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Opera do Trindade.

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Nuno Domingos

A ÓPERA DO TRINDADE
FNAT: Política Social, Divulgação Cultural e Ideologia
A Companhia Portuguesa de Ópera (1963-1975)
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Título
A Ópera do Trindade
© 2006, Nuno Domingos
Todos os direitos reservados.

1.A EDIÇÃO / Junho de 2007


ISBN: 978-972-41-0000
Depósito Legal n.O: 246621/06

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Edição apoiada por:


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Colecção Músicas

A colecção Músicas procura dotar o panorama editorial em língua por-


tuguesa de estudos monográficos de carácter científico que enquadrem
diferentes universos musicais, privilegiando as reflexões sobre os espaços
Português e Lusófono. A actualidade das temáticas e das abordagens,
bem como a multidisciplinaridade, são os principais critérios que nor-
teiam a selecção dos trabalhos, partilhados por áreas disciplinares afins,
como a Etnomusicologia, a Musicologia Histórica, a Antropologia, a So-
ciologia, os Estudos Culturais e os Estudos em Performance. Na expecta-
tiva de oferecer à música o lugar de destaque que lhe é devido no quadro
de reflexão sobre a cultura e a sociedade, a colecção Músicas dirige-se
não apenas aos especialistas como também ao grande público.

Coordenação Científica de

Salwa Castelo-Branco
Instituto de Etnomusicologia
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa

Susana Sardo
Instituto de Etnomusicologia
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Universidade de Aveiro

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Agradecimentos

Este livro, que nasce de uma dissertação de mestrado defendida na


Universidade Nova de Lisboa em 28 de Novembro de 2002*, deve-se em
grande parte à orientação de Rui Santos e Mário Vieira de Carvalho.
Pela responsabilidade diversa que tiveram na elaboração deste traba-
lho, queria destacar os contributos de Jorge e Isaura Domingos, Carlos
Fragateiro e da equipa do Teatro da Trindade, Daniel Melo, Diogo Rama-
da Curto, Fernando Domingos, Frederico Ágoas, Inês Brasão, José Neves,
José Serra Formigal, Miguel Jerónimo, Rui Vieira Nery, Salwa Castelo-
-Branco, e dos membros do Instituto de Etnomusicologia da Universidade
Nova de Lisboa, Sílvia Nóbrega e Tiago Fernandes.

* A dissertação de mestrado foi apoiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia.

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Conteúdos

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Ópera para Trabalhadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1 > Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres . . . . . . . . . . . . . . . 26
O lazer moderno e as suas funções sociais . . . . . . . . . . . . . . . 36
O Estado moderno e as políticas sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . .39
1.1 > A organização dos lazeres na Itália fascista
e na Alemanha nacional-socialista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
1.2 > O percurso histórico da FNAT . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Alegria no Trabalho e a dimensão cultural . . . . . . . . . . . . .56
O Portugal do pós-guerra e o crescimento da FNAT . . . . .62
O crescimento da acção ideológica da FNAT . . . . . . . . . . .67
2 > A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos . . . . . . 80
A política cultural da FNAT no Teatro da Trindade . . . . . . . . . . 80
A ópera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85
Desproletarizar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
O Trindade e o meio operático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90
Políticas culturais e objectivos políticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
O São Carlos e o Trindade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95
Sobre a sensibilidade para a ópera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97
O público . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Enobrecer a cultura popular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102
O Caso Ruy Coelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Os limites do espectáculo corporativo: as actas do
Conselho Consultivo do Teatro da Trindade . . . . . . . . . . . . . . 110
Um modelo operático alternativo: o caso do Grupo
Experimental de Ópera de Câmara (GEOC) . . . . . . . . . . . . . . 118
Os cantores do Trindade e a sua condição . . . . . . . . . . . . . . . 126
3 > A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas . . . . . . 133
Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .206
Anexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
Índice Remissivo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219

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Índice de Abreviaturas

FNAT: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho


EFTA: European Free Trade Association (Associação Europeia de
Comércio Livre)
SNI: Secretariado Nacional da Informação
JAS: Junta de Acção Social
ETN: Estatuto do Trabalho Nacional
ISCEF: Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras
GATT: General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio)
GEOC: Grupo Experimental de Ópera de Câmara
OIT: Organização Internacional do Trabalho
CAT: Centro de Alegria no Trabalho
CRP: Centro de Recreio Popular
KDF: Kraft Durch Freude (Força Pela Alegria)
OND: Opera Nazionale Dopolavoro
OECE: Organização Europeia de Cooperação Económica
FMI: Fundo Monetário Internacional

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Apresentação

Este estudo é a biografia de uma instituição cultural desde a sua con-


cepção. Como qualquer biografia, é, antes de mais, uma narrativa em
que um conjunto de factos relevantes sobre a entidade estudada, as
suas acções e os contextos destas, é ordenado num eixo, ou em vários
eixos temáticos conexos, de modo a produzir uma sequência significa-
tiva. Neste caso, parafraseando Geertz, poderíamos falar de uma “nar-
rativa densa”. Uma narrativa histórica sustentada por uma trama
conceptual sociológica que, sem se reduzir ao enunciado de um qual-
quer esquema determinista, sabe usar a teoria para melhor colocar os
problemas, romper com imprecisões da linguagem comum, seleccio-
nar e interpretar a informação, arriscar hipóteses; mas também usar a
narrativa para testar os limites das construções teóricas, reencontrar os
sentidos da acção para os próprios actores e colocar a sua autodetermi-
nação no contexto dos constrangimentos e das oportunidades do espaço
social. Para apresentar brevemente este livro, importará, pois, come-
çar por indicar o que, do nosso ponto de vista, define a relevância e dá
significado à narrativa que contém.
Em primeiro lugar, a própria instituição, a Companhia Portuguesa
de Ópera (CPO) que teve sede no Teatro da Trindade, enquadrada nas
actividades da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT).
Aparentemente uma instituição menor, decerto uma pequena peça na
estrutura institucional do Estado Novo, apresenta no entanto várias carac-
terísticas que a tornam interessante como objecto de estudo sociológico
e histórico.
Uma dessas características é a ambiguidade da sua inserção institu-
cional, enquanto instrumento de política cultural com objectivos bem
precisos – divulgar socialmente o gosto pela ópera e o acesso a ela, gerar
oportunidades para os criadores e intérpretes nacionais e constituir
uma escola para talentos emergentes –, mas sob a tutela de um orga-
nismo vocacionado para as políticas sociais e à margem do Secretariado
Nacional da Informação (SNI). Contra a visão de senso comum de um
aparelho de Estado monobloco, agindo como se de um actor individual
se tratasse, esta micro-análise destaca as tensões internas e os interstí-
cios em que se desenvolvem margens de liberdade institucionais e

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A Ópera do Trindade

pessoais, e se desenrolam lutas pela aquisição ou valorização de posi-


ções concorrenciais. Por outro lado, essa mesma ambiguidade leva a pôr
em causa, em torno deste objecto específico, as categorizações tantas
vezes aceites como óbvias que apartam política social de política cultu-
ral, cultura erudita de cultura popular, iniciativas estatais e estratégias
individuais.
Outra característica é o seu tempo e o contexto sociopolítico em que
decorre. Acompanhando um processo de modernização tardia – dese-
quilibrada e gorada em dimensões essenciais da sociedade portuguesa –,
e as tensões entre a adaptação e a resistência à mudança no interior do
regime, constitui um ponto de observação privilegiado para questionar
esse mesmo processo em alguns aspectos cruciais: as relações entre
mudança estrutural, mobilidade social, aspirações de consumo e for-
mação de públicos culturais; as relações entre políticas sociais, políticas
culturais, ideologia e legitimação do Estado e do regime, face a novas
aspirações de camadas sociais emergentes. No contexto da mudança
de regime, leva ainda a discutir os efeitos perversos de políticas de in-
tenções niveladoras que, ao destruírem, em nome da igualdade de opor-
tunidades de acesso à excelência, os níveis inferiores da hierarquia da
oferta e da divulgação culturais, poderão ter aumentado as desigualda-
des que, à partida, pretendiam nivelar. Problemas históricos pela data-
ção, não são menos problemas actuais da sociedade portuguesa, que
hoje se apresentam sob novas formas que urge interrogar.
Finalmente, a pequena escala da instituição faz dela um objecto fácil
de manusear para apreender as disposições e as motivações dos actores
individuais no desempenho, e mesmo, como é o caso, na criação dos
seus papéis institucionais, dentro das margens de liberdade que conse-
guem criar e defender. De onde o importante cruzamento da biografia
da instituição com as acções individuais de diversos actores, diferente-
mente posicionados nas relações aqui evidenciadas entre o campo polí-
tico e o campo cultural, de que se destaca a figura do criador do projecto
da CPO como actor central da narrativa. Ao Dr. Serra Formigal, pela
sua colaboração num trabalho de investigação que necessariamente
abordou a sua obra pessoal numa perspectiva crítica, gostaríamos,
como orientadores científicos da investigação, de deixar uma palavra
de apreço.

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Apresentação

Uma última palavra, de teor mais institucional. Este trabalho resul-


ta de uma dissertação de mestrado em Sociologia defendida na Facul-
dade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
É a mais recente de um conjunto de publicações que, desde finais dos
anos 80, atestam a vitalidade, a qualidade e a originalidade das inves-
tigações enquadradas em sucessivas gerações de cursos de mestrado
em Sociologia, aqui particularizados na especialização em Sociologia
Histórica. Produto de uma escola que procura na interdisciplinarida-
de, necessariamente assente em sólidos alicerces disciplinares, a iden-
tidade da sua prática científica, é significativo que a sua orientação
tenha sido partilhada por dois docentes de departamentos diferentes,
Sociologia e Ciências Musicais, com a aliciante – também um perigo
com que, a nosso ver, o Autor lidou exemplarmente – de um de nós
ter sido actor participante, enquanto crítico musical e activista políti-
co-cultural, nos acontecimentos narrados. Assim se ensaiou mais um
cruzamento de competências científicas, entre os muitos possíveis
em torno de problemas e objectos de estudo concretos. É com a alegria
de ver de novo um trabalho de qualidade emergir dessa prática de co-
laboração, e de sabermos ter com ela apoiado uma investigação em
que foram, como sempre, determinantes a formação, a competência e
o trabalho do Autor, que subscrevemos esta nota.

Rui Santos, Mário Vieira de Carvalho

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Teatro da Trindade, 1969 © João H. Goulart / AFCML


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Introdução

A investigação das temporadas de ópera que a Fundação Nacional para


a Alegria no Trabalho (FNAT) organizou no Teatro da Trindade, entre
1963 e 1975, pretende, pela análise de um objecto específico e histori-
ograficamente marginal, questionar o contexto de intervenção e o al-
cance ideológico das medidas de política social delineadas pelo Estado
Novo. O trabalho está dividido em quatro partes fundamentais. A pri-
meira introduz o tema, envolvendo o leitor com a realidade explorada.
A segunda tomou a forma de um enquadramento teórico e histórico.
Enunciaram-se, então, os pontos de partida que proporcionaram a de-
terminação dos eixos explicativos centrais. A definição de conceitos à
luz do seu significado histórico e da sua capacidade explicativa foi impor-
tante para designar os parâmetros que configuraram a interpretação
do tema. A análise dos espectáculos de ópera que a FNAT organizou no
Trindade exige uma concepção das funções e evolução da organização
de ocupação de tempos livres portuguesa. A definição das etapas de evo-
lução da FNAT, determinada pelas transformações que caracterizaram
a sociedade portuguesa no terceiro quartel do século XX, está relacio-
nada, a um nível mais estrutural, com a explicação da dinâmica histó-
rica que deu origem à criação de um conjunto de instituições estatais
de regulação social. A breve comparação estabelecida com as organiza-
ções de tempos livres da Itália fascista e da Alemanha nacional-socia-
lista serve para perspectivar melhor o âmbito da acção da organização
portuguesa.
A abordagem de um instrumento ideológico específico do Estado Novo
implica uma concepção de acção ideológica que ultrapasse a compo-
nente mais visível da endoutrinação. Para compreender a acção da FNAT
é importante criar uma distância de determinado tipo de estereótipo de
dominação ideológica tradicional e autoritária – sem, no entanto, o
excluir –, típico das análises que tratam as primeiras décadas do regi-
me.1 Mais do que perceber a constelação de princípios doutrinais que

1. Modelo patente na obra historiográfica de Fernando Rosas, que abarca essencialmente o período do Estado Novo anterior à Se-
gunda Guerra Mundial, mas também em trabalhos mais recentes, como, por exemplo: José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria
no Trabalho – Uma História Política da FNAT (1935-1958), Colibri/INATEL, Lisboa, 1999.

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A Ópera do Trindade

procurava forçar as consciências, cabe aqui avaliar o modo como o pro-


gressivo conhecimento da realidade social foi utilizado, por organizações
como a FNAT, nas práticas sociais quotidianas, visando a transformação
das consciências. É na adequação das práticas que se avaliará a eficácia
ideológica. Neste sentido, as palavras de Bourdieu parecem exactas:

Se é verdade que, ainda quando parece assentar na força nua, a das armas ou do di-
nheiro, o reconhecimento da dominação supõe sempre um acto de conhecimento,
isso não implica que se justifique descrevê-lo na linguagem da consciência, cedendo
a um “través” intelectualista e escolástico que, como acontece com Marx (e sobre-
tudo com aqueles que, na esteira de Lukács, falam de “falsa consciência”), leva a
esperar a emancipação… do efeito automático da “tomada de consciência”, igno-
rando, à falta de uma teoria disposicional das práticas, a opacidade e a inércia que
resultam da inscrição das estruturas sociais nos corpos.2*

Depois de o objecto estar integrado num universo de sentidos macros-


sociais, seguiu-se a sua exploração. A prioridade da investigação empírica
foi a reconstrução dos contextos que envolveram a criação e a existên-
cia da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade. Para a prossecução
deste objectivo foi essencial o acesso a cinco tipos de fontes: o arquivo do
Teatro da Trindade, o arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade,
o acervo de José Manuel Serra Formigal, o arquivo do INATEL (disponi-
bilizado parcialmente) e um conjunto de textos publicados em jornais
e revistas que acompanharam a história da Companhia Portuguesa de
Ópera. Estabelecemos também contactos com vários agentes – organi-
zadores, cantores, encenadores, funcionários da FNAT – envolvidos nos
espectáculos. Deve acrescentar-se ainda toda a informação retirada de
outras fontes bibliográficas, essenciais tanto para o enquadramento teó-
rico como para o desenvolvimento do tema.
Pareceu evidente, depois de efectuada uma parcela importante da pes-
quisa empírica, que o universo de estudo apresentava particularidades
que dificilmente poderiam ser enunciadas em toda a sua especificidade
se reduzidas aos princípios teóricos que traçáramos. O entendimento
do contexto dos espectáculos de ópera do Trindade organizados pela

2. Pierre Bourdieu, A Dominação Masculina, Celta, Oeiras, 1999, ed. orig. 1998, p. 34.
* Em todas as citações presentes neste livro optou-se por preservar a grafia original da época, facto que conduz a um duplo critério
de revisão. A título de exemplo, tanto poderemos ler “S. Carlos” (nas citações) como “São Carlos” (no texto do autor). (N. do E.)

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Introdução

FNAT obrigava a entrelaçar um conjunto de relações que não poderiam


ser bem compreendidas fora de um processo quotidiano que progrediu
no tempo. A elucidação da dinâmica desse processo implica que todos
os interesses individuais, colectivos e institucionais sejam colocados uns
em relação aos outros. Pierre Bourdieu expressou bem esta necessidade
ao afirmar que “ter presente que as ideologias são sempre duplamen-
te determinadas, – que elas devem as suas características mais especí-
ficas não só aos interesses das classes ou das fracções de classe que elas
exprimem (função de sociodiceia), mas também aos interesses específi-
cos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produ-
ção – é possuir o meio de evitar a redução brutal dos produtos ideológicos
aos interesses das classes que eles servem (efeito de «curto-circuito» fre-
quente na crítica «marxista») sem cair na ilusão idealista a qual consiste
em tratar as produções ideológicas como totalidades auto-suficientes
e autogeradas, passíveis de uma análise pura e puramente interna (se-
miologia)”3.
A terceira parte do trabalho pretende, assim, reconstruir um processo.
A narração assumiu-se como o instrumento ideal para analisar uma
sequência histórica cuja explicação resulta da contingência entre um
conjunto de factores. Como suporte teórico para esta opção considerá-
mos o artigo que Margaret R. Somers4 escreveu para o American Journal
of Sociology, a propósito de uma discussão teórica e metodológica que
a opôs a Edgar Kiser e Michael Hetcher5, um bom modelo de inspira-
ção. A autora defende um conjunto de princípios de investigação que
reúne sob a designação de realismo relacional.6 Procurando um percur-
so intermédio entre um dedutivismo teórico que se impõe à realidade
social e um empirismo ingénuo ao qual faltam eixos de concepção dos
fenómenos que explora, Somers defende que a explicação social se fun-
da na teorização de uma dinâmica social construída a partir da recons-
trução empírica de processos de relações. A análise causal é interpretada

3. Pierre Bourdieu,”Sobre o Poder Simbólico”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994, p. 12.
4. Margaret R. Somers, “We’re No Angels: Realism, Rational Choice, and Relationality in Social Science”, American Journal of So-
ciology , Vol. 104, n.o 3, Novembro de 1998, pp. 722-84.
5. Kiser e Hetcher escrevem um artigo no mesmo número do American Journal of Sociology. Edgar Kiser; Michael Hetcher, “The
Debate on Historical Sociology: Rational Choice Theory and its Critics”, AJS, Vol. 104, n.o 3, Novembro de 1998, pp. 785-816.
6. Em certo sentido não se afasta da expressão de Bourdieu: o real é relacional. Pierre Bourdieu, “Introdução a uma Sociologia Re-
flexiva”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994, ed. orig. 1982, p. 28.

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A Ópera do Trindade

no interior de dinâmicas e sequências temporais. Não abdicando de


eixos teóricos de interpretação, a explicação da acção tem uma origem
contextual que deve ser considerada na abordagem dos movimentos
dos actores sociais. O intricado conjunto de relações institucionais e
de posições individuais que caracterizaram o contexto das temporadas
de ópera no Trindade sugeriram uma construção narrativa. É possível,
assim, estabelecer uma relação, inerente ao objecto investigado, entre
a autonomia relativa da acção individual e as fronteiras estruturais e
conjunturais responsáveis pelos limites dessa autonomia. Procurou-se
evitar, deste modo, que os quadros teóricos violentassem parcelas do
fenómeno social estudado, que só podem ser devidamente explicadas
a partir de uma compreensão dos contornos da acção de alguns acto-
res sociais.
Esta parte do livro divide-se em dois momentos. No primeiro, propo-
mos uma série de observatórios que acumulam uma descrição geral
da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, designadamente: as
implicações culturais e políticas do Plano Geral para a Programação
Anual do Teatro da Trindade, a relação do Trindade com o São Carlos e
com o Secretariado Nacional de Informação, a caracterização do público
do Trindade, o “Caso Ruy Coelho”, a acção do Conselho Consultivo do
Teatro da Trindade, a comparação com o Grupo Experimental de Ópera
de Câmara subsidiado pela Fundação Gulbenkian e, por último, a análi-
se da condição profissional dos cantores que constituíam a base artística
da Companhia Portuguesa de Ópera. No segundo momento, acompa-
nhamos a sua evolução cronológica ao longo dos anos em que esteve
activa (1963-1975). O trabalho encerra com uma conclusão em que pro-
curamos sintetizar alguns pontos essenciais resultantes da investigação.

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Serra Formigal apresenta a Companhia Portuguesa de Ópera à imprensa em Luanda. 1966

Ópera para Trabalhadores

Em 11 Novembro de 1958, Quirino Mealha, presidente da Fundação


Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT), escreveu ao chefe de ga-
binete do ministro das Corporações e Previdência Social. Uma carta
anónima fora enviada ao secretário do ministro, apontando reparos ao re-
crutamento dos participantes nos campeonatos de futebol organizados
pela FNAT. Prendia-se esta reclamação com o facto de a FNAT aceitar
nestas competições desportivas inscrições de analfabetos menores de
21 anos. Argumentava o anónimo subscritor que as regras perfiladas pe-
las associações desportivas impediam pessoas com tais características de
participar nas provas por elas organizadas. Quirino Mealha respondeu

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A Ópera do Trindade

ao chefe de gabinete do ministro das Corporações e Previdência Social,


afirmando que esses regulamentos não se aplicavam aos campeona-
tos desportivos organizados pela FNAT. A esta explicação, adicionou o
seguinte epílogo:

Promovendo a cultura e recreio entre os trabalhadores, como elementos de evasão


de uma actividade profissional diária mais ou menos absorvente, a FNAT tem pro-
curado atingir as finalidades que lhe são apontadas por lei, através de fórmulas a
que as classes trabalhadoras se mostrem mais permeáveis. A actividade desportiva
está naquelas condições. Assim a FNAT, no intuito do melhor aproveitamento do
tempo livre dos trabalhadores, fornece aos Centros onde eles estão integrados, orga-
nização, estímulo e orientação para as actividades desportivas, entre outras. Não
recruta elementos para os jogos dos seus campeonatos, mas antes e até por impo-
sição geral legal, estimula os Centros à participação na actividade desportiva, sistema
a que mostram maior receptividade. O desporto preconizado pela FNAT, designada-
mente o futebol – a modalidade visada –, é assim, não um fim em si mesmo como
o que praticam os inscritos nas associações desportivas a que no Decreto n.o 40.964,
de 31-12-56, se faz referência, mas um meio para atingir finalidades de muito maior
valia e reflexos mais importantes na vida Nacional.1

Caracterizava-se, assim, a política geral da FNAT.


Passados 16 anos e uma mudança de regime, no dia 8 de Outubro de
1974, a ópera Madame Butterfly,2 do compositor italiano Giacomo Pucci-
ni, foi levada à cena no ginásio do Futebol Clube Barreirense. A orga-
nização da ópera foi da responsabilidade da FNAT, que, em 6 de Abril
de 1975, passou a designar-se por INATEL. A récita integrava-se na dé-
cima terceira temporada de espectáculos daquela que ficou conhecida
pelo nome de Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trindade.
A direcção da FNAT satisfazia assim uma solicitação da recentemente
empossada Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Barreiro,
que pretendia, com a participação da Companhia Portuguesa de Ópera,
abrilhantar as festas do concelho. Em carta enviada ao presidente da
Emissora Nacional, no intuito de recrutar a habitual colaboração da sua
orquestra sinfónica, o director do Teatro da Trindade e vice-presidente

1. Carta de Quirino Mealha ao chefe de gabinete do ministro das Corporações e Previdência Social, Arquivo do Ministério do Tra-
balho e Solidariedade, pasta 313.
2. As óperas referidas ao longo deste livro são nomeadas de acordo com a grafia presente em jornais, programas e outros docu-
mentos de época.

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Ópera para Trabalhadores

da FNAT, José Manuel Serra Formigal, sustentou o interesse de mais um


espectáculo que beneficiaria o “público trabalhador de uma das vilas
mais industriais do País”3. A dedicatória do espectáculo a todos os tra-
balhadores do Barreiro reforçava um objectivo inúmeras vezes repetido
nos vários contextos que envolveram, ao longo dos 13 anos da sua activi-
dade, a Companhia Portuguesa de Ópera: a divulgação do género lírico
pelas classes trabalhadoras.
A ópera foi o esteio dominante de um projecto cultural lançado pela
FNAT após ter adquirido, em 1962, o Teatro da Trindade. A década de
50 não fora uma época muito feliz para o Trindade. O problema era,
aliás, comum a grande parte dos espaços artísticos da zona do Chiado.
O Teatro Ginásio – depois de um incêndio – e o Chiado Terrasse en-
cerraram as portas, e o São Luiz diminuíra substancialmente a sua
actividade. No Trindade, as companhias teatrais de Orlando Vitorino,
Francisco Ribeiro e Couto Viana preenchiam as temporadas sem êxitos
assinaláveis, numa época em que a FNAT e a secretaria de Estado da
Informação e Turismo organizavam, no Teatro, os seus concursos de
arte dramática. Nessa mesma altura, o Monumental vivia dias de gran-
de fulgor. Pela capital registava-se o aparecimento dinâmico de peque-
nas companhias experimentais. Notava-se, então, uma deslocação do
centro da actividade artística, cada vez mais diversa, para outras partes
da cidade.
O desafio de Serra Formigal, nomeado director do Teatro da Trindade
em 1962 pelo ministro das Corporações e Previdência Social, Gonçalves
Proença, era recuperar uma já longa tradição teatral e musical, de forte
cariz popular, apanágio da história do Trindade. Quando, em 1867, o
Teatro foi inaugurado, o empresário Francisco Palha, principal respon-
sável pela sua construção, homem do teatro e de boas relações políticas,
afirmou pretender nele “apresentar, alternadamente, drama, comédia e
ópera cómica, e que, além disso, tivesse ainda um vasto salão, onde se
realizassem concertos e bailes”4. O Teatro, que o jornalista Júlio César
Machado dizia ter surgido “aos olhos do romântico público de Lisboa
como o mais moderno e afrancesado teatro da capital”, tornou-se, como

3. Carta de Serra Formigal ao presidente da Emissora Nacional, 14/8/1974, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1974.
4. Victor Pavão dos Santos, “A Trindade e o S. Luís – Grandeza e decadências de dois teatros do Chiado”, em Tomás Ribas, O Teatro
da Trindade – 125 anos de vida, Porto, Lello & Irmão, 1993, p. 13.

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A Ópera do Trindade

desejava o seu fundador, um palco teatral onde animados bailes no sa-


lão coexistiam com o grande sucesso da opereta e da zarzuela, géneros
“que tanto se implantaram no gosto do nosso público oitocentista –
quer o público janota ou popular e boémio de Lisboa, quer o público de
provincianos que vinham até à capital e para quem se impunha uma
noite no Trindade”.5
As frequentes mudanças de empresários, de companhias teatrais, e
de filosofias de espectáculo que marcaram a história do Teatro não mo-
dificaram a sua tradição popular assente no teatro musical, na revista,
na opereta e na ópera cómica, recurso várias vezes utilizado para colma-
tar alguma circunstancial menor apetência do público para um teatro
declamado mais sério. O sucesso do teatro lírico mais ligeiro no Trin-
dade deu consistência à tentativa, por iniciativa do empresário Afonso
Taveira6, de formação de uma companhia portuguesa de ópera, no já dis-
tante ano de 1908. Para a única temporada desta primeira companhia
lírica nacional, que soçobrou aos elevados custos que os espectáculos
implicavam, o empresário Afonso Taveira seleccionou um reportório
muito idêntico ao que Serra Formigal, em 1963, sob o patrocínio da FNAT,
agruparia na sua primeira temporada de espectáculos. Ambas as tem-
poradas, com 55 anos de intervalo, abriram ao som de O Barbeiro de
Sevilha e contaram ainda com a La Bohème, de Puccini, e A Serrana, do
compositor português Alfredo Keil. A vertente mais ligeira, tradicional
no teatro do Chiado, foi reforçada pela companhia de Afonso Taveira
com duas operetas: A Viúva Alegre, de Franz Lehar, e Sonho de Valsa, de
Oscar Strauss; Serra Formigal preferia optar, para a apropriadamente
intitulada “Temporada Popular de Ópera e Opereta”, pela obra de Franz
Schubert, A Canção do Amor.
Em 1925, o Teatro, depois de algumas remodelações, surgiu como
um espaço novo. As características dos espectáculos mantiveram-se,
notando-se, no entanto, um progressivo desaparecimento da opereta
em favor das revistas musicais.7 O cinema chegou ao Teatro em 1938,
e, em Novembro de 1940, estreou-se no Trindade o grupo dos Bailados

5. Ibidem, p. 13.
6. Ibidem, p. 37.
7. Como notava Tomás Ribas, “A companhia de Eva Stachino extasiava Lisboa com as suas revistas enfeitadas pelos restos dos
guarda-roupa dos espectáculos parisienses do Folies Bergères, do Casino e do Moulin Rouge.” Tomás Ribas, op. cit., p. 48.

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Ópera para Trabalhadores

Portugueses Verde Gaio, criado pelo Secretariado de Propaganda Na-


cional. Entre 1944 e 1947, Francisco Ribeiro ocupou a sala com a com-
panhia Os Comediantes de Lisboa, registando talvez o último período
dourado do Trindade antes da sua aquisição pela FNAT.
A Fundação desejava que o Trindade voltasse a ser um palco popu-
lar. A programação proposta por Serra Formigal incluía temporadas
de teatro declamado, ópera e opereta, concertos musicais, ballet, cinema,
variedades e a apresentação de agrupamentos artísticos constituídos
por trabalhadores – grupos cénicos, ranchos folclóricos, grupos corais,
bandas musicais, etc..8 De um programa ecléctico que pretendia contri-
buir para o enobrecimento da “cultura popular” destacou-se, pelo mon-
tante do investimento consagrado em meios humanos e materiais, e
pela repercussão pública que alcançou, a Temporada Popular de Ópera
e Opereta do Teatro da Trindade. Em 27 de Abril de 1963, Serra Formi-
gal reuniu-se com a imprensa para transmitir a máxima que tornava
públicos as finalidades e pressupostos que estiveram na origem da
sua iniciativa: fazer ópera de portugueses para portugueses.
Num panorama operático há muito dominado pelo Teatro Nacional
de São Carlos, o Coliseu passara, a partir de 1959, a apresentar récitas
populares dos espectáculos que as companhias estrangeiras traziam ao
Teatro Nacional de Ópera. O monopólio do São Carlos vinha sendo con-
testado. O editorial de O Século9 de 17 de Março de 1959, intitulado
“Ópera só para alguns”10, defendia o regresso do género lírico ao Coli-
seu. O artigo salientava o direito de os povos acederem a uma educação
artística:

As ansiedades de arte e de beleza não constituem privilégio de quem possui muita ou


regular ilustração ou recursos materiais suficientes. Vem da sensibilidade dos seres,
que em todas as classes se encontram bem dotados (…) O dinheiro que se gasta
em S. Carlos é de todos: dos ricos, dos remediados e dos pobres. Não pode servir
só para recreio e cultura de alguns.11

8. José Serra Formigal: “Plano Geral Para Uma Programação Anual do Teatro da Trindade”, p. 1, Acervo Serra Formigal.
9. Os editoriais de O Século vinham, nas mais diversas áreas da vida pública, demonstrando um certo sentido crítico em relação
à governação.
10. “Ópera só para alguns”, O Século, 17/3/1959, p. 1.
11. Ibidem. Serra Formigal sugeriu, na entrevista que nos concedeu, que foi pela sua acção junto do ministro Gonçalves Proen-
ça que se patrocinaram as récitas populares no Coliseu.

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A Ópera do Trindade

Na temporada de 1962/63, o São Carlos iniciou os seus espectáculos


com duas óperas – Telephone, de Gian Carlo Menotti, e L’Histoire du Sol-
dat, de Igor Stravinsky – apresentadas pelo Grupo Experimental de
Ópera de Câmara da Fundação Calouste Gulbenkian. A temporada ofi-
cial do São Carlos estava dividida em temporadas nacionais; abriu com
as óperas alemãs, primeiro o Tannhäuser de Richard Wagner, depois o
Orfeo e Euridice, de Christoph Gluck, e, finalmente, Arabella, de Richard
Strauss. O compositor português Ruy Coelho, presença assídua no
“São Carlos do Estado Novo”, ocupou o lugar destinado à ópera nacio-
nal com a sua obra Tá-Mar; espectáculo que antecedeu a temporada
francesa, preenchida pela Manon, de Jules Emile Massenet, e Ariane et
Barbe-Bleue, de Paul Dukas. O São Carlos concluiu as apresentações
com a temporada italiana: As Bodas de Fígaro, de Wolfgang Amadeus
Mozart, La Bohème, de Puccini, e O Trovador, de Giuseppe Verdi.
Todas estas óperas, com excepção da portuguesa, foram representadas
por companhias estrangeiras, onde pontuavam grandes vedetas do can-
to lírico. Aos cantores portugueses foram entregues, como era regra,
alguns papéis secundários nas apresentações das conhecidas compa-
nhias internacionais. A predominância do elemento vocal sobre a di-
mensão teatral, no São Carlos, suscitava críticas frequentes. Sobre a
temporada desse ano, o crítico José Blanc de Portugal afirmou que um
“elenco razoável e individualidades excepcionais não escondem que
falta no São Carlos, uma visão musicoteatral arejada, capaz de remoçar
velharias cénicas e pobrezas teatrais que, dia-a-dia, se tornam intolerá-
veis num teatro nacional de ópera a que não compete – naturalmente
– ser revolucionário mas que deve acompanhar os tempos, e sobretu-
do criar os elementos nacionais capazes de dar vida própria, nacional,
à causa que serve.”12
O crítico João de Freitas Branco propôs, no final de uma temporada
“que manteve a orientação definida há anos”, três pontos de mudança
na programação do São Carlos: 1) renovação de reportórios, sugerindo
para o efeito algumas obras contemporâneas: Peter Grimes, de Benjamin
Britten, The Rake’s Progress, de Igor Stravinsky, ou Lulu, de Alban Berg,
óperas antigas portuguesas e encomendas a compositores idóneos

12. José Blanc de Portugal, Rumo, n.o 73, 3/63, p. 215.

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Ópera para Trabalhadores

contemporâneos; 2) valorização dos intérpretes portugueses; 3) reno-


vação da escolha dos maestros e encenadores. Termina afirmando que
“quanto a cantores estrangeiros, achamos que não será necessário ir
acima do elevado nível que se tem verificado”13.
O Festival Gulbenkian, que, em 1963, teve a sua sétima edição, tor-
nou-se, como relatava o Diário da Manhã14 em manchete, o mais im-
portante acontecimento artístico-musical de todo o país. João de
Freitas Branco considerava, porém, que “o maior problema da cultura
musical portuguesa não consiste, hoje, na falta de produção, mas sim
na de consumo. É preciso criar um outro e muito mais extenso público
afecto à arte musical de nível superior, para que esta possa exercer a sua
preciosa acção de educadora de povos. A ópera é um dos melhores veí-
culos do gosto pela arte”15. Num contexto com estas características, ha-
via que “apoiar, com entusiasmo, a iniciativa do Teatro da Trindade”16.
Para criar as condições necessárias para popularizar a ópera, Serra
Formigal estabeleceu que os bilhetes para as óperas no Trindade cus-
tariam cinco escudos, quantia modesta para a época. A natureza dos
espectáculos do Trindade perseguiria, em conformidade com “as fór-
mulas a que as classes trabalhadoras se mostrassem mais permeá-
veis”, a mesma intenção popularizante: “O pensamento que presidiu
à escolha do reportório teve em vista o carácter popular da temporada
pelo que se escolheram obras consagradas pela generalidade do públi-
co e facilmente apreensíveis sob o ponto de vista musical.”17
O ambiente agradável, recreativo e evasivo, de alegre convivência
humana que se pretendia criar no Trindade era bem diferente do efeito
que João de Freitas Branco notou em algumas pessoas que assistiram,
alguns meses antes da temporada da FNAT se ter iniciado, a um con-
certo do compositor alemão Karl-Heinz Stockhausen: “Alguém opinou
que [as obras de Stockhausen] estariam impregnadas dum subjectivismo
doentio, mórbido, destrutivo de uma alegria de viver que bem neces-
sário é fomentar nesta época em que nos encontramos.”18 A questão

13. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 528.
14. Diário da Manhã, 17/5/1963, p. 3.
15. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 526.
16. João de Freitas Branco, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, n.os 20, 21 e 22, p. 526.
17. “Alguns elementos sobre a ‘Temporada Popular de Ópera e Opereta do Teatro da Trindade’ referidos pelo director do teatro à impren-
sa na reunião efectuada em 27/4/1963”, em Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1963.
18. João de Freitas Branco, Arte Musical, Novembro de 1962, n.o 18, p. 611.

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A Ópera do Trindade

subjacente a esta impressão era a «desumanização» da música con-


temporânea. A autonomização da linguagem dos campos artísticos
desenvolvia-se, quase sempre, contra uma sensibilidade geral. A ópera
no Trindade queria, pelo contrário, abraçar essa sensibilidade.
O anúncio colocado na terceira página do Diário de Notícias19 na vés-
pera da estreia do Barbeiro de Sevilha era modesto e estava entalado entre
o filme português revelação do ano, Pássaro de Asas Cortadas, de Artur
Ramos, que passava no cinema Roma, e a tourada no Campo Pequeno.
No pequeno anúncio ao Trindade, que com o tempo aumentaria a sua
dimensão, deixava-se explícito que a récita do dia seguinte seria dedica-
da aos beneficiários da FNAT, sócios dos Sindicatos Nacionais, dos CAT
(Centros Alegria no Trabalho) e dos CRP (Centros de Recreio Popular).
No próprio dia, as sobras vendiam-se ao público em geral. Em nota ime-
diatamente colocada a seguir ao nome do teatro surgia uma frase in-
formando da colaboração do Teatro Nacional de São Carlos. A plateia
custava, como prometido, 5$00. O preço do music-hall do Monumental
variava entre 5$00 e 22$50, enquanto a temporada de reprises cinema-
tográficas do Olímpia, a preços populares, implicava 4$00 para a pla-
teia e 6$00 para o balcão.20 Por essa altura, um bilhete para o Teatro
Nacional de São Carlos custava 50$00.
A encabeçar o elenco encontrava-se a cantora portuguesa, com car-
reira a decorrer em Itália, Fernanda Machado, que Serra Formigal con-
seguiu contratar depois de difíceis negociações. Do restante elenco
faziam parte alguns dos cantores que mais se tinham destacado nos
espectáculos do São Carlos ou no trabalho efectuado no Grupo Expe-
rimental de Ópera de Câmara: Maria Teresa de Almeida, Hugo Casais,
Luís França, Armando Guerreiro, Manuel Leitão, Álvaro Malta, Costa e
Silva e Helder Vaz. O maestro Silva Pereira dirigiu a Sinfónica de Lisboa.
Na estreia, estiveram presentes o Presidente da República, o minis-
tro da Presidência, o ministro das Corporações e Previdência Social, o
presidente do Instituto de Alta Cultura e o presidente da Fundação
Gulbenkian. Em O Século, o maestro Álvaro Cassuto afirmou que:

19. Diário de Notícias, 5/5/1963, p. 3.


20. Ibidem.

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Ópera para Trabalhadores

Na verdade trata-se de um acontecimento muito invulgar: a realização de uma tempo-


rada de ópera só com meios nacionais triplica a solução de uma série de problemas e
de um esforço na coordenação dos vários elementos que colaboram, os quais só difi-
cilmente se podem vencer (…) A FNAT oferece, assim, aos seus beneficiários, uma sé-
rie de espectáculos cujo interesse não precisa de ser esclarecido (…) se a iniciativa da
FNAT não esmorecer – como tantas outras que nascem com grande entusiasmo –
surgirá no nosso meio um público novo, uma série de pessoas para as quais a palavra
ópera significa algo mais e algo diferente de um mito ou de um aborrecimento.21

O Diário de Lisboa22 salientou que a temporada popular do Trindade de-


correria apenas com artistas portugueses, “todos ou quase todos os que
entre nós podem desempenhar a função com um mínimo de dignida-
de”. A importância da iniciativa, “um velho sonho dos artistas portugue-
ses, músicos, compositores, cantores e todos os que de um modo geral se
encontram ligados à música, a criação de uma Companhia Portuguesa de
Ópera”, secundarizava “as fífias e as notas de gosto menos requintado”
que não “fosse possível evitar nos primeiros tempos”. Considerando o
Trindade “um desdobramento mais modesto e com responsabilidade di-
ferente” do São Carlos, o crítico do Diário de Notícias afirmou que a pre-
sença massiça do público não se devia aos “bilhetes a quinze tostões e
cinco escudos, senão no de ter ali um espectáculo erguido com dignida-
de e entusiasmo”.
O compositor português Joly Braga Santos resumiu o acontecimen-
to na sua crónica para o Diário da Manhã23: “Acaba de se abrir uma
nova página na vida artística e social portuguesa, página de profundo
significado, principalmente pelas repercussões que pode ter no fu-
turo, no duplo aspecto dos artistas e do público.” Adiantou, porém:
“Tudo isto não quer, evidentemente, dizer que o espectáculo tenha sido
impecável. Mas pontos débeis existem na grande maioria das récitas
de ópera no mundo inteiro.”
Entre 1963 e 1975, a Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trin-
dade prosseguiu uma actividade contínua. A representação da La Bohème,
de Puccini, em Novembro de 1975, pôs termo a uma iniciativa cujos con-
tornos políticos e culturais se tentarão clarificar ao longo deste trabalho.

21. Álvaro Cassuto, O Século, de 7/5/1963, p. 12.


22. J.L., Diário de Lisboa, de 7/5/1963, p. 3.
23. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, de 13/5/1963, p. 4.

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1.
Ideologia, Políticas Sociais
e Tempos Livres

A Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho foi criada em 1935,


nove anos depois do golpe militar que terminou com a Primeira Re-
pública, e dois após a aprovação da Constituição que emoldurou, ins-
titucional e legislativamente, o regime do Estado Novo. O seu nome é
muito similar ao que designava a organização dos tempos livres alemã,
Força pela Alegria (Kraft Durch Freude), fundada, em 1933, pelo regime
nacional-socialista acabado de chegar ao poder. Mais antiga era a italia-
na Opera Nazionale Dopolavoro que, desde 1925, actuava como instru-
mento da política corporativa do governo de Mussolini. Embora seja
indiscutível a proximidade da FNAT com as organizações de tempos li-
vres de regimes políticos semelhantes ao português, consideramos que
o prolongamento temporal da sua evolução política leva a que determi-
nada consanguinidade doutrinária seja analiticamente reenquadrada.
A investigação sobre as temporadas de ópera que a FNAT preparou
para o Teatro da Trindade, entre 1963 e 1975 – matéria central desta pes-
quisa –, obrigou a repensar a história da Fundação e a questionar o
facto de uma organização corporativa que nasceu à imagem de organi-
zações análogas criadas no fascismo italiano e no nazismo alemão ter
ultrapassado em tempo de vida, antes da sua transformação no INATEL,
os limites do regime do Estado Novo. O pioneiro trabalho de José Car-
los Valente sobre os primeiros 23 anos da FNAT1 (1935-1958) insiste,
precisamente, na natureza fascista da instituição:

(…) a criação da FNAT por iniciativa governamental – em 13 de Junho de 1935 – faz


parte de um plano sistemático de inculcação de valores nos principais sectores da vida

1. José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria no Trabalho – Uma História Política da FNAT, Edições Colibri-INATEL, Lisboa, 1999.

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António Oliveira Salazar, João Gonçalves Proença e Maria José Salavisa. Visita de Salazar ao Teatro da
Trindade depois das obras de renovação, dirigidas pelo arquitecto Miguel Evaristo de Lima Pinto e cuja
parte de decoração coube a Maria José Salavisa, 1967

social, um regime “tendencialmente totalitário” (Fernando Rosas), através de instru-


mentos organizativos que consagram a pretendida unicidade político-ideológica: além
da PVDE e da Censura, a União Nacional e o Secretariado da Propaganda Nacional, as
regras de admissão de funcionários públicos, a organização corporativa, a Educação
Nacional de Carneiro Pacheco, a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, a Orga-
nização Defesa da Família, a Obra das Mães pela Educação Nacional/MP Feminina.2

Em 25 de Abril de 1974, o regime do Estado Novo foi derrubado e todas


estas instituições, que Valente vinculou à FNAT no interior do mesmo
projecto político e ideológico, e que tinham quase todas, entretanto,
sido rebaptizadas e reorganizadas3, foram imediatamente extintas. A

2. Idem, pp. 41-42.


3. Especialmente quando da chamada “Primavera Marcelista”.

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A Ópera do Trindade

FNAT, pelo contrário, conservou o mesmo nome até 6 de Abril de 1975.


O estudo de José Carlos Valente, que vem colmatar uma certa periferi-
zação a que a FNAT, como objecto de análise histórica4, tinha sido vota-
da, atribui a tardia intervenção das forças de Abril na organização estatal
dos tempos livres ao facto de a FNAT, para os opositores ao Estado Novo,
ser uma instituição “politicamente periférica”5. A explicação adiantada
para a circunstância de uma instituição que, nos seus primeiros anos,
caminhava lado a lado com os tentáculos mais sinistros do Estado Novo
ser praticamente ignorada após a mudança de regime, prende-se com
as próprias alterações políticas e institucionais que caracterizaram o
seu desenvolvimento: “… um estudo mais atento da evolução do orga-
nismo, permite verificar que essas características essenciais que o regi-
me democrático deixará subsistir nos primeiros anos pós-25 de Abril
– e mesmo até aos dias de hoje – são fixadas apenas no final da déca-
da de cinquenta.”6 O ano de 1958 é considerado por José Carlos Valente
o limite cronológico que distingue uma determinada FNAT, que, “cor-
respondente às etapas dominadas por uma componente ideológica
bastante acentuada”7, de uma outra que acabou por se tornar numa
“grande infraestrutura de prestação de serviços, realçada como instru-
mento de concretização da política social do Estado Novo.”8 Transferida
para o mundo descolorido da política social do regime, a FNAT, como
objecto de análise científica, parece tornar-se um anacronismo político.
A organização teria abandonado o padrão repressivo, abertamente dou-
trinário e explicitamente ideológico que configurava a actividade de
outros tentáculos operacionais do projecto autoritário do Estado Novo.
A compreensão do desenvolvimento histórico da actividade da FNAT
exige, porém, que o alcance dos conceitos de política e ideologia não se
limite a um estereótipo de dominação autoritária. Durante o Estado Novo,
foi exercida também uma dominação ideológica particular, de contornos
modernos; ideologia de traços mais difusos, mas de eficácia consistente

4. Os estudos sobre o sistema corporativo português têm atribuído uma importância marginal à questão dos lazeres. Ver Manuel
de Lucena, A Evolução do Sistema Corporativo Português, vol. I, O Salazarismo, Perspectivas e Realidades, Lisboa, 1976; Fátima Pa-
triarca, A Questão Social no Salazarismo, 1930-1947, vol. 1, INCM, Lisboa, 1995; Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à
Democracia, ICS, Lisboa, 1999.
5. José Carlos Valente, op. cit., p. 10.
6. José Carlos Valente, op. cit., p. 10.
7. Ibidem, p. 9.
8. Ibidem, p. 208.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

ao nível das práticas sociais, que corre o risco de ser afastada, ou peri-
ferizada, da análise histórica, se permanecer a opção de considerar a
política social como um objecto a-ideológico, ou debilmente ideológico.
No universo da política social, ao modo como a ideologia formata o pensa-
mento, sobrepõe-se o interesse em perceber a sua eficácia em sociali-
zar as relações concretas onde esse pensamento é produzido. Implica,
portanto, que as formas de mediação instrumental entre doutrinas e
práticas sejam explicitadas.9 A esfera cultural, relevando as vivências e
as socializações quotidianas, é um elemento central na interpretação
dos processos de dominação.
Neste quadro de análise, o conceito gramsciano de hegemonia cultu-
ral possibilita analisar, para além dos quadros institucionais repressores
e autoritários, a subsistência de determinados padrões de organização
social.10 A hegemonia cultural, legitimadora de uma ordem social, resul-
tava de um conjunto de normas e valores socialmente prevalecentes,
transmitidos por diversos mecanismos de socialização. A incorporação
de “formas de ser e de agir” reflectia a desigualdade no que respeita às
relações de poder. Este tipo de controlo social impunha-se como natural.
O conceito de dominação weberiano11 revela o modo como as práticas
quotidianas, envolvidas por relações de poder desiguais, legitimam elas
próprias os grandes complexos de dominação social, transformando o
poder em autoridade, ou seja, em dominação consentida e reconhecida
pelos actores sociais. A descrição, pelo mesmo autor, dos mecanismos
de dominação que envolvem as sociedades modernas remetia para a
compreensão dos processos macrossociais que enformavam as práticas
quotidianas. A dominação moderna, dita racional-legal, originava uma
burocratização das relações sociais, organizada por uma divisão social
de trabalho progressivamente complexa. A alteração, nos países que li-
deravam o processo de modernização, dos grandes eixos organizadores
da vida quotidiana obrigou ao estudo das melhores formas de controlar

9. Como afirma Juan Linz, a propósito do regime franquista em Espanha: “Podemos ficar seriamente equivocados se estudarmos
determinados regimes através das suas Constituições, leis, discursos ou textos de ideólogos desconhecidos e ignorados sem ques-
tionar a forma como tudo isto se disseminou na realidade social.” Juan Linz, “An Authoritarian Regime: Spain”, in Allardt, E. e Lit-
tunen, Y., ed., Cleavages, Ideologies, and Party System, The Academic Bookstore Helsinki, 1964, p. 294, tradução do autor.
10. Sobre o conceito de “hegemonia cultural”, ver Antonio Gramsci, Obras Escolhidas, vol. I, Estampa, Lisboa, 1974, pp. 384-387;
Kate Crehan, Gramsci, Cultura e Antropologia, Campo da Comunicação, Lisboa, 2004, ed. orig. 2002, pp.122-133.
11. Max Weber, Economy and Society, 3 vols. Totowa, N.J., Bedminster Press, 1968, pp. 215-223.

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A Ópera do Trindade

os efeitos perversos destas transformações, criando um acervo de co-


nhecimento, disposto em doutrina, que procurava manipular os efeitos
dos mecanismos de estruturação social. A hegemonia cultural resulta-
va de uma acção ideológica.
A avaliação deste processo deve ser efectuada à luz de uma sociolo-
gia histórica que reconstrua o modo como o conhecimento prático é
ideologicamente condicionado, à luz de uma dominação que não sub-
siste, em grande medida, pela “força da palavra”, mas pela capacidade
de socializar as práticas quotidianas. Os termos desta socialização, incor-
poração de sentidos da acção e esquemas de compreensão e interpre-
tação do quotidiano, na exposição de Bourdieu, envolve uma ideologia
“despolitizada”, no âmbito da palavra, e politizada, no respeitante aos
mecanismos quotidianos de formação da conduta. São as práticas so-
ciais que fundamentam as categorias de percepção do mundo social.12
Michael Mann, na sua abordagem histórica ao desenvolvimento dos
Estados-Nação, definiu os critérios que possibilitam estabelecer uma
aproximação ao contexto da relação entre iniciativas centrais e práticas
quotidianas. Distinguindo poder despótico de poder infraestrutural13,
Mann assinalou que a posse de um contundente poder coercivo con-
centrado em elites e assente num conjunto de instituições totalitárias
e discricionárias, cujos mecanismos de propaganda as legitimam em
programas de acção, discursos e palavras de ordem, não implica uma
eficácia na socialização das práticas quotidianas dos actores sociais. O
autor define “poder infraestrutural” como “a capacidade do Estado pe-
netrar efectivamente na sociedade civil e implementar a nível logístico
as suas decisões políticas”14 ao progressivo controlo que o Estado, no
papel de mediador e regulador das práticas sociais, consegue exercer,
a nível infraestrutural, sobre a vida dos seus cidadãos. Ao invés de

12. Como afirma Bourdieu: “Se as relações de força objectiva tendem a reproduzir-se nas visões do mundo social que contri-
buem para a permanência dessas, é porque os princípios estruturantes da visão do mundo radicam nas estruturas objectivas
do mundo social e porque as relações de força estão sempre presentes nas consciências em forma de categorias de percep-
ção dessas relações.” Pierre Bourdieu, “Espaço Social e Génese de Classes”, em O Poder Simbólico, Difel, Linda-a-Velha, 1994,
ed. orig. 1984, p. 142.
13. Michael Mann, “The Autonomous Power of the state: Its Origins, Mechanisms and Results”, em States in History, Stuart Hall
ed., Basil Blackwell, New York, 1997, pp. 109-136.
14. Ibidem, p. 132, fragmento traduzido pelo autor. Mann aponta quatro parâmetros que reflectem o poder infraestrutural do Es-
tado: a divisão do trabalho no interior da organização das actividades estatais; a literacia, que permite a transmissão de conheci-
mentos, regras e ordens; os mecanismos económicos que permitam a troca de mercadorias; a criação de estruturas que
possibilitem uma rápida circulação de pessoas e bens. Ibidem, p. 117.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

observada a partir de uma lógica de consciencialização de determinados


princípios da doutrina de um regime, os limites da ideologia são ava-
liados pela eficácia que os processos sociais regulados politicamente
revelam, no aspecto de socializar os comportamentos quotidianos de
determinados universos sociais.
No estudo das funções ideológicas do Estado, o conceito de política
social deve ser recuperado para um primeiro plano de análise. Embora
seja possível vislumbrar, pelo menos a partir do século x vi15, a existên-
cia de medidas sociais centralizadas com o objectivo de regular a vida
quotidiana e as relações de mercado, cabe sem dúvida às transforma-
ções estruturais que atravessaram o século xix a responsabilidade de
um incremento sistemático e abrangente de políticas sociais estatais.
Produzidas por aparelhos institucionais servidores de sistemas políticos
diversos, as políticas sociais respondem, no fundamental, aos contor-
nos de uma dinâmica estrutural, ocidental e europeia, que reproduz, em
todas as esferas do quotidiano, o progressivo desenvolvimento de um
modelo sócio-económico e cultural.
A regulação realizada pelas políticas sociais actuava essencialmente
em dois tipos de circunstâncias distintos: as crises do sistema econó-
mico e os momentos em que uma expansão resultava em significativas
alterações estruturais.16 Mediadas pelas características políticas ineren-
tes aos Estados que as aplicavam, as medidas de política social procu-
ravam, num ambiente adverso, impedir uma politização da sociedade
que pudesse desafiar a ordem dominante. Incentivavam, deste modo,
a uma despolitização. O termo “despolitização” pode tornar-se equívo-
co, sugerindo a noção errada de que a sociedade estava já politizada no
sentido de os indivíduos possuírem, em larga escala, o que poderíamos
entender como uma consciência da sua posição de classe ou os meios
de acção política organizada para a defesa dos seus interesses de classe.
Consideramos, de forma mais exacta, que este exercício de despolitiza-
ção actuava sobre as condições de socialização que proporcionariam o

15. Frances Fox Piven e Richard A. Cloward referem os exemplos das leis contra os pedintes que acompanharam, nalgumas ci-
dades europeias, a evolução do feudalismo, a actuação de Lutero nos municípios alemães ou o caso paradigmático de Lyon, onde
a intervenção social da Igreja foi substituída pela administração central. Frances Fox Piven e Richard A. Cloward, Regulating the
Poor – The Functions of Public Welfare, Vintage Books, New York, 1993, pp. 8-13.
16. Idem, pp. 5-8.

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A Ópera do Trindade

nascimento desta representação do combate classista. Estamos no terreno


da guerrilha cultural, das lutas entre a hegemonia e a contra-hegemonia.
A acção política sobre os direitos sociais, aqueles que mais próximos se
encontram da vida quotidiana, tornou-se num importante mecanismo
ideológico. Não raras vezes, a discussão acerca da natureza dos regimes
centra-se em excesso numa análise formal baseada na estrutura institu-
cional que enquadra os direitos civis e políticos, normalmente aqueles
que mais se aproximam dos interesses quotidianos de quem analisa os
acontecimentos históricos. A dissimulação da hierarquia profissional, a
diversificação dos estilos de vida, dos hábitos culturais, descentrava da
política do quotidiano, especialmente da sua realidade económica, as de-
sigualdades que outros lutavam por tornar evidentes. O processo de des-
politização, assentando numa dinâmica de democratização traduzida no
acesso a bens e serviços, contribuía para legitimar a reprodução da hie-
rarquia dos indivíduos e grupos no espaço social. No campo do lazer, a
emergência de novas práticas, alterando morfologicamente o campo do
consumo cultural, mantinha quase incólume uma relação hierárquica.17

>>>>>>>>>>>

Em Portugal, os métodos de acção das políticas sociais eram conheci-


dos. António da Silva Leal, no ano lectivo de 1969/70, ministrou a
cadeira de Política Social Portuguesa no Instituto de Estudos Sociais.
O manual da disciplina revela as tarefas de um saber multidiscipli-
nar que devia obedecer aos propósitos utilitários do Estado. Segundo
Silva Leal, a política social teria tido a sua origem académica na Eco-
nomia Social, disciplina que tratava do desenvolvimento económico
e social, cuja introdução, em Portugal, fora feita na Universidade de
Coimbra, em 1911.18 Sobre as tarefas específicas da Economia Social,

17. Evitando juízos de valor sobre a substância das diversas práticas culturais, é possível afirmar que a exclusividade no consumo
de certos bens culturais implica uma exclusão. As dimensões desta exclusão podem ser determinadas na observação da capaci-
dade (não nos referimos apenas às capacidades objectivas mas, fundamentalmente, às que resultam de desigualdades da incor-
poração de competências) de uns grupos consumirem os bens culturais e de lazer a que outros grupos acedem.
18. Disciplina que teria as suas origens no novo liberalismo oitocentista, desenvolvido no âmbito da institucionalização acadé-
mica de disciplinas como a Economia, a Ciência Política e a Economia Política, e pelo trabalho de figuras eminentes do pensa-
mento social e económico como John Stuart Mill e, mais tarde, Alfred Marshall. Ira Katznelson, “Knowledge about What? Policy
Intellectuals and the New Liberalism”, in Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer (eds.), States, Social Knowledge, and the Origins
of Modern Social Policies, Princeton University Press, New Jersey, 1996, pp. 17-47.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

o autor cita Armindo Monteiro19, professor do referido curso, que, em


1923, afirmou:

(…) isolamos os assalariados – a classe mais desamparada e mais numerosa – e,


pelo aproveitamento de todas as possibilidades, procuramos conquistar para eles a
maior soma de vantagens materiais. Esse aproveitamento exige uma análise preli-
minar. Dela se encarregou a Economia Social – que é assim, segundo o nosso modo
de ver, o estudo das condições de vida dos assalariados e dos melhoramentos de
que eles são susceptíveis.20

De acordo com Silva Leal, o exercício moderno da política social, que


estava, na sua opinião, bastante debilitado em Portugal, não seria fun-
ção da ciência política, que se “ocupa fundamentalmente do poder
político e das suas formas”, mas, especialmente “da história, da socio-
logia, da economia e do direito”21, disciplinas às quais o autor atribuía,
no âmbito da política social, uma vocação prática. Para Silva Leal, o
conceito de “política social” caracterizava-se pela “acção do Estado que
consiste na definição e na prossecução das condições gerais do bem-
estar social”22, dirigindo-se às “camadas economicamente mais débeis”23,
especialmente pela “adaptação recíproca do indivíduo e o seu meio
social”24. A política social integrava-se na função política, dimensão
constituída “pelas opções primárias ou fundamentais, através das quais
o Estado define os ideais colectivos e toma posição perante os valores
ou as exigências que procuram configurar a vida colectiva.”25 Silva Leal
afirmava que a política social é um saber que tem por objecto uma
acção:

Existem evidentemente estreitas ligações entre a política como acção e a política


como saber. A acção política constitui o objecto de um saber ou de um conhecimento,
que, por isso mesmo, se dizem políticos. No entanto, o que tem levado os homens
a reflectirem sobre a política não é uma curiosidade puramente intelectual, mas as

19. Armindo Monteiro destacar-se-ia fundamentalmente como ministro das Colónias, cargo para o qual foi designado em 1931.
20. Armindo Monteiro, Ensaio de um Curso de Economia Política, I, Coimbra Editora, Coimbra, 1923, p. 85, em António da Silva
Leal, Apontamentos das Lições proferidas pelo Dr. António da Silva Leal aos alunos do 3.o ano, Lisboa, 1969/70, p. 38.
21. António da Silva Leal, op. cit., p. 43.
22. Ibidem, p. 7. O autor remete ao século xix a origem do conceito, provavelmente aos economistas alemães liderados por Gus-
tavo Schmoller, que ficaram conhecidos por socialistas catedráticos, op. cit., p. 8.
23. Ibidem, p. 9.
24. Ibidem, p. 9.
25. Ibidem, p. 13.

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exigências da própria vida colectiva, os problemas de uma acção comum que se le-
vantam em cada dia da vida real.26 A política social, porque animada “de uma preo-
cupação de eficiência” deve assentar sobre um conhecimento tanto quanto possível
rigoroso das condições de facto que configuram a vida colectiva.27

A relação do conhecimento28 com a política social, especialmente


quando as transformações quotidianas obrigaram a intensificar a regu-
lação com políticas concretas, envolveu intervenções em sectores como
os lazeres, a educação29 ou a habitação30. A tentativa de satisfação das
aspirações de grupos sociais que se viam cometidos, devido à dinâmica
estrutural da sociedade portuguesa, num processo de mobilidade ascen-
dente foi uma tarefa colocada aos instrumentos da política social, dado
que a política económica não compensava, a nível salarial, o factor traba-
lho.31 A alteração que o desenvolvimento económico produziu nos
quadros de referência quotidianos modificou as representações, as as-
pirações, os desejos e, no quadro de uma sociedade mais fluída, onde
é mais plausível o movimento, a dinâmica das frustrações, o potencial
do conflito e a possibilidade da anomia.32
Os parâmetros ideológicos da FNAT, como instrumento da política
social, não podem ser apartados dos objectivos práticos inerentes a esta
produção de conhecimento sobre a realidade social. O principal critério
mobilizado para a compreensão da eficácia ideológica da FNAT é, sem

26. Ibidem, pp. 30-31.


27. Ibidem, pp. 32-33.
28. A este propósito é importante observar o impressionante inventário, realizado pela revista Análise Social, em 1965, onde se
arrolam os organismos e instituições que à data tratavam de problemas económicos e sociais. “Investigação Social em Portugal
– organismos e instituições”, Análise Social n.o 9-10, vol. III, 1.o Semestre, 1965.
29. No caso da educação, realce-se o estudo de Sérgio Grácio sobre a reforma do ensino técnico de 1948. O autor utiliza o ter-
mo “tecnologia social” para caracterizar o modo como o governo, utilizando o sistema educativo, procurou antecipadamente
regular as expectativas de grupos sociais que poderiam tornar-se problemáticos perante um incremento industrial em prepa-
ração. Sérgio Grácio, Política Educativa como Tecnologia Social – As reformas do Ensino Técnico de 1948 e 1983, Livros Horizonte,
Lisboa, 1986.
30. No que diz respeito à habitação social, Luís Baptista relata o modo como o Estado Novo foi reinventando a habitação social,
consoante os problemas que as transformações do país iam colocando a quem tinha a responsabilidade de pensar uma política
social de consequências primordiais. Neste sentido, o autor refere que, a partir da década de 50, vingou uma ideologia prática da
técnica assente num planeamento que visava resolver os problema que a massificação das cidades, neste caso de Lisboa, ia colo-
cando à ordem social. Luís V. Baptista, Cidade e Habitação Social, Celta, Oeiras, 1999.
31. Eduardo de Freitas demonstra o incremento da polarização social em Portugal entre 1930 e 1970. A percentagem de
assalariados no total da população activa passou de 48,1%, em 1930, para 74,7%, em 1970. Os sectores industrial e dos
serviços cresceram significativamente, em especial as empresas de maior dimensão, o que significou uma redução no
número de patrões. Eduardo de Freitas, “Polarização das Relações Sociais em Portugal”, Análise Social, Vol. X, n.o 39, 1973,
pp. 496-504.
32. A questão é exemplarmente tratada por Raymond Boudon, “La Logique de la Frustration Relative”, em Effets Pervers et Ordre
Social, Quadrige/PUF, Paris, 1993, pp. 131-155. Adérito Sedas Nunes, no artigo intitulado “Portugal: Sociedade Dualista em Evo-
lução”, caracteriza várias das cambiantes deste processo. Análise Social, vol. II, n.o 7-8, 1964, pp. 407-462.

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dúvida, o modo como a organização, ela própria agente de uma domina-


ção burocrática e racional, conseguiu penetrar e enformar o quotidiano
dos grupos sociais envolvidos nas suas actividades. É na vida das popu-
lações, nos seus movimentos e no modo como estes reflectem a incorpo-
ração de determinados sentidos da acção, que se vislumbram os efeitos
das políticas sociais. Para compreender o quadro de acção da FNAT e as
condições da sua eficácia, é indispensável ter como princípio de análise
os grandes eixos de estruturação da vida quotidiana que determinaram
as continuidades e as transformações ocorridas em Portugal, durante
grande parte do século passado. É em relação a estes elementos, cuja ar-
ticulação com o desenvolvimento da instituição iremos explorar mais
adiante, que as etapas de evolução da FNAT devem ser pensadas e de-
finidas.
Foi quando se tornou um instrumento operacional da política social
do regime, nomeadamente a partir de meados da década de 50, que a
FNAT, nos parcos limites da modernização portuguesa, conseguiu de-
senvolver os seus princípios de acção ideológica, algo que, apesar do
“som e da fúria” doutrinal dos primeiros anos, nunca conseguira an-
tes alcançar. Não atribuindo à FNAT qualquer centralidade na explicação
dos processos políticos em Portugal que, na realidade, não possui, o
seu exemplo é indicador de algumas tendências inerentes a processos
sociais mais vastos. Neste sentido, as palavras de Juan Linz, referentes
ao caso espanhol, parecem adequadas ao regime português: “Os siste-
mas autoritários – mesmo aqueles aos quais podemos chamar reac-
cionários – são modernizadores no sentido em que representam uma
descontinuidade com a tradição, introduzindo critérios de eficiência e
racionalidade…”33
Gonçalves Proença, ministro das Corporações e Previdência Social
entre 1961 e 1970, resumiu num discurso o âmbito da actuação ideo-
lógica de uma instituição como a FNAT:

A nossa é, por definição, uma luta pela paz e pelo entendimento entre os homens
que só por si quase ficará manchada quando, para triunfar, tenha de recorrer à força.
Sob tal aspecto, e sem exagero, bem se poderá dizer que a nossa vitória será tanto

33. Juan Linz, op. cit, p. 321. Fragmento traduzido pelo autor.

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maior quanto mais despercebida passar aos olhos dos homens e naturalmente for
aceite por estes sem constrangimentos ou coacções, mas por simples e natural ade-
são do seu espírito e da sua vontade livre. É o paradoxo da vitória que, para ser nossa,
tem de o ser também daqueles sobre quem é alcançada, sob a pena de o não ser de
nenhum.34

As diversas considerações atrás formuladas conduzem a uma abor-


dagem da evolução da FNAT que remete para as origens modernas do
lazer massificado e do contexto sócio-económico das políticas sociais de
enquadramento, levadas a cabo pelos Estados ocidentais que lideravam
o processo de modernização. Seguir-se-á uma breve análise das organiza-
ções de tempos livres de regimes semelhantes ao Estado Novo. A breve
referência aos casos alemão e italiano tem como intuito tentar descor-
tinar os pontos de contacto e distanciamento entre as políticas sociais
em regimes de tipo fascista e as prosseguidas em regimes de tipo de-
mocrático. Este percurso, depois de garantir determinados eixos funda-
mentais de análise, converge, enfim, para a FNAT. Nomear-se-ão, nesse
momento, as razões que sustentam a ideia de que é a partir de meados
da década de 50 que a FNAT conseguiu, através da reunião de um con-
junto de factores internos e externos, actuar com maior eficácia ideoló-
gica sobre as populações.

O lazer moderno e as suas funções sociais

A compreensão do desenvolvimento dos “padrões sociais do autodo-


mínio humano”, que acompanham o processo civilizacional, conduziu
Norbert Elias a estabelecer uma estreita correspondência entre os efei-
tos socialmente pacificadores do parlamentarismo oitocentista inglês e
o surgimento de determinadas práticas desportivas: “A ‘parlamentari-
zação’ das classes inglesas que possuíam terras teve a sua contrapartida
na ‘desportivização’ dos seus passatempos.”35 Não será, então, o acaso,
ou uma inexplicável vocação britânica, que fez surgir em Inglaterra, em
determinado tempo histórico, e junto dos grupos dominantes, um

34. Gonçalves Proença, A política social e o desenvolvimento económico, Junta de Acção Social, Lisboa, 1963, p. 3.
35. Norbert Elias, A Busca da Excitação, Difel, Lisboa, 1992, ed. orig. 1986, p. 59.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

conjunto de práticas de ocupação de tempos livres, quase todas despor-


tivas, em que o confronto estava regulamentado. Mantinham-se, estas
novas práticas, restringidas a pequenas elites. A parlamentarização,
pelo contrário, tinha um significado social bem mais abrangente. Cons-
tituía um eixo importante das nações renovadas, um braço da cidadania
conferida por um Estado central defensor de um pretenso bem comum,
uma peça decisiva no puzzle da modernidade. Karl Marx, no seu O 18
de Brumário de Luís Bonaparte, a propósito dos acontecimentos frances-
es de 1848, perspectiva de outro ângulo o processo de parlamentarização.
A actuação do partido democrático francês sugeriu-lhe as seguintes
palavras:

Deixou [o partido democrático] que as paixões populares exaltadas se consumissem


neste novo passatempo, que a energia revolucionária se saciasse com os sucessos
constitucionais e se dissipasse em pequenas intrigas, em estéreis oratórias e numa
agitação ilusória, permitindo assim que a burguesia se reorganizasse e começasse a
tomar medidas para pôr em prática.36

A energia revolucionária de que Marx falava, ela própria carente da


devida organização política para se tornar realmente revolucionária,
ameaçava transviar-se para outros destinos que não os da revolução, isto,
apesar da objectividade das relações de produção, numa modernidade
industrial e urbana, tornar propícias as condições que levariam a essa
ruptura social. O parlamentarismo seria apenas um dos passatempos
que obstaculizaram as intenções de Marx. O aparecimento de um lazer
massificado, fruto das profundas alterações que incidiram na esfera la-
boral, com particular incidência na transição do século, constituir-se-ia
como mais um óbvio eixo de dominação, um novo passatempo.
A procura do entendimento das práticas sociais sugere, no entanto, que
não se tomem os agentes dominados por determinada instrumentaliza-
ção da ordem social somente por essa sua condição subalterna. O estudo
da funcionalidade dos tempos livres, de acordo com a proposta de Norbert
Elias, depende da compreensão do modo como as sucessivas configura-
ções históricas foram civilizando certas predisposições humanas:

36. Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições Nosso Tempo, Coimbra, 1971, ed. orig. 1852, p. 79.

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O que pode mudar, e aquilo que de facto mudou durante o longo desenvolvimento
da humanidade, são os padrões sociais de autodomínio e a maneira segundo a qual
eles se forjam no sentido de activar e modelar o potencial natural dos indivíduos, no
sentido de retardar, suprimir, transformar, em resumo, de controlar de várias formas
energias elementares e outros impulsos espontâneos.37

O constante aumento das interdependências sociais, resultante da


estruturação das sociedades modernas, obriga ao controlo progressivo
destes impulsos e ao consequente autodomínio. Sem estas condições,
as sociedades desintegrar-se-iam38; sem estas condições estaria posto
em causa o consenso mínimo essencial para a sustentação de deter-
minada ordem social.
A exigência de um controlo das sociabilidades diárias, situação típi-
ca da vida quotidiana das sociedades modernas, implica uma compen-
sação orgânica. É neste ponto que Elias introduz a questão dos lazeres:

Nas sociedades avançadas do nosso tempo, muitas profissões, muitas relações pri-
vadas e actividades, só proporcionam satisfação se todas as pessoas envolvidas con-
seguirem manter uma razoável harmonia e um controlo estável dos seus impulsos
libidinais, afectivos e emocionais mais espontâneos, assim como dos seus estados
de espírito flutuantes. Nestas sociedades, a sobrevivência social e o sucesso depen-
dem, por outras palavras, em certa medida, de uma armadura segura, nem demasiado
frágil nem demasiado forte, de autocontrolo individual. (…) No caso das sociedades
que atingiram um nível relativamente avançado de civilização, isto é, com relativa es-
tabilidade e com forte necessidade de sublimação, as restrições harmoniosas e mode-
radas, na sua globalidade, podem ser observadas, habitualmente, numa considerável
multiplicidade de actividades de lazer, que desempenham essa função (…)39

As actividades de lazer, seguindo o pensamento de Elias, criam uma


excitação regulamentada, em que todos os riscos são calculados e norma-
lizados num conjunto de regras que projectam uma realidade fabrica-
da. Esta função é essencial para o equilíbrio individual e colectivo:

(…) muitas ocupações de lazer fornecem um quadro imaginário que se destina a au-
torizar o excitamento ao representar, de alguma forma, o que tem origem em muitas

37. Norbert Elias, A Busca da Excitação, Difel, Lisboa, 1992, pp. 74-75.
38. Ibidem, pp. 74-75.
39. Ibidem, pp. 69-70.

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situações da vida real, embora sem os seus perigos e riscos. Filmes, danças, pinturas,
jogos de cartas, corridas de cavalos, óperas, histórias policiais e jogos de futebol –
estas e muitas actividades de lazer pertencem a esta categoria.40

A representação controlada e aceite da infracção às normas e regras


sociais é permitida pela simulação de um “perigo imaginário, medo ou
prazer mimético, tristeza e alegria” que “são produzidos e possivelmen-
te resolvidos no quadro dos divertimentos.”41
Marx diria que assim se esgotava a energia revolucionária; o termo
revolucionário está, no entanto, a qualificar apenas uma energia. Uma
energia humana competitivamente organizável. Embora Elias não se
debruce explicitamente sobre o contexto de determinadas relações polí-
ticas e económicas que trabalharam para enquadrar e regular estes pro-
cessos, o sociólogo alemão expressa com exactidão o modo como as
sociedades modernas configuram determinada evolução da existência
humana.

O Estado moderno e as políticas sociais

A consolidação política e económica dos regimes liberais europeus no


século xix teve no papel do Estado, como agente de pacificação interna,
um eixo de estruturação fundamental. Este processo reflectiu-se na cria-
ção de um conjunto de instituições de integração, estruturas que susten-
tavam, em diversos universos sociais, os desafios que o desenvolvimento
do mundo moderno ia colocando. A salvaguarda legítima de imperati-
vos económicos dominantes envolvia a naturalização paulatina de uma
nova e indiscutível realidade. A defesa de um interesse nacional, co-
mum ao universo de cidadãos, garantia ao Estado a legitimidade da in-
tervenção sobre as relações sociais.42
As alterações que o desenvolvimento dos mercados produziu na esfe-
ra produtiva, ainda na primeira metade do século xix, impunham uma

40. Ibidem, pp. 70-71.


41. Ibidem, p. 71.
42. Sobre o papel do Estado na formação das nações modernas, ver Charles Tilly, The Formation of National States in Wes-
tern Europe, Princeton University Press, Princeton, 1975; Michael Mann, The Sources of Social Power, Cambridge Univer-
sity Press, Cambridge, 1993; Anthony Giddens, The Nation-State and Violence, Cambridge Polity Press, Cambridge, 1985.

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resposta adequada por parte dos Estados. A proletarização de largas


camadas das populações, desvinculadas de dependências sociais que
configuravam uma sociedade tradicional em desvanecimento, exigia
instrumentos de socialização que obstassem a rupturas bruscas.43 A exis-
tência de novos vínculos entre as populações e a instância estatal, esta-
belecidos pela partilha de direitos políticos e cívicos, substância de uma
cidadania progressivamente nacionalizada, legitimava a acção do Estado.
A estruturação das relações sociais modernas, abandonada ao normal
desenvolvimento do mercado, poderia resultar numa grave situação
anómica. Os efeitos da desigual distribuição capitalista teriam de ser ate-
nuados sem que, com isto, se pusessem em causa os direitos de pro-
priedade e a manutenção das condições que garantiam a continuidade
da prática económica liberal. Tornava-se urgente uma ressocialização
das populações. Projecto moderno de vários matizes, que acompanhou
a edificação dos Estados-Nação, este processo socializador foi urdido
pelo trabalho estrutural e simbólico que visava a unificação subjectiva
dos grupos sociais reunidos num mesmo território. Surgiram as nações
construídas sobre a imposição de uma língua oficial, pelos princípios
históricos da pátria inculcados por sistemas escolares progressivamen-
te abrangentes, pelo desenvolvimento do conhecimento científico dos
territórios e das populações e, muitas vezes, pela instigação do reconheci-
mento negativo do outro. Este controlo do Estado sobre as populações
concentrava ainda o poder coercivo numa centralização histórica progres-
siva, fortalecia os exércitos e sustentava, desta forma, projectos imperiais
e domínios económicos e comerciais.
As novas condições criadas pela transformação das actividades pro-
dutivas e das relações sociais de produção, mecanismos de socialização
basilares, propiciavam o trabalho político e teórico das organizações e
movimentos que se propunham superar a ordem dominante.44 A ini-
quidade das relações objectivas ao nível das relações de produção tor-
nara-se, a partir do trabalho analítico de vários teóricos, o instrumento
político activo utilizado por vários movimentos sociais e políticos na

43. Skocpol e Rueschemeyer, States, Social Knowledge and the Origins of Modern Social Policies, Princeton University Press, New
Jersey, 1996, pp. 304-308.
44. O Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels, data de 1848 e é porventura o marco deste traba-
lho teórico visando a acção política imediata.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

esfera do trabalho. A transmissão destas ideias de transformação, alicer-


çadas na análise histórica e na compreensão e interpretação do mun-
do social, a uma generalidade de Homens na condição de dominados,
teve como um princípio de acção política elementar a luta de classes.
As críticas formuladas à tradição, diversa em si mesma, da teoria das
classes sociais45, especialmente ao modo como largos sectores da ciên-
cia social importaram para o seu seio, sem a crítica necessária, um
projecto que, antes de ser científico, era político e filosófico, não fazem
desaparecer a evidência, que a experiência histórica confirma, de que
as práticas sociais num contexto de evolução da organização do traba-
lho reflectiam uma realidade que projectava na história a narrativa da
luta de classes. A aplicabilidade de um modo de análise do real de forte
pendor racionalizante, capaz de criar identidades políticas colectivas, e
o trabalho, muitas vezes bem sucedido, dos movimentos políticos que
o traduziam no quotidiano laboral, provaram aos interesses dominan-
tes a seriedade da questão. Mais do que isso, sabiam, pela leitura atenta
das doutrinas revolucionárias, que existia uma história já escrita, e que
o final feliz dispensava a sua presença. Mas a inevitabilidade da “ques-
tão social”, doença endémica da evolução industrial, não impedia que
os seus efeitos pudessem ser combatidos, que as reais condições objec-
tivas pudessem, subjectivamente, ser mascaradas, negociadas, concer-
tadas e mesmo alteradas. Para este empreendimento exigia-se a utilização
de instrumentos orientados por um conhecimento profundo dos me-
canismos da realidade social. Os instrumentos utilizados na prossecu-
ção das políticas sociais têm, na sua génese, um objectivo primordial:
a eliminação da luta de classes.46
Seguindo Elias, diríamos que a uma tentativa de racionalização orga-
nizada das tensões, que seria o projecto da luta de classes, segue-se uma
contra-racionalização regulada pela máquina estatal, actuando em fa-
vor dos interesses económicos dominantes, através das políticas sociais:
uma acção persuasiva, em nome do interesse geral, criadora de uma

45. Ver a este propósito: Pierre Bourdieu, “Espaço Social e Génese de Classes”, em O Poder Simbólico, Difel, Viseu, 1994, pp. 133-162;
Frank Parkin, Marxism and Class Theory: A Bourgeois Critique, Londres, Tavistock Publications, 1981; Anthony Giddens, The Class
Structure of the Advanced Societies, Londres, Hutchison Library, 1973.
46. Como afirmam Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer: “Sem a intensificação das divisões de classe durante a fase inicial
do capitalismo industrial as políticas sociais públicas provavelmente nunca teriam sido instituídas.” Skocpol e Rueschemeyer,
op. cit., p. 305. Fragmento traduzido pelo autor.

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hegemonia que tentava evitar, de forma progressiva, mas muitas vezes


sem sucesso, a utilização legítima dos atributos garantidos ao Estado
pelo monopólio da violência.
É unívoco, todavia, considerar o âmbito das políticas sociais depen-
dente apenas da preparação do Estado para enfrentar um hipotético
cenário de confrontação social entre classes. As características inerentes
à sociedade em estudo, tanto do ponto de vista da configuração das suas
estruturas históricas perante uma evolução para a modernidade, como
das particularidades da sua organização política estatal e no modo como
esta se relaciona com outras esferas da vida social, são essenciais para
a contextualização do processo de aplicação das políticas sociais. Noutra
perspectiva, é impossível deixar de considerar as conquistas alcança-
das pelo trabalho persistente de movimentos políticos e sindicais no
sentido da concretização de medidas em favor dos grupos sociais mais
desprotegidos.47 Não se tratará aqui de encontrar uma lógica causal única,
mas de compreender as relações de dependência entre os vários pode-
res em jogo, a sua colocação nas condições históricas, as adaptações, as
negociações e as respostas que um determinado momento social sus-
cita nos equilíbrios contextuais.
O aprofundamento das relações entre o Estado e a sociedade civil
implicou a multiplicação de instituições mediadoras entre os cidadãos,
comunidade “uniforme” onde cabiam as grandes massas operárias, e
o Estado. O processo foi acompanhado pelo crescimento de uma buro-
cracia governamental progressivamente especializada e multidisciplinar.
Marx, em O 18 de Brumário, relatou os efeitos que a capacidade estatal
demonstrava ao falar na “absoluta dependência, onde o Estado encerra,
controla, regula, superintende e mantém sob tutela a sociedade civil,
desde as mais amplas manifestações de existência até à vida privada
dos próprios indivíduos.”48 Nas palavras de Gramsci:

As classes dominantes precedentes eram essencialmente conservadores no sentido


que não tendiam a elaborar uma passagem orgânica das outras classes à sua, a alargar

47. Alexander Hicks enumera as diferentes teorias que procuram explicar a emergência do welfare state e das políticas sociais cor-
relativas, distinguindo-as pela centralidade que conferem a determinados factores de causalidade, como o contexto da socieda-
de industrial, o papel da formação de classes e da organização de movimentos trabalhistas ou a acção do Estado. Alexander Hicks,
Social Democracy and Welfare Capitalism, Cornell University Press, Ithaca, 1999, pp. 15-31.
48. Karl Marx, O 18 de Brumário de Louis Bonaparte, Edições Nosso Tempo, Coimbra, 1971, p. 70.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

a sua esfera de classe “tecnicamente” e ideologicamente: a concepção de casta fecha-


da. A classe burguesa põe-se a si mesmo como organismo em contínuo movimento,
capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a ao seu nível cultural e económico:
toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se “educador”.49

A percepção de que a luta de classes, mais do que uma inevitabilida-


de histórica traçada por agentes voluntários e consciencializados, era
um projecto político e intelectual, assente em reais bases objectivas,
mas que tinha de ser conquistado na construção das subjectividades50,
foi porventura mais rapidamente apreendida por aqueles que queriam
manter o domínio do que pelos que pretendiam usurpá-lo.

1.1 > A organização dos lazeres na Itália fascista


e na Alemanha nacional-socialista
O universo das políticas sociais, na primeira metade do século x x, foi
marcado por dois processos fundamentais: por um lado, a Primeira
Guerra Mundial, por outro, mais importante, a crise económica de 1929.
Da guerra de 1914-1918 não resultou apenas uma nova geografia europeia,
mas um movimento “trabalhista” internacional, animado pela revolução
russa de 1917. Mas foram talvez os resultados da crise de 192951 que de-
monstraram a urgência de um aprofundamento das políticas sociais.
As alternativas aos regimes liberais (que aparentavam uma implantação
sólida e progressiva) surgiram, pela primeira vez, de forma ameaçadora.52
A ruína económica ameaçou a continuidade dos aparelhos institucionais
do liberalismo político. A ruptura de 1929 tomou muito tempo a todos
aqueles que se ocupavam de pensar a sociedade. Como afirma Hobsbawm:

49. António Gramsci, Obras Escolhidas, vol. 1, Estampa, Lisboa, 1974, ed. orig. 1945, p. 399.
50. Na leitura de Marx feita por Gramsci: “A proposição contida na introdução à Crítica da Economia Política, de que os homens
tomam consciência dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias deve ser considerada como uma afirmação de valor gno-
seológico e não puramente psicológico e moral.”, António Gramsci, op. cit., p. 87.
51. Piven e Cloward, op. cit., p. 45. Segundo Hobsbawm, em 1932/33 estava desempregada 23 por cento da força de trabalho britâ-
nica e belga, 24 por cento da sueca, 27 por cento da americana, 29 por cento da austríaca, 31 por cento da norueguesa, 32 por cen-
to da dinamarquesa e 44 por cento da alemã. Eric Hobsbawm, A Era dos Extremos, Presença, Lisboa, 1996, ed. orig. 1994, p. 99.
52. Na Alemanha, o partido nacional-socialista derrubou, em 1933, pelo voto democrático, uma social-democracia incapaz de in-
verter o drama económico e social do país. O fascismo, sob a batuta germânica, tende a internacionalizar-se (com fortes movi-
mentos na Hungria, na Roménia e na Croácia, mas também noutras latitudes, como em países da América do Sul, casos da
Argentina, do Brasil ou da Colômbia. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 122), atraindo fundamentalmente as classe média e média bai-
xa, aquelas que viam a sua posição mais ameaçada pelo rumo da crise do sistema liberal.

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A Ópera do Trindade

A Grande Depressão obriga os governos ocidentais a dar às considerações sociais prio-


ridade sobre as económicas nas suas políticas de Estado. Os perigos implícitos em
não o fazer – radicalização da esquerda e, como na Alemanha e outros países agora o
provaram, da direita – eram demasiado ameaçadores.53

Na economia da URSS, a prática planificadora estava há muito presen-


te com os conhecidos planos quinquenais. Nos Estados Unidos, país que
sempre evitara uma política social centralizada, o combate à crise, erigido
pelo governo Roosevelt, indicava que ao Estado passaria a caber um pa-
pel fundamental na regulação da economia. Em 1935, foi aprovada uma
primeira lei da segurança social. Em França, o horário semanal de traba-
lho foi reduzido, em 1936, para 40 horas. Estipulou-se ainda um período
de férias pagas. O economista britânico John Maynard Keynes tornava-se
o rosto da opção intervencionista do Estado. O esforço inglês de regula-
ção precede o final da Segunda Grande Guerra, através da apresentação de
um conjunto de medidas sociais reunidas no Plano Beveridge de 1942.
Mas já antes, a Alemanha nacional-socialista, com a Constituição de Wei-
mar de 1933, organizara um conjunto de medidas de regulação econó-
mica. Em Portugal, apesar da crise de 1929 não ter tido consequências
estruturais, a Constituição de 1933 e a aprovação do Estatuto do Trabalho
Nacional constituem a resposta nacional, inspirada nos exemplos ale-
mão e italiano, aos problemas que afectavam o mundo industrializado.54
A aplicação das políticas sociais exige, porém, uma atenção particular
a determinado tipo de características nacionais. Por um lado, os mecanis-
mos das políticas sociais são diversos, influenciando diferentes esferas
da vida quotidiana e, consequentemente, colocando distintos problemas
no seu emprego prático. Por outro, a manipulação destes instrumentos
é condicionada pelas características políticas e socio-económicas dos
países em que são aplicados. Estes princípios de análise são centrais na
breve abordagem às políticas de organização dos lazeres que tiveram
lugar na Itália fascista e na Alemanha nazi.

53. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 101.


54. O Estatuto do Trabalho Nacional (ETN) assemelha-se bastante à Carta del Lavoro italiana, aprovada em 1927. Os objectivos do
ETN eram extinguir, mesmo que não o fizessem formalmente, todas as práticas de associativismo livre que pudessem tornar-se
foco organizador de luta de classes. Na sua redacção estão expressas as punições para quem transgredir as proibições de greve e
de lockout, a imposição do controlo sobre os contratos colectivos de trabalho e a defesa da propriedade e da iniciativa privada.
Manuel de Lucena, op. cit., pp. 179-205.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

>>>>>>>>>>>

O universo das políticas sociais relacionadas com os lazeres levadas a


cabo na Itália de Mussolini e na Alemanha de Hitler foi uma resposta
particular às consequências da modernidade55. O modelo que estes regi-
mes seguiram, original no modo como as políticas de regulação social
foram atravessadas pelas ambições e limites do projecto político, carac-
terizou-se, genericamente, pela manipulação de instrumentos utilizados
para regular os processos de industrialização e modernização. As vá-
rias dinâmicas do projecto de dominação doutrinária, presentes, tanto
no regime italiano e no alemão como no português, perfazem um qua-
dro de análise importante. A forma como a natureza do regime político
interagiu com a superintendência do Estado sobre a sociedade civil deu
azo a uma concepção original dos lazeres. A Itália corporativa de Mus-
solini fundou a Opera Nazionale Dopolavoro (OND). Os fundamentos
da nova organização foram as políticas de Mário Giani, na filial italiana da
corporação americana de electricidade Westinghouse. A introdução des-
tas políticas sociais em Itália surgiu pela via produtivista, seguindo o
modelo empresarial americano.56 Tornar o trabalhador, enquadrado pe-
los sindicatos fascistas, num elemento funcional no processo de cresci-
mento industrial constituía o desígnio do governo da Itália, país que, na
transição do século, se tornara o mais desenvolvido do sul da Europa.
A aposta industrial reflectiu-se essencialmente na região norte, ficando
todo o mezzogiorno entregue à agonia de uma sociedade tradicional ru-
ralizada. As consequências da crise de 1929 nas economias mais in-
dustrializadas obrigaram a um redimensionamento das políticas
económicas e sociais.57 A Itália fascista não foi excepção. A necessidade

55. Barrington Moore Jr. destacou, na sua conhecida tese, o carácter modernizador dos regimes fascistas. Barrington Moore Jr.,
Social Origins of Dictatorship and Democracy, Penguin, Harmondsworth, 1966, pp. 433-452.
56. Peter Wagner e Bjorn Wittrock assinalam as diferenças entre as políticas sociais ocidentais oitocentistas prosseguidas pelos Es-
tados e aquelas que apresentaram uma base não-estatal. Relacionando o desenvolvimento do pensamento social institucionalizado
com os objectivos práticos da estrutura política e dos seus interesses associados em debelar a proeminente “questão social”, os au-
tores apontam as diferenças entre as políticas estatais centralizadas da França, da Alemanha e da Itália e uma tradição mais liberal,
presente em Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos. No caso americano, as reformas sociais não se desenvolveram a partir de
instituições centralizadas mas, diferentemente, de uma aplicação na esfera do trabalho e na comunidade de princípios práticos de
regulação organizados quase sempre pela iniciativa privada ou por unidades administrativas de nível local. Peter Wagner e Bjorn
Wittrock, “Statist and Non-Statist Societies”, in Theda Skocpol e Dietrich Rueschemeyer (eds.), States, Social Knowledge, and the Ori-
gins of Modern Social Policies Princeton University Press, New Jersey, 1996, pp. 90-113.
57. A Westhinghouse, empresa americana cujos métodos foram mimetizados e transformados pela organização corporativa italia-
na, perde, entre 1929 e 1933, dois terços das suas vendas e vê o seu rendimento baixar 76 por cento. Eric Hobsbawm, op. cit, p. 98.

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A Ópera do Trindade

de estancar perturbações sociais transformou os Dopolavori em agentes


primordiais da criação de uma cultura de consentimento social genera-
lizado.58 A máxima “chegar às pessoas”, enunciada por Mussolini em
1931, passou a ser o esteio da nova política estatal implementada pela
OND: mais socializada e consentânea com a viragem estatista obser-
vada em todo o mundo ocidental.
Quando a Kraft Durch Freude (KDF) nasceu, em 1933, os efeitos da
crise de 1929 abalavam ainda a Alemanha. Os nacional-socialistas aca-
bavam de bater, pelo voto, o governo social-democrata que governara
a República de Weimar desde 1918, e o partido comunista, seu princi-
pal adversário. A curta vida da República de Weimar caracterizara-se por
um governo acossado pelo descontentamento social. Num país em
grave crise financeira, a retórica nacionalista e xenófoba do partido nazi,
incutida no povo pela paz punitiva imposta à Alemanha em Versalhes,
foi conquistando adesões. Se o país estava no caos financeiro, não dei-
xava de possuir estruturas industriais sólidas e um número de capita-
listas que, apoiados pelo novo poder, estavam dispostos a revitalizá-lo.
A intervenção da KDF foi mais ambiciosa do que as suas congéneres.
A empresa era a célula primária das actividades da organização alemã,
o que demonstra a importância socializadora que o local de trabalho ia
adquirindo numa sociedade modernizada. Os resultados das políticas
económicas e sociais alemãs serão concludentes. A recuperação do país
criou as condições para o Terceiro Reich iniciar um esforço de guerra sem
precedentes. Em 1938, o regime conseguiu eliminar o desemprego.59
A KDF vai ser apenas um dos componentes que regulou este desenvol-
vimento, impulsionando a renascida sociedade civil alemã: explorando
as “tendências pequeno burguesas de uma parte dos operários”60, os
promotores dos lazeres na Alemanha apresentavam-se na vanguarda
da persuasão, sabendo que “não é de modo algum o que se dá ao povo
trabalhador mas sim como se dá”61 a forma de alicerçar a pacificação

58. Expressão que se torna o mote de explicação do domínio cultural organizado na Itália fascista na obra de Victoria Grazia. Victo-
ria Grazia, The Culture of Consent – Mass Organization of Leisure in Fascist Italy, Cambridge University Press, Cambridge, 1981, p. 62.
59. Eric Hobsbawm, op. cit., p. 99.
60. Deutschland-Berichte der Sozialdemokratischen Partei Deutschlands (Sopade), 1934-1940. Frankfurt: Salzhausen, 1980; Vier-
ter Jahrgang (1937), p. 1259, citado por José Carlos Valente, “A FNAT: das origens a 1941 – Estado Novo e Alegria no Trabalho”,
em História, n.o 5, 1996, p. 15.
61. Arbeitertum, ano 5, n.o 1, 1/4/1935, p. 8, citado por José Carlos Valente, Estado Novo e Alegria no Trabalho – Uma História Polí-
tica da FNAT, Colibri-INATEL, Lisboa, 1999, p. 25.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

social. Mais uma vez, a política social visava o consentimento.62 A KDF


iniciou uma profunda alteração na organização da empresa alemã: me-
lhorias arquitectónicas, preocupações ambientais, ventilação e ilumina-
ção das fábricas, construção de móveis e artefactos criados para o local
de trabalho. A KDF possuía um banco privado, ergueu o maior opera-
dor turístico a nível mundial e a criação da Volkswagen desejava mul-
tiplicar o número de alemães com automóvel próprio. Todos os laços
se mostravam indispensáveis para prosseguir o objectivo central da KDF
que, como referiu uma publicação da época, “não pode ser confundido
com uma alteração (efectiva) da realidade social, mas apenas da sua
percepção e avaliação.”63
A lógica de hegemonização, que, além da harmonia social, procurava
a incorporação de uma “consciência de consumo”64, era comum ao uni-
verso das políticas estatais situadas no mundo capitalista, independen-
temente do tipo de regime político. No caso alemão e italiano, como no
português, os fins visavam ainda acentuar fronteiras sociais mais consen-
tâneas com o projecto global do regime. Um dos seus eixos era a ques-
tão nacional e étnica, um importante foco de ocultação de divisões de
classe, que a Alemanha levou até às últimas consequências. A força uni-
tária do princípio nacional apelava a um resíduo de valores e tradições,
alvo de uma reconstrução e invenção permanentes, que encontrava na
sociedade civil um terreno fértil de proliferação, cimentado em toda a
visibilidade do aparato simbólico e institucional que o Estado, em cons-
trução permanente, conseguia mobilizar na sua sustentação.65 A influên-

62. Em 1943, o jornalista Tomé Vieira, que irá colaborar no Boletim da FNAT Alegria no Trabalho, escreveu um texto intitulado “A
Questão Social”. Nele se explica a forma “superior” como a Alemanha resolvera o problema da luta de classes: “O nacional-socia-
lismo não acabou simplesmente com a luta de classes, que considera absurda e criminosa. Instituiu a legislação social mais avan-
çada que se conhece. Dando ao trabalhador os direitos que lhe confere a sua condição de pessoa, não lhe criou simplesmente
meios de vida material. A obra do nacional-socialismo revolucionou profundamente os costumes do povo pela garantia da vida
social que deu ao trabalhador. O desemprego acabou, os seguros de invalidez foram instituídos, a protecção à mulher e à criança
deixou de ser simples aspiração ou programa de partido. A casa saudável e económica para o operário foi construída. E uma nova
mentalidade surgiu entre os trabalhadores, pela mais bela criação que até hoje foi conhecida: ‘A Alegria no Trabalho’.” Tomé Viei-
ra, A Questão Social, Edições Biblioteca, Lisboa, 1943, pp. 9-10.
63. Peter Reichel, “Ästhetik Staat Politik Zum Verhaltnis von Kultur und Politik im NS-Staat”, em Politische Vierteljahrsschrift,
Sondenheft, Ano 28, pp. 133-134, em José Carlos Valente, op. cit, p. 25.
64. Expressão que Victoria Grazia utiliza para descrever a acção da OND. Victoria Grazia, op. cit., p. 158.
65. O apelo nacionalista criava óbvios problemas nas estruturas políticas oposicionistas, que eram incapazes de combater o po-
deroso efeito político da nacionalização da vida quotidiana, acabando, muitas vezes estratégica ou inconscientemente, por con-
tribuírem elas próprias para a construção nacional. Mesmo os movimentos políticos de cariz internacionalista, que assentavam
a sua análise do real nas questões das lutas de classes, introduziram no seu discurso a prioridade nacional. Ver a este propósito
José Neves, Comunismo, Nacionalismo e Colonialismo – Notas sobre o Partido Comunista Português de 1921 a 1957, Tese de Licencia-
tura apresentada em 2001 no âmbito do Curso de História Contemporânea do ISCTE. (Texto policopiado)

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A Ópera do Trindade

cia dos matizes do factor nacional sobre a sociedade civil levou Victoria
Grazia a referir-se à acção dos Dopolavori em Itália como uma tentati-
va de nacionalização do lazer: da sua ideologização pela componente
nacional.
Os casos italiano e alemão permitem um exercício comparativo acer-
ca da acção de instituições estatais de política social situadas em países
em fases diferentes de desenvolvimento sócio-económico – fundamental
para testar a eficácia ideológica das políticas sociais. A experiência ita-
liana de instrumentalização das técnicas de controlo de lazer, a primei-
ra em Estados com regime de tipo fascista, confrontou-se de imediato
com a evidente dualidade da organização do espaço económico e social
do país. Os desequilíbrios regionais italianos obrigaram a uma adap-
tação dos instrumentos de regulação do lazer. Os Dopolavori rurali,
instrumentos na defesa dos valores da ruralidade contra a desfuncio-
nalidade do cosmopolitismo urbano, acabaram por soçobrar perante
uma sociedade tradicional alicerçada em vínculos antigos, e onde a for-
ça das elites locais era a prova da condição embrionária do controlo do
Estado sobre o seu território e as suas populações. A retórica ruralista
do fascismo italiano dissimulou uma prática efectiva, típica de um Es-
tado moderno, mas denotando graves deformações estruturais, em que
a aposta na indústria foi feita contra os campos e a vasta classe campo-
nesa. As discussões acerca da política social no mundo rural, como veio
a suceder nos casos italiano e português, expõem alguns dos limites
dessa mesma intervenção. Uma estrutura produtiva tradicional e rura-
lizada, com uma divisão do trabalho pouco desenvolvida, dispensava,
pesem embora as tentativas efectuadas pelos regimes em causa, a aplica-
ção de políticas que visavam enquadrar uma realidade sócio-económica
distinta. Os efeitos dos instrumentos modernos do lazer, como o cine-
ma e a rádio, típicos das sociedades industriais e modernas, em espaços
sociais que sempre se apresentaram, na sua autarcia, como forte sus-
tentáculo social dos regimes, surgindo como a expressão ideal e perfeita
de uma “cultura popular” entretanto forjada em gabinetes etnográficos,
provocaram compreensíveis receios. Ao contrário do que sucedeu no
mundo agrário, o movimento criado em torno dos Dopolavori situados
em meio urbano, apesar da concorrência das associações socialistas e
católicas, foi bastante dinâmico. No espaço rural, foi apenas nas regiões

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

onde a agricultura se apresentava modernizada que as iniciativas cor-


porativas tiveram um alcance positivo.66 Embora Mussolini afirmasse
que os “capitalistas inteligentes não ganham nada com a miséria”67,
para muitos patrões a tradição opressora, a hierarquia natural, a impo-
sição das relações desiguais pela força continuava a ser o modo normal
de resolução dos problemas. Tais termos de envolvência das relações
laborais facilitavam, dando razão ao ditador italiano, a actividade da or-
ganização política no seio das relações de trabalho. Mas para muitos
dos representantes dos interesses dominantes em Itália, as políticas
sociais pareciam não apresentar qualquer utilidade.
A formação de uma cultura hegemónica moderna, que se desejava
consensualizadora, é pouco compatível com uma realidade económica
débil e com um Estado cuja capacidade reguladora é precária. Victoria
Grazia detecta essas mesmas insuficiências estruturais na economia
italiana, o que determinou negativamente a actividade da OND. Duran-
te o fascismo assistiu-se a um empobrecimento real dos trabalhadores
italianos. A eficácia de políticas sociais, como as protagonizadas pelas
organizações de tempos livres – que visavam a igualização das condi-
ções de consumo de bens e serviços, oferecendo, a baixos preços, teatro,
ópera, concertos, turismo social, campeonatos desportivos, colónias de
férias –, era frágil se não estivessem asseguradas às populações as con-
dições básicas de sobrevivência, que iriam ser características de grande
parte dos regimes liberais do pós-guerra. Esta situação de precariedade
era mais evidente em edifícios políticos totalitários e autoritários que,
inversamente aos regimes demo-liberais, não possuem um conjunto
de instituições reguladoras de natureza igualitária, instâncias de apa-
ziguamento das tensões.68
Em estruturas sociais inadequadas ao desenvolvimento das políticas
de organização dos lazeres, normalmente pela fraca evolução da divisão
social do trabalho, a ineficácia dessas mesmas políticas exprime uma
evidente impossibilidade estrutural. As fronteiras desta impossibilidade
estrutural vão ser discutidas numa breve aproximação à história da or-
ganização dos lazeres portuguesa: a FNAT.

66. Ibidem, pp. 120-126.


67. Victoria Grazia, op. cit., p. 62.
68. S.N. Eisenstadt, Os Regimes Democráticos, Celta, Oeiras, 2000, ed. orig. 2000, pp. 69-74.

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A Ópera do Trindade

1.2 > O percurso histórico da FNAT

O acompanhamento da evolução da FNAT durante o Estado Novo procu-


rará articular a natureza dos seus objectivos com as circunstâncias que fo-
ram envolvendo a sua actividade. Os critérios utilizados para avaliar estes
resultados, que configuram e classificam o desempenho ideológico da or-
ganização, encontram-se na eficácia da sua penetração na sociedade civil,
no poder que demonstram em modelar as representações dos actores so-
ciais, condicionando a sua movimentação em sociedade. Relacionámos o
contexto desta actuação institucional com condições sócio-económicas
mais vastas, que caracterizam um modelo de crescimento moderno, ur-
bano, industrial e capitalista. Estas condições determinam duplamente a
criação e actividade de organizações como a FNAT. Por um lado, são o
motivo da sua existência como mecanismo de regulação das práticas
quotidianas. Por outro, a prossecução e eficácia da sua actividade está
relacionada com os fenómenos sociais que estas condições geram. Pen-
samos, então, que a eficácia ideológica da FNAT se foi desenvolvendo de
acordo com o modo como algumas das estruturas características da-
quela modernidade penetraram em Portugal, alterando os grandes eixos
estruturadores da vida quotidiana. O facto do regime político português
ser uma ditadura de tipo fascista é decisivo para compreender as media-
ções e as contradições deste processo.

>>>>>>>>>>>

Quando a Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho foi criada, em


13 de Junho de 1935, eram conhecidas, no interior do Estado Novo, as ex-
periências de organização de tempos livres levadas a cabo na Alemanha
e na Itália. José Carlos Valente, no seu trabalho sobre a evolução da
FNAT, entre 1935 e 1958, demonstra a existência de relações próximas
entre o recém-criado Sindicato Nacional dos Bancários e o Ministério
das Corporações italiano.69 Em Lisboa, os bancários ensaiaram um mo-
delo inspirado no Dopolavoro. Entretanto, os congressos da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) tornaram-se locais de partilha de técnicas

69. José Carlos Valente, op. cit., p. 38.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

e métodos aplicados à organização dos tempos livres. Em 1933, Pedro


Teotónio Pereira, subsecretário de Estado das Corporações, travou co-
nhecimento com Robert Ley, o chefe da delegação alemã no congresso
da OIT. Em 1936, nasceu, em Berlim, o Movimento Internacional Ale-
gria e Trabalho, de que a FNAT foi membro fundador. Embora a expe-
riência italiana fosse há mais tempo conhecida em Portugal, inspiração
reflectida em todo o edifício corporativo português, os contactos com a
KDF assumiram uma importância fundamental na organização portu-
guesa. Até 1939, a FNAT foi presença assídua nos congressos da KDF,
numa altura em que a máquina bélica alemã ensaiava a Segunda Guer-
ra Mundial na vizinha Espanha. Destes contactos não resultou somen-
te a óbvia semelhança na nomenclatura da organização, mas a partilha
de um conjunto de princípios de intervenção assentes num trabalho
aprofundado sobre a dinâmica das relações humanas, fundamento das
políticas sociais a empreender.
Em Portugal, o Centro de Estudos Corporativos da União Nacional pro-
pusera, em 1934, a criação de uma colónia de férias na Costa da Capa-
rica para servir alguns trabalhadores do sector terciário lisboeta.70
Deste centro de estudos corporativos faziam parte António Júlio de Cas-
tro Fernandes, um dos fundadores do Movimento Nacional-Sindicalista
e membro do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência, Jaime Fer-
reira, presidente do Sindicato Nacional dos Bancários do Distrito de
Lisboa – que, com Carmona, Salazar e Teotónio Pereira, constituíram a
primeira direcção da FNAT – e Higino Queiroz e Mello, fundador do Ins-
tituto Nacional do Trabalho e Previdência, e futuro presidente da FNAT.71
São estes homens que vão erguer a Fundação.
A organização de ocupação dos tempos livres propunha-se actuar na
esfera laboral, através da sua política social, mas também imprimindo
à sua acção uma vertente consciencializadora dos grandes princípios
da nação e do Estado. Como eixo da política social integrou-se num uni-
verso de acção governativa de uma debilidade extrema.72 Se, em gran-
de parte dos países europeus, o final da Segunda Grande Guerra foi
o marco temporal – apesar do problema estar há muito pensado – que

70. Ibidem, p. 42.


71. Ibidem, pp. 42-43.
72. Manuel de Lucena, op. cit., pp. 381-384.

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A Ópera do Trindade

delimitou a instalação de um “Estado-Providência” como plataforma de


modernização e acompanhamento do crescimento económico, em Portu-
gal, só em 1961 é que o governo, pela lei n.o 2115, resolveu criar uma nova
estrutura administrativa que se aproximava timidamente do exercício de
uma previdência social. Cessa, nesta data, um período que atravessara
todo o regime, em que as funções de assistência social eram pratica-
mente da responsabilidade do associativismo e do mutualismo. Este va-
zio legislativo limitava-se a assinalar, como muitos outros indicadores o
poderiam fazer, a fraca modernização da estrutura produtiva portuguesa.
Se o objectivo principal das políticas sociais era minorar as consequên-
cias inerentes ao desenvolvimento do capitalismo, ao crescimento da in-
dústria e às alterações na esfera do trabalho, a estrutura sócio-económica
do país estava muito longe de uma situação em que esses instrumentos
se mostrassem realmente urgentes. A transferência de modelos confi-
guradores de políticas sociais situados em países com regime político si-
milar, mas como um alicerce sócio-económico dissemelhante, expõe em
toda a sua dimensão aquilo que designámos de impossibilidade estrutu-
ral. Os primeiros anos da FNAT estiveram repletos de equívocos, que se
reflectiram, fundamentalmente, na sua sobrevivência financeira.
A nova estrutura corporativa reclamava pelo princípio da promoção
“do aproveitamento do tempo livre dos trabalhadores portugueses por
forma a assegurar-lhes o maior desenvolvimento físico e a elevação do
seu nível intelectual e moral” (artigo 4.o dos Estatutos instituídos pelo
decreto n.o 31.036). Os fins da organização estavam descritos em doze
pontos. Os três primeiros abrangiam uma vertente educativa: a criação
de cursos de formação de dirigentes sindicais, a realização de confe-
rências radiofónicas e a instalação de bibliotecas populares. A frontei-
ra entre o domínio educativo e o que pertencia a uma esfera cultural era
quase sempre ambígua. É, portanto, com alguma distância que se po-
dem considerar os pontos quatro e cinco, respectivamente, a promoção
de visitas de estudo a locais de interesse histórico, técnico e didáctico,
e a realização de sessões de cinema, horas de arte e representações de
carácter popular, como fazendo parte de uma componente cultural.
Da promoção e organização de actividades desportivas tratavam os pon-
tos sexto, sétimo e oitavo. O nono ponto estabelecia a criação de colónias
de férias; o décimo, de organizar refeitórios económicos, e o décimo

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primeiro, de promover passeios, excursões e viagens, tarefa para a qual


as passagens grandiosas dos cruzeiros da KDF por Portugal se tinham
tornado um exemplo edificante. José Carlos Valente demonstra que as
primeiras iniciativas que visaram sustentar estes princípios estavam
eivadas de uma forte intenção mobilizadora que visava a reificação,
nas práticas, dos princípios doutrinários caros ao regime. Destas ini-
ciativas de tendência mobilizadora destacaram-se a apropriação das
comemorações do 1.o de Maio, na qual se integrou a criação de um jor-
nal com o mesmo nome, a proximidade com a Legião Portuguesa, a
tentativa de criar um escol de funcionários corporativos através dos
Centros de Cultura Popular, a organização das Casas do Povo e a expec-
tativa da utilização de formas culturais como princípio modelador das
práticas, de que a utilização do livro, através da criação de bibliotecas
populares, se revelava uma acção estrutural.
Para tornar reais todas estas actividades que se exigia chegassem ao
maior número de pessoas, era necessário montar uma máquina fun-
cional vasta. A tarefa obrigava à consolidação de uma forte base finan-
ceira. Os rendimentos da FNAT proviriam de três fontes: os subsídios
do Estado, os donativos dos particulares e o resultado das quotizações
dos três tipos de sócios que os Estatutos consagravam – os efectivos,
inscritos voluntariamente nos sindicatos ou Casas do Povo; os benfeito-
res, recrutados dos grémios, federações e uniões; e, por último, os au-
xiliares, que compreendiam todo o conjunto de organizações públicas
ou privadas, e cidadãos de qualquer nacionalidade que quisessem con-
tribuir. O apelo da FNAT às contribuições financeiras ambicionava,
mais do que a garantia da sobrevivência económica da organização,
envolver nas suas actividades uma série de sectores da sociedade civil
que, de uma forma ou outra, poderiam beneficiar com as suas inicia-
tivas. A resposta dos vários quadrantes envolvidos foi, porém, bastante
decepcionante. No seio da organização corporativa, a colaboração foi
frouxa. Os sindicatos, mesmo depois de a quotização ser considerada
obrigatória, medida tomada em Setembro de 1939, pouco participaram.
Esta contribuição teve origem em apenas cinco distritos, cabendo a Lis-
boa o total de 77 por cento das quotizações.73 O dado confirma a natureza

73. Os outro quatro distritos são o Porto, Setúbal, Coimbra e Funchal. José Carlos Valente, op. cit., p. 45.

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urbana da FNAT. As empresas também não responderam ao apelo da


organização. Os patrões portugueses não perceberam, tal como os ita-
lianos não tinham em larga medida compreendido, a vantagem social
de uma organização de tempos livres. Além disso, a grande maioria das
empresas tinha margens de lucro que não permitiam que os dona-
tivos para a FNAT se tornassem uma prioridade. No que respeita aos
associados, a procura revelava uma distância em relação ao projecto.
Quando, em 1936, o preâmbulo do decreto-lei que atribuiu mais um
subsídio estatal à FNAT refere que “o grande valor social da obra não
conseguiu ainda interessar, de um lado, o patronato, e, do outro, os indi-
víduos ou classes que em alguns países costumam ser os seus maiores
protectores”74, confirmava-se que o país não apresentava as condições
necessárias para absorver a actividade da instituição. O dilema torna-
va-se sério. Era uma contradição que o Estado sustentasse por si só, sem
qualquer reciprocidade, um tipo de organização que se queria imbri-
cada na sociedade civil75, que tinha como esteio a concertação social, a
junção dos interesses manifestos de vários grupos e tendências sociais.
O sucesso registado pelas organizações de ocupação de tempos livres
em países numa fase de modernização avançada não se reflectia em
Portugal. Com um espaço rural predominante, dominado por fortes
interesses agrários, e uma actividade industrial débil, cujo condiciona-
mento – pela Lei do Condicionamento Industrial de 1931 – protegia as
clientelas do regime, o país não tinha condições, nem a disposição de
parte importante das suas elites, para se transformar.
A incapacidade da FNAT em singrar nos seus primeiros anos de acti-
vidade deu origem, a partir dos Estatutos de 1940, a uma reacção nor-
mativa que procurava aproximar a Fundação do aparelho corporativo,
garantindo-lhe, assim, um maior desafogo financeiro. Todos os organis-
mos corporativos e de coordenação económica passaram, obrigatoria-
mente, à condição de associados da FNAT. A organização tomou ainda
nas suas mãos o monopólio das iniciativas relativas à cultura popular,
o que a colocou em confronto directo com todas as sociedades de recreio

74. Preâmbulo do Decreto n.o 27125, de 19 de Outubro de 1936.


75. A FNAT publicou, em 1945, um livro comemorativo dos dez anos da organização: Dez Anos de Alegria no Trabalho (1935-1945)
onde estão referenciadas as suas actividades nos seus primeiros dez anos de existência. O carácter episódico e pouco sistemáti-
co das actividades da FNAT demonstra a sua débil implantação social. Dez Anos de Alegria no Trabalho: 1935-1945, FNAT, Edição
fac-similada do INATEL, Lisboa, 1998, pp. 169-205.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

agrupadas na Federação das Colectividades de Educação e Recreio.76 A


retórica ideológica e mobilizadora que José Carlos Valente detectou
nos primeiros anos de actuação da FNAT foi atenuada no início dos
anos 40. O desfecho da Segunda Guerra Mundial explica a inflexão.
Em simultâneo, assistiu-se à recepção em Portugal de várias concepções
humanistas sobre a organização do trabalho.77 As políticas sociais britâ-
nicas do princípio dos anos 40, agrupadas no Plano Beveridge, suscita-
ram um debate em Portugal acerca da opção que o governo deveria
imprimir à sua política económica.78 A acumulação de capital, proporci-
onada pelas relações comerciais que o país desenvolvera durante a Se-
gunda Guerra, aproveitando a sua ambígua neutralidade, criou as
condições ideais para um arranque industrial.79 Duas iniciativas legisla-
tivas lançaram este novo ciclo: em 1944, a Lei da Electrificação Nacional,
e, em 1945, a Lei do Fomento e Reorganização Industrial. Ferreira Dias,
professor do Instituto Superior Técnico, e futuro ministro da Economia,
publicou, em 1945, Linha de Rumo80, onde, discordando do caminho da
economia nacional, traçou os eixos de uma aposta industrial que não po-
deria contar mais com a timidez e o receio das elites económicas nacio-
nais. Para combater os efeitos adversos que se sabiam inerentes a tal

76. Ver a este propósito Daniel Melo, Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), ICS, Lisboa, 2001, especialmente, pp. 326-374.
77. José Carlos Valente, op. cit., pp. 121-123.
78. Terá sido um republicano democrata, Armando Marques Guedes, professor no Instituto Superior de Ciências Económicas
e Financeiras, que, defendendo as linhas mestras deste plano, atacou o que chamou de corporativismo medieval. Marques Gue-
des criticava os limites de um corporativismo demasiado apegado a antigas fórmulas de concertação social, aproximando-se da
defesa de um neocorporativismo característico das modernas sociedades democráticas, assente num sistema global que garan-
tisse aos trabalhadores um conjunto de regalias a que teriam direito. Num texto redigido em 1956, intitulado O Destino das Clas-
ses Médias, Marques Guedes, afirmando-se um neoliberal profundamente convicto (p. 15), traça o percurso histórico das classes
médias, defendendo a necessidade urgente do Estado impedir a proletarização de vastas camadas da população – que Marques
Guedes integra no conjunto das classes médias. O autor mostrava-se especialmente preocupado com a proletarização de algu-
mas profissões intelectuais: “o sector intelectual proletarizado pode fornecer, melhor do que nenhum outro, os quadros de co-
mando do exército revolucionário” (p. 15). Considerava, porém, que as políticas sociais prosseguidas em alguns estados europeus
conduziam a um socialismo desvairado. Armando Marques Guedes, O Destino das Classes Médias, Academia das Ciências de Lis-
boa (separata de Memórias – classe de Letras – Tomo VI), 1956. É curioso que Tomé Vieira, no seu já citado texto sobre a Ques-
tão Social, defende as políticas sociais dos estados fascistas (neste caso, do fascismo italiano), através de uma frase de Marques
Guedes no seu livro sobre o Plano Beveridge: “o sr. Prof. Marques Guedes, diz, a propósito da política social do fascismo: ‘Pro-
curou-se melhorar a situação dos trabalhadores, por salários melhores, por obras públicas extensas, com que se pôs termos a
muito desemprego; fixaram-se salários mínimos; regulou-se a política preventiva e reparadora quanto à higiene e segurança das
oficinas e à indemnização do operário sinistrado ou da família do que morresse ou ficasse permanentemente inabilitado por aci-
dente ou doença profissional; tomou-se mesmo a direcção e ocupação dos lazeres, das horas vagas do operário, na organização
Dopolavoro’ ”. Tomé Vieira, A Questão Social, Edições Biblioteca, Lisboa, 1943, p. 11.
79. Em relação à aposta industrial, Manuel Vilaverde Cabral refere que a Campanha do Trigo, normalmente conotada, e certa-
mente com fundamento, com os grandes interesses agrários tinha características fortemente industriais. Vilaverde Cabral assi-
nala o forte impacte, quase sempre encoberto pela lógica puramente cerealífera, que a campanha causou na indústria dos
adubos e na metalomecânica. Manuel Vilaverde Cabral, “Sobre o Fascismo e o seu Advento em Portugal”, em Análise Social, n.o 48,
1976, pp. 887-889 (873-915).
80. Ferreira Dias, Linha de Rumo, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1945.

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opção estratégica, protegendo o investimento económico, aplicar-se-


iam políticas de concertação e consentimento social organizadas pelo Es-
tado, apesar de estar implícito que, quando se mostrasse necessário, a
máquina coerciva e discricionária estava pronta a actuar.

Alegria no Trabalho e a dimensão cultural


O Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT 81 – publicado entre 1945 e
1949 – reflectiu nas suas páginas uma concepção modernizada da ac-
ção de uma organização de tempos livres, provando o conhecimento
que alguns agentes estatais possuíam dos métodos da política social
aplicados aos lazeres. Felner da Costa, o seu director, reafirmou, em Ju-
nho de 1946, os fundamentos básicos da política social:

E porque obter uma existência tranquila e cómoda para os que trabalham, é um de-
ver a que ninguém se deve furtar, eis a razão pela qual os sociólogos procuram solu-
cionar, um a um, os problemas que se podem destacar da complexa Questão Social,
concorrendo assim para a resolução integral do sistema. (…) Procurei demonstrar a
razão do problema e dar-lhe a solução capaz. Sorel afirmou que o socialismo aspirava
a transportar para a sociedade o regime da oficina, eu poderei afirmar que aspiro a
transportar para a oficina o regime da sociedade.82

Os espaços onde se desenvolviam as modernas opções económicas


eram os mesmos onde se traçavam as novas fronteiras da luta social.
A oficina, a fábrica ou a empresa, as células da indústria e do capitalismo,
eram, simultaneamente, o berço da Questão Social ou, sem eufemis-
mos, da luta de classes. Se a opção envolvia riscos, conheciam-se meca-
nismos – os sociólogos estudaram-nos83 – que podiam contribuir para
transformar o local de trabalho num socializador benéfico das relações

81. A publicação da FNAT parecia dirigir-se essencialmente aos quadros intermédios e outros funcionários da organização, no
sentido de fazer a pedagogia da utilidade das técnicas de política social aplicadas ao universo dos lazeres.
82. Felner da Costa, “A Monotonia do Trabalho”, em Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 6, Junho de 1945, p. 75.
83. A monotonia no trabalho foi o modo como Felner da Costa se referiu aos problemas colocados pela industrialização e pelo
capitalismo: “Verifica-se a necessidade instante de estudar o assunto no sentido positivo, abstraindo-nos de condenar o sistema
económico que lhe deu origem. O estudo do sistema compete aos economistas; o estudo dos problemas resultantes pertence aos
sociólogos.” Entre os sociólogos que Felner da Costa sabia tratarem destas questões, procurando os efeitos de “compensação”
para os problemas da modernidade, encontravam-se: Ludwig Heyde, Émile Durkheim, Max Weber, Werner Sombart, Georg
Simmel, Ferdinand Tönnies, Franz Oppenheimer, Leopold von Wiese, Gaetan Pirou, Heinz Zilcher, Bruno Rauecker e Conwell
Evans. Felner da Costa, A Monotonia do Trabalho, FNAT, 1945, p. 10.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

quotidianas. Estes mecanismos procuravam, como Felner da Costa refe-


riu, inverter a apregoada conquista da sociedade pela fábrica insubmis-
sa: seriam, ao contrário, os valores da sociedade que deviam socializar
a fábrica. Tendo em conta as características do regime do Estado Novo,
que valores eram estes?
Os regimes políticos que lidavam com transformações estruturais mo-
dernas partilhavam a intenção de aplicar políticas sociais. A capacidade
de concretização dessas políticas divergia consoante as características
mediadoras do aparelho institucional de cada país. Os regimes demo-
-liberais modernos alicerçavam a sua legitimidade num conjunto de
ideologias e instituições que protegiam formalmente o exercício da von-
tade geral. A consagração da livre expressão da opinião e da participação
através de um conjunto de mecanismos democráticos – as Constitui-
ções, os tribunais, os parlamentos e as eleições plurais, os sindicatos –
enquadrava uma sociedade civil em progressiva solidificação.84 A pos-
sibilidade concedida aos cidadãos de participarem livremente nos des-
tinos do seu país tornou-se num poderoso mecanismo de integração
social. Os países com regimes demo-liberais, admitindo que a formali-
dade democrática é inoperante se um mínimo de direitos sociais, aqueles
mais relacionados com a vida quotidiana, não for garantido às popula-
ções – como se percebeu depois de 1929 – construíram no pós-guerra
um modelo de Estado-Providência que tentava completar de forma har-
moniosa um universo de legitimação política e económica.85 No Estado
Novo, o caminho para a modernização teria que coexistir com o constran-
gimento actuante, embora em progressivo desvanecimento, de valores
e doutrinas tradicionais. A actividade da FNAT, constituindo-se numa
aproximação a esse esforço de regulação moderna, exprimiu as contra-
dições inerentes a um Estado que perseguia determinados objectivos,
procurando gerir os vários interesses que o suportavam.
A utilização da dimensão cultural e recreativa para regular expecta-
tivas sociais, para combater os efeitos perversos de um desejo de mo-
bilidade que se sabia não poder ser satisfeito estruturalmente, podia,

84. Citando Eisenstadt: “Sectores apolíticos, relativamente passivos, da sociedade foram transformados e tornados politicamen-
te activos, expressando não só os interesses discretos de diferentes grupos, mas também concepções diferentes e em competi-
ção quanto ao bem comum; actores mais activos em arenas dispersas passaram a participantes, ao menos potenciais, da arena
política central.” S.N. Eisenstadt, op. cit., p. 26.
85. Alexander Hicks, op. cit., pp. 76-127.

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de modo paradoxal, fornecer instrumentos aos indivíduos para com-


preenderem e combaterem as iniquidades do regime, colocando em
causa os seus limites estruturais. A cultura era temida, pela sua hipo-
tética acção emancipatória, pelas suas perigosas relações políticas, pelo
seu frequente desequilíbrio formal. Em tese apresentada, em 1944, ao
II Congresso da União Nacional, intitulada O Aproveitamento do Tempo
Livre Disponível dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, cuja
autoria é atribuída ao Pelouro da Actividade Cultural da FNAT, foram
expressos com clareza os receios que um descontrolo na organização
dos lazeres podia provocar:

Esta receptividade do povo para com a cultura de tipo escolar, de médio ou alto
grau, suscita a reflexão demorada de quem esteja habituado a tratar com atenção os
problemas sociológicos. Com efeito, o homem do povo que corresponde à chamada
das instituições de cultura é movido pelo secreto ou confessado desejo de uma me-
tamorfose mental. E seja qual fôr a intenção privada e o resultado individual da assi-
milação dos dados da cultura este fenómeno é sempre acompanhado de aspectos
que devem ser sociologicamente analisados: a alteração do nível intelectual, a perda
do carácter popular, a distinção em frente da comunidade profissional, o desequilí-
brio social. A cultura desloca certos indivíduos do ambiente concreto a que estavam
adaptados, sem que por virtude própria os transfira para mais alta situação profissio-
nal e social. A alteração da capacidade de saber, o aperfeiçoamento das faculdades
intelectuais, o desenvolvimento do espírito crítico, o apuramento do gôsto estético,
etc., em breve formulam exigências cuja satisfação já não compete às instituições
de cultura e que, insatisfeitas, suscitam melindrosos problemas de ordem pública.86

A análise da situação social do país nos anos 60, efectuada por Her-
mínio Martins, descreve um contexto no qual os receios aludidos pelo
texto que a FNAT publicou em 1944 se tornaram mais prementes:

(…) na esfera do consumo, houve uma apropriação por parte dos estratos inferiores
de muitos correlativos simbólicos do status da classe média, de tal modo que o
“efeito de gota” – agarrar constantemente o antigo e ser ultrapassado pelos novos
símbolos de consumo dos estratos superiores – está certamente a funcionar na si-
tuação presente. É duvidoso que possa assumir de facto a mesma função estabiliza-
dora que tem nas sociedades mais industrializadas.87

86. O Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, edição da FNAT, 1944, p. 14.
87. Hermínio Martins, Classe, Status e Poder, ICS, Lisboa, 1998, p. 130.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

O medo dos efeitos políticos e sociais resultantes de uma experiência


individual com a cultura obrigava a um método de regulação. Colecti-
vizavam-se as práticas, rejeitavam-se as formas transgressoras e os
conteúdos polémicos. No interior destes limites, a FNAT organizaria
as suas actividades:

A cultura dirigida a homens adultos, estabilizados numa profissão e num ambiente


social, não perseguirá fins excessivamente elevados nem utilizará meios perturba-
dores. Terá em vista, principalmente, o aperfeiçoamento profissional do trabalhador,
quer para melhor enquadramento na unidade económica em que labora, quer para
mais viva intervenção pessoal no organismo corporativo de que é membro. Visará
também a formação da consciência política, revelando a cada trabalhador o grau de
solidariedade e parcela de responsabilidade que lhe pertence no movimento pro-
gressivo da Nação.88

A evolução do país, consequência das opções económicas, acentuou


os contornos carregados de uma dualidade estrutural. A intervenção re-
guladora dos tempos livres reflectiu essa cisão. A Junta Central das Ca-
sas do Povo, criada em 1945, tinha como função adaptar a regulação dos
tempos livres ao mundo rural. Neste espaço, a política social e cultural
insistiu numa postura tradicionalista, combatendo a comunicação ine-
vitável entre o mundo da cidade e o mundo do campo. A batalha pela ma-
nutenção das características que tornavam autêntico o povo português,
ameaçado pelos vírus da modernidade e do capitalismo, foi um prin-
cípio caro aos lazeres no mundo rural. Se a “questão social” era uma
fatalidade da modernidade urbana que urgia remediar, a sua propaga-
ção aos eternos campos lusitanos era intolerável. Como refere Manuel
Lucena, a lei sindical de 1933 só previa a sindicalização de empregados
e operários do comércio e da indústria.89 Só nestes espaços profissio-
nais se admitia, no âmbito das corporações, a existência de associações
de classe. O meio rural definia-se por uma “organização profissional,
não diferenciada”, isto é, por “natureza” as questões classistas não lhe
seriam inerentes. A comunidade rural resistiria, unida pela força esta-
bilizadora das suas elites, porta-vozes locais da ordem e dos princípios

88. O Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores Portugueses pela Cultura Popular, edição da FNAT, 1944, p. 14.
89. Manuel de Lucena, “Casas do Povo”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena
Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, p. 246.

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centrais, pela acção da Igreja Católica, pelo perdurar de vínculos quase


servis. Ao contrário do universo urbano, as Casas do Povo continua-
ram a merecer, até 1971, uma publicação mensal: O Mensário das Casas
do Povo. O jornal dirigia-se às elites locais, os notáveis, médicos, pro-
fessores, padres e comerciantes que, idealmente, se constituíram como
as instâncias intermédias entre o poder central e as populações, os agen-
tes da regulação social. Na sua tarefa educativa, manuseariam os ins-
trumentos mediadores de uma “cultura popular” moldada pela prática
etnográfica oficial.90
No espaço urbano e empresarial, a FNAT, a partir de 1949, deixou de ter
publicações: as características da sua acção ideológica dispensavam-nas.
Até 1949, o Boletim da FNAT converteu-se no espaço de reflexão teórica
sobre a acção envolvente dos tempos livres numa ordem industrial à
qual nenhum país se deveria, sob pena de um atraso irremediável, furtar.
Em Julho de 1946, Felner da Costa citou longamente o escritor An-
tónio Cândido:

Gosto de ver o povo nas festas, nos divertimentos públicos. Precisa disso. (…) O tra-
balho violento, as privações de todos os dias, a miséria do desamparo, a comparação
com outros destinos que são ou parecem melhores, o assombro de tantas coisas
inexplicáveis no mundo e na consciência, a impossibilidade de contemplar a vida no
conjunto dos seus aspectos, e de repousar assim a inteligência em alguma verdade
geral – tudo isto, se não houvera compensações, tornaria verdadeiramente insupor-
tável a existência de numerosas classes, a que o morgadio social instituído em favor
deixa apenas o usufruto gratuito do sol, do ar, e de poucas coisas mais. O povo di-
verte-se pouco. É um sintoma grave; mais grave do que parece. Se eu governasse,
havia de proteger, de preferência a outras indústrias, a que tivesse por fim recrear,
alegrar e consolar e divertir o povo. (…) Mas a participação do povo nas festas públicas
tem diminuído sempre, cada vez mais. É pena; até porque, ao contrário daquele conhe-
cido verso de um grande poeta, um povo que folga não é nunca um povo perigoso.91

90. A tentativa da formação de quadros intermédios que sustentassem a dinâmica corporativa registou, mais uma vez, resulta-
dos negativos. Rogério Reis afirmava, em Agosto de 1968, nas páginas do Mensário: “De resto, não falta quem pense que basta
marcar presença em ocasiões solenes e cumprimentar entidades representativas (alguém disse que ‘politicamente, o que pare-
ce é’) para exibir uma espécie de comunhão de desobriga… que na prática se contradiz. Na verdade, sem irmos todos os que de
algum modo podem – verdadeiros proprietários, sacerdotes, professores, diplomados, intelectuais – ao encontro das prementes
realidades e das aspirações da gente rural, como conter o seu êxodo e a sua insatisfação? Como elevar-lhe o nível mental, cívico,
económico e familiar? Como aperfeiçoar as Casas do Povo? Como alargar a sua rede e o seu labor? Rogério Reis, “As Casas do
Povo e a valorização rural”, Mensário das Casas do Povo, n.o 266, Agosto de 1968, p. 10.
91. António Cândido, citado por Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – VI
– A alegria no trabalho”, in Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 19, Julho de 1946, p. 134.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

O receituário – prospectivo no que respeita à importância crescente


das indústrias culturais – passou pelos pontos essenciais da doutrina so-
cializante dos tempos livres, várias vezes assinalada no Boletim da
FNAT. Devido à acção da FNAT “já não é luxo, nem coisa só para ricos,
o serão cultural e recreativo, a ‘hora da arte’; já não é só na cidade e na
vila que funciona o clube ou a sociedade, que há o grupo teatral, o rancho
folclórico, o grupo de futebol (…) Pelo que respeita à cidade já não se en-
contra a família de um trabalhador que dispense a manifestação de arte,
o operário a quem não interessa a competição desportiva do grupo da
empresa onde trabalha.”92
Nas relações de trabalho operava-se a transformação da condição
simbólica do operário, combatendo-se as imagens e os seus fabrican-
tes, que pretendiam fazer reflectir nas consciências individuais a sua
condição colectiva objectiva: “O trabalhador, considerado economica-
mente como factor de produção, não vai ser apreciado como instru-
mento de trabalho, mas dignamente, como colaborador e associado
da produtividade.”93 Felner da Costa parecia dirigir a sua pedagogia
aos patrões portugueses, ainda distantes das técnicas modernas de
regulação:

É mais um segredo do patrão do que uma exigência do operário. As empresas que


seguem as novas directrizes sociais só têm a lucrar com essa política, pois ela, reco-
nhecendo o valor humano do trabalhador, dá a este a certeza de que exerce a sua acti-
vidade como associado aos destinos da empresa, pelos vínculos da corporação. (…)
Constituindo uma verdadeira família.94

Em 1936, Salazar afirmara que a família era assunto sagrado, não


sendo alvo de qualquer discussão ou conflito: “Aí nasce o homem, aí
se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo de afectos sem os
quais o homem dificilmente pode viver.”95 A transposição para a fábrica

92. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – Para um Melhor Nível Moral
e Cultural do Trabalhador Português”, in Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT”, n.o 41, Maio de 1948, p. 107.
93. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – I – O trabalho e a técnica”, in
Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, n.o 9, Setembro de 1945, p. 138.
94. Felner da Costa, “Alguns aspectos da valorização económica dos trabalhadores portugueses – Para um Melhor Nível Moral
e Cultural do Trabalhador Português”, Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT, Setembro de 1948, pp. 187-188.
95. António de Oliveira Salazar, Salazar – Discursos, Notas, Relatórios, Teses, Artigos e Entrevista (1909-1953), edição do SPN/SNI,
editorial Vanguarda, 1954, p. 13.

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A Ópera do Trindade

deste pequeno mundo de afectos, instituindo-se a alegria no trabalho,


era uma das operações com que Felner da Costa pretendia levar para
a oficina o modelo da sociedade.

O Portugal do pós-guerra e o crescimento


da FNAT
Em 1941, Lisboa foi palco de importantes greves operárias. No mesmo
ano, a FNAT, com a colaboração da Emissora Nacional, transmitiu, a
partir da Fábrica de Loiça de Sacavém, o seu primeiro serão para traba-
lhadores.
A repercussão na FNAT da opção industrial do governo foi a expres-
são, no pós-guerra, da morosidade do processo de modernização. Apesar
disto, são de assinalar algumas iniciativas importantes. A criação dos
Centros de Alegria no Trabalho (CAT) foi regulamentada em 28 de De-
zembro de 1940, pelo Decreto-Lei 31.036.96 Apesar de uma dissemina-
ção abrangente, a sua natureza adaptava-se, preferencialmente, a um
contexto empresarial. Em Março de 1945, a publicação do Decreto-Lei
n.o 34.446, que regulava a distribuição de refeições em refeitórios orga-
nizados, apontava para a mesma opção estrutural. O problema da re-
feição converteu-se num objecto de análise social bastante rico:

A crescente extensão da actividade industrial e a necessidade de proporcionar aos


trabalhadores habitações higiénicas e de rendas acessíveis, as quais, por virtude da
expansão das áreas urbanas, tendem a afastar-se dos locais de trabalho, torna para
aqueles difícil, se não impossível, a deslocação a suas casas à hora das refeições.97

A defesa da unidade da família, contra outras unidades menos pre-


zadas, princípio reiterado no primeiro parágrafo do preâmbulo da lei,
convivia com a retórica mais modernizadora: “O problema, já considera-
do e resolvido em grande número de países, tem interesse capital, não

96. Os CAT’s eram “núcleos de carácter cultural, recreativo e desportivo, constituídos por trabalhadores dependentes de organis-
mos oficiais e particulares e ainda os agrupamentos desportivos, culturais e recreativos de trabalhadores que tenham por objec-
to o aproveitamento útil das suas horas livres.” Dez Anos de Alegria no Trabalho (1935-1945), p. 163.
97. Decreto-Lei n.o 31.036.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

só enquanto procura defender a economia do trabalhador, mas tam-


bém quando encarado sob o aspecto higiénico…”98
A medida procurava, sobretudo, suprir as limitações de uma políti-
ca económica assente em salários baixos:

A resolução do problema, enquadra-se, em última análise, na política dos salários,


porquanto a fixação destes, quer por acto do Governo, quer por estipulação contra-
tual, é directamente influenciada pelo custo de vida e, designadamente, pelo custo
da alimentação do trabalhador, mormente no momento que atravessamos, em que
os preços acusam as repercussões do conflito internacional. O fornecimento de re-
feições económicas traduzir-se-á assim num aumento efectivo do salário.99

Pela formulação da lei, compreendia-se que a política social continua-


va a caracterizar-se por um voluntarismo governamental, distanciado
dos ideais dos patrões portugueses. O Estado viu-se obrigado a impor
às empresas a introdução das modificações que propunha. Para as mais
débeis, do ponto de vista financeiro, não se exigiu, como nas grandes
empresas, a criação de cozinhas económicas no espaço de trabalho100, mas
uma contribuição para o funcionamento de grandes cozinhas colectivas,
organizadas pela FNAT, na proporção do número de trabalhadores.
A acompanhar este conjunto de iniciativas desenvolveram-se as bases
de uma institucionalização do pensamento corporativo. Sob a direcção
de Pires Cardoso, nasceu o Gabinete de Estudos Corporativos do Cen-
tro Universitário de Lisboa da Mocidade Portuguesa. Formado, na sua
maioria, por um conjunto de intelectuais católicos, o Gabinete de Estu-
dos Corporativos esteve ligado à tentativa, iniciada em princípios dos
anos 50, de reorganizar o corporativismo português. A revitalização de
um corporativismo de livre associação pretendia aproximar Portugal
da organização económico-social europeia.101
Em 1949, aos microfones da Emissora Nacional, o presidente da FNAT,
Higino de Queiroz e Mello, no programa Alegria no Trabalho, caracteri-
zou a imagem pública da FNAT, qualificada como um “organismo de

98. Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945.


99. Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945.
100. Segundo o artigo 3.o da lei: “Incumbe às entidades patronais do comércio, da indústria, das profissões liberais, da organiza-
ção corporativa e de coordenação económica, criar refeitórios higiénicos e dotados com o mínimo de conforto, destinados a ser
utilizados pelo seu pessoal.” Decreto-Lei n.o 34.446, de Março de 1945.
101. Neste sentido, é essencial integrar nestas novas concepções de envolvimento económico e social a actividade editorial, prepon-
derante nos anos 60, das revistas de inspiração católica, Brotéria e Rumo, bem como, e principalmente, da Análise Social.

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vanguarda dentro do Estado Corporativo”, responsável por uma nova


configuração da relação política e ideológica entre o Estado e os cidadãos:

Todos sabem que dentro da FNAT não se faz política; nos Refeitórios como nas Co-
lónias de Férias as paredes não se encontram forradas de cartazes de propaganda,
como também não se fez ali a distribuição de panfletos. Os serões culturais e as
competições desportivas não servem de pretexto para conferências ou discursos
apologéticos. Quer, porém, isto dizer que a FNAT é um organismo apolítico? Por
forma alguma. A FNAT é um organismo de vanguarda dentro do Estado Corporativo.
(…) Despontou por fim um dia radioso de primavera que tu olhaste com desconfian-
ça, mas que a pouco e pouco te foi convencendo com as coisas novas que te oferecia,
a dignificação do trabalho, o horário de trabalho, as casas económicas, as Casas do
Povo e dos Pescadores, o abono de família, o auxílio na doença e na invalidez, o se-
guro de velhice, os contratos colectivos de trabalho, os salários mínimos, as férias
pagas, os refeitórios económicos, as colónias de férias para ti e para os teus filhos.102

Em 1950, a FNAT publicou os seus novos Estatutos103, e Higino Quei-


roz e Mello, presidente desde a fundação, foi substituído por Quirino
Mealha. A actividade continuava tripartida pelas atribuições de carácter
educativo, recreativo e económico-social, notando-se, no novo documen-
to que regulava a actividade da organização, um multiplicar de funções
e uma maior especificação das suas regras. Reflectia-se, deste modo,
uma crescente burocratização da instituição. Entre as funções educativas
e recreativas continuava a notar-se uma sobreposição em vários aspectos
essenciais, como as relações com os meios de comunicação social e a
orientação da actividade artística. As funções económico-sociais perma-
neciam, apesar da propaganda em contrário, um fraco substituto de uma
previdência estatal quase inexistente. A FNAT ficava ainda incumbida
da coordenação e fiscalização de todas as iniciativas referentes à cultura
popular. O surgimento em 1950 dos Centros de Recreio Popular, regu-
lamentados pelos novos estatutos da FNAT publicados nesse mesmo
ano, reforçou a cisão de estratégias no que diz respeito à intervenção
regional. Possuindo características similares aos CAT, os CRP passa-
vam a coordenar as organizações de trabalhadores criadas no espaço

102. Higino Queiroz e Mello, Alegria no Trabalho – Boletim da FNAT n.o 49, Janeiro de 1949, p. 2.
103. Aprovados pelo Decreto-Lei n.o 37.836, de 24/5/1950.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

institucional das Casas do Povo, Casas dos Pescadores e populações ru-


rais. A existência destes agrupamentos impedia os seus associados de se
filiarem noutras associações similares, fossem privadas ou oficiais.

>>>>>>>>>>>

A política económica imposta pelo governo nos anos 50 reflectiu uma


tentativa de desenvolvimento industrial que protegia o investimento in-
terno de toda a concorrência. A concepção de Planos de Fomento (com a
duração de seis anos) envolvia um tipo de modelo económico designado
por “Modelo de Industrialização por Substituição de Importações”. Man-
tendo-se o condicionamento industrial e o proteccionismo, entregava-se
o mercado interno ao investimento privado nacional abrigado da concor-
rência. Estava favorecida a concentração de capitais, gerando-se as condi-
ções para o desenvolvimento de fortes grupos industriais e financeiros.
Entre 1953 e 1958 – período referente ao primeiro Plano de Fomento –, a
taxa global de crescimento industrial situava-se nos 7,4 por cento por
ano.104 Apesar dos evidentes desequilíbrios estruturais105, a situação eco-
nómica do país iniciava, a partir dos anos 50, um período relativamente
próspero que acompanhou os anos dourados da economia europeia.106
Num quadro económico cada vez mais globalizado, Portugal era “obriga-
do” a estreitar relações com os outros países europeus. A insistência
numa economia fechada ao exterior contrariava a tendência que ia domi-
nando a organização do comércio internacional, pautada pela criação de
grandes plataformas de cooperação e regulamentação das trocas. Depois
de fazer parte do grupo de países beneficiados pelo Plano Marshall, ade-
rindo, em 1948, à OECE (organização que controlava a aplicação do
Plano), Portugal ingressou, em 1950, na União Europeia de Pagamentos
e, em 1955, assinou o Acordo Monetário Europeu. Foi um dos mem-
bros fundadores da EFTA – Associação Europeia de Comércio Livre, e,

104. Para este resultado contribuíram, fundamentalmente, de acordo com os princípios do Plano, as indústrias de base, desta-
cando-se as celuloses, as metalomecânicas, as químicas e as metalúrgicas. João Confraria, “Indústria”, em Dicionário de Histó-
ria de Portugal, vol. 8, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 263-264.
105. O sector agrícola, ganhando inicialmente com a quebra demográfica sentida nos campos, equilibrando-se a oferta e a pro-
cura de emprego, foi incapaz de se modernizar. A contínua sangria humana do interior do país repercutiu-se numa produção
agrícola tradicional, para a qual as modernas técnicas de cultivo, fossem as máquinas para lavrar os campos ou os adubos para
os fertilizar, eram uma miragem distante.
106. Ver José da Silva Lopes, A Economia Portuguesa desde 1960, Gradiva, Lisboa, 1996.

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em 1960, juntou-se ao FMI e ao Banco Mundial, aderindo, dois anos


mais tarde, ao GATT. O choque da economia portuguesa, num espaço de
comércio livre, com economias mais sólidas, apesar do estatuto especial
que o país apresentava no seio da EFTA, foi negativo para a economia na-
cional. As evidentes diferenças na divisão e especialização internacional
da produção provocaram uma troca desigual, e a possibilidade do fomen-
to de economias de escalas esbateu na nossa insuficiência produtiva.
A prossecução das novas opções económicas num contexto europeu
de globalização das trocas, apesar dos limites estruturais do desenvol-
vimento português, deu origem a importantes transformações sociais.
Entre meados da década de 50 e o final do regime, o país assistiu a pro-
fundas alterações. A dualidade estrutural acentuou-se com a decisiva,
mas deficiente, reestruturação do espaço económico. O sector indus-
trial transformou-se no motor do desenvolvimento perante o abandono
dos campos.107 Portugal litoralizou-se desequilibradamente e urbani-
zou-se, com as mais baixas taxas de toda a Europa, sendo incapaz de
criar uma rede de cidades intermédias.108 O impacto da modernização
portuguesa revelou-se ainda, de modo decisivo, na aproximação dos
indicadores sociais às médias europeias.109
A transformação do país, que se iniciou definitivamente em finais
da década de 50, proporcionou à FNAT um terreno mais propício ao
desenvolvimento das suas actividades de regulação que, em simultâneo,
se tornaram, do ponto de vista político, mais urgentes. O final da década
de 50 foi um período difícil para o governo. A união das oposições ao re-
gime em torno da candidatura à Presidência da República do general

107. O PIB cresce, entre 1957 e 1965, a um ritmo anual de 5,5 por cento contra 2,9 por cento da década anterior, registando, no pe-
ríodo entre 1965 e 1973, um aumento anual de 7,2 por cento O sector industrial é o grande responsável por esta evolução, cres-
cendo entre 1957 e 1973, a um ritmo anual de 8,6 por cento Destes valores, o sector primário, que, no início da década de 50,
representava 38,9 por cento do PIB, chega a 1970 com o valor de 20,2 por cento. Inversamente, o sector secundário cresce, no
mesmo período, de 23 por cento para 36 por cento. Pedro Lains, “Crescimento Económico”, em Dicionário de História de Portugal,
vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 460-461.
108. Deste modo, entre 1950 e 1970, a percentagem de população urbana situada na faixa litoral entre Setúbal e Braga passa de 57,9
por cento para 66 por cento, sendo a área metropolitana de Lisboa, especialmente através dos seus concelhos limítrofes, a gran-
de receptora desta população, crescendo, no mesmo período, mais de meio milhão de habitantes. Jorge Gaspar, “Cidades”,
idem, p. 317.
109. Se, em 1930, a esperança de vida era, respectivamente, para homens e mulheres, de 46,5 e 50,6 anos, no início da década de
70 registava os valores de 64,4 e 67,7 João Ferreira de Almeida, “Crescimento Económico”, em Dicionário de História de Por-
tugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, p. 511. Entre 1960 e 1970, Portugal
vê a sua taxa de mortalidade infantil reduzida de 65 por mil para 39 por mil (a média da Europa e América do Norte era 21), a
taxa de analfabetismo de 30 por cento para 25 por cento (a média da Europa e América do Norte era de 14 por cento, as suas ca-
lorias per capita de 2567 para 3108 mil (a média da Europa e América do Norte era de 3135). João César das Neves, “Economia”,
idem, p. 579.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

Humberto Delgado marcou o final da década.110 Vilaverde Cabral rela-


ciona esta instabilidade com o crescimento de uma nova classe média
urbana, terciarizada, mais escolarizada, frustrada nas suas expectativas
económicas.111
Quirino Mealha, em 1958, cedeu a direcção da FNAT a Bento Parreira
do Amaral. A criação da Junta de Acção Social e a aplicação do Plano de
Formação Social e Corporativa, tomando a FNAT como parceiro estraté-
gico fundamental, retiraram-lhe competências. A Fundação circuns-
creveu-se a objectivos mais precisos e mais consentâneos com a sua
natureza. A FNAT dispunha, enfim, apesar dos constantes conflitos com
o governo a propósito das suas atribuições financeiras, de condições
sociais mais adequadas ao exercício das suas funções de regulador e pa-
cificador do local de trabalho e, consequentemente, de eixo de contro-
lo da ordem social.

O crescimento da acção ideológica da FNAT

Pela consulta dos Relatórios de Actividades e Contas da FNAT durante


o terceiro quartel do século x x, verifica-se o crescimento rápido e sis-
temático da organização de ocupação de tempos livres.

FNAT: Evolução do Património, Número de Sócios,


Centros de Alegria no Trabalho e Centros de Recreio Popular
Quadro n°. 1

Ano . . . . . . . Património (Esc.) . . . . Índice . . . . . N°. Sócios . . . . . . Índice . . . . . N°. CAT’S . . . . N°. CRP’S

1950 . . . . . . 38.651.887 . . . . . . . . . 100,0 . . . . . 47.117 . . . . . . . . . 100,0 . . . . . . — . . . . . . . . . . —

1951 . . . . . . 38.096.941 . . . . . . . . . 98,6 . . . . . . 51.307 . . . . . . . . . 108,9 . . . . . . 238 . . . . . . . . . 23


1952 . . . . . . 38.611.739 . . . . . . . . . 99,9 . . . . . . 54.258 . . . . . . . . . 115,2 . . . . . . 258 . . . . . . . . . 31

1953 . . . . . . 42.067.681 . . . . . . . . . 108,8 . . . . . 57.370 . . . . . . . . . 121,8 . . . . . . 272 . . . . . . . . . 46

1954 . . . . . . 43.479.428 . . . . . . . . . 112,5 . . . . . 60.473 . . . . . . . . . 128,3 . . . . . . 91 . . . . . . . . . . 78

110. A gravidade da situação irá originar uma revisão da Constituição, em 1959, que retira aos cidadãos a possibilidade de elege-
rem o Presidente, passando esta mesma eleição a ser feita por colégio eleitoral restrito. Este colégio eleitoral era composto pelos
membros da Assembleia Nacional e da Câmara Corporativa e pelos representantes municipais de distrito ou de província ultra-
marina.
111. Vilaverde Cabral, “Classes Sociais”, em Dicionário de História de Portugal, vol. 7, coord. António Barreto e Maria Filomena
Mónica, Figueirinhas, Porto, 1999, pp. 335-336.

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A Ópera do Trindade

Ano . . . . . . . Património (Esc.) . . . . Índice . . . . . N°. Sócios . . . . . . Índice . . . . . N°. CAT’S . . . . N°. CRP’S

1955 . . . . . . 47.212.020 . . . . . . . . . 122,1 . . . . . 63.910 . . . . . . . . . 135,6 . . . . . . 301 . . . . . . . . . 92

1956 . . . . . . 50.847.873 . . . . . . . . . 131,6 . . . . . 67.452 . . . . . . . . . 143,2 . . . . . . 307 . . . . . . . . . 106

1957 . . . . . . 53.154.958 . . . . . . . . . 137,5 . . . . . 70.389 . . . . . . . . . 149,4 . . . . . . 303 . . . . . . . . . 104

1958 . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . 73.655 . . . . . . . . . 156,3 . . . . . . 322 . . . . . . . . . 105

1959 . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . 77.310 . . . . . . . . . 164,1 . . . . . . 329 . . . . . . . . . 101

1960 . . . . . . 82.942.226 . . . . . . . . . 214,6 . . . . . 81.998 . . . . . . . . . 174,0 . . . . . . 341 . . . . . . . . . 106

1961 . . . . . . 88.408.119 . . . . . . . . . 228,7 . . . . . 86.499 . . . . . . . . . 183,6 . . . . . . 356 . . . . . . . . . 112

1962 . . . . . . 103.190.634 . . . . . . . . 267,0 . . . . . 92.460 . . . . . . . . . 196,2 . . . . . . 372 . . . . . . . . . 113

1963 . . . . . . 10.884.288 . . . . . . . . . 286,9 . . . . . 99.260 . . . . . . . . . 210,7 . . . . . . 389 . . . . . . . . . 116

1964 . . . . . . 120.759.599 . . . . . . . . 312,4 . . . . . 104.867 . . . . . . . . 222,6 . . . . . . 441 . . . . . . . . . 135

1965 . . . . . . 132.098.960 . . . . . . . . 341,8 . . . . . 111.195 . . . . . . . . 236,0 . . . . . . 481 . . . . . . . . . 137

1966 . . . . . . 144.981.923 . . . . . . . . 375,1 . . . . . 118.500 . . . . . . . . 251,5 . . . . . . 498 . . . . . . . . . 123

1967 . . . . . . 163.223.866 . . . . . . . . 422,3 . . . . . 127.890 . . . . . . . . 271,4 . . . . . . 541 . . . . . . . . . 128

1968 . . . . . . 178.106.182 . . . . . . . . 460,8 . . . . . 138.177 . . . . . . . . 293,3 . . . . . . 582 . . . . . . . . . 142

1969 . . . . . . 206.811.072 . . . . . . . . 535,1 . . . . . 147.264 . . . . . . . . 312,5 . . . . . . 626 . . . . . . . . . 148

1970 . . . . . . 239.272.069 . . . . . . . . 619,0 . . . . . 158.775 . . . . . . . . 337,0 . . . . . . 658 . . . . . . . . . 156

1971 . . . . . . 274.190.945 . . . . . . . . 09,4 . . . . . . 169.729 . . . . . . . . 360,2 . . . . . . 694 . . . . . . . . . 154

1972 . . . . . . 308.316.811 . . . . . . . . 797,7 . . . . . 180.762 . . . . . . . . 383,6 . . . . . . 728 . . . . . . . . . 159

1973 . . . . . . 345.179.194 . . . . . . . . 893,0 . . . . . — . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . 913 . . . . . . . . . 152

1974 . . . . . . 388.392.989 . . . . . . . . 1004,8 . . . . — . . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . — . . . . . . . . . . —


Fonte: Relatórios de Actividade e Contas da FNAT (1952-1974)

Gráfico n°. 1

Património da FNAT nos anos de 1950 a 1974

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

Gráfico n°. 2

Número de sócios da FNAT nos anos de 1950 a 1972

Em relação aos seus beneficiários, os responsáveis da Fundação afir-


mavam que os números descritos estavam longe de se aproximar da
realidade. Por um lado, bastava que o chefe de família fosse associado
para o resto dos membros do seu agregado poderem beneficiar das acti-
vidades da FNAT, por outro, os sócios das Casas dos Pescadores, Casas
do Povo, dos Centros de Alegria no Trabalho (CAT) e dos Centros de Re-
creio Popular (CRP) estavam dispensados de inscrição. Segundo o Rela-
tório de Actividade e Contas de 1963, o número de beneficiários atingido
nesse ano, cerca de cem mil, era, na realidade, bastante maior. Se um
agregado familiar teria, em média, quatro pessoas, era necessário adi-
cionar aos cem, mais 300 mil beneficiários. Concluía a FNAT que se a
estes 400 mil se juntassem os sócios dos outros organismos corpora-
tivos acima indiciados, a organização estava ligada, directa ou indirec-
tamente a “muito mais de um milhão de pessoas”112.
O crescimento anual do património da FNAT situou-se, com a excep-
ção de 1974, bem acima dos números da inflação. Esta evolução patrimo-
nial tem origem na necessidade das suas infra-estruturas suportarem
a procura por parte das populações. Entre 1950 e 1974, o património
da FNAT, a preços correntes, cresceu dez vezes (de 38.651.887$00 para
388.392.989.$00). O aumento do património decorreu, fundamental-
mente, da actividade económico-social, em especial do investimento

112. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1963, Março de 1964, Arquivo do INATEL, p. 4

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A Ópera do Trindade

nas colónias de férias. Parcela importante da despesa da FNAT era con-


duzida para a actividade económica e financeira.

Gráfico n°. 3

Variação em percentagem do IPC e do Património da FNAT


nos anos de 1961 a 1974

A comparação da evolução do património da FNAT com a evolução


do índice de preços demonstra que a organização de tempos livres cres-
cia bem acima da economia. Só em 1973, como resultado da crise econó-
mica provocada pelo choque petrolífero, é que se nota um abrandamento
do crescimento da FNAT em relação à inflação.
A evolução do número de CAT e CRP revela uma delimitação pro-
gressiva da área geográfica e social da actuação da FNAT.

Gráfico n°. 4

Evolução de CAT e CRP nos anos de 1951 a 1973

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

A ligação da FNAT ao tecido económico, observada pelo crescente vín-


culo, através dos CAT, ao quotidiano das empresas, reforçou a inserção
urbana da instituição. O caso dos refeitórios económicos foi, a este
propósito, paradigmático. Como referiu o Relatório de Actividade e Con-
tas de 1967:

O surto de desenvolvimento industrial que acentuadamente se tem feito sentir nos


últimos anos, teve inevitavelmente grandes repercussões na vida de muitos milha-
res de trabalhadores que por força dele tiveram que ingressar em muitas Empresas.
Assim, para essa massa de trabalhadores – a maior parte deslocada da província –
houve que estudar não só a sua instalação em bairros apropriados, como também
conceder-lhes alimentação (almoço) e géneros nas Cantinas a fim de acorrer às suas
necessidades primárias. Estas medidas tiveram que ser tomadas muitas vezes não
só tendo em vista, com estes benefícios, um complemento de salário, mas ainda
para suprir a falta das infraestruturas necessárias em muitos locais em que foram
instaladas as novas unidades fabris.113

>>>>>>>>>>>

A impossibilidade de acesso aos mapas contabilísticos dos Relatórios


de Actividade e Contas da FNAT não permitiu uma avaliação mais ri-
gorosa da distribuição funcional das receitas e das despesas.

FNAT: Evolução da Receita Ordinária e da Despesa Ordinária


Quadro N.° 2

Ano . . . . . . . Receita Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice . . . . . . . . . .Despesa Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice

1953 . . . . . . 22.901.870 . . . . . . . . . . . . . . . . . .100,0 . . . . . . . . . . .18.830.419 . . . . . . . . . . . . . . . . . .100,0


1954 . . . . . . 26.376.281 . . . . . . . . . . . . . . . . . .115,2 . . . . . . . . . . .22.897.306 . . . . . . . . . . . . . . . . . .121,6

1955 . . . . . . 30.047.594 . . . . . . . . . . . . . . . . . .131,2 . . . . . . . . . . .28.313.651 . . . . . . . . . . . . . . . . . .150,4


1956 . . . . . . 31.421.747 . . . . . . . . . . . . . . . . . .137,2 . . . . . . . . . . .29.400.032 . . . . . . . . . . . . . . . . . .156,1

1957 . . . . . . 35.674.271 . . . . . . . . . . . . . . . . . .155,8 . . . . . . . . . . .32.142.054 . . . . . . . . . . . . . . . . . .170,7

1958 . . . . . . 39.138.027 . . . . . . . . . . . . . . . . . .170,9 . . . . . . . . . . .35.665.415 . . . . . . . . . . . . . . . . . .189,4

1959 . . . . . . 39.439.141 . . . . . . . . . . . . . . . . . .172,2 . . . . . . . . . . .36.705.945 . . . . . . . . . . . . . . . . . .194,9

113. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 1968, Arquivo do INATEL, p. 38. Das empresas e instituições que tinham
refeitórios organizados pela FNAT encontravam-se, só em Lisboa, entre outras: o Arsenal do Alfeite, BP, Cidla, Firestone, Mer-
cauto, Metropolitano, Mobil, Sacor, Sécil, Central de Cervejas, Sopac, Soponata, Tabaqueira, TAP, Porto de Lisboa, Refinaria do
Ultramar, Sonap, Cometna, Dyrup, Cabos d’Ávila, Publicações Europa América, Somapre, Sores, Valentim de Carvalho. Ibidem,
p. 41, e Relatório de Actividade e Contas de 1969, p. 36.

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A Ópera do Trindade

Ano . . . . . . . Receita Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice . . . . . . . . . .Despesa Ordinária (Esc.) . . . . . . .Índice

1960 . . . . . . 36.471.324 . . . . . . . . . . . . . . . . . .159,3 . . . . . . . . . . .34.320.264 . . . . . . . . . . . . . . . . . .182,3

1961 . . . . . . 39.166.332 . . . . . . . . . . . . . . . . . .171,0 . . . . . . . . . . .36.696.677 . . . . . . . . . . . . . . . . . .194,9

1962 . . . . . . 47.850.599 . . . . . . . . . . . . . . . . . .208,9 . . . . . . . . . . .41.693.539 . . . . . . . . . . . . . . . . . .221,4

1963 . . . . . . 53.638.063 . . . . . . . . . . . . . . . . . .234,2 . . . . . . . . . . . — . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . —

1964 . . . . . . 60.995.204 . . . . . . . . . . . . . . . . . .266,3 . . . . . . . . . . .49.904.110 . . . . . . . . . . . . . . . . . .265,0

1965 . . . . . . 75.552.573 . . . . . . . . . . . . . . . . . .329,9 . . . . . . . . . . .63.660.770 . . . . . . . . . . . . . . . . . .338,1

1966 . . . . . . 107.273.337 . . . . . . . . . . . . . . . . .468,4 . . . . . . . . . . .93.363.648 . . . . . . . . . . . . . . . . . .495,8

1967 . . . . . . 107.798.646 . . . . . . . . . . . . . . . . .470,7 . . . . . . . . . . .94.372.641 . . . . . . . . . . . . . . . . . .501,2

1968 . . . . . . 99.882.901 . . . . . . . . . . . . . . . . . .436,1 . . . . . . . . . . .83.315.209 . . . . . . . . . . . . . . . . . .442,5

1969 . . . . . . 121.298.773 . . . . . . . . . . . . . . . . .529,6 . . . . . . . . . . .93.405.275 . . . . . . . . . . . . . . . . . .496,0

1970 . . . . . . 131.381.758 . . . . . . . . . . . . . . . . .573,7 . . . . . . . . . . .99.825.567 . . . . . . . . . . . . . . . . . .530,1

1971 . . . . . . 144.194.306 . . . . . . . . . . . . . . . . .629,6 . . . . . . . . . . .108.289.268 . . . . . . . . . . . . . . . . .575,1

1972 . . . . . . 158.430.174 . . . . . . . . . . . . . . . . .691,8 . . . . . . . . . . .124.392.368 . . . . . . . . . . . . . . . . .660,6


Fonte: Relatórios de Actividade e Contas da FNAT (1953-1972)

Gráfico n°. 5

FNAT: Receita e Despesas Ordinárias nos anos de 1953 a 1971

Os números possibilitam, no entanto, acompanhar a progressão do


investimento da Fundação e as prioridades da sua despesa.114 A activi-
dade económico-social, que incluía as colónias de férias, as cozinhas,
refeitórios e cantinas, e as albergarias, levava a fatia mais grossa do or-

114. A lacuna em relação aos dados das despesas administrativas impede uma ideia mais concreta do crescimento burocrático da FNAT.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

çamento. Em 1957115, representava 76,3 por cento da despesa ordinária


(24.547.121$00 sobre o total de 32.142.054$00), para, em 1969116, repre-
sentar 59,7 por cento (55.819.131$ sobre um total de 93.405.275$00).
Os Centros de Férias sempre registaram grande procura. A FNAT con-
siderava a sua acção fundamental, especialmente pelo modo como col-
matavam algumas insuficiências da vida regular dos trabalhadores,
provocadas pelo “crescente urbanismo nos grandes centros populacio-
nais que, pela carência de casas em condições normais de habitabilida-
de, obriga muitas famílias de trabalhadores a viver em acanhadas partes
de casa, em quartos ou mesmo barracas.”117 As férias seriam, assim, um
útil escape ao quotidiano, ainda mais porque “o aumento galopante do
custo de vida, aliado ao surto turístico que se vem acentuando dia-a-dia,
torna proibitiva para a maioria dos trabalhadores portugueses a utilização
de instalações hoteleiras, mesmo de pensões modestas. Desta maneira, a
Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho é a única forma possível,
para muitos, de poderem, quer na praia ou no campo, retemperarem o
organismo do grande esforço a que a vida moderna os obriga.”118
O turismo social, integrado no interior da actividade socio-económica,
tornou-se no motor da actividade da instituição. A atenuação das tensões
inerentes à “vida moderna” justificava uma regulação social que incidia so-
bre grupos sociais prejudicados pela fraca remuneração do factor trabalho.
Por seu lado, a actividade cultural, em 1957119, representava oito por
cento da despesa ordinária (2.559.657$00), para, em 1969120, represen-
tar 8,7 por cento (8.096.514$00). Parte substancial da despesa com a
parte cultural destinou-se, a partir de 1963, à programação do Teatro
da Trindade. Em 1963121, de um total de investimento em actividade cul-
tural de 8.622.968$00, 3.863.167$00 foram gastos com o Trindade, ou
seja, 45 por cento, para, em 1965122, o Trindade representar 55 por cen-
to (4.043.033$00 sobre 7.386.397$00) do investimento da área cultural.

115. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1957, 1958, Arquivo do INATEL, p. 61.
116. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, pp. 58-59 e Relatório de Actividade e Con-
tas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 54-55.
117. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, p. 27.
118. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1973, 1974, Arquivo do INATEL, p. 30.
119. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1957, 1958, Arquivo do INATEL, pp. 57-61.
120. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, pp. 58-59.
121. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1963, Março de 1964, p. 30.
122. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, p. 7.

73
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A Ópera do Trindade

Em termos substanciais, a actividade cultural foi registando um aumen-


to de dotação significativo. Mas quando comparada com os números da
actividade desportiva, notam-se diferenças consideráveis. Passando a con-
tar, a partir de 1962, com parte da percentagem de receitas do Totobola,
o desporto da FNAT cresceu muito. Se, em 1962123, a despesa com o des-
porto representava quase metade da registada com a actividade cultural,
(3.109.257$00 e 5.099.127$00, respectivamente), em 1967124, é mais
do triplo (19.760.578$00 e 6.074.553$00, respectivamente).
A evolução da receita da FNAT revela ainda os limites da sua autono-
mia financeira, questão remissível às relações da Fundação com as
instâncias estatais que a financiavam. As receitas da FNAT provinham
essencialmente de duas origens: dos Organismos Corporativos e de Co-
ordenação Económica e das Caixas de Previdência e das contribuições
dos beneficiários e encargos resultantes dos serviços da FNAT. As outras
receitas, tal como os donativos de identidades públicas e privadas, os
juros de fundos capitalizados e o dinheiro resultante da renovação anual
dos cartões tinham um peso pouco expressivo. Apenas as receitas das
Apostas Mútuas chegaram a atingir quantias consideráveis no seu or-
çamento anual. No primeiro ano (1962)125 representaram 8,4 por cento
da receita ordinária da Fundação, ou seja, 4.001.377$00 para um total
de 47.850.599$00. Em 1969126, as receitas do Totobola atingiram o seu
ponto máximo: 20,2 por cento da receita ordinária (24.500.171$00 so-
bre 121.298.173$00).
Eram as receitas provenientes do Estado, por um lado, e as receitas pró-
prias, por outro, que sustentaram a FNAT. A sua lógica de progressão
revela algumas tendências significativas. A primeira é o decréscimo
acentuado do peso relativo das receitas próprias: 70,2 por cento em
1955127, 64,4 por cento em 1960128, 61,8 por cento em 1965129, e 51,3 por
cento em 1970130. O investimento directo do Estado manteve-se, em

123. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1962, Março de 1963, p. 20.


124. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 18/3/1968, pp. 54-55.
125. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1962, Março de 1963, p. 18.
126. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1969, 2/3/1970, Arquivo do INATEL, p. 56.
127. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1955, 28/3/1956, Arquivo do INATEL, p. 41.
128. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1960, Março de 1961, Arquivo do INATEL, pp. 35-36.
129. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, Arquivo do INATEL, pp. 39-40.
130. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 52-53.Este dado não inviabilizou o seu
aumento absoluto nos quinze anos considerados: de 21.090.645$00, em 1955, para 67.388.881$00, em 1970. Ibidem.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

termos relativos, estável: 28,2 por cento em 1955131, 33,5 por cento em
1960132, 20,4 por cento em 1965133, e 31 por cento em 1970134. Há que
considerar, no entanto, a variação que, a partir de 1962, as Apostas Mú-
tuas introduzem no quadro. É impossível deixar de as considerar um
benefício estatal.
O aumento do investimento estatal não chegou para contentar as suas
sucessivas direcções, que consideravam ter a FNAT condições para
crescer mais: “Verifica-se que à medida que se vão desenvolvendo as
actividades da FNAT o seu número de beneficiários vai acompanhan-
do paralelamente aquela evolução.”135
As consecutivas direcções da FNAT sentiram que a organização só não
se desenvolvia em moldes mais eficazes por não possuir as condições
necessárias para incrementar a oferta de bens e serviços. Dotada de infra-
-estruturas, a FNAT poderia gerar verbas que, por si só, a sustentassem.
Determinadas actividades da Fundação, além do seu relevante efeito so-
cial, proporcionavam lucros consideráveis.
Em 1957, a organização das cantinas e refeitórios suscitou à direcção
de Quirino Mealha uma reclamação quanto à colaboração técnica e
funcional do Ministério das Corporações, bem como dos diversos organis-
mos corporativos. À semelhança do que sucedia noutros países, era im-
portante criar “sistemas de controle de modo a permitir que os serviços
sejam de engrenagem fácil, na sua maior parte mecanizados, de óptimo
rendimento de trabalho com pessoal muito reduzido e a burocracia ex-
tremamente simplificada (…) Os serviços têm de adaptar-se aos objec-
tivos específicos do Organismo e não serão estes que se têm de limitar
por causa daqueles. Será esta a orientação a imprimir à FNAT (…)136
Por falta de verba, a FNAT, ainda em relação aos refeitórios, não pôde
aproveitar os serviços do Centre d’Etudes & Organisation de Versailles,
que já realizara vários estudos em Portugal e com quem a direcção da
Fundação estivera em contacto. O mesmo motivo colocava a FNAT na

131. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1955, 28/3/1956, Arquivo do INATEL, p. 41


132. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1960, Março de 1961, Arquivo do INATEL, pp. 35-36.
133. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1965, 18/3/1966, Arquivo do INATEL, pp. 39-40.
134. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1970, 15/3/1971, Arquivo do INATEL, pp. 52-53
135. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1972, 19/3/1973, Arquivo do INATEL, p. 7. Imediatamente se afirma que o au-
mento do número de beneficiários exigiu que se comprassem dois ficheiros eléctricos rotativos de grande capacidade. Ibidem.
136. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1956, 1957, Arquivo do INATEL, p. 7.

75
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A Ópera do Trindade

contingência de perder alguns dos seus funcionários mais qualifica-


dos para as grandes empresas.137
Os protestos da FNAT pela falta de condições financeiras, indepen-
dentemente da direcção que lhe presidia aos destinos, apresentaram
um carácter sistemático e ininterrupto. Mesmo nas ocasiões em que o
governo atendeu a estas reclamações, designadamente atribuindo à
instituição, em 1961138, percentagem de receitas do Totobola – con-
signadas a um investimento na actividade desportiva –, e alterando,
em 1967, de dois para três por cento a contribuição das Instituições de
Previdência para o orçamento da FNAT, o panorama continuava a não
satisfazer as ambições da direcção. Em relação a esta última medida,
refere a introdução do Relatório de Actividade e Contas relativo ao exercí-
cio de 1967: “(…) se este aumento não nos vem dar maiores possibili-
dades de expansão das actividades da FNAT para o futuro, teremos pelo
menos a inestimável vantagem de não vermos, de momento, mais agra-
vada uma situação que há vários anos se vinha gradualmente acen-
tuando.”139

>>>>>>>>>>>

A direcção da FNAT elaborou, em Julho de 1972, um documento que


procurava planear as suas actividades no período entre 1974 e 1979, o
mesmo espaço temporal em que o quarto Plano de Fomento enquadra-
ria as grandes opções económicas do país. De acordo com a resolução
do Gabinete de Planeamento da FNAT, procedeu esta a um diagnósti-
co de cada actividade da instituição, sendo apresentado, de seguida,
um conjunto de soluções, finalidades e acções. A sustentar a política
de desenvolvimento das diversas actividades específicas, impunha a
concretização definitiva de dois objectivos primordiais. Por um lado,
exigia do Estado um maior envolvimento financeiro, decisivo para a
Fundação conseguir responder ao constante crescimento da procura
dos seus serviços por parte das populações. Por outro lado, instava por
uma clarificação do universo da sua actuação. Algumas das atribuições

137. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1956, 1957, Arquivo do INATEL, p. 7.


138. Decreto-Lei n.o 43.777, de 3/7/1961.
139. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1967, 18/3/1968, Arquivo do INATEL, p. 3.

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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

e competências da FNAT sobrepunham-se às da Junta de Acção Social,


criada no já longínquo ano de 1956. A desejada depuração das funções
da organização de tempos livres implicava que as suas actividades se
cingissem à oferta de bens e serviços à qual eram inerentes os mes-
mos propósitos de regulação social, adicionada a uma perspectiva co-
mercial com horizontes sustentados:

Daquelas acções da competência da Junta de Acção Social e da FNAT salientam-se


as seguintes:
> Difusão dos princípios da legislação social e das suas realizações e estabelecimento
e coordenação dos meios adequados à formação de uma consciência dos deveres e
regalias dos trabalhadores, designadamente em matéria de organização corporativa,
regime de trabalho e previdência social.
> Edição de publicações, conferências e palestras com a utilização da Imprensa, Rádio,
Cinema e TV, com as finalidades referidas acima.
> Instalação de bibliotecas para trabalhadores.
> Estudo e divulgação da Higiene e Segurança no Trabalho.140

O último parágrafo presente no texto asseverava que “só com substan-


cial auxílio exterior, a FNAT poderá cumprir o plano traçado que se julga
não ser sequer muito ambicioso dentro das atribuições que competem ao
Organismo.”141
O Relatório e Contas da FNAT relativo ao ano de 1973, assinado pelo
novo presidente da Fundação, Fernando Moreira Ribeiro, cinco dias an-
tes do 25 de Abril, exprimia a intenção de constituir um grupo de tra-
balho, dirigido pelo Gabinete de Organização e Métodos do Ministério
das Corporações e Segurança Social, que seria responsável pela avalia-
ção da organização com os olhos postos numa reestruturação breve:
“impõe-se repensar a validade das estruturas existentes”142. Sobre este
estudo afirmou o novo presidente da FNAT:

Sem prejuízo do que se vier a apurar no final, parece evidente que convirá futuramen-
te à FNAT tentar substituir a sua actual administração tradicional, de índole predomi-
nantemente burocrática, por uma administração moderna, tipo “management”, em

140. Ibidem, p. 2
141. Ibidem, p. 80.
142. Relatório de Actividade e Contas da FNAT de 1973, 1974, Arquivo do INATEL, p. 3.

77
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A Ópera do Trindade

que os princípios de gestão por objectivos, participação, rendibilidade, planeamento


e controle teriam inteira aplicabilidade.143

A flexibilização da FNAT, de acordo com os pressupostos de uma em-


presa moderna, assentava na evidência de que, além das suas funções
sociais basilares, a instituição podia tornar-se, caso lhe fossem propor-
cionadas garantias de crescimento ao nível das infra-estruturas, numa
organização financeiramente auto-sustentada.
Apesar das tensões com as instâncias estatais de que dependia, a FNAT,
a partir dos anos 50, desenvolveu consideravelmente as suas actividades
e, em consequência, a vertente socializadora das práticas quotidianas,
eixo fundamental da acção ideológica. Ao contrário da análise sugerida
por José Carlos Valente, considerando que, a partir de 1958, “a FNAT
ganha em massa associativa e estrutura orgânica, mas perde em con-
teúdo e actuação ideológica própria”144, é precisamente quando “tende
a tornar-se uma rede de infraestruturas burocráticas, prestadora de ser-
viços e distribuidora de orientações emanadas de órgãos colegiais”145,
que a FNAT conseguiu, na prática, demonstrar o potencial da sua eficá-
cia ideológica. O crescimento da FNAT relacionou-se com as condições
criadas pelo contexto de modernização do país, especialmente a partir
dos anos 60. Neste processo, um conjunto de tensões institucionais
obviou a uma clarificação mais sistemática e precoce das suas atribui-
ções e competências. Foi apenas nos anos 70, próximo do 25 de Abril de
74, que parecia estarem reunidas as condições para a FNAT se afirmar
de forma mais eficaz como instrumento de uma política social moder-
na, praticamente depurado de qualquer intenção moralizante.
As contradições inerentes ao seu desenvolvimento e ao papel desem-
penhado na sociedade portuguesa reflectiram-se, de forma particular,
na organização de uma Companhia Portuguesa de Ópera no Teatro da
Trindade. As temporadas realizadas entre 1963 e 1975 foram a expres-
são de um investimento cultural patrocinado pelo Estado e pensado de
acordo com as directrizes de uma política social que procurava respon-
der aos problemas que a transformação do país colocava. A utilização

143. Ibidem.
144. José Carlos Valente, op. cit., pp. 196-197.
145. Ibidem, pp. 196-197.

78
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Ideologia, Políticas Sociais e Tempos Livres

das práticas culturais como instrumento de regulação social moderno


respondia a critérios de eficiência e a lógicas estudadas e aplicadas.
Esses critérios afastam a política estatal de uma concepção de cultura
popular tradicionalista e rural, para a aproximar de um consumo di-
verso, recreativo e urbano.

79
Opera do Trindade.qxp 5/28/07 11:25 AM Page 80

11.
A Companhia Portuguesa
de Ópera: Os Fundamentos

A política cultural da FNAT


no Teatro da Trindade
A evolução da FNAT transformou-a num dos eixos da política social do
Estado Novo. Foi argumentado que no desempenho desta função norma-
tiva a organização teria tido condições para se tornar num instrumento
ideológico eficaz. Esta eficácia foi relacionada com o facto da sua natu-
reza de moderno regulador da competição entre os grupos sociais en-
contrar, nas alterações estruturais que o país sofreu, a partir da década
de 50, um contexto mais adequado ao desenvolvimento das suas acti-
vidades. Depois das iniciativas pioneiras terem sido estancadas pela
descrença e desmobilização dos vários interesses implicados, as polí-
ticas sociais corporativas encontravam, enfim, um mercado crescente.
A aquisição do Teatro da Trindade, em 19621, foi mais uma etapa da
evolução orgânica e patrimonial da FNAT. O seu impacte na área re-
servada pela Fundação à cultura foi significativo, pela diversidade das
propostas artísticas. Bento Parreira do Amaral, presidente da FNAT, com
a anuência do ministro Gonçalves Proença2, remeteu a responsabilidade

1. O chefe de gabinete do ministro das Corporações, Gonçalves Proença, informou o presidente da FNAT, em carta com data de
7 de Março de 1962, que o ministro autorizara, com dispensa do pagamento de sisa, a compra do Teatro da Trindade pela quan-
tia de 8.000.000$00. Carta n.o 292/62, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313.
2. Em 24 de Outubro de 1962, o presidente da FNAT escreveu ao chefe de gabinete do ministro das Corporações, informando da
deliberação da direcção em criar o lugar de director do Teatro da Trindade. A nomeação, atribuída a José Serra Formigal, era com-
patível com outras funções. Depois da resposta do ministro, seguiu outra carta da FNAT, de 25 do mesmo mês, desta vez para a
JAS, transcrevendo a autorização de Gonçalves Proença em nomear Serra Formigal director do Teatro da Trindade, podendo o
mesmo acumular este cargo com o de vogal da Comissão Executiva da JAS onde tratava do cinema, rádio e televisão e pelo qual
recebia 5.500$00 mensais. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313. O dia 24 de Outubro de 1962 é preci-
samente a data em que Gonçalves Proença aprovou o Plano Geral Para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, apresen-
tado por Serra Formigal, em 18 de Setembro do mesmo ano.

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As Variedades de Proteu, de António José da Silva, musicada por António Teixeira. A encenação foi de
Artur Ramos, Julho de 1968

da organização das actividades anuais do Trindade para José Serra For-


migal3, advogado, antigo subdelegado do Instituto Nacional do Tra-
balho e Previdência em Vila Real e Aveiro, juiz titular do Tribunal do
Trabalho de Lisboa. A partir de 1957, foi director da Junta de Acção
Social, dedicando-se, neste âmbito, aos sectores da televisão, cinema, e
acção social descentralizada. Em 1960, foi nomeado Chefe da Repar-
tição de Programas Musicais da Emissora Nacional. Serra Formigal
era um conhecido melómano com formação musical: estudou violino

3. Serra Formigal, em entrevista concedida a propósito deste trabalho, atribui a sua nomeação para a direcção do Teatro à ami-
zade que mantinha com Gonçalves Proença, com quem partilhava uma enorme paixão pela música. O ministro abordou-o
afirmando que a compra do Trindade era ideal “para se fazer centralização cultural” já que só tinham “os serões para traba-
lhadores”.

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A Ópera do Trindade

e canto, chegando a actuar no São Carlos sob a direcção dos maestros


Pedro Freitas Branco e Antonino Votto.4
O exercício das funções de Serra Formigal à frente do Teatro da Trin-
dade estava condicionado pelos propósitos da política social desenvol-
vida pela FNAT. O Trindade seria o centro de uma actividade cultural,
suportada, política e financeiramente, pelo Ministério das Corporações
e Previdência Social. A legitimidade do modelo artístico proposto por
Serra Formigal dependia da sua capacidade para mobilizar um público-
-alvo participante de um conjunto de serões alegres e fraternais, cuja
idoneidade política e dimensão artística formal correspondessem aos
objectivos institucionais.
Em 1962, Serra Formigal redigiu um documento intitulado Plano
Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, propondo um
conjunto de actividades artísticas caracterizado pela preocupação em
produzir espectáculos de “qualidade elevada”:

Pretende-se que o Teatro da Trindade constitua uma fonte viva de cultura artística e de
saudável recreio para o trabalhador português o que obriga a especiais cuidados na pro-
gramação, elencos, encenações, montagens e restantes elencos técnicos e artísticos.
Tais circunstâncias envolverão necessàriamente uma despesa que se não se pode con-
siderar avultada em função dos resultados que se pensam vir a obter, será no entanto
vultuosa em face dos critérios que normalmente orientam a vida portuguesa neste sec-
tor de actividades. Estamos, porém, certos que a visão superior de quem tanto se preo-
cupa por estes importantes aspectos da cultura popular e com a aquisição do Teatro
que a veio possibilitar, dará o apoio necessário e possível à concretização da obra.5

As actividades programadas eram o teatro, o bailado, os concertos


musicais, a ópera, a opereta, o cinema e algumas “variedades”. A diversi-
dade da oferta cultural exigia, no interior de determinada racionalização
económica, um equilíbrio orçamental entre as várias propostas. O mi-
nistro congratulou-se com a criação de “um movimento renovador da
música portuguesa e sua progressiva nacionalização” e com “a partici-
pação dos trabalhadores no desenvolvimento da arte dramática”6, mas

4. Currículo de Serra Formigal integrado em documentação seleccionada para acompanhar a Companhia de Ópera do Trindade
a Barcelona, aquando da representação de A Serrana. Arquivo do Teatro da Trindade, 1966.
5. José Serra Formigal, Plano Geral Para Uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 2, em Arquivo Serra Formigal.
6. Ibidem, pp. 1-2.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

determinou alguma contenção financeira: a produção teatral, como For-


migal sugeriu, deveria ser atribuída a uma empresa externa, e as res-
tantes actividades, com o intuito de serem realizadas de acordo com os
pressupostos incluídos no Plano Geral, teriam que ser comparticipadas
por outros organismos, fossem eles governamentais, como o SNI e a
JAS, que partilhavam com a FNAT algumas funções semelhantes, ou de
carácter privado, como a Fundação Calouste Gulbenkian. Apesar dos
reparos, Proença viabilizou o Plano em toda a sua extensão, concordan-
do com a generalidade das propostas. A concessão da actividade dramá-
tica a uma companhia externa libertava verbas para a formação de um
agrupamento nacional de ópera e opereta.
Por razões técnicas, económicas e sociais, expostas por Serra Formi-
gal de forma clara, os espectáculos de teatro, bailado, concertos mu-
sicais, ópera e opereta seriam organizados em temporadas anuais.
Esta opção permitia “uma melhor tomada de consciência em unida-
de (…) O público estará sucessivamente afecto ao Teatro, à Ópera, ao
Ballet ou aos concertos em períodos de tempo suficientes para se cri-
ar a indispensável atitude de adesão e interesse por cada modalidade
artística.”7 O cinema, embora constasse da programação inicial, aca-
baria por ficar de fora, opção suportada por considerações de ordem
técnica.
A apresentação do Plano Geral para uma Programação Anual do Tea-
tro da Trindade compreendia uma descrição das actividades e uma es-
timativa financeira para a primeira temporada. Numa verba total de
4.650.000$00, a produção interna preenchia a maior parte do orçamen-
to. A exploração teatral, se fosse atribuída a uma companhia residente
formada pela FNAT, custaria 1.204.825$00. A ópera representava um
investimento de 1.299.722$00. Os números destas duas produções
são significativamente superiores aos apresentados pelo conjunto dos
outros espectáculos.
Os concertos sinfónicos somariam 124.000$00. Estavam previstos
16 concertos apresentados pela Orquestra da Emissora Nacional, ou,
melhor, pelos seus elementos que, durante a temporada do São Carlos,
não cabiam no fosso da orquestra do teatro nacional de ópera, estando,

7. Ibidem, p. 3.

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A Ópera do Trindade

portanto, libertos para outras actuações.8 As despesas materiais e as


horas extraordinárias da orquestra, ainda em relação aos concertos sin-
fónicos, seriam pagas pelo Trindade, numa estimativa de 30.000$00.
Requeria-se ainda a presença de um solista por concerto, ao preço uni-
tário de 2.000$00, a mesma quantia que o maestro receberia por cada
apresentação. Ao musicólogo João de Freitas Branco9, pelos comentá-
rios às peças interpretadas, seriam atribuídos 1.500$00 por concerto.
A temporada de bailado, coincidente com a de ópera e opereta, estava
orçamentada em 210.000$00. Serra Formigal esperava contar, para a
realização de trinta espectáculos, com a colaboração do Grupo de Baila-
dos Verde-Gaio e da Companhia Portuguesa de Bailado sediada na Fun-
dação Gulbenkian. Os espectáculos para trabalhadores ficariam a cargo
de conjuntos culturais e artísticos ligados à estrutura organizativa da
FNAT: grupos de teatro amador, grupos corais, bandas e tunas. Espera-
va-se ainda organizar os espectáculos comemorativos do 23 de Setem-
bro e do Colóquio do Trabalho da Organização Corporativa e Previdência
Social. Todas estas iniciativas representariam um esforço financeiro de
250.000$00. Juntava-se à verba já acumulada, 856.536$00 de Seral (des-
pesas renováveis todas as noites de espectáculo), 114.600$00 de custos
com o pessoal administrativo e 15 por cento para encargos imprevistos.
As despesas e as receitas da temporada de 1963 excederam os valores
orçamentados.10 De uma despesa total de 3.863.167$00, a direcção do
Trindade gastou, com a companhia de ópera, a quantia de 2.149.900$00,
que corresponde a uma percentagem de 55,6 por cento do investimen-
to total. As despesas de funcionamento representaram 1.467.791$00,
ou seja, 38 por cento da totalidade dos gastos. Os restantes espectácu-
los apresentados ultrapassaram em pouco os seis por cento da despesa
total. Para a realização da temporada de 1963, o Teatro de São Carlos
recebeu do Ministério da Educação 7.853.000$00, quase quatro vezes
mais do que o investimento estatal no Trindade.11

8. Este problema orquestral foi um primeiro indício das inúmeras complicações que a constituição de formações musicais de or-
questra traria ao Trindade, ao longo dos seus anos de actividade sob gestão da FNAT.
9. João de Freitas Branco (1922-1989) dedicou-se fundamentalmente ao ensino e divulgação musical. A sua figura é absoluta-
mente central para o entendimento da vida musical portuguesa na segunda metade do século xx.
10. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade,
pasta 313, p. 13.
11. Diário das Sessões da Assembleia Nacional, n.o 184, de 5/3/1965, p. 4474 (113).

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

A Ópera

A distribuição financeira do Plano de Programação não podia deixar de


ser bem justificada pelo director do Teatro. Cabia-lhe fundamentar o
investimento inicial. O primeiro argumento utilizado para legitimar a
formação de uma Companhia Portuguesa de Ópera explicitou o valor
que o género possuía, não apenas como proposta artística, mas tendo
em conta a sua adequação aos contornos específicos da dinâmica ins-
titucional que a iria suportar. Se a ópera em Portugal era uma actividade
cultural pouco democratizada, era evidente, na opinião de Serra For-
migal, a apetência de um vasto público pelo género:

A forma lírica é talvez a mais adequada para trazer ao nosso povo, com eficácia,
a mensagem artística da música, e em que a sugestão das belas vozes ainda
mais humaniza esta. A experiência está feita e não apenas com os espectáculos
dos últimos anos, no Coliseu – espectáculos que só merecem aplausos e conti-
nuação – mas pelas sucessivas companhias que passaram em muitas décadas
pela mesma casa de espectáculos e que sempre atraíram as massas populares.
Se a ópera é um bom espectáculo cultural e o povo a ama, o teatro do povo deverá
promovê-la.12

Na opinião de Serra Formigal, a formação de uma Companhia Por-


tuguesa de Ópera teria um importante impacte profissional, de forte
expressão nacionalista: “Apenas num aspecto temos falhado constan-
temente, em parte talvez devido às carências nacionais em valores
mas fundamentalmente por falta de organização e trabalho sèriamente
orientado: na constituição de agrupamentos nacionais permanentes
de ópera.”13 Propondo-se ultrapassar este amadorismo, Serra Formigal
considerava fundamental o concurso de “técnicos competentes”, e
“onde não os houver portugueses”, deverá recorrer-se a “estrangeiros
abalizados (…) mas não sistematicamente para cantar as óperas, pois,
então, gastamos o dinheiro e ficamos sempre na mesma.”14

12. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 12.
13. Ibidem, p. 13.
14. Ibidem. Como o princípio da década de 60 foi época de êxitos desportivos – o Benfica ganha duas taças dos Clubes Campeões
Europeus (1961 e 1962) comandado pelo húngaro Bela Gutmann – Formigal arriscou uma comparação: “Perdoe-se o paralelo,
mas para se conseguir “o profissionalismo” no futebol foi à custa de técnicos estrangeiros que instruíram os nossos jogadores,
o mesmo terá que acontecer na ópera.”

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A Ópera do Trindade

A iniciativa legitimava-se pela sua inserção nacional, procurando


ganhar um espaço de validação face às características das temporadas
do São Carlos, onde, segundo Formigal, se gastava dinheiro com artis-
tas estrangeiros que vinham “sistematicamente para cantar as ópe-
ras”, ficando, depois da sua partida, tudo na mesma. Para que tal não
sucedesse no Trindade, a necessária participação de elementos estran-
geiros, especialmente no que concerne à organização profissional da
companhia, deveria servir para a criação de estruturas de ensino e forma-
ção permanentes. A importância legitimadora do argumento nacional
obrigou Serra Formigal, contra a sua sensibilidade melómana, a de-
fender a tradução dos libretos e a sua apresentação em português:

Outro aspecto que interessa focar é a questão da língua em que são cantadas as
óperas. Tanto em França como na Alemanha e na Itália, verifiquei que em todos os
teatros, e abstraindo algumas récitas especiais, as óperas são cantadas na língua do
país. Só entre nós e em alguns outros poucos países, especialmente na América do
Sul, se cantam sempre nas línguas originais, salvo algumas excepções sem conti-
nuidade. Aponte-se no entanto que a Companhia de Ópera de Câmara da Fundação
Gulbenkian está começando a cantar óperas em português. E tem de ser este o
caminho, pois de contrário a compreensão do espectáculo fica muito diminuída,
sobretudo quando se dirige às camadas populares.15

A música erudita, pelo seu carácter abstracto, nunca fora um universo


cultural que preocupasse as instâncias reguladoras do regime. A comu-
nicação entre emissor e receptor não levantava problemas políticos. A
exigência de uma ópera cantada em português sentia-se apenas em
determinados quadrantes culturais e políticos afectos à situação, repre-
sentados ao mais alto nível pelo compositor Ruy Coelho. Dentro da lógi-
ca de uma arte pedagogicamente nacionalista, era defendida a criação
de obras que considerassem as tradições mais profundas do país e,
por conseguinte, no respeito à língua materna, exigia-se a tradução dos
libretos estrangeiros. Serra Formigal não se enquadrava nesta tradição.
A ideia de traduzir as óperas, nomeadamente quando se tratava de obras
pertencentes ao património lírico romântico italiano e francês, choca-
va com o seu ethos de apreciador do espectáculo. No entanto, dadas as

15. Ibidem, p. 14.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

condições políticas que envolveram a criação da Companhia, considerou


uma boa estratégia acenar com o argumento nacional. Por um lado, a
ideia da ópera em português era importante para convencer a FNAT da
possibilidade da iniciativa alcançar sucesso junto do público, por outro,
a posição nacionalista contentava algumas forças no interior do regi-
me e, ao mesmo tempo, garantia a Formigal a hipótese de criar um es-
paço de crítica ao São Carlos.
A opinião de Serra Formigal sobre a questão da tradução, assente
numa apreciação formalista, deduz-se de um passagem do mesmo do-
cumento sobre os problemas que a língua portuguesa levanta à inter-
pretação dos cantores: “Há, porém, uma dificuldade: conseguir que os
artistas cantem correctamente o português. A língua é ingrata, cheia
como está de vogais mudas de emissão gutural, o que tende a “engolar
as vozes”16. Servirá esta carência nacional para convencer o ministro das
Corporações da urgência em contratar o mestre Tomás Alcaide (1901-
-1967), o cantor português com maior sucesso internacional, à data fun-
cionário administrativo da Emissora Nacional, para dirigir, ele próprio,
uma escola de canto lírico erguida nas instalações do Teatro. A escola
formou-se, mas as óperas traduzidas, se exceptuarmos os poucos origi-
nais alemães que foram apresentados, nunca chegaram a realizar-se.

Desproletarizar

A organização dos espectáculos foi pensada em face dos objectivos insti-


tucionais da FNAT. A política de preços que o Teatro deveria praticar é um
eixo importante da ligação entre a FNAT, o financiador corporativo, e o
Trindade, o espaço cultural de mediação. A questão mereceu de Serra
Formigal, no Plano de Programação, uma desenvolvida discussão.
Entre os promotores da política cultural da FNAT não havia qual-
quer ilusão quanto ao retorno financeiro que a actividade do Trindade

16. Ibidem, p. 15. Na entrevista que realizámos com Serra Formigal, o antigo director do Trindade acrescenta outros argumentos: “Mo-
destamente, pensei que o que era bom (e o Alcaide concordava comigo) era o italiano. É uma língua boa, ajuda, as vogais são boas. No
português, as vogais são péssimas. Temos vogais que não permitem cantar bem, a não ser com uma adaptação. Uma língua difícil. Mas
deve-se cantar em português. Os ingleses não têm uma vogal pura, são todas sujas. O alemão é uma língua dura, mas as vogais são lim-
pas. A Itália tem as duas coisas. Por isso o italiano facilmente canta, os populares facilmente cantam. Assim, pensei que a ópera italiana
era uma boa base para a formação do cantor português, como de qualquer lado. Portanto, uma certa maioria de óperas italianas.”

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A Ópera do Trindade

proporcionaria. A FNAT sobrevivia, em parte substancial, com dinhei-


ros estatais e a sua função social não era contabilizável. A gratuitidade
dos espectáculos, como princípio social e político, foi uma opção ponde-
rada como regra central da relação da instituição com os seus associa-
dos. Havia mais de 20 anos que os serões para trabalhadores tinham
instaurado essa prática de solidariedade cultural. O âmbito cultural do
Trindade era, no entanto, diferente. Serra Formigal não concebera um
espaço de variedades mas um Teatro de “artes sérias”, onde se apresen-
taria ópera e bailado, concertos sinfónicos e temporadas de teatro decla-
mado. A diferença implicava uma concepção diferente da política de
preços, relacionada com a prossecução de uma política social. Serra For-
migal distinguiu os espectáculos que designou de “caros” – ópera, ope-
reta, bailado e concertos sinfónicos – dos outros, a que, não chamando
baratos, tratou pela aparente neutralidade do nome: cinema e varieda-
des.17 Quanto a estes últimos, não via qualquer entrave a que fossem
gratuitos; os restantes, porém, “como a gratuitidade tende, entre nós, a
desclassificar, quer o espectáculo quer o espectador”, deviam ser pagos já
que assim se “afasta do espectador a ideia do favor total, sempre um pou-
co humilhante.” Propõe-se, então, um preço, nunca além dos cinco escu-
dos, que fosse compatível com os salários dos trabalhadores portugueses.
O montante definido resultou de uma análise profunda da realidade
portuguesa; ponderou-se com exactidão a relação a criar com o público
desejado. A nobreza de certos espectáculos e os seus efeitos simbóli-
cos sobre os espectadores, objectivos subjacentes ao “novo Trindade”,
não poderia ser diminuída pela gratuitidade. Noutra perspectiva, o
preço teria que ser adequado aos rendimentos dos grupos sociais a
atingir. Como mecanismo de regulação, o enobrecimento social pela cul-
tura ficaria limitado se convivesse com um contexto sócio-económico
que contrariasse os seus pressupostos. A política de preços dos espec-
táculos, não podendo desqualificar um projecto cujas metas aponta-
vam para a requalificação estatutária de determinados grupos sociais,
deveria situar-se nos limites do razoável. Contas feitas, a quantia de
cinco escudos por espectáculo, depois de alguma aritmética, foi consi-
derada a mais razoável. Serra Formigal explicou:

17. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

É que temos de pensar nas famílias em que o chefe tem que arcar com as despesas
de todos os bilhetes, muitas vezes quatro ou cinco. Com tal preço máximo, a des-
pesa pode atingir o limite médio de 20$00, o que é compatível com o nível de vida
das classes trabalhadoras. Não podemos esquecer que, embora pareça ridículo o
preço máximo de 5$00, ele é o que convém ao nosso operário se queremos real-
mente “desproletarizar” já que os seus salários ainda orçam, muitas vezes, pelos
30$00 a 40$00 diários, em semanas de seis dias.18

Cinco escudos era o preço da “desproletarização”, palavra que quase


resume o objectivo das políticas sociais. No caso do Teatro da Trinda-
de, a tarefa foi confiada a artes consideradas nobres. Os espectáculos
“a que as classes trabalhadoras estão mais habituadas”, como o cinema
e as variedades, se fizessem parte da programação do Teatro, poderiam
ser gratuitos, possibilitando assim alguma vantagem sobre a concorrên-
cia. A raridade de um bem cultural, se valorizado socialmente, torna-
va-o no elemento ideal para o exercício de desproletarização. O cinema
e as variedades tinham um mercado alargado com forte participação
da iniciativa privada e um controlo político que lhes garantia a idone-
idade dos produtos culturais. Nestes casos, o Trindade podia demitir-se
da regulação directa dos lazeres. O mesmo já não sucederia com a ópe-
ra, o bailado, os concertos e o teatro declamado. Sendo o lucro, nestas
actividades, muito incerto, a sua posição estava enfraquecida; o papel
subsidiador do Estado ou de outras organizações, como a Fundação Gul-
benkian, afigurava-se fundamental para sobreviverem. Este lugar de
mercado, inerente quase sempre às exigências de produção envolvidas
em espectáculos naturalmente onerosos, tornava os bens culturais mais
raros e distintos: situação que também não é alheia à conquista de uma
autonomia sobre a procura mercantil, assegurada pelo mecanismo
do subsídio.
As propostas artísticas do Trindade indicavam que a FNAT entrara
em terrenos novos. As suas finalidades não se alteraram, mas o ambien-
te de diversificação social exigia uma diversificação cultural. O meca-
nismo de distinção, intrínseco a uma “desproletarização”, dependia de
uma análise da situação do mercado de bens culturais. A análise obri-
ga a um olhar diferente sobre a cultura. Processar-se-ia, idealmente,

18. Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, pp. 5-6.

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A Ópera do Trindade

uma fragmentação social distintiva, accionada por dispositivos cultura-


is. O Estado, através da FNAT, iniciou uma dinâmica de democratiza-
ção cultural, certamente condicionada, suportada por práticas artísticas
dominadas por grupos sociais restritos. Possibilitava-se o acesso de
classes médias-baixas que, na sua maior parte, seriam constituídas por
pequenas burguesias terciarizadas, a bens culturais que lhes eram pra-
ticamente inacessíveis.19 O alcance dos objectivos de “desproletarização”,
enformados por uma instituição de regulação social como a FNAT, har-
monizava-se com a aposta na organização de determinadas actividades
culturais socialmente consideradas. Não é possível, no entanto, estabe-
lecer uma separação entre esta aparentemente rígida lógica institucio-
nal e as perspectivas e intuitos pessoais do director do Teatro da Trindade.
As preferências artísticas de Serra Formigal eram conhecidas por quem
assumiu a responsabilidade de o nomear director de um teatro com
objectivos sociais muito específicos. Os contornos que caracterizam, de
um ponto de vista artístico, o “Trindade de Formigal” relacionam-se
com a vontade do director do Teatro de intervir no campo cultural por-
tuguês. Serra Formigal desejava reforçar a sua respeitabilidade no inte-
rior deste universo e, de forma muito mais evidente, na estrutura da
ópera em Portugal sobre a qual tanto queria actuar.

O Trindade e o meio operático

A apresentação pública da Companhia Portuguesa de Ópera acentuou o


desígnio nacional da iniciativa. A relação com o público e com a críti-
ca estabeleceu-se pela frase, inúmeras vezes repetida, de que no Teatro
da Trindade, por iniciativa da FNAT, se iriam apresentar espectáculos
de ópera feitos por portugueses para portugueses. A bandeira da or-
ganização estava há muito erguida. Se tal posição se adequava aos dese-
jos da política social da FNAT, a um movimento “democratizador” das
práticas culturais, o seu significado no campo musical tinha outras

19. É possível argumentar que o Coliseu, ou a Gulbenkian, mais significativamente no caso dos concertos, dos bailados e da ópe-
ra, desempenhavam semelhante função de democratização cultural. A FNAT, aliás, tinha acordos com estas entidades com vista
à reserva de entradas destinadas aos seus sócios, nos espectáculos por elas oferecidos. Desde 1959 que a FNAT pôs à disposição dos
seus sócios bilhetes para as récitas populares que as companhias que passavam no São Carlos apresentavam no Coliseu. Seme-
lhante colaboração existiu entre a FNAT e a Gulbenkian, especialmente aquando da realização do Festival de Música.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

repercussões, algumas delas também políticas. Os objectivos elenca-


dos pelo director do Trindade, ao caracterizar as traves mestras do fun-
cionamento da sua companhia – fazer ópera para os trabalhadores
portugueses e apresentá-la em espectáculos representados pelos artis-
tas de teatro lírico nacionais – constituía-se, no panorama operático,
como uma ruptura com a situação dominante.
Historicamente, e com algumas excepções de permeio, a ópera sempre
fora um espaço confiado ao gosto de alguns grupos restritos que rodea-
vam o Teatro Nacional de São Carlos.20 Os artistas portugueses, grupo
escasso e debilmente preparado por sistemas de ensino ineficazes, fica-
vam quase sempre de fora do palco do único teatro de ópera português.
As digressões anuais das grandes companhias de ópera, e das suas ve-
detas, tornaram-se no principal motivo de atracção do Teatro Nacional
de Ópera. O público do São Carlos habituara-se a estes sinais do bom
gosto. O Teatro lírico era subsidiado, na sua totalidade, pelo governo,
através do Ministério da Educação. A ópera no Trindade ficou afecta ao
Ministério das Corporações. O São Carlos, durante o Estado Novo, carac-
terizava-se por ser um espaço exclusivo, usado como sinal de distinção e
feudo de sociabilidade. Reabrira as suas portas em 1940, depois de sete
anos de encerramento, com uma nova ópera de Ruy Coelho, D. João IV.
As temporadas regulares reiniciaram-se em 1946, sob a liderança de
José Figueiredo, director que apenas seria substituído, em 1970, por
João de Freitas Branco. A obrigatoriedade do traje de gala e as altera-
ções na arquitectura e decoração assinalavam, aquando da reabertura, a
posição solene que o São Carlos passaria a representar na vida cultural
portuguesa.21 Mário Vieira de Carvalho acentua a sua função representa-
tiva, ritual do culto snob da aparência, “espécie de filosofia nacional”22.
Ao contrário das intenções, protagonizadas por homens como António
Ferro ou Ruy Coelho, de transformar o Teatro Nacional de Ópera num
palco de uma arte nacionalista, o modelo sócio-musical que iria carac-

20. Mário Vieira de Carvalho, Pensar é Morrer ou O Teatro de São Carlos na Mudança de Sistemas Sociocomunicativos Desde Fins do
Séc. XVIII aos Nossos Dias, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Maia, 1993.
21. Em 1946, o compositor Luiz de Freitas Branco propôs uma outra forma de estabelecer a relação entre público e comunica-
ção artística: “Na impossibilidade de atingir o esplendor vocal dos italianos, esplendor até hoje não igualado por nação alguma,
poderíamos trabalhar no sentido da encenação, fazer espectáculos que valessem pelo estilo e pela interpretação, para o que tería-
mos a vantagem de um pessoal fixo, vantagem que não têm as companhias estrangeiras, formadas por elementos diversos.” Luiz
de Freitas Branco, “Arte Musical”, 25/6/1946, citado por Mário Vieira de Carvalho, ibidem, p. 237.
22. Ibidem, p. 215.

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A Ópera do Trindade

terizar os espectáculos do São Carlos foi privado de quaisquer efeitos


explicitamente ideológicos.23 A sua função resumia-se a uma ornamen-
talização de um ritual distintivo encenado, no qual os membros do gover-
no não se coibiam de participar, numa prática de estetização da política
e propaganda do Estado.24
No Trindade, pelo contrário, a ópera seria dirigida, sobretudo, às classes
trabalhadoras. Além do mais, prestava-se um serviço ao subalternizado
artista nacional. O projecto do novo teatro de ópera da FNAT nascia, na
sua aparência imediata, em ruptura com algumas características prevale-
centes no panorama artístico-social que dominava no São Carlos.
As relações políticas e artísticas entre o Trindade e o São Carlos não
devem, todavia, ser simplificadas. Se os dois espaços serviam, cada qual
de modo particular, determinados interesses no interior do regime,
esta complementaridade macro-estrutural é espartilhada por lógicas
contraditórias que remetem quase sempre para posições sustentadas
no ambiente da ópera portuguesa. É impossível decalcar as tomadas
de posição inerentes ao universo musical e lírico de intenções políticas
e doutrinárias. O meio musical tinha uma inequívoca lógica própria,
em especial por ter sido quase sempre tratado como um espaço inócuo
do ponto de visto político: um universo que, de certa forma, se auto-re-
gulava. A intervenção da FNAT no campo musical erudito demonstrou,
no entanto, um relativo poder transformador. O âmbito da sua acção
revelou ainda as tensões existentes entre as várias instituições do regi-
me ocupadas com as manifestações culturais.

Políticas Culturais e objectivos políticos

Na preparação da primeira temporada de espectáculos no Trindade,


Serra Formigal escreveu ao chefe de repartição da Cultura Popular do
Secretariado Nacional de Informação, colocando-o a par da natureza
e organização dos eventos que passariam a ter lugar no Trindade e

23. Ibidem, p. 225. No São Carlos, as componentes internas da obra seriam secundarizadas em relação à função social de distin-
ção, inerente aos espectáculos, embora seja impossível separar esta função da predominância de algumas formas líricas sobre
outras. O potencial dramático ligado à palavra era especialmente sacrificado; as obras, na expressão de Mário Vieira de Carvalho,
encontravam-se «dessemantizadas».
24. Ibidem, pp. 213-254.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

pedindo uma colaboração em várias áreas.25 Quanto ao teatro, Serra For-


migal tentava obter um financiamento para a companhia contratada
para o Trindade, a partir da verba atribuída todos os anos pelo SNI,
através do Fundo do Teatro. Outro assunto respeitava às condições de
participação do grupo Verde Gaio na temporada de bailado. Por últi-
mo, requereu, para a primeira temporada de ópera, um subsídio de
400.000$00.
O chefe de repartição da Cultura Popular do SNI, Júdice da Costa,
respondeu em 12 de Novembro26, concordando em atribuir apenas a
quantia de 140.000$00 mensais ao teatro. Em relação à cedência do
Verde Gaio, exigiu o pagamento de 3.000$00 por espectáculo ou, em
alternativa, o produto da bilheteira. Um certo mal-estar resultante do
teor da resposta do SNI acentuou-se na negociação da participação do
Verde Gaio para a temporada seguinte. Dadas as receitas de bilheteira
dos bailados terem tido um resultado abaixo das expectativas, o SNI
propôs rever a colaboração com o Trindade.27 Serra Formigal alegou que
a proposta de 5.910$00 por espectáculo era exagerada e provocava um
tratamento discriminatório em relação ao coro do Teatro Nacional de
São Carlos. Ao contrário do que o SNI sugerira, o coro fora cedido sem
qualquer contrapartida financeira. O director do Trindade considerou
que um organismo financiado pelo Estado, como era o caso do Verde
Gaio, não devia receber por duas instituições culturais diferentes:

(…) os resultados de bilheteira nem sempre foram muito brilhantes, certamente em


virtude do número excessivo de espectáculos. Tal facto originou que os componentes
do “Verde-Gaio” por vezes e por espectáculo recebessem gratificações muito peque-
nas e mesmo irrisórias. Porém, dessa circunstância não somos culpados e sempre
pensámos que para quem já tem os seus ordenados assegurados, as “bilheteiras”
deveriam ser sempre consideradas como uma gratificação ou lembrança.28

Serra Formigal dispôs-se, como última proposta, a substituir a incer-


ta receita dos espectáculos do Verde Gaio pela quantia de 2.800$00
por actuação.

25. Carta de 23 de Outubro de 1962. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”.


26. Carta de 12 de Novembro de 1962. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”.
27. Carta de 6 de Março de 1964. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”.
28. Carta de 4 de Maio de 1964. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta “Correspondência”.

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A Ópera do Trindade

Em Março de 1964, o presidente da FNAT escreveu ao SNI a pedir


um subsídio de 670.000$00, para patrocinar a itinerância da Compa-
nhia Portuguesa de Ópera do Trindade. Alegava Bento Parreira do
Amaral que, dentro das suas possibilidades, a companhia lírica vinha
fazendo um verdadeiro esforço de formação de uma “nova cultura popu-
lar”. O chefe de repartição do SNI, Manuel Henriques da Silva, apesar
de “manifestar o maior interesse pela acção a todos os títulos meritó-
ria da FNAT, no sentido de levar os espectáculos de ópera à província”,
lamentou a impossibilidade da atribuição do subsídio requerido, pelo
facto de ter “o seu esquema de actividade já planeado há muito”29. Em
virtude da resposta do SNI, Bento Parreira do Amaral protestou, por
carta, junto do ministro Gonçalves Proença:

Deverá fazer-se notar que o SNI subsidia todos os espectáculos de revista do parque
Mayer, certamente porque entende que aquilo sim, aquilo é que é “cultura popular”
e da boa… Para espectáculos do nível e categoria dos que a FNAT apresenta… não
há verba. Valha-nos… Santo António.30

O modo de alcançar e transformar a “cultura popular” suscitava di-


vergências no interior das instituições do regime. O Trindade, ao pro-
curar enobrecer a “cultura popular”, pretendia requalificar o público
consumidor. O modelo cultural de política social convivia com a lógica
populista do SNI, tal como com o contexto elitista do São Carlos. A ideia
de uma complementaridade estratégica e funcional entre as forças polí-
tico-culturais do regime não coexistia com uma solidariedade institu-
cional, o que, no fundo, acabava por condicionar a própria ideia de
estratégia. Tal complementaridade é atravessada por interesses parale-
los, colectivos ou individuais, que cruzam o universo político, distorcen-
do a sua aparente linearidade. Os espectáculos do Grupo Verde Gaio,
herança de António Ferro, representavam, no panorama do Trindade da
FNAT, uma mediação cultural ultrapassada e ineficaz; uma imposição
institucional que se vinha mostrando onerosa e conflitual, que não
preenchia os objectivos da FNAT quando interveio na “cultura popular”,

29. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 314.


30. Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 314.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

e que, além de tudo, não agradava à sensibilidade de Serra Formigal no


seu papel de produtor cultural.

O São Carlos e o Trindade

A dissensão face às políticas culturais estava circunscrita a um espaço re-


grado por normas que os agentes envolvidos nestas questões sabiam não
poder ultrapassar. Esta realidade é notória nas relações entre o Trindade e
o São Carlos. Aparecendo como um projecto que rompia com certos há-
bitos corporizados pelo Teatro Nacional de Ópera, o Trindade tinha um
espaço de crítica residual, embora muitas das pessoas envolvidas, designa-
damente Serra Formigal, fossem, pela sua posição e ambições no interior
do campo artístico, críticos em relação ao estado em que se encontrava
a ópera em Portugal. Era impossível, porém, colocar em causa o papel
estrutural do Estado, que, afinal, constituía o alicerce que suportava a
manutenção, em determinado moldes, de um campo operático nacional.
A ópera popular do Trindade dependia das condições técnicas e hu-
manas postas à disposição pelo Teatro Nacional de Ópera. Todos os fo-
lhetos, programas, anúncios e notícias sobre os espectáculos referiam
a colaboração do Teatro Nacional de São Carlos. A ligação era inevitável,
dadas as inúmeras carências que pontuavam um projecto erguido da
base, num domínio cultural com óbvias dificuldades de formação de
especialistas: o coro pertencia ao São Carlos, ensaiado e dirigido pelos
maestros italianos Mario Pellegrini e Carlo Pasquali, que trabalhavam
nestas funções desde 1946, passando, a partir de 1963, a exercer, em si-
multâneo, uma colaboração regular com a Companhia Portuguesa de
Ópera da FNAT. O trabalho de construção de maquetes, cenários e o ar-
ranjo de cena e luzes cabia aos cenógrafos Raul Campos e Alfredo Fu-
riga, também eles ao serviço do São Carlos.
A dependência funcional do Trindade em relação ao São Carlos impeliu
Serra Formigal a fazer circular as suas críticas ao estado da ópera em Por-
tugal apenas nos canais de comunicação inerentes ao fechado círculo de
relações próprio do meio. Nas declarações públicas, a relação entre os dois
Teatros fazia transparecer uma total harmonia. Foi essa imagem que pas-
sou para a opinião pública quando, em 27 de Abril de 63, Serra Formigal

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A Ópera do Trindade

apresentou à imprensa a primeira temporada de espectáculos de ópera.


Depois de explicitar o interesse da FNAT em divulgar um género que cor-
respondia tão vivamente ao gosto das classes trabalhadoras31, Serra For-
migal referiu o impacte profissional do seu projecto, notando ainda, com
alguma ironia, “que o São Carlos tem já dado importantes oportunidades
a cantores portugueses, alguns dos quais ali têm tido actuação de assina-
lado mérito. Mas não ignoramos também que o S. Carlos é o único teatro
lírico português, de grandes tradições, com um público exigentíssimo, não
podendo, portanto, também abalançar-se a experiências e ‘estreias’ que
julgo constituírem função de teatros líricos de menor responsabilidade.”32
Afirmando-se director de um Teatro de Ópera de segunda ordem, Serra
Formigal confirmava a subalternidade e dependência funcional, políti-
ca e simbólica do Trindade.
O êxito da primeira temporada de espectáculos reforçou a posição de
Serra Formigal como produtor cultural. No relatório de actividades que
escreveu em 1964, acerca do modo como se desenrolou o ano de estreia
da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT, as suas opiniões sobre
o meio operístico nacional, num documento que, com toda a certeza, se
limitou a circular entre instituições do regime, revelam uma opinião
crítica quanto à situação da ópera em Portugal. Serra Formigal salienta-
va que o Trindade estava a transformar-se, em muitos aspectos, numa
verdadeira alternativa ao São Carlos:

A acção desenvolvida neste sector foi, segundo nos parece, a mais interessante e difí-
cil, dado as circunstâncias em que se desenvolveu. Na verdade, constituir uma com-
panhia lírica apenas integrada por artistas portugueses para a realização de uma
temporada que se processou ao longo de três meses e que constou de 46 récitas, in-
cluindo as do Funchal e Porto, foi um facto inédito entre nós.33

Nos aspectos considerados, o trabalho da sua companhia de ópera era


inédito em Portugal:

31. Alguns elementos sobre a Temporada Popular de Ópera e Opereta do Teatro da Trindade referidos pelo director do Teatro à im-
prensa na reunião efectuada em 27/4/1963, em Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1963, p. 1.
32. Ibidem, pp. 1-2.
33. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pas-
ta 313, p. 11.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

Em todo o mundo civilizado, os diversos países têm construído as suas óperas naci-
onais; não me refiro aos edifícios pois que a esse respeito temos um dos mais belos
de todo o mundo mas sim à construção do edifício músico-dramático ou seja à
constituição de companhias permanentes englobando cantores, maestros e règistas.
Esta construção iniciou-se em Portugal em 1963 tudo levando a crer que se desen-
volva, complete e institucionalize nos anos que se vão seguir. E a autoria dessa obra
transcendente no plano músico-teatral da vida portuguesa, ninguém pode ignorá-lo,
é exclusivamente da FNAT.34

Ao estabelecer o ano de 1963 como aquele que anunciou a institucio-


nalização, pela primeira vez em Portugal, de uma companhia nacional de
ópera, Formigal fazia uma assinalável crítica ao domínio do São Carlos
no campo da arte lírica nacional. Notava-se, no entanto, que o director
do Trindade corria riscos, nesta fase precoce do projecto, se ultrapas-
sasse os limites do implícito, do irónico ou do privado. A dependência
material e humana da iniciativa do Ministério das Corporações, algo
insólita no campo operático, não lhe proporcionava grande margem de
manobra. A sua posição como produtor cultural dependia do sucesso
do Trindade.

Sobre a sensibilidade para a ópera

A mobilização conseguida foi a grande conquista do primeiro ano de


espectáculos. O director do Trindade estimou que, na primeira tempora-
da da companhia, tenham assistido aos espectáculos de ópera 45 mil
pessoas. O número garantiu-lhe o beneplácito institucional para conti-
nuar a desenvolver o seu projecto. O público não foi indiferente ao tipo
de proposta cultural apresentada:

Este facto veio demonstrar cabalmente o interesse social do empreendimento e a


obra de educação das classes economicamente mais débeis que por este meio se
pode realizar, educação indispensável para a desproletarização de tais classes, pelo
afinamento das respectivas sensibilidades.35

34. Ibidem.
35. Ibidem, p. 12.

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A Ópera do Trindade

Os resultados confirmaram os benefícios de uma iniciativa bem es-


truturada, mas que não estava isenta de riscos. Serra Formigal tinha
de demonstrar à direcção da FNAT a possibilidade de desenvolver uma
política social eficaz, apostando na ópera. A oferta de bens culturais era
um mecanismo de regulação típico da FNAT. No entanto, a incursão
por terrenos menos habituais, mesmo estando estes ligados a uma in-
tervenção sobre as expectativas de determinados grupos sociais, podia
gerar algumas resistências a quem duvidasse da eficácia da estratégia.
Serra Formigal aproveitou todas as conquistas deste primeiro ano para
salientar a oportunidade do projecto, reforçando a sua legitimidade
como alto funcionário da política social do regime e, simultaneamente,
a sua autonomia como programador de espectáculos:

Num plano cultural das mesmas classes sociais, a conquista parece-me igualmente
valiosa, pois que para muitos, neste ano de 1964, nomes que representam glórias da
Humanidade, como Puccini, Rossini e Verdi, e outros que são valores nacionais, como
Alfredo Keil, Tomaz Alcaide, Álvaro Malta, Hugo Casais, Guilherme Kjölner, Fernanda
Machado, Maria Teresa de Almeida, Ana Lagoa, etc, já estão devidamente hierarquiza-
dos na escala dos valores em relação aos de Matateu, Eusébio, Simone de Oliveira e
outras vedetas do desporto e teatro ligeiro, únicas que tinham verdadeira consagração
popular. E isto, parecendo graça, tem muita importância no campo da cultura.36

Ao depender do mercado para promover uma nova “cultura popu-


lar”, cumprindo os fins políticos da FNAT, Serra Formigal tinha de
acreditar nos seus consumidores. O “português comum”, a quem se di-
rigiam os espectáculos da FNAT, estava capacitado para apreciar os pro-
dutos culturais que ele próprio estimava e desejava institucionalizar
num país que ainda estava longe dos “países civilizados”. O Trindade,
ao contrário do São Carlos, não podia ser um espaço de exclusão. Se
parte importante da cultura política incentivada pelo regime fazia corres-
ponder uma hierarquia social a uma ordem natural das sensibilidades,
segundo a qual, por exemplo, o São Carlos se destinava apenas a servir
o “bom gosto” de grupos específicos, as camadas sociais a que a FNAT
apelava, no interior de um projecto que consistia na divulgação de pro-
dutos distintos, não podiam ser caracterizadas pela sua débil sensibili-

36. Ibidem p. 12.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

dade. As óperas do Trindade, não rompendo com uma hierarquia artís-


tica e social, colocavam em causa princípios essencialistas sobre o gosto
e a sensibilidade:

E há um ponto em que devemos manifestar a nossa opinião. É que não há propria-


mente, sob o ponto de vista intelectual e em relação ao público geral dos teatros,
um “público da FNAT”. A reacção do público do Teatro da Trindade aos diferentes
espectáculos que aqui têm sido apresentados demonstra-o cabalmente no seu acerto
e adequação tal como acontece com o público do Coliseu em relação ao de S. Carlos
no caso das óperas.37

Em matéria de sensibilidade, Formigal considerava que o público do


Trindade não se distinguia da audiência das outras duas salas que domi-
navam o panorama operático lisboeta, o aristocrático São Carlos e o mais
popular Coliseu dos Recreios, onde a ópera convivia com outros espec-
táculos populares, como o circo, transformando a sala num espaço des-
sacralizado, conhecido pela heterogeneidade do seu exigente público.
Embora o Trindade não tivesse ambições comerciais, no sentido financei-
ro do termo, o facto de ter que conquistar um mercado enquadrava a sua
lógica de actuação no âmbito da venda do produto, da divulgação, da po-
pularização. A situação confrontava, neste aspecto, a lógica instituída:

Julgo de ser tempo de reconhecer que a intuição e sensibilidade artísticas têm pouco
ou nada a ver com o rendimento financeiro das pessoas. (…) É preciso não esquecer
que todos os empregados por conta de outrem constituem o tal público especial do
Trindade. Em certo sentido, penso que o público do D. Maria ou do S. Carlos é muito
mais “especial”. Pelo menos neste último teatro, tenho ouvido opiniões sobre ópera
verdadeiramente “especiais”, o que não acontecia quando frequentava a “geral” do
Coliseu em espectáculos da mesma natureza.38

O Público

As características do público que frequentou as temporadas de ópera no


Trindade foram-nos descritas por Celeste Martins, bilheteira do Teatro

37. Ibidem, p. 13.


38. Ibidem, p. 13.

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A Ópera do Trindade

da Trindade, e pelo próprio Serra Formigal. O director do Trindade elabo-


rou na altura um pequeno inquérito. Os espectadores eram convida-
dos a preencher fichas de caracterização que atendiam especialmente à
sua inserção profissional.39 A maior parte, segundo Celeste Martins40,
era constituída por empregados de escritório, empregados de balcão e
de estabelecimentos vários, embora também houvesse médicos e en-
genheiros. Serra Formigal confirmou41 a predominância de empregados
de escritório, funcionários públicos e também dos tipógrafos, acrescen-
tando que “o Teatro da Trindade era um teatro de divulgação popular,
sobretudo destinado às classes que tinham um bocadinho de médias,
à classe média baixa e aos que quisessem vir. Operários? Encantado da
vida, ainda não vinham assim muitos, lá foram alguns.”42 Serra Formi-
gal relatou ainda o modo como informou o Ministro Gonçalves Proen-
ça da sua intenção de colocar os preços dos bilhetes a cinco escudos:

A maior parte desta gente não está habituada a ir à ópera… Se eu puser ópera a trin-
ta mil reis ou quarenta, o “Zé” lê aquilo: Quarenta paus, ópera? Isso é uma grande
chatice, não vou. Depois vai para o Trindade, depois o taxi, os transportes não são
fáceis, não vai. Mas se puser a cinco mil reis, é capaz de ir. Lê aquilo e diz: isto não
presta, mas vamos lá a ver. E vai. E se for e gostar, volta. E assim foi. No primeiro
ano esteve sempre cheio.43

O depoimento de Celeste Martins possibilita a compreensão de de-


terminados rituais que envolviam a sociabilidade no teatro. À substân-
cia das categorias profissionais acima indicadas é acrescentada uma
descrição dos hábitos e práticas que as caracterizavam. Ao enobrecimen-
to da cultura popular era inerente a tentativa de distanciar um público
específico, com aspirações sociais ascendentes, as tais classes médias
baixas, de algumas ligações proletárias que não convinha ver reforça-
das. O sucesso dos espectáculos da Companhia de Ópera do Trindade
foi um indício claro da prossecução deste objectivo.
Entre o público do Trindade era possível encontrar alguns melómanos
do São Carlos, que não perdiam um espectáculo e que frequentavam

39. Não foi possível aceder às fichas de caracterização do público.


40. Entrevista a Celeste Martins (2001).
41. Entrevista a José Serra Formigal (2001).
42. Ibidem.
43. Ibidem.

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também o Coliseu. Mas grande parte da sala de espectáculos estava pre-


enchida com novos frequentadores, atraídos pelas vantagens ofereci-
das pelos espectáculos da FNAT. É perceptível, na entrevista de Celeste
Martins, que a ópera foi uma opção eficaz da política cultural da FNAT,
accionando, entre indivíduos de determinados grupos sociais, os dese-
jados mecanismos de distinção social. No Trindade procurava-se viver
a democratização da ópera e das suas funções rituais:

Havia muito entusiasmo porque havia muita gente que vinha aqui e que conhecia
as óperas de ouvirem bocadinhos na telefonia. Havia muita gente que nunca foi a S.
Carlos, para elas isto era um deslumbramento, até porque o teatro era muito bonito,
era um deslumbramento. Às vezes perguntavam-me se era preciso vir de vestido
comprido. Eu respondia que não porque era uma ópera para trabalhadores e não
era obrigatório virem com as peles. Também perguntavam se vinham de gravatinha
e eu dizia que desde que viessem compostos, não era necessário vir de lacinho. (…)
Ao princípio fazia-lhes muita confusão porque estavam habituados a ver as récitas
no S. Carlos, havia pessoas que iam mesmo ver a entrada do público, com vestidos
até aos pés, com as suas jóias, as suas peles, então quando nós começámos aqui,
as pessoas ficaram uma bocado desconfiadas se iria ser como no S. Carlos, muita
gente pôs isso em questão. Mas explicava-se que era ópera para trabalhadores, po-
dem vir compostos sem ser preciso trazer peles, se não as tiverem, se as tiverem,
que as tragam e as exibam. (…) As pessoas tinham o cuidado de vir bem arranjadas,
mas nada de grandes exageros, porque também não tinham. Então às vezes via-se
que as pessoas ficavam receosas, com vontade de virem mas, ao mesmo tempo,
com receio de não se sentirem bem ao pé das outras pessoas, porque quem tinha,
trazia. Claro que uma ida à ópera é sempre uma ida à ópera, mesmo sendo para tra-
balhadores e via-se que o público que ia para a galeria ou para o balcão de terceira,
se sentia tímido perante os outros.44

Os espectáculos de ópera no Trindade eram momentos de forte socia-


bilidade em que se realizava uma espécie de performance social, negocia-
da de acordo com a percepção que os elementos do público teriam acerca
do comportamento correcto a representar naquela situação. Os contor-
nos desta representação seriam, na maior parte dos casos, o resultado de
uma interpretação de imagens irradiadas por grupos de referência,
aqueles que habitavam a mundanidade do Teatro de São Carlos. O con-
tacto com um produto artístico pertencente a uma cultura dominante

44. Entrevista a Celeste Martins (2001).

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A Ópera do Trindade

solidificava determinadas trajectórias sociais. O espectáculo em si se-


cundarizava-se, passando a ser um pretexto para exibir um novo estatu-
to social. Cumpriam-se as finalidades da FNAT. Compreende-se, assim,
o fascínio pelas estreias, momentos de ajuntamento de notáveis: “(…) a
pessoa que não arranjasse bilhete para a estreia já não vinha, porque sabia
que naquele dia lhe interessava vir, porque via o Sr. Fulano, o Sr. Sicrano.”45
O Trindade criou um público fiel, presença assídua ao longo das tem-
poradas. As suas preferências passavam, sem dúvida, pelos grandes
clássicos da ópera italiana que conheciam pelas passagens mais famo-
sas. A familiaridade auditiva e o fausto visual faziam os encantos de um
público deslumbrado com o espectáculo de ópera apresentado no seu
formato mais tradicional. As demonstrações de agrado suscitadas pela
generalidade dos espectáculos originaram alguns reparos por parte da
crítica especializada. Havia uma inadequação do comportamento dos es-
pectadores em relação a limites sociais e artísticos que definiam, segun-
do o espectador mais “culto”, a interacção numa sala de espectáculos de
ópera. O choque entre determinado ethos artístico cultivado, produzido
pelo próprio meio, e um modo de participação no espectáculo que esta-
ria mais próximo de manifestações culturais de natureza popular, é visí-
vel no decorrer da descrição das temporadas, apresentada mais adiante.

Enobrecer a cultura popular

A intenção do director do Trindade de “elevar” o nível da cultura popu-


lar foi igualmente notória nas outras realizações que completaram a
primeira temporada do Teatro da Trindade. Os concertos sinfónicos,
comentados por João de Freitas Branco, e contando com alguns dos
solistas portugueses46 mais conceituados, foram um sucesso de públi-
co e de crítica. O director do Trindade resolveu ainda, apesar de tal ini-
ciativa não constar do plano inicial por si apresentado ao presidente da
FNAT e ao Ministério das Corporações, organizar um conjunto de quatro

45. Entrevista a Celeste Martins (2001).


46. Nesta primeira temporada, Vasco Barbosa (violinista), Maria Manuela Araújo, Fernanda Wandschneider e Nina Marques
Pereira (pianistas), Maria Teresa de Almeida, Maria Cristina de Castro, Ana Lagoa, Álvaro Malta, Hugo Casais e Fernando Serafim
(cantores). Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, pp. 13-14.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

concertos de câmara com a colaboração do Quarteto de Lisboa47 e do


Trio de Lisboa48. Apesar da recepção crítica ter sido muita generosa, a
iniciativa não atraiu o público. Estas circunstâncias desfavoráveis não
demoveram Serra Formigal de continuar o esforço:

Dada a alta categoria desta música e a possibilidade que sinto dela ser apreciada e
amada pelo público uma vez conhecida e destruindo o preconceito de intelectualismo
e portanto aborrecimento que a tem cercado, sobretudo devido à sua falta entre nós,
julgo que deverá insistir-se na organização de concertos semelhantes, pois vale a
pena o sacrifício financeiro e até moral de ver casas com tão pouco público para tão
boa música, com a esperança fundada de que se continuarmos a dá-la, o público
acabará por acorrer em maior número.49

Apesar de o público não ter aderido a alguns espectáculos, Serra Formigal


defendeu a sua continuidade, pela riqueza cultural que proporcionavam.
A intenção de nobilitar a “cultura popular”, especialmente a mais ur-
banizada, alargou-se ao espectáculo que, até à data, tinha sido mais bana-
lizado pela FNAT. As “variedades”, de que os serões para trabalhadores,
popularizados pela transmissão radiofónica, constituíam o ponto alto,
sofreram também uma alteração cosmética:

Os espectáculos que se realizaram nesta modalidade obedeceram à ideia de uma renova-


ção do género entre nós, de forma a aproximarmo-nos mais das “varietés”, normalmente
apresentadas no estrangeiro e que, como se sabe, constituem uma diversão que reúne nú-
meros de várias espécies e não como entre nós é hábito, um desfile de cançonetistas que
por não as termos em quantidade, de real valor, resulta muitas vezes maçudo e insípido.50

Desta forma, sem inviabilizar a vertente mais popular, mas apresen-


tando o que considerava de melhor nessa categoria – Alice Amaro,
Mara Abrantes, João Maria Tudela –, o director do Trindade introduzia
“um número de características elevadas que pudesse ao mesmo tempo
ser recreativo e cultural, numa aspiração de elevação do espectáculo”.
Entre os ginastas, prestidigitadores e palhaços, surgia Lurdes Norber-
to a recitar poesia, números de bailado clássico, o Grupo de Fernando

47. Constituído por Antonino David, Mário Camerini, François Broos e Chaterine Heinz. Ibidem, p. 14.
48. Formado por Leonor de Sousa Prado, Nella Maissa e Pedro Corostola. Ibidem.
49. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade,
pasta 313, p. 15.
50. Idem, p. 15.

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A Ópera do Trindade

Pessoa, ou o Grupo Folclórico da Casa do Povo de Almeirim, todos, segun-


do o próprio Formigal, muito saudados pela assistência: “os maiores
aplausos foram sempre recolhidos pelos números de carácter mais ele-
vado ou de sabor genuinamente popular.”51
Serra Formigal relevava os produtos culturais “genuinamente popula-
res”, no sentido da tradição, da pretensa autenticidade da cultura do povo,
e ainda os números de “carácter elevado”, substância de uma nova cul-
tura popular urbana, que o director do Trindade desejava se impusesse
a um conjunto de produtos provenientes de uma cultura massificada,
cinematográfica, radiofónica, televisiva, que, durante os anos 60, propul-
sionada pelos meios de comunicação social, ia entrando em Portugal.

O Caso Ruy Coelho

A constituição de uma Companhia Portuguesa de Ópera suscitou al-


gumas reacções importantes, quer musicais, quer políticas, isto se for
possível, no caso presente, estabelecer uma clara linha divisória. Não
havia dúvida de que o director do Teatro da Trindade fora escolhido para
este cargo porque as pessoas responsáveis por essa opção, tanto na FNAT,
como no Ministério das Corporações, conheciam as suas competências
nos assuntos musicais e artísticos, a sua boa movimentação no meio e
a relação que mantinha com os seus diversos agentes. No entanto, Ser-
ra Formigal era também um homem de confiança política, com uma
carreira firmada na máquina corporativa e conhecedor profundo da
problemática das políticas sociais. Foi a esta posição política que ficou
a dever a possibilidade de construir um espaço de cultura feito à sua
medida. O projecto do Trindade, nascido da base, veio criar uma estru-
tura de oportunidades significativa para uma série de interesses que
encontraram na iniciativa estatal um possível espaço de realização pro-
fissional. O modo como a FNAT se preparava para reconfigurar as po-
sições do campo operático revelar-se-ia fundamental para um conjunto
de percursos artísticos. No contexto musical português, o poder do di-
rector do Trindade era assinalável e apetecível.

51. Ibidem, p. 15.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

Os maiores obstáculos à formação da Companhia Portuguesa de Ópe-


ra irromperam de sensibilidades afectas ao universo cultural do Estado
Novo. O maior protagonista desta oposição veio a ser aquele que desde os
primeiros momentos foi o compositor protegido do regime: Ruy Coelho.
Com afinidades pessoais com alguns membros do grupo modernista do
Orfeu, Ruy Coelho nunca se aproximou esteticamente de qualquer van-
guarda.52 A proximidade com António Ferro concedeu-lhe, porém, uma
posição no meio musical erudito. As suas ligações políticas deram-lhe a
honra de reabrir o São Carlos, em 1940, apresentando a ópera D. João IV.
A partir do momento em que o Teatro Nacional de Ópera passou a orga-
nizar temporadas internacionais, em 1946, Coelho viu as suas obras
serem apresentadas com regularidade no mais nobre espaço lírico do
país. Apesar da sua relevância, a defesa acérrima de uma arte nacionalis-
ta nunca vingou no meio musical português, muito pelo facto de o regime
não encontrar na música erudita um instrumento preferencial de propa-
ganda. Ruy Coelho nunca conseguiu chegar a director do São Carlos e a
sua posição no campo era combatida em várias frentes. Conheciam-se
as suas divergências com a família Freitas Branco, especialmente devido
às polémicas travadas com o compositor Luiz de Freitas Branco. Noutro
campo de batalha, o compositor Fernando Lopes-Graça foi um feroz
adversário de Coelho, tanto do ponto de vista estético como do político.
A discussão acerca do modelo artístico do Trindade foi apenas o mo-
tivo apontado por Ruy Coelho para demonstrar o seu desagrado pelo
facto de tão importante iniciativa estatal dispensar os seus serviços. O
conflito não se resumia à oposição entre dois homens mas, sobretudo,
ao confronto das lógicas que eles representavam, política e artisticamen-
te. Quando José Serra Formigal conseguiu, através da FNAT, o apoio
estatal para construir, desde a base, uma Companhia Portuguesa de Ópe-
ra, Ruy Coelho insurgiu-se contra o tipo de proposta apresentada. A
contenda ficou-se pelas instituições ministeriais, bem longe do públi-
co.53 Em 3 de Março de 1963, ainda antes do início da primeira tempo-
rada de espectáculos, Ruy Coelho escreveu uma carta ao ministro das

52. Mário Vieira de Carvalho, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Relógio D’Água, Lisboa, 1999, p. 176.
53. Os documentos que retratam esta querela – um conjunto de cartas – estão agrupados no Arquivo do antigo Ministério das
Corporações, hoje Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, num envelope destacado, pertencente à pasta 313, em cuja
face se encontra escrito “O Caso Ruy Coelho”.

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A Ópera do Trindade

Corporações, Gonçalves Proença. O assunto prendia-se com a escolha da


ópera A Serrana, de Alfredo Keil54, para representar a ópera nacional na
primeira temporada de espectáculos. Discordando da opção, Ruy Coe-
lho indignava-se com o facto de as suas óperas terem sido preteridas por
uma obra do século xix, escrita e cantada em italiano.55 Fora a sua Inês
de Castro a primeira ópera cantada no nosso país em língua portuguesa,
no já distante ano de 1927. Mas o afastamento das suas óperas repre-
sentava mais do que uma simples ofensa pessoal:

(…) excluindo as Óperas Portuguesas que foram criadas nos últimos quarenta anos,
e dando só a Serrana de 1899, vai criar no espírito dos trabalhadores da FNAT a lição
falsa e errada de que em 30 anos da política do espírito, não se criou Arte Nacional,
desmentindo grosseiramente a afirmação feita pelo Secretariado Nacional da Infor-
mação, com a Exposição “30 Anos de Cultura Portuguesa.”56

Para “estabelecer a verdade da cultura portuguesa”, Ruy Coelho pro-


pôs que fossem incluídas de imediato na programação do Trindade as
óperas de sua autoria, Rosas de Todo o Ano, Crisfal e Cavaleiro das Mãos
Irresistíveis, que, segundo a sua opinião, eram o elemento acabado da
ópera do regime. Para enquadrá-las numa programação já organizada,
Coelho propôs que se reduzisse de dez para oito o número de apresen-
tações das outras três óperas e da opereta A Canção do Amor.
Os termos do protesto de Ruy Coelho, demonstrativos da importância
que atribuía a si próprio no interior do panorama do teatro lírico nacio-
nal, além de representarem a imposição de uma orientação artística,
foram blindados por uma argumentação que os legitimava à luz de al-
guns princípios doutrinários do regime. A Coelho escapava, porém, que
este tipo de argumentação era inoperante quando confrontado com os
contornos políticos que delimitavam as actividades do Trindade da
FNAT. A posição e opções de Serra Formigal estavam salvaguardadas
por mecanismos de legitimação pouco sensíveis à retórica nacionalista
e interventora de Ruy Coelho. O Trindade, antes de ser um projecto cul-
tural do regime, constituía-se como um eixo da sua política de ocupação

54 .Alfredo Keil (1850-1907) Compositor e pintor. Foi o autor de A Portuguesa, que se viria a tornar no hino nacional.
55. Carta de Ruy Coelho dirigida ao ministro das Corporações, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 1.
56. Ibidem, p. 3.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

de tempos livres. Serra Formigal, no entanto, estando ciente da contra-


dição inerente ao discurso de Ruy Coelho, sabia que, por diversas razões,
não era producente incompatibilizar-se com um compositor que ainda
mantinha algum peso institucional.
Inteirando-se do conteúdo da carta de Ruy Coelho, provavelmente por
comunicação do próprio Ministério das Corporações, o director do Trin-
dade respondeu através de uma “informação” expedida 15 dias depois.
Com esta resposta, Serra Formigal pretendia justificar o afastamento
do compositor, rejeitando, ao mesmo tempo, as implicações políticas
por ele sugeridas. O primeiro argumento esgrimido infirmava a unani-
midade que rodeava o compositor, sugerindo-se que Joly Braga Santos
(1924-1988), esteticamente mais moderno que Coelho, se aproximava
mais do ideal de compositor do regime: “Braga Santos é um compositor
gerado na vigência desta situação política, o que não aconteceu com o
Sr. Ruy Coelho, e, assim, teria, no ponto de vista em que este composi-
tor se situa, ainda mais razão para reclamar. Mas nenhum outro com-
positor fez qualquer reclamação.”57
Afirmando, em tom irónico, que a presença num teatro modesto como
o Trindade não poria em causa uma obra já tão conhecida pelo público
e pela crítica, Formigal adiantou que não percebia como este suposto
afastamento poderia ser um atentado contra a “Situação”. O projecto do
Trindade prosseguia o caminho da “política do espírito”, empresa não
redutível a proezas individuais:

Mas principalmente, parece-me que os factos são apreciados numa óptica errada se
se confundir a política de espírito dos últimos trinta anos com a pessoa do Sr. Ruy
Coelho. […] Sem dúvida que o Sr. Ruy Coelho devia considerar que esta nova realiza-
ção da FNAT é mais uma afirmação de política de espírito de que o signatário não é
mais do que um executor mas, afinal, parece que só assim poderia pensar desde
que o seu nome constasse do cartaz, o que sinceramente lamento.58

De forma diplomática, ficava legitimado o afastamento de Ruy Coe-


lho. Formigal, referindo que “não se pretende lançar ao ostracismo o
Sr. Ruy Coelho”, julgou-se por bem organizar um “reportório atendendo

57. Informação de Serra Formigal a propósito da carta de Ruy Coelho para o Ministério das Corporações, 18/4/1963. Arquivo do
Ministério do Trabalho e Solidariedade, pasta 313, p. 6.
58. Ibidem, p. 8.

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A Ópera do Trindade

a determinados critérios objectivos que poderão não ser os melhores


mas que assim se afiguram a quem teve de decidir e que, além disso
mereceram a concordância não só do Teatro Nacional de S. Carlos como
a superior aprovação de Vossa Excelência.”59 Serra Formigal construía,
com o apoio do Ministério das Corporações e a necessária dependência
do São Carlos, a sua legitimidade política e artística. O Trindade apre-
sentava-se como um novo representante da “Política do Espírito”. Esta
tinha, porém, bases de “espiritualização” necessariamente diferentes.
A discussão entre Serra Formigal e Ruy Coelho permite vislumbrar a
oposição entre dois modelos culturais vinculados a intervenções polí-
ticas distintas. A explicação do director do Trindade para justificar a es-
colha do reportório, nomeadamente quanto à opção de A Serrana para a
primeira temporada de espectáculos, em detrimento das óperas de Ruy
Coelho, possibilita esclarecer o processo de comunicação artística idea-
lizado para o Trindade. Salientando que o modelo popular do Teatro cor-
porativo, tão fundamental para a valorização dos artistas portugueses,
fora “bem aceite pela direcção do Teatro Nacional de S. Carlos, teatro com
o qual esta obra é feita em colaboração”60, Formigal justificava a sua es-
colha, afirmando que a selecção do reportório atendera a “dois factores:
que as obras fossem ao mesmo tempo de fácil apreensão pelo público, ou
seja, de gosto popular e que facultassem aos cantores o possível luzimen-
to.”61 As óperas seleccionadas correspondiam ao padrão indicado:

Quanto ao “Barbeiro de Sevilha” e “Bohème”, parece não haver quaisquer dúvidas


de que são obras que o público de todo o mundo de há muito consagrou e constituem
alimento músico-dramático de vastas camadas populares. São obras obrigatórias
de todos os repertórios e de todos os elencos. A opereta “Canção do Amor”, servin-
do-se de melodia de Schubert e romanciando um episódio da sua vida, tem qualida-
de musical e chama simpàticamente a atenção do público menos culto para a figura
daquele grande compositor.62

A escolha de uma opereta, género considerado menor, exigiu de For-


migal uma justificação mais prolongada: “A mistura de ópera e opereta

59. Ibidem, p. 5.
60. Ibidem, p. 1.
61. Ibidem, p. 1.
62. Ibidem, p. 2.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

(não na mesma noite, claro) faz-se lá fora em teatros categorizados


cantando e representando opereta grandes artistas… pelo que penso que
este facto não poderá ofender, entre nós, nem a música nem o gosto do
público.”63
A defesa da opção A Serrana seguiu o mesmo juízo argumentativo:

Não se dirá que “A Serrana” seja a melhor ópera portuguesa, mas julgamos não es-
tar longe da verdade ao afirmarmos que é aquela que mais tem concitado o aplau-
so das camadas populares. As representações a que assistimos, designadamente
no Coliseu dos Recreios assim o demonstraram. Nunca faltam nem público nem
aplausos desde que o desempenho seja suficiente; o assunto muito português, o li-
breto com interesse dramático, a música de cariz popular de inspirada linha ro-
mântica e melódica, os bel-coros, levam a uma adesão fácil e proveitosa para a arte
lírica por parte dos que não estão iniciados nem familiarizados com linhas de evo-
lução estéticas mais modernas. Papini representará, talvez, o sentir geral do públi-
co médio de ópera – é sabido que tal público é regra geral conservador nos seus
gostos – quando afirma que, na ópera, prefere beber sempre o vinho velho embora
por odres novos.64

As características formais que tornavam A Serrana, à semelhança


das óperas do património romântico clássico, uma ópera ideal para res-
ponder com eficácia aos objectivos sociais da FNAT, correspondiam a
um modelo estético concebido para suscitar a adesão do público. As
obras de Ruy Coelho não preenchiam este desígnio. Na sua retórica,
Serra Formigal afirmava que Coelho era um autor demasiado moder-
no, de difícil relação com o público, e cuja obra devia ser apreciada por
públicos mais selectos:

Claro que esta é uma opinião [sobre A Serrana] que, artisticamente e num plano de
elites musicais, não terá validade mas não podemos ignorar as preferências dos pú-
blicos médios e populares pelas óperas “românticas”, numa iniciativa que tem ne-
cessàriamente de conquistar a adesão do público a que se dirige e portanto ir ao
encontro dos seus gostos.65

63. Ibidem, pp. 3-4.


64. Ibidem, p. 4.
65. Ibidem, p. 4.

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A Ópera do Trindade

O património romântico do século xix, especialmente o italiano e o


francês, foi a fórmula indicada para o director do Trindade chegar ao
mercado. Era também a tradição musical mais adequada às capacida-
des interpretativas dos cantores portugueses. Neste âmbito, ocorreu uma
sobreposição quase ideal das metas da FNAT e de uma prática empre-
sarial europeia cuja produção, embora renegada por algumas elites, se
aproximava do gosto de Serra Formigal:

E não se diga que a ópera do século xix não tem qualidade artística já que ela cons-
titue ainda a parte mais vultuosa em todos os repertórios dos principais teatros do
mundo. Por isso preferimos, nesta primeira temporada, a “Serrana” a uma ópera
portuguesa de autores contemporâneos, integrados necessàriamente em estéticas
mais modernas mas também menos apreensíveis para quem toma os primeiros
contactos com a arte lírica.66

Não seria a “modernidade” de Coelho que incomodava o director do


Trindade. Além de não apreciar, em larga medida, a obra do compositor,
o modelo de comunicação que esta subsumia chocava com o projecto
da FNAT. O Trindade foi pensado como um espaço de cultura recrea-
tiva para compensar as aspirações sociais dos seus espectadores e não
um local de doutrinação nacionalista.67 A obra de Coelho não cabia ao
lado das grandes óperas românticas do século xix, património músico-
-dramático que permanecia, nos seus momentos mais grandiosos, na
memória sensível do público. Desta correspondência com a sensibili-
dade do público dependia a eficácia ideológica da iniciativa cultural.

Os limites do espectáculo corporativo:


as actas do Conselho Consultivo
do Teatro da Trindade
A comunicação músico-teatral que enformou as temporadas de ópera
do Trindade representava uma opção entre várias alternativas. Serra
Formigal explicara as condições da sua proposta. Do ponto de vista for-

66. Ibidem, pp. 4-5.


67. Lógica que, como afirmámos, nunca foi preconizada pelo regime.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

mal, a escolha do grande reportório romântico do século xix garantia a


compatibilidade com um determinado gosto comum. A virtude da opção
descartava outras hipóteses incompatíveis com as atribuições do Trin-
dade, um teatro de ópera financiado pelo Ministério das Corporações.
O modelo de espectáculo proposto, a origem artística e natureza da obra,
a sua concepção cénica e a língua em que era transmitida, harmoniza-
vam-se com os objectivos da instituição que os sustentava, não sendo,
deste modo, necessária uma preocupação censória com o produto e a
encenação. Os promotores do Trindade optaram por um modelo operá-
tico que não implicava, como convinha à FNAT, a exteriorização de uma
censura política e formal. A preferência ajustava-se aos desejos da
maior parte do público, aos reais interesses dos cantores portugueses,
e aos gostos sinceros dos próprios organizadores.
No entanto, se na ópera o modelo sócio-comunicativo permitia aceitar
a prática censória, a organização das temporadas teatrais exigia outras
cautelas. O teatro era a arte do texto verbalizado, encenado e apresenta-
do ao público português na língua portuguesa. No Plano Geral de progra-
mação da primeira temporada de espectáculos, Serra Formigal estabeleceu
que o teatro seria uma prioridade: “Julgamos que o teatro, pela função
social que representa, deve ter o primeiro lugar no que se refere à ex-
tensão da respectiva temporada.”68 A função social a que Serra Formigal
se referia relacionava-se com a natureza pedagógica e didáctica da arte
dramática, instrumento útil em determinadas circunstâncias, mas mui-
to problemático se a sua mensagem não fosse controlada. O teatro era um
foco de preocupação, desde as peças representadas nos grandes espaços
urbanos à enorme rede de pequenos teatros amadores e populares que
interessava laborassem dentro de um registo inofensivo. O teatro discu-
tia-se em jornais e revistas. A evolução das técnicas teatrais, o papel do
dramaturgo, do encenador, dos actores, dos empresários, suscitava uma dis-
cussão que, quase sempre, redundava na função social da arte dramática.
Como as temporadas de teatro no Trindade foram concessionadas a
uma companhia externa, Serra Formigal decidiu criar um Conselho
Consultivo para discutir as peças levadas à cena. Esta prática censória,
eufemizada pelo nome institucional atribuído ao conselho, consultivo,

68. Serra Formigal, Plano Geral para uma Programação Anual do Teatro da Trindade, Arquivo Serra Formigal, 1962, pp. 6-7.

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A Ópera do Trindade

não significava que Formigal abdicasse de apresentar obras que, den-


tro dos critérios institucionais, se considerassem representantes de
um “bom teatro”. As actas dos três primeiros anos de trabalho da direc-
ção do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade revelam os critérios
que enformavam a opção artística dos promotores das temporadas de
espectáculos. As condições políticas e formais impostas à arte dramá-
tica foram a expressão visível dos contornos intransponíveis da política
corporativa seguida no Trindade. O conteúdo das actas expõe ainda os
limites temáticos e formais impostos a todos os tipos de espectáculos.
A lógica selectiva do Conselho Consultivo foi atravessada por algu-
mas das contradições inerentes a todo o projecto do Trindade. Não é
justo caracterizar este Conselho exclusivamente pelo seu carácter censó-
rio. O grupo de notáveis que julgava as peças propostas pela companhia
de teatro, à qual a concessão do Trindade estava atribuída, procurava
reunir o interesse institucional com a preocupação de apresentar espec-
táculos de “nível elevado” que conseguissem suscitar o interesse do pú-
blico da FNAT. As apreciações dos membros do Conselho são a expressão
destas contradições. A opinião de Serra Formigal, no papel de mediador
entre uma posição artística que partilhava com os outros membros do
Conselho e as obrigações impostas pela lógica política e social da FNAT,
revelou-se bastante significativa.
A reacção negativa da crítica especializada a O Milagre da Rua, comé-
dia dramática popular de Costa Ferreira, sugeriu ao director do Trinda-
de, no relatório que apresentou à direcção da FNAT acerca do primeiro
ano de espectáculos, algumas considerações sobre as responsabilida-
des particulares da sua iniciativa:

Estas reacções da crítica evidenciam um dos problemas mais difíceis em toda a explo-
ração do teatro, ou seja, a escolha das peças. Se a peça é elevada do ponto de vista li-
terário e dramático, logo aparecem os críticos que a consideram inviável para o
“público da FNAT”; se a peça tem características mais populares, então a FNAT não
está a cumprir a função de divulgação cultural que lhe incumbe; finalmente, se a
peça trata problemas de maior profundidade moral, psicológica ou político-social,
surge então o problema de poder ser perigosa.69

69. Relatório das Actividades do Teatro da Trindade relativas ao ano de 1963, Arquivo do Ministério do Trabalho e Solidariedade,
pasta 313, pp. 8-9.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

O “bom teatro” defendido por Serra Formigal resultava de uma natu-


ral filtragem:

Claro que toda a regra tem excepção e que no meio é que está a virtude, e assim julgo
que, com exclusão de peças especialmente vanguardistas e herméticas ou ainda polí-
tica e moralmente desaconselháveis, a preocupação que nos deve nortear na escolha
das peças deve basear-se num critério amplo e ecléctico.70

A 9 de Novembro de 1962, reuniram-se, no Gabinete do Director do


Teatro da Trindade, José Serra Formigal, presidente do Conselho Con-
sultivo, e os vogais, Domingos Mascarenhas, Orlando Vitorino e Afon-
so Botelho.71 Registe-se a ligação de alguns destes elementos, entre os
quais se inclui o próprio Serra Formigal, ao chamado grupo da Filoso-
fia Portuguesa72. O critério do eclectismo condicionado pela depuração
política e formal foi assumido na primeira acta do Conselho Consulti-
vo. Era sua tarefa apreciar, “não só o valor literário e dramático das peças,
mas também a sua adequação para o público especial a que se desti-
nam.”73 A análise colectiva a que foram sujeitas as peças da Compa-
nhia de António Couto Viana, à qual fora atribuído o subsídio do SNI
e, consequentemente, a concessão do espaço do Trindade, exigia uma
harmonização dos referidos critérios. A peça Os Gladiadores, de Alfre-
do Cortez, foi considerada “demasiado epocal e com dificuldades de
compreensão para o público constituído pelos beneficiários da FNAT.”74
Foi indicada, em sua substituição, o Oiro, peça do mesmo autor, que se
adequava pelo “sentido construtivo no plano moral que é apresentado
de forma clara, e, portanto, acessível à generalidade do público.”75 O Con-

70. Ibidem, p. 9.
71. Afonso Botelho, licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa, ensaísta filosófico, um dos
teóricos da filosofia da saudade, dramaturgo, apoiante da causa monárquica; Orlando Vitorino, licenciado em Ciências
Histórico-filosóficas pela Faculdade de Letras, filósofo e dramaturgo; Domingos Mascarenhas exerceu as funções de crítico
cinematográfico na Emissora Nacional, entre outras actividades culturais. Saragga Leal, vice-presidente da Junta de Acção
Social, e Beker da Assunção, chefe da repartição de Programação da Emissora Nacional tornam-se membros permanentes do
Conselho Consultivo em 1964. Acta n.o 7 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade,
24/4/1964, p. 1.
72. O Grupo da Filosofia Portuguesa formou-se a partir da obra O Problema da Filosofia Portuguesa, publicada em 1944 por
Álvaro Ribeiro. Deste resultou um diálogo com Eduardo Salgueiro sobre os fundamentos de uma “filosofia portuguesa”. Este
diálogo alargou-se na década de 1950 e 1960 a pensadores como António Quadros, António Telmo, Pinharanda Gomes, Afonso
Botelho, Orlando Vitorino ou António Braz Teixeira.
73. Acta n.o 1 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 1.
74. Ibidem, p. 1
75. Ibidem, p. 1.

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A Ópera do Trindade

selho recomendou ainda O Crime, de Francisco Ventura: “Apresenta


uma estrutura dramática susceptível de proporcionar um espectáculo
com emoção e de comunicabilidade com a sensibilidade do público,
defendendo bons valores familiares e sociais.”76
A discussão acerca de Os Tecelões, de Hauptmann77, peça do teatro
naturalista, elucida acerca de outros limites que o Trindade não podia
ultrapassar. A obra debruça-se sobre um “conflito entre operários e em-
presas apoiadas pelo governo”. Apesar do seu “inegável significado his-
tórico-teatral”, considerou-se que “o conflito de que trata exige, da parte
do espectador, uma transposição cultural para se adequar à actualida-
de; o clima e a forma como o tema é conduzido, além das dificuldades
de realização determinadas pelo grande número de personagens, desa-
conselham a representação desta peça e sobretudo a transposição cultu-
ral que o conflito exige do espectador é difícil de obter e presta-se, antes,
a um entendimento que pode ser indesejável.”78
A transposição da temática das obras para a actualidade social e polí-
tica – algo que poderia ser feito através da encenação – devia ser evitada
a todo o custo. Este princípio era aplicável a qualquer tipo de espectá-
culo. No caso da ópera, não seria apenas o problema da conquista do
público que levou à exclusão de certo património contemporâneo, mas,
com toda a certeza, o modo como determinadas obras pretendiam re-
verter o espectador para o seu quotidiano.79
A função pedagógica do teatro, e da arte em geral, admitia, para uma
boa expressão da vivência corporativa, a encenação do conflito, desde
que o “bem e o mal” estivessem devidamente identificados80, e que o
epílogo conclusivo expressasse com clareza de que lado estava a razão.
Agnes Bernauer, de Hebbel, narra “uma tragédia em que o conflito é a
oposição entre os interesses do Estado e as razões do amor.” Embora os
motivos que justificaram a rejeição da peça fossem logísticos, a descrição

76. Ibidem, p. 2
77. Gerhart Hauptmann (1862-1946), poeta e dramaturgo alemão, com acentuada tendência socialista. Foi Prémio Nobel da
Literatura em 1912.
78. Acta n.o 2 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1.
79. Tome-se o exemplo das encenações das peças da dupla Bertold Brecht/Kurt Weil.
80. Acta da segunda reunião do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 1. Preparando a temporada de 1964, o Conse-
lho irá considerar a peça Uma Rapariga Moderna, de Francisco de Azevedo, muito apropriada para subir ao palco do Trindade, já que
“possui numerosos motivos que a recomendavam, pois tinha um nível artístico e literário aceitável, era completamente representável e ofe-
recia especiais recomendações pelo aspecto social da sua intriga que defende e propugna a responsabilidade do patronato nos problemas
do trabalho.” Acta n.o 6 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 5/2/1964, p. 1.

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do enredo evidencia que o conflito entre o “Estado” e o “amor” não era


adequado a um teatro que fazia do entendimento entre o “Estado” e a
“alegria” o seu princípio fundamental. É visível o esforço do Conselho
Consultivo do Teatro da Trindade para justificar a recusa das peças com
outros critérios que não apenas os políticos e doutrinários. Cocktail-
-party, de T.S. Elliot, também não sobreviveu, pelo facto de a “linguagem
da peça, pela sua subtileza” ser de “difícil apreensão para um público
a iniciar no teatro, o que ainda torna menos explícitas as ideias nela ex-
postas.”81 Estas ideias eram transmitidas por um tema central que se
desenvolve “na boa sociedade britânica através de dois adultérios que
não são suficientemente explicados nem condenados.”82
Na preparação da temporada de 1963, a peça O Homem do Quiosque
de Tomaz de Figueiredo, proposta ao Conselho por Afonso Botelho, foi
rejeitada por Serra Formigal. O director do Trindade repete argumen-
tos anteriores:

(…) devido precisamente ao carácter cultural e estèticamente vanguardista que pos-


sui, causaria decerto estranheza ao público habitual do Trindade; seria, por isso,
mais conveniente aguardar o prosseguimento das actividades culturais da FNAT até
ao momento em que esse público já esteja preparado para se lhe poderem apresen-
tar, com proveito artístico e cultural, espectáculos deste género.83

Na elaboração das temporadas foi notória a dificuldade de apresentar


peças portuguesas consideradas adequadas.84 O nível das obras não
agradava, ou o seu conteúdo era susceptível de gerar mal-entendidos.
Dos autores portugueses, apenas Domingos Monteiro e Eduardo Schwal-
bach pareciam preencher os requisitos. O Preço do Pecado, de Améri-
co Durão, “apresenta personagens e situações que de modo algum são
compatíveis com as finalidades educativas da FNAT.”85 Amor, de Au-
gusto de Castro, considerada por todos uma obra excepcional, peca

81. Acta da segunda reunião do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, 13/11/1962, p. 2.


82. Ibidem, p. 2.
83. Acta n.o 9 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 8/5/1964, p. 1.
84. “ (…) depois de se ter verificado que entre os outros dramaturgos contemporâneos, por uma ou outra razão seria talvez mais
difícil encontrar obras que satisfizessem os fins apresentados pelo Presidente.” Acta n.o 4 do Conselho Consultivo do Teatro da
Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 13/1/1964, p. 2.
85. Acta n.o 9 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 8/5/1964, p. 2.

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A Ópera do Trindade

pelos “diálogos demasiadamente longos em relação às possibilidades


de receptividade do público do Trindade”, além do desenlace merecer
“um conceito mais reflectido de amor.”86
A selectividade do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade impu-
nha, no entanto, alguma depuração aos seus argumentos. Justifica-
vam-se algumas recusas por outros motivos que não os políticos ou os
formais, embora ambos estivessem, quase sempre, implícitos. Os mem-
bros do Conselho Consultivo queriam realizar a sua tarefa com digni-
dade. A posição que tinham perante o espectáculo dramático não era
a de simples apreciadores mas de conhecedores profundos. O Conse-
lho defendeu a representação da peça de Malaparte, As Mulheres Tam-
bém Perderam a Guerra, contra a proibição a que tinha sido submetida
pela censura; considerou o dramaturgo francês Jean Anouilh como um
grande representante do teatro de tradição clássica, salvaguardando a
sua pureza artística, com a referência de que saíra “incólume de todas
as tentativas de engagement perante a política em outros domínios ex-
trínsecos à arte teatral. (…) É de notar que, no nosso ambiente cultural,
saturado de preconceitos políticos, a valorização e a desvalorização de
J. Anouilh estão cheias de episódios ridículos.”87
O Conselho procurou, assim, salvaguardar uma certa autonomia da
representação artística perante uma função institucional de controlo
que teria de representar.
À filtragem política e cultural das peças de teatro seleccionadas te-
ria de se acrescentar algumas preocupações em apresentar um produ-
to que se integrasse com êxito no mercado dramático da época. Serra
Formigal acabará por referir que interessaria inovar o tipo de peças
que Couto Viana sugeria, já que era nítida “uma sensível tendência
classicista na escolha do reportório. Seria de recomendar a escolha de
algumas peças de “choque”, que terão de ser de autores contemporâ-
neos.”88 Num contexto em que a procura teatral reagia melhor a de-
terminado tipo de produto contemporâneo do que a obras de certo
pendor clássico, tornava-se urgente criar condições que levassem a uma
melhor relação com o público. Couto Viana, em inquérito promovido

86. Ibidem, p. 2.
87. Acta n.o 15 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 24/11/1965, p. 1.
88. Acta n.o 12 do Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, 10/2/1965, p. 1.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

pela revista O Tempo e o Modo, revelava-se um cultor do gosto clássico,


pouco condescendente com experiências formais ou cedências comer-
ciais:

O teatro não se restringe a espectáculo, a efeitos cénicos, a recursos circenses, ins-


tintivistas, sensoriais, etc., nem se baseia puramente nos preconceitos interesseiros
e primários do público (por exemplo: um baixo sectarismo político, a sensualidade
grosseira, a lisonja ao gosto da revolta e à crítica fácil (…) O dramaturgo não pode
sujeitar-se à mera preocupação do êxito.89

O êxito, num projecto em que os espectáculos tinham uma função


instrumental, não se constituía como um elemento acessório. No caso
da ópera, não havia, com a excepção do Coliseu, uma alternativa real de
consumo para certos estratos da população, já que o São Carlos permane-
cia inacessível. No teatro, de modo diverso, a concorrência era forte. A
tendência conservadora e clássica de Couto Viana competia com o te-
atro ligeiro a que o Trindade não queria fazer concessões. Noutro re-
gisto, iam surgindo em Lisboa pequenos teatros de cariz experimental,
que conseguiam, com produções de baixo custo, conquistar, em algu-
mas franjas da capital, um público firme. As produções de Couto Viana
no Trindade encontravam-se, deste modo, entre uma restrita vanguar-
da experimental em crescimento, diversa em si mesma90, e um teatro
ligeiro muito vulgarizado. Formigal, exprimindo a vontade de substi-
tuir uma tendência classicista por outra mais contemporânea, tentava
captar um público atraído por um teatro independente quase sempre
ideologicamente distante do regime.91 Couto Viana condenava as novas
tendências teatrais pela sua “ausência ideológica responsável”, pela
“privação de uma tradição dramática”, pelo “provincianismo basbaque”,

89. Inquérito a Couto Viana, a propósito do teatro, O Tempo e o Modo, n.o 6, Junho de 1963, p. 129.
90. É essencial não tomar o teatro experimental de forma unívoca, já que tanto ao nível da proposta estética como das relações
políticas existia bastante variedade.
91. Tome-se o exemplo da resposta de Bernardo Santareno e Fiama Hasse de Pais Brandão ao mesmo inquérito de O Tempo e o
Modo. Santareno afirmou: “O Povo tem que ser educado nas novas formas estéticas, com peças actuais, modernas na estética e
na temática. Pode-se ser simples e ter nível artístico, simultâneamente: Bertold Brecht pode ser entendido por todos os públicos,
mesmo pelos mais rudes.” Inquérito a Bernardo Santareno a propósito do teatro, O Tempo e o Modo, n.o 6, Junho de 1963, pp. 137-
138. Fiama Hasse Pais Brandão, por seu lado, referiu que “a arte deve colaborar no movimento de transformação das estruturas,
ensinando os homens a transformá-las. Função didáctica, por conseguinte. Ei-lo, portanto, em condições por excelência de en-
sino e divulgação de um tipo de comportamento.” Inquérito a Fiamma Hasse de Pais Brandão a propósito do teatro, O Tempo e
o Modo, n.o 6, Junho de 1963, pp. 139-140.

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A Ópera do Trindade

pelo “amadorismo de ‘capelas’” e pelo “formalismo, que se baseia na


espectacularidade, no sentimentalismo, no declamatório, em esquisiti-
ces e sensações.”92 O director do Trindade teria, no entanto, de pensar
os seus espectáculos face a estas condições de mercado. As dificuldades
de Serra Formigal em seleccionar peças publicamente competitivas
demonstraram que os limites políticos impostos à escolha colocavam
entraves importantes a um exercício moderno de regulação social. O pa-
norama da ópera era muito diferente. Para os grupos sociais a atingir
pela iniciativa da FNAT não havia uma significativa alternativa operática
no mercado. A ópera como instrumento da política social apresentava,
deste modo, uma autonomia mais estável.

Um modelo operático alternativo:


o caso do Grupo Experimental de Ópera
de Câmara (GEOC)
A comparação da concepção cultural que presidiu aos espectáculos or-
ganizados no Trindade com outra proposta de teatro lírico, contem-
porânea da iniciativa da FNAT, permite um olhar mais profundo sobre
alguns dos fundamentos artísticos da Companhia Portuguesa de Ópera.
Perseguindo este objectivo, é útil analisar a actividade do Grupo Expe-
rimental de Ópera de Câmara (GEOC), subsidiado pela Fundação Ca-
louste Gulbenkian, onde estava também sediada.93 No movimento de
reforma cultural dirigido pela Fundação Gulbenkian, a partir de 1957,
em Portugal, a ópera foi apoiada de forma a possibilitar a constituição
de um grupo experimental. Ao contrário da orquestra e do coro da Gul-
benkian, integrados na orgânica da Fundação, a ópera e o bailado afirma-
vam-se como actividades exteriores. A sua autonomia financeira era,
por conseguinte, mais frágil.
A existência do GEOC parecia ser, para alguns agentes do meio, a base
para algo mais ousado. O crítico João José Cochofel, por exemplo, afirma
que “o Grupo Experimental de Ópera de Câmara propõe-se a lançar os

92. Inquérito a Couto Viana, op, cit., p. 129.


93. O GEOC fora criado por iniciativa de Filipe de Sousa, Germana Medeiros, Francisco Menano, Manuela Menano e Hugo
Casais.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

alicerces de uma companhia portuguesa de ópera, mediante a consolida-


ção de um certo número de pressupostos; profissionalização dos elencos,
funcionamento regular e descentralizado, estímulo à produção operática
nacional, versão para a nossa língua do repertório estrangeiro.”94
Na apresentação pública da Companhia Portuguesa de Ópera do Trin-
dade, Serra Formigal referiu várias vezes a inspiração que este grupo
experimental provocou na nova companhia, por dois motivos princi-
pais: o trabalho de itinerância feito na província e a sua relevância para
o enriquecimento das carreiras dos cantores portugueses.
Apesar das semelhanças apontadas, é essencial pensar que o signifi-
cado das duas iniciativas no meio musical português era substancial-
mente diferente. Esta distinção entre o projecto do GEOC e os outros
espaços líricos era a expressão de lógicas que, atravessando os campos
artísticos, transcendiam as nossas fronteiras. No interior da generali-
dade dos universos da arte discutia-se as condições de autonomia da
criação, processo histórico social e geograficamente desigual. Na ópera,
os parâmetros do debate foram influenciados pelas transformações que
ocorreram no género teatral. Filipe de Sousa, um dos grandes respon-
sáveis pelo GEOC, mencionou, em artigo para a Colóquio Artes 95, a impor-
tância, fundamental para a ópera, das transformações por que passou
a arte dramática desde o princípio do século:

O teatro, e mais propriamente dito, o teatro lírico, tem passado desde os primeiros
anos deste século por um processo de renovação de estéticas, de princípios e de
conceitos, que traduz e reflecte aspectos e problemas de uma nova época e de um
novo comportamento do homem perante valores essenciais. Aos novos prismas de
visão e interpretação do mundo actual, correspondem, nas artes, novas temáticas,
novos símbolos e novas linguagens, dentro de uma constante geral que foi a atitude
anti-romântica de reacção a um passado próximo e, ao mesmo tempo, atitude de
modernismo mais preocupado com a “actualidade” do que com a “sinceridade” da
obra de arte.96

A ruptura que Filipe de Sousa descreveu, caracterizada pela “multipli-


cidade caótica de todos os ismos, de todas as técnicas e atitudes experi-

94. João José Cochofel, Arte Musical, Agosto de 1962, n.o 137, p. 114.
95. Filipe de Sousa, “A propósito da Ópera de Câmara”, Colóquio Artes, n.o 25, Outubro de 1963, pp. 62-64.
96. Ibidem, p. 62.

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A Ópera do Trindade

mentais”97, expressava a evolução da profissão de artista e o nascimento


de um mercado consumidor que permitiu, no caso específico do teatro,
de forma progressiva, uma maior independência da criação:

No teatro – arte total –, esta revolução processou-se simultâneamente na procura


de um equilíbrio ou simbiose perfeita de todos os elementos (texto, jogo cénico, ce-
nário, figurinos, iluminação, adereços, etc.) e na renovação de conceitos estéticos,
alinhados todos no mesmo propósito de “reteatralizar o teatro” dentro das novas
concepções de vida e do homem. Fundidos numa arte de harmonia – e encenação –
esses elementos (a palavra, o movimento, a linha, a cor, a luz) tornaram-se então
elementos “músicos”, equilibrados e correspondentes, de um mesmo todo.98

A exploração profunda das diversas formas que constituíam um dis-


curso teatral foi possibilitada pela autonomização, sempre precária,
dos campos artísticos. Se é verdade, como refere Filipe de Sousa, que a
“reteatralização do teatro” resultava de uma interpretação de novas con-
cepções da vida e do homem, não é menos real que essa idealização só
podia ser concretizada porque existiam condições objectivas que possi-
bilitavam um trabalho artístico autónomo de dependências financeiras,
políticas, institucionais e comerciais. O processo de autonomização da
arte não atingiu as diversas actividades artísticas de forma semelhan-
te. A pintura, ou mesmo a literatura, dados os custos inerentes ao seu
processo criativo, conseguiram, com maior rapidez, uma independên-
cia que nos casos do cinema, do teatro e da ópera, exigiram lutas e com-
promissos de outra ordem.
A sobrevivência de uma nova arte teatral e seus correlativos operáti-
cos implicava a correspondência da ruptura formal anunciada com as
condições materiais que proporcionassem a sua concretização efectiva.
A defesa dessas novas condições estaria relacionada com os contornos
da proposta artística:

O teatro, como todas as manifestações musicais e, em especial, a ópera, é uma rea-


lização fatalmente anti-económica que se tornou, por isso, quase sempre, iniciativa
oficial desde o século passado [século xix]. Não era, portanto, no grande teatro e na
grande ópera oficiais, presas de todos os conservantismos, que podia ter surgido

97. Ibidem, p. 62.


98. Ibidem, p. 63.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

tamanha revolução de princípios e de estéticas. Esse papel coube aos pequenos


palcos experimentais, aos teatros de arte, muitos deles fundados por alguns dos
grandes reformadores da cena actual: ali se puseram em prática os novos princí-
pios, ali se operou a revolução das artes do espectáculo.99

O equivalente operático a estes teatros experimentais que, na década de


60, surgiam em Lisboa em grande actividade, estava representado pe-
los conjuntos de ópera de câmara. A partir de pequenos agrupamentos,
num contexto em que o investimento em grandes infra-estruturas para
uma ópera modernizada se verificava apenas em alguns Estados euro-
peus, foi possível ver reflectida esta exploração formal. Era evidente,
porém, que a natureza do teatro lírico não proporcionava, mesmo tra-
tando-se de agrupamentos reduzidos, uma organização tão rápida e
pouco onerosa como os grupos de teatro experimental. Tal condição era
responsável, segundo Filipe de Sousa, pela falta de correspondência na
ópera, mesmo na condição ideal de teatro lírico experimental, “dos pro-
blemas estéticos e da verdadeira cultura musical do nosso tempo”. Ape-
sar do atraso, o compositor considerou que à actividade dos conjuntos
experimentais se deviam grandes progressos artísticos. Em Portugal, era
essencial criar condições para a subsistência destas companhias, favore-
cendo uma aproximação moderna do espectáculo com o intuito de criar
um novo público. Assumia-se como primordial o incentivo a uma prá-
tica itinerante, obviamente favorecida pelas dimensões das Compa-
nhias Experimentais.
Humberto D’Ávila100, nas páginas da Arte Musical, a propósito da repre-
sentação de O Telefone, de Menotti, pelo Grupo Experimental de Ópera
de Câmara da Fundação Calouste Gulbenkian, destacando a encenação
de Carlos Wallenstein, referiu a importância que os pequenos conjuntos
conferiam à encenação, o grande motivo criador da ópera contempo-
rânea. O GEOC, porque suportado pela Gulbenkian, tinha a obrigação de
proceder em antítese ao que se ia fazendo na ópera em Portugal. Ávila
defendia, deste modo, a condição do encenador português de ópera101,
marginalizado, à semelhança dos intérpretes nacionais:

99. Ibidem, p. 63.


100. Ibidem, p. 63.
101. Humberto d’Ávila foi fundador da Juventude Musical Portuguesa, crítico musical e vice-presidente da Federação Portuguesa
das Colectividades de Cultura e Recreio. Serra Formigal, na entrevista que nos concedeu, afirmou que Humberto d’Ávila fazia parte
de um grupo de amigos que semanalmente se reunia, entre os quais se encontravam João de Freitas Branco e Joly Braga Santos.

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A Ópera do Trindade

A vinda de alguns encenadores estrangeiros ao nosso País, e nisto estamos a pensar


globalmente no São Carlos, onde o problema é o mesmo, tem resultado negativa,
por nada aproveitar à formação de artistas nacionais, por haver impedido até agora
a prática corrente em todos os países civilizados da tradução dos libretos, a fim de
popularizar os espectáculos de ópera e conquistar para eles novas plateias, e, ainda,
por o seu trabalho se revelar muitas vezes abaixo daquilo que costuma ser para o
“seu público”, ressentindo-se duma certa displicência de atenienses entre bárbaros,
para os quais tudo serve. E tudo tem servido, na verdade, e continuará, se a crítica
não quiser fazer frente comum contra o snobismo culto, viajado e intelectual que é
também uma forma do nosso provincianismo artístico. (…) Só em grupos experi-
mentais de teatro, esses nossos candidatos têm podido, e em condições elementa-
res, praticar a sua arte, dando provas que justificam a esperança que neles se deve
depositar.102

O GEOC, à sua escala, poderia tornar-se num elemento de exploração


formal e comunicacional alternativo, no interior de um género lírico
cuja autonomia esteve quase sempre condicionada por opções políticas
e económicas. Em contraponto com o Trindade, dadas as distintas neces-
sidades dos modelos de produção, era possível uma diferente exploração
do reportório e o acentuar da manipulação de vertentes da comunicação
artística, normalmente subalternizadas ou fixadas por convenções.
O debate que envolvia a encenação das óperas possibilita destrinçar
algumas das posições no meio musical português. O encenador era uma
figura emergente no contexto operático moderno. A oportunidade de
um indivíduo apresentar um novo olhar sobre uma obra pré-definida,
transformando-a criativamente, redimensionou o ofício e recolocou-o
perante as outras dimensões, internas e externas, do espectáculo. Pro-
cesso ligado à autonomia da criação artística, a ideia de mise-en-scène,
teatral por natureza, atravessara, com as especificidades inerentes, um
conjunto de artes.103 A imagem do autor independente, rebuscada na
figura do poeta ou do pintor, contagiou outras artes, cuja natureza de
produção, e concomitante relação com o mercado, dificultava tal liberta-
ção. Na ópera, a autonomia da encenação lutava contra um predomínio
de outros elementos do espectáculo, historicamente condicionados a

102. Humberto D’Ávila, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 529.
103. No caso do cinema, por exemplo, é a ideia da mise-en-scène que suporta a teorização francesa dos anos 50 e 60, que tomou
o nome de política dos autores, suportada por publicações como os conhecidos Cahiers du Cinema.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

uma relação, em evolução, com o mercado. A predominância histórica


do elemento vocal como centro comunicativo com a audiência constran-
gia a liberdade criativa do encenador. A oposição do bel-canto à encenação,
sugeria, nos termos da discussão mantida no interior do campo, contra-
por superficialidade a profundidade, comércio a arte, sucesso imediato
a universalidade temporal. O respeito literal à obra original compro-
metia, por exemplo, a possibilidade de actualização histórica do enredo
ou a reconstrução das personagens na base de um trabalho aprofun-
dado de dramaturgia.
A modalidade de encenação que o teatro de Serra Formigal iria abra-
çar foi sintetizada por Tomás Alcaide, responsável por algumas ence-
nações no Trindade, em artigo na Arte Musical sobre a interpretação e
encenação das óperas de Verdi. Considerando que a função do encena-
dor é “importantíssima e, se não excede, pelo menos iguala a do maes-
tro director de orquestra”104, ideia suportada pela afirmação de Werner
Oehlman de que “a história da interpretação lírica, depois de 1920, é
a história da mise-en-scène”105, Alcaide demonstraria a sua fidelidade à
estrutura original das obras, em especial quando pertenciam a um re-
portório clássico. Não secundarizando o papel do encenador, Alcaide
avaliava a sua qualidade pela capacidade que demonstrasse em revivi-
ficar o trabalho dos criadores originais. Afastando-se da lógica particu-
lar da arte teatral, afirmou que “se no teatro tudo é ilusão, na ópera tudo
é convencional. (…) A encenação de uma ópera é muito mais formal
do que a de um drama, de uma comédia, ou mesmo de uma opereta que
consentem mais expressão pessoal da parte do encenador. Mesmo
quando se quer fugir à rotina e à má tradição, há limites que convém
respeitar.”106
As óperas de Verdi serviram para Alcaide estabelecer a ligação entre
o género lírico e as classes sociais menos abonadas, distantes das ex-
periências que a autonomia relativa do campo operático ia suscitando
num ambiente mais vanguardista. Sem negar a dimensão teatral do
espectáculo ou o papel do encenador, assumia-se que uma apresentação
de ópera popular teria que presidir a determinado tipo de convenção

104. Tomás Alcaide, “A Interpretação e Encenação das Óperas de Verdi”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 583.
105. Ibidem, p. 583.
106. Ibidem, p. 583.

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A Ópera do Trindade

teatral: “Interpretar é cantar a música tal e qual está escrita, mas de


modo pessoal, sugerido por um estado artificialmente criado pela
imaginação do cantor. O artista lírico em cena não é como um títere
actuando passivamente segundo a vontade dos autores.”107
A autonomização de um campo artístico é medida pela capacidade
de ser o próprio campo a ditar as regras que estabelecem os limites de
criação das obras.108 A liberdade do encenador cresceu, deste modo,
contra a dependência do género lírico das imposições exteriores ao cam-
po. As experiências musicais e teatrais que exploravam a manipulação
das formas e dos temas à luz da evolução de um código progressivamen-
te autónomo chocavam com a sensibilidade de um público mais vasto,
cuja socialização operática não penetrava nos movimentos mais vanguar-
distas. As propostas auto-referenciais geradas no interior do campo
chocam com uma espécie de código sócio-musical convencionado ou,
no caso da ópera, sócio-musical-teatral. Esta experiência física, que, no
interior do campo, é denominada por conceitos como o de estranhamento,
era tomada de forma menos cultivada pelo ouvinte comum. Mário Viei-
ra de Carvalho assinala a utilização deste mecanismo musical pelo com-
positor Fernando Lopes-Graça, no âmbito da sociedade de concertos para
a música contemporânea, Sonata, fundada pelo próprio, em 1942. A des-
crição com que Vieira de Carvalho caracteriza a tendência de utilização
formal do anticlímax, que Lopes-Graça, no encalço de Claude Debussy,
empregava nas suas obras, torna compreensível o modo como a autono-
mia dos campos artísticos foi afastando as obras de uma certa ordem
formal, desbaratando os seus anteriores sentidos, criando novas solu-
ções e significados e, simultaneamente, quebrando os laços que ligavam
os velhos códigos da arte a uma experiência social generalizada:

(…) o tempo era sustado, quando um acelerando parecia estar a alcançar o seu
objectivo; as estruturas rítmicas, descaracterizadas, quando se tornavam dema-
siado incisivas; crescendi, contidos ou subtilmente cortados por um pianissimo
quanto estavam prestes a explodir; elementos motívicos e temáticos, cindidos,
como se tivessem perdido a capacidade de se reencontrar; a marcha harmónica,
detida, quando a sua textura se torna cadencial; a sonoridade (mormente na

107. Ibidem, p. 581.


108. Uma das teses centrais defendidas por Pierre Bourdieu em As Regras da Arte, Lisboa, Presença, 1995. Ver nomeadamente
pp. 207-241.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

música para orquestra ou conjuntos instrumentais), turvada, “inacabada” em


pinceladas expostas, quando as superfícies começavam a tornar-se demasiado
definidas.109

A encenação moderna e autónoma, tanto na ópera como no teatro,


no bailado, ou no cinema, pretendia ter a liberdade de jogar de modo
similar com as formas. Um agrupamento de ópera de câmara, apoiado
por uma instituição como a Gulbenkian, concedia aos autores que nela
estavam integrados essa possibilidade formal, independente de variá-
veis políticas ou económicas. O projecto do Trindade, pelo contrário,
estava preso dentro dos limites da convenção formal. A tentativa de pra-
ticar um tipo de espectáculo devedor da evolução autónoma do campo
iria provocar, muito provavelmente, não um estranhamento, categoria
que faz parte do vocabulário do campo, mas uma rejeição natural por
desconhecimento do código. Este era o último efeito que o Teatro da
FNAT queria provocar no seu público. O Trindade conseguiu, por ou-
tro lado, utilizar a pequena escala sem prejuízo dos seus objectivos de
política social. A itinerância de conjuntos operáticos reduzidos, desta-
cados da companhia principal, participantes em serões musicais pela
província, provou a utilidade da pequena dimensão na divulgação da
ópera. O seu efeito em localidades cujos habitantes nunca tinham
tido oportunidade de assistir a um espectáculo de ópera foi significativo.
A presença de alguns artistas, embora em cenário modesto, foi sufi-
ciente para causar a impressão de que em Lisboa se exigia um pouco
de fausto, até porque o São Carlos estava mesmo ali em baixo.
O projecto do GEOC caiu poucos anos depois de se ter iniciado. A
direcção da Gulbenkian decidiu integrar o bailado na sua organização
interna, deixando de apoiar a ópera de câmara. Sem um enquadramen-
to institucional, a continuidade de uma iniciativa experimental como
o GEOC estava condenada.

109. Mário Vieira de Carvalho, op. cit., p. 186.

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A Ópera do Trindade

Os cantores do Trindade e a sua condição

O modelo de produção cultural avançado em 1963 pelo director do Trin-


dade comportava, como foi referido, riscos consideráveis. Se a maior
parte das actividades prometidas não atingia grandes custos, o que di-
minuía a responsabilidade de Serra Formigal perante hipotéticos maus
resultados, a criação de uma Companhia Portuguesa de Ópera resi-
dente exigia um esforço financeiro que dominava todo o investimento
orçamental. As condições materiais e humanas não ofereciam todas as
garantias de sucesso. Formigal acreditou, contra os mais cépticos, na pos-
sibilidade de criar uma companhia de ópera, maioritariamente nacional,
que se apresentasse a um público constituído por trabalhadores. A ta-
refa não foi simples.
Os primeiros anos caracterizaram-se por uma construção progressiva
das bases de consolidação da Companhia Portuguesa de Ópera. O direc-
tor do Trindade rodeou-se de pessoas com experiência no meio operático,
aproveitando todas as possibilidades que lhe foram concedidas pelo
São Carlos. A contratação de Tomás Alcaide para a direcção de uma es-
cola de canto completou mais uma etapa no enquadramento instituci-
onal da iniciativa. Subsistiam, porém, alguns problemas. A falta de
músicos dificultava a formação de uma orquestra. A Sinfónica de Lisboa,
dirigida por Fernando Cabral, foi uma segunda escolha. Só em 1964 foi
possível contar com a colaboração regular da Orquestra da Emissora Na-
cional. Os maestros Silva Pereira, Jaime Silva Filho e Ivo Cruz passaram
a constituir o núcleo forte de directores de orquestra do Trindade. Dada
a falta de oportunidades que os maestros portugueses tinham em tra-
balhar com regularidade, a direcção de orquestra nas óperas da FNAT
era apetecível.110 A encenação foi repartida, nos anos iniciais, pelo en-
cenador e antigo actor de teatro, Álvaro Benamor, e por Tomás Alcaide.
Nenhum deles tinha experiência directa na encenação de óperas.

110. O editorial da Arte Musical, de Agosto de 1959, referia-se, brevemente, à situação dos maestros em Portugal: “Dão-se, às ve-
zes, no nosso meio musical, fenómenos curiosos. Um dos últimos foi o surgimento de uma quantidade de maestros, transbordan-
do da escassez das orquestras sinfónicas portuguesas. De vez em quando, aparece na imprensa a informação de que um maestro
se diplomou numa escola importantíssima estrangeira, que é o único português detentor de certo título invejável, etc, etc. Para que
a coisa perca o aspecto de guerra dos nervos, sugerimos que se examine a papelada desses laureados dirigentes e que, em confor-
midade com ela, se estabeleça um sistema de galões, como na tropa. Doutor em música? Três galões. Diplomado num curso de
aperfeiçoamento? Dois galões. Regra obrigatória: dirigir fardado. Só receamos que, por tal critério, Arturo Toscanini não passasse
de furriel, sem viabilidades de promoção.” Arte Musical, n.o 5/6, Agosto de 1959, pp. 122-123.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

A qualidade dos cantores era um dos maiores problemas da Compa-


nhia. A voz era uma peça primordial do espectáculo lírico, pelo menos
para a sensibilidade daqueles a quem Serra Formigal chamara de “es-
pectadores médios de ópera”. Os cantores em Portugal não possuíam
créditos suficientes para tranquilizar o director do Trindade. A estrutura
de ensino musical, centrada no Conservatório, não formava cantores
em quantidade e qualidade. As escassas oportunidades no mercado
operático nacional não contribuíam para alterar a situação. O São Carlos,
teatro de ópera do circuito internacional, não se compadecia com pres-
tações amadoras. No entanto, apesar da condição profissional dos can-
tores, houve interpretações que demonstraram a qualidade de alguns
intérpretes nacionais. Tanto em papéis secundários, em óperas no São
Carlos, como no próprio coro da mesma instituição, ou ainda no traba-
lho efectuado pelo Grupo Experimental de Ópera de Câmara da Gulben-
kian, alguns cantores portugueses despontavam para uma boa carreira.
Em artigo publicado na Gazeta Musical, em 1960, João José Cocho-
fel apreciou umas das raras apresentações de um elenco nacional no
São Carlos, classificando-o como um “desempenho de grande homoge-
neidade e nível comparável ao de qualquer elenco estrangeiro de certa
categoria.”111 A apresentação de duas únicas récitas, “espécie de conces-
são anual aos artistas nacionais”, deu azo a que Cochofel insistisse na
criação de uma companhia nacional de ópera, o único modo de evitar
que os cantores portugueses não passassem de eternas “promissoras
esperanças”. O discurso de João José Cochofel, cujos eixos fundamen-
tais apresentam uma evidente recorrência histórica, não difere em
muito da retórica utilizada, três anos depois, no lançamento da ópera
da FNAT:

Alega-se que não haverá público bastante para a sustentar. Mas não é fechando o
TNSC a um pequeno círculo de frequentadores da ópera estrangeira que esse público
se formará. E uma companhia nacional teria como uma das suas principais missões
deslocar-se à Província e levar os espectáculos de ópera às cidades e vilas que nunca
ou raramente os têm. Mas haverá realmente vontade de criar uma companhia nacio-
nal de ópera por parte das entidades a quem cabe resolver o problema?112

111. João José Cochofel, Gazeta Musical, n.o 108, Março de 1960, p. 39.
112. O Tempo e o Modo, n.o 3, Maio de 1963, p. 48.

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A Ópera do Trindade

O modelo do Trindade não seria o preconizado por Cochofel; no en-


tanto, no que diz respeito a algumas exigências genéricas, adequava-se
quase na totalidade.
A formação dos cantores portugueses, tanto no respeitante à educa-
ção escolar como em relação à experiência cénica, não lhes garantia uma
prática adequada para o desempenho de determinados papéis. Como re-
feriu João de Freitas Branco, pouco antes do começo da temporada do
Trindade, a máxima concessão feita ao cantor português era, “excepcio-
nalmente, o desempenho de personagens centrais de óperas cómicas,
tipo Barbeiro de Sevilha ou o Elixir do Amor.”113 A prática que afastava o
intérprete português dos papéis principais, dos reportórios considera-
dos mais sérios, das óperas cantadas noutras línguas que não o italiano,
concorria para uma formação musical e dramática incompleta, centra-
da que estava em modelos líricos restritos e muitas vezes secundários.
Os resultados do trabalho inicial de Tomás Alcaide no Centro de Pre-
paração e Aperfeiçoamento de Cantores Líricos, que dirigiu nas instala-
ções do Trindade, foram comunicados ao director do Trindade através
de actas, cuja elaboração estava prevista no contrato assinado por am-
bos. O conteúdo das actas revela o empenho e dedicação de Tomás Al-
caide à Companhia Portuguesa de Ópera. Serra Formigal encontrou no
mais famoso cantor português de todos os tempos, visita frequente dos
palcos líricos mais consagrados do mundo, uma dedicação absoluta à
causa de um pequeno teatro de ópera lisboeta, cheio de debilidades. As in-
formações de Alcaide acerca da evolução da preparação dos cantores
possibilitam a compreensão de alguns dos frágeis alicerces que carac-
terizavam a companhia.
Tomás Alcaide escreveu a Serra Formigal pouco tempo antes do iní-
cio da primeira temporada. O professor de canto queixava-se da escas-
sez de tempo para os ensaios da opereta A Canção do Amor, e da falta
de empenho demonstrada por parte dos cantores. Avisava ainda que,
sem treino intenso, os resultados poderiam não ser os melhores:

Eu sei que o tempo urge para todos, mas também sei a razão por que insisto. Tenho
algumas dezenas de anos de prática de teatro e já estou perfeitamente esclarecido

113. Idem, p. 39.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

sobre as possibilidades, ou antes, impossibilidades e deficiências dos meus “artis-


tas” do Teatro da Trindade. Se não ensaiarem, e muito, não darão conta do recado e
seria o desastre.114

Alcaide preveniu Formigal do grande “obstáculo a vencer”, adian-


tando que os ensaios, “mesmo que se tratasse de competentíssimos
profissionais, seriam indispensáveis, quanto mais com amadores que,
a despeito da boa vontade e diligência, têm as suas limitações, ineren-
tes, afinal, à sua própria condição.”115 O famoso cantor português esta-
va consciente do tipo de “matéria-prima” com que lidava, partilhando
com Serra Formigal a noção das condições específicas que moldaram
essa “matéria-prima”. Os artistas portugueses não podiam subsistir
apenas com o seu trabalho nos palcos. A condição de amadores, para
quem a ópera implicava um esforço suplementar, moldava as suas pos-
sibilidades. Os ensaios da opereta continuavam a preocupar Tomás
Alcaide, especialmente na parte teatral:

Os únicos papéis com responsabilidade vocal são os de Schubert, Barão Franz,


Anete e Carlina. Todos os outros “cantarolam” mais ou menos, quase sempre em
conjunto, sem grandes exigências vocais… Em contrapartida, o que
verdadeiramente importa é que se mexam bem em cena e “digam” como deve ser
dita a parte recitada. Eu estou pronto a dar todo o meu esforço para demonstrar
que a palavra “impossível” é desconhecida do Teatro da Trindade, mas para isso
preciso de mais horas diárias para ensaiar toda esta gente. Acontece, porém, que,
tratando-se de amadores, têm outros empregos e apenas podem ensaiar das 18 às
20 horas, e, mesmo assim, nem todos os dias.116

Na informação expedida em Novembro de 1963117, Alcaide continuou


a queixar-se da falta de assiduidade dos seus alunos: o professor de
canto afirmou que são gente que “dá a impressão de não saber o que
quer”. A análise individualizada de Tomás Alcaide acerca dos cantores
apontou as razões aludidas para a falta de pontualidade: um “anda a fa-
zer pela vida”, o outro tem pouco tempo livre porque o tem de dedicar
“à Ordem dos Engenheiros, onde trabalha”, outros dois, “bastante assí-

114. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 24/4/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1.
115. Ibidem, p. 1.
116. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 8/5/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1.
117. Informação de Tomás Alcaide ao director do Teatro da Trindade, 8/11/1963, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 1.

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A Ópera do Trindade

duos e voluntariosos, desde que trabalham na revista vêm muito me-


nos às lições”, os coristas “volatizaram-se todos”. Os resultados destes
maus hábitos, a que muitos não podiam fugir, evidenciavam-se sobre-
tudo nos cantores mais velhos:

Há ainda o facto… da idade dos cantores, que oscila entre os 28 e os 40 anos, o que é de-
masiado elevada, tendo ainda em consideração que todos eles gastaram muitos anos
cantando de qualquer jeito, sem escola, ou, pior ainda, com péssima escola, saltando de
um para outro “professor”, num desorientando vocal que lhes danificou o órgão fonador
e lhes criou vícios difíceis e morosos de eliminar. E é com este material humano que V.
Excia e eu temos apresentado as óperas ao público, até agora, colhendo o que se nos de-
parou à mão de semear, mas quanto tempo de vida vocal terão eles à sua frente?118

A análise serviu para Alcaide afirmar a urgência do recrutamento de


jovens valores que poderiam ser aliciados pela rádio, televisão e impren-
sa. Esta atitude não seria, porém, suficiente: “Lembro também a conve-
niência de iniciar um curso, género colóquio, colectivo de interpretação
lírica, representação, maquilhagem, versando todos os diversos proble-
mas da vida profissional do cantor, incluindo higiene vocal, orientação
profissional…”119
O director do Trindade sabia que não era uma iniciativa esporádica,
como a realização de alguns espectáculos de ópera por temporada, que
alteraria, por si só, o nível artístico dos cantores portugueses. O esforço
exigido a pessoas que, na sua maior parte, repartiam a sua carreira com
outras profissões, não era suficiente para garantir em continuidade
sustentada uma Companhia Portuguesa de Ópera. Alcaide, por várias
vezes, notou uma quase inevitável falta de profissionalismo. A existência
da escola de canto foi apenas um primeiro passo para a criação de con-
dições que proporcionassem uma institucionalização da companhia
alicerçada na necessária profissionalização dos artistas portugueses.
Os contratos efectuados entre os artistas que participaram na primeira
temporada de ópera e o Teatro da Trindade estabeleciam um pagamen-
to por récita, consoante a importância do respectivo papel. O contrato era
simples, exigindo apenas a assiduidade aos ensaios. Não havia ainda

118. Ibidem, p. 1.
119. Ibidem, p. 1.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: Os Fundamentos

grandes diferenças individuais em relação aos pagamentos. O elemen-


to mais forte de hierarquização era a importância do papel. Entre pa-
péis de topo não se notavam grandes desequilíbrios. Os contratos
valiam por um ano. Para os cantores prevalecia uma forte inseguran-
ça quanto ao futuro.

>>>>>>>>>>>

A profissionalização dos cantores da Companhia Portuguesa de Ópe-


ra era apenas um dos objectivos a médio prazo. Serra Formigal preten-
dia, com o tempo, libertar o seu projecto dos condicionalismos que o
oprimiam. A construção de uma Companhia Portuguesa de Ópera era
um projecto cuja independência teria que ser ganha paulatinamente,
com pequenas e progressivas conquistas sobre os diversos obstáculos
e constrangimentos; um jogo de equilíbrios políticos e artísticos que
exigia uma sensibilidade apurada e uma certa capacidade de mobilidade
no interior de universos que, sendo diferentes, partilhavam laços es-
truturais. O director do Trindade teria que provar anualmente, peran-
te a FNAT, a eficácia dos seus espectáculos em benefício do complexo
exercício de “desproletarização”. A legitimidade da sua proposta cultu-
ral tinha ainda que conquistar espaço a outras instituições do regime,
nomeadamente ao SNI. Teria que encontrar um equilíbrio entre as exi-
gências políticas e as expectativas artísticas inerentes aos seus espectá-
culos de ópera. Ao contrário da actividade teatral no Trindade, as óperas
apresentadas resguardavam os promotores institucionais de quaisquer
apropriações “perigosas”. No entanto, as restrições formais (em grande
parte elucidadas através da comparação com o GEOC) inerentes aos
seus objectivos sociais e as limitações de dependências materiais e hu-
manas da companhia colocavam sérios problemas a um projecto que
queria conquistar um lugar de destaque no panorama operático nacio-
nal. A análise dos anos de actividade da Ópera do Trindade, sistematiza-
dos na parte seguinte deste livro, recupera as vicissitudes que envolveram
a construção de um projecto cultural e as suas progressivas etapas até
à extinção, em 1975.

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Elsa Saque e Hugo Casais, O Segredo de Susana, de Wolf Ferrari, 1968.

132
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111.
A Companhia Portuguesa
de Ópera: As Temporadas

1.
A primeira temporada de espectáculos, apesar das carências estruturais
e humanas, foi um sucesso. O público encheu quase todas as récitas,
entusiasmando-se com o que via e ouvia. A imprensa acompanhou,
na generalidade, este entusiasmo, salientando, mais do que os espec-
táculos em si, descritos muito sucintamente, a nobreza da iniciativa e
a sua importância social e artística. Todas as insuficiências foram se-
cundarizadas e compreendidas porque, como afirmou o compositor
Joly Braga Santos, na sua crónica no Diário da Manhã: “Acaba de se
abrir uma nova página na vida artística e social portuguesa, página de
profundo significado, principalmente pelas repercussões que pode ter
no futuro, no duplo aspecto dos artistas e do público.”1
A segunda ópera apresentada nesta primeira época foi A Serrana. O
sucesso foi idêntico. Formigal parecia ter vencido a polémica que tra-
vara com Ruy Coelho; mais ainda porque Joly Braga Santos fez ques-
tão de salientar a justeza da opção:

Trata-se de uma ópera nacional de importante valor histórico. A Serrana, datada de


1899, é, em geral, apontada como a obra que iniciou o movimento nacionalista na
música teatral portuguesa. A sua inclusão na presente temporada, para representar a
ópera do nosso país, constitui uma acertada escolha, pois que a A Serrana, apesar
das imperfeições técnicas, continua a poder ser considerada uma obra representativa
da música teatral portuguesa, dadas as reais virtudes que encerra, como uma autên-
tica veia lírica, um bom “libretto” e uma meia-dúzia de ideias musicais genuínas.2

1. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 20/5/1963, p. 4.


2. Idem.

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A Ópera do Trindade

Francine Benoit3, habitual articulista do Diário de Lisboa, considerou, a


propósito da mesma A Serrana, o empreendimento do Trindade algo “he-
sitante”4, mas referiu, como o fez também João de Freitas Branco nas pá-
ginas d’O Século5, que o futuro seria de aperfeiçoamento, sendo essencial
deixar o tempo actuar. Não havia dúvida de que a Companhia Portuguesa
de Ópera do Trindade ganhara um património de aceitação que lhe permi-
tia alguns passos em falso. A direcção da FNAT, por seu lado, tinha moti-
vos para se sentir satisfeita; a generalidade da imprensa, através da opinião
de pessoas situadas em diferentes quadrantes políticos e afectações musi-
cais, registava o calor de um público que enchia “festivamente o teatro”6.
Num panorama global de felicitações, as implicações formais suscita-
das pela necessidade básica do espectáculo da FNAT agradar ao público
não passaram despercebidas à crítica especializada. Joly Braga Santos
censurou um cantor, no Barbeiro de Sevilha, por apresentar “os acentos
caricaturais demasiado fortes, a puxar ao fácil, naturalmente na tentativa
de mais fácil acesso ao público”7, enquanto Francine Benoit, a propó-
sito da opereta A Canção do Amor, considerou que o espectáculo se asse-
melhou a uma “comédia musical”8. O tom desta crítica era ainda ligeiro,
mas os indícios faziam prever que a insistência na orientação músico-
-teatral chocaria em breve com ethos artísticos mais exigentes, regulares
seguidores das transformações vanguardistas que invadiam os grandes
palcos da Europa. A insistência na ópera cómica, por exemplo, reunirá
algumas antipatias. A imediata ligação que estas óperas estabeleciam
com o público, intercalando em harmonia perfeita com os dramas mais
intensos, constituía uma opção de grande eficácia comunicativa.9
A representação da La Bohème, de Puccini, bastante aclamada, fazia
pensar que o futuro da companhia, desde que bem trabalhado, po-
deria ser risonho. João de Freitas Branco, resumindo o ano de espec-

3. Compositora, professora na Academia de Amadores de Música e crítica musical. Figura próxima de Fernando Lopes-Graça e
da oposição ao regime.
4. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 17/5/1963, p. 3.
5. João de Freitas Branco, O Século, 16/5/1963, p. 9.
6. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 17/5/1963, p. 3.
7. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 13/5/1963, p. 4.
8. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 30/7/1963, p. 3.
9. Em 1970, Gino Saviotti, colaborador do Trindade, escreverá na revista Ópera as seguintes palavras sobre os fundamentos do
contexto da ópera cómica, um género de produção que exigia que “ as paixões fossem sinceras, não convencionais, as persona-
gens tiradas mais ou menos da vida de todos, a nossa existência quotidiana reverberada com caricatura, sim, mas no fundo com
cordialidade humana, por baixo também da cintilante alegria.” Ópera, n.o 5, Março de 1970, pp. 3-4.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

táculos nas páginas da Arte Musical, elogiou o grupo da FNAT, consi-


derando “que nenhuma novidade se acrescentou ao meio musical
lisboeta, que pudesse equiparar-se, em importância, à temporada de
ópera no Teatro da Trindade.”10 Advertia, porém, “que toda a moeda
tem duas faces e, neste caso, o reverso dos incontestáveis êxitos está no
perigo de deslumbramento.” O futuro da companhia dependeria de
uma “maior exigência de habilitações musicais àqueles cantores que
ainda as não têm suficientes”, da capacidade de “manter a orientação
das muitas récitas da mesma ópera, para um público relativamente
reduzido de cada vez” e de um “especial cuidado com o repertório por-
tuguês”11.

2.
A ópera A Vingança da Cigana, de Leal Moreira (1758-1819), foi a re-
presentante do teatro lírico nacional na temporada de 1964. Mais uma
vez, Serra Formigal evitava os autores portugueses contemporâneos.
O maestro José Atalaya, que se revelará um apoiante fiel da iniciativa
da FNAT, subscreveu no Diário da Manhã a escolha, apesar de consi-
derar o estilo rossiniano, imposto pelo maestro Jaime Silva Filho, pouco
apropriado para uma ópera que, segundo ele, se aproxima de Mozart.
A redescoberta da ópera de Leal Moreira foi, para Atalaya, o aconteci-
mento que marcou o espectáculo, o que lhe sugeriu um comentário
em defesa “dos mais famosos operistas portugueses do passado” de
quem se vinha tentando “ ‘apagar’ o rasto” e que “de resto, fizeram mais
prolongada carreira internacional do que qualquer dos nossos respeitá-
veis contemporâneos: Ruy Coelho, Joly Braga Santos, Frederico de Freitas
e outros.”12 Álvaro Benamor, prestigiado encenador teatral, estreou-se
na encenação lírica.
Os espectáculos de A Vingança da Cigana foram repartidos pelo tra-
balho de dois maestros, o já referido Jaime Silva Filho e o maestro Silva
Pereira. A opção da direcção do Trindade levantou acesa polémica com

10. João de Freitas Branco, Arte Musical, n.o 20, 21 e 22, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 527.
11. Ibidem, p. 527.
12. José Atalaya, Diário da Manhã, 17/7/1964, p. 4.

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A Ópera do Trindade

Filipe de Sousa, o maestro que revira a obra, e que possuía os seus di-
reitos de representação.13 Em contrapartida da cedência dos direitos
de A Vingança da Cigana, Serra Formigal prometera a Filipe de Sousa
a direcção da Orquestra da Emissora Nacional num dos concertos sinfó-
nicos da temporada do Trindade, dado que, na altura, por compromis-
sos já estabelecidos, era impossível conceder-lhe a direcção da referida
ópera. Sucedeu que, quando o programa de concertos de 1965 foi pu-
blicado, Filipe de Sousa não foi nomeado para a direcção de nenhum
dos concertos previstos. O maestro escreveu então duas cartas. A primei-
ra, para Formigal, relatando todo o episódio e pedindo explicações.14
A segunda, dirigida ao ministro das Corporações que, por sua vez, a re-
meteu ao director do Trindade.15 Filipe de Sousa juntou à carta um do-
cumento do Sindicato Nacional dos Músicos onde estavam arrolados os
nomes de todos os directores de orquestra portugueses separados por
um critério: a posse de credenciais do Conservatório. Filipe Sousa pro-
curava demonstrar ao ministro que uma importante iniciativa estatal no
campo da música não estava a servir os maestros que melhores com-
petências possuíam. Na lista dos maestros sem credenciais, encontra-
vam-se os colaboradores do Trindade: Silva Pereira, Frederico de Freitas,
Fernando Cabral e Ivo Cruz.16 No grupo dos maestros credenciados17
encontrava-se, sublinhado a preto, o nome de Filipe de Sousa. A esco-
lha dos maestros para este novo espaço de oportunidades profissionais
estava determinada por uma síntese entre opções políticas e opções
musicais, mediada por agentes como Serra Formigal, que tinham de ge-
rir as diversas sensibilidades em jogo com vista à prossecução de objec-
tivos específicos. A selecção dos directores de orquestra não poderia

13. Filipe de Sousa fora o fundador do Grupo Experimental de Ópera de Câmara, da Juventude Musical Portuguesa e do Centro
Português de Bailado, tinha sido professor do Conservatório, era júri dos concursos de composição do SNI e dos exames do Es-
tado para professores de Canto Coral, e exercia o cargo de presidente da assembleia geral do Sindicato dos Músicos. Informações
anexadas pelo próprio Filipe de Sousa à carta que enviou, em 19/7/1965, ao ministro das Corporações e Previdência Social, Arqui-
vo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
14. Carta de Filipe de Sousa ao director do Teatro da Trindade, 18/7/1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
15. Carta de Filipe de Sousa ao ministro das Corporações e Previdência Social, 19/7/1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta
1965.
16. Deste mesmo grupo faziam parte nomes como Ruy Coelho, Mário Sampayo Ribeiro, Lourenço Alves Ribeiro, Leonel da Silva
Rodrigues, António Lopes, José Alves Ribeiro, José da Cruz Braz, Armando Fernandes, António Francisco Marques, Wenceslau
Pinto, Pedro Lamy Costa Reis, Manuel João Alves, Franscisco Pereira de Sousa, Gustavo Augusto Coelho, Berta Cândida Alves de
Sousa, José Luciano da Graça, Armando de Mendonça Escoto e Jaime Mestres Perez. Ibidem.
17. Do grupo de maestros com documentos do Conservatório encontravam-se Francine Benoit, Joly Braga Santos, Jorge Peixinho,
Silva Dionísio, Artur Alves dos Santos Correia de Sousa, José Maria Antunes, Domingos Fernandes Ganhão, Ilidio Gomes de Sou-
sa Cyrilo, Ruy Onofre Barral, Jorge Bettencourt, Natércia de Almeida Couto, Elvira Santos, José dos Santos Pinto e César Augusto Ri-
beiro de Morais. Ibidem.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

ser determinada, como Filipe de Sousa pretendia, por uma simples ra-
cionalidade meritocrática.
A Vingança da Cigana foi a última ópera em cartaz na temporada de
1964. Pelo Trindade tinham já passado o Rigoletto, O Amigo Fritz, La Tra-
viata e La Bohéme. Todas constituíram um enorme êxito de público.
Justificava-se a opção de Serra Formigal pelas óperas italianas do perío-
do romântico. O reportório era eficaz e o público aderia aos clássicos,
tocado, como no caso da Traviata, “com a essência romântica da sua mú-
sica, com as suas melodias famosas, com todo aquele caudal, ora sereno
ora apaixonado, ora lírico ou trágico, com que se desempenha musical e
dramaticamente a vida amorosa e a morte da pobre Violeta Valery.”18
Esta ópera de Verdi, precursora do verismo, tratava pela primeira vez
um drama doméstico, apelando a um certo sentimentalismo da comu-
nicação músico-dramática. O público da FNAT acolheu com entusiasmo
as grandes obras do património verista italiano, identificando-se com
os seus temas sentimentais coloridos por atractivas melodias.19
A vertente popular da ópera foi ainda acentuada com encenações e
representações que estabeleciam um fio condutor, mesmo se ténue,
com a forma e disposição de outros patrimónios artísticos. Francine
Benoit referiu que, na Traviata, um cantor “até se apresentou com ares
de compadre de revista no primeiro acto; e ainda bem que se redimiu
no quarto”20, assinalando, a propósito de La Bohème: “A vivacidade e o
capricho desenvolvidos na encenação do ano passado recrudesceram
este ano, o que, em si, seria muito acertado se não roçasse, como estilo,
por momentos, o teatro ligeiro.”21
As críticas residuais não ofuscavam a continuação do êxito. Reforçava-
-se na opinião pública e na imprensa a importância da iniciativa para
a criação de um novo público de ópera e para a sustentação progressiva
de uma companhia portuguesa em que os artistas nacionais tivessem
condições para desenvolver o seu trabalho.

18. N, Diário de Notícias, 7/6/1964, p. 5.


19. Lopes Graça e Tomás Borba classificam verismo da seguinte forma: “Designação aplicada à estética realista da ópera italiana
de fins de Oitocentos e princípio de Novecentos, de que foram principais cultores Puccini, Leoncavallo, Mascagni e Umberto
Giordano. O verismo era, no fundo, um falso realismo, pois que pintava de preferência e unilateralmente os aspectos brutais da
vida, mais lhe cabendo propriamente a designação de sensacionismo.” Fernando Lopes-Graça e Tomás Borba, Dicionário de Mú-
sica: ilustrado, Cosmos, Lisboa, 1955, p. 681.
20. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 14/6/1964, p. 10.
21. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 6/7/1964, p. 10.

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A Ópera do Trindade

3.
Muitos dos termos utilizados para caracterizar o Trindade eram devedo-
res das posições teóricas e estéticas de quem classificava e, sobretudo,
do lugar que ocupava no campo musical português. As tomadas de po-
sição artísticas estavam relacionadas com a história recente da ópera,
as suas transformações, a evolução dos seus ideais de convenção e
vanguarda. Em Julho de 1964, a revista Arte Musical publicou alguns
artigos dedicados às figuras de Verdi e de Wagner. O texto de Tomás
Alcaide sobre as encenações das óperas de Verdi suscitou, em capítu-
lo anterior, a comparação da concepção artística do Trindade com a do
GEOC. A publicação em simultâneo destes textos partia de uma clara
lógica de oposição entre os dois compositores. Embora os redactores
evitassem formular uma explicitação clara dos critérios subjacentes a
esta oposição, contrapunha-se, pelo valor e significado que à época os dois
compositores tinham no campo operático, a convenção à vanguarda.
A discussão é esclarecedora quanto a alguns eixos que traçavam os
limites das posições no interior do campo musical, permitindo situar
melhor a concepção preconizada para o Trindade. Sobre Verdi escreve-
ram, entre outros, Tomás Alcaide e José Blanc de Portugal. Os dois auto-
res, incondicionais adeptos da filosofia do Trindade, tiveram o cuidado
de evitar o anátema da convenção. No seu discurso, porém, existia uma
clara relação entre a tradição verdiana e a ópera popular. Para o cantor,
Verdi, “herdeiro da grande tradição do bel canto italiano, exige dos seus
intérpretes vozes sãs, belas, e de óptima escola”22. Neste aspecto, não
se confundia com Wagner: “(…) em Wagner as vozes são apenas uma
parte do todo orquestral, tratadas no mesmo plano dos outros instru-
mentos, ao passo que em Verdi é a voz do cantor que conduz a melodia
fundida com a palavra no modo mais expressivo.”23 Na encenação das
óperas de Verdi, “pouco há a dizer além de generalidades.”24 Para Alcai-
de, a função de um teatro de ópera tocado pelo espírito de Verdi era “cum-
prir a sua nobre missão cultural e educadora, contribuindo com afã para
a elevação do nível artístico do espectáculo, incrementando assim o

22. Tomás Alcaide, “A Interpretação e Encenação das Óperas de Verdi”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 580.
23. Ibidem, p. 580.
24. Ibidem, p. 582.

138
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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

gosto pela ópera.” Sem se referir ao Trindade, Alcaide tinha os olhos


postos na iniciativa da FNAT quando afirmou que a ópera perdera “a
sua feição de luxuosa festa mundana, apenas acessível a um reduzido
círculo de magnates de alta roda. Despiu a casaca, democratizou-se”,
realçando com cautela que “hoje, mais do que nunca, é uma institui-
ção social, embora num sentido não político.”25
Blanc de Portugal, por seu turno, afirmou que em “Verdi não há qual-
quer directriz estético-filosófica estruturada como disciplina formadora.
A evolução da sua obra teatral aparece-nos, aparentemente, como mui-
to mais espontânea e à mercê da inspiração do momento”26. Em oposi-
ção a Verdi, “Wagner tentou racionalizar a música.”27 A demonstração
“da genialidade viva de Verdi” tinha sido, havia pouco tempo, compro-
vada num concerto no Teatro da Trindade.28
Os textos sobre Wagner, da autoria do compositor Jorge Peixinho, do
poeta José Carlos Ary dos Santos e de João de Freitas Branco enfatizaram
a componente racional do compositor. Peixinho afirmou que Wagner,
com excepção de Mahler e Debussy, tinha sido “o único compositor do
século xix que colocou o problema da grande forma ou forma global em
termos dialecticamente novos.”29 Foi origem de um movimento “que
irá ruir os últimos alicerces tonais e desembocar na ruptura da tonali-
dade.”30 Ary dos Santos, que tratou da influência de Wagner no teatro,
considerou que o compositor foi um dos antepassados do teatro moder-
no na esteira da afirmação de Hebbel, em 1843, de que “o ‘teatro novo’,
se vier a acontecer, afastar-se-á totalmente do padrão shakespeareano
que será definitivamente posto de parte para dar lugar a uma Arte onde
a dialéctica transcenda o simples diálogo de personagens, integrando-se
directamente no próprio contexto, de forma a que não se debata somen-
te a relação do Homem com a Ideia, mas também a validade da ideia
em si.”31
João de Freitas Branco sintetizou a importância da figura de Wagner
no epíteto de “artista-intelectual”. A arte exprimia uma série de con-

25. Idem.
26. José Blanc de Portugal, “Apontamentos para um ‘Verdi Vivo’ ”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 572.
27. Ibidem, p. 567.
28. Ibidem, p. 575.
29. Jorge Peixinho. “O Clímax”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 549.
30. Ibidem, p. 550.
31. José Carlos Ary dos Santos, “Wagner e o Teatro”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e Maio de 1964, p. 556.

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A Ópera do Trindade

quistas civilizacionais. Wagner tornou-se, no interior do campo musi-


cal, teatral e músico-teatral, a figura que assegurou ao artista a liberdade
de ser e parecer culto:

(…) pode falar uma linguagem de homem instruído, provar que leu e compreendeu
grandes literatos, demonstrar que raciocinou e construiu uma vontade própria, indi-
vidual; pode discordar; pode mesmo escrever para publicação em letra de forma, e
tudo isso na crescente certeza de interessar um círculo de cidadãos suficientemente
vasto e garante para substituir, de facto, o apoio de outra gente de maior linhagem
(…) Deu-se uma elevação mental do músico.32

João de Freitas Branco, sem considerar o adjectivo na sua acepção es-


tritamente positivista, considerou Wagner como um cientista: um cien-
tista do belo. Para a tradição wagneriana, o respeito pelo texto, componente
essencial do drama, não podia ser violentado por construções operáticas
que davam primazia a outro tipo de princípios de criação, nomeadamen-
te a voz. O facto de a ópera ser, também, um objecto legível, compreen-
dendo-se a sua dramaturgia, choca com uma comunicação artística que
submete esta semântica ao domínio de outras formas.
O Teatro da Trindade não era um espaço para o artista intelectual, para o
cientista, para o experimentador. O Trindade tentaria ser um teatro de ópe-
ra na senda espiritual verdiana: popular, intuitivo, emotivo, festivo. Longe,
porém, dos objectivos humanos grandiosos e das experiências formais
inovadoras que os textos da Arte Musical atribuíam à herança wagneriana.
As divisões teóricas e formais consagradas pelo desenvolvimento do cam-
po do teatro lírico garantiam um determinado significado aos espectáculos
do Trindade, o que implicava um posicionamento simbólico, mas com
consequências reais, no interior de um universo de significados.
Para os integrados numa elite cosmopolita que acompanhava com
particular agrado as novidades do espectáculo lírico internacional, o
projecto da FNAT era conservador: o reportório demasiado fácil e evi-
dente, a matriz da encenação – dimensão do espectáculo pela qual
passava grande parte das inovações operáticas – absolutamente con-
vencional. João de Freitas Branco representava, no meio da música eru-

32. João de Freitas Branco, “Significados Actuais de Wagner na Música e no Teatro”, Arte Musical, Julho/Novembro de 1963 e
Maio de 1964, p. 558.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

dita nacional, essa vanguarda, embora o seu papel de divulgador mu-


sical – com conhecida experiência televisiva – o tornasse numa figura
popular. A sua posição modernista, na senda, aliás, de uma tradição fa-
miliar cuja continuidade se assegurava com figuras como o crítico e
compositor João Paes e o crítico Sidónio Pais, não o impediu de apoiar,
sem ceder a um populismo fácil, o projecto de Serra Formigal, inicia-
tiva pouco importante para a ópera reconhecida como “arte total”, mas
fundamental pelas funções que desempenhava a outros níveis, no uni-
verso do teatro lírico português.

4.
Os espectáculos do Trindade seguiam-se à temporada do Teatro Nacio-
nal de São Carlos. João Paes, crítico da revista O Tempo e o Modo, mos-
trou-se desagradado pelo modo como decorreu a temporada de 1965
no Teatro Nacional de Ópera, onde, em questões de reportório, “a ro-
tina faz lei”33. Considerou ainda que entre a rotina aceitável, Strauss,
Wagner, Verdi, Vincenzo Bellini, Gaetano Donizetti e Puccini, e a inacei-
tável, Ruy Coelho, “o assinante-médio-normal das temporadas de ópe-
ra no São Carlos saiu desta feita regalado” porque “reage simpática e
quase exclusivamente ao elemento vocal”34. A “avalanche de bel canto”,
segundo este crítico, não possibilitava a atenção que a encenação mere-
cia: “Função cuja importância a direcção do Teatro de São Carlos parece
ainda não ter avaliado. (…) Função importantíssima para a conquista
de um público jovem que não está na disposição de tomar a sério um
espectáculo de síntese com uma das componentes fundamentais visi-
velmente escamoteadas.”35
No Trindade, a ópera italiana reinava. Serra Formigal, procurando dar
brilho ao início da temporada de 1965, contratou, para representar o
principal papel na Tosca, de Puccini, a cantora Simona Dall’Argine. A par-
ticipação da cantora italiana surgiu como forma de incentivar os inter-
câmbios artísticos com outros teatros. Em informação expedida em

33. João Paes, “Recordação da Casa dos Divos”, O Tempo e o Modo, Julho de 1965, p. 549.
34. Ibidem, p. 549.
35. Ibidem, p. 50.

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A Ópera do Trindade

Agosto de 196436, já Serra Formigal considerara as vantagens de tais


intercâmbios. A assinalada carência na Companhia de alguns registos
vocais, especialmente as de soprano lírico spinto 37 e soprano dramático,
inviabilizavam a realização de algumas óperas, caso da Tosca e do Trova-
dor. O desenvolvimento destes intercâmbios encontrava em Espanha,
pelas boas relações políticas entre a FNAT e a sua congénere espanhola,
e em Itália, pelo especial interesse dos cantores portugueses irem cantar
à “pátria da ópera”38, os países ideais para fomentar relações artísticas.
Formigal referiu ainda que, apesar de alguns cantores portugueses de-
monstrarem, nas suas actuações passadas e presentes, um alto nível
artístico, os intercâmbios teriam de ser feitos com teatros que não per-
tencessem ao grupo dos mais importantes. Propôs que, no mês de Setem-
bro, a FNAT concedesse, a si próprio e ao cantor Hugo Casais – cuja
experiência profissional em Itália se traduzia num bom cartão de vi-
sita – uma viagem àqueles dois países. A deslocação seria feita no carro
de Formigal para ser mais barato. Na passagem por Milão, a soprano
Dall’Argine foi contratada para protagonizar a Tosca, recebendo um
cachet de cinco mil escudos por récita.39 Os cantores portugueses que
representavam papéis principais auferiam, na altura, dois mil escudos
por récita.40 No mesmo ano, o Trindade celebrou um contrato com o
famoso cantor italiano Gino Bechi.41 O acordo previa que Bechi ence-
nasse três óperas – uma delas, Falstaff, de Antonio Salieri, protagoniza-
da pelo próprio, que não se chegou a realizar – e prestasse os seus
serviços como regente da escola de canto do Teatro. Por sete meses Bechi
receberia 130 mil escudos.
Joly Braga Santos não ficou muito convencido com a prestação de Dall’
Argine: “boa voz, mas movimentação convencional”.42 As frequentes
imperfeições dos espectáculos revelavam-se incapazes de abalar o sim-
bolismo que representava o início de mais uma temporada de ópera no
Trindade, ocasião ideal para relembrar a nobreza do empreendimento.

36. Informação de Serra Formigal sobre o intercâmbio de cantores, 1/8/1964, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
37. Ibidem.
38. Ibidem.
39. Contrato entre Serra Formigal e Simonna Dall’Argine, celebrado a 9/4/1965. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
40. Cachets dos artistas – Temporada de ópera de 1965, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
41. Contrato entre Gino Bechi e o Teatro da Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1965.
42. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 13/5/1965, p. 4.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

João de Freitas Branco considerava a “estreia auspiciosa, a prometer


uma temporada à altura dos próprios fins em vista”43. À Tosca seguiu-
se La Traviata. Francine Benoit gostou da récita, embora as atitudes do
público, a espaços, a incomodassem: “Alguns espectadores precisam
de convencer-se de que o silêncio é uma necessidade imperativa mes-
mo antes de abrir a cortina do palco, para não prejudicar da maneira
mais enervante os que não querem perder o princípio do admirável
‘prelúdio’ da ópera.”44 As figuras femininas continuavam a reinar no
Trindade, sob a batuta dos mestres italianos. Madame Butterfly, “a tra-
gédia amorosa da ingénua e sensível japonezinha”45, constituiu um as-
sinalável sucesso. Álvaro Benamor destacou-se na encenação de O Elixir
do Amor. João de Freitas Branco assinalou este sucesso, argumentando
que Benamor “deu movimento às figuras individuais e colectivas, sem
jamais cair naqueles excessos hoje praticados por alguns registas de
ópera, cujo efeito é contraproducente numa peça tão convencional por
sua própria natureza como O Elixir do Amor”46. Um dos propósitos de
Serra Formigal ao contratar encenadores como Benamor, Alcaide ou
Bechi foi conferir aos seus espectáculos uma relevância teatral, num
contexto em que as vozes não tinham estatuto suficiente para sustentar,
por si só, os espectáculos.47 Sem arriscar quaisquer aventuras moder-
nistas, os encenadores iam cumprindo a sua função.
O quinto espectáculo da época tinha em cartaz duas óperas: Cavalleria
Rusticana, de Pietro Mascagni, e Palhaços, de Nicolo Leoncavallo. O crí-
tico do Diário de Notícias considerou que o espectáculo “resultou agra-
dável e brilhante”, destacando o “poder de atracção destas duas óperas,
às quais o público sempre se rende, a clareza e facilidade da sua lin-
guagem musical sempre em constante comunhão com a intensidade
e a violência da acção dramática, a qualidade interpretativa e realizado-
ra, vocal e cénica, requerida aos artistas…”48

43. João de Freitas Branco, O Século, 30/4/1965, p. 9.


44. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 18/5/1965, p. 10.
45. A.N., Diário de Notícias, 7/6/1965, p. 5.
46. João de Freitas Branco, O Século, 18/6/1965, p. 10.
47. Na entrevista que nos concedeu, Serra Formigal afirmou que “o factor teatral era muito exigente ali. Porquê? (…) Queria que
se cantasse bem, queria que houvesse técnica vocal, representação teatral e que se entendesse que ópera é teatro para música, e,
então, numa companhia jovem que não tem grandes estrelas, tem de ser assim senão não interessa: tem de se compensar com
mais teatro e mais cena o que pode faltar em celebridades vocais.” Entrevista a José Serra Formigal, p. 6 (2001).
48. A.N., Diário de Notícias, 9/7/1965, p. 5.

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A Ópera do Trindade

O Trindade terminou o ano com a obrigatória ópera portuguesa,


produzida com o apoio da Fundação Gulbenkian. A escolha recaiu na
Condessa Caprichosa, de Marcos Portugal. Compositor português oito-
centista, com vasta carreira europeia, Marcos Portugal era recordado
como um dos músicos nacionais cuja carreira mais êxito alcançara no
estrangeiro, registando, com presenças frequentes nos maiores teatros
de ópera, uma apurada sensibilidade pelo gosto médio de um público
de ópera em crescimento.
Mas a ópera portuguesa iria ter, ainda em 1965, um papel de rele-
vante significado no âmbito da companhia do Trindade. Em Dezem-
bro, a Companhia Portuguesa de Ópera estreia-se internacionalmente
no Grande Teatro do Liceo, em Barcelona, apresentando A Serrana, de
Alfredo Keil. A imprensa espanhola49 acolheu bem a prestação dos can-
tores portugueses. Algumas análises reflectiram, porém, uma pers-
pectiva já reconhecida na imprensa portuguesa: “Los artistas del Teatro
‘da Trindade’, de Lisboa, presentan A Serrana dignamente.”50 Os críticos
espanhóis retiveram-se bastante na natureza da obra de Keil, referin-
do que a sua estrutura reflectia uma inevitável datação histórica:

“Fué estrenada en 1899, o sea cuatro años después de Thaïs, dos ante de La Bohème y es
anterior en un año a Tosca. Está pués emplazada en la época y el área estética de Masse-
net y Puccini y tiene afinidades con el estilo de estos dos operistas en cuanto a lo musical.
Escénicamente pertenece a la tendencia nacionalista…”51

Comentou o mesmo crítico que do “pobre material” saiu uma obra


que não é apenas um subproduto, na medida em que apresentava algu-
ma consistência e originalidade, sobretudo pelo modo eficaz como o
maestro Frederico de Freitas dirigiu a orquestra. O Trindade assinalou,
assim, uma internacionalização inédita na história de uma companhia
portuguesa de ópera, reforçando, deste modo, a sua legitimidade inter-
na. No final do ano, Serra Formigal foi nomeado, pela sua actividade à
frente do Trindade, vice-presidente da FNAT.52

49. Xavier Montsalvatge, em La Vanguardia e Menendez Aleyxandre, em La Prensa.


50. Xavier Montsalvatge, La Vanguardia Espanola, 25/12/1965.
51. Ibidem.
52. Decreto-Lei n.o 46 649, de 17/11/1965.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

5.
Em Janeiro de 1966, o compositor português Jorge Peixinho, seguidor
das vanguardas musicais europeias, escreveu na Seara Nova uma crí-
tica a quatro óperas (O Elixir do Amor, Cavalleria Rusticana, Palhaços e
A Condessa Caprichosa) que a companhia do Trindade levou ao Porto.
Louvando o esforço do projecto no respeitante às oportunidades que vi-
nham sendo dadas aos artistas portugueses, Peixinho concluiu que o
reportório apresentado pelos artistas do Trindade gorava grande parte
do mérito da iniciativa: “(…) a direcção da CPO não tem demonstrado
uma visão lúcida nem corajosa na orientação artística que tem imprimi-
do à companhia, voltando costas, não só ostensivamente à produção
moderna e contemporânea como ainda ao reportório barroco e clássi-
co.”53 Considerou ainda que sendo difícil, por questões técnicas e hu-
manas, apresentar “um Wozzeck ou uma Lulu”, já não se compreendia
a omissão de algumas obras cénico-musicais de Stravinsky, de A Mão
Feliz, de Arnold Schoenberg, ou, entre muitas outras, as óperas épicas
resultantes do trabalho conjunto de Kurt Weil e Bertolt Brecht. A apre-
ciação de Peixinho aos espectáculos apresentados no Porto, entre alguns
elogios individuais, caracterizou-se por uma crítica transversal. Aos
olhos de um vanguardista, o projecto era débil e convencional.
A temporada de 1966 foi preenchida pelo Rigoletto, de Verdi, a Lucia
de Lammermoor, de Donizetti, o Fausto, de Charles Gounod, a Inês Perei-
ra, de Ruy Coelho, e, a finalizar, a dupla Rita, de Donizetti, e Palhaços, de
Leoncavallo. No final da temporada, um relatório do Teatro da Trindade
dava conta dos números alcançados pelas várias óperas.54 O Rigoletto
registara a maior frequência nas oito récitas realizadas, com uma média
de 501 espectadores. Seguiu-se a Lucia de Lammermoor, com 486,6; o
Fausto, com 468,2; Rita e Palhaços, com 344,1. A Inês Pereira, de Ruy Co-
elho, com 240,3, fora, de longe, o espectáculo que menos suscitou o
interesse do público. Apesar dos indícios que levariam a prever este des-
fecho, Serra Formigal, contrariando a sua opinião pessoal, acabara por
ceder à representação de uma ópera de Ruy Coelho.

53. Jorge Peixinho, Seara Nova, n.o 1443, 1/66, p. 28.


54. Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Arquivo do Teatro da Trindade, 31/5/1967, p. 2.

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A Ópera do Trindade

A direcção da Inês Pereira foi repartida pelo seu autor e pelo maestro
Jaime Silva Filho, como consta do contrato assinado entre José Serra For-
migal e Ruy Coelho, em 2 de Novembro de 1965.55 A pacificação, pelo
menos aparente, das relações entre Ruy Coelho e o Trindade foi sentida
quando aquele iniciou uma crítica regular dos espectáculos do Trinda-
de nas páginas do Diário de Notícias. Coelho procedeu a uma alteração
na sua retórica: se não foi possível o advento de uma arte nacionalista,
o elemento pátrio estava assegurado pela actuação dos filhos da nação,
ainda mais quando este sentimento era reforçado pela presença na
sala de altas personalidades do regime, como foi o caso do Presidente
da República, Américo Thomaz, na estreia de Rigoletto:

(…) a Arte tem uma profunda função social, e de tanto maior alcance educativo de
todas as classes das populações, quando é feita com elementos criados pelo próprio
meio, como afirmação da existência das actividades seleccionadas dos artistas nacio-
nais, que desse modo confirmem o superior grau do nível da cultura artística do
próprio país.56

Ruy Coelho, a quem Serra Formigal negara a entrada no Trindade


pelo facto de o seu “modernismo” atentar contra sensibilidades me-
nos habituadas à ópera, veio, mais tarde, na crítica do Diário de Notícias
relativa à Lucia de Lammermoor, a defender “a grande época de oiro da
ópera italiana, em que Donizetti, Bellini e Rossini – de 1800 – formam
a trindade dos astros que deram ao canto teatral a beleza do bel canto”,
contra “a aberração de algumas falsas estéticas contemporâneas que
proclamam transformar os valores racionais em irracionais, com o
delírio organizado (…) e que utiliza no canto a exploração dos efeitos
primários – do grito – o que dá a possibilidade de ser cantor mesmo a
quem tenha má voz e não saiba cantar, (…) se é acessível a toda a gente,
sem excepção, o pseudocanto – sprechgesang, ‘falar ritmado’, ‘gritar’, o
chuchotement.”57

55. Contrato entre Serra Formigal e Ruy Coelho, com vista à representação da ópera Inês Pereira, Arquivo do Teatro da Trindade,
pasta 1966.
56. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 5/5/1966, p. 5.
57. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 23/5/1966, p. 6. Sprechgesang é uma técnica vocal que está entre o falar e o cantar. Chuchotement
refere-se ao canto sussurrado.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

As referências aos espectáculos nos jornais continuaram mornas. O


Fausto, de Gounod, primeira incursão do Trindade pela ópera francesa,
contou com a participação do cantor gaulês Jean Soumagnas. A apre-
sentação da Inês Pereira, de Ruy Coelho, levou a crítica a largar o seu
registo monocórdico. A figura de Ruy Coelho, pelo significado político
e musical, não deixava ninguém indiferente. O Diário de Notícias fez
um elogio rasgado à obra do seu cronista: “Esta reposição de Inês Perei-
ra vem mais uma vez fixar o nome de Ruy Coelho como criador de uma
obra que abarca vários géneros, mas sempre subordinados a uma cons-
tante, cuja função é de aproveitamento e recreação de atmosferas e
motivos portugueses e populares.”58
A recriação de uma pretensa portugalidade pela expressão musical e
dramática propiciava acesa discussão. A oposição principal às observa-
ções de Ruy Coelho sobre o tema, fossem no âmbito de polémicas ou
exprimindo-se em obras musicais, era protagonizada por Fernando Lo-
pes-Graça.59 A concepção de Lopes-Graça paira na análise de Francine
Benoit à ópera Inês Pereira: “Nada, na invenção de Ruy Coelho, se for-
talece de raízes medularmente tradicionais ou de pensamento verda-
deiramente moderno.”60 À margem desta discussão, um facto parecia
indiscutível: quando Serra Formigal se afastou do paradigma que en-
formava a escolha do reportório, o público desmobilizou.
Se a temporada no Trindade terminou sem história, com a repre-
sentação conjunta das óperas Rita e Palhaços, outro acontecimento
gerou uma movimentação importante. A Companhia Portuguesa
de Ópera da FNAT partiu em tournée para Angola. A guerra na anti-
ga colónia portuguesa começara havia cinco anos. No mesmo ano da
viagem da Companhia do Trindade, o Estado português organizou
em Angola o 1.o Festival das Artes, pretexto para levar a companhia
a Luanda. A iniciativa estava conotada com o mesmo pendor demo-
cratizante que caracterizava a imagem pública dos espectáculos do
Trindade.

58. N., Diário de Notícias, 5/7/1966, p. 5.


59. Fernando Lopes-Graça travou vários combates teóricos com Ruy Coelho. As diferentes concepções que apresentavam
para estruturar a vida musical portuguesa e a música nacional foram quase sempre a origem das inúmeras polémicas. O
culminar desta oposição terá sido o livro de Lopes-Graça, A Caça ao Coelho e outros Escritos Polémicos, Edições Cosmos,
Lisboa, 1976.
60. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 7/7/1965, p. 8.

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A Ópera do Trindade

Serra Formigal, em entrevista concedida depois da passagem da com-


panhia por Luanda, Benguela e Lobito, salientou essa postura:

Quando se projectou a ida a Angola, pessoas houve que, dentro do preconceito pseu-
do-culto próprio dos que desconhecem inteiramente este género artístico, exprimiram
a ideia de que o espectáculo lírico subsiste apenas para “elites” muito “snobs”, por
consequência, seria inútil e até ridículo levá-lo a Angola, onde os ânimos estão volta-
dos para realidades mais fortes e onde, por outro lado, não haveria preparação nem
disposição do público para ele. (…) Os que amam a ópera, pelo contrário, sabem que
ela é cada vez mais um espectáculo popular, aqui e no estrangeiro. Quem vai ao Trin-
dade e ao Coliseu e vê as casas sempre cheias de um público entusiástico e pagante
que, certamente, pela sua condição económica, não frequenta os espectáculos para
exibir trajes ou jóias nem para fazer ou afeiçoar relações úteis e mundanas…61

Serra Formigal fez questão de referir que os espectáculos foram fei-


tos sem “interferências de ‘sociedade’ a influir no fenómeno”62, e que
o público de Angola “é do melhor que temos tido a assistir aos nossos
espectáculos: interessado, sincero e inteligente”63.
A viagem realizada a Angola não deixou de se constituir num aconte-
cimento político. A metrópole tentava mostrar que o seu interesse pela
colónia deveria ser considerado também em vertentes como as da po-
lítica cultural. A operação de charme correu bem e a imagem do carác-
ter democrático, pluriclassista e multirracial da iniciativa circulou nos
periódicos angolanos.
Na Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Serra For-
migal demonstrou agrado pela forma como decorreu a temporada lí-
rica. A Lucia, de Donizetti, destacara-se, facto para o qual contribuiu,
em grande plano, a cantora Zuleika Saque, a grande estrela da com-
panhia. Pelo contrário, a Inês Pereira foi a representação menos conse-
guida, “não só por não se ter conseguido uma homogeneidade de
elenco tão grande como se desejava (…) mas também sendo a própria
ópera pouco conhecida do público e com as desigualdades próprias
deste compositor.”64 O ponto alto da temporada fora, sem qualquer

61. Súmula das entrevistas de Serra Formigal, e críticas aos espectáculos, a propósito da viagem a Angola, Arquivo do Teatro da
Trindade, pasta 1966, p. 2.
62. Ibidem, p. 3.
63. Ibidem, p. 3.
64. Nota sobre as Actividades do Teatro da Trindade em 1966, Arquivo do Teatro da Trindade, 31/5/1967, p. 2.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

dúvida, a digressão a Angola, onde a companhia alcançou um “êxito


enorme”, prestigiando a “FNAT e a cultura portuguesa no continen-
te africano”65.

6.
A temporada de 1967 iniciou-se sob o efeito das obras realizadas no
Teatro da Trindade durante o ano anterior.66 A apreciação à Tosca, de
novo eleita para a estreia da temporada, foi secundarizada pela impres-
são causada pelas alterações na morfologia do Teatro. João de Freitas
Branco aproveitou os sinais de institucionalização do projecto da Com-
panhia Portuguesa de Ópera do Trindade para fazer o elogio dos seus
promotores:

As importantes melhorias introduzidas no teatro vêm confirmar que as directrizes


superiores, emanadas pelo Sr. Prof. Gonçalves Proença, e a sua interpretação e rea-
lização pela FNAT, e pelo director do Trindade, Sr. Dr. José Serra Formigal – um right
man in the right place – representam uma (…) consciência daquilo que a população
economicamente desfavorecida tem o direito de usufruir através da cultura em geral
e da arte em particular (…)67

A apresentação do “novo teatro”, à qual as altas individualidades do


regime não quiseram faltar, foi assinalada pela presença da cantora
italiana Franca Como.
A Tosca marcava o início de uma temporada preenchida pelo reportó-
rio italiano clássico, o Werther, de Massenet, e a inevitável ópera portu-
guesa, este ano, pela segunda vez, A Vingança da Cigana. Dom Pasquale,
de Donizetti, conquistou a opinião da crítica, provando que a insistência
num reportório convencionado resultava no aperfeiçoamento do esti-
lo. A encenação de Gino Bechi foi aclamada. Francine Benoit, pautando

65. Ibidem, p. 2.
66. A obra, dirigida pelo arquitecto Miguel Evaristo de Lima Pinto, contou com o trabalho de decoração de Maria José Salavisa.
Sobre a sua tarefa afirmou: “No que diz respeito à decoração, houve uma sugestão desde logo a aceitar: a decoração legada pelo
final do século passado. Em faceta tão importante, realçou-se o que originalmente havia de bom e aproveitável, desembaraçado
de acréscimos e enfeites posteriores, alguns deles de manifesta incoerência e evidente mau gosto! Teve-se sempre em mente no
restauro não sobrecarregar o Teatro de decorativismos supérfluos em que o ecletismo do “fim do século” foi pródigo, mas não
se ajustavam às teorias de hoje.” Maria José Salavisa, Programa do Teatro da Trindade, 1967, p. 23.
67. João de Freitas Branco, O Século, 29/4/1967, p. 9.

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A Ópera do Trindade

as suas crónicas jornalísticas por determinada reflexão a que outros,


escondendo-se atrás de um paternalismo condescendente, muitas ve-
zes se escusavam, referiu que “o velho Trindade, transformado em te-
atro de ópera, está de parabéns”68. Defendeu, no entanto, que a aposta
“na composição das óperas ajustadas (mais ou menos) às possibilidades
dos nossos cantores líricos” e a representação “do reportório estran-
geiro menos batido” continuava a ser a sua maior aspiração em relação
ao Trindade, que teria de progredir sem se preocupar com “as reac-
ções dos espectadores”.
Quando a Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade aparentava
uma sustentação sólida, com estruturas que garantiam alguma conti-
nuidade, a discussão acerca da orientação artística aplicada às suas tem-
poradas ganhou, em detrimento das componentes organizacionais,
um espaço de debate alargado. Já não se tratava de garantir a sobrevivên-
cia de um projecto, que parecia ter alcançado uma certa margem de au-
tonomia, mas de lutar pelos moldes que presidiam à sua concepção.
A apresentação de O Barbeiro de Sevilha ficou marcada pela estreia da
cantora Elizete Bayan, que, até à extinção da Companhia Portuguesa
de Ópera, iria ser uma das vedetas do Trindade. Nas récitas seguintes,
Joly Braga Santos conduziu a orquestra em mais uma representação
de La Bohème. A Vingança da Cigana foi a penúltima ópera em cartaz,
antes do Werther.
No final da temporada, o crítico Humberto d’Ávila escreveu n’O Sé-
culo um comentário a propósito do projecto do Trindade, que traduz
com alguma felicidade a complexidade inerente a uma iniciativa re-
fém de objectivos políticos, mas com consequências profundas no in-
terior de um quadro cultural sobre o qual intervém:

(…) se é bem certo que a função faz o órgão, não menos certo é que a existência
deste proporciona a necessidade de muitas necessidades virtuais e latentes que
doutra forma não se concretizariam e nem, talvez, chegassem a manifestar-se, nesta
impotência realizadora em que, à míngua de estruturas culturais, as melhores inten-
ções têm vindo a estiolar-se. A conclusão lógica de tudo isto é que, com a realização
presente e outras já devidas à mesma origem, a simples formação e manutenção de
uma companhia de ópera portuguesa, assente em quadros estáveis, quer artísticos

68. Francine Benoit, Diário de Lisboa, 5/5/1967, p. 8.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

quer de apoio, com que a FNAT soube tão meritória como bem orientadamente res-
ponder à metodologia preconizada pelos sectores mais interessados, veio provar à
saciedade (…) que a promoção de uma autêntica actividade musical nacional só é
possível a partir de uma institucionalização das estruturas necessárias…69

A recomposição do meio operático português com a institucionali-


zação estrutural promovida pelo Trindade não resultou numa transfor-
mação significativa da sua organização simbólica. O Diário de Notícias
apresentou, em 2 de Fevereiro de 1967, um editorial intitulado “Luzes de
São Carlos no Trindade”70, em que enaltecia o Teatro da FNAT. O elogio
apontava o papel digno que vinha alcançando na peugada do brilho do
Teatro de São Carlos. Esta gradação valorativa desconsiderava as trans-
formações estruturais que o projecto do Ministério das Corporações
concretizara. As discussões e os parâmetros de avaliação do género líri-
co eram dominados pelos aspectos exteriores dos espectáculos, a presen-
ça das estrelas, a oportunidade das encenações. “As luzes do São Carlos”
iluminavam o campo do teatro lírico nacional; os próprios artistas e co-
laboradores que todas as temporadas ajudavam a construir o projecto
do Trindade nunca tinham tirado os olhos do Teatro Nacional de São
Carlos. O simbolismo da tradição e as passagens gloriosas das vedetas
que preenchiam as enciclopédias e as memórias operáticas tornavam
o São Carlos um espaço mágico, mesmo para o público e para os artis-
tas que ficavam do lado de fora. O facto de uma hierarquia cultural ser
reconhecida pelos diversos actores envolvidos, tanto na produção como
na recepção dos espectáculos, implicava o reconhecimento do poder
instituído e, por conseguinte, das suas funções políticas e sociais. Os
dominados contribuíam para o reconhecimento da sua condição subal-
terna: efeito paradoxal do seu acesso ao consumo cultural.
Em Setembro do mesmo ano, os elementos do Coro do Teatro Na-
cional de São Carlos escreveram uma carta ao seu director pedindo-lhe
para reivindicar, junto de Serra Formigal, um aumento das remune-
rações por récita – de 120$00 para 150$00. Acrescentaram que o coro
tinha aceite “excepcionalmente as mesmas condições vigentes no
São Carlos, por motivo das características especiais de que se revestia a

69. Humberto d’Ávila, O Século, 4/7/1967, p. 9.


70. “Luzes de São Carlos no Trindade”, Diário de Notícias, 2/8/1967, p. 6.

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A Ópera do Trindade

simpática iniciativa desse Teatro”71. Serra Formigal respondeu ao direc-


tor do São Carlos em 20 de Dezembro de 1967. Começou por argumen-
tar que lhe parecia desaconselhável que um teatro com as características
do Trindade, “de certo modo experimental em relação ao nosso Teatro
Nacional de Ópera, se veja mais onerado do que o próprio Teatro Na-
cional de Ópera, relativamente a um sector de colaboração que lhe é
prestada por este teatro.”72 Mas Formigal foi mais longe, argumentan-
do que a iniciativa estatal que sustentava o Trindade fazia parte de
uma mesma lógica global que presidia à organização do São Carlos:

Teria também muito prazer que V. Exa. não considerasse as actuações do Coro do Tea-
tro Nacional de S. Carlos no Trindade (FNAT) como efectuados fora do Teatro Nacional,
pois que foi sempre nosso propósito, e assim temos procedido, que as temporadas do
Teatro da Trindade, dada a sua função nacional atrás referida, se processassem em ínti-
ma colaboração com o Teatro de S. Carlos; este aliás, tem sido o nosso mútuo desejo e
intenção de suas Excelências os Ministros da Educação Nacional e das Corporações e
Previdência Social que presidem aos destinos dos Ministérios que ambos servimos.73

Formigal argumentou que o coro recebera mais pelos espectáculos


do Trindade do que pelas apresentações no São Carlos, que cada vez
eram mais raras. Relativamente ao facto, também aludido na primeira
carta, de que os outros elementos do Trindade, especialmente os canto-
res, ao contrário dos elementos do coro, tinham tido os seus aumentos,
Formigal respondeu que os motivos destes aumentos – de 1.500$00
para 2.000$00 e depois para 2.500$00, no que respeita aos principais
papéis – eram outros:

Porquê estas actualizações? Exactamente para diminuirmos um pouco a grande “déca-


lage” existente entre os nossos “cachets”, os do Teatro Nacional de S. Carlos e outras
instituições financeiramente mais poderosas que o Teatro da Trindade. Com efeito, jul-
gamos não nos enganar se afirmarmos que o Teatro Nacional de S. Carlos paga aos
cantores portugueses por cada récita (1.os papéis) 5, 6, ou 7 mil escudos, o que, sendo
pouco, é bastante mais do que nós podemos pagar.74

71. Carta do Coro do Teatro Nacional de São Carlos ao director do Teatro Nacional de São Carlos, Setembro de 1967, enviada
como anexo de uma carta do Teatro Nacional de São Carlos ao Director do Teatro da Trindade em 19/9/1967, Arquivo do Teatro
da Trindade, pasta 1967.
72. Carta de Serra Formigal ao director do Teatro Nacional de São Carlos, 20/12/1967, p. 1 Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1967.
73. Ibidem, pp. 2-3.
74. Ibidem, p. 3.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

Ponderando tudo, Serra Formigal considerou que era possível au-


mentar os elementos do coro, à custa de muitos sacrifícios, em 10$00
por récita.
Entretanto, procurou assegurar75, junto do Instituto da Alta Cultura,
uma contribuição financeira para a continuação de Gino Bechi, duran-
te oito meses, nas suas funções de professor de canto e cena e de ence-
nador. Solicitou ao Instituto de Alta Cultura um subsídio de 150.000$00,
o que, juntando a outros 150.000$00 atribuídos pela Gulbenkian, com-
pletava, quase na totalidade, o ordenado anual de 320.000$00 que Be-
chi passaria a usufruir. Serra Formigal aproveitou ainda para informar o
presidente do Instituto de Alta Cultura dos excelentes resultados prá-
ticos das bolsas de estudo que deram oportunidade às cantoras Zuleika
Saque e Elsa Saque de frequentar o Centro de Avviamento do Teatro Mas-
simo de Palermo, onde trabalharam sob a direcção do mesmo Gino Be-
chi. O Instituto concedeu o subsídio.

7.
A Companhia Portuguesa de Ópera entrou na sexta temporada com a
Sonambula, de Bellini. A escolha da ópera de um dos mestres do bel-
canto não deixava evidenciar as representações importantes que marca-
ram o ano de 1968 no Trindade. Na estreia, o Presidente da República,
Américo Thomaz, condecorou Tomás Alcaide. A encenação de Bechi
foi muito admirada, levando o crítico Nuno Barreiros76, no Diário de
Lisboa, a formular um desejo: “Além de a CPO proporcionar emprego
a muita gente poderia permitir a alguns elementos experimentar solu-
ções que noutros espaços não lhes seriam permitidas.”77
A troca da habitual dupla Os Palhaços e Cavalleria Rusticana pela
parelha que agregava Os Palhaços e O Segredo de Susana, de Ermanno
Wolf-Ferrari, autorizou, segundo o crítico do Diário da Manhã, que se
tivesse poupado “ao público dois dramas sangrentos”78. Entretanto, Ruy

75. Carta de José Serra Formigal ao presidente do Instituto de Alta Cultura, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta da Correspondência.
76. Nuno Barreiros, adepto de um modernismo musical, próximo dos Freitas Branco. Nuno Barreiros era casado com Maria
Helena de Freitas, uma das principais colaboradoras de Serra Formigal no Trindade.
77. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 8/5/1968.
78. JCP, Diário da Manhã, 24/5/1968, p. 4.

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A Ópera do Trindade

Coelho mostrava-se conquistado pelo Trindade. A música que por lá


passava não era “música que entra por um ouvido e sai pelo outro, que
se esquece logo no momento em que se ouve. Essa, por mais que se oiça
– por mais que se force a audição, por mais que se pretenda impor –
nasce e desaparece porque em música só se gosta do que se aceita natu-
ralmente.”79
A ópera Os Palhaços era o exemplo acabado desse género de “dispo-
sição musical genética”, pois “são muitas as frases, as melodias que
milhares de pessoas conhecem de cor – pessoas de todas as classes de
ouvintes – em todos os países – frases que vivem na memória, que se
cantam mentalmente, que se estimam verdadeiramente.”80
O director de orquestra desta dupla representação lírica foi o maestro
brasileiro David Machado. Serra Formigal convidou-o, ainda em 196781,
para dirigir seis récitas do Otello, de Verdi, ópera que nunca viria a fazer
parte do reportório do Trindade. Formigal prometeu a Machado um
pagamento total de 36.000$00. O seu talento era reforçado pelo facto
de ser “natural do nosso país irmão, o Brasil, com o qual procuramos
hoje edificar, cada vez mais, a Comunidade Luso-Brasileira”82. Apesar
da citada relação lusófona, Machado foi contratado pelo seu valor artís-
tico, rompendo com a exclusividade portuguesa na direcção da orques-
tra. Serra Formigal continuava a lutar pela progressiva qualificação do
seu teatro de ópera.
A terceira apresentação do Rigoletto não impressionou. O que se seguiu,
porém, constituiria, na história da Companhia Portuguesa de Ópera do
Trindade, um momento importante. Serra Formigal arriscou a colocar
em palco As Bodas de Fígaro, de Mozart. Os jornais reagiram de imedia-
to. Joly Braga Santos defendeu a audácia de representar Mozart só com
elementos locais, “porque esse arrojo constitui um louvável esforço para
sair da rotina. Neste caso a rotina é a ópera italiana romântica, que é mui-
to mais difícil do que em geral se crê. O único inconveniente da insistên-
cia do repertório italiano e francês do século passado é que não separa o
trigo do joio. E assim encontramos a par de partituras geniais, como o

79. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 19/5/1968, p. 5.


80. Ibidem, p. 5.
81. Carta de Serra Formigal para o maestro David Machado, 10/10/1967, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1968.
82. Ibidem. O Brasil estava, desde 1964, sob o domínio de um regime militar que se intensificara em 1967, com a subida ao
poder de Arthur da Costa e Silva, antigo ministro do Exército do seu predecessor, o general Castello Branco.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

Simão Bocanegra, o Werther ou La Bohème, outras de péssima qualidade


musical, como A Favorita ou Os Palhaços. Nesse ponto os alemães estão
melhor, visto que no seu país aquelas óperas que se tornaram mais po-
pulares são exactamente as de mais elevada qualidade.”83
Se a quebra da rotina, feita em nome de uma “ópera de mais eleva-
da qualidade”, agradou à generalidade da crítica, em alguns pormenores
de As Bodas de Fígaro ainda subsistiam elementos de uma popularização
excessiva do espectáculo: Nuno Barreiros exigiu mais contenção, por-
que o Fígaro de Mozart não é o de Rossini, advertindo um dos cantores
para o facto de a sua personagem ser pouco mozartiana: “Preferíamos
que tivesse adoptado um quid de leveza, uma concepção menos a traço
grosso.”84 O espectáculo em si tinha agradado porque “chegava a parecer
impossível: um elenco de cantores portugueses sem prática mozartia-
na abalançar-se a umas das mais importantes óperas do mestre de Salz-
burgo e conseguir uma realização, não só digna mas decorrendo a nível
elevado. Perfeita, paradigmática? Evidentemente que não. Mas positiva,
altamente positiva.”85 O Trindade deixara a sua mediana dignidade, para
se apresentar, em As Bodas de Fígaro, a um nível mais elevado.
A Manon Lescaut, de Massenet, constituiu a segunda incursão do Trin-
dade pelo património romântico francês. João de Freitas Branco conside-
rou que “o resultado global não igualou… o memorável êxito de As Bodas
de Fígaro”, especialmente porque os “nossos cantores pronunciam mui-
to pior o francês do que o italiano.”86 O público que preencheu o teatro
pareceu não importar-se com o defeito de expressão, aderindo à ópera
de Massenet. O compositor francês foi elogiado por Ruy Coelho. Alguns
críticos, recordou Coelho, afirmavam que Massenet tinha a faculdade de
agradar excessivamente desenvolvida. O compositor português preferia,
no entanto, recordar as palavras de Debussy: “Invejavam-lhe os grandes
puristas que só aqueciam o coração no respeito laborioso dos cenáculos.”87
A temporada do Trindade não tinha ainda terminado. As Variedades
de Proteu, peça de António José da Silva88, musicada por António Tei-

83. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 17/7/1968, p. 4.


84. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 26/6/1968.
85. Idem.
86. João de Freitas Branco, O Século, 13/7/1968, p. 4.
87. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 12/7/1968, p. 5.
88. Que terá sido o primeiro autor literário e produtor teatral de composições operísticas portuguesas, faladas e cantadas em
português. João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4.

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A Ópera do Trindade

xeira, introduziu um elemento dissonante na lógica prosseguida por


Serra Formigal, em relação às óperas nacionais. Mais uma vez a obra
fora recuperada por Filipe de Sousa, que assumiu também a direcção
da orquestra.89 João de Freitas Branco considerou a peça “um singspiel
na melhor tradição germânica”90, embora musicalmente recebesse o
italianismo de braços abertos. A forma músico-dramática de As Varieda-
des de Proteu salientava a importância da palavra, realçando a força
dramática do enredo, em detrimento de uma comunicação monopoli-
zada pelo canto e a melodia. Lamentou ainda o cronista de O Século,
que Filipe de Sousa tivesse excluído da peça pormenores que poderiam
chocar “espectadores com preconceitos”91. Como exemplo deste proce-
dimento exagerado, a supressão de um pequeno trocadilho com as pa-
lavras “casar” e “azar”: “casar diria, ainda que eu não ouvi mais do que
azar: porém casar e azar tudo é o mesmo.”92 Quem não apreciou a obra
foi Ruy Coelho.

A mistura de alguns números soltos, de música para canto e pequena orquestra entre
muitas e diversas passagens declamadas pelos próprios cantores e diversos quadros
com as respectivas mutações, o que, desde logo, com tantos hiatos, cria uma atmos-
fera sem acção musical. E, conjuntamente, a fraca acção musical dá monotonia.93

A novidade de As Variedades de Proteu não se esgotou na ruptura


com determinada tradição de reportório. A encenação, da responsabi-
lidade de Artur Ramos, velho amigo de Serra Formigal, apesar das pa-
tentes divergências políticas, causou alguma sensação. O impacte das
encenações do Trindade na crítica especializada tinha-se resumido, até
à data, com uma ou outra excepção, a uma ou duas linhas de jornal.
Num momento em que, tanto no teatro como na ópera, a encenação
conquistara um papel fundamental na concepção das obras, recrian-
do-as de forma que, muitas vezes, desagradava a sensibilidades mais

89. O maestro Filipe de Sousa assinou um contrato, em 4/4/1968, com José Serra Formigal, onde se compromete, em troca de uma
remuneração de 15 mil escudos, a dirigir seis récitas de As Variedades de Proteu, como a ensaiar a orquestra e os cantores “tanto ‘à ita-
liana’ como de cena”. Contrato entre Filipe de Sousa e Serra Formigal, 4/4/1968, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1969.
90. João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4.
91. Ibidem, p. 4.
92. Ibidem, p. 4.
93. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 27/7/1968, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

puristas, no Trindade tudo parecia convencional. A ausência de debate


em torno da encenação dos espectáculos não se explica pela falta de
interesse que os críticos dos jornais e das revistas, mais uns do que
outros, nutriam pelo tema. O contexto do Trindade, todavia, não sus-
citava nenhuma abordagem. A concepção dos espectáculos, o público
a quem se dirigiam, a natureza dos reportórios, os elementos executo-
res, tudo fazia pensar na rotina de um figurino preconcebido. Estando
a encenação modelada, o reportório quase fixo em determinado arqué-
tipo, restava à crítica salientar a prestação dos cantores, a beleza dos ce-
nários, a qualidade da orquestra e o trabalho do maestro. Quando, em
As Variedade de Proteu, Artur Ramos, um homem com carreira teatral
firmada, concebeu uma encenação que transportava a peça de Antó-
nio José da Silva para um futuro longínquo com cenários espaciais, a
encenação passou a personagem principal da ópera: “O que mais carac-
terizou estas Variedades de Proteu, como espectáculo dos nossos dias,
foi, exactamente, a quase sensação de ser Artur Ramos o autor da peça.”94
O insólito da questão suscitou a João de Freitas Branco uma longa pro-
sa sobre a encenação, algo inédito nas suas crónicas jornalísticas sobre
a Companhia Portuguesa de Ópera. Freitas Branco analisou o trabalho
de encenação, considerando-o, apesar da aparente inovação, conven-
cional: “(…) além dos cenários e figurinos (…) não primarem pelo bom
gosto, a marcação cénica mantém-se demasiado próxima das velhas
convenções, o que não pode deixar de produzir um efeito de discrepân-
cia.”95 Para certo ethos artístico, a aparente quebra de uma determinada
rotina podia, afinal, ser um mero simulacro. Mas o facto de uma ence-
nação do Trindade ter originado discussão era por si só uma vitória. O
ano de 1968 deixava no ar uma aparente intenção de mudança. Serra
Formigal, notando o fortalecimento da autonomia da companhia, pare-
cia querer, medindo bem até onde podia ir, forçar as expectativas que
se colocavam ao seu Teatro.

94. Em comentário, Freitas Branco cita um artigo de Ernst Krause para a revista alemã Opernwelt, que dizia: “Acaso vamos ainda
assistir a La Bohème de Puccini, ou será Zeffirelli o seu autor? Discutimos o Barbeiro, de Herlschka, ou a partitura de Rossini?
Qual é o Wagner mais importante, o Wieland ou o Richard? João de Freitas Branco, O Século, 28/7/1968, p. 4.
95. Ibidem, p. 4.

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A Ópera do Trindade

8.
A temporada de 1969 não se adivinhava fácil. As dificuldades de orga-
nização da temporada, motivadas pelas muitas solicitações feitas aos
artistas portugueses, ficaram bem elucidadas numa carta que Serra
Formigal enviou à cantora Ana Lagoa, a propósito da sua contribuição
para os espectáculos previstos. O Trindade estava ainda longe dos cen-
tros musicais da capital, verdadeiros monopolizadores de eventos e
congregadores das sensibilidades mais apuradas:

(…) o Festival Gulbenkian de Música do ano próximo veio desorganizar-me de forma


importante a temporada. Como vão, em 1969, utilizar as orquestras do Porto e de
Lisboa durante o festival, a Emissora não tem músicos disponíveis para o Trindade, o
que me obriga a parar todas as récitas e ensaios de orquestra de 27 a 31 de Maio. Por
outro lado, pedem-me a tua colaboração para um concerto em 21 de Maio, e ainda a
do Malta, Cláudio e Elsa para diversas e desvairadas datas.96

João de Freitas Branco considerou, nas páginas da Colóquio Artes97, o


oitavo Festival Gulbenkian de Música como aquele que, até àquela data,
tinha alcançado maior projecção. A abertura dera-se no Coliseu dos
Recreios, onde o maestro Claudio Abbado dirigiu a Filarmónica de Vi-
ena na interpretação das Três Peças para Orquestra, de Alban Berg, e as
Cinco Peças, de Anton Webern. Pela primeira vez em Portugal, foi repre-
sentada uma ópera de Georg Friedrich Haendel, Alcina. No campo do
teatro lírico, realizaram-se também Ida e Volta, de Paul Hindemith, o
Capote de Luciano Chailly, com a participação de Elsa Saque, e O Retá-
bulo de Mestre Pedro, de Manuel de Falla. Passaram ainda pelo Festival
Gulbenkian, entre muitos outros artistas, Mstislav Rostropovitch, Karl
Richter, Martha Argerich e o compositor Olivier Messiaen.
No Trindade, o orçamento98 para a temporada de ópera, que decorria
em simultâneo com o Festival Gulbenkian, previa uma despesa total de
4.225.000$00.99 Este valor era na sua maior parte coberto pela contribui-

96. Carta de Serra Formigal para Ana Lagoa, 7/12/1968, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1969.
97. João de Freitas Branco, “O XIII Festival Gulbenkian de Música foi o de maior projecção”, em Colóquio Artes, n.o 54, Junho de
1969, pp. 43-51.
98. Orçamento Ordinário da Receita e Despesa para o ano de 1969, Arquivo do Teatro da Trindade.
99. Nesse ano, as Contas Gerais do Estado assinalavam um gasto de 10.006.000$00 com o Teatro de São Carlos. Diário das
Sessões n.o 89, de 14/4/1971, p. 1788 (97).

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

ção da FNAT, 2.700.000$00, acrescentado de 500.000$00 da Junta de


Acção Social, 200.000$00 da Fundação Gulbenkian e 75.000$00 do Ins-
tituto de Alta Cultura. Esperava-se 440.000$00 de receitas extraordiná-
rias. A restante verba resultaria de rendimentos próprios, perfazendo
os 310.000$00 que se pensava arrecadar com a venda de bilhetes.
A autonomia financeira do Teatro da Trindade situava-se nos 7,3 por
cento. Do total da despesa, 787.820$00 prendem-se com gastos com o
pessoal100, 25.500$00 com despesas materiais, 466.775$00 com paga-
mentos de serviços e diversos encargos. Com a actividade artística o Trin-
dade despendia 2.767.700$00, dos quais 2.708.700$00 com a ópera,
40.000$00 com o teatro declamado e 19.000$00 com concertos. Signi-
ficava isto que, do total da actividade artística, a ópera preenchia 97,8
por cento do orçamento. O Trindade estava transformado, quase exclu-
sivamente, num teatro de ópera. Não se juntam a estes montantes as
despesas extraordinárias do Teatro, ocupadas, numa parte importan-
te, por desembolsos com tournées da Companhia Portuguesa de Ópe-
ra – 77.000$00, num total de despesas extraordinárias que atingia os
177.000$00.
Face ao reportório do ano anterior, a temporada de 1969 foi menos
ousada. Notou-se uma tentativa de oferecer produtos novos aos espec-
tadores. O contexto que envolvia a gestão formal das temporadas e as
limitações materiais e humanas da iniciativa reduziam, no entanto, as
possibilidades de apresentar propostas muito variadas. O espectáculo
de estreia, reservado ao sucesso garantido de um clássico italiano, fez-se
ao som de La Traviata. A ocasião serviu para o Presidente da República
condecorar, no foyer do Teatro, Serra Formigal e Gino Bechi. O grau de
oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada foi justificado pelos ser-
viços prestados à ópera portuguesa. O êxito alcançado por As Bodas de
Fígaro no ano anterior conduziu Serra Formigal a repetir o evento. Com
os mesmos protagonistas, Ivo Cruz na orquestra e Benamor na ence-
nação, As Bodas de Fígaro foram um sucesso. A crítica gostou, tocada
pelo espírito da obra: “Temos no Trindade um espectáculo de elevado

100. Na nota justificativa do orçamento, Serra Formigal fundamenta a decisão: “Os bilheteiros estavam a metade dos ordenados nor-
mais mais baixos dos vários teatros de Lisboa, conforme verificámos. Quanto ao pessoal de cena (electricistas e maquinistas), tam-
bém os seus vencimentos são baixos, mesmo depois deste aumento, relativamente a alguns teatros, mas ficam agora mais
equilibrados”. Nota justificativa do Orçamento Ordinário da Receita e Despesa do Teatro da Trindade para o ano de 1969, Arquivo
do Teatro da Trindade, p. 2.

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A Ópera do Trindade

nível, cujo mérito deve aferir-se das responsabilidades do empreendi-


mento. Ora pairou, de facto, na realização da Companhia Portuguesa
de Ópera um espírito mozartiano.”101
Seis anos depois de ter sido escolhida como a representante do patri-
mónio lírico nacional para a primeira série de espectáculos no Trindade,
A Serrana, de Alfredo Keil, regressou aos palcos do Teatro. Considerada,
na altura, uma escolha certeira, se olvidarmos a polémica interna que
marcou a posição de Ruy Coelho, foi sem a envolvência celebratória que
caracterizou o lançamento da Companhia Portuguesa de Ópera, em
1963, que a obra foi agora recebida. O Diário de Notícias, no entanto,
manteve a sua postura editorial, assinalando que n’A Serrana “todas
essas características fundamentais em que o amor, a paixão sem freio, a
violência e a brandura se fundem para conseguir umas das mais signi-
ficativas obras de carácter rústico do nosso teatro lírico.”102
Quem não alinhou no elogio ao nacionalismo operático foi Joly Braga
Santos. É útil recordar que este compositor afirmara, em 1963, aquan-
do da primeira representação, que a obra era “uma ópera nacional de
importante valor histórico” com “uma autêntica veia lírica, um bom li-
bretto e uma meia dúzia de ideias musicais genuínas”, e que, portanto,
tinha constituído “uma escolha acertada… para representar a ópera do
nosso país”. Seis anos volvidos, um certo desagrado, já notado, apesar
de tudo, na crónica de 1963, surgiu com violência:

E só como produto de um romantismo ultra-decadente pode ser apreciado o libreto


de “A Serrana”, dramalhão de faca e alguidar, com todos os rodriguinhos do mau te-
atro que fez as delícias de muitos dos nossos avós e bisavós (…) dificilmente se
compreende o zelo daqueles que teimam em considerar “A Serrana” como uma
obra importante do ponto de vista linguístico-musical, pois que um dos seus maio-
res defeitos é precisamente maltratar a língua portuguesa com uma prosódia, não
só cheia de erros, como ausente de justa correspondência rítmica na partitura (…)
Mas também como linguagem musical a Serrana não pode ser comparada a nenhu-
ma das óperas que fizeram carreira mundial no teatro musical verista. A sua escrita
coral é de fraca orgânica, tanto harmónica como polifónica e a orquestração é rudi-
mentar e desajeitada.103

101. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/5/1969.


102. A.N., Diário de Notícias, 7/6/1969, p. 5.
103. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 28/6/1969, p. 4.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

O que em 1963 era admissível, seis anos depois deixara de o ser. Joly
Braga Santos, o compositor português que mais se destacava na con-
juntura política e social da época, parecia exigir, não se sabendo em que
termos concretos, uma nova política para o Trindade, em especial no
que respeitava às óperas portuguesas.
Seguiram-se Amélia al Ballo, de Menotti, e Il Gobbo del Califfo, de Franco
Casavola. Ruy Coelho considerou as óperas, nomeadamente a primeira,
“na linha das melhores óperas italianas, onde a música é sempre mú-
sica e não mera especulação da escrita.”104 A Joly Braga Santos também
agradou a ópera de Menotti; quanto a Il Gobbo del Califfo, “Lasciate mo-
rire lo chi è morto.”105 João de Freitas Branco sugeriu que a ópera de Casa-
vola “é uma brincadeira cénico-musical suficientemente conseguida
para proporcionar um recreativo entretenimento.”106 Werther, de Mas-
senet, voltou a levar aos palcos do Trindade o romantismo exacerbado.
A temporada finalizou com três óperas de Rossini: La Scala di Seta, Cam-
biale de Matrimonio e Adina. Com o maestro Mario Pellegrini a dirigir
a orquestra, Artur Ramos foi o responsável pela encenação. Quase to-
dos os críticos concordaram que das três óperas, só a Cambiale di Ma-
trimonio poderia proporcionar um bom espectáculo.
Entretanto, nas páginas da Vida Mundial, o crítico Mário Vieira de Car-
valho107, numa retrospectiva da temporada da Companhia Portuguesa
de Ópera do Trindade, sistematizou um modelo alternativo ao tipo de
concepção artística que ia decorrendo no Teatro.108 Antes, porém, apon-
tou aquelas que julgava constituírem-se como as principais deficiên-
cias estruturais da organização da FNAT:

a) o ensino da música, além de restrito geográfica e socialmente, não está estrutura-


do com o mínimo de dignidade e eficiência: assim, o recrutamento e formação dos
cantores (dos músicos em geral) processa-se ao acaso da fortuna e das vocações im-
provisadas; b) o magistério de Gino Bechi, exercido “a latere” e em função dos espec-
táculos do Trindade, nunca poderá suprir a ausência de formação de base; c) cantor de
ópera é profissão que não existe no nosso País; os cantores são tratados oficialmente

104. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 18/6/1969, p. 5.


105. “Deixai morrer o que está morto”. Joly Braga Santos, Diário da Manhã, 22/7/1969, p. 4.
106. João de Freitas Branco, O Século, 19/6/1969.
107. Mário Vieira de Carvalho desempenhava as funções de crítico musical no Diário de Lisboa, na Seara Nova e na Vida Mundial.
Defensor de estéticas vanguardistas, era um opositor ao regime, membro do Partido Comunista Português.
108. Mário Vieira de Carvalho, Vida Mundial, n.o 1574, 8/8/1969, p. 58.

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A Ópera do Trindade

como amadores, para os quais a ópera representaria um “hobby”, a amenizar as can-


seiras de uma vida profissional bem diferente; d) o tipo de ópera que se faz no Trin-
dade não serve a educação popular, já pelo tradicionalismo tantas vezes gratuito e
sensaborão do repertório, já pelo público restrito que a ele acorre (menos aberto do
que o Coliseu, embora também menos aristocrático que o do S. Carlos).109

Vieira de Carvalho, não deixando de considerar importante o papel


que o Trindade assumira na carreira dos artistas portugueses, referia
que o “mérito será maior se o reportório se renovar, se a Companhia tra-
dicional se transformar em Companhia experimental, se a problemáti-
ca abordada em cena for, tanto quanto possível, sentida e vivida por uma
plateia de hoje, se o ir ao Teatro da Trindade deixar de ser um hábito pe-
queno-burguês dos vencidos da vida.” Termina afirmando que “a grande
missão da ópera no Trindade ainda é a de colocar na ordem do dia as re-
formas estruturais que se impõem.”110 As reformas que Vieira de Carva-
lho pretendia ver concretizadas no Teatro da Trindade erguiam-se contra
o modelo de ocupação de tempos livres preconizado pela FNAT. Tendo
em conta as finalidades culturais e políticas da organização corporativa, a
organização de um teatro experimental com um reportório que acentuas-
se a função social e política da ópera era uma impossibilidade evidente.
Por outro lado, as reformas no panorama músico-dramático portu-
guês não faziam parte das atribuições do Ministério das Corporações
e da FNAT, aos quais a ópera só interessava como instrumento políti-
co. O que se ia passando no Trindade, em relação à ópera, resumia-se
a um efeito colateral das políticas de ocupação de tempos livres.

9.
O impacte que a actividade operática do Teatro da Trindade represen-
tou para as carreiras de muitos artistas foi reforçado, em 1970, quan-
do o orçamento ordinário do Trindade concedeu uma verba destinada
a descontos para a previdência social. O objectivo da profissionaliza-
ção, definido desde o início por Serra Formigal, estava mais perto. Como

109. Ibidem, p. 58.


110. Ibidem.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

consta da Nota Justificativa do Orçamento Ordinário do Teatro para o ano


de 1970:

Nos “encargos com os artistas” verifica-se uma menor despesa prevista em relação a
1969, apesar de se considerar a contribuição para a Previdência, que não só nos é exi-
gida pela Caixa respectiva, como representa uma decisão de eminente justiça social,
primeira e importante medida no caminho da profissionalização sócio-económica do
cantor lírico português, que assim é iniciada (…)111

O orçamento para 1970 previa a diminuição das récitas totais de


ópera, de 36, em 1969, para 30. Desde que a Companhia Portuguesa de
Ópera da FNAT apresentava espectáculos no Trindade vinha-se assis-
tindo a uma redução progressiva do número de récitas, durante muitos
anos colmatada com um aumento de óperas apresentadas. As contri-
buições externas da FNAT, da JAS, da Gulbenkian e do Instituto de Alta
Cultura, mantinham-se nos mesmos valores absolutos. Serra Formigal
esperava apresentar cinco óperas: La Rondine, de Puccini, na sua pri-
meira audição em Portugal, Fausto, de Gounod, Carmen, de Georges Bizet,
Madame Butterfly, de Puccini e La Domanda di Matrimonio, de Chailly,
que também seria uma primeira audição no nosso país.112 O reportó-
rio, que pela primeira vez não contava com uma ópera nacional, regis-
taria uma alteração: a ópera de Chailly foi substituída pela dupla Rita
e Cavalleria Rusticana.
A célebre ópera de Bizet abriu a época no Trindade. Para a encenar
veio de França o regista Jean-Louis Cassou.113 O encenador francês era
um seguidor atento da experiência do Trindade, chegando mesmo a
escrever dois artigos para a revista francesa Opéra sobre a Companhia
Portuguesa da FNAT. Demonstrando-se um adepto do modelo de ópera
praticado pelo Trindade, sobretudo pelo carácter popular das récitas114,
suportadas por subvenção estatal, Cassou, depois de uma passagem
por Lisboa, em 1968, onde assistira aos primeiros dois espectáculos da

111. Nota Justificativa do Orçamento Ordinário do Teatro da Trindade para o ano de 1970, Arquivo do Teatro da Trindade, p. 2.
112. Ibidem, p. 2.
113. Jean-Louis Cassou fora director do Centre Lyrique Populaire de France e desempenhava, na altura, as funções de ence-
nador.
114. Jean-Louis Cassou, «Le Theatre de la Trindade a Lisbonne: une expérience passionnante de théâtre populaire», Opéra, n.o 69,
Setembro de 1967, pp. 44-45.

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A Ópera do Trindade

temporada de ópera, La Traviata e As Bodas de Fígaro, discordara das so-


luções cénicas dos espectáculos. La Traviata do Trindade caracterizara-
se pela sua estética académica; As Bodas de Fígaro foram demasiado
clássicas: “Nulle invention scénique, nulle recherche dans l’interprétation.”115
A “Carmen” de Cassou, que marcou a estreia aclamada de Isabel Mala-
guerra, não fez os encantos do público. O crítico da Vida Mundial, Car-
los Rego116, apreciou a encenação que caracterizou pela sua contenção,
pouco voltada para grandes expansões e movimentos, porventura a ex-
plicação para o descontentamento dos espectadores.
Se a Carmen apareceu no Trindade mais depurada, a La Rondine, de
Puccini, segundo a crítica, enveredou por caminhos mais complacen-
tes, algo proporcionado pela própria natureza da obra, que os críticos
concebem mais perto da opereta. Carlos Rego, no final da sua aprecia-
ção, interrogou: “Os resultados foram por sua parte, bons, mas deixa-
mos a questão. Teria valido a pena dar vida a uma ópera de qualidade
deveras inferior?”117 De Rita e Cavalleria Rusticana destacou-se a estreia
da cantora Teresa Barbieri. Seguiu-se a La Bohème e o encerramento com
um Fausto, de Gounod, prezado pelos jornais:

A qualidade do espectáculo espantou-nos (…) Para o Trindade, o seu pequeno espa-


ço disponível, as suas limitações de aparelhagem, este Fausto é de craveira notável
(…) Infelizmente acontece no Trindade que uma ópera não resulta por haver um
desnível abismal entre os vários elementos que compõem o elenco, caso da última
Butterfly, por exemplo.118

Finda a temporada, Serra Formigal recebeu uma carta na qual os


cantores do elenco do Teatro de Ópera expressavam um conjunto de
reivindicações. Serra Formigal, como referiam, conhecia-as, e dera o seu
aval à realização de reuniões para os artistas discutirem a sua situação.
O primeiro ponto tratava da questão das remunerações. Argumentavam
que os cachets auferidos eram idênticos aos de 1963, quando do início
das actividades da Companhia. Em 1963/64, foram pagas, no que res-

115. Jean-Louis Cassou, “Comment Nait l’Opéra Portugais de Demain”, Opéra, n.o 78, Julho de 1968, p. 31.
116. Carlos Rego, Vida Mundial, n.o 1614, pp. 62-64.
117. Carlos Rego, O Século, 16/5/1969, p. 11.
118. Carlos Rego, O Século, 15/7/1970, p. 11.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

peita aos papéis principais, dez récitas a 1.500$00 cada, o que perfazia
15.000$00. Em 1965 e 1966, as récitas reduziram-se para oito por ópera,
tendo o pagamento subido para 2.000$00, o que, no total, implicava um
pagamento de 16.000$00. Entre 1967 e 1970 o número de récitas baixou
para seis por ópera, pagas a 2.500$00 a récita, o que totaliza 15.000$00.119
Segundo os cantores, a situação artística da Companhia Portuguesa de
Ópera do Trindade atingira um patamar incompatível com a modéstia
dos primeiros salários, na altura “plenamente aceites porque todos com-
preenderam o objectivo grandioso que V.Exa se propunha realizar e
todos nos orgulhamos de ter dado a colaboração necessária dentro do
melhor que cada pode. (…) Felizmente, o nível dos espectáculos evoluiu
favoràvelmente durante as últimas temporadas e, talvez por isso, todos
sentimos mais exigência, tanto dos críticos como do público.”120
Os artistas reivindicaram, além de alguns pormenores relativos à orga-
nização dos ensaios, o pagamento de 5.000$00 por récita para os papéis
principais, 3.000$00 para os segundos, e 1.500$00 para os pequenos. O
director do Trindade encheu a margem esquerda do original da carta
com pequenos comentários, muitos deles ilegíveis. Parece, no entanto,
tratar-se de um esboço de carta à direcção da FNAT, sustentando as exi-
gências dos cantores. A primeira frase ainda é perceptível: “Os cachets
são, com efeito, muito baixos (…) Desta forma o Trindade não pode ser es-
timulante.”121 O pedido do director do Trindade à direcção da FNAT, não
chegando aos números sugeridos pelos artistas, foi generoso: principais
papéis 4.000$00, segundos 2.400$00 e pequenos 1.200$00.
A afirmação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade no meio
operático nacional, aspiração fundamental do seu director, era incompa-
tível com as remunerações praticadas. Sustentando as reivindicações
salariais dos cantores, Serra Formigal esperava fortalecer a autonomia
de um projecto que continuava a sofrer duras comparações com a re-
alidade do São Carlos.

119. As contas devem, no entanto, ser feitas deste modo. Se as récitas vinham a baixar progressivamente, o número de óperas,
até certa altura, aumentara, o que implicava mais récitas. Por outro lado, nem todos cantores tinham um número de récitas
assegurado, variando a sua intervenção consoante a programação apresentada.
120. Carta dos Artistas Líricos da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade ao director do Teatro, 20/7/1970, Arquivo do
Teatro da Trindade, pasta 1970.
121. Ibidem.

165
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A Ópera do Trindade

10.
A distribuição dos papéis e respectivas remunerações122 para as óperas
a apresentar em 1971 confirmaram a concretização dos aumentos su-
geridos à FNAT por Serra Formigal. Em documento interno que resu-
mia o trabalho realizado até ao ano de 1970, referiu-se à representação
de 400 récitas, em que participaram 360 mil espectadores. A meta se-
guinte era alcançar “o profissionalismo integral dos artistas líricos na-
cionais através da formação de um quadro estável.”123 Tal finalidade só
seria alcançável com um acordo institucional, porque “só pode obter-se
em colaboração com o Ministério da Educação Nacional através do Tea-
tro de S. Carlos, por razões de ordem financeira e por serem as duas
entidades – Teatro da Trindade e Teatro Nacional de S. Carlos – interes-
sadas no sector.”124
Serra Formigal sabia que a continuidade do Trindade estava mais se-
gura se a Companhia Portuguesa de Ópera, como projecto de produ-
ção e de formação, fosse integrada em estruturas estatais relacionadas
com o universo cultural. Esse seria o seu lugar natural, e não no inte-
rior de uma instituição que funcionava sob a alçada do Ministério das
Corporações, a quem cabia a coordenação e pacificação controlada dos
diversos interesses sociais e económicos. Fora das atribuições de um
Ministério como o da Educação, que financiava o São Carlos, a institu-
cionalização de uma estrutura operática era uma realidade complexa.
O “Trindade do futuro” deveria ser valorizado pela sua relevância na es-
fera cultural e não apenas como um instrumento da política social do
país. Na introdução do programa das óperas do Trindade para 1971, Ser-
ra Formigal expressava todas estas tensões:

A fase experimental já lá vai, pode dizer-se. Experimental no sentido de procurar um


caminho e de se analizar as reacções do público. O caminho está encontrado há
muito e o público tem reagido o melhor possível, quer em número quer em entusias-
mo, quer em discernimento, sabendo, geralmente, distinguir as melhores realizações
apresentadas no palco do Teatro da Trindade… Tal discernimento constitui prova
(em relação a alguns sectores) de que a obra empreendida vem dando frutos. Existe

122. Temporada de Ópera de 1971 – Repertório e Elenco, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971.
123. Documento que resume o trabalho realizado no Trindade, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971, p. 2.
124. Ibidem, p. 2.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

já hoje um grupo de melómanos que não saiu, pròpriamente, dos antigos frequen-
tadores do Coliseu nem dos actuais assinantes de S. Carlos. Muito embora uns e
outros se juntem com o novo grupo da rejuvenescida sala do velho Trindade. As noi-
tes de estreia adquiriram até, ao longo destes nove anos, um ar de gala, pois não
raro deparamos com pessoas conhecidas, que fazem parte da assistência elegante
de S. Carlos. Porém, os trabalhadores – mesmo os mais modestos – não perderam
o seu lugar e estão em sua casa. Esta iniciativa da FNAT destina-se a eles, muito es-
pecialmente, mas alargou-se a um público mais vasto, mercê do bom nível conse-
guido em tantos espectáculos.125

As considerações de Formigal coincidiram com a nomeação de João


de Freitas Branco para a direcção do Teatro de São Carlos. O cargo de
director do São Carlos, desempenhado durante décadas por José de Fi-
gueiredo, era uma posição de poder bastante apetecível. A nomeação
de João de Freitas Branco, com parecer negativo da polícia política, sur-
giu no dealbar da chamada “Primavera Marcelista”, momento marca-
do na esfera cultural pelo esforço de José Hermano Saraiva em captar
para os organismos culturais do governo um conjunto de intelectuais
desafectos ao regime. É nessa leva de renovação que é nomeada a Co-
missão de Reforma do Conservatório. A nomeação de João de Freitas
Branco para o São Carlos terá deixado para trás outros concorrentes
possíveis, como Ruy Coelho e José Serra Formigal.
Antes de a nomeação se concretizar, Freitas Branco escreveu, na re-
vista Arte Musical, de Fevereiro de 1970, um resumo da temporada que
acabara de passar. Num panorama geral em que o Festival Gulbenkian
se destacara de todos os outros eventos, foi a situação da ópera em Portu-
gal que lhe mereceu prosa maior. A situação, que apresentava aspectos
inequivocamente positivos, parecia estagnar. O São Carlos mantinha-se
“fiel ao programa-tipo lançado há um quarto de século, com o ulterior
aperfeiçoamento das repetições, no Coliseu, de alguns espectáculos”;
no Trindade, onde se definira “em bases estáveis, uma companhia portu-
guesa de ópera126 (…) a insistência num reportório tradicional estrangei-
ro compreende-se, até certo ponto, porque assegura uma considerável
probabilidade de êxito junto do público.”127 O desequilíbrio na distribui-

125. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1971, p. 3.


126. João de Freitas Branco, Arte Musical, Fevereiro de 1970, p. 115.
127. Ibidem, p. 115.

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A Ópera do Trindade

ção da produção musical levou Freitas Branco a considerar que não exis-
tia “uma autêntica vida musical portuguesa” mas, “em poucos milha-
res de habitantes de Lisboa e Porto, o hábito de assistir a espectáculos
musicais”.128 A democratização musical estava adiada porque “os melho-
res agentes de captação, junto de pessoas desprovidas de qualquer gosto
pela música séria, são o concerto sinfónico e a récita de ópera: precisa-
mente aquele que só por milagre se desloca aonde mais falta está fazen-
do.” A modificação de tal panorama cabia ao Estado, que devia assegurar,
sem qualquer “dirigismo asfixiante”, “os meios eficientes de educação
musical, estendida a todo o País e a todos os graus de ensino, para que
não continue desaproveitado um dos melhores meios de elevação men-
tal e de preenchimento de tempos livres de uma nação”, o que implica-
va “a reorganização do ensino profissional em conservatórios e outras
escolas, para formação de professores, compositores e executantes.”129
No seu quinto número, em Março de 1970, a revista Ópera130 publi-
cou a primeira entrevista131 com o novo director do São Carlos. João de
Freitas Branco pretendia ampliar a actividade do teatro, acrescentando
às temporadas já existentes conjuntos de espectáculos protagonizados
por companhias portuguesas ou estrangeiras. Considerava importante
a criação de uma nova orquestra sinfónica “que fizesse as temporadas
de ópera e de bailado do São Carlos e do Trindade e que, nos restantes
meses, percorresse, em tournée a província.”132 A possibilidade de profis-
sionalizar o coro do São Carlos, para “que os seus elementos possam viver
dessa actividade”133, era outro dos seus objectivos. João de Freitas Bran-
co desejava ainda a criação de uma relação profícua com o Conservatório,
ao qual, afirmou, compete a formação de cantores. O novo director do
São Carlos esperava reformar os reportórios, dando especial atenção às
obras contemporâneas e descentralizando a origem geográfica das ópe-

128. Ibidem, p. 116.


129. Ibidem, p. 116.
130. A revista Ópera nasceu em Novembro de 1969. A sua lógica redactorial insere-se com perfeição nos objectivos de popularização
do género lírico firmados pelo Trindade. Em termos de concepção de espectáculo, nos tempos que decorriam, em que a figura do
encenador ombreava com a do compositor na análise dos espectáculos, a ópera remete-se a uma postura mais tradicional centrada na
figura do cantor. Como dizia o seu articulista Sebastião Cardoso, logo no primeiro número: “Teremos portanto de admitir ser o cantor
o elemento catalisador desta composição heterogénea, não só por se tratar da entidade que dá expressão e conteúdo à representação,
como até por ser ele quem, mercê do talento ou capacidade interpretativa, ou também devido à carência destes predicados, pode
consagrar ou comprometer todo o espectáculo e a obra do autor, seja ela per si medíocre ou excelente.” Ópera, n.o 1, 11/1969, p. 12.
131. Entrevista de João de Freitas Branco a Ferrão Júnior, Ópera n.o 5, Março de 1970, pp. 10-11.
132. Ibidem, p. 10.
133. Ibidem, p. 10.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

ras. As óperas inglesas, por exemplo, as de Henry Purcell e Benjamin


Britten, americanas, com George Gershwin, e as obras de outros países,
como a Checoslováquia, foram algumas das nomeadas para desfazer o
monopólio italiano, francês e alemão, que reinava no São Carlos. No
que respeita às óperas portuguesas, havia que intensificar a sua pre-
sença no São Carlos, desde que a qualidade fosse assegurada. A todas
estas medidas fundamentais há que acrescentar outra de importante
valor simbólico: João de Freitas Branco decidiu abolir a obrigatoriedade
do traje de cerimónia134.
Um mês depois, José Serra Formigal concedeu uma entrevista à mes-
ma revista. A cumplicidade com o projecto de João de Freitas Branco
parecia evidente:

Com efeito gostaria que se considerasse a existência de uma Companhia Portuguesa


de Ópera, cujos elementos pudessem ter contratos anuais ou bi-anuais, que seriam
renovados, segundo o interesse de ambas as partes, passando os cantores a ser
considerados como pertencentes aos dois teatros, que os utilizariam conforme as
necessidades de reportório o exigisse, tanto mais que as respectivas temporadas
não coincidem.135

Criar-se-ia, assim, o enquadramento institucional para o processo


de profissionalização dos cantores que, entretanto, já decorria:

Ambiciono conseguir que, em breve, sejam distribuídas as primeiras carteiras pro-


fissionais de artísticas líricos, pois até agora estes têm sido considerados amadores.
Passam, então, a descontar para a caixa de previdência respectiva, assegurando as-
sim os problemas de reforma. Sobre este assunto já conversei também com o direc-
tor do S. Carlos e sei que ele está igualmente na disposição de envidar os seus
esforços para vir a conseguir benefícios semelhantes para os cantores portugueses
e elementos do coro que pertencem àquele teatro.136

134. Mário Vieira de Carvalho refere as propostas que João de Freitas Branco apresentou na lei orgânica por si elaborada: 1)
Criação de uma companhia residente que actuaria em alternância com companhias estrangeiras; 1.1 – Essa companhia só faria
reportório que pudesse verdadeiramente dominar; 1.2 – Esse reportório deveria consistir em obras cénicas do período
compreeendido entre Monteverdi e Mozart, bem como de autores contemporâneos e portugueses; 2) Criação de uma orquestra
privativa do TSC; 3) Criação de um Departamento de Dramaturgia; 4) Descentralização da actividade do TSC para a província,
onde a companhia residente deveria dar espectáculos regulares; 5) Alargamento da actividade a sectores culturais à margem da
ópera, dos concertos e do bailado, como, por exemplo, colóquios, exposições, etc.; 6) Ligação ao Conservatório, para facultar a
estudantes finalistas estágios na companhia residente ou na orquestra. Mário Vieira de Carvalho, Pensar é Morrer ou o Teatro de
São Carlos na mudança de sistemas sociocomunicativos desde fins do séc. XVIII aos nossos dias”, INCM, Lisboa, 1993, p. 257.
135. Entrevista de Serra Formigal à revista Ópera, Ópera, n.o 6, Abril de 1970, p. 14.
136. Ibidem, p. 14.

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A Ópera do Trindade

Na mesma entrevista, Serra Formigal estimou em 2.300.000$00 o


contributo anual do São Carlos para as temporadas do Trindade.

11.
Pela segunda vez, uma temporada de ópera no Trindade não apresen-
tou nenhuma obra portuguesa. A ausência de obras nacionais, em dois
anos consecutivos, demonstrava o afrouxamento de imposições exte-
riores e um consequente fortalecimento da autonomia do empreendi-
mento. Serra Formigal arriscou apresentar, na abertura da temporada
de 1971, uma obra inesperada: o Orfeo e Eurídice, de Gluck. Procurava-se
continuar a “seguir o critério de enriquecer o reportório da Companhia
Portuguesa de Ópera com algumas obras significativas da dramaturgia
lírica.”137 Quase todos os cronistas, antes de se referirem à representação
do Trindade, detiveram-se sobre a importância histórica da obra. João
Paes, nas páginas d’O Século, referiu que o Orfeo e Eurídice “marcou
uma data padrão na História da ópera, momento de reforma no sentido
de uma reivindicação, para o drama musical, da sua essencial verdade
dramática, algo esquecida então, em benefício de outros aspectos mais
superficiais do espectáculo.”138 Edmundo Oliveira, na Vida Mundial, acen-
tuou a importância paradigmática da obra porque “com ela é desferido
um duro golpe na proverbial prepotência e ‘falso orgulho dos canto-
res’(…) Alteravam, abreviavam, recusavam, impunham, compunham,
punham e dispunham a seu bel-prazer, sem qualquer espécie de consi-
deração por aquilo a que hoje se chama a vontade do autor.”139 A autono-
mia das formas impunha-se pelo emergir da figura do autor, e, na obra
de Gluck, contra a “pomposa roupagem barroca”140, pelo papel da pala-
vra e do libreto como materialidade artística fundamental, porque a
“música faz-se em função da letra, e o cantor em função destas”; depu-
rava-se a obra, acabando com as “cedências a virtuosismos fáceis”, crian-
do-se “uma atmosfera de sabor clássico, solene sem redundâncias,

137. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1971, p. 13.
138. João Paes, O Século, 6/5/1971, p. 11.
139. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1670, 11/6/1971, p. 42
140. Ibidem, p. 42.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

religiosa sem lamechices” em que “os personagens são reduzidos ao


mínimo”, o “coro reencontra o magnífico papel que lhe reservara a tra-
gédia grega”, o “bailado deixa de servir pretextos fúteis para se integrar
na acção” e “tudo tende para o máximo aproveitamento de meios”141.
Gluck é uma figura-chave da história da ópera. A sua arte reflecte a
decadência do absolutismo às mãos dos valores ideológicos do ilumi-
nismo burguês.142 O compositor alemão é ainda uma referência na luta
pela autonomia da criação artística. A ousadia do Trindade ao apresentar
uma obra de tal significado soou, a alguma crítica, como um acto preten-
sioso e algo contraditório. A conquista de uma credibilidade artística
não estava isenta de riscos. Por um lado, existia o perigo do enfraque-
cimento da eficácia social dos espectáculos. Por outro, se alguns críti-
cos não se coibiam de tratar mal o São Carlos, poucos pruridos tinham
em desfazer as aventuras de um pequeno teatro, tolerado por ser ino-
fensivo. A orquestra da Emissora Nacional, que nunca fora bem tratada
pelos especialistas, sofreu reparos consideráveis, extensíveis à direcção
do maestro italiano Sérgio Magnini: “O agrupamento que actua no
Trindade sob a designação de Orquestra de Ópera da Emissora Nacional
está longe de atingir aquela qualidade desejável, sobretudo tratando-se
de uma partitura como a de Gluck, toda ela exigindo transparência so-
nora, plasticidade, euritmia de estilo.”143 O crítico Edmundo Oliveira144
achou inqualificável terem atribuído o papel de Orfeo a uma mulher,
e João Paes145 foi mais contundente, visando sobretudo o trabalho do
encenador Jean-Louis Cassou. Apenas Nuno Barreiros, apesar das várias
considerações negativas, acabou por referir a importância do repertó-
rio mais antigo ter saído das “paragens aristocráticas e aristocratizantes
do S. Carlos”146. Só Ruy Coelho descurou comentários mais apurados,
considerando que tudo esteve bem.147

141. Ibidem, p. 42.


142. Mário Vieira de Carvalho refere que a obra de Gluck exprimia o desejo de abolição de todas as formas líricas que sustentas-
sem, através do seu modelo comunicativo, a estrutura da hierarquia absolutista, e que tornavam a arte um mero pretexto para a
representação de uma pedagogia social. Nesta viragem iluminista, inspirada por Rousseau, a ópera devia ser a expressão das
emoções humanas, gerar a identificação do público com o drama, com a palavra acentuada musicalmente, enfim, com a acção.
Mário Vieira de Carvalho, “Da Ópera à Telenovela”, Razão e Sentimento na Comunicação Musical, Relógio D’Água, Lisboa, 1999,
pp. 47-50.
143. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/7/1971.
144. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1670, 11/6/1971, p. 42.
145. João Paes, O Século, 6/5/1971, p. 11.
146. Nuno Barreiros, Diário de Lisboa, 9/7/1971, p. 4.
147. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 6/5/1971, p. 5.

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A Ópera do Trindade

A Lucia de Lammermoor fez o comboio voltar aos trilhos:

Depois da entrada em falso desta temporada de ópera do teatro da Trindade, que foi
a pretensiosa e sensaborona representação do Orfeo, de Gluck, esta Lucia de Lam-
mermoor veio repor as coisas mais no seu lugar. O espectáculo teve imperfeições, é
certo – outra coisa seria milagre –, mas teve virtudes que conseguiram, ao fim e ao
cabo, prevalecer.148

João Paes fez desfilar os adjectivos que julgava consentâneos com as


tímidas ambições de um teatro de segunda: “honestidade”, “salutar mo-
déstia”, “autenticidade sensível”, “globalmente agradável”. Edmundo
Oliveira ficou surpreendido com a forma como os cantores portugueses
tinham conseguido o “milagre de criar qualquer coisa de muito digno
e apreciável, jogando abertamente com toda a própria soma de qualida-
des e limitações num invulgar testemunho de autenticidade artística e
humana (…) Foi nesta perspectiva que todos os ridículos se diluíram e
se aceitaram de boa mente todas as fraquezas.”149
O Elixir do Amor, O Barbeiro de Sevilha, La Bohème e Andrea Chénier
completaram um reportório dentro do espírito do Trindade, cujo capital
de êxito era reconhecido apenas dentro dos limites do seu lugar peri-
férico na hierarquia da qualidade artística.
Entretanto, Serra Formigal viu reabertas feridas antigas. Entre 1 de
Setembro e 18 de Outubro de 1971, trocou uma série de cartas com
Ruy Coelho.150 Primeiro, informando-o das suas intenções de incluir,
como estava acordado desde 1966, a sua ópera Inês de Castro no repor-
tório do Trindade para a temporada de 1972. A obra seria dirigida, por
compromissos estabelecidos havia muito tempo, pelo maestro Silva
Pereira. Coelho anuiu, pedindo, contudo, onze mil escudos por récita
(num total de seis), relativos a direitos de autor e material. Formigal afir-
mou que não pode dar mais do que três mil escudos, o nível a que tem
pago as óperas estrangeiras. Coelho acedeu. Mais tarde, no entanto,
proporcionou-se à Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade rea-

148. João Paes, O Século, 14/4/1971, p. 12.


149. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, 28/5/1971, p. 59.
150. Troca de cartas entre Serra Formigal e Rui Coelho. 1.a, de Formigal a Coelho, 4/9; 2.a, resposta de Coelho, 8/9; 3.a, resposta
de Formigal, 14/9; 4.a, resposta de Coelho, 16/9; 5.a, carta de Coelho, 6/10; 6.a, resposta de Formigal, 12/10; 7.a, resposta de
Coelho, 18/10. Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

lizar uma representação portuguesa no Teatro de Ópera de Barcelona


– que nunca se chegou a concretizar.151 Formigal ponderou e decidiu
que a Inês de Castro não cumpriria bem a função. Para não sobrepor
ensaios, substituiu a obra de Ruy Coelho por A Vingança da Cigana, ópe-
ra mais trabalhada pela companhia e susceptível de garantir um me-
lhor espectáculo, propondo ao compositor português a transferência
da Inês de Castro para a temporada de 1973. Coelho, ofendido, recusou.
A Vingança da Cigana acabaria por ser a terceira ópera da temporada do
Trindade, apesar dos problemas com as cedências dos seus direitos,
na posse do maestro Filipe de Sousa.152

12.
O reportório apresentado pelo Trindade, num contexto em que a nova
direcção do São Carlos imprimia um cunho modernista à programação
do teatro nacional de ópera, era cada vez mais o alvo preferencial das crí-
ticas efectuadas por especialistas do meio musical erudito. Em Outubro
de 1971, o director do Trindade, na revista Rádio e Televisão153, respondeu
ao conjunto de críticas apontadas por Mário Vieira de Carvalho aos es-
pectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera, por ocasião de um in-
quérito publicado pela mesma revista no dia 14 de Agosto. Vieira de
Carvalho, citado por Formigal, considerou o reportório do Trindade de
um italianismo “comum e rotineiro”, afirmando, ainda, que os “empre-
sários gostam de falar e pensar pelo público e confundem os seus gos-
tos pessoais com o gosto do público. Como são os empresários que têm
nas mãos a forma de fazer chegar ao público determinado tipo de arte,
é deles que depende a formação ou deformação do gosto do público.”154
O director do Trindade, inventariando as óperas que passaram pelo
Teatro, concluiu que das 33 óperas que constituíram o reportório em

151. Já em Julho de 1969, Serra Formigal escrevera ao director Juan Pamias, perguntando-lhe acerca das possibilidades da sua
companhia representar em Barcelona a Condessa Caprichosa, de Marcos de Portugal, para assim “continuar o bom nome deixa-
do pela Serrana”. Na mesma carta, e em jeito de introdução, Formigal informa Pamias da condecoração que recebera do Presi-
dente da República na presença de altas figuras do regime. Carta de Serra Formigal a Juan Pamias, 23/7/1969, Arquivo do Teatro
da Trindade, pasta Correspondência.
152. Carta de Filipe de Sousa a José Serra Formigal, 8/11/1971, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1971.
153. Carta de Serra Formigal à revista Rádio e Televisão, Rádio e Televisão de 2/10/1971, pp. 36-37.
154. Ibidem, p. 36.

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A Ópera do Trindade

nove anos de actividade, onze não eram italianas. Afirmou ainda que
das óperas italianas apresentadas, pelo menos três eram contemporâ-
neas – Amélia al Ballo, de Menotti, Il Gobbo del Califa, de Casavola, e o
Segredo de Susana, de Wolf Ferrari. Das 33 óperas referidas, apenas tre-
ze pertenciam ao reportório italiano tradicional. Por fim, Formigal re-
correu ao Boletim Lírico Internacional, elaborado por Robert Deniau
para os anos de 1969/70, para provar que o quarteto Rossini, Donizet-
ti, Verdi e Puccini obtivera 1600 representações em 76 dos principais
teatros da Europa, número que excluía os italianos, para não suscitar
preferências. Adiantou ainda que, no mesmo universo teatral, Luigi
Dallapicola, Alban Berg, Schönberg e a dupla Weil-Brecht, alguns dos
autores que Vieira de Carvalho considerava como boas hipóteses para
o Trindade, representavam apenas 4 por cento do número de espectá-
culos de ópera conseguidos pelos mestres italianos.
A origem do debate, todavia, não passava tanto pela discussão da na-
cionalidade das óperas, ou da sua datação, embora a tradição operática a
isso convide. As divergências entre Formigal e Vieira de Carvalho assi-
nalavam diferentes concepções de modelo artístico, para além das ób-
vias divergências políticas. A maior parte das óperas não pertencentes
a um património italiano clássico representadas no Trindade integrava-
-se, tendo em conta o que envolvia a sua apresentação no Trindade, num
mesmo modelo de relação entre a produção e a recepção das obras. Foi
o caso das óperas francesas de Massenet, Gounod e Bizet, e mesmo das
portuguesas A Serrana, Condessa Caprichosa ou A Vingança da Cigana.
A argumentação da contemporaneidade também não introduz uma
profunda alteração na comunicação, algo que se aplica aos exemplos
italianos que Formigal adiantou.
Noutro momento, Vieira de Carvalho afirmara que as óperas do Trin-
dade eram apresentadas “dentro de uma concepção tradicional pouco
esclarecida, apagando o significado cultural e ideológico profundo que
essas óperas têm.”155 A resposta de Serra Formigal consistiu na apresen-
tação do comentário sobre La Traviata, presente no programa da Ópera
Nacional de Cuba. O programa cubano caracterizava a obra como um
“ininterrumpido curso de las bellas melodias que Verdi habia escrito, junto

155. Ibidem, p. 37.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

al emocionante impacto de un argumento romántico, basado en auto-sa-


crifício, la querella de los amantes apasionados y su tardia reconciliación.”
Posto isto, perguntou Formigal: “Argumento romântico, belas melodias,
auto-sacrifício, querelas de amantes apaixonados… que dirá a isto o
Dr. Carvalho? Certamente pensará que este Conselho Nacional de Cul-
tura está rotineiro, escapadista e sem temática válida.”156
Os termos em que Mário de Vieira de Carvalho colocara a questão não
eram, no entanto, puramente políticos. Se o modelo de teatro lírico pro-
posto pelo musicólogo era politizado, esta vertente de intervenção não
assentava em qualquer tipo de populismo cultural. A sua tomada de
posições políticas e sociais através da arte era mediada por modelos es-
téticos e formais decorrentes da própria autonomização do campo da
arte.157 Nas fronteiras deste campo, as batalhas políticas travavam-se com
armas que lhe eram inerentes; aos espectadores externos, embora fos-
sem personagens presentes, por não dominarem o código, escapava a
dimensão destas lutas.
O facto de o controlo da produção cultural ser responsável pela forma-
ção, e deformação, do gosto público, não invalida que existam predis-
posições, resultantes das socializações hegemónicas, que conduzem
a uma maior propensão para consumir determinados produtos cul-
turais. Serra Formigal, à imagem de qualquer empresário, explorou,
no Trindade, um património de formas culturais que o público a atin-
gir estava habilitado a reconhecer sem esforço. Grande parte das crí-
ticas ao Trindade feitas por pessoas situadas na oposição ao regime
não reconheciam, acreditando nas possibilidades transformadoras dos
seus modelos de vanguarda, que a “cultura popular” estava bem mais
próxima da concepção do empresariado, e que este fosso que separa
as suas propostas das massas é, em grande medida, o mesmo que se-
para as classes sociais. Neste afeiçoamento ao gosto, necessário tanto
para uma captação pedagógica como a um efeito ideológico baseado
na satisfação, assentou precisamente o êxito considerável da ópera da
FNAT.

156. Ibidem, p. 37.


157. Pense-se na sua predilecção por Bela Bartok, Luigi Nono, Jorge Peixinho e Fernando Lopes-Graça.

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A Ópera do Trindade

13.
As novas condições que estruturavam o campo operático nacional são
essenciais para compreender a informação que Serra Formigal escre-
veu, em 27 de Janeiro de 1972, ao presidente da FNAT.158 O assunto fo-
cava o futuro da Companhia Portuguesa de Ópera. Salientando o papel
fundamental que a organização da FNAT desempenhou no fomento
do género lírico em Portugal, o director do Trindade começou por expor
a importância que o investimento público representava na institucio-
nalização de uma ópera sustentada, que facultava aos variados agentes
envolvidos condições para desenvolver a sua actividade sem percalços
financeiros, à semelhança do que se fazia “na Alemanha, Áustria e Es-
tados da Cortina de Ferro”159. Ao contrário, em Itália, a pátria da ópera,
o género decaía às mãos de “direcções políticas” e “explorações comer-
ciais incompetentes”160.
O trabalho desenvolvido no Trindade, objectivado no número dos
seus espectáculos, pela adesão permanente do público, pela participação
e formação dos artistas, permitia que Formigal encarasse o futuro da
companhia de forma diferente. As relações institucionais entre o Trin-
dade e o São Carlos possibilitavam uma transformação no desenvolvi-
mento da ópera em Portugal:

Parece pois que a Companhia Portuguesa (…) atingiu um grau de desenvolvimento


e profissionalismo que aconselha a que seja revista a sua posição no enquadramen-
to orgânico que lhe deve caber dentro da planificação e sistematização das activida-
des culturais do País. O mesmo pensamento ocorreu, com inteira razão, ao Ilustre
Director do Teatro Nacional de S. Carlos, ao declarar pùblicamente, há dias, preten-
der constituir uma companhia lírica portuguesa para actuar no Teatro Nacional de
S. Carlos.161

João de Freitas Branco terá sugerido, num programa de televisão, a


transposição da companhia que actuava no Trindade para o São Carlos,
preenchendo os meses em que o teatro nacional de ópera não estava

158. Informação de José Serra Formigal ao presidente da FNAT sobre a Companhia Portuguesa de Ópera, Arquivo Serra Formigal.
159. Ibidem, p. 1.
160. Ibidem, p. 1.
161. Ibidem, pp. 2-3.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

ocupado com as temporadas internacionais. Os artistas portugueses


seriam profissionalizados, passando a fazer parte dos quadros do São
Carlos. Serra Formigal explicou, então, que os objectivos perseguidos
com a formação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade reu-
niam, enfim, condições de concretização. Ficou explícito, de certa forma,
o modo instrumental como o director do Trindade utilizou a oportuni-
dade que o Ministério das Corporações e Previdência Social lhe conce-
deu para efectuar um trabalho cultural, justificado institucionalmente
pela sua relevância social, política e ideológica.
Seguem-se, na íntegra, as explicações do director do Trindade:

a) A FNAT só produziu a obra hoje existente no sector, por o S. Carlos não a ter feito
nem estar, ao tempo, interessado em fazê-la pois que sempre pensou que o Teatro Na-
cional de Ópera era e é a instituição própria e o quadro natural para tal actividade se
desenvolver e expandir. Deve notar-se, porém, que a única forma de o público traba-
lhador ter podido assistir, nomeadamente na província, a espectáculos de ópera com
preços muito acessíveis, consistiu na organização da Companhia Portuguesa de Ópe-
ra. b) Desde que a Companhia Portuguesa atingiu grau suficiente de desenvolvimento
e o Teatro Nacional de S. Carlos a julga digna de ser recebida no quadro normal das
suas actividades, o nosso parecer é de que tal será a melhor solução para os artistas lí-
ricos nacionais, por os situar na instituição que, na verdade, lhes pertence, com me-
lhores possibilidades de promoção profissional e imunes de futuras discussões sobre
o seu justo enquadramento orgânico. Tal solução, para a FNAT, constitui, aliás, o me-
lhor galardão para o seu labor de 10 anos neste sector. c) Parece-me, outrossim, im-
portante a posição actual da Direcção do Teatro Nacional de S. Carlos, orientada no
sentido de a Companhia Portuguesa realizar não apenas espectáculos «especiais»
que, quase sempre, não podem dar a verdadeira medida das possibilidades dos canto-
res, mas também e normalmente, “óperas de repertório” embora em temporadas po-
pulares, além das habitualmente realizadas por companhias estrangeiras. d) Tal
procedimento produzirá a almejada e necessária democratização do Teatro como
acontece na generalidade dos teatros da Alemanha, Áustria, França e cortina de ferro.
E a prova em grandes salas está feita quanto à Companhia Portuguesa, nas sucessivas
temporadas no Coliseu do Porto e récitas dadas no congénere de Lisboa: casas sem-
pre cheias e êxito total. O que é preciso é que as récitas sejam cuidadosamente prepa-
radas, o que certamente ainda melhor se conseguirá no Teatro de S. Carlos e que os
preços sejam baratos; o erro consistiria em cobrar o mesmo preço para se ouvir uma
companhia de celebridades internacionais e a Companhia Portuguesa. É uma questão de
senso e realismo. Dado o exposto e após ter ouvido o parecer da Direcção da FNAT que
foi favorável, julga-se que, se o Teatro Nacional de São Carlos obtiver a concordância
superior para dar sequência ao seu plano de incorporação da Companhia Portuguesa

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A Ópera do Trindade

de Ópera, a FNAT deverá deixar de realizar temporadas líricas no Teatro da Trindade, a


partir de 73. Tal solução permitiria à FNAT incrementar a sua actividade no teatro da
Trindade, sobretudo nos sectores do teatro declamado, profissional e amador. (…) O
público da FNAT não seria, outrossim, prejudicado nos seus hábitos de assistência a
espectáculos líricos porquanto, caso se concorde superiormente, a colaboração com o
S. Carlos continuaria, relativamente aos espectáculos populares realizados por este
Teatro com a Companhia Portuguesa, pela aquisição de bilhetes que seriam vendidos
a preço mais baixo aos seus beneficiários, numa acção paralela à que se pratica quanto
aos espectáculos de ópera e ballet no Coliseu dos Recreios. E, planificar-se-iam igual-
mente, fórmulas de comparticipação e colaboração que possibilitassem continuar a le-
var a Ópera à Província.162

De teatro de ópera de segunda, o Trindade passava a exemplo históri-


co edificador. O Teatro de São Carlos, dirigido por João de Freitas Branco,
integraria, segundo Formigal, uma Companhia Portuguesa de Ópera;
iria produzir temporadas populares a preços acessíveis para grupos
sociais afastados do São Carlos, espectáculos que não se quedariam
apenas pela capital.

14.
Aquela que parecia ser a última temporada da Companhia Portuguesa
de Ópera no Trindade começou, ambiciosamente, com A Flauta Mágica,
de Mozart. Ruy Coelho163, não reflectindo nas suas apreciações jorna-
lísticas os problemas que tinha com a direcção do Trindade, rejubilou
com a tradução da ópera alemã para o português, afirmando que era
essencial que a obra lírica fosse entendida pelo público. José Atalaya
afinou pelo mesmo diapasão. As presenças no camarote de Américo
Thomaz e do ministro das Corporações e Previdência Social, Baltazar
Rebelo de Sousa, reforçavam, segundo este maestro, a demanda de uma
arte nacionalista, para a qual era essencial “a difusão da cultura operáti-
ca nas camadas populares através de sucessivas edições, na nossa lín-
gua, das obras-primas do teatro lírico.”164 Atalaya aproveitou a ocasião
para afirmar que se assistiu, naquela noite, a “um bom espectáculo – e

162. Ibidem, pp. 3-5.


163. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 18/5/1972, p. 5.
164. José Atalaya, O Século, 20/5772, p. 8.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

não apenas digno ou válido (como é agora moda dizer-se).”165 Defendeu


ainda o enorme interesse em popularizar a ópera, tornando-a um vec-
tor essencial da cultura popular, pois o “impacto provocado na plateia
que segue uma determinada acção teatral, valorizada e sublimada pela
música (…) faz da ópera um espectáculo tão popular como o teatro de
revista, uma “realidade evidente que não interessa às nossas camadas
de ‘elite’.”166 A tradução de A Flauta Mágica, embora tenha constituído
um momento importante da Companhia Portuguesa de Ópera, mere-
ceu alguns reparos do crítico da Vida Mundial. Edmundo Oliveira167,
reconhecendo que a “delicadeza de uma semelhante operação nem
sempre surte às primeiras tentativas”, apontou problemas “de ordem
vocabular, rítmica, vocálica e conceitual” para explicar um espectácu-
lo menos conseguido.
José Atalaya aproveitou a estreia de A Vingança da Cigana, ópera “fra-
quinha” com um final “extremamente perigoso, porque tende a desli-
zar para a palhaçada”, para insistir na importância dos espectáculos do
Trindade no “sentido de encaminhar para a ópera e a opereta determi-
nadas camadas até aqui obedientes, apenas, à graça, tantas vezes gros-
seira, do mau teatro ligeiro (também há bom teatro ligeiro).”168
A reposição da ópera portuguesa sugeriu a Edmundo Oliveira uma
análise mais larga das temporadas do Trindade.169 Numa apreciação ge-
nérica, concluiu que a situação estagnara. Embora o número de 451
apresentações, de 34 óperas diferentes, fosse aceitável, a lisboetização
dos eventos – “Lisboa absorveu 85,6 por cento dos esforços da FNAT”170 –,
e a contínua permanência das participações artísticas eram sinais de
alarme e reflectiam o problema da falta de renovação dos elencos e da
centralização da actividade operática. Em relação aos cantores, o articu-
lista registou uma dolorosa continuidade, sem o surgimento significa-
tivo de novos talentos.
O cantor espanhol Mário Rodrigo foi o protagonista, ao lado de Eli-
sete Bayan, da Lakmé, de Leo Delibes. A temporada fechou com a ope-

165. Ibidem, p. 8.
166. Ibidem, p. 8.
167. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1722, 9/6/1972, p. 52.
168. José Atalaya, O Século, 17/6/1972, p. 4.
169. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1728, 21/7/1972, p. 49.
170. Ibidem, p. 49.

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A Ópera do Trindade

reta de Franz Lehar, A Viúva Alegre. Edmundo Oliveira, notando, com


algum desdém, a rapidez com que o público esgotou as seis récitas da
opereta, afirmou que valia “a pena dobrar o número de representações
porque o público acorrerá sempre com sofreguidão nunca satisfei-
ta.”171 Observou ainda que, além do sucesso português, a opereta “con-
tinua sendo uma das valentes atracções turísticas da Viena estival dos
nossos dias”, significando isto que a “frivolidade – fraquinho europeu,
ao que parece, não exclusivo do século xviii –” sempre se pagara bem.
Na categoria opereta cabia tudo: “Será que o respeitável instinto público
estará a sugerir um tipo de programação que o não esqueça na satisfa-
ção e respeito pelas suas qualidades básicas? Franz Lehar, com a sua A
Viúva Alegre, estreada em Viena, em 1805, operou um curioso consór-
cio: o do ‘can-can’ com a valsa.”172
A análise de Oliveira, preocupada com o abastardamento do género
lírico, transformado, através da opereta, num serão músico-dramático
ligeiro de baixa qualidade, é contrariada por um Ruy Coelho, conquis-
tado pela ópera para as massas, mesmo se, por aquela, nenhuma lição
de espiritualismo nacionalista ou pedagogia doutrinária se conseguisse
vislumbrar. Os “milhões de direitos de autor” que Franz Lehar arreca-
dara não eram suficientes para pagar “os tesouros do bom humor, da
boa disposição, da graciosidade, da alegria” que “valem muito mais,
não têm preço. O pensamento leal dessa música é simples, claro, não
engana.”173
A defesa da opereta serviu para Ruy Coelho manifestar mais uma vez
o seu antimodernismo militante, reverberando contra os produtos
culturais de pequenos grupos de intelectuais que querem impor ao “po-
vo” a sua forma de ver o mundo, seja do ponto de vista artístico ou, pior
ainda, político ou ético:

A opereta é a linguagem em superfície brilhante. Os dois géneros, nas suas muitas


diferenças, só são irredutíveis por excesso de intelectualismo e excesso de crítica. E
quanto se ouve, como há pouco no teatro da Trindade, esta opereta de Lehar, não se
pergunta porque se gosta – gosta-se, como não se pergunta porque se vive – vive-se.

171. Edmundo Oliveira, Vida Mundial, n.o 1731, 11/8/1972, p. 59.


172. Ibidem, p. 59.
173. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 25/7/1972, p. 5.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

(…) Esses rápidos momentos de simpatia da comunhão de todos – obra, intérpre-


tes, público – estabelecem uma compreensão mais rápida do que infindáveis co-
mentários.174

A apreciação e consumo da arte eram, para Ruy Coelho, idênticos à


apreciação da vida: “não se pergunta porque se gosta – gosta-se, como
se não pergunta porque se vive, vive-se.” Para desgosto de quem espe-
rava da arte uma contribuição para uma nova mentalidade esclarecida,
a lógica enunciada por Coelho tinha um vasto património social para
explorar. Neste contexto, não foram apenas aqueles situados numa
posição política crítica, colocada à esquerda, que perderam, foram tam-
bém todos os que, sem discutir porque se gosta, como se não discute
porque se vive, achavam que a “cultura popular” poderia ser transfor-
mada em algo mais consentâneo com o seu gosto cultivado.

15.
Em Julho de 1972, a direcção da FNAT redigiu um extenso documen-
to que diagnosticava os problemas da organização e apresentava algu-
mas soluções que deveriam ser postas em prática entre 1974 e 1979,
período do quarto Plano de Fomento governamental.
Na rubrica respeitante ao Teatro da Trindade e às suas várias activida-
des, o autor, provavelmente Serra Formigal, acentuou que o objectivo da
FNAT de “programar espectáculos de carácter elevado”, presente desde
a aquisição do Teatro da Trindade em 1962, se mantinha incólume.175 Do
conjunto da programação do Trindade resultara uma grande conquista: a
Companhia Portuguesa de Ópera. Batendo-se com bastantes dificulda-
des, a iniciativa do Trindade prosperara com o tempo, constituindo-se,
na altura, uma realidade inquestionável da ópera em Portugal. O carác-
ter prospectivo do documento indicava que a hipótese de dissolução da
Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, decorrente da sua trans-
ferência para o São Carlos, já não se colocava. O texto destacou, além das
récitas no Trindade, a importante actuação na província, 47 récitas, traba-

174. Ibidem, p. 5.
175. Documento da direcção da FNAT que traça um diagnóstico geral das actividades da Fundação, 1972, Arquivo Serra For-
migal, p. 36.

181
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A Ópera do Trindade

lho pioneiro, que o São Carlos não pudera fazer, dados os enormes encar-
gos financeiros que as companhias estrangeiras acarretavam; “julgamos
ser esta a principal e única razão”, afirmou o autor com alguma ironia.176
Algumas lacunas continuariam a marcar a iniciativa. O documento
aponta duas essenciais: a profissionalização do artista do teatro lírico
e as colaborações orquestrais. A primeira, apesar de estar em vias de re-
solução, obrigava a um desfecho pronto. A contribuição orquestral esta-
va, à época, em vias de se extinguir. A formação da Orquestra Filarmónica
Municipal de Lisboa “roubou” os instrumentistas de arco à Orquestra da
Emissora Nacional. O facto impedia esta de se desdobrar, como até à data
sucedia, numa orquestra de ópera, e participar nos espectáculos do Trin-
dade. Quanto à profissionalização dos artistas de ópera, foram referidos o
aumento das remunerações e a inscrição dos artistas na Caixa de Previ-
dência dos Espectáculos como duas primeiras medidas importantes.
No entanto, era impossível o Trindade encetar o processo ideal, que se-
ria o modelo seguido na “Alemanha, França e Países da Cortina de Fer-
ro”, ou seja, a contratualização anual ou bianual dos artistas, recebendo
estes um vencimento mensal que lhes asseguraria a desejada estabilida-
de. Por manifesta insuficiência financeira do Trindade, tal procedimento
seria executado, como havia sido várias vezes sugerido, em colaboração
com o São Carlos.
Revelaram-se, nesse momento, as razões que obviaram o prossegui-
mento das intenções de Formigal em transportar para São Carlos a
sua companhia de ópera:

Em anteriores conversações com o director do Teatro Nacional de São Carlos, este


manifestou a opinião de que, reflectindo sobre o assunto, considerava um erro grave
o desaparecimento da ópera no Trindade, realização já cimentada e com experimen-
tação para os jovens artistas líricos e revelação de novos valores, em condições mui-
to mais favoráveis do que num teatro com as tradições e o público do Teatro
Nacional de São Carlos.177

João de Freitas Branco concluíra que a solução ideal consistia “na for-
mação de uma Companhia Residente com os melhores elementos por-

176. Ibidem, p. 38.


177. Ibidem, pp. 41-42.

182
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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

tugueses e alguns estrangeiros, que assegure um nível elevado, pois


que, actualmente, o Teatro do Estado apenas dispõe de um coro, sendo
todas as companhias que ali actuam contratadas em regime de empre-
zariado.”178
Apesar da diplomacia, Serra Formigal estava agastado. Embora al-
guns dos seus artistas estivessem em vias de fazer parte de uma com-
panhia residente do São Carlos, todas as outras propostas estruturais,
depois da reflexão de João de Freitas Branco, pareciam ter sofrido um
revés. A divergência entre as duas direcções foi também evidente no que
respeita ao problema com a orquestra. A Câmara de Lisboa, por razões
não avançadas no documento, indispunha-se a ceder a sua nova Or-
questra Filarmónica Municipalizada. A alternativa, sugerida pela pró-
pria Câmara Municipal, seria a criação de uma terceira orquestra para
a ópera no São Carlos e no Trindade, e para três meses de opereta no
São Luís. Acontece que a direcção do Teatro de São Carlos, segundo o
documento atrás citado, “pretende ter a sua orquestra privativa e com
inteira autonomia.”179 Os problemas humanos e materiais típicos de um
meio musical pouco institucionalizado arriscavam-se a ser os agentes
da extinção da ópera no Trindade. No momento em que parecia mais
sustentada, a Companhia Portuguesa de Ópera revelou as fraquezas
do estatuto de parente pobre do meio operático nacional.180
Os objectivos da companhia, apesar dos problemas, foram elaborados
para os seis anos considerados. Quatro pontos marcariam a actividade
até 1979: a) continuação da lógica até então assumida, incrementado o
número de espectáculos cantados em língua portuguesa; b) profissio-
nalização progressiva dos artistas líricos nacionais; c) encomenda de
óperas a autores nacionais; d) incremento da acção na província.181
A obrigatoriedade de a FNAT, em conjugação com o quarto Plano de
Fomento, programar as suas actividades até 1979 parecia garantir que a
Companhia Portuguesa de Ópera, independentemente da questão da
profissionalização dos artistas líricos e da sua hipotética integração nos
quadros do São Carlos, continuaria a sua actividade. No entanto, notava-se

178. Ibidem, pp. 41-42.


179. Ibidem, p. 42.
180. Serra Formigal chegou a afirmar, para efeitos comparativos, que se cada récita do Trindade custava sensivelmente 100.000$00,
no São Carlos a simples presença de uma vedeta internacional implicava o dispêndio de 140.000$00. Ibidem, p. 40.
181. Ibidem, p. 43.

183
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A Ópera do Trindade

a marginalização do projecto por parte dos vários interesses situados no


interior do meio operático. A situação parecia sugerir que se o apoio
estatal, via Ministério das Corporações, por qualquer razão, fosse posto
em causa, o projecto morreria sem qualquer possibilidade de resistência.

16.
Depois de aturadas negociações, foi acordada a colaboração da Or-
questra Filarmónica de Lisboa para a totalidade da temporada. Os eixos
desta colaboração foram firmados numa carta de Serra Formigal182 à
direcção da FNAT, enunciando o acordo entre a Câmara Municipal de
Lisboa, o Teatro de São Luís, e o director da orquestra, o maestro Ivo
Cruz. A organização de um núcleo de ópera inserido na Filarmónica
de Lisboa implicava a contratação de dez músicos de arco, estrangeiros,
e de alguns de sopro, exteriores à Filarmónica. O Trindade pagaria a
importância habitual de 500.000$00, e a Câmara Municipal de Lisboa
suportaria o contrato dos músicos externos à orquestra, num valor es-
timado em 500.000$00. No momento da redacção da carta, o acordo
não tinha ainda existência formal, embora tudo estivesse acertado.
A temporada de 1973 contou com seis obras.183 Na introdução ao pro-
grama dos espectáculos, Serra Formigal denunciava a situação pericli-
tante da ópera do Trindade. A FNAT não tinha competências para dar o
passo essencial, a institucionalização de uma Companhia Portuguesa de
Ópera: “A profissionalização integral e o ensino adequado e completo do
artista lírico são funções do teatro nacional de ópera e das escolas ofi-
ciais de música.”184 O director do Trindade aproveitou para confrontar
João de Freitas Branco com as suas declarações públicas, “escritas e tele-
visionadas”, em que afirmara as suas intenções de reformar o meio ope-
rático nacional, criando uma Companhia Portuguesa de Ópera.

182. Carta de Serra Formigal à direcção da FNAT, intitulada: “Apontamentos sobre as conversações relativas à colaboração da
Orquestra Sinfónica na temporada de ópera popular da FNAT no Teatro da Trindade”, Arquivo do Teatro da Trindade, (sem data),
pasta 1973.
183. Em carta encontrada nos arquivos do Teatro da Trindade, dirigida aos detentores dos direitos da ópera de Modeste Mus-
sorgsky, Boris Godunov, ficava expressa a vontade do director do Trindade de apresentar uma tradução portuguesa desta obra rus-
sa na temporada de 1973. Contudo, o processo nunca se veio a desenvolver. Carta de José Serra Formigal a W. Bessel & Cie.,
23/6/1972, Arquivo do Teatro da Trindade.
184. José Serra Formigal, Programa da Temporada de Ópera da FNAT, 1973, p. 6.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

Ruy Coelho viu a sua ópera em um acto, Rosas de Todo o Ano, ser re-
presentada juntamente com o clássico de Mascagni, Cavalleria Rusti-
cana. Inês de Castro ficou de fora da programação. Massenet ocupou um
terço das representações: Werther, em repetição, e a estreia de Dom Qui-
xote. A Viúva Alegre tentava repetir o sucesso de público conquistado na
época transacta. Acrescentou-se a este conjunto A Sonâmbula, de Bel-
lini, e o espectáculo de estreia, O Matrimónio Secreto, de Domenico Ci-
marrosa. Álvaro Cassuto dirigiu a ópera, que fora estreada em Viena,
em 1792. Ruy Coelho e João Paes, por razões diferentes, consideraram
a escolha acertadíssima. Coelho aludiu à “prudência e sentido práti-
co”185 que o Trindade tem demonstrado na escolha dos reportórios:
“não se tem corrido o risco, tantas vezes inútil, de dar ao público óperas
que sejam charadas ou meras palavras cruzadas.”186 Para o composi-
tor, a obra da FNAT “implanta-se naquele princípio educativo de Gar-
rett, quando disse que a verdadeira educação é a que é eminentemente
nacional.”187 João Paes concordava com a representação da obra de Ci-
marrosa porque era adequada a um Trindade que desistira das ousadias:
“Operazinha notável (…) que pode vir a conquistar mais gente do que
as versões deficientes de obras consagradas, que não se acomodam fa-
cilmente de soluções de compromisso.”188
A representação do Werther, de Massenet, obra que, afirmou o arti-
culista do Diário de Notícias, “contém todos aqueles elementos de ex-
pressividade, de intensidade dramática, de romantismo exacerbado em
que música e drama se casam tão intimamente e se projectam na cena
com a força imanente das coisas irreprimíveis e chegam ao espectador
com todo o seu domínio e convencimento”189, causou forte efeito no
público do Trindade: “O público bem sentiu aquele tão aliciante e su-
gestivo clima de natureza romântica em que a obra vibra, se desenvolve
e afirma, e aquela tonalidade permeável ao sonho e à realidade, ao amor
e ao sofrimento, à vida e à morte que dela se desprende: este um dos
méritos do drama lírico.”190

185. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 1/5/1973, p. 5.


186. Ibidem, p. 5.
187. Ibidem, p. 5.
188. João Paes, O Século, 4/5/1973, p. 4.
189. N. Diário de Notícias, 20/5/1973, p. 5.
190. Ibidem p. 5.

185
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A Ópera do Trindade

A Sonâmbula, de Bellini, com a presença de Américo Thomaz no ca-


marote, acentuou a lógica de continuidade da temporada, que teria no
Dom Quixote, de Massenet, o seu ponto alto. João de Freitas Branco,
que deixara de fazer crítica de ópera desde o momento de chegada à
direcção do São Carlos, abriu uma excepção para comunicar aos leito-
res d’O Século a satisfação proporcionada pelo espectáculo do Trinda-
de.191 A melhor encenação de Bechi com uma extraordinária actuação de
Álvaro Malta. A categoria do espectáculo, comungada pela generalidade
da crítica, serviu para Ruy Coelho acentuar o seu efeito de “regenera-
ção auditiva saudável”, num contexto musical em que havia “demasia-
das poluições musicais que estabelecem demasiados equívocos”, e que
apesar de “enriquecerem a paleta sonora” criaram uma “atmosfera ab-
surda que leva alguns ouvintes a somente acharem genial o incompre-
ensível”. Como exemplo do estado a que chegaram as coisas, Coelho
referiu “a curiosa experiência de dar um concerto em que a orquestra
simulou ler os seus papéis, mas tocando cada executante aquilo que
muito bem quisesse. Não havia, portanto, nem partitura, nem obra,
mas os aplausos do público foram formidáveis. (…) felizmente que
essa espécie de ouvintes, segundo uma estatística recente, é de três
pessoas em relação a um público de seis mil.”192
Ruy Coelho não suportava a ideia de que um espaço tão ordenado e hie-
rárquico como o da orquestra, ou como, noutro âmbito, o da sociedade
portuguesa, se tornasse, de repente, num universo de ruptura com a tra-
dição. O compositor não se inibiu de fazer a crítica à ópera de sua auto-
ria, Rosas de Todo o Ano. As palavras de Coelho, além de um inusitado
auto-elogio193, reflectiam a discussão interna que vinha travando com
Formigal:

A direcção (…) do teatro incluiu assim uma ópera portuguesa, em português, na sua
temporada deste ano, e uma ópera actual, porque quando se eliminam as óperas do
nosso tempo, isso certamente criará o equívoco, o que levará a erradamente se con-
cluir que, em Portugal, nada se criou de novo, tendo-nos que limitar às óperas do

191. João de Freitas Branco, O Século, 27/6/1973, p. 4.


192. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 27/6/1973, p. 17.
193. No final do artigo de Ruy Coelho, depois de o seu nome encerrar a crítica, surge um pequeno parágrafo, não assinado,
dizendo o seguinte: “Antes de começar a Cavalleria Rusticana, o público que encheu o teatro, vendo entrar na sala o maestro Ruy
Coelho, dispensou-lhe aplausos prolongados e entusiásticos, manifestando o franco agrado com que ouviu a sua ópera Rosas de
Todo o Ano.” Diário de Notícias, 13/7/1973, p. 5.

186
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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

passado. Neste caso não verdadeiro, o que deixaríamos como herança espiritual ao
futuro, seria coisa nenhuma.194

A direcção da ópera escapou a Ruy Coelho. O maestro brasileiro Da-


vid Machado assegurou a direcção da orquestra. A encenação esteve a
cargo de Couto Viana, considerado por Ruy Coelho um “encenador sé-
rio, um mestre do teatro, sem recorrer a artifícios inúteis ou falsos.”195
A defesa do “Trindade popular”, pela pena de homens como Ruy Coe-
lho, José Atalaya ou Blanc de Portugal, contrastava cada vez mais com
a crítica mais vanguardista e politizada, bastante cáustica em relação
ao reportório e às encenações do Trindade. A direcção de João de Freitas
Branco conseguiu dinamizar o São Carlos: transformou o seu reportório
e diversificou as encenações.196 Face a este cenário, o Trindade parecia
cada vez mais convencional. A Viúva Alegre fechou a temporada de 1973.
Foi o último espectáculo que decorreu na vigência do Estado Novo. A
temporada de 1974 começou em Maio, já depois da queda do regime.

17.
A situação da ópera em Portugal foi, em Outubro de 1973, alvo de uma
posição política crítica sobre a sua evolução recente. O denominado
Grupo Sócioprofissional de Músicos do Movimento CDE de Lisboa,
Comissão Democrática Eleitoral do Movimento Democrático Portu-
guês, próxima do Partido Comunista Português na clandestinidade,
publicou um opúsculo intitulado Pela Música em Portugal.197 Conside-
rado pelos seus redactores como um documento inédito no meio ar-
tístico português, este pequeno texto procurava unificar a posição dos
músicos perante as transformações que a massificação da arte em

194. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 13/7/1973, p. 5.


195. Ibidem. p. 5.
196. Na direcção de Freitas Branco, Lopes-Graça apresentou no São Carlos a sua ópera D. Duardos e Flérida, estreando-se ainda,
entre outras, Lulu, de Alban Berg, Il Prigioneiro, de Dallapiccola, Médée, de Darius Milhaud, Erwartung, de Schoenberg, The Rake’s
Progress, de Stravinsky, The Turn of the Screw, de Britten, Porgy and Bess, de Gershiwn.
197. O Grupo Socioprofissional dos Músicos da CDE de Lisboa foi constituído a propósito da campanha eleitoral de 1973. Con-
gregava instrumentistas de várias orquestras, membros do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, compositores, cantores
de ópera, coralistas e críticos musicais. Na sua base terá estado uma célula de músicos criada por elementos do PCP. Este documen-
to incluía um prefácio de Fernando Lopes-Graça e um anexo final da autoria de Jorge Peixinho, textos que não estavam assina-
dos. Mário Vieira de Carvalho, “Música erudita”, Fernando Rosas, J.M. Brandão de Brito (org.), Dicionário de História do Estado
Novo, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 653.

187
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A Ópera do Trindade

Portugal impunha nas relações entre compositor, intérprete e público,


no que respeita à música erudita. A posição do grupo relevava a função
social da música no progresso histórico e humano, contrariando todas
as suas apropriações turísticas e empresariais; adoptando uma postu-
ra classista, defendia que a música devia estar ao serviço das massas e
não, como na generalidade do mundo ocidental, tornar-se um instru-
mento das classes dominantes. A utilização da música como produto
industrial comercializado convivia, em Portugal, com a intolerável su-
pressão de liberdades fundamentais, o que acentuava as hierarquias
sociais e, por outro lado, impedia a organização dos profissionais da
música em grupos que defendessem os seus interesses.198
Das considerações gerais sobre a democratização da vida musical
portuguesa foi destacado um caso paradigmático: a ópera. Arte de in-
discutível feição popular, a ópera devia ser democratizada, abolindo-se
“a hierarquia de salas e a hierarquia de qualidade artística em função
das salas e dos públicos”199. O São Carlos carecia de mais subsídios “para
que deixe de ser propriedade privada da alta finança e dos últimos aben-
cerragens da aristocracia e se transforme num verdadeiro teatro nacional,
com a sua companhia de ópera, o seu coro profissional e a sua orques-
tra próprios, irradiando para todo o país, aberto permanentemente a to-
das as classes sociais.”200
O Trindade, por seu turno, consagrava a “distinção entre classes (…)
Neste aspecto o governo é muito coerente: vai ao ponto de gastar muito
mais dinheiro com a “cultura” destinada às classes dominantes (que fre-
quentam o S. Carlos). Ao contrário, as verbas destinadas ao Trindade
saem efectivamente da bolsa dos trabalhadores (via Ministério das Cor-
porações…) e, ao fim e ao cabo, nem sequer revertem em favor da cultu-
ra destes, pois, na generalidade, o público que frequenta aquele teatro é
essencialmente constituído por estratos da pequena burguesia.”201

198. Entre as propostas adiantadas para a alteração do panorama da música em Portugal constavam: a intenção de intervir em todos os
graus de ensino, no sentido de considerar a música como parte de uma formação geral; uma democratização da vida musical, com um
mais justo acesso à carreira musical e a descentralização social e geográfica das actividades musicais; colocação dos media ao serviço da
música; desenvolver o movimento associativo e recreativo popular e expandir o movimento coral. Para melhorar a situação do músico
profissional em Portugal, “um músico de corte numa sociedade burguesa-fascista”, propunha-se uma imediata correcção salarial, me-
lhorias das condições de trabalho, a formação de orquestras autogeridas e autónomas, abolição dos regimes de exclusividade e elabora-
ção de um contrato colectivo de trabalho. Grupo Sócio-Profissional de Músicos do Movimento CDE de Lisboa, Outubro de 1973.
199. Ibidem, p. 12.
200. Ibidem, p. 12.
201. Ibidem, pp. 12-13.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

O diagnóstico terminou com a ideia de que, nas condições antide-


mocráticas prevalecentes, não se justificava a existência de dois teatros
de ópera em Lisboa. O documento tem significado acrescido, devido
aos acontecimentos que transformariam, em breve, o sistema político
português.

18.
Ainda antes do final de 1973, Serra Formigal redigiu uma informa-
ção acerca da profissionalização de um núcleo da Companhia Portu-
guesa de Ópera da FNAT.202 No documento estão traçados os critérios
que presidiram à selecção do conjunto de cantores a ser profissionali-
zado. A informação de Serra Formigal contém, como antecâmara do
assunto fundamental, uma introdução histórica que faz recuar o leitor
180 anos, ao momento da inauguração do Teatro Nacional de São Carlos.
Ao fim de todo este tempo, e onze anos depois da Companhia Portu-
guesa de Ópera da FNAT actuar, consecutivamente, no Teatro da Trin-
dade, foram criadas as condições para uma profissionalização gradual
do artista lírico português:

Com efeito desde os fins do século xviii, pode ver-se na História do Teatro Nacional
de S. Carlos de Fonseca Benevides que, se foram, em número considerável os artistas
portugueses que cantaram no Teatro Nacional de S. Carlos, fazem-no quase sempre
como comprimários, ou então, os muito poucos que desempenharam 1.os papéis, já
tinham geralmente conquistado celebridade no estrangeiro. Depois da reabertura do
Teatro, em 1940, e à parte as óperas portuguesas, sobretudo de Ruy Coelho, interpre-
tadas pelos nossos artistas, o mesmo panorama se depara com poucas variantes.203

O Trindade da FNAT fora, segundo Formigal, na sequência desta


longa permanência histórica, o agente da ruptura; pela primeira vez,
artistas portugueses tiveram a oportunidade de representar com regu-
laridade papéis líricos principais. Deveu-se ainda ao Teatro, mercê das
condições de enquadramento criadas, designadamente o Centro de

202. Informação de Serra Formigal acerca da Profissionalização de um Núcleo da Companhia Portuguesa de Ópera da FNAT, 19/12/1973,
Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1974.
203. Ibidem, p. 1.

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A Ópera do Trindade

Aperfeiçoamento dos Cantores Líricos, o apuro da qualidade dos can-


tores. Os artistas portugueses alcançaram ainda importantes condi-
ções para a estabilização da sua carreira. Faziam parte do Sindicato
Nacional dos Músicos e descontavam para a Caixa de Previdência dos
Profissionais de Espectáculos. Os progressos declarados não supera-
vam, no entanto, a pouca credibilidade artística que largos sectores do
meio operático lhe atribuíam.
Assistiram às apresentações da Companhia Portuguesa de Ópera,
até ao final da temporada de 1973, 470 mil espectadores.204 A consoli-
dação da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade, que muito de-
via à relação que conseguira estabelecer com o público, mantinha-se
bastante frágil. Os problemas com a orquestra pareciam, apesar de tudo,
sanados, dado que o São Carlos estava disposto a ceder ao Trindade uma
formação própria, a ser criada em breve. A profissionalização do coro
do Teatro Nacional de Ópera facilitaria, também, a carreira a vários can-
tores. O Trindade continuaria a exercer o seu papel de etapa de formação
dos talentos líricos, porque só actuando “em teatros de menor respon-
sabilidade para, depois, com o treino, experiência e calo conseguidos, se
poder abalançar a enfrentar públicos mais exigentes que pagam mui-
to caro os seus bilhetes nos teatros de maior projecção.”205
Depois de alguma indefinição, o Trindade assumia o seu paralelo
com os “teatros de Zarzuela” espanhóis, com os “teatros líricos de pro-
víncia” franceses e com as inúmeras companhias residentes que fun-
cionam em países como a Alemanha, Holanda, Finlândia e países de
Leste. O estado da ópera portuguesa, dominado por um único teatro
lírico, “tem constituído um facto naturalmente limitativo para os nos-
sos artistas, com excepção daqueles raros que previamente alcançaram
celebridade internacional.”206 O Trindade conformava-se com o degrau
mais baixo da ópera nacional: “(…) em qualquer país onde o espectá-
culo lírico tenha algum desenvolvimento, é mister pensar que exista
uma pluralidade de teatros de hierarquia artística diferente, de forma
a permitir que os artistas possam fazer realmente carreira.”207

204. Ibidem, p. 3.
205. Ibidem.
206. Ibidem, p. 4.
207. Ibidem.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

A profissionalização dos artistas portugueses garantiria a estabilida-


de de uma dedicação exclusiva, com óbvias repercussões na qualidade
individual dos intérpretes. Restava, então, determinar quem estava em
condições de representar o primeiro conjunto de artistas profissiona-
lizados, sabendo-se de antemão ser impossível que todos os cantores
do Trindade acedessem a essa nova condição. Os critérios de selecção
foram explicitados por Serra Formigal. Alguns cantores, pela sua situa-
ção profissional há muito exercida, e pela idade que apresentavam, fica-
riam de fora do núcleo de profissionais. Encontravam-se neste grupo:
Álvaro Malta, Luís França, João Rosa, Armando Guerreiro, Carlos Fonse-
ca, João Veloso, Manuel Leitão e Vasco Gil. A eles juntavam-se Ana Lagoa
e Zuleika Saque, que, apesar de colaborarem com o Trindade, estavam
radicadas no estrangeiro. O primeiro critério importante era o de excluir
do núcleo inicial aqueles que, por outros modos, tinham meios para
assegurar a sua estabilidade. Posto isto, “deverá ainda ter-se em conta
que só devem profissionalizar-se os elementos verdadeiramente valio-
sos”.208 Este segundo critério, aplicado a quem não tinha sido excluído
pelo primeiro, garantiu a profissionalização às sopranos, Elizette Bayan,
Elsa Saque e Helena Pina Manique; às meio-sopranos, Helena Cláudio
e Maria Ramos; aos tenores, Fernando Serafim, Guilherme Kjölner,
Luís Bruner e João Victor Costa; ao barítono, Hugo Casais.
Os cachets variavam entre os 8.000$00 e os 12.000$00 mensais.
Criou-se ainda a categoria de estagiário. O contrato de profissionalização
constava de cinco pontos principais: a) exclusividade da profissão artís-
tica com absoluta prioridade para a FNAT, embora considerando tam-
bém a carreira global dos artistas; b) prazo de validade contratual de
dois anos, prorrogáveis; c) delimitação de períodos de trabalho diários
ou semanais com vista a uma ocupação plena, mas sem prejuízo da
integridade artística do cantor; d) garantias sociais (situação sindical e
da previdência, férias remuneradas, pagamento de trabalho suple-
mentar em dia de descanso semanal); e) disciplina.209
Perspectivava-se que a natureza da situação contratual dos novos pro-
fissionais – ligação directa ao Trindade e à FNAT – sofresse uma alte-

208. Ibidem, p. 7.
209. Ibidem, p. 9.

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A Ópera do Trindade

ração quando, como tinha sido anunciado, o São Carlos constituísse a


sua companhia residente, na qual seriam integrados, em regime de
parceria com o Trindade, os artistas portugueses. A solução reduziria
as despesas da FNAT com a Companhia Portuguesa de Ópera. A reac-
ção dos artistas profissionalizados às alterações na estruturação das
suas carreiras foi positiva. Ficava patente, todavia, que o número de ar-
tistas profissionalizados deixava muita gente de fora e não fazia prever
a constituição de uma nova Companhia Portuguesa de Ópera.
Em entrevista à revista Autores, de Março/Abril de 1974, o cantor
Fernando Serafim, um dos artistas profissionalizados, referiu-se às im-
portantes mudanças que transformaram as carreiras dos artistas por-
tugueses.210 Segundo Fernando Serafim, sem a acção de Serra Formigal
e da FNAT, os intérpretes portugueses nunca teriam conseguido a
profissionalização. O facto de o número de profissionalizados estar longe
de proporcionar a formação de uma Companhia Portuguesa de Ópera
deveu-se, segundo o cantor, à política cultural inadequada das sucessi-
vas direcções do São Carlos, “mesmo com um director como João de
Freitas Branco”211. Os projectos anunciados pela nova direcção do Tea-
tro Nacional de Ópera, a criação de uma companhia de ópera residente,
com orquestra própria, e a participação activa dos cantores portugueses
em temporadas anuais e espectáculos na província, nunca se chegaram
a realizar. Na sua opinião, exigia-se, no São Carlos, uma ruptura, porque,
“tal como funciona, serve uma elite endinheirada, ultraconservadora,
que não sente a música como fonte de energia, como mensagem de for-
te emoção, mas sim como espectáculo de gozo puramente visual.”212
Do trabalho de Freitas Branco, o cantor reteve dois pontos positivos: aber-
tura das portas do Teatro aos estudantes do Conservatório e abolição
da obrigatoriedade do traje de gala.
A legitimidade cultural do projecto do Trindade deixava a iniciativa
dependente do Ministério das Corporações e Previdência Social. A po-
lítica cultural e educativa do regime garantia apenas a existência de um
Teatro Nacional de Ópera, cujos moldes foram, e continuavam a ser,
condicionados pelas preferências artísticas de grupos sociais restritos,

210. Entrevista de Luís Filipe Pires a Fernando Serafim, Autores, Março/Abril de 1974, n.o 73, pp. 16-17.
211. Ibidem, p. 16.
212. Ibidem, p. 17.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

apesar das suas reconfigurações sociais e actualizações estéticas. Par-


te importante do público de ópera da FNAT era constituído por grupos
sociais com escasso poder reivindicativo junto das instâncias estatais,
nem qualquer representatividade no interior do campo operático. A exis-
tência de uma ópera popular só podia ser assegurada, a prazo, se, por
um lado, se continuasse a considerar a sua acção social importante, no
âmbito de um Ministério como o das Corporações e Previdência Social,
ou, por outro, se a política cultural do Estado assumisse o projecto como
um bem importante para o país, subvencionando-o no quadro de um
Ministério da Educação ou de um futuro Ministério – ou Secretaria de
Estado – da Cultura.
A ópera da FNAT continuaria desde que as condições do seu nascimen-
to se mantivessem: a relação de um ethos artístico, encarnado pela figu-
ra de Serra Formigal, e consubstanciada num conjunto de condições
existentes no campo, com as instâncias corporativas que financiavam
o projecto sob a condição da sua eficácia política e social. Fora deste
contexto, dado que era inviável uma hipotética via comercial, a inicia-
tiva sobreviveria apenas pela acção de um governo disposto a investir
na ópera popular. Perante o Estado e os seus órgãos decisórios, parte
dos consumidores do Trindade não possuía poder reivindicativo. A
ópera popular, fora das relações de poder socialmente situadas, não era
considerada um objecto cultural nobre.

19.
O orçamento213 do Teatro da Trindade relativo ao ano anterior revelara
as mesmas situações de dependência. A expectativa para o volume de
rendimentos próprios era de 350.000$00, o que, num total de receita
prevista de 6.150.000$00 representava 5,69 por cento. A contribuição
da FNAT atingia os 4.500.000$00, aumentando 800.000$00 num
ano, e as restantes receitas dividiam-se pelos 600.000$00 da JAS, os
200.000$00 da Gulbenkian, e os 150.000$00 do Ministério da Educa-
ção. Acrescente-se a estes números 350.000$00 da previsão de receitas

213. Orçamento Ordinário da Receita e Despesa para o ano de 1973, Arquivo do Teatro da Trindade.

193
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A Ópera do Trindade

diversas. Se retirarmos o subsídio da Gulbenkian e o do Ministério da


Educação, todo o restante financiamento é suportado pela máquina
corporativa, o que significa 82,9 por cento do total.
Dos 6.150.000$00 estimados para a despesa, a ópera foi responsá-
vel por 63,3 por cento do total, ou seja 3.897.800$00. A este número
acresceram 1.721.200$00 de custos administrativos, 27,9 por cento
do total. Foram despendidos 481.000$00 em despesas extraordinárias:
as tournées da companhia de ópera. A restante actividade artística ficou-
-se pelos 90.000$00: 50.000$00 para o teatro declamado, concedido,
no momento, à empresa Rey Colaço-Robles Monteiro, e 40.000$00
para os concertos sinfónicos, o que, no total, perfazia 1,46 por cento.
A execução do orçamento revelou a falibilidade das previsões. A
despesa do Teatro chegou aos 7.960.649$10. Os encargos com o coro
e a orquestra aumentaram 1.048.000$00 em relação à época anterior.
O subsídio da FNAT para tournées chegou aos 745.000$00. Os pre-
ços dos bilhetes, que subiram 40 por cento, ajudaram a equilibrar o
orçamento. O Trindade conseguiu ainda, na rubrica receitas diversas,
1.293.000$00. Deste montante, destaca-se o resultante da concessão
do Teatro à Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, 296.294$00, e
o pagamento da Câmara Municipal, respeitante à utilização da Filar-
mónica de Lisboa, 487.191$00.214 A situação geral não oferecia dúvidas:
o Teatro da Trindade, transformado em teatro de ópera, dependia cada vez
mais do Ministério das Corporações. Num contexto em que algumas
actividades da FNAT iam dando lucro, a área da cultura, de que o Trin-
dade era parcela importante, revelava uma persistente dependência.

20.
A revolução de Abril de 1974 implicou mudanças imediatas na direc-
ção da FNAT. Foi nomeada uma comissão administrativa liderada por
Rogério Paulo, conhecido actor de teatro. A organização da temporada de
1974 estava já há muito programada. O secretário do Teatro, Francisco
de Oliveira Santos, escreveu ao director, informando-o das sucessivas

214. Documento que justifica e descreve as Contas do Teatro da Trindade em 1973, Arquivo do Teatro da Trindade.

194
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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

faltas dos artistas e dos atrasos na entrega das folhas de presenças.215


Esta situação, sentida desde 1973, não foi alheia ao incómodo causado
na companhia pela profissionalização de parte dos cantores.
No dia 30 de Abril, o Rigoletto subiu ao palco do Trindade. Ruy Coe-
lho, que continuava a escrever no Diário de Notícias, gostou do espec-
táculo e salientou o prosseguimento da actividade meritória da FNAT.
Notaram-se, porém, algumas transformações no seu discurso. A defesa
dos princípios da nação deu lugar a um prudente apoio “à divulgação
da ópera para o bem da cultura geral, o que é uma acção de civilização.”216
Francine Benoit, que escrevia no semanário Expresso, perdera as con-
templações. A situação política e social acentuava as deficiências do
projecto da Companhia Portuguesa de Ópera:

Entretanto a presente temporada terá de seguir o seu curso – com ou sem interesse
cultural em prosseguir no rame-rame de um pequeno repertório de êxito assegurado,
em que o público perdoa as insuficiências de qualidade, num palco de poucas con-
dições, sob uma orientação que deixa a desejar; e, por último, até se desistiu de
apresentar uma partitura portuguesa.217

As Bodas de Fígaro regressaram pela terceira vez ao palco do Trinda-


de. Nos jornais é difícil vislumbrar análises críticas aos espectáculos.
Em relação à terceira apresentação do ano, a dupla Amelia al Ballo, de
Menotti, e Il Tabarro, de Puccini, Ruy Coelho prosseguiu a apologia da
importância civilizacional da cultura. Depurado de um sentido político
directo, o seu discurso empenhava-se na defesa da cultura, esse “pro-
cesso de educar os ouvintes, um movimento de civilização para todos.
Só não existe cultura artística onde não há elementos preparados tec-
nicamente e esteticamente para a reclinar, e onde o público não sinta
a necessidade de a conhecer (…)”218
Embora a situação política do país tornasse os espectáculos do Trinda-
de num acontecimento marginal, as críticas que saíam demonstravam
que o projecto da FNAT perdera um certo património de legitimação.

215. Carta de Francisco Oliveira Santos ao director do Teatro acerca das folhas de serviço diárias, no que concerne ao período entre
1 e 31 de Maio, 13/6/1974, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta Correspondência.
216. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 31/5/1974, p. 5.
217. Francine Benoit, Expresso, 8/6/1974.
218. Ruy Coelho, Diário de Notícias, 4/7/1974, p. 5.

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A Ópera do Trindade

A queda dos constrangimentos políticos e sociais libertava a palavra.


O que se submetia a uma ordem de análise perdera todo o sentido. Os
pontos positivos da Companhia Portuguesa de Ópera, que foram can-
tados durante doze anos, pareciam insignificantes. A palavra e o racio-
cínio seguiam uma racionalidade contextual.219 Francine Benoit, no
resumo da temporada feito para o Expresso220, afirmou que a tempora-
da lírica popular do Trindade “foi lançada sem nada ter a ver (já o disse-
mos) com a reconstrução do país em que estamos empenhados”. O seu
público, formatado por onze anos de espectáculos “morre por ouvir
Verdi e Puccini – o Rigoletto e a Butterfly em primeira linha, por questão
do acrisolado amor que também lhes dedicam os protagonistas. E, hoje
em dia, ‘parece mal’ não acender uma vela a Mozart no altar operático,
e a um pozinho de modernismo”.
O país precisava de uma Companhia Portuguesa de Ópera, mas tal
companhia “não existe – existe, sim, a Companhia Portuguesa de
Ópera do Teatro da Trindade de Lisboa (FNAT)” que nem “para ope-
reta satisfaria um público que se equiparasse ao nível do público das
salas de cinema. Qual a diferença entre precisar-se de ver bem um écran,
e de ver bem um palco onde ‘se passam coisas’?” Para Francine Benoit,
todo o ambiente do Trindade não era digno da nova situação portu-
guesa, expressando uma falsa cultura; impunha-se, então, a procura
de uma “verdadeira cultura”. A ideia levava ao encerramento da ópe-
ra da FNAT. Eliminava-se a hierarquia operática. No futuro, a cultura
não necessitaria de espaços como o Trindade, já que a democratização
se faria, como indicava o documento publicado pela CDE, pela fas-
quia alta.

21.
O futuro da Companhia Portuguesa de Ópera dependia da natureza
dos objectivos do novo regime e da forma como a transição da política
se reflectiria na FNAT. A função social dos espectáculos, como instru-

219. O período revolucionário é um óptimo objecto de estudo comparativo da evolução das representações, para uma
confrontação estabelecida com a época anterior (como para todo o período posterior até à actualidade).
220. Francine Benoit, Expresso, 17/8/1974.

196
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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

mento de regulação social, preconizada pelo anterior regime, estava,


nos momentos que se seguiram à revolução, desadequada. As institui-
ções que sustentavam e enquadravam o poder político e económico
tornaram-se, com intensidade diferente consoante a sua natureza, ile-
gítimas. Sobrava ao Trindade o património real, conquistado no apoio
aos artistas portugueses, porque mesmo a retórica democratizadora
da ópera para trabalhadores já não colhia perante movimentos que en-
tendiam a democratização cultural como um processo regulado por
parâmetros diferentes.
Outras questões, não menos importantes, congregavam-se para di-
ficultar o futuro do Trindade como teatro de ópera. A economia mun-
dial vivia tempos de crise, marcados pelas consequências recentes do
choque petrolífero. O período de relativa prosperidade, cujos efeitos po-
sitivos em Portugal contribuíram para um sucesso relativo da FNAT,
cessara. O contexto carenciado coexistia com mudanças profundas no
universo das políticas sociais do país, guiadas agora pelo propósito da
criação de instrumentos de justiça social existentes noutras realidades
europeias. Tendo em conta estes novos horizontes, a existência de um
teatro gerido pelo antigo Ministério das Corporações e Previdência So-
cial, com um orçamento preenchido quase na totalidade pelas activida-
des de uma companhia de ópera, era um óbvio anacronismo político e
cultural. Apenas o futuro dos cantores portugueses urgia resolver antes
da inevitável extinção do projecto. Tendo em conta que existiam con-
tratos assinados, a temporada de 1975 ainda se realizou.

22.
Já em 1975, não sabemos em que data, Rogério Paulo escreveu à direc-
ção do Teatro Nacional de São Carlos a seguinte carta:

O INATEL “herdou” da FNAT a Companhia Portuguesa de Ópera, com contratos indivi-


duais firmados até aos finais de 1975. Acontece que a reestruturação do INATEL não
prevê que este organismo seja entidade empresarial, mas sim promotora da criativida-
de das massas operárias e camponesas. Quarenta e poucos espectáculos de Ópera, e o
encerramento da Sala do Teatro da Trindade durante largas semanas, não justificam o
dispêndio de cerca de seis mil contos anuais. Além de que a concessão de verba tão

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A Ópera do Trindade

avultada para uma Companhia de Ópera permanente, impede-nos a atribuição de


quantias substanciais para o incremento da música e sua divulgação junto dos traba-
lhadores. Não podemos ainda esquecer que o Trindade nunca poderá oferecer as condi-
ções técnicas necessárias ao desenvolvimento de uma autêntica companhia de ópera
portuguesa com a formação de quadros, quer artísticos quer técnicos, que a sua exis-
tência justifica. Parece-nos que deverá ser o Teatro Nacional de S. Carlos a entidade a
assumir a manutenção de um conjunto operático Nacional, quer utilizando artistas por-
tugueses em espectáculos maioritariamente estrangeiros, quer – o que nos parece mui-
to mais importante – conservando e desenvolvendo uma Companhia de Ópera
Portuguesa visando a divulgação de autores nacionais e fomentando o aparecimento
de novos valores. Parece-nos, pois, urgente, que o Teatro Nacional de S. Carlos tome
uma posição em relação aos cantores e artistas que ficarão sem trabalho, logo que ca-
ducarem os seus contratos com o INATEL. (…) Pedimos, pois, uma solução urgente
respeitante à situação dos artistas da Companhia Portuguesa de Ópera, de molde a ga-
rantir a sua sobrevivência e a continuidade e melhoramento da própria companhia.221

O destino da Companhia Portuguesa de Ópera estava traçado. De-


pendia, agora, da política do São Carlos e dos objectivos culturais das
instâncias estatais responsáveis, o tipo de transição a realizar.

23.
Ao Trindade chegavam, entretanto, propostas que reflectiam a nova si-
tuação política e cultural. Ainda em 1974, no dia 20 de Novembro, Ro-
gério Paulo autorizou o aluguer do Trindade para a comemoração dos
30 anos da Associação de Amizade Portugal-Albânia222; em Fevereiro
de 1975, foram Luiz Vilas-Boas e Duarte Mendonça que pediram in-
formações quanto à possibilidade do Trindade receber o Cascais Jazz223;
em Junho, foi o Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas
Revolucionárias – que pediu a cedência do espaço para efectuar o seu
congresso.224

221. Carta de Rogério Paulo à direcção do Teatro Nacional de São Carlos, 1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.
222. Carta da Associação de Amizade Portugal Albânia à Comissão Administrativa da FNAT, 20/11/1974, Arquivo do Teatro da
Trindade, pasta 1975.
223. Carta dos promotores do Cascais Jazz à Comissão Administrativa da FNAT, 18/2/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.
224. Carta do Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias ao INATEL, 9/6/1975, Arquivo do Teatro da
Trindade, pasta 1975. Pedido recusado, sob o pretexto de que “o INATEL não cede a sua sala de espectáculos a partidos políticos,
visto a mesma se destinar somente a iniciativas de âmbito cultural.” Carta do INATEL ao Partido Revolucionário do Proletariado
– Brigadas Revolucionárias, 17/6/1975, Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.

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A Companhia Portuguesa de Ópera: As Temporadas

Era necessário, entretanto, organizar a temporada de 1975. Giovanni


Voyer, que dirigia a comissão gestora da Companhia Portuguesa de Ópe-
ra escreveu, em 30 de Janeiro, a João Paes, novo director do Teatro São
Carlos, para combinar a cedência do coro e do ensaiador Mario Pellegri-
ni. Em Abril, depois de uma assembleia geral de cantores realizada no dia
17, Francisco José de Lima de Brito e Cunha foi eleito para substituir o
Maestro Silva Pereira, suspenso da sua actividade na Emissora Nacional
e no INATEL, decorrendo nesse âmbito um processo disciplinar.225
Da temporada de 1975 fizeram parte as óperas Ida e Volta, de Hinde-
mith, o Telefone, de Menotti, e La Cambialle de Matrimonio, de Rossini,
todas integradas no mesmo espectáculo estreado em 17 de Maio. A trans-
formação no reportório serviu de pouco para a credibilização do pro-
jecto. A ópera seguinte foi A Flauta Mágica, estreada a 7 de Julho. Numa
temporada sem qualquer unidade temporal, seguiram-se A Serrana,
em 25 de Outubro, e La Bohème, a 14 de Novembro, ópera que encer-
rou as actividades da Companhia Portuguesa do Trindade.
Com a extinção da Companhia Portuguesa de Ópera, a questão dos
artistas portugueses suscitava um desenlace rápido. A solução encon-
trada, como estava concebido, passou pela integração de um núcleo de
artistas profissionalizados nos quadros do Teatro Nacional de São Carlos.
Nunca se chegou a criar, como em tempos foi pensado, uma Compa-
nhia de Ópera residente. O modelo do São Carlos, variando a sua ofer-
ta cultural consoante a evolução das sensibilidades das suas direcções
e do pequeno público que o acompanhava, continuou, depois da revo-
lução de Abril, a seguir um modelo de funcionamento que, nos seus
eixos essenciais, se manteve inalterado. Depois do 25 de Abril, nenhu-
ma tentativa foi feita para criar, por iniciativa do Estado, um teatro de
ópera com algumas das características presentes nas temporadas do
Trindade. Os seus objectivos sociais implícitos e os constrangimentos
impostos à concepção das temporadas não obviaram a que, numa série
de questões fundamentais, tais como a abrangência social e geográfica
dos espectáculos, e o efeito que tiveram no meio profissional, o Trinda-
de tenha realizado um trabalho pioneiro. Passando a regulação social,

225. Carta da Comissão Gestora da Companhia Portuguesa de Ópera do INATEL à Comissão Administrativa do INATEL, 22/4/1975,
Arquivo do Teatro da Trindade, pasta 1975.

199
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A Ópera do Trindade

em regime democrático, para universos de mediação cultural mais vas-


tos e eficazes, o contexto artístico do Trindade soçobrou por ser o elo
mais fraco de um meio onde as questões de origem e percurso social
continuavam, independentemente do regime político, a ditar as leis.

200
Opera do Trindade.qxp 5/28/07 11:25 AM Page 201

Conclusão

No estudo das temporadas da Companhia Portuguesa de Ópera do Tea-


tro da Trindade, organizadas pela FNAT entre 1963 e 1975, procurámos
desenhar o processo no qual se desenvolveu um conjunto de relações
políticas, institucionais, culturais e artísticas.
Os parâmetros que caracterizaram a concepção do modelo artístico
do Trindade, no modo como se sintetizaram os mecanismos de pro-
dução com as formas de recepção idealizadas, estiveram relacionados
com os objectivos políticos e ideológicos da instituição que criou e su-
portou o projecto. As organizações de ocupação de tempos livres, à se-
melhança de outros mecanismos institucionais, foram instrumentos
activos na mediação entre os interesses do Estado (normalizando as re-
lações sociais num enquadramento moderno da divisão social do tra-
balho) e as necessidades da sociedade civil. Em Portugal, a FNAT, um
dos eixos da política social do Estado Novo, exerceu um efectivo papel
regulador da vida social portuguesa, nomeadamente quando as condi-
ções do quotidiano se mostraram adequadas a essa função. O cresci-
mento material e humano da FNAT, a partir da década de 50, comprova
o seu progressivo envolvimento na sociedade civil. A conotação da
FNAT com um tipo de acção política endoutrinadora, que caracteriza-
ria univocamente as instituições do regime, não permite vislumbrar o
seu carácter moderno. Subavalia-se, então, os efeitos de uma tecnologia
social que penetra a infraestrutura e que, para ser eficaz, não necessita
de ser despótica ou pedagogicamente doutrinária, mas actuar através
das fórmulas, às quais, recuperando as palavras de Quirino Mealha,
“as classes trabalhadoras se mostram mais permeáveis”.
Na área da cultura, a intervenção do Estado no Trindade rompe com
a imagem de uma política central totalmente mobilizada num esforço
de legitimação de uma “cultura popular” de tendência ruralista e nacio-
nalista. A tarefa de “desproletarização” social exigia uma nova concepção
de “cultura popular”, suficientemente atraente para consolidar o esta-
tuto de pequenas burguesias em processo de mobilidade ascendente e

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Luís França e Hugo Casais, O Barbeiro de Sevilha, 1963.

cujas aspirações a estrutura económica não podia satisfazer no que


respeita aos proveitos materiais. A progressiva visibilidade dos canais
de mobilidade social generalizava a aspiração à mudança, aumentando
as expectativas dos indivíduos quanto à sua posição na sociedade. A im-
possibilidade estrutural de satisfazer, materialmente, tais aspirações, con-
duziu a uma política que actuava sobre variáveis simbólicas de status,
procurando, deste modo, neutralizar prováveis frustrações relativas.
A programação que a FNAT, pela mão de Serra Formigal, impôs no
Trindade, além de indicar um reposicionamento da política cultural do
regime face às finalidades da política social, redimensionou a estrutura
do campo operático em Portugal. Estes dois efeitos foram responsáveis
por várias tensões. A reformulação da definição de “cultura popular”
contrariava os insistentes resquícios de uma velha “política do espírito”

202
Opera do Trindade.qxp 5/28/07 11:25 AM Page 203

Conclusão

que se tornava incómoda para a prossecução dos objectivos de uma re-


gulação cultural moderna que se desejava eficiente. A contradição, já
notada a propósito da participação do grupo de bailados Verde-Gaio
nos espectáculos do Trindade, tornou-se paradigmática na polémica que
Serra Formigal manteve com o compositor Ruy Coelho. “O Caso Ruy
Coelho” representa, numa escala reduzida, o choque entre uma concep-
ção nacionalista e endoutrinadora da cultura, que o compositor procu-
rou legitimar na fidelidade que sempre demonstrara em relação ao
regime, e uma iniciativa cultural de regulação social e económica cuja
acção ideológica, fundamentada pela sociologia aplicada da época, era
difusa e não apreensível de forma consciente.
O debate entre Coelho e Formigal permitiu ainda definir a relação
entre propósitos políticos e ideológicos e as formas artísticas que pro-
vavam ser mais eficientes para este exercício. A opção por determinado
reportório de teatro lírico partiu da apetência do público, medida na pul-
sação do mercado, por determinado património músico-teatral clássico:
a tradição da ópera romântica do século xix, designadamente a italia-
na e a francesa. Esta preferência evitava ainda preocupações censórias,
a que outras artes não escaparam, como ficou revelado pelas considera-
ções presentes nas Actas que o Conselho Consultivo do Teatro da Trinda-
de redigiu a propósito da programação teatral. À transformação da ópera
em instrumento da política social do Estado Novo não foi indiferente
a posição que o género ocupava no interior de um campo artístico alar-
gado. A ópera, produto cultural de excepção, além de remetida à capital,
estava restringida ao círculo de relações sociais que gravitavam em tor-
no do Teatro Nacional de São Carlos: espaço de referência representa-
tivo de um estatuto social. A apresentação no Coliseu de algumas récitas
que faziam parte do programa de temporadas do São Carlos possibilitou,
a partir de 1959, alguma “vulgarização” do género lírico. Será possível
vislumbrar, nesta primeira abertura, o mesmo princípio de democra-
tização regulada que caracterizará, quatro anos mais tarde, o Trindade.
A raridade e a solenidade do espectáculo lírico tornavam-no num óbvio
sinal de distinção, garantindo-lhe as características ideais para o exer-
cício de uma política de “desproletarização” assente num projecto glo-
bal de enobrecimento da “cultura popular”. A defesa do direito à cultura
das classes mais desfavorecidas, o apoio aos grupos profissionais de

203
Opera do Trindade.qxp 5/28/07 11:25 AM Page 204

A Ópera do Trindade

artistas portugueses subalternizados pelas políticas oficiais, abriam


ainda importantes frentes numa espécie de “mercado da contestação”,
um espaço em que se tentava retirar de outros movimentos a repre-
sentação dos mais fracos. O Trindade, como espaço aberto a todos, era o
inverso do São Carlos. A injustiça da exclusão dava lugar a uma outra
hierarquia, de desigualdade subtil e dissimulada, que autorizava, pelo
menos, o acesso ao degrau mais baixo da oferta cultural do género.
Independentemente das características políticas que enformavam a
ópera no Trindade, a iniciativa teve um impacte importante no interior
do universo do teatro lírico nacional. Neste processo há que relevar o
papel de Serra Formigal. O director do Trindade, nomeado pelo minis-
tro das Corporações e Previdência Social, Gonçalves Proença, ocupou
o cargo pelos seus atributos políticos, mas também pela sua condição
de elemento integrado em correntes de opinião que se posicionavam
no interior do campo operático. A direcção de um projecto que tinha
requisitos estruturais para a transformação significativa do panorama
da ópera em Portugal transformou Serra Formigal num importante
produtor cultural. A síntese entre a possibilidade de intervenção sobre o
universo cultural e operático e o preenchimento dos objectivos da FNAT
determinou o modo como Serra Formigal discutiu, argumentou e agiu
no interior de determinados eixos de racionalidade que impunham li-
mites aos seus movimentos e intenções.
A luta pela institucionalização de uma Companhia Portuguesa de
Ópera, pela criação de uma dinâmica de produção e formação sólida e
estável, ambicionava, apesar dos limites institucionais, o reconhecimen-
to da iniciativa no interior do campo operático. De forma concreta, o
Trindade criou uma estrutura de oportunidades essencial para a carrei-
ra de uma série de agentes artísticos portugueses e iniciou uma incontes-
tável democratização social e geográfica da ópera, retirando-a do quase
monopólio do São Carlos. Foi evidente, porém, que apesar dos apoios
que a iniciativa recebeu do interior do campo operático, o Trindade, à
luz dos critérios de apreciação dominantes, nunca deixara de ser um
“teatro de segunda”, bastante conservador – em especial, no que respei-
ta à escolha do reportório e ao papel das encenações – quando compa-
rado com o que as vanguardas iam fazendo pelo mundo. A autonomia
do Trindade, suportada política e financeiramente, era muito frágil a

204
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Conclusão

nível simbólico. A única alternativa ao São Carlos que granjeara o res-


peito dos elementos dominantes do campo tinha sido o breve projecto do
Grupo Experimental de Ópera de Câmara, vanguardista, inovador, recor-
dado com apreço. O Trindade não possuía este património simbólico.
Intrinsecamente ligada à política social do regime, a ópera do Trin-
dade sobreviveu pouco tempo ao 25 de Abril. A nova direcção da FNAT,
que continuou as suas funções sob a designação de INATEL, não quis
manter uma actividade operática que preenchia a quase totalidade do
orçamento do Teatro da Trindade. A companhia foi extinta com a justi-
ficação de que ao São Carlos cabia realizar o esforço até aqui produzido
pelo Trindade. A ópera no Trindade caiu sem resistência. A sua subal-
ternidade material e simbólica no campo do teatro lírico reduzia-lhe
objectivamente a legitimidade de sobreviver através de uma iniciativa
de política cultural ou educativa. O Estado considerou que o investimen-
to no São Carlos preenchia a relevância cultural representada pelo géne-
ro lírico. A abolição da contestada hierarquia entre ópera de primeira
e ópera de segunda, em nome de uma outra nova “cultura popular”,
acabou por suspender um mecanismo objectivo de vulgarização do gé-
nero lírico. O público do Trindade não reivindicou a permanência dos
espectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera. O seu consumo cul-
tural, muito provavelmente, terá transitado para espectáculos mais ligei-
ros ou extinguiu-se numa pujança televisiva com outros efeitos sociais.
Não houve, entretanto, qualquer tentativa de recriar uma Companhia
Portuguesa de Ópera.
Depois de treze anos no Trindade, a ópera deixou de ser um agente
da política social do Estado. Neste período de tempo, participou das ac-
tividades de regulação social fomentadas pela FNAT e pelo Ministério
das Corporações. Na esfera cultural, como em outras esferas, realizou-se
uma intervenção estudada, reflexo de uma dominação ideológica subtil
e dissimulada que exprime, no terceiro quartel do século xx, o desenvol-
vimento particular e condicionado da estrutura sócio-económica por-
tuguesa e dos seus mecanismos de enquadramento ideológico.

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Posfácio

Correspondendo ao amável convite do Autor, Mestre Nuno Miguel Ro-


drigues Domingos, alinharei gostosamente algumas considerações, à
guisa de posfácio, sobre a importante obra agora publicada que cons-
titui a sua Dissertação Final de Mestrado em Sociologia.
Pela sua formação académica, pelo objecto deste trabalho sobre a
CPO do Teatro da Trindade (FNAT), logo explicitado no seu título bem
como ainda pela sua destinação, o Autor foca, fundamentalmente, o
evento na sua vertente sociológica, embora a obra contenha também
informação importante sobre os aspectos artísticos a que adiante nos
referiremos.
Além do aprofundado e amplamente documentado trabalho de inves-
tigação realizado, esta obra vale ainda, na minha opinião, pela posição
assumida pelo Autor e mantida em toda a obra, de justo equilíbrio en-
tre os princípios doutrinários enunciados e a realidade concreta que a
investigação revelou.
Na verdade, como refere o Autor, “depois de efectuada uma parcela
importante da pesquisa empírica”, pareceu-lhe que “o universo do estu-
do apresentava particularidades que dificilmente poderiam ser enuncia-
das, em toda a sua especificidade, se reduzidas aos princípios teóricos
que traçámos”. Antes, que “o entendimento do contexto dos espectáculos
de ópera do Trindade organizados pela FNAT obrigava a entrelaçar um
conjunto de relações que não poderiam ser bem compreendidas fora
de um processo quotidiano que progrediu no tempo.” Pelo que “a ex-
plicação da dinâmica desse processo implica que todos os interesses,
individuais, colectivos e institucionais, sejam colocados uns em rela-
ção aos outros.”
E na reconstrução do processo, justifica o Autor a pertinência do méto-
do da construção narrativa pela mesma necessidade sentida de, “não ab-
dicando dos eixos teóricos de análise”, ter entendido que “a explicação da
acção tem uma origem contextual que deve ser considerada na abordagem
dos movimentos dos actores sociais. O intrincado conjunto de relações

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Posfácio

institucionais e de posições individuais que caracterizaram o contexto das


temporadas de ópera no Trindade sugeriram uma construção narrativa.
É possível, assim, estabelecer uma relação, inerente ao contexto investi-
gado, entre a autonomia relativa da acção individual e as fronteiras estru-
turais e conjunturais responsáveis pelos limites dessa autonomia.”
E parece-me que o Autor conseguiu sempre o seu desiderato confes-
sado de, como explicita, “evitar, deste modo, que os quadros teóricos
violentassem parcelas do fenómeno social estudado que só podem
ser devidamente explicadas a partir de uma compreensão dos contor-
nos da acção de alguns actores sociais.”
Pela minha parte, confesso-me como o autor social planificador e or-
ganizador de toda a acção da CPO, desde a apresentação da informação
inicial à tutela até à elaboração da programação das temporadas líricas
de 1963 a 1974, inclusive, compreendendo as récitas no Trindade e em
descentralização, no mesmo período, quer na província, Madeira, Aço-
res e Angola, quer no estrangeiro (Barcelona).
Confesso-me ainda como tendo exercido as funções de director ar-
tístico da Companhia, designadamente, escolhendo os reportórios, os
elencos e elaborando os calendários das óperas apresentadas.
Coisa diferente é a consideração do mérito artístico que terá merecido
a CPO, o qual resultou, obviamente, do trabalho individual e colectivo
de todos os seus elementos: maestros directores e repetidores, mes-
tres de canto e cena, encenadores, maquetistas, cenógrafos, figurinistas,
técnicos de cena, além, naturalmente, dos cantores líricos que consti-
tuem o cerne de qualquer companhia de ópera.
Devo ainda deixar claro que não fui sujeito a quaisquer constrições
por parte da direcção da FNAT ou da tutela pois que os programas de
actividades e os orçamentos que elaborei foram sempre aprovados bem
como os respectivos relatórios e contas, sem quaisquer restrições.
Nem sequer a minha acção concreta pontual foi alguma vez interfe-
rida pela Direcção da FNAT, cujo Presidente de então, o Dr. Bento Par-
reira do Amaral, aqui lembro com saudade, pelo apoio constante e
grande amizade com que sempre me honrou.
Já quanto às fronteiras estruturais e conjunturais exteriores, o livro
dá conta de alguns dos limites postos à acção individual, embora deva
reconhecer que foram conseguidas as indispensáveis colaborações,

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A Ópera do Trindade

sobretudo do Teatro Nacional de São Carlos e da Rádio Difusão Portu-


guesa, então denominada Emissora Nacional.
Os objectivos da CPO encontram-se expressos nas informações de
serviço que subscrevi, algumas delas referidas neste livro, as quais se
consubstanciaram em duas perspectivas, aliás, interdependentes, na-
turalmente, dentro das possibilidades financeiras e artísticas existentes:
democratizar o espectáculo lírico, facultando o seu acesso às classes
sociais menos possidentes, tanto em Lisboa como em acções de des-
centralização, com uma política de preços adequada a tal fim, e desen-
volver, a título permanente e sistemático, acções de formação e treino
profissional que permitissem não só a boa preparação das récitas das
temporadas e o aperfeiçoamento dos cantores líricos já existentes, mas
também que possibilitassem, como se verificou, a eclosão de novos va-
lores.
Para a concretização da segunda perspectiva, acima referida, foi fun-
damental o valioso e permanente trabalho do Centro de Preparação e
Aperfeiçoamento de Artistas Líricos, que funcionou no Trindade, de 1963
até, pelo menos, 1974, inclusive, o qual foi sucessivamente dirigido
por Tomaz Alcaide e Gino Bechi e que recebeu ainda as colaborações
essenciais dos maestros Mário Pellegrini e Carlos Pasquale, Judith Lupi
Freire, Giovani Voyer, Maria Antónia Saldanha de Azevedo e Jaime Sil-
va (filho).
O livro que agora se publica dá conta da medida em que os objecti-
vos enunciados para a CPO foram conseguidos até à sua extinção pela
direcção da FNAT, então presidida pelo actor Rogério Paulo, em 1975.
Além da fidelização do público durante toda a duração da CPO, que
justamente sublinha, o Autor refere ainda que “de forma concreta, o
Trindade criou uma estrutura de oportunidades, essencial para a car-
reira de uma série de agentes artísticos portugueses e iniciou uma in-
contestável democratização social e geográfica da ópera, retirando-a do
quase monopólio do São Carlos.”
Parece, assim, que os objectivos sociais que acima enunciei foram
razoavelmente conseguidos pela CPO, enquanto as circunstâncias ex-
teriores lhe permitiram viver.
E, como muito justa e lucidamente também acentua o Autor, “o con-
texto artístico do Trindade soçobrou por ser o elo mais fraco de um meio

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Posfácio

artístico em que as questões de origem e percurso social continuavam,


independentemente do regime político, a ditar leis.”
Deste modo, afigura-se-me clara a conclusão de que, ao nível da ópera,
a alteração do sistema político, pesem embora as expectativas enuncia-
das, acabou por extinguir uma prática democratizante, fazendo pros-
seguir, sob outros moldes, uma cultura lírica de elite.
Sob o ponto de vista artístico, penso que a informação constante desta
obra, embora importante, dá uma imagem algo desfocada do mérito
alcançado pela CPO.
Deve-se, talvez, esta circunstância à insistência na transcrição de
críticas de Ruy Coelho, em detrimento de citações de críticos não afec-
tos ao regime político de então, com lugar justamente proeminente na
cultura musical, e não só, como eram, designadamente, os casos de
João de Freitas Branco, Blanc de Portugal e José João Cochofel.
Estas personalidades, além de outras, igualmente de grande relevo na
crítica musical, como Maria Helena Freitas, Nuno Barreiros, António
Vitorino de Almeida, Manuela Araújo, sempre reconheceram o méri-
to artístico crescente da CPO, não se podendo alegar, a seu respeito,
quaisquer considerações de apoio político.
Neste contexto, considero importante e significativo transcrever um
passo da crítica de Cochofel – personalidade que, aliás, nunca tive o
prazer de conhecer pessoalmente – datada de 29 de Junho de 1968, no
Jornal do Comércio, em que afirma “(…) mas ainda bem que não perdi
estas Bodas de Fígaro, que constituíram um grande triunfo para o gru-
po que parece hesitar ainda em adoptar definitivamente a designação
de Companhia Nacional de Ópera, a que, em seis anos de porfiado es-
forço, ganhou incontestavelmente jus.”
Também o Prof. Doutor Mário Vieira de Carvalho, hoje ilustre cate-
drático e, nesse tempo, jovem crítico musical e um dos importantes
interventores na querela a que o próximo parágrafo se refere, reconhe-
ceu amplamente o mérito artístico da CPO na crítica que fez à récita
de O Barbeiro de Sevilha, realizada em 31 de Agosto de 1968, no âmbi-
to do Festival de Sintra desse ano.
A querela sobre a CPO veio, afinal, não do seu desempenho artísti-
co, regra geral digno e muitas vezes brilhante, na sua dupla dimensão
musico-dramática, mas, antes, dos reportórios que, a certa altura do

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A Ópera do Trindade

percurso, alguns jovens críticos vanguardistas consideraram de um


“italianismo comum e rotineiro”, reportórios pelos quais, repito, fui,
exclusivamente, o responsável.
No entanto, reincido em não concordar com os epítetos acusados ao re-
portório italiano quando ele era constituído, na sua quase totalidade, por
obras-primas de nomes indiscutíveis da literatura operática – Verdi, Puc-
cini, Rossini, Bellini e Donizetti –, as quais persistem nos cartazes de to-
dos os teatros líricos, após mais de cem anos de existência, as de Puccini,
e mais de 150 anos, as dos restantes compositores citados, além de que
continua também a sua incessante gravação em áudio e em vídeo.
E continuo a reincidir, também, na opinião de que a preferência dada
a tal reportório, aliás, não exclusivo, foi adequada não só por ajudar a
consolidação da técnica vocal dos cantores, dada a exigência do canto
legato que impõe, aliada à vocalidade da língua italiana, como ainda
por razões sociológicas, tendo em atenção o público a que se dirigia e
que se pretendia conquistar e fidelizar, geralmente não iniciado no es-
pectáculo lírico nem nas modernas linguagens musicais do século xx.
Quanto a estas últimas razões, certamente da maior importância,
melhor e com maior autoridade se exprime o Autor da obra, uma vez
mais em coerência com o rumo que se propôs, de justo equilíbrio en-
tre os modelos teóricos e as soluções concretas, tendo em atenção as
circunstâncias do caso.
Termino, pois, com a seguinte citação do Autor, sobre a querela dos
reportórios da CPO: “o facto de o controlo da produção cultural ser res-
ponsável pela formação, e deformação, do gosto do público, não invali-
da que existam predisposições, resultantes das socializações hegemónicas,
que conduzem a uma maior propensão para consumir determinados
produtos culturais. Serra Formigal, à imagem de qualquer empresário
comercial, explorou, no Trindade, um património de formas culturais
que o público a atingir estava habilitado a reconhecer sem esforço. Gran-
de parte das críticas ao Trindade, feitas por pessoas situadas na oposição
ao regime, não reconheciam, acreditando nas possibilidades transfor-
madoras dos seus modelos de vanguarda, que a “cultura popular” esta-
va bem mais próxima da concepção do empresariado, e que este fosso
que separa as suas propostas das massas é, em grande medida, o mesmo
que separa as classes sociais. Neste afeiçoamento ao gosto, necessário

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Posfácio

tanto para uma captação pedagógica como para um efeito ideológico ba-
seado na satisfação, assentou, precisamente, o êxito considerável da
ópera da FNAT.”
Entre as várias questões a exigirem reflexão que a riqueza deste tra-
balho suscita, parece-me irrecusável a seguinte: partindo do princípio
de que é socialmente importante a democratização da ópera, de forma
a constituir um serviço cultural regular ao dispor da generalidade da po-
pulação, e tendo em atenção as condições concretas do país que somos
e temos, quais os meios e processos a implementar para, de uma for-
ma adequada e realista, se atingir esta finalidade?

José Manuel Serra Formigal

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Anexo

Espectáculos da Companhia Portuguesa de Ópera do Teatro da Trinda-


de de 1963 a 1975

Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias

1963 . . . .Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio


A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Maio
La Bohème, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .27 de Junho
Canção de Amor, de Franz Schubert (1797-1828) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Julho
1964 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Maio
L’Amico Fritz, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Maio
La Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Junho
La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1 de Julho
A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Julho
1965 . . . .Tosca, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 de Abril

La Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Maio


Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Junho
L’Elisir d’Amore, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho
Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho
Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho
A Condessa Caprichosa (La Donna di Génio Volubile),
de Marcos Portugal (1762-1830) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 de Julho

1966 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Maio

Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 de Maio


Faust, de Charles Gounod (1818-1893) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Junho
Inês Pereira, de Ruy Coelho (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 de Julho
Rita, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho
Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho
1967 . . . .Tosca, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .28 de Abril
Don Pasquale, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio
Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 de Maio
La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Junho

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Anexo

Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias

A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho


Werther, de Jules Emile Massenet (1842-1912) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Julho
1968 . . . .La Sonnambula, de Vincenzo Belini (1801-1835) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Maio
Pagliacci, de Ruggero Leoncavallo (1857-1919) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio
Il Segreto di Susanna, de Ermanno Wolf- Ferrari (1876-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio
Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Junho
Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . .24 de Junho
Manon Lescaut, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho
Variedades de Proteu, de António Teixeira (1707-1769) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26 de Julho
1969 . . . .Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .1 de Maio

Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . . . .7 de Maio


A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 de Junho
Amélia al Ballo, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho
Il Gobbo del Callifo, de Franco Casavola (1891-1955) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Junho
Werther, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Julho
La Cambiale di Matrimonio, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho
Scala di Seta, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho
Adina, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Julho
1970 . . . .Carmen, de Georges Bizet (1838-1875) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2 de Maio
La Rondine, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .15 de Maio
Rita, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Junho
Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Junho
Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .6 de Julho
Faust, de Charles Gounod (1818-1893) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Julho
1971 . . . .Orfeo ed Euridice, de Christoph Willibald Gluck (1714-1787) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .5 de Maio

Lucia di Lammermoor, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .13 de Maio


L’Elisir d’Amore, de Gaetano Donizetti (1797-1848) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .31 de Maio
Andrea Chenier, de Umberto Giordano (1867-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Junho
Il Barbieri di Siviglia, de Gioacchino Rossini (1792 - 1868) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30 de Junho
La Bohème, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 de Julho
1972 . . . .A Flauta Mágica (Die Zauberflote), de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . .17 de Maio

Traviata, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .20 de Maio


A Vingança da Cigana, de António Leal Moreira (1758-1819) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Junho
Lakmé, de Leo Delibes (1836-1891) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .8 de Julho
Viúva Alegre (Die lustige Witwe), de Franz Léhar (1870-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24 de Julho

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A Ópera do Trindade

Ano . . . . .Obras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Estreias

1973 . . . .Il Matrimonio Segreto, de Domenico Cimarosa (1749-1801) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30 de Abril

Werther, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .18 de Maio


La Sonnambula, de Vicenzo Belini (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2 de Junho
Don Quichotte, de Jules Emile Massenet (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 de Junho
Cavalleria Rusticana, de Pietro Mascagni (1863-1945) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Julho
Rosas de Todo o Ano, de Ruy Coelho (1892-1986) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12 de Julho
Viúva Alegre (Die lustige Witwe), de Franz Léhar (1870-1948) . . . . . . . . . . . . . . . . . . .21 de Julho
1974 . . . .Rigoletto, de Giuseppe Verdi (1813-1901) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .29 de Maio

Le Nozze di Figaro, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . . . . . . . . . . . . .11 de Junho


Amélia al Ballo, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho
Il Tabarro, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .3 de Julho
Madama Butterfly, de Giacomo Puccini (1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .22 de Julho
O Conde de Luxemburgo (Der Graf von Luxemburg), de Franz Léhar (1870-1948) . .9 de Agosto
1975 . . . .Ida e Volta, de Paul Hindemith (1895-1963) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio
The Telephone, de Gian Carlo Menotti (1901-2007) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio
La Cambiale di Matrimonio, de Gioacchino Rossini (1792-1868) . . . . . . . . . . . . . . . .17 de Maio
A Flauta Mágica (Die Zauberflote), de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) . . . . .7 de Julho
A Serrana, de Alfredo Keil (1850-1907) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .25 de Outubro
La Bohème, de Giacomo Puccini(1858-1924) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .14 de Novembro

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Fontes

Arquivos
Arquivo do Teatro da Trindade
> Pastas relativas aos anos de actividade da Companhia Portuguesa de Ópera (1963-1975).
Arquivo do INATEL
> Livros de Actas da Comissão Administrativa/Direcção da FNAT (1958-1975).
> Relatórios e Contas da Direcção da FNAT (1958-1975).
Arquivo do Ministério do Trabalho e da Solidariedade
> Pastas 313, 314, 315.
Arquivo do Museu do Teatro

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Legislação
Decreto-Lei n.o 34.446 de 17 Março de 1945 (regulamentação dos refeitórios).
Decreto-Lei n.o 37 836 de 24 de Maio de 1950 (estatutos da FNAT).
Decreto-Lei n.o 43.777 de 3 de Julho de 1961 (referente às apostas mútuas).
Decreto-Lei n.o 44 734 de 27 de Novembro de1962 (criação do lugar de novo vice-presidente
da FNAT).
Decreto-Lei n.o 46 649 de 17 de Novembro de 1965 (criação do lugar de novo vice-presidente
da FNAT).

Publicações Oficiais
Diário da Assembleia Nacional
Diário da República

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A Ópera no Trindade

Acervos Privados
José Manuel Serra Formigal

Entrevistas (realizadas em 2000 e 2001)


Álvaro Malta (cantor)
Artur Ramos (cantor)
Carlos Fonseca (cantor)
Celeste Martins (bilheteira do Teatro da Trindade)
Elizete Bayan (cantora)
Elsa Saque (cantora)
Fernando Serafim (cantor)
Filipe de Sousa (maestro)
José Serra Formigal (director da Companhia Portuguesa de Ópera do Trindade)
Silva Dionísio (maestro)

Revistas, Jornais de Boletins


Arte Musical, 1955-1975
Boletim do Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (1958-1974)
Brotéria, 1959-1975
Colóquio Artes, 1959-1975
Diário da Manhã, 1959-1975
Diário de Lisboa, 1959-1975
Diário de Notícias, 1959-1975
Gazeta Musical, 1955-1957
O Século, 1959-1975
O Tempo e o Modo, 1962-1975
Ópera, 1967-1969
Revista do Gabinete de Estudos Corporativos (1958-1974)
Rumo, 1959-1975
Seara Nova, 1959-1975
Vértice, 1959-1975
Vida Mundial, 1959-1973

Bibliografia
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Índice Remissivo

A C
Academia de Amadores de Música, ........134 Cabral, Fernando, ............................126, 136
Acordo Monetário Europeu, .....................65 Câmara Municipal de Lisboa, ..183, 184, 194
Alcaide, Tomás, ..................................87, 98, Campos, Raul, ...........................................95
122, 123, 126, 128, 129, 130, 138, 139, 143, 153 Cândido, António, ....................................60
Alemanha nacional-socialista, ...................... Cardoso, José Pires, ...................................63
................................13, 43, 44, 45, 46, 47, 50 Carvalho, Mário Vieira de, ................91, 92,
Almeida, Maria Teresa de, .........24, 98, 102 105, 124, 161, 162, 169, 171, 173, 174, 175, 187
Amaral, Bento Parreira do, .........67, 80, 94 Casais, Hugo, .................................................
Angola, viagem a, ....................147, 148, 149 ...............24, 98, 102, 118, 132, 142, 191, 202
Araújo, Maria Manuela, ..........................102 Casas do Povo, ..........53, 59, 60, 64, 65, 69
Argerich, Martha, ....................................158 Casas dos Pescadores, ........................65, 69
arte nacionalista, ................91, 105, 146, 178 Casavola, Franco, ..............................161, 174
Ary dos Santos, José Carlos, ...................139 Cassou, Jean-Louis, ..................163, 164, 171
Atalaya, José, .....................135, 178, 179, 187 Cassuto, Álvaro, ...........................24, 25, 185
Castro, Maria Cristina de, .......................102
B Centro de Alegria no Trabalho, ....................
bailado, .........................................82, 83, 84, ....................................24, 62, 64, 69, 70, 71
88, 89, 93, 103, 118, 125, 136, 168, 169, 171 Centro de Avviamento do Teatro Massimo
Banco Mundial, ........................................66 de Palermo, ...............................................153
Baptista, Luís V., ........................................34 Centro de Estudos Corporativos da União
Barbieri, Teresa, ......................................164 Nacional, .....................................................51
Barbosa, Vasco, ........................................102 Centro de Preparação e Aperfeiçoamento de
Barcelona, viagem a, ..................82, 144, 173 Artistas Líricos, ........................................128
Barreiros, Nuno, ................153, 155, 160, 171 Centro de Recreio Popular, ....24, 64, 69, 70
Bayan, Elisete, ..........................150, 179, 191 Centro Português de Bailado, .................136
Bechi, Gino, ....142, 143, 149, 153, 159, 161, 186 Chailly, Luciano, .......................................158
bel canto, ...........................123, 138, 141, 146 Cimarrosa, Domenico, ............................185
Bellini, Vincenzo, ......141, 146, 153, 185, 186 cinema, ...................................20, 21, 48, 52,
Benamor, Álvaro, ..............126, 135, 143, 159 77, 80, 81, 82, 83, 88, 89, 120, 122, 125, 196
Benoit, Francine, ........................................... Cinemas
.....134, 136, 137, 143, 147, 149, 150, 195, 196 > Chiado Terrasse, .....................................19
Berg, Alban, ........................22, 158, 174, 187 > Olimpia, ..................................................24
Bizet, Georges, .................................163, 174 > Roma, ......................................................24
Boletim da FNAT Alegria no Trabalho, ....... > São Luiz, ..................................18, 183, 184
...........................................47, 56, 60, 61, 64 Claudio Abbado, .......................................158
Boletim Lírico Internacional, .................174 Cláudio, Helena, ......................................191
Botelho, Afonso, ................................113, 115 Cochofel, João José, ..................118, 126, 127
Boudon, Raymond, ....................................34 Coelho, Ruy, ..........16, 22, 86, 91, 104, 105,
Bourdieu, Pierre, ............112, 15, 30, 41, 124 106, 107, 108, 109, 110, 133, 135, 136, 141, 145,
Branco, João de Freitas, ................................ 146, 147, 154, 155, 156, 160, 161, 167, 171, 172,
...............22, 23, 84, 91, 102, 121, 128, 134, 135, 173, 178, 180, 181, 185, 186, 187, 189, 195, 203
139, 140, 143, 149, 155, 156, 157, 158, 161, 167, Coliseu do Porto, ......................................177
168, 169, 176, 178, 182, 183, 184, 186, 187, 192 Coliseu dos Recreios, ...................21, 85, 90,
Branco, Luiz de Freitas, ....................91, 105 99, 101, 109, 117, 148, 158, 162, 167, 178, 203
Branco, Pedro de Freitas, ..........................82 Como, Franca, .........................................149
Brecht, Bertolt, ...................114, 117, 145, 174 Companhia Portuguesa de Bailado, ........84
Britten, Benjamin, ....................22, 169, 187 Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, ...
Bruner, Luís, ............................................191 ...................................................................194

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A Ópera do Trindade

concertos musicais, ......................21, 82, 83, Festival Gulbenkian de Música, 23, 158, 167
84, 88, 89, 90, 102, 103, 136, 159, 169, 194 Figueiredo, José de, ...........................91, 167
Conselho Consultivo do Teatro da Trindade, Filho, Jaime Silva, ....................126, 135, 146
16, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 203 Fonseca, Carlos, .......................................191
Conservatório Nacional, ................................. França, Luís, ..............................24, 191, 202
...........................127, 136, 167, 168, 169, 192 Freitas, Eduardo de, ...................................34
controlo social/regulação social, .......13, 29, Freitas, Frederico de, ................135, 136, 144
45, 60, 73, 77, 79, 90, 118, 197, 199, 203, 205 Freitas, Maria Helena de, .........................153
Coro da Gulbenkian, ................................118 Fundação Calouste Gulbenkian, ..................
Coro do São Carlos, .............93, 95, 127, 151, .................................................16, 22, 24, 83,
152, 153, 168, 169, 171, 183, 188, 190, 194, 199 84, 86, 89, 118, 121, 144, 153, 159, 163, 193, 194
Costa, João Victor, ....................................191 Fundo Monetário Internacional, .............66
Costa, Jorge Felner da, .....56, 57, 60, 61, 62 Furiga, Alfredo, .........................................95
Crehan, Kate, .............................................29 futebol, ................................17, 18, 39, 61, 85
Cruz, Ivo, ..........................126, 136, 159, 184
cultura popular, ................10, 21, 48, 53, 54, G
55, 58, 59, 60, 64, 79, 82, 92, 93, 94, 98, 100, Gabinete de Estudos Corporativos, ..........63
102, 103, 104, 175, 179, 181, 201, 202, 203, 205 GATT-Acordo Geral sobre Tarifas e
Cunha, Francisco José de Lima de Brito e, .. Comércio, ..................................................66
...................................................................199 Geertz, Clifford, ..........................................9
Gershwin, George, ..................................169
D Giani, Mário, ..............................................45
d’Ávila, Humberto, ....................121, 150, 151 Giddens, Anthony, ..............................39, 41
Dallapiccola, Luigi, ..................................174 Gil, Vasco, .................................................191
Dall’Argine, Simona, ................................141 Giordano, Umberto, .................................137
Debussy, Claude, ......................124, 139, 155 Gluck, Christoph Willibald, 22, 170, 171, 172
Delgado, General Humberto, ...................67 Gounod, Charles, .....145, 147, 163, 164, 174
Delibes, Léo, ............................................179 Grácio, Sérgio, ...........................................34
Deniau, Robert, ........................................174 Gramsci, Antonio, ........................29, 42, 43
desproletarização, ...89, 90, 97, 131, 201, 203 Grazia, Victoria, .....................46, 47, 48, 49
Dias, Ferreira, .............................................55 Grupo de Música Contemporânea de
Donizetti, Gaetano, ....................................... Lisboa, .......................................................187
............................141, 145, 146, 148, 149, 174 Grupo Experimental de Ópera de Câmara,
Dukas, Paul, ...............................................22 ..........16, 22, 24, 118, 119, 121, 127, 136, 205
Grupo Sócioprofissional dos Músicos do
E Movimento CDE, ....................187, 188, 196
EFTA-Associação Europeia de Comércio Guedes, Armando Marques, .....................55
Livre, ....................................................65, 66 Guerreiro, Armando, ........................24, 191
Elias, Norbert, ....................36, 37, 38, 39, 41
Emissora Nacional, ........................................ H
.......................18, 19, 62, 63, 81, 87, 113, 199 Haendel, Georg Friedrich, ......................158
encenação, ......................81, 91, 11, 114, 120, Hetcher, Michael, .......................................15
121, 122, 123, 125, 126, 135, 137, 138, 140, 141, Hicks, Alexander, ................................42, 57
143, 149, 153, 156, 157, 159, 161, 164, 186, 187 Hindemith, Paul, .............................158, 199
Eisenstadt, S.N., ...................................49-57 Hitler, Adolf, ..............................................45
Estatuto do Trabalho Nacional, ................44 ideologia, ............................................10, 113,
estranhamento, ................................124, 125 14, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 36, 48, 50, 55,
60, 64, 67, 78, 80, 110, 174, 175, 177, 203, 205
F
Falla, Manuel de, ......................................158 I
Federação das Colectividades de Cultura e INATEL-Instituto Nacional para
Recreio, ................................................55, 121 Aproveitamento dos Tempos Livres dos
Fernandes, António Júlio de Castro, .........51 Trabalhadores, ...............................................
Ferreira, Jaime, ...........................................51 .................18, 26, 54, 69, 197, 198, 199, 205
Ferro, António, ............................91, 94, 105 Instituto de Alta Cultura, ...24, 153, 159, 163
Festival das Artes, ....................................147 Itália fascista, ....13, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50

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Índice Remissivo

J 102, 104, 105, 106, 107, 108, 11, 136, 151, 152,
Junta Central das Casas do Povo, .............59 162, 166, 177, 184, 188, 192, 193, 194, 197, 205
Junta de Acção Social (JAS), .......................... modernização, ...............................................
........36, 67, 77, 80, 81, 83, 113, 159, 163, 193 .......10, 29, 35, 36, 45, 52, 54, 57, 62, 66, 78
Juventude Musical Portuguesa, .......121, 136 Monteiro, Armindo, ...................................33
Moore Jr, Barrington, ................................45
K Moreira, António Leal, .............................135
Keil, Alfredo, .............20, 98, 106, 144, 160 Mozart, Wolfgang Amadeus, ........................
Keynes, John Maynard, .............................44 .............22, 134, 154, 155, 160, 169, 178, 196
Kiser, Edgar, ...............................................15 Mussolini, Benito, .................26, 45, 46, 49
Kjölner, Guilherme, ..........................98, 191 Mussorgsky, Modeste, .............................184
Kraft durch Freude, ..........26, 46, 47, 51, 53
N
L Neves, José, ................................................47
Lagoa, Ana, ........................98, 102, 158, 191 Nunes, Adérito Sedas, ...............................34
lazer, ........................................28, 32, 34, 37,
38, 39, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 55, 56, 58, 59, 89 O
Leal, António Silva, ..................................135 OECE-Organização de Cooperação
Léhar, Franz, .....................................20, 180 Económica Europeia, ................................65
Leitão, Manuel, ..................................24, 191 Oliveira, Edmundo, ..170, 171, 172, 179, 180
Leoncavallo, Nicolo, ..................137, 143, 145 Ópera Nacional de Cuba, ........................174
Linz, Juan, ............................................29, 35 Opera Nazionale Dopolavoro, ......................
Lopes, José Silva, .......................................65 ...........................................26, 45, 46, 47, 49
Lopes-Graça, Fernando, ................................ Óperas
......................105, 124, 134, 137, 147, 175, 187 > Adina, ....................................................161
Lucena, Manuel de, 28, 44, 51, 59 > Alcina, ....................................................158
> Amélia al Ballo, .....................161, 174, 195
M > Amigo Fritz, O, .....................................137
Machado, David, ...............................154, 187 > Andrea Chénier, ....................................172
Machado, Fernanda, ...........................24, 98 > Arabella, ..................................................22
Machado, Júlio César, ...............................19 > Ariane, ....................................................22
Magnini, Sérgio, .......................................171 > Barbe-Bleue, ...........................................22
Mahler, Gustav, ........................................139 > Barbeiro de Sevilha, O, ..............................
Malaguerra, Isabel, ..................................164 .......20, 24, 108, 128, 134, 150, 157, 172, 202
Malta, Álvaro, ......24, 98, 102, 158, 186, 191 > Bodas de Fígaro, As, ..................................
Manique, Helena Pina, ...........................191 ..............................22, 154, 155, 159, 164, 195
Mann, Michael, ...................................30, 39 > Bohème, La, ...............................20, 22, 25,
Martins, Celeste, ..............99, 100, 101, 102 108, 134, 137, 144, 150, 155, 157, 164, 172, 199
Martins, Hermínio, ...................................58 > Boris Godunov, .....................................184
Marx, Karl, .......14, 15, 37, 39, 40, 41, 42, 43 > Cambiale di Matrimonio, La, ......161, 199
Mascagni, Pietro, ......................137, 143, 185 > Carmen, ........................................163, 164
Mascarenhas, Domingos, ........................113 > Cavaleiro das Mãos Irresistíveis, ........106
Massenet, Jules Emile Frédéric, ................... > Cavalleria Rusticana, ..................................
..............22, 144, 149, 155, 161, 174, 185, 186 .....................143, 145, 153, 163, 164, 185, 186
Mealha, Quirino, .......17, 18, 64, 67, 75, 201 > Condessa Caprichosa, A, ...........................
Medeiros, Germana, ................................118 .............................................144, 145, 173, 174
Mello, Higino de Queiroz e, .........51, 63, 64 > Crisfal, ..................................................106
Melo, Daniel, ..............................................55 > D. Duardos e Flérida, ...........................187
Menano, Francisco, ..................................118 > D. João IV, .......................................91, 105
Menano, Manuela, ...................................118 > Dom Quixote, ...............................185, 186
Menotti, Gian Carlo, 22, 121, 161, 174, 195, 199 > Domanda di Matrimonio, La, ..............163
Messiaen, Olivier, ....................................158 > Don Pasquale, ......................................149
Milhaud, Darius, ......................................187 > Elixir do Amor, O, .........128, 143, 145, 172
Ministério da Educação, 84, 91, 166, 193, 194 > Erwartung, ............................................187
Ministério das Corporações, ....................17, > Falstaff, ..................................................142
18, 19, 24, 35, 50, 51, 75, 77, 80, 82, 87, 91, 97, > Fausto, ...........................145, 147, 163, 164

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A Ópera do Trindade

> Favorita, A, .............................................155 > Filarmónica Municipal de Lisboa, ............


> Flauta Mágica, ......................178, 179, 199 ..............................................171, 182 183, 184
> Gobbo del Califfo, Il, ....................161, 174 > Gulbenkian, ...........................................118
> Histoire du Soldat, .................................22 > Sinfónica de Lisboa, .............................126
> Ida e Volta, ....................................158, 199
> Inês de Castro, ..............106, 172, 173, 185 P
> Inês Pereira, ..................145, 146, 148, 172 Paes, João, ..........141, 170, 171, 172, 185, 199
> Lakmé, ...................................................179 Pais, Sidónio, ............................................141
> Lucia de Lammermoor, 145, 146, 148, 172 Palha, Francisco, ........................................19
> Lulu, ........................................22, 145, 187 Parkin, Frank, ............................................41
> Madame Butterfly, ..18, 143, 163, 164, 196 Partido Comunista Português, 47, 161, 187
> Manon, ............................................22, 155 Partido Revolucionário do Proletariado –
> Mão Feliz, A, .........................................145 Brigadas Revolucionárias, ......................198
> Matrimóni, .............................................87 Pasquali, Carlo, .................................95, 208
> Orfeo e Eurídice, .............22, 170, 171, 172 Patriarca, Fátima, ......................................28
> Otello, ....................................................136 Paulo, Rogério, ........................194, 197, 198
> Palhaços, Os, ....143, 145, 147, 153, 154, 155 Pavão dos Santos, Victor, ..........................19
> Peter Grimes, .........................................22 Peixinho, Jorge, .........136, 139, 145, 175, 187
> Porgy and Bess, ....................................187 Pellegrini, Mário, ......................95, 161, 199
> Prigioneiro, Il, ......................................187 Pereira, Maestro Silva, ..................................
> Rake’s Progress, The, ....................22, 187 ..............................24, 126, 135, 136, 172, 199
> Retábulo de Mestre Pedro, ...................158 Pereira, Nina Marques, ...........................102
> Rigoletto, ........137, 145, 146, 154, 195, 196 Pereira, Pedro Teotónio, ............................51
> Rita, ................................145, 147, 163, 164 Plano Marshall, .........................................65
> Rondine, La, .................................163, 164 políticas sociais, .............................................
> Rosas de Todo o Ano, ..........106, 185, 186 ................9, 10, 26, 31, 32, 35, 36, 39, 41, 43,
> Scala di Seta, La, ...................................161 44, 54, 48, 49, 51, 52, 55, 57, 80, 89, 104, 197
> Segredo de Susana, O, ...........132, 153, 174 Portugal, José Blanc de, 2, 138, 139, 187, 209
> Serrana, A, ......................................20, 82, Portugal, Marcos, ....................................144
106, 108, 109, 110, 133, 144, 160, 173, 174, 199 Proença, João José Gonçalves de, ......19, 21,
> Simão Bocanegra, .................................155 27, 35, 36, 80, 81, 83, 94, 100, 106, 149, 204
> Sonnambula, La, ...................153, 185, 186 profissionalização dos artistas/cantores
> Tabarro, Il, .............................................195 portugueses, .....................119, 130, 131, 162,
> Tannhäuser, ............................................22 163, 169, 182, 183, 184, 189, 190, 191, 192, 195
> Telefone, O, ............................22, 121, 199 Puccini, Giacomo, ...........18, 20, 22, 25, 98,
> The Turn of the Screw, .........................187 134, 137, 141, 144, 157, 163, 164, 174, 195, 196
> Tosca, .....................141, 142, 143, 144, 149 Purcell, Henry, 169
> Traviata, A, .............137, 143, 159, 164, 174
> Trovador, O, ....................................22, 142 Q
> Variedades de Proteu, As, 81, 155, 156, 157 Quarteto de Lisboa, .................................103
> Vingança da Cigana, A, ............................. questão social, .......28, 41, 45, 47, 55, 56, 59
..............135, 136, 137, 149, 150, 173, 174, 179
> Werther, ..........................149, 150, 155, 185 R
> Wozzeck, ...............................................145 Ramos, Artur, ...............24, 81, 156, 157, 161
opereta, ........................................................... Ramos, Maria, ..........................................191
.......20, 21, 23, 82, 83, 84, 88, 96, 106, 108, Rego, Carlos, ............................................164
109, 123, 128,129, 134, 164, 179, 189, 193, 196 revista, teatro de, .........20, 94, 129, 137, 179
Operetas Ribeiro, Fernando Moreira, ......................77
> Canção do Amor, A, ......20, 106, 128, 134 Ribeiro, Francisco, ...............................19, 21
> Sonho de Valsa, .....................................20 Richter, Karl, ............................................158
> Viúva Alegre, A, .............20, 180, 185, 187 Rodrigo, Mário, ........................................179
Organização Internacional do Trabalho, Rosa, João, 191
................................................................50, 51 Rosas, Fernando, 13, 27, 187
Orquestras Rossini, Gioacchino, .....................................
> Emissora Nacional, .................................... ......................98, 146, 155, 157, 161, 174, 199
................................18, 83, 126, 136, 171, 182 Rostropovitch, Mstislav, ..........................158

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Índice Remissivo

S Teatro da Trindade
Salazar, António de Oliveira, .........27, 51, 61 > História, ................................19, 20, 21, 13
Salieri, António, .......................................142 > Programação, ..............................................
Santos, Joly Braga, .............25, 107, 121, 130, ...21, 73, 80, 82, 83, 85, 87, 88, 111, 181, 202
133, 134, 135, 136, 142, 150, 154, 155, 160, 161 > Público, .......................................................
São Carlos, ...........16, 21, 22, 24, 25, 82, 83, ....19, 82, 83, 85, 87, 88, 90, 94, 97, 99, 100,
84, 86, 87, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 101, 102, 103, 105, 108, 109, 110, 11, 112, 113,
99, 100, 101, 105, 108, 117, 122, 125, 126, 127, 114, 115, 116, 117, 125, 126, 127, 134, 137, 143,
141, 151, 152, 158, 165, 166, 167, 168, 169, 171, 145, 147, 155, 157, 162, 166, 167, 173, 175, 177,
173, 176, 177, 178, 181, 182, 183, 186, 187, 188, 178, 185, 188, 190, 193, 195, 196, 203, 205
189, 190, 192, 197, 198, 199, 203, 204, 205 Teatro Ginásio, ..........................................19
Saque, Elsa, ........................132, 153, 158, 191 Teatro Monumental, ...........................19, 24
Saque, Zuleika, ..........................148, 153, 181 Teixeira, António, ......................................81
Saraiva, José Hermano, ...........................167 Thomaz, Américo, ...........146, 153, 178, 186
Saviotti, Gino, ...........................................134 Tilly, Charles, .............................................39
Schmitter, Phillipe, ...................................28 Toscanini, Arturo, ....................................125
Schoenberg, Arnold, ........................145, 187 Trio de Lisboa, ..........................................103
Schubert, Franz, .......................20, 108, 129
Sckocpol, Theda, ......................33, 40, 41, 45 U
Secretariado da Propaganda Nacional União Europeia de Pagamentos, ..............58
(SPN), ...................................................21, 27
Secretariado Nacional da Informação (SNI), V
.........9, 16, 83, 92, 93, 94, 106, 113, 131, 136 Valente, José Carlos, ......................................
Serafim, Fernando, ..................102, 191, 192 ..............13, 26, 27, 28, 46, 47, 50, 53, 55, 78
serões para trabalhadores, 64, 81, 82, 88, 103 variedades, ......................21, 82, 88, 89, 103
Silva, António José da, .......................81, 187 Vaz, Helder, ...............................................24
Sindicato Nacional dos Bancários, .......50-51 Veloso, João, .............................................191
Sindicato Nacional dos Músicos, ...136, 190 Verde Gaio, bailados, .....21, 84, 93, 94, 203
sindicatos, .................................24, 45, 53, 57 Verdi, Giuseppe, ................................22, 98,
sociedade civil, ............................................... 122, 123, 137, 138, 139, 141, 145, 154, 174, 196,
...........30, 42, 45, 46, 47, 48, 50, 53, 57, 201 Viana, António Manuel Couto, ....................
Somers, Margaret R., .................................15 ........................................19, 113, 116, 117, 187
Soumagnas, Jean, ....................................147 Vieira, Tomé, .........................................47-55
Sousa, Baltazar Rebelo de, ......................178 Vitorino, Orlando, ..............................19, 113
Sousa, Filipe de, ............................................ Voyer, Giovani, ........................................199
......118, 119, 120, 121, 136, 137, 156, 173, 192
Stockhausen, Karl-Heinz, .........................23 W
Strauss, Richard, .......................................22 Wagner, ................32, 138, 139, 140, 141, 157
Stravinsky, ..................................22, 145, 187 Wallenstein, Carlos, .................................121
Wandschneider, Fernanda, .....................102
T Webern, Anton, ........................................158
Taveira, Afonso, ........................................20 Weil, Kurt, .................................114, 145, 174
teatro (como arte), ......................................... Wolf-Ferrari, Ermanno, ............132, 153, 174
20, 21, 49, 82, 83, 84, 88, 89, 93, 98, 111, 112,
113, 114, 116, 117, 119, 120, 121, 122, 123, 125, Z
126, 128, 137, 139, 159, 160, 162, 179, 187, 194 zarzuela, ............................................20, 190

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Revisão: Henrique Tavares e Castro


Design: subbus:dESiGNERS
Capa: rui[lúcio]carvalho
Composição: Rita Lynce
Fotografia da capa:
Produzido e acabado por EIGAL
Rua D. Afonso Henriques, 742
4435-006 Rio Tinto — Portugal

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