhas de Penso que, com o que disse até
alguns dos seus trabalhos. Uma das preo- aqui, a minha percepção da relação en-
cupações da época em que visitei Harol- tre Haroldo de Campos e Octavio Paz fica
do pela primeira vez girava em torno do bastante clara. Depois dos anos em que
barroco e do neobarroco. Irlemar Chiampi desenvolvi minha pesquisa de mestrado,
se desenvolvia brilhantemente nessa linha foram aparecendo outras facetas que hoje
do latino-americanismo e conversava com julgo importantes. Quando voltei ao Méxi-
Haroldo sobre o tema. Haroldo publicara O co, em janeiro de 1994, mantive a relação
seqüestro do barroco na formação da lite- com Haroldo. Justamente nesse ano saiu
ratura brasileira: o caso Gregório de Mat- a segunda edição, corrigida e aumentada,
tos (1989), no qual citava o ensaio de Paz, de Transblanco, publicada pela Editora Si-
dedicado ao barroco, Sor Juana Inés de la ciliano. Convidado por Octavio Paz, escrevi
Cruz o las trampas de la fe (1982). Outros uma resenha do livro para Vuelta, que foi
temas lhe interessavam, como sua ideia publicada no número de novembro. Não
de “poesia pos-utópica” confrontada com me lembro exatamente se foi por esses
a de Paz sobre uma “arte de convergên- meses ou se foi depois, nos primeiros me-
cia”. Em novembro de 1990, Haroldo me ses de 1997, que visitei Octavio Paz em seu
mandou, por intermédio de Horácio Costa, apartamento em Paseo de la Reforma, úni-
um exemplar da plaquette Finismundo: ca vez que o vi pessoalmente. Parte de sua
a última viagem (Tipografia do Fundo de biblioteca fora destruída por um incêndio,
Ouro Preto, 1990) com uma dedicatória em dezembro de 1996, e ele havia estado
de agradecimento pelo recebimento da muito doente. Eu insistira na visita e lhe
minha tese sobre Oswald de Andrade e entreguei, entre outros obséquios, a tradu-
Maples Arce, o que levantou minha curio- ção de Wladyr Dupont de A dupla chama
sidade sobre as mudanças de perspectiva (1994), para a Editora Siciliano. Esta foi
na sua escritura poética. Um pouco antes, uma encomenda de Haroldo, pois o livro se
da mesma maneira, recebi como presen- publicou no Brasil por sua recomendação.
te um exemplar de O seqüestro do bar- Octavio Paz, com 82 anos, estava cansado
roco na formação da literatura brasileira. e a visita foi muito breve. Lembro-me va-
O tema do barroco também confluía com gamente que ele agradeceu os presentes e
as Galáxias (1984), que Haroldo descrevia me fez algumas perguntas sobre Haroldo,
como uma estrutura poética proliferante seus projetos, as relações entre a literatura
e, portanto, barroca, com concreções no brasileira e a mexicana, e o papel exerci-
plano de sua microestrutura. Durante mi- do por Alfonso Reyes em tais relações. De
nha permanência em São Paulo, compa- tudo o que conversamos, o único que ficou
reci ao lançamento do CD Isto não é um gravado em minha memória com clareza
livro de viagem, oralização pelo autor de foi sua opinião de que Haroldo era “mui-
16 fragmentos das Galáxias, com partici- to cerebral”. Se, a princípio, senti tal ob-
pação do citarista Alberto Marsicano, se servação como uma crítica, depois entendi
bem me lembro, no Museu da Imagem e que era a constatação de uma distância,
do Som, no 15 de junho de 1992. que já era perceptível na correspondência
de Transblanco, uma distância respeitosa,
mas, a final de contas, uma distância.

110
Em fevereiro de 1995, propus a um cientista que leva seu caderno de no-
Adolfo Castañón, então gerente editorial tas, no qual, como disse, não falta bele-
do Fondo de Cultura Económica, o projeto za. Paz confiava no poder de sugestão do
de publicação de uma antologia dos en- pensamento paradoxal, enquanto Haroldo
saios de Haroldo, mas nunca recebi uma se encaminhava pela argumentação e pela
resposta. Dois anos depois, comecei a demonstração. Talvez essa haja sido a
conversar com Jaime Labastida, diretor impressão que me fez intitular o primeiro
de Siglo Veintiuno Editores, quem ama- capítulo da minha dissertação de mestra-
velmente acolheu o projeto da antologia do como “Poética: física ou metafísica?”.
que, intitulada De la razón antropofágica Talvez essa seja a base da qualificação
y otros ensayos, finalmente apareceria de “muito cerebral” aplicada a Haroldo
no ano 2000. No meio desse processo, por Paz, que acabo de mencionar. Talvez
foi uma grande surpresa a notícia de que na recomposição dessa disjunção esteja
Haroldo tinha recebido o Prêmio Octa- o caminho que vejo hoje apontado para
vio Paz de Poesia e Ensaio 1999. O júri, mim na retomada dos meus interesses de
formado por José Miguel Oviedo, Andrés engenheiro através da poesia eletrônica:
Sánchez Robayna, Carlos Monsiváis, Carlos como a física vira metafísica? Sem dúvida
Pereda y Ramón Xirau, tinha sido unânime isso está presente na poesia de Cabral de
ao conceder o prêmio por “sua trajetória Melo Neto.
na poesia, no ensaio e na tradução literá- Nos seus trabalhos de tradu-
ria, que tem significado uma contribuição ção, Haroldo foi muito mais profundo,
decisiva à renovação das linguagens da abrangente e plurilíngue que Paz. Soube
poesia contemporânea e do pensamen- aproveitar os insights que esse exercício
to criativo”. Chegou a haver especulações constante lhe trazia no seu próprio labor
de que Sánchez Robayna e Oviedo eram poético. Embora Paz também tenha se de-
amigos próximos do premiado; outras his- dicado à tradução, reconhecia e admirava
tórias diziam que Paz, antes de sua morte o trabalho de Haroldo nessa linha como
em abril de 1998, deixara uma lista com superior. Ainda que possa parecer exage-
alguns nomes, entre os quais constava o rada, creio que a seguinte afirmação resu-
de Haroldo. A primeira especulação foi des- me a relação de ambos os autores: à exce-
mentida abertamente nos jornais, pois a ção do exercício da poesia, Haroldo olhava
unanimidade então não haveria acontecido. o mundo a partir da língua, enquanto Paz
A segunda ficou como um mito passageiro olhava a língua a partir do lugar desta no
que eu repito, porque me parece que, se mundo, isto é, com um teor muito mais
for certa, só reafirma o reconhecimento e filosófico. Por isso penso que Paz se inte-
respeito que Paz manteve pela trajetória li- ressou por temas como a história, a socie-
terária de Haroldo. dade e a política, que se refletiam em seus
Minha impressão final é que, en- ensaios, enquanto Haroldo escreveu mais
quanto Paz era um brilhante ensaísta que sobre temas de literatura, história literá-
sabia tecer grandes panoramas e narra- ria, arte e cultura. Parte dessa diferença
tivas numa prosa sedutora e de grande foi explicada pelo próprio Haroldo, com
força poética, Haroldo escrevia mais um um exemplo magnífico da maneira como
ensaio de erudição, minucioso e cuidado- os dois poetas se aproximaram do Oriente
so no registro de todas as suas fontes e enquanto Paz foi estudar filosofia e pen-
cada um dos seus avanços, quase como samento oriental, Haroldo, além disso, foi

111
estudar japonês registrado na entrevista Sim, essa preocupação não só
“Hispanoamérica desde Brasil”, que eu lhe continua, mas continuará sendo impor-
fiz e que apareceu de maneira integral no tante. Ainda que seja minoritária, sabe-
volume De la razón antropofágica y otros mos que a minoria que a possui tem ido
ensayos. Quanto à poesia, também foi Ha- crescendo. Acho que a causa disso é a oni-
roldo, na mesma entrevista, quem melhor presença, cada vez mais fortalecida, dos
descreveu a diferença entre ambos: Paz meios eletrônicos, onde os cruzamentos
pertenceu à linhagem rimbaudiana e sur- disciplinares abundam. Para entender es-
realista da poesia latino-americana, com ses cruzamentos são necessários conhe-
sua alquimia verbal, enquanto ele, Haroldo cimentos básicos das disciplinas que você
vinha da linhagem mallarmeana e constru- menciona. Lembro-me de Haroldo citando
tivista, com preocupações mais marcadas Hegel para dizer que, na modernidade, a
pela estrutura da poesia. De fato, Haroldo reflexão sobre a arte passou a ser mais
aponta que o que admirava em Octavio Paz importante do que a própria arte. Isso
era que havia conseguido construir uma leva tanto ao cultivo da poesia metalin-
ponte que unia as duas linhagens. Esse guística quanto ao ascenso da figura do
fora, justamente, o motivo que o levara a poeta-crítico. Embora o momento em que
entrar em contato com Paz, depois de ler o Haroldo fazia essa citação - integrada
alguns poemas metalinguísticos e outros ao seu ensaio “Comunicação na poesia de
de grande condensação, no estilo haicai, vanguarda” (1968)- já tenha quase meio
publicados em Libertad bajo palabra. século, e as condições tenham mudado,
Para concluir, quero sublinhar que não sem um desgaste desses dois traços,
essa tensão apontada por Haroldo, en- sua marca permanece e o novo que se
tre a linhagem rimbaudiana e a mallar- constrói não pode esquecê-los.
meana, pode-se refletir noutras tensões, É corriqueira a crença de que a
como a existente entre a palavra sem reflexão seca a poesia. É uma simplifica-
dono e a palavra-testemunha, e constitui ção, um pensamento romântico. Keats, no
uma fonte importante para compreender seu poema “Lamia”, culpa a ciência de ter
o lugar do eu e seus encobrimentos, as destruído a poesia do arco-íris e acabado
diferentes personae possíveis, na poesia com as criaturas mitológicas como fontes
latino-americana contemporânea. Pensar de beleza. Mas na realidade a ciência e a
esse lugar de enunciação na poesia es- técnica abrem universos à poesia. Vários
crita pelos dois autores constituiria uma poetas ainda hoje acreditam que a teoria
pesquisa muito interessante. literária, a linguística e as outras discipli-
nas mencionadas destróem a poesia, não
– Você considera que essa preocupa- podem ser integradas a um poema, nem
ção – que Haroldo e seus companhei- sequer contribuem ao fazer poético. Acho
ros tiveram – em pensar a literatura que eles estão no seu direito e escolha,
no cruzamento das experiências de muito válida, de prescindir delas. Con-
diferentes campos de investigação cordo que os conhecimentos dessas dis-
como teoria literária, linguística, se- ciplinas, sua aplicação, sua manifestação
miótica e teoria da informação conti- na realidade, não produzem per se poe-
nua e continuará sendo importante, sia. Podem veicular e reproduzir a mara-
mesmo que ainda seja minoritária? vilha científica ou filosófica que os gerou,
mas precisam de mais elementos para se

112
transformar em literatura, em poesia. Essa mento da obra de Haroldo, mas também
transformação não segue regras claras e posso afirmar que há mais leitores de por-
justamente essa falta de claridade pode tuguês no México. Uma prova muito clara
ser chamada de criação. Não é produto de disso é a abertura da graduação em letras
puro raciocínio, embora possa conter as portuguesas na UNAM. Outro fator que
pegadas ocultas de um raciocínio, isto é, contribui à recepção positiva da obra de
ser uma mistura com a intuição. O que me Haroldo no México é o momento recepti-
parece indiscutível é que o conhecimento vo que vive a poesia mexicana, o que já
e cruzamento de diversas disciplinas en- comentei anteriormente. A experiência
riquece o terreno onde esses processos brasileira do surgimento revolucionário da
criativos acontecem e o conhecimento das poesia concreta é hoje uma informação
disciplinas mencionadas faz possível uma muito mais comum entre as jovens gera-
comprensão melhor da realidade relacio- ções do que foi no passado. Por exemplo,
nada com a língua natural e outras lingua- hoje a ideia da verbivocovisualidade é me-
gens utilizadas pelas artes, que hoje, nas lhor conhecida e identificada com a poesia
novas mídias, se misturam com facilida- concreta pelos poetas mexicanos.
de. Para mim, poesia é pensamento cria-
tivo materializado em palavras, em língua
viva, seja escrita, pronunciada ou ouvida,
fixa ou em movimento, misturada ou não
com outras linguagens artísticas. E, para
ser poesia do meu tempo, tem que dialo-
gar com as realidades do meu tempo, que
incluem a técnica e a ciência que flui ao
meu redor.

– Tem havido alguma mudança signi-


ficativa, nos anos recentes, em rela-
ção ao modo como a obra de Haroldo
é recebida no México?
Hoje existem mais traduções ao
espanhol da obra poética e ensaística de
Haroldo, publicadas por editoras mexica-
nas, hispano-americanas principalmente
argentinas ou espanholas. Por exemplo,
a tradução de Galáxias (2011), feita por
Reynaldo Jiménez e publicada no México
por Libros Magenta; a coletânea de poe-
mas Entremilenios (2013), traduzida por
Andrés Fisher e publicada na Espanha
por Amargord; ou Brasil transamericano
(2004), antologia de ensaios selecionada
e traduzida por Amalia Sato, publicada na
Argentina por El Cuenco de Plata. Essas
traduções permitem um melhor conheci-

113
SOBRE OS
Giulia Niccolai. Ativa desde 1966 com inúmeras publica-

ções, fotógrafa, poeta e narradora, ela é uma das vozes

mais inovadoras da poesia italiana do período pós-guerra

até hoje. Traduziu Gertrude Stein, Virginia Woolf, Patri-

AUTORES
cia Highsmith e Dylan Thomas. Em 1966, publicou o ro-

mance “Il grande angolo” pela Feltrinelli. Em 1972, com

o então sócio Adriano Spatola, fundou a revista Tam Tam,

uma publicação agregadora de poesia experimental que

logo atraiu autores jovens. Na década de oitenta, depois

de uma doença sofrida, ela se converteu ao budismo. As

suas coletâneas poéticas “Harry’s Bar e outros poemas”

(Feltrinelli, 1981) e “Frisbees, Poemas a serem lançados”

(Campanotto, 1994, Premio Feronia) destacam-se como

obras de virtuosismo, vitalidade e forte humor. Vive e tra-

Ana Hatherly (Porto, 1929 — Lisboa, 2015) foi artista balha em Milão.

plástica, poeta, tradutora, escritora e também professora

catedrática de Literatura Barroca. Licenciou-se em Filologia Gonzalo Aguilar é doutor pela Universidade de Buenos

Germânica pela Universidade Clássica de Lisboa e douto- Aires, professor de Literatura Brasileira e Portuguesa na

rou se em Estudos Hispânicos do Século de Oiro, pela Uni- UBA e pesquisador da Conicet. Coordena o Mestrado em

versidade da Califórnia, em Berkeley (EUA). Foi professora Literatura Latino-Americana pela Universidade Nacional

catedrática na Faculdadede Ciências Sociais e Humanas da de San Martín e foi professor visitante na Universidade de

Universidade Nova deLisboa, onde criou o Instituto de Es- Stanford, Universidade de Harvard e Universidade de São

tudos Portugueses,em 1994, do qual foi presidente. Com a Paulo. Em 2005, recebeu a bolsa Guggenheim. Ele publi-

sua investigação revalorizou esse período histórico, reve- cou numerosos ensaios e escreveu, em colaboração, o ci-

lando uma profunda afinidade entre os experimentalistas nema de Leonardo Favio (1993) e Borges vai ao cinema

do século XX, de que fazia parte, e os seus antecessores (2010). Ele é o autor, entre outros, dos livros Poesia con-

dos séculos XVII e XVIII. Quanto à sua carreira literária, creta brasileira (2003); Outros mundos Um ensaio sobre

iniciou-a com a publicação do livro de poesia Ritmo Perdi- o novo cinema argentino (2006) e Episódios cosmopolitas

do (1958). Nas décadas de 60 e 70, foi elemento ativo do na cultura argentina (2009). Seu último livro é Beyond the

Movimento da Poesia Experimental (conhecido por Po-Ex). People. Imagens, sinais e políticas do cinema, publicado

Publicou, entre outros livros importantes, A casa das mu- pelo Editorial Fondo de Cultura Económica.

sas (1995) e A Idade da Escrita (1998).

Marjorie Perloff ministra cursos e escreve sobre poesia

Francesca Cricelli tradutora, poeta e pesquisadora. Pu- e poética do séc. XX e agora do século XXI, tanto anglo-

blicou os livros Repátria (Selo Demônio Negro, 2015) e -americana como de uma perspectiva comparada, bem

Tudo que toca o olhar (Casa Impressora Almería, 2013). como sobre intermedia e as artes visuais. Ela é professora

Doutoranda em Estudos da Tradução (USP), organizou e emérita de inglês na Universidade de Stanford e Florence

traduziu as cartas trocadas entre Giuseppe Ungaretti e R. Scott, professora de inglês emérita na Universidade do

Edoardo Bizzarri 66-68 (Scriptorium, 2013), é curado- Sul da Califórnia. Foi eleita para a Academia Americana

ra das cartas de amor de Giuseppe Ungaretti para Bruna de Artes e Ciências e para a American Philosophical So-

Bianco (Mondadori, 2017). Foi curadora da exposição e do ciety. Publicou vários importantes livros como The Poetics

ciclo de encontros “de uma estrela a outra” na Casa das of Indeterminacy: Rimbaud to Cage (1999), The Futurist

Rosas em 2012. Traduziu plaquettes de Giuseppe Ungaret- Moment: Avant-Garde, Avant-Guerre, and the Language

ti, Leopardi, e Pasolini . É docente de intelecção de litera- of Rupture (1993) Wittgenstein’s Ladder: Poetic Language

tura italiana na Casa Guilherme de Almeida. and the Strangeness of the Ordinary (1999), entre outros.

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Rafael Lemos é poeta, artista gráfico e tradutor. Mestre

em Artes Visuais pela Unesp (“O som assoma o signo: a

música de vanguarda no paideuma da poesia concreta”)

e em Música pela UFRJ (“Hesíodo e Platão: um percurso

poético entre o Proêmio e a República”). Autor de PRIM( )

VERSO, a sair em 2018 pela editora MusAbsurda. Se sente

bem em lugares de trânsito, de transe, de transa: as fron-

teiras entre a palavra, o som, a imagem.

Rodolfo Mata é tradutor e professor de literatura lati-

no-americana na Universidade Nacional Autônoma do

México. É autor dos livros de poesia Parajes y paralajes

(Aldus, 1998), Temporal (CNCA, 2008) e Qué decir (Bono-

bos, 2011), e do poema eletrônico Silencio vacío (http://

unoyceroediciones.com/, Valencia, 2014). Organizou di-

versas antologias sobre autores brasileiros, além de tra-

duzir e prefaciar outros tantos, como Haroldo de Campos,

Paulo Leminski, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Antonio

Candido e Sebastião Uchoa Leite.

Vinícius Carneiro é doutor em Teoria da Literatura pela

PUCRS, tradutor e professor na Universidade Lille 3. Faz

parte do Centro de Estudos em “civilisations, langues et

lettres étrangères” (Cecille, Lille 3) e do Grupo de Estu-

dos em Literatura Brasileira Contemporânea (Gelbc, UnB).

Participou da “Fabrique des traducteurs” (CITL, 2015) e foi

pesquisador visitante no Centro Cultural Haroldo de Cam-

pos (Casa das Rosas, 2016). Atualmente desenvolve pes-

quisa sobre o Oulipo e a Poesia Concreta Brasileira.

115
realização

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