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Artigo recebido em: 11/12/2011 Artigo publicado em: 13/06/2012

A geografia crítica brasileira e o debate sobre ontologia


do espaço: uma aproximação

The Brazilian Radical Geography and the Debate About the Ontology of Space: an Approach

La Geografía Critica Brasileña y el Debate Sobre la Ontología del Espacio: una Aproximación

Breno Viotto Pedrosa


Doutorando do Departamento de Geografia – FFLCH/USP
e-mail: brenoviotto@hotmail.com

Resumo

No presente artigo exploraremos aspectos desenvolvidos acerca do tema da ontologia do espaço.


Buscaremos explanar sobre alguns autores da geografia brasileira que se dedicaram ao assunto.
Analisaremos como o tema ganha força com a renovação da geografia crítica, de raízes marxistas,
através do itinerário de Armando Correa da Silva, Antonio Carlos Robert Moraes, Milton Santos e Ruy
Moreira. Obviamente nos dias de hoje muitos outros pesquisadores estudam a ontologia do espaço.
Buscamos dessa forma traçar quais foram os elementos preliminares do surgimento da ideia de on-
tologia no contexto da geografia crítica brasileira.

Palavras-chave: Ontologia; espaço; marxismo.

Revista Geografares, n°11, p.139-168, Junho, 2012


ISSN 2175 -370
A Geografia Crítica Brasileira e o Debate sobre a Ontologia do Espaço: uma Aproximação
Pedrosa, B.

Abstract

In this article we will explore some aspects of space’s ontology. We wil try to present some authors in
140 brazilian geography who studied the theme. This theme is linked directly with critical geogragraphy’s
renewal and initially has followed the itinerary of marxism. Armando Correa da Silva, Antonio Carlos
Robert Moraes, Milton Santos e Ruy Moreira are the mains authors. However, in this article we will
try to trace the priliminary circunstances for the rise of the idea of ontology in brasilian’s geography.

Key-words: ontology, space and marxism.

Resumen

En este artículo vamos a explorar algunos aspectos de la ontología de espacio. Vamos a tratar de
explicar acerca de los autores que se han centrado en la geografía brasileña sobre el tema. Este
tema vinculado a la renovación de la geografía crítica y el marxismo en principio siguió el itinerario
de Armando Correa da Silva, Antonio Carlos Moraes Robert Milton Santos y Ruy Moreira. Es evidente
que hoy en día muchos otros investigadores han estudiado la ontología del espacio. Buscamos trazar
las circunstancias que fueron previos a la aparición de la idea de la ontología en el contexto de la
geografía crítica brasileña.

Palabras clave: Ontología; espacio; marxismo.

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A geografia crítica e a ontologia do espaço nada mais foi do que um movimento de posi-
cionamento intelectual que teve drásticas re-
Neste trabalho iremos fazer uma explanação
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percussões institucionais, seja em instituições
sobre a ontologia do espaço dentro do âmbito acadêmicas, seja no ensino ou nas associa-
da geografia crítica brasileira através da obra ções de geógrafos. A tentativa foi de introduzir
de quatro geógrafos: Armando Correa da Sil- a filosofia, a metodologia e a temática do mar-
va, Antonio Carlos Robert Moraes, Ruy Morei- xismo (e em parte do anarquismo) na ciência
ra e Milton Santos. Primeiramente, como uma geográfica com o objetivo de haver um conhe-
breve introdução, faremos uma digressão so- cimento mais politizado frente aos desafios de
bre o processo de surgimento da geografia crí- seu tempo. Buscava-se um conhecimento en-
tica no Brasil para a seguir explorarmos mais gajado capaz de transformar o mundo que fa-
detalhadamente como a ontologia aparece na ria frente à ditadura militar, no caso brasileiro.
obra de cada um dos autores mencionados. Na No âmbito mundial podemos sem mui-
conclusão deste artigo indicaremos algumas ta dificuldade observar os momentos de con-
perspectivas que ainda podem ser exploradas tinuidade e descontinuidade da geografia de
na relação entre geografia e filosofia. inspiração marxista e anarquista desde o sé-
Existe um consenso que o tema da onto- culo XIX com Reclus, Kropotkin e Wittfogel.
logia ganha importância a partir do movimen- Este último mais posteriormente no primeiro
to da geografia crítica brasileira, uma vez que quartel do século vinculado à escola de Frank-
esses geógrafos se ligaram aos filósofos mar- furt. No pós-guerra temos o grupo de geógra-
xistas em busca de aprimoramento metodoló- fos franceses de esquerda com Pierre George,
gico. O que entendemos por geografia crítica Jean Dresch, Jean Tricart, Raymond Guglielmo

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e Yves Lacoste. Esta geração será uma força viram a necessidade de se engajar após a in-
impulsionadora do surgimento da geografia trodução desse novo debate. E outros geógra-

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crítica, pois algumas das questões que esta- fos ainda estavam participando da luta e do
riam em pauta somente após 1968 estavam debate político antes mesmo que essa influ-
pungentes nesse grupo, como por exemplo, a ência científica adentrasse terras brasileiras –
preocupação com a geografia urbana ou a ge- Caio Prado Jr., Orlando Valverde, Armen Mami-
ografia social. Já nos países anglo-saxões, nas gonian, Manoel Correia de Andrade para citar
décadas de 1960-1970, encontramos William alguns. A geografia crítica representou, em
Bunge, Richard Peet e David Harvey geógrafos certa medida, uma negação do que a geografia
da nova geografia que optam pelo marxismo havia construído anteriormente como conheci-
na busca da crítica social. Essas geografias crí- mento. Conseqüentemente classificou-se, al-
ticas que surgem no final de 60 se relacionam gumas vezes, o que havia sido feito como rea-
com matrizes ligeiramente distintas nos EUA e cionário ou como fruto das classes e ideologias
na França uma vez que esses países enfrenta- dominantes. Juntamente a isso, essa geogra-
vam problemas sociais diferentes. No entanto, fia causou uma profunda renovação dos qua-
chegaram em resultados, temas de pesquisa dros institucionais e das agendas de pesquisa.
e metodologias muito próximas – como, por Se por um lado todo o processo ofereceu uma
exemplo, o estruturalismo. O debate da geo- forma de luta efetiva em prol da democracia
grafia crítica chega ao Brasil em meados da ou a favor da construção do socialismo, de ou-
década de 1970 e alguns o recebem como uma tro lado permitiu que alguns intelectuais me-
espécie de obrigação para se adequar ao que nos comprometidos construíssem uma carreira
havia de mais avançando no exterior. Outros acadêmica de rápida ascensão, incorporação e

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prestígio acadêmico. Após a queda do muro dução do conhecimento. Ressaltamos ainda


de Berlin e a dissolução do mundo soviético que certos autores analisados não são claros

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o panorama muda sendo que apenas alguns ao versar sobre o tema misturando matrizes
temas e autores marxistas continuam a ter im- filosóficas distintas não deixando claro seus
portância fundamental. Muitos aproveitando o conceitos e categorias de análise. Ou seja, não
refluxo do centro do sistema optam por aban- apresentam claramente o que seria a ontolo-
donar o marxismo em detrimento da pós-mo- gia em sua concepção. Veremos adiante como
dernidade ou do pós-estruturalismo. Apesar isso ocorre.
das novas escolhas científicas, as mudanças Por que o tema da ontologia ganharia tamanha
institucionais geradas pela geografia crítica já envergadura no contexto da geografia brasilei-
haviam se consolidado. Curiosamente o tema ra? Certamente devido à importância que ela
da ontologia persiste diante dessa mudança. tinha entre os filósofos brasileiros como Ruy
Após essa apresentação inicial vamos Fausto e Arthur Giannotti. A crítica ao estru-
analisar a obra de alguns autores – talvez os turalismo e as leituras althusserianas de Marx
que tiveram maior repercussão – acerca do os encaminhou para o tema. Assim a ontologia
tema. Cabe ressaltar a dificuldade de transitar em Lukács seria uma alternativa para essa si-
pelo assunto, pois o termo e as discussões da tuação de predomínio do estruturalismo. Essa
ontologia são da filosofia. Portanto temos um ligação com a filosofia nacional mostra a espe-
intercruzamento entre um tema científico e fi- cificidade que o debate obteve dentro da geo-
losófico, o que se deve ao fato do marxismo grafia brasileira. Na geografia crítica de outros
ser um campo do conhecimento que nunca se países nos parece que o tema ganhou outra
intimidou perante a divisão intelectual da pro- conotação, ou melhor ainda, teve desenvolvi-

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mentos distintos1. cia através de seu ser. Portanto a ontologia se


Para prosseguir nos cabe agora explicar debruçaria na compreensão ou na resolução

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minimamente o que seria ontologia. Ao obser- filosófica da relação entre ente e do ser. Poste-
var sua definição em um dicionário de filosofia riormente:
encontramos o seguinte excerto: é “a teoria
“Platão integrando ao discurso ontológico a ques-
acerca do ser em geral, acerca do ser como tal,
tão da alteridade entre a Idéia e o ente em geral
independentemente das suas espécies particu- para nesse caso colocar-nos que a essência, o ser
do ente, se encontra na Idéia. (...) Em Aristóteles,
lares. Nesse sentido, ontologia é equivalente
sem abandonar a posição platônica, temos uma
a metafísica, sistema de determinações espe- alteração capital, pois mais que ao perguntar pelo
culativas gerais do ser” (ROSENTAL e IUDIN, ente verdadeiro, derivado do predicado, somos
remetidos a indagar-nos sobre o ente enquanto
1972, p. 124). Martins em seu texto sobre o ente. (...) [Dessa forma] Respondem não o que os
assunto remete à filosofia da antiguidade para entes são, e sim indicam o estar e o ter enquan-
to condição do existir dos entes em geral” (MAR-
demonstrar como o tema surge. O debate se
TINS, 2007, p. 34).
inicia com Parmênides que ressalta à “neces-
sidade de tomar as coisas em geral enquan-
to são, as coisas enquanto entes” (MARTINS, Como vemos na citação acima Platão deu uma
2007, p. 34). Os entes seriam as manifesta- resolução para o problema dizendo que o ser
ções aparentes e encontraríamos sua essên- dos entes estaria contido nas idéias, enquanto
1 A referência clássica é E. Soja em seu Geografias pós-modernas. Nes- Aristóteles colocou que o mais importante se-
sa obra a ontologia surge do estudo da constituição do lugar. No caso de Soja
a necessidade da discussão de uma ontologia se aprofunda com a vontade de ria analisarmos os entes enquanto entes. Ob-
transcender o marxismo e de procurar fontes alternativas para sua metodolo-
gia. Outro texto que pode aproximar-nos com as discussões no estrangeiro é servem a preocupação e a ênfase no estudo
SCHATZKI, Theodore R. “Spatial Ontology and Explanation” in Annals of the
Association of American Geographers, vol. 81, nº 4, 1991, p. 650-670. do estar e ter dos entes em detrimento do ser

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(MARTINS, 2007, p. 34). Sendo assim, para o menologia no caso da geografia humanística.
espaço não haveria um ente ou ser especifico Curiosamente Martins (2007, p. 34-35) indica

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ele seria uma categoria que diz respeito ao es- que a geografia, contrariamente ao dito acima,
tar e o ter de todos os entes. Seria, portanto, toma o espaço como um ser e não como uma
uma propriedade dos entes. categoria. Talvez o debate sobre ontologia na
Após esse momento inicial de surgimen- geografia tenha corroborado com essa visão
to da ontologia vários outros filósofos darão do espaço enquanto ser e não como catego-
soluções diferentes para o problema. No caso ria ou propriedade. Veremos adiante como isso
da geografia crítica, o debate sobre ontologia ocorre.
não se pautará primordialmente na filosofia
Armando Corrêa da Silva e a busca da to-
antiga, pois ele se consolida através da dis-
talidade
cussão da ontologia marxista do ser social. Ao
analisar os quatro autores escolhidos essa ideia Um dos primeiros geógrafos a tratar do assun-
fica bem clara, uma vez que todos percorrem to foi Armando Corrêa da Silva a partir do con-
o itinerário filosófico de Lukács ou de Sartre. tato com seu colega da filosofia José Chasin
Isso não significa que este seja o único cami- (SILVA, 1978, p. 9 e MARTINS, 2007, p. 35).
nho para se pensar a ontologia do espaço, mas Em função dessa influência, Armando Corrêa
quer dizer que vários geógrafos fizeram essa inicia sua busca a partir das ideias de Lukács
opção. No entanto, o panorama se transforma sobre a ontologia do ser social. Observem,
com a inserção de outros filósofos que estão ser social e não espaço. Ou ainda, não o ser
mais distantes da tradição marxista – como, em um sentido heideggeriano que abarcaria
por exemplo, nas discussões acerca da feno- a existência de uma maneira geral, ou seja,

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o fundamento ontológico do ser. É importante ta. Veremos que apesar de todo esse debate a
ressaltar essa diferença para compreendermos ideia de estrutura persiste.

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a delimitação do escopo filosófico de Lukács. Tendo esse panorama em mente, por
O interesse sobre o tema será desdobra- que o tema da ontologia ou a busca do ser (es-
do pelos seus alunos de pós-graduação Anto- sência) do espaço surgiria com grande impor-
nio Carlos Robert Moraes, Ruy Moreira e Élvio tância? Para Silva (1982, p.72), formado ori-
Rodrigues Martins. Em todos os seus discípulos ginariamente nas ciências sociais, esse debate
as ideias de Lukács vão ser recorrentes, seja seria fundamental, pois os fatos sociológicos
de uma maneira mais integrada ao sistema explicariam o ser social. Ou seja, os fenôme-
filosófico lukacsiano, seja adotando somen- nos estudados pela sociologia só teriam razão
te algumas de suas características. Todo este de ser, só seriam explicados em sua totalidade
contexto está ligado diretamente ao ambiente ou constituiriam leis gerais, à luz do ser social
da filosofia uspiana onde a crítica ao estrutura- ou da essência da organização social. Portan-
lismo e à obra de Althusser estava diretamen- to, cabe buscar o ser do espaço que explicaria
te ligada à ontologia como dissemos acima. O da mesma maneira os fatos espaciais ou geo-
existencialismo de Sartre ou as reflexões epis- gráficos.
temológicas de Lukács serviriam como leitu- O grande problema de nossa disciplina,
ras alternativas à interpretação de Althusser é que a geografia passaria pelo que Silva cha-
(ARANTES, 1994, p. 302-340). Interessante- ma de impasse aristotélico-kantiano. De um
mente isso não significa que os geógrafos irão lado temos Aristóteles que se debruça sobre
romper totalmente com o estruturalismo ao uma geografia empírica e lógica analisando o
contrário do que acontece na filosofia marxis- movimento do ser através da manifestação de

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seus entes. E de outro lado Kant que coloca método geográfico e da especialização cientí-
como questão central o pensamento puro e fica seria a perda do sentido de totalidade do

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o pensamento prático ou ainda a questão da conhecimento ou o que ele chama de crise da
aparência e da realidade através da criação ciência burguesa (SILVA, 1978, p. 74 e 87).
do espaço enquanto categoria básica de orde- Diante dessa problemática acrescenta-
namento do pensamento humano2. Junta-se -se na proposta de Armando o debate de uma
a isso, o fato da maioria dos geógrafos não série de questões que ele julga serem atrasos
conseguir atingir uma análise da totalidade na e polêmicas da ciência geográfica, como por
opinião de Silva (1978, p. 5-6). A geografia se exemplo, o empirismo e o racionalismo dentro
caracterizaria por conceitos e categorias, mas da geografia, as indagações sobre a concretu-
não por um método geográfico próprio. Silva, de das estruturas sociais, a natureza das re-
em dado momento, o concebe como se fosse lações na geografia3, a existência da dialética
formado a partir de uma mistura de métodos da natureza e até mesmo se haveria resolução
de outras ciências. O resultado da falta de um consensual para o que seria o espaço (SILVA,
2 Gostaríamos de esclarecer que o espaço para Kant não é simples- 1982, p. 75). Ora tudo isso aparece de uma
mente um quadro ou uma categoria a priori que organiza a percepção humana.
Esse ponto de vista kantiano surge no final de sua longa carreira filosófica. Ao forma ou outra ligada ao problema da ontolo-
consultarmos um dicionário de geografia fica claro que a primeira posição de
Kant é que a geografia seria uma ciência classificatória e descritiva. É somente gia do espaço o que dificulta e torna complexo
na Crítica da razão pura que Kant vai denotar um maior valor para a imateria-
lidade do espaço que organiza a atividade do pensamento subjetivo. Aqui o o entendimento do debate sob sua perspecti-
espaço não seria nem real, nem uma substância e nem uma relação (GREGORY
et alli, 2009, p.399-400). Dessas duas posições derivam interpretações distintas va. Assim, sua busca é de uma ontologia do
sobre a natureza da geografia. Nos parece que essa última concepção do espaço
kantiano como quadro, foi a que preponderou nas interpretações da geografia espaço que atinja a totalidade e fundamente
crítica. Agrava ainda mais a situação o fato do pensamento kantiano estar as-
sociado ao pensamento burguês principalmente para o marxismo ortodoxo. No
fundo o impasse que Armando aponta é se o espaço seria um elemento exterior 3 Como se dariam às relações entre lugares e ainda se a relação entre
ou interior ao homem. homem e natureza seria meramente ecológica ou dialética.

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um campo de estudo. Outra dificuldade ao se te pensem sobre a realidade social, ou seja,


deparar com a obra de Silva, é que apesar dele que não sejam meras abstrações. Nesse sen-

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referenciar muito bem suas fontes, há uma tido Harvey e Lacoste, ambos estruturalistas,
mistura dos problemas epistemológicos da ge- são referências fundamentais. De Harvey Silva
ografia contrapondo debates de contextos e pensa a questão do espaço absoluto, relacio-
de épocas diferentes com problematizações de nal e relativo. O espaço absoluto seria dotado
dentro e fora da disciplina. Isso tudo surge em de materialidade e o espaço relacional reme-
nome de uma preocupação com a totalidade te às proposições de Leibniz que fundamen-
concreta e com o método. Ele tenta colocar em ta o espaço através da co-presença de diver-
consideração de maneira simultânea o “objeto sos objetos ou unidades chamadas mônadas.
e [o] método, que, como determinação, põe o A busca aqui é por um espaço que seja mais
problema da práxis intelectual e da legalidade voltado para a análise social e que se emanci-
do trabalho teórico” (SILVA, 1982, p. 76). pe de uma concepção cartesiana e geométrica
Sinteticamente as ideias se encaminha- tout court. Armando indica que o espaço para
rão da seguinte maneira: Silva (1982, p. 76- Harvey não é visto como ser uma vez que está
77) irá criticar a geografia empiricista e vai ancorado nas ações e nas relações humanas.
fazer uma contraposição com aquela que bus- A outra referência fundamental é a ideia
ca teorias gerais. Segundo o autor a análise de Lacoste acerca da espacialidade diferencial.
ontológica busca uma solução não sistêmica Segundo Lacoste ao mudar de escalas há tam-
para a contradição entre racionalismo e em- bém uma mudança de fenômeno, sendo que a
pirismo (SILVA, 1982, p. 82). Em seguida Ar- primeira deve ser estruturada para apreender
mando busca modelos ou teorias que realmen- múltiplas formas de realidade (SILVA, 1982, p.

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77-78). Essas considerações ajudaram o autor realizar essa tarefa se depara com a obra de
a definir a estrutura espacial não como me- Milton Santos que apresenta as instâncias so-

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ramente uma formação ideológica, mas como ciais de maneira sistêmica. Demonstra que a
um atributo do espaço. Desse conjunto Silva totalização ou as variáveis universais se dão
compõe uma forma de análise que o satisfaz através da técnica e das empresas multinacio-
mais, enquanto Harvey remete a dialética de nais o que permite dar ênfase espacial à es-
Marx ao ver o espaço como resultado da ação trutura interna de cada nação compreendendo
humana, Lacoste adota o estruturalismo e ins- a dinâmica de fluxos e a ligação entre o total
trumentaliza a espacialidade diferencial que e o local (SILVA, 1982, p. 79). O contato com
permite analisar diversos conjuntos espaciais as ideias de Milton terá muita repercussão na
em várias escalas (SILVA, 1982, p. 78). A aná- concepção de Silva nesse momento.
lise estrutural de Lacoste também se preocupa Armando Corrêa da Silva aponta ainda
com os discursos, o que remete à epistemolo- para uma ontologia do espaço na obra de Re-
gia por detrás do espaço, identificando as ide- clus, pois interpreta o geógrafo francês admi-
ologias contidas nos objetos (SILVA, 1982, p. tindo que o espaço determina a organização
78). Em outra situação Silva ainda nos coloca das sociedades e que a história humana refle-
que o espaço se funda nas categorias de loca- te as desigualdades sociais através das nações
lização, situação e distribuição (SILVA, 1978, (SILVA, 1982, p. 84-85). Na nossa interpreta-
p. 11-19). ção, Reclus é uma espécie de inspiração sobre
Após essa análise Silva quer compreen- o que seriam os estudos com base na ontolo-
der as especificidades da composição do co- gia ou como ela poderia ajudar a geografia no
nhecimento geográfico no terceiro mundo. Ao tocante à manifestação dos fenômenos con-

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cretos. lar de sua idéia de subtotalidade. Silva está


É interessante notar na obra de Silva que em busca permanente da totalidade ao mesmo

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mesmo inspirado pelo estruturalismo, ele não tempo em que sabe que é impossível alcançá-
deixa de atentar para a análise paralisante que -la – novamente muito provavelmente em fun-
as estruturas poderiam proporcionar. Sartre é ção da ideia de totalização para Sartre. Nos
quem lhe indica esse fato e a necessidade de parece então que Silva vê a vocação para a
ver a sociedade em movimento – provavel- totalidade da geografia, mas essa seria uma
mente em função da ideia de totalização (SIL- totalidade restrita aos elementos geográficos
VA, 1982, p. 90). Nesse contexto, a obra de ou espaciais:
Lukács surge como solução para a mudança
“A idéia de subtotalidade é uma transposição,
de análise entre a totalidade e o lugar, ou seja,
para a dialética, do problema do todo e partes do
entre o universal e o singular. A mediação e a estruturalismo. É fácil compreender que, tratando
do conhecimento em seu conjunto, a idéia de sub-
contradição entre o universal e o singular seria
totalidade pode justificar a existência de qualquer
o particular. Este último conteria valores uni- conhecimento específico: em meu caso, da geo-
versais, mas seria único em sua singularidade grafia” (SILVA, 1982, p. 80).

ao mesmo tempo em que seria um momento


Talvez toda a preocupação em esclare-
específico do processo histórico (SILVA, 1982,
cer a subtotalidade seja no sentido de justi-
p. 86). Talvez essa digressão até Lukács reflita
ficar a existência e a importância do conheci-
a busca e a necessidade pelo movimento ou
mento específico da geografia. E mesmo com
pela resolução não sistêmica da relação entre
sua concepção de subtotalidade a ontologia
o racionalismo e o empirismo.
continuaria a ser um elemento universal, ou
Por último não poderíamos deixar de fa-

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seja, um espécie de totalidade limitada espa- e instrumentos da nova geografia. Por outro
cialmente que se refere a outros elementos lado o tema da co-existência social foi assunto

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menores, subordinados e dependentes. inspirador para o desdobramento de sociólo-
Após todo o desenrolar do debate de Ar- gos muitos anos depois – como A. Giddens. No
mando Corrêa da Silva vemos a grande quan- entanto, as reflexões inovadoras de Armando
tidade de questões que ele pretende abordar. Correa da Silva incorporam o espaço relacional
De um lado temos um debate da época que diz pela obra de Harvey e dotam o espaço de uma
respeito ao estruturalismo e de outro lado te- densidade histórica estrutural, além do ser do
mos uma discussão de vem desde a geografia espaço remeter ao papel de produto e produ-
moderna até os dias de hoje entre racionalismo tor da sociedade. E seguindo seu argumento
e empirismo. Queremos ressaltar que apesar a “ontologia [do espaço], uma vez delimitada,
de Silva mostrar Leibniz como uma alternativa remete à epistemologia”, ou seja, às formas de
para se pensar os espaços sociais pensamos constituição do conhecimento (SILVA, 1986, p.
que este filósofo é uma falsa alternativa. Isso 98 e 131).
porque seu espaço relativo não possui gran-
A presença seminal de Lukács na obra de
des contrastes se compararmos à geometria
Antonio C. R. de Moraes
cartesiana. Sendo assim o espaço relacional
melhora a análise espacial, mas não dota o Em 1979 na revista da União Paulista de Estu-
espaço de uma maior densidade histórica nem dantes de Geografia, Antonio Carlos Robert de
o aproxima de um modelo mais ligado à di- Moraes também faz suas reflexões sobre uma
nâmica social. Tanto é que o espaço relacio- ontologia do espaço, porém logo após aban-
nal e o espaço absoluto foram grandes motes donaria a ideia. Apesar disso, pensamos que

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ele é um autor que irá constituir uma ideia de versaram sobre o materialismo histórico. Cita
ontologia do espaço coesa se baseando prin- Bertoquy um geógrafo mexicano que à moda

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cipalmente na obra de Lukács. A sua pergunta de Pierre George tentou conciliar contradito-
original sobre o assunto é a seguinte: riamente Marx e a geografia tradicional (MO-
RAES, 1982, p. 66-67). No interior do mar-
“Como realizar um estudo do espaço dentro do
xismo, o espaço também seria relegado a um
materialismo histórico, em que ele não seja ape-
nas receptáculo de fenômenos determinados por segundo plano devido à citação da Ideologia
outras instâncias do real? Como efetivar a apro- alemã em que Marx insinua que toda ciência
priação total do espaço, apreendendo-lhe a es-
sência? Como apreender esse ser específico sem é histórica. Paralelamente à geografia e com
autonomizá-lo e sem empobrecer-lhe a singula- base no marxismo surge a sociologia espacial:
ridade? Como realizar um corte no real sem cair
num procedimento positivista?” (MORAES, 1982,
“(uma projeção das relações sociais no espaço
p. 65-66).
concreto, atentando para as contradições gerais
do capitalismo), reduzindo o objeto ao seu aspec-
Isso porque para Moraes dentro da geo- to fenomênico, assim um espaço dado, determi-
nado diretamente pelas leis gerais da acumulação
grafia o debate sobre o espaço se faz sob um
capitalista. De um lado os lugares (locais de ocor-
ambiente lógico e não dialético através de Kant rência) com seus arranjos únicos de mediações in-
e Leibniz. Por outro lado o espaço social havia cognoscíveis, de outro, as leis abstratas do modo
de produção. O espaço como receptáculo” (MORA-
sendo tratado por outras ciências de maneiras ES, 1982, p. 68).
diversas como é o caso, por exemplo, do urba-
nismo (MORAES, 1982, p. 66). Mesmo nesse tipo de sociologia, na opinião do
Após essas considerações seu próximo autor, o espaço é visto positivamente como
passo é tentar identificar os geógrafos que fato. Não há uma ideia real de dialética do es-

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paço uma vez que ele ainda é visto como re- lética entre sujeito e objeto. Assim:
ceptáculo. Tudo isso se deve ao não aprofun-
“A proposta lukacsiana desde logo referenda (e

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damento da metodologia marxista. Todavia,
elucida) o primado gnoseológico da existência re-
os marxistas que tentaram fazer sociologia forçando o fundamento materialista da anteriori-
dade do ser em relação à consciência. Assim, as
espacial têm uma contribuição concreta para
coisas têm uma existência anterior e exterior às
pensarmos. Todo esse conjunto foi visto como representações que os homens delas fazem. Esta
ponto de partida da reflexão e não sob uma prioridade e exterioridade do real frente ao conhe-
cimento é um dos pontos basilares da proposta
crítica anuladora. Ao ignorarmos esses auto- lukacsiana” (MORAES, 1982, p. 68).
res estamos fadados a cometer os mesmos
equívocos. O conhecimento e a realidade concreta se
Digressões à parte, para Moraes Harvey apresentam como momentos de particularida-
e Milton seriam os autores que mais teriam ca- des sucessivas que delineiam o movimento do
minhado para a construção de uma concepção ser. Portanto, temos a aproximação possível
dialética do espaço (MORAES, 1982, p. 68). de um determinado objeto em um momento
Paralelamente a esses desenvolvimentos para concreto logo ultrapassado pelo movimento da
Moraes Lukács seria um autor importante de- totalidade real.
vido ao seu encaminhamento metodológico. Sendo assim, cabe esclarecer que o ser
Seu método seria claro e adequado para estu- para Lukács tem um aspecto diferente dos an-
dar o espaço, pois versaria sobre “seres indi- tigos ou de outros filósofos. O ser seria visto
vidualizados, de existências e formas de ma- a partir do materialismo histórico e dialético, e
nifestação específica” (MORAES, 1982, p. 68). o que determinaria a dificuldade de apreensão
Reflexões que seriam aprumadas por uma dia- seria seu constante movimento (movimento

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singular e movimento da totalidade da exis- ontologia se propõe enquanto base científico-


tência) e não uma essência eterna imutável no -filosófica para apreensão da realidade. Agora

154
nível das idéias. O ser é parte movente e parte é que a situação se dificulta em nossa opinião:
movido sendo que sua complexidade se cons-
“Desde logo, devemos admitir o espaço enquanto
titui a partir da origem genética ou histórica
natureza em si, como existência objetiva anterior
que remete às ligações entre os mais diver- ao homem, manifestação de formas de materia-
lidade inorgânica e orgânica, engendrando numa
sos fenômenos que conhecemos. A totalida-
história natural, onde as transformações ocorrem
de, portanto se compõe de vários fenômenos sem a impulsão finalística. Este espaço é uma rea-
(MORAES, 1982, p. 69). Em seguida Moraes lidade fáctica, o reino absoluto da causalidade. Em
termos lógicos e históricos, admitimos que é nesta
se refere à crítica que Lukács faz acerca da realidade que se forma o ser social, forma mais
fragmentação dos conhecimentos, e conse- elevada da materialidade. Este se transforma te-
leologicamente (com finalidade) e o mundo exter-
qüentemente dos aspectos do ser, o que reve-
no através do seu trabalho. Apropria e transforma
la uma ciência decadente e incapaz de ter uma esse espaço natural, imprimindo-lhe sua marca;
faz dos objetos naturais formas úteis à vida hu-
visão total da realidade. Logo em seguida, nos
mana. O apropriar-se do espaço concreto implica
coloca que o fundamento ontológico do ser so- na elaboração de categorias lógicas sobre o espa-
cial, ou aquilo que funda a sociedade ao mes- ço. (...) Noções como distância, extensão, fron-
teira, assim como a consciência do espaço grupal
mo tempo em que permite o surgimento do e a demarcação do domínio territorial são engen-
pensamento científico é o trabalho (MORAES, dradas no trabalho social, são ilações da prática”
(MORAES, 1982, p. 71).
1982, p. 69). Através dele o pensamento hu-
mano tem teleologia e há uma previsibilidade
Assim Moraes acredita ter desatado o
das conseqüências do ato humano, ou seja, a
que chama nó górdio da geografia: para Kant
capacidade de pensar o futuro. Dessa forma a

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o espaço era uma mera categoria lógica do do espaço não reproduziria à visão do espa-
entendimento e para a geografia “tradicional” ço como um elemento exterior que oferece as

155
o espaço era somente a superfície terrestre, potencialidades para o desenvolvimento hu-
uma categoria eminentemente empírica. Atra- mano? Como vimos acima Lukács fala sobre
vés de Lukács há uma superação dessa dico- a ontologia do ser social e não do espaço. O
tomia, pois se demonstra como o trabalho é trabalho tem claramente um papel fundamen-
fundador prático das categorias de entendi- tal, mas o fato é que Lukács não evidencia o
mento humano ao mesmo tempo em que é papel do espaço, apesar dele ser claramente
transformador (apropriador) da superfície ter- uma base material.
restre (MORAES, 1982, p. 72). O espaço se A necessidade de digressão para o de-
apresenta “como categoria histórica-concreta, senvolvimento do argumento filosófico faz
remetendo a um ser em movimento. O ser já Lukács cair no momento original de hominiza-
não é uma ‘natureza em si’ mas uma ‘nature- ção do homem que se dá através do trabalho.
za para o homem’ (...) e dinâmica própria da A continuação lógica do seu raciocínio histó-
materialidade social” (MORAES, 1982, p. 72). rico seria observar então quais são os próxi-
Ao final do texto, conclui que agora nos cabe mos movimentos da civilização ou da cultura
buscar as singularidades das formações terri- humana como, por exemplo, o desenrolar dos
toriais, ideia que nos parece vai orientar sua modos de produção. Talvez seja por isso que
produção intelectual durante um longo perío- Moraes se debruçou tão longamente sobre a
do. formação territorial e sua relação com o pen-
O que nos cabe perguntar diante do samento geográfico. Ou seja, como o trabalho
exposto é se Lukács para pensar a ontologia transforma o espaço e ao mesmo tempo em

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que produz um conhecimento prático. ao entendimento filosófico do indivíduo do que


A seguir após uma rápida explanação à ontologia social de Lukács. Além disso, para

156
sobre a produção de Ruy Moreira argumenta- Heidegger a consciência da morte, a presenti-
remos como a obra de Milton Santos foi fun- ficação da existência, o tempo vivido e o “ser
damental no sentido de observar o papel das decaído” parecem ser muito mais importantes
técnicas integradas à materialidade e ao pro- na constituição da ontologia do homem do que
cesso do trabalho. o trabalho. A discussão sobre a ontologia po-
dem apresentar muitas variáveis comuns en-
Ruy Moreira e a geograficidade quanto exame do ser, porém se tomarmos a
obra filosófica como um todo o sentido e as
Acerca da obra de Ruy Moreira confessamos
ideias podem ser bem diferentes. O fato con-
de imediato nossa grande dificuldade. Isso
creto é que Lukács faz críticas a Heidegger em
porque o autor mistura uma grande quantida-
sua obra A destruição da razão (KOLAKOWSKI,
de de matrizes, sistemas e obras de autores
2005, p. 1014).
muito díspares, como por exemplo, o próprio
Independentemente disso Moreira dedi-
Lukács e Heidegger. Além disso, o próprio pon-
cou parte substancial de sua vida intelectual ao
to de partida de sua ontologia não nos pareceu
assunto. Em um de seus trabalhos mais deba-
claro. O que seria a ontologia? Seria tomado a
tidos Moreira traça um paralelo entre a história
partir de Lukács ou da Heidegger? Apesar de
da geografia e sua discussão sobre o marxismo.
ambos darem importância à dimensão histó-
Sendo assim vai até os clássicos do marxismo
rica (contraposição entre história e historicida-
e aos geógrafos que versaram sobre a relação
de) talvez Heidegger esteja mais direcionado
entre geografia e marxismo para dotar-lhes de

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um sentido ontológico4. Ao transitar por todo Frente essa constatação Moreira recupe-
esse caminho se depara com a ideia de que ra as idéias da Ideologia alemã de Marx para

157
uma ontologia do espaço seria constituída pelo demonstrar não apenas o caráter humanizante
que chama de metabolismo entre natureza e do trabalho, mas também a relação entre ne-
sociedade. As categorias gerais do marxismo cessidade e liberdade. Ou seja, como o traba-
e da geografia que podem encaminhar para lho consegue tornar o homem pleno em con-
uma análise ontológica são natureza, trabalho traposição ao papel alienante da propriedade
e o homem (MOREIRA, 2004, p. 23). O resul- privada, o que não é exclusivo do modo de
tado do processo é a riqueza e a produção de produção capitalista. Para Moreira (2004, p.
valores de usos nas diversas sociedades hu- 30) essa questão se resolve “ontologicamen-
manas. Logo após, Moreira recupera a ideia te”. A partir dessas reflexões surge a sua ideia
de paisagem natural e cultural para declinar de geograficidade que exemplifica a mistura
de uma posição que considere a técnica como filosófica que havíamos nos referido anterior-
valor fundamental para mensurar os estados mente:
civilizatórios ou de evolução social (MOREIRA,
“Designamos geograficidade à condição espacial
2004, p. 26). Apesar dos avanços da geografia da existência do homem em qualquer sociedade.
O equivalente do que em filosofia Heidegger de-
marxista dos geógrafos franceses de meados
signa a mundanidade do homem. Ou em outro
do século XX para Moreira (2004, p. 28) o que contexto Hegel designa o ser-estar do homem no
se produziu foi um conhecimento fragmentário mundo. O acento marxista é o enraizamento des-
sa mundanidade de Heidegger, desse ser-estar-
que não conseguiria constituir a totalidade. -no-mundo de Hegel, no âmbito do metabolismo
do trabalho” (MOREIRA, 2004, p. 32).
4 Lembrando que esse procedimento do ponto de vista da história das
ciências pode ser acometido por uma série de anacronismos.

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A ideia surge como num mosaico onde plicitar o seu ser geográfico” (MOREIRA, 2004,
um autor dá continuidade ao outro, porém eles p. 34)5. Assim temos a impressão que devido

158
possuem temáticas e sistemas filosóficos dife- à dificuldade de definição ontológica se esgota
rentes. Não que eles não sejam passíveis de a diferença entre essência e ente. Além disso,
diálogo, mas não conseguimos compreender o na geograficidade se confunde o ser do espaço
desdobramento e a relação das ideias de cada e o ser do homem que pensamos serem fe-
pensador uma vez que elas não podem ser to- nômenos diferentes apesar de indissociáveis.
madas por partes desconexas de um sistema O texto nos instiga indagações do tipo: qual
de pensamento maior. Talvez em algum outro a diferença entre ente e ser? Qual o método
lugar essas ilações tenham sido esclarecidas. para transitar entre um e outro? Em Lukács,
Diante da obra de Moreira a influência por exemplo, há uma coincidência entre ser e
de Lukács continua tanto na ideia do trabalho ente? A nosso ver não, porque o ente se mani-
quanto na do trinômio universal-particular- festa enquanto momento concreto e a essên-
-singular abarcando a totalidade. A geografi- cia se apresenta como a totalidade do movi-
cidade aparece como síntese da essência e da mento histórico dotado de uma complexidade
existência, ou seja, da “própria totalidade con- que não tem fim, uma vez que a totalidade
creta do ser” (MOREIRA, 2004, p. 34). E mais concreta está sempre em movimento. Por isso,
adiante a aparência é definida como a própria em seu sistema filosófico a verdade é datada e
essência rumo à síntese: “A geograficidade 5 Martins (2004, p. 41) reflete sobre essa visão de uma geografiacida-
de homem-espaço no sentido que “A essência do ser configurar-se-á a partir
parte do ente, vai da existência à essência – de determinação geográficas e (históricas), posto que são determinações da
existência. O ser do homem se confundirá com a mundaneidade do meio, em
caminho mediado pela forma e pelo conteúdo que a dicotomia entre homem-meio é superada quando tomamos o nosso ser
a partir das nossas objetivações, e de nossas objetivações na construção da
– para retornar de volta ao ente e enfim ex- subjetividade”.

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efêmera pautada nos diversos momentos his- crítica pensamos que ela reflete parte do de-
tóricos (HOLZ e KOFLER, 1969). bate que Milton Santos realizou em sua traje-

159
Em outra obra Moreira (2008, p. 135 et tória. Ao olhar o índice da obra e sua primei-
passim) explora novos temas da ontologia que ra parte fica evidente que Santos tenta dar à
crê possuírem importância fundamental. O pri- obra um sentido ontológico. O autor, além de
meiro é como a modernidade modifica as re- propor uma teoria, tenta demonstrar como o
presentações e os arranjos espaciais causando espaço se constitui como ser.
drásticas conseqüências. Em seguida explora Na primeira parte da obra a preocupa-
a diferença individual sob um viés ontológico ção com a aceitação ou o uso de categorias
e por fim versa novamente sobre a geografi- de outros campos do conhecimento é grande.
cidade e a idéia lukacsiana de sociabilidade. E é no tocante a isso que a ontologia surge:
No entanto, podemos notar que mesmo dialo- “as categorias de análise, formando sistema,
gando com outros autores a raiz lukacsiana da devem esposar o conteúdo existencial, isto é,
reflexão e a busca pela totalidade continuam devem refletir a própria ontologia do espaço, a
presentes. partir de estruturas internas a ele” (SANTOS,
2004, p. 23). Com essa perspectiva em men-
Milton Santos e a centralidade da técnica
te a geografia deverá se apropriar – enquanto
disciplina – de outras categorias para explicar
O tema da ontologia está presente também na
a ontologia do espaço a partir de suas próprias
obra de Milton Santos e é discutida mais ex-
categorias internas. Seguindo esse raciocínio
plicitamente em A natureza do espaço. Apesar
seguramente a técnica tem um papel funda-
dessa obra ser posterior ao início da geografia
mental:

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perpassam diversos períodos históricos.


“A centralidade da técnica reúne as categorias
Cabe ressaltar nesse momento que essa
internas e externas, permitindo empiricamente

160
assimilar coerência externa e coerência interna. concepção de técnica como um dos fundamen-
A técnica deve ser vista sob um tríplice aspecto:
tos do espaço está muito ligada às idéias que
como reveladora da produção histórica da reali-
dade; como inspiradora de um método unitário Santos retirou da Ideologia Alemã de Marx.
(afastando dualismos e ambigüidades) e, final- Lembremos que muito da teoria antropológica
mente, como garantia da conquista do futuro,
desde que não nos deixemos ofuscar pelas técni- marxista da origem do homem e da sociedade
cas particulares, e sejamos guiados em nosso mé- foi retirada dessa obra. Não nos esqueçamos
todo, pelo fenômeno técnico visto filosoficamente,
também que nesse momento do pensamento
isto é, como um todo” (SANTOS, 2004, p. 23).
marxiano a idéia de modos de produção está
As técnicas permitiram nos relacionar- mais ligada ao nível tecnológico e material. É
mos bem com outros campos do conhecimen- somente em O Capital que Marx dá uma gui-
to fazendo mediações entre categorias inter- nada e pensa o modo de produção dando ênfa-
nas e externas. Não podemos deixar de pensar se às relações de produção e de propriedade.
igualmente que não existe trabalho sem técni- A materialidade e o nível técnico guar-
ca mesmo os trabalhos mais simples. Ambos dam em si uma intencionalidade que por ve-
se agregam no espaço e o constituem histori- zes podem exigir certas finalidades. Vejamos
camente. O que é interessante nesse raciocí- o que diz o autor: “noções fundadoras do ser
nio é que técnica e trabalho morto aparecem do espaço, susceptíveis de ajudar a encontrar
como formas sociais que são herdadas e que sua busca da ontologia: a técnica, o tempo,
podem possuir conteúdos diferentes nos di- a intencionalidade materializados nos objetos
versos modos de produção. São formas que e ações” (SANTOS, 2004, p. 23-24). Apesar

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do trabalho não ser citado explicitamente, te- latente entre os indivíduos, ligada, por exem-
mos aí as categorias que assentam sua ideia plo, às relações sociais do lugar no tocante a

161
de ontologia em que o espaço aparece como pobreza do terceiro mundo.
ser. É justamente essa intencionalidade que Com a intencionalidade acrescida da ação
fundamentará a ontologia para Sartre (GILES, prática do trabalho e tendo a técnica como o
1975, p. 327) fazendo confrontar e criando conhecimento intermediador desse processo
contradições entre o ser em-si e o para-si, as Sartre cinde a práxis:
duas regiões fundamentais da consciência (re-
“Mas se os homens não pudessem tornar-se uten-
parem que no existencialismo a essência só é
sílios, fazendo modificações em seu ambiente, não
possível com a consciência e a existência; o podiam modificar nada. Não existiria a práxis. A
em-si seria idéia ligada à consciência de um pura cerebração não conseguiria nada. O aspecto
físico do ser humano é, literalmente, seu conta-
individuo material)6. Não é somente nesse to com o mundo; e utilizando a si próprio como
caso que a relação entre Satre e Milton San- instrumento, modifica as coisas. Os utensílios são
simplesmente extensões das mãos” (GILES, 1975,
tos se estabelece, a ideia de projeto também p. 362).
evidencia a influência sartreana em sua obra.
Claramente o projeto só se constitui se car- Vislumbra-se o vulto da ideia original da
regado de intencionalidade e obviamente se práxis marxista em que a filosofia se supera
há discrepância formam-se conflitos (GILES, através da realização prática. A partir do elo
1975, p. 340). Nesse sentido há uma dialética de realização do trabalho através da práxis in-
social entre a atitude solidária e a escassez termediada pela técnica se revela a indissocia-
6 Agora nos cabe ter clareza que a posição filosófica de Sartre é oposta bilidade entre o humano e o não-humano ao
a do materialismo ortodoxo uma vez que para ele a consciência funda a exis-
tência. mesmo tempo em que se forma parte do ter-

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ritório. Nesse momento as formas-conteúdos todas as demais. Por exemplo, uma casa vazia é
um prático-inerte, mas uma vez habitada torna-
são fundamentais para a ontologia do espaço:
-se um lar e o centro das atividades unificadoras”

162
“Por adquirirem uma vida, sempre renovada (GILES, 1975, p. 355).
pelo movimento social, as formas – tornadas
assim formas-conteúdo – podem participar de Diante do exposto nos parece que sua

uma dialética com a própria sociedade e as- obra busca em vários momentos ter um senti-

sim fazer parte da própria evolução do espa- do ontológico para fundamentar a gênese e o

ço” (SANTOS, 2004, p. 106). Por fim, Santos desenrolar do ser do espaço. Ele é visto como

nos coloca que o espaço é uma síntese provi- uma instância e devemos lembrar que para

sória – muito próximo da idéia de totalização Althusser as várias instâncias compõem a to-

de Sartre – das formas e do conteúdo social. talidade. Assim Santos de uma maneira com-

Sociedade e espaço fazem um par dialético na pletamente inovadora consegue unir o projeto

medida em que mantém relações contraditó- estruturalista que tem suas bases nas idéias

rias e inseparáveis (SANTOS, 2004, p. 109). de Althusser ao existencialismo e seu foco na

O processo de totalização e sua concepção de ação do indivíduo ao modo de Sartre. Fato que

totalidade estão ligadas a Sartre. Temos assim responde aos problemas que se aprofundaram

outra similaridade entre o fundamento do es- na geografia norte-americana e inglesa, mas

paço e a totalização: que não foi amplamente celebrado e debati-


do no Brasil. Essa idéia foi certamente inspi-
“O aspecto unificador de um ato é a totalização rada por Sartre, pois como coloca Giles (1975,
de um ato não-terminado, mas que pode ser con-
p. 352) “Sartre considera que o materialismo
siderado assim, sinteticamente, quando conside-
ramos cada parte em termos da sua relação com aniquila o sujeito e até a própria dialética, pois

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se o sujeito é apenas matéria, não pode haver Cremos que essa visão é muito discre-
dialética”. Sendo assim, há uma composição pante da nossa, porque pode causar uma va-

163
como indicamos acima da visão de Sartre e lorização indevida da história do pensamento
Althusser. geográfico. Indevida porque vai tender a re-
Pensamos que já temos agora elemen- valorizar conceitos ultrapassados e descon-
tos suficientes para traçar algumas considera- textualizá-los tentando atrelá-los às temáticas
ções finais. que não lhe são próprias. Não é possível um
“marxocentrismo” para pensadores fora do
Considerações Finais
âmbito do marxismo. Ou seja, analisar e uti-
lizar o gênero de vida com um olhar marxista
Ao retomarmos as considerações de Ruy
ou com referenciais do materialismo histórico
Moreira entre a relação da geografia com o
não vai resolver a questão. O que se deve fa-
marxismo vamos encontrar o seguinte excer-
zer é compreender os geógrafos antigos em
to:
seus contextos tentando enxergar o seu papel
“Em se tratando da condição geográfica da exis- e sua obra intelectual como um todo. O impor-
tência humana, o olhar marxista é que deve afei- tante é compreender suas influencias filosó-
çoar-se ao arsenal categorial, conceitual e lin-
güístico da geografia. Trata-se menos de fazer de ficas e não tentar encaixar novas influencias
Marx um geógrafo, ou esperar ver uma geogra- que não se realizaram e que apenas se insinu-
fia nos escritos de Marx, que fazer da geografia
uma forma de olhar pelos olhos de um referen-
am. Só assim entenderemos o desenvolvimen-
cial marxista, mas com as formas e categorias de to das idéias e poderemos dimensiona-las na
olhar próprias. O olhar do marxismo emprestaria
atualidade. Para nós a geografia marxista deve
o foco.” (MOREIRA, 2004, p. 30).
procurar o pensamento geográfico em Marx e

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nos marxistas uma vez que estes de fato mo- pode ter com concepções fundadas no mate-
bilizaram categorias próprias da disciplina. Se rialismo dialético ou no pensamento heidegge-

164
a geografia versa sobre a existência humana riano sem tê-lo explicitamente talvez signifi-
– e seguramente o faz – então as relações en- que mistificar a história da ciência.
tre homem e meio são um elemento que está O debate da ontologia surgido em par-
presente na obra dos marxistas. Por outro lado te do marxismo, no caso da geografia, teve
os geógrafos que tentaram fazer uma aproxi- muitos desenrolares como vimos. Para com-
mação entre geografia e marxismo precisam preendê-lo a fundo devemos retornar aos
ser mais estudados com a restituição de seus fundamentos de Sartre, Lukács e de Marx da
contextos, com a compreensão de sua produ- Ideologia alemã e dos Manuscritos filosóficos.
ção e seus avanços teóricos. A relação entre Isso porque no nosso entender Lukács oferece
geografia e marxismo ou geografia e pensa- uma compreensão específica do ser e porque
mento crítico não se inicia em 1968. Ele come- na Ideologia temos uma teoria antropológica
ça a se institucionalizar no final da década de que nos diz muito sobre a origem da sociedade
1960, mas existem muitas latências anterio- e a apropriação da natureza – ou do espaço.
res a esse período. Cabe observar a progres- Com o processo da apropriação e a proprie-
são do pensamento geográfico e do marxismo dade privada surgirá concomitante à alienação
suas áreas de contato, paralelismos, continui- do homem. Assim, categorias como trabalho,
dades, descontinuidades e temas de pesquisa. técnica, alienação podem constituir uma onto-
Isso nos parece ser muito mais fácil e concre- logia do homem e do espaço como vimos aci-
to, pois devemos compreender que mostrar a ma. Martins (2004, p. 49) aponta claramente
eventual aproximação que o gênero de vida para essa necessidade e indica a eventual pro-

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dução de uma geografia alienada a partir de sóficos coloca o espaço como uma negação ou
uma subjetividade humana sob a influência do relação entre fenômenos. Em O ser e o nada o

165
estranhamento do modo de produção capita- espaço não seria um ser, mas a ligação entre
lista e da propriedade privada. os fenômenos ou entre os objetos. Para Sartre
O pensamento sartreano também ofe- o espaço remete principalmente ao para-si, ou
rece a possibilidade da constituição de uma seja, a aparência dos seres que se contraporia
ontologia. Quanto a isso é interessante a po- ao em-si (SARTRE, 1943, p. 220). Mesmo que
sição de Milton Santos de que sociedade e es- Milton tenha sido influenciado por Sartre pou-
paço são indissociáveis ao mesmo tempo em cos geógrafos se arriscaram a relacionar sua
que guardam um certo grau de diferenciação. ontologia do espaço com as idéias deste filó-
Quanto à posição do espaço ser uma proprie- sofo até as últimas conseqüências. Obviamen-
dade ou um ser, talvez poderíamos achar uma te as considerações sartreanas não permane-
posição conciliadora. O espaço é um ser natural cem as mesmas ao longo de sua carreira. Em
dado exteriormente, mas também constituído A crítica da razão dialética surge o problema
socialmente e ao mesmo tempo diz respeito do prático-inerte que como sabemos tem am-
às características de outros seres ou às rela- pla repercussão na obra de Milton. E aqui mais
ções entre os seres. Certamente a totalidade uma vez ressaltamos que talvez ainda não se
se compõe da relação entre os fenômenos que tenha popularizado a idéia inovadora que Mil-
Lukács nos fala e que tem certa semelhança ton elaborou através do pensamento sartrea-
com a transfenomenalidade de Sartre (1943, no: a análise da estrutura pode ser conciliada
p. 28). Sartre além de ter uma posição ontoló- com o papel do indivíduo. Assim:
“Em vez de pensar a história a partir da produção,
gica clara que faz dialogar vários sistemas filo-

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para em seguida englobar as estruturas que são


o grupo e a sociedade, estudando as contradições
que estes impõem, para afinal chegar ao Indiví-

166
duo, Sartre, usando o que ele chama de experi-
ência ‘crítica’, parte do sujeito, do Indivíduo, na
sua práxis incompleta, analisa seu relacionamento
com o outro, traça o crescimento do grupo e de
outras formas coletivas, para terminar, afinal, no
ente concreto absoluto que é o homem histórico”
(GILES, 1975, p. 358).

Certamente a posição de Sartre sobre


o espaço ou a relação entre Sartre e Milton
carece de um debate mais rico, o que é com-
pletamente possível. Talvez o pensamento
sartreano ofereça novos caminhos para outras
ontologias do espaço e sua investigação.

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Referências Bibliográficas

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