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Revista da Abordagem Gestáltica:

Phenomenological Studies
ISSN: 1809-6867
revista@itgt.com.br
Instituto de Treinamento e Pesquisa em
Gestalt Terapia de Goiânia
Brasil

Pimentel Santos, Letícia; de Freitas Faria, Luiz Alberto


ANSIEDADE E GESTALT-TERAPIA
Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, vol. XII, núm. 1, junio,
2006, pp. 267-277
Instituto de Treinamento e Pesquisa em Gestalt Terapia de Goiânia
Goiânia, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=357735503027

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ANSIEDADE E GESTALT-TERAPIA 1

Letícia Pimentel Santos 2


Luiz Alberto de Freitas Faria 3

Resumo: O artigo aborda o fenômeno da ansiedade sob o ponto de vista da Gestalt-terapia. O


contato, entendido como processual e cíclico, é correlacionado com o tema da ansiedade em
seus aspectos funcionais e disfuncionais. Dessa forma, com base no ciclo do contato, a ansiedade
é apontada como fator constituinte da existência humana. A compreensão da ansiedade, em
termos gestálticos, possibilita uma peculiar estratégia terapêutica sobre o fenômeno em seu
perfil disfuncional.

Palavras-chave: ansiedade, Gestalt-terapia, ciclo do contato, temporalidade.

Alguns conceitos fundamentais

Do ponto de vista da abordagem gestáltica, a experiência humana apresenta-se


na fronteira de contato entre o organismo e o seu ambiente. As fronteiras são proces-
sos de separação e ligação, os quais possibilitam a diferenciação entre o organismo e
o seu meio, bem como a seleção dos elementos nutritivos daqueles que são tóxicos,
sendo que essa diferenciação ocorre por meio dos órgãos sensoriais e pelas respostas
motoras frente ao ambiente. É na fronteira de contato entre o indivíduo e o meio que
ocorrem os eventos psicológicos, sem excetuar o fenômeno da ansiedade. (Perls, He-
fferline & Goodman 1997; Perls, 1988; Yontef, 1998).
Segundo a abordagem gestáltica, a experiência, presente na fronteira de con-
tato, ocorre em configurações inteiras e com significado para o organismo. O que não
se apresenta com essas características está fora da fronteira, podendo ser no máximo
uma abstração ou uma potencialidade (Perls et al, 1997; Ribeiro, 1997).
O organismo, no processo de contato com o ambiente, seleciona e assimila os
elementos nutritivos e rejeita os elementos tóxicos. A manutenção de um organismo
supõe uma permanente interação organismo-ambiente. A assimilação de novos ele-
mentos possibilita o seu crescimento (Yontef, 1998).
O processo de contatar o meio, de forma satisfatória, ocorre através da awa-
reness. Awareness é uma especial maneira de experienciar o meio. Segundo Yontef
1 Estudo apresentado em maio de 2006, no XII Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica e I Encontro
de Fenomenologia do Centro-Oeste, em Goiânia-GO.
2 Psicóloga pela Universidade Católica de Goiás, Pós-Graduada pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa

em Gestalt-terapia (ITGT-UCG), psicoterapeuta.


3 Psicólogo pela Universidade Católica de Goiás, Pós-Graduado pelo Instituto de Treinamento e Pesquisa

em Gestalt-terapia (ITGT/UCG), psicoterapeuta e chefe do setor de saúde da Justiça Federal de Goiás.


Santos, L. P.; Faria, L. A. F. v. XII: pp. 267-277, 2006

(1998), a awareness “é o processo de estar em contato com o evento mais importante


do campo indivíduo/ambiente com apoio energético, cognitivo, emocional e sensório-
-motor totais” (p. 236).
O contato abrange tanto ir ao encontro do objeto necessário ao organismo, quan-
to a capacidade de estabelecer limites, rejeitar objetos, retirar-se, afastar-se4. Quem não
consegue suportar o afastamento, tampouco conseguirá estabelecer um nível de con-
tato satisfatório. Nas palavras de Perls (1988), “este contato com o meio e fuga dele,
esta aceitação e rejeição do meio, são as funções mais importantes da personalidade
global” (p. 36).
A Gestalt-terapia define o self como a fronteira de contato em movimento.
Quando alguém toca algo no mundo, nesse exato momento também é tocado. Essa
experiência fundamenta a definição dinâmica de self, a saber, o self é a experiência
de contato com o mundo no aqui e agora, através da fronteira, momento a momento.
O sutil processo de o organismo buscar no meio a satisfação da necessidade ou
objeto mais importante, em um determinado lugar e tempo, relaciona-se, ainda, com o
conceito de auto-regulação organísmica. Trata-se do processo de interação entre o orga-
nismo e o meio, onde o organismo busca o seu equilíbrio homeostático (Cardella, 2002).
Apesar da auto-regulação organísmica ser um processo natural de busca de
equilíbrio, o movimento de assimilação de um novo elemento, pelo fato de ser algo
novo, apresenta-se sob a influência da ansiedade. O problema surge quando o nível de
ansiedade compromete
o natural processo de contato com os elementos necessários ao organismo. Aqui,
o organismo se torna adoecido por ser incapaz de satisfazer suas necessidades e, assim,
se mantém num estado de desequilíbrio.
O indivíduo ansioso inibe o processo natural de contato e assimilação dos no-
vos elementos necessários ao seu próprio crescimento, devido ao receio antecipado
dos efeitos desses elementos, quando integrados no seu organismo. Em outras pala-
vras, sob a presença da ansiedade, diante da natureza sempre renovada do meio e sua
permanente relação dialética com o indivíduo, este não consegue, espontaneamente,
eleger o objeto hierarquicamente mais importante, no aqui e agora, e se mover rumo
ao mesmo, no sentido de assimilá-lo, aliás, para a Gestalt-terapia “a ansiedade é o vá-
cuo entre o agora e o depois. Se você estiver no agora não pode estar ansioso, porque
a excitação flui imediatamente em atividade espontânea” (Perls, 1977, p. 15). Dessa
forma, a ansiedade antecipatória ao contato inibe a possibilidade de assimilação e, con-
seqüentemente, o crescimento do organismo.
4 Esta “rejeição do meio”, grafada com o termo “afastamento” na linguagem gestáltica, relaciona-se com a
capacidade do indivíduo em conviver com a própria solidão. Paradoxalmente, a capacidade de encontro
está intimamente ligada à coragem de suportar o afastamento. Quem consegue conviver com a sua soli-
dão consegue ir, genuinamente, ao encontro do outro. Ao contrário, quem busca o encontro para fugir da
solidão, de fato não busca ao outro, mas a si mesmo, e o outro passa a ser um mero “isso” em função da
sua insegurança e ansiedade frente ao mundo (Fromm, 1995; May, 1975; Buber, 1974). O outro passa a
ser uma tábua de salvação para o náufrago de si mesmo...

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Ansiedade e gestalt-terapia

O transtorno se agrava quando se transforma em um círculo vicioso, ou seja, o


organismo se interrompe e se sobrecarrega com tantas situações incompletas que não
pode prosseguir satisfatoriamente com o processo de viver e se nutrir de forma eficiente.

O ciclo do contato

O contato com o ambiente, segundo a visão da Gestalt-terapia, geralmente


ocorre em uma seqüência ordenada e lógica denominada Ciclo do Contato. Esta lei-
tura do fenômeno do contato desempenha o papel de um mapa para a compreensão
do terapeuta frente às habilidades e inabilidades do cliente no seu manejo em relação
ao meio, bem assim proporciona a seleção de intervenções psicoterápicas pertinentes,
ou seja, aquelas que possibilitam incrementar o contato do cliente com o ambiente e,
desta forma, contribua para o seu crescimento (Zinker, 2001).
A primeira fase do Ciclo do Contato, segundo Zinker (2001), configura-se no
processo de formação da awareness. Nesse estágio, inicialmente, a necessidade do in-
divíduo ainda não foi claramente estabelecida e, portanto, está difusa e sem contornos
definidos, apesar de haver um elemento do fundo em rudimentar processo de forma-
ção5. À medida que a necessidade aumenta, o referido elemento começa a se destacar
de uma forma mais evidente. Tal elemento passa a ser a figura, ou gestalt, frente a um
fundo que contém uma infinidade de possibilidades.
A segunda etapa do Ciclo refere-se à fase da energia/ação. Após o indivíduo
divisar uma figura de interesse, começa a fase energética e motora, rumo à manipula-
ção do ambiente, no sentido de alcançar a figura desejada e fechar, dessa forma, a ges-
talt aberta. Nessa fase há deliberação e escolha do indivíduo em relação ao ambiente.
A seqüência do Ciclo leva à fase do contato, ou terceira fase. No contato o in-
divíduo, via fronteira de contato, assimila o novo elemento anteriormente objetivado.
Nesta fase há menos deliberação e mais espontaneidade. Para a assimilação do novo, o
indivíduo deve ser capaz de se arriscar rumo a algo desejado e ainda não devidamente
integrado. Deve ser capaz, portanto, de lidar com a ansiedade inerente a esse processo
de assimilação de um novo elemento.
Na mesma seqüência entra em cena a quarta fase da resolução/fechamento. A
gestalt divisada no ambiente é fechada, ou seja, a necessidade é satisfeita. Aqui há
equilíbrio do organismo, ou homeostase, conforme assevera a teoria organísmica. A
energia e o interesse diminuem. Há repouso e retraimento, característica da quinta fase,
5 Os termos “figura” e “fundo” são conceitos teóricos utilizados pela gestalt-terapia, os quais são oriundos
da psicologia da gestalt. A psicologia da gestalt, ou gestaltpsicologia, contesta a visão atomista da psico-
logia estrutural, bem como da psicologia associacionista, onde a realidade é percebida via fragmentações
de seus elementos. Assim, a psicologia da gestalt compreende os fenômenos sensoriais e comportamen-
tais, entre outros, sob o ponto de vista de estruturas ou totalidades organizadas, as quais são denomina-
das de “figura”, em contraposição a um “fundo”, onde o observador participa ativamente, via interesse
(Burow & Scherpp, 1985).

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sendo esta a última etapa do Ciclo do Contato. O fundo volta a ser difuso e indiferen-
ciado até o surgimento de uma outra necessidade, via nova figura, com a abertura de
uma outra gestalt. O Ciclo volta ao seu estágio inicial.
Esse funcionamento perfeito do Ciclo do Contato, infelizmente e não raro, en-
contra obstáculos, interrupções. As referidas interrupções relacionam-se significativa-
mente com fenômeno da ansiedade.

Aprofundando a compreensão da ansiedade em termos gestálticos

A ansiedade, na ótica gestáltica, é entendida como a interrupção da excitação.


O organismo humano obtém a sua energia através do alimento e da respiração, sendo
que esta energia foi denominada por Freud de libido (Laplanche e Pontalis, 1986). O
termo “excitação” designa o correlato de energia para a abordagem gestáltica. Referida
energia não é entendida apenas sob o ponto de vista interno ao organismo, apesar de
estar relacionada com o seu aspecto fisiológico. A excitação invariavelmente está em
função de um objeto presente no mundo (Rodrigues, 2000). Assim, por exemplo, a raiva
relaciona-se com um obstáculo. É importante ressaltar que a Gestalt-terapia não frag-
menta a realidade em “externa” e “interna”. Assim, por exemplo, o conceito de fundo
abrange a totalidade das potencialidades presentes, sem a dicotomia externo-interno.
Em situações nas quais as excitações não encontram um caminho rumo ao
mundo, em outras palavras, quando não são expressas, ou seja, quando não se trans-
formam em atividades, com a mobilização muscular via sistema motor, o resultado é
o surgimento da ansiedade.
A ansiedade é, portanto, uma grande excitação contida, encapsulada, aliás, a
palavra latina angústia significa “estreiteza, limite de espaço ou de tempo” (Ferreira,
1999, p. 142). Na ansiedade há contenção e estreitamento de aspectos fisiológicos, tais
como a retenção da respiração e do sistema muscular, como também do sistema sen-
sorial, entre outros (Perls, 1977).
A respiração é um ato fisiológico e ao mesmo tempo de relação com o mundo.
A respiração é expressão clara da íntima relação entre o homem e o seu meio. A con-
tenção da respiração, nessa perspectiva, sugere um hábito apreendido no decorrer da
história do indivíduo, quando o mundo se apresentou por demais invasivo, opressor
e, por isso, inassimilável.
A mencionada presença inóspita e hostil do mundo veio do passado até o pre-
sente, congelada através de um hábito. Portanto, diante desse mundo que uma vez foi
experienciado como pouco acolhedor e que se mostrou sem perspectivas positivas, o
indivíduo volta-se para si mesmo, recolhe-se e delimita as suas fronteiras em uma pe-
quena área de interação. Um mundo uma vez hostil e opressivo empurrou as fronteiras
do indivíduo, tornando-as estreitas. A respiração, então, apresenta-se como contida, ou
melhor, torna-se cronicamente contida.

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Ansiedade e gestalt-terapia

O mundo, então, uma vez inassimilável, torna-se distante, nebuloso e muitas ve-
zes, distorcido e adulterado. Tendo em vista que a excitação não pode ser expressa na
relação imediata com o mundo, essa mesma energia busca alívio, ou expressão, através
da construção de uma “realidade” à parte, projetada e alucinatória em diversos graus.
Tal fato ocorre pois, como não há self sem contato, também não há homem sem mundo,
e quando o mundo torna-se intragável, o homem vê-se obrigado a criar a sua própria
“realidade”, mesmo que seja de fantasmas e de fantasias. Nesse entendimento, Berg
(1994) afirma que “o paciente que sofre de alucinações, tem objetos que lhe pertencem
exclusivamente. Tem o seu próprio mundo como resultado do seu isolamento” (p. 91).
Em indivíduos com esse perfil, a espacialidade do mundo é experienciada de for-
ma reduzida em vários aspectos. Assim, por exemplo, há redução dos contatos sociais,
sobretudo em situações em que os “olhos do mundo” irão se voltar para o indivíduo.
A clínica descritiva da fobia social é um exemplo proeminente desse fato. Tais indiví-
duos buscam fugir de situações onde serão objeto de maior contato social, como o ato
de comer com outras pessoas, assinar um cheque ou falar em público (Nardi, 1999).
Outro exemplo é a claustrofobia, onde os indivíduos evitam ambientes fechados, os
quais são experienciados como geradores de mal estar e opressão. A claustrofobia é
uma projeção, no ambiente, da experiência de um mundo que é vivenciado como es-
treitado e opressivo (Perls, 2002).
O tempo, para o indivíduo ansioso, da mesma forma, apresenta-se contraído.
O tempo é vivenciado como por demais estreito para conter satisfatoriamente o de-
senrolar dos fenômenos espaciais. Nas palavras de Dalgalarrondo (2000), “pacientes
muito ansiosos descrevem uma ‘pressão’ do tempo, como se o tempo que dispõe fosse
sempre insuficiente” (p. 79). Em algumas situações sociais esse fato torna-se evidente
como, por exemplo, entrar em uma fila de banco. Esta experiência é bastante penosa,
pois a vivência subjetiva do tempo, ou seja, a temporalidade, apresenta-se mais clara
no sentido do estreitamento, rigidez ou congelamento, em consonância com a espacia-
lidade, percebida como penosamente contida.
Outro exemplo é a gagueira, onde a ansiedade apresenta-se como excitação,
com ausência de suficiente suprimento de oxigênio, pois o indivíduo tenta falar en-
quanto inspira (Perls, 2002). Assim, a pessoa que gagueja atropela as palavras, pois o
tempo contraído é insuficiente para a construção das frases. O plano da temporalida-
de, onde deverá proferir o seu discurso, é experienciado em dimensões reduzidas. O
resultado é uma fila apertada e tensa de palavras, uma atropelando a outra, levando o
indivíduo a retornar ao início de uma palavra várias vezes na esperança de conseguir
pronunciá-la satisfatoriamente.
Dessa forma, esta redução espaço-temporal se apresenta como uma diminuição
generalizada do campo vivencial do indivíduo. Sob o ponto de vista sensório, esta redu-
ção se apresenta como uma significativa dessensibilização, traduzida em pontos cegos ou
escotomas, os quais são variadas formas de evitação do contato. Segundo Perls (1977),
“se a excitação não puder fluir para a atividade por intermédio do sistema motor, então

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procuraremos dessensibilizar o sistema sensorial para reduzir a excitação” (p. 95). A rela-
ção com o mundo passa a ser efetivada através de mecanismos de interação resistente. O
ciclo do contato é, então, interrompido por uma série de mecanismos que comprometem o
seu funcionamento normal, sendo a confluência um exemplo de interação via resistência.

A ansiedade nos mecanismos de interação resistente

A confluência é o mecanismo no qual o organismo não consegue distinguir o


que é seu e o que é do outro, pois as fronteiras são confusas. Há uma perda da subje-
tividade, pois é comum o organismo deixar que os outros decidam por ele. Constan-
temente, o indivíduo faz o que lhe desagrada para obedecer ao outro, e mesmo assim
fica ansioso temendo a desaprovação (Perls, 1977; Zinker, 2001). No Ciclo do Conta-
to, a confluência ocorre antes do início da excitação rumo a um determinado objeto.
Quando a excitação é aceita e o ambiente é confrontado, há emoção, e se a in-
terrupção ocorrer nesta etapa, o resultado será a projeção. Ela é a principal resistência
ao contato na fase de awareness (Perls et al, 1997; Zinker, 2001). A projeção ocorre
quando o indivíduo atribui aos outros as responsabilidades, fracassos e dificuldades
que são dele próprio. Aqui a pessoa coloca a responsabilidade nos outros no sentido
de atenuar a sua ansiedade (Perls, 1977; Romero, 1994).
Na introjeção, o indivíduo obedece e aceita opiniões arbitrárias, normas e va-
lores que pertencem a outros, engolindo conceitos sem nenhum critério, além de não
conseguir defender seus direitos por receio da sua própria agressividade e da possível
agressividade dos outros. Com esta estratégia, administra os níveis de ansiedade em
patamares suportáveis. Tal mecanismo ocorre na fase energética ou de excitação do
Ciclo do Contato.
O indivíduo com o mecanismo denominado de retroflexão faz consigo o que
gostaria de fazer aos outros, ou seja, trata a si mesmo como desejaria tratar às outras
pessoas. A ansiedade é controlada via evitação do confronto direto com o meio. Esse
mecanismo incide no Ciclo do Contato na fase de conflito ou destruição, quando uma
nova configuração poderia surgir.

O lidar da Gestalt-terapia frente a clientes portadores de ansiedade

Para a abordagem gestáltica, como evidenciado acima, nos transtornos de an-


siedade a excitação não flui imediatamente para a ação. O indivíduo, sob ansiedade,
não consegue permanecer no “aqui e agora” e, dessa forma, há comprometimento no
processo normal de contato com o meio. Viver no presente é por si só terapêutico, uma
vez que possibilita ao organismo a satisfação de suas necessidades de forma hierárqui-
ca e ordenada, via Ciclo do Contato.

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Ansiedade e gestalt-terapia

A experiência, a peculiar forma em que o indivíduo vivencia o mundo, no aqui


e agora, constitui-se na estratégia terapêutica fundamental da Gestalt-terapia frente à
ansiedade. O gestalt-terapeuta, então, na sua prática clínica, não objetiva enfatizar as
causas que justificariam o comportamento ansioso do seu cliente. Seu esforço se con-
centra no sentido de trazer para o primeiro plano a experiência desse indivíduo único
e inédito na sua relação com o mundo, sobretudo com o mundo compartilhado durante
as sessões, na sua relação com o terapeuta. Concentrar-se no “como” o indivíduo ex-
periencia a sua realidade, esforçando-se para diminuir as interrupções do contato com
o presente, pode, pouco a pouco, reformar o processo sutil e espontâneo da awareness
no contexto do Ciclo do Contato, diminuindo o raio de ação da ansiedade disfuncio-
nal, uma vez que esta medra exatamente nas fugas do contato.
A Gestalt-terapia é uma abordagem fenomenológica e existencial. A sua ênfase,
dessa maneira, recai sobre a forma de perceber e processar os fenômenos do campo viven-
cial do cliente, sobretudo na sua relação com o terapeuta. Perls (1988) sintetizou o lidar
terapêutico da Gestalt-terapia em cinco perguntas de cunho fenomenológico-existencial,
são elas: “O que você está fazendo?”, “O que você sente?”, “O que você quer?”, “O que
você evita?”, e “O que você espera?” (p. 87). Tais perguntas buscam as interrupções da
experiência imediata, próprias de racionalizações sobre os fatos da vivência do cliente.
As interrupções impedem que a excitações do indivíduo fluam de forma imediata para a
ação, sendo esta a definição principal da abordagem gestáltica sobre o fenômeno da an-
siedade. Assim, estas indagações devem nortear o olhar clínico do terapeuta, como uma
bússola na sua relação com o cliente, no sentido de propiciar a reconstrução do processo
de awareness, sendo esta uma ação terapêutica eficiente sobre a ansiedade.
O indivíduo ansioso está sempre interrompendo a sua experiência imediata com
o mundo, inclusive a sua relação com o terapeuta e consigo mesmo. Essas interrupções
ocorrem através de uma série de mecanismos de evitação do contato. Para ele, ficar no
aqui e agora é penoso e fator gerador de ansiedade. O terapeuta almeja, diante desse
quadro, criar uma especial relação de confiança e de aceitação do cliente, visto que o
terapeuta começa a fazer parte significativa desse mundo. Assim, a pedra de toque da
Gestalt-terapia, em bases dialógicas, refere-se à região do “entre”, na qual a singula-
ridade do outro é respeitada e confirmada, (Hycner & Jacobs, 1997).
Esse mundo do cliente, em indivíduos com ansiedade significativa, não raramen-
te, apresenta-se abalado por uma série de desencontros oriundos da sua história (Yontef,
1998). Há, também, uma perspectiva sombria em relação ao futuro. Aliás, o “agora”
se apóia nas duas colunas do passado e do futuro, de maneira que quando uma é aba-
lada, a outra também se torna vacilante e o presente perde a sua fluidez (Dalgalarron-
do, 2000). Nas palavras de Costa (2004), “A existência, portanto, não é uma realidade
sem referência a um futuro, mas não o é também sem a retenção do passado” (p. 35).
A cura desse mundo ferido e estreitado passa pelo encontro, conforme asseve-
ra a psicoterapia dialógica (Hycner, 1995; Buber, 1974). O terapeuta deve se colocar
como alguém que recebe a existência, ou melhor, a experiência do outro de forma

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completa e incondicional, na medida de suas possibilidades (do terapeuta). Aqui, há


uma peculiar impressão no cliente de que ele não será devidamente aceito novamente,
na sua posição existencial inédita e única. O acolhimento propiciado por uma espe-
cial relação terapêutica, colocada no centro do próprio processo psicoterápico, abre
a esperança para o contato com esse mundo, em certa medida inédito para o próprio
cliente. Esse especial contato é dinâmico e terapêutico, conforme assevera a Teoria
Paradoxal da Mudança de Beisser, a qual afirma que “a mudança ocorre quando uma
pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é” (Fagan & She-
pherd, 1980, p. 110).
Segundo essa compreensão, os momentos de interrupção do contato devem ser
especialmente acolhidos pelo terapeuta, visto que também fazem parte da realidade
existencial do cliente. Aliás, tais interrupções são um testemunho vivo do momento
em que o diálogo com o mundo desse indivíduo foi bruscamente interrompido na sua
história. São, portanto, a tentativa ansiosa e desesperada de proteger suas feridas mais
profundas e sensíveis. O terapeuta, então, deve buscar aceitar e compreender esta lin-
guagem da resistência, como uma autêntica mensagem existencial da pessoa na sua
totalidade. Esta aceitação viabiliza o contato e o diálogo genuínos. Inicia-se, então, não
sem dificuldades e desencontros, o resgate do diálogo interrompido (Hycner, 1995).
Trata-se de um árduo trabalho construído a partir da região do “entre” terapeuta-cliente.
Nessa perspectiva, o mundo relacional do cliente, parcialmente interrompido,
evitado, nebuloso, distante, frio, rígido, sob o impacto desta relação de confirmação
e inclusão, começa a ser resgatado, no aqui e agora do encontro terapêutico de perfil
fenomenológico e existencial.
Para a construção e manutenção desta especial relação terapêutica, as técnicas
terapêuticas, denominadas de experimentos, estão sempre em função de incrementar
a experiência do cliente. Tais técnicas devem surgir espontaneamente da relação te-
rapêutica, no aqui e agora das sessões. A Gestalt-terapia está aberta para uma infini-
dade de técnicas, desde de que as mesmas estejam a serviço da experiência do cliente
na sua relação com o meio, estando incluso nesse meio o próprio terapeuta. Assim, o
diálogo como mundo pode ser expresso de diversas formas, tais como, a fala, a pro-
posição de exercícios respiratórios, o desenho livre, a expressão do sorriso, do choro,
do silêncio, dos gestos, da escrita, da dramatização de cenas significativas, etc. (Pols-
ter & Polster, 2001). Para clientes com ansiedade significativa, as técnicas expressivas
merecem especial atenção, tendo em vista que o mundo de tais pessoas se apresenta
contido sob diversos ângulos. Expressar-se livremente, seja através de desenhos, tex-
tos, gestos, pode assegurar um apoio à expressão por excelência, a saber, a fala autên-
tica. Os exercícios respiratórios também podem ser incluídos, visando a harmonização
desse ato fisiológico e psicológico de extrema importância para indivíduos portadores
de transtornos de ansiedade.
É importante ressaltar que o terapeuta, nessa ótica, apresenta-se da forma como
realmente é, ou seja, uma pessoa comum, aliás, a relação terapêutica é, antes de mais

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Ansiedade e gestalt-terapia

nada, um contato humano. Dessa maneira, a sua relação com o cliente busca ser au-
têntica e sincera, esforçando-se para se apresentar sem nenhuma fachada por simples
aparência, ou objetivando ser apenas um receptáculo passivo das projeções do clien-
te. Isso significa dar notícias ao cliente de como ele (o cliente) o afeta, mesmo, por
exemplo, quando se sente aborrecido, triste, entusiasmado, alegre, ou mesmo quando
demonstra a sua própria insegurança e ansiedade. Ser uma pessoa autêntica e asserti-
va está a serviço da estratégia básica da Gestalt-terapia de incrementar a experiência
do cliente na sua relação imediata com o mundo.
O incremento da experiência do cliente, a princípio, pode aumentar os níveis
de ansiedade, no entanto, a satisfatória relação terapêutica possibilita que a excitação
siga o caminho rumo à figura mais importante em um dado contexto, favorecendo des-
sa forma, o retorno ao funcionamento satisfatório da awareness e do Ciclo do Contato,
sempre no aqui e agora.
Viver no aqui e agora é viver sem ansiedade patológica.

Considerações finais

A ansiedade é parte integrante da constituição do fenômeno humano. O homem é


um ser biocultural. A sua capacidade de participar ativamente da construção do mundo
o coloca sob a pressão de optar, escolher, tomar decisões, eleger uma gestalt, sobretudo
na sociedade hodierna, tendo, ainda, que se realizar dentro de um período limitado: o
homem tem consciência da sua própria finitude. Esta realidade o torna ansioso. Trata-
-se, no entanto, de uma ansiedade que o impulsiona para o crescimento e a criatividade.
Esta problemática se agrava quando a ansiedade paralisa o seu desenvolvimen-
to. Sob ansiedade disfuncional, o mundo desse homem se torna reduzido, estreitado. O
mundo, então, está fora de foco, ou fora de contato, na linguagem gestáltica. Seja em
seu aspecto existencial ou disfuncional, a ansiedade é companheira do homem desde
o berço até o seu último suspiro.
Sob o ponto de vista metodológico, frente à ansiedade patológica, a Gestalt-
-terapia está aberta a uma série de técnicas denominadas de experimentos que buscam
exatamente ampliar o nível de contato com a experiência de estar no mundo, inerente
a cada um. O experimento visa, então, trazer para o campo da vivência imediata, con-
centrada e intensificada, aquilo que antes era apenas objeto de vagas reflexões e racio-
nalizações e, não raro, de rotas de fuga.
Esse processo de confirmação da experiência do cliente ocorre sobre o que é
evidenciado em primeiro plano, ou seja, o que é constatado fenomenologicamente.
Não se trata, portanto, do terapeuta exercer o papel daquele que sabe diante daque-
le que nada sabe, mas de uma construção conjunta de conhecimento experiencial, no
aqui e agora. Isso resgata o cliente como co-terapeuta de si mesmo, o que contribui
para diminuição da tendência de buscar apoios ambientais, centrando-se mais em seu

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auto-suporte e incrementando a sua auto-estima, fatores bastante comprometidos nos


distúrbios de ansiedade.
A estratégia básica da Gestalt-terapia, a saber, a reconstrução da capacidade de
contato via ampliação da awareness, ataca a ansiedade em suas raízes mais profun-
das. Muito pode contribuir, portanto, no combate desse distúrbio tão presente na so-
ciedade contemporânea.

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Revista da Abordagem Gestáltica – Volume XII 277

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