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T E R C IO S A M P A IO F E R R A Z JR.

TEORIA DA NORMA JURÍDICA


Ensaio de Pragmática da Com unicação Norm ativa

4a edição

EDITORA
FORENSE

R io de Janeiro
2006
1“ edição - 1978
2a edição - 1986
3a edição - 1997
3a edição - 1999 - 2a tiragem
3a edição - 1999 - 3a tiragem
4a edição - 2000
4a edição - 2002 - 2a tiragem
4a edição - 2003 - 3a tiragem
4a edição - 2005 - 4a tiragem
4a edição - 2006 - 5a tiragem
© Copyright
Tercio Sampaio Ferraz Jr.
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Ferraz Jr., Tercio Sampaio.


F436t Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normati­
va. Rio de Janeiro, Forense, 2006.

ISBN 85.309.1116-4
Bibliografia
1. Direito - Filosofia 2. Normas jurídicas. I. Título

CDU - 340.12
/340.14/

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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Para

T heodor V iehw kq

Professor Emérito da Universidade de Maxnz


Meu mestre, meu amigo.
Perguntei a um homem ò que era o
Direito. Elle me respondeu que era a
garantia do exercício da possibilidade.
Esse homem chamava-se Galli Mathias.
Comi-o.

Osw ald de A ndrade

Manifesto Antrvpófago.
SUMARIO

C a p í t u l o 1 — M O D E LO DE P R A G M Á T IC A

1.1 — A pragm àtiea lin g ü ís tic a .................. 1


1.2 — Direito e linguagem ........................ 5
1.3 — Pragm ática jurídica ......... ................ 10
1.4 — Discurso e situação comunicativa .. 12
1.5 — O m odela da pergunta e d a resposta 14
1.6 — Delimitação do objeto da análise aos
discursos íundam entantes ............... 16
1.7 — Estrutura do discurso ..................... 20
1.8 — M odos de d is c u rs o ............................. 26
1.9 — Propriedades pragm áticas fu n d a­
mentais do d isc u rso ........................... 30

C a p ít u l o 2 — S IT U A Ç A O C O M U N IC A T IV A E D ISC U R SO
N O R M A T IV O

2.1 — Dificuldades preliminares quanto ao


objeto da análise .............................. 35
2.2 — Situação comunicativa norm ativa .. 39
2.3 — O aspecto relato e o aspecto cometi-
mento d a norm a .............................. 47
2 .4 — Os operadores pragmáticos, conteúdo
condições de aplicação da inform a­
ção normativa .................................... 53
2 .5 — Relação entre norm a e sanção — 66
2.6 — Situações subjetivas jurídicas ......... 75

C a p í t u l o 3 — O R G A N IZ A Ç A O D A C O M U N IC A Ç Ã O
N O R M A T IV A

3.1 — A questão da validade .................... 93


3.2 — Localização da questão .................... 191
V III T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

3.3 — Validade e im u n iz a ç ã o ...................... 105


3.4 — As técnicas de validação .................. 109
3.5 — A questão da e fe tiv id a d e .................. 113
3.6 — Relação entre validade e efetividade:
o problema da norm a inválida ___ 122
3.7 — A imperatlvidade das norm as Jurí­
dicas ................................................... 127
3.8 — A ordem norm ativa como sistema .. HU
3 .9 — Caráter ideológico dos sistemas nor­
mativos .............................................. 119

C a p í t u l o 4 — A L E G IT IM ID A D E D O S S IST E M A S
N O R M A T IV O S

4.1 — A questão do ângulo pragm ático . . . 181


4.2 — Legitimidade e racionalidade do dis­
curso ................................................... 163
4.3 — A legitimidade como fundam ento úl­
timo: o sistema normativo como
“jogo sem fim ” .................................. 169
C a p ít u l o 1

MODELO DE PRAGMÁTICA

1.1 — A pragmática lingüística.


A empresa de realizar, ainda que em esboço, uma
pragmática da comunicação jurídico-normativa supõe
certa audácia e grande risco. Isto porque a própria
noção de pragmática é deveras imprecisa, tratando-se
de disciplina que, através da contribuição cruzada de
diversos ramos do saber, como as teorias filosóficas da
linguagem e da comunicação, da lógica formal, da psi­
cologia, da sociologia, da retórica, da cibernética, da
teoria da organização, da teoria dos sistemas, vem
ocupando cada vez mais o espaço vazio entre as análi­
ses semânticas e sintáticas da comunicação verbal.
Dizemos que “ vem ocupando” e não “ ocupou” ou
“ ocupa” , porque lhe falta ainda um delineamento defi­
nitivo ou, pelo menos, mais definido, não só no tocante
aos seus instrumentos metodológicos, como também
ao seu objeto. Os trabalhos que conhecemos hoje no
setor lutam ainda com uma delimitação positiva da
pragmática, nascida justamente da consideração de fe­
nômenos lingüísticos não classificáveis e não descritíveis
nos quadros da semântica e da sintaxe, o que faz dela
uma espécie de discipilna de “ restos” , muitas vezes rele­
gados, por concepções estreitas, aos setores imprecisos
e imiprecisáveis do comportamento humano. Por isso
mesmo, os diversos trabalhos que se ocupam da pragmà-
2 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

tica têm que propor seus próprios modelos que se cru­


zam, coincidem ou contrapõem uns aos outros, havendo
autores que preferem realizar sua tarefa deixando o
problema de uma definição da disciplina propositada­
mente de lado.1
Uma publicação recente2 ensaia uma classificação
de pelo menos três tipos básicos de análise pragmática.
O primeiro é denominado: teoria do uso de sinais, liga­
do aos nomes de Morris, Carnap, Klaus, Bense, e, de
modo geral, à Escola de Fraga. Aqui a pragmática é
concebida como uma das partes da teoria dos signos
ou semiótica, que os encara na sua relação entre si

1 Cf. D ieter W u n d erlich (e d .): Linguistische Pragmatik


Frankfurt/M , 1972, p. 5. A pragmática, a despeito de ter sido
um a disciplina frustrada no seu nascimento, vem ganhando
importância na pesquisa filosófico-lingüistica. Citem-se, a pro­
pósito, os trabalhos de Y. B ar-H illel, em Israel, de cuja equipe
me permito destacar os artigos de M arcelo Dascal pela sua
temática voltada p ara o discurso m oral e religioso, de impor­
tância para o estudo pragmático do discurso jurídico. De B a r-
- H i l l e l veja-se, entre outros, “Communication and Argum en-
tation in Pragm atic Languages”, in Linguaggi nella Societá
e nella Técnica. Milano, 1972, p. 269-284. Como editor, a sua
publicação, com o concurso de vários autores: Pragmatics of
Natural Languages. Dordrecht, 1971. De M. D ascal: Leveis of
Meaning and M oral Discourse, in A . K asher (e d .), Language
in Focus. Dordrecht, 1976, p. 587-625. N a Alem anha, além dos
estudos de M. Wunderlich, merecem menção as obras de K a r l
O t t o Apel, especialmente Transformation der Philosophie, 2 v.
Frankfurt/M , 1973, “Zur Idee einer transzedentalen Sprach-
pragm atik”, in Josef Simon (e d .): Aspekte und Probleme der
Sprachphilosophie. Freiburg-M ünchen, 1974, p. 283-326. T am ­
bém Jürgen Habsrm as, especialmente “Vorbsreitende Bem er-
kurgen zu einer Theorie der kommunikativen Kom petenz”, in
H aberm as/Luhm ann: Theorie der Gesellschaft oder Sozialte-
chnologie. Frankfurt/M , 1971.
2 B r i g i t t e S c h l i e b e n - L a n g e : Linguistiche Pragmatik, Stut-
tgart, Berlin, Kõln, Mainz, 1975; p. 10 et seq.
T e o r i a da N o r m a J u r í d ic a 3

próprios (sintaxe), na sua relação aos objetos extralin-


güísticos (semântica) e na sua relação aos seus intér­
pretes ou usuários (pragmática). Esta posição está ho­
je, em parte, superada, primeiro, porque vê na prag­
mática uma espécie de procedimento analítico mera­
mente adicional às análises semânticas e sintáticas,
segundo, porque ignora o importante fenômeno do diá­
logo, reduzindo o objeto da disciplina ao uso dos signos
feito pelo intérprete, sem atenção ao papel do destina­
tário, ficando de fora a questão decisiva da convenção
dos signos pelas partes que o visam. O segundo tipo
pode ser denominado: pragmática como lingüística do
diálogo, partindo-se aqui da distinção entre langue e
parole, conforme a propositura de Saussure, mas pro­
longando a equivocidade da dicotomia no sentido de
uma análise ampla do fenômeno do discurso (parole);
outros (Habermas, Appel) vão mais longe, tomando
como ponto de partida o fenômeno da intersubjetivi-
dade comunicativa, fazendo da análise do diálogo uma
disciplina filosófica no sentido de determinação das
condições transcendentais do diálogo. Finalmente, um
terceiro tipo, denominado: pragmática como teoria
da ação locucionária (do ato de falar), realiza um explí­
cito afastamento da lingüística sistemática, na medida
em que encara o falar como forma de ação social. 3

3 o primeiro grupo tem suas origens no Círculo de Viena,


sobretudo no contato entre C a r n a p (Introduction to Semantics.
Cambridge, 1947) e M o r r is ( Foundations of the Theory of
Signs. Chicago, 1938; Signs, Language and Behavior, E n g l e -
w o o d C l i f f s , 1946), este último diretamente influenciado pelo

pragmatismo de Peirce (Cf. a coletânea de escritos deste autor,


editada e traduzida por O .S . da Motta e L . Hegenberg sob o
título: Semiótica e Filosofia — Textos escolhidos. São Paulo,
1972).
C a r n a p aceitou o esquema de M o r r is que, na esteira de
Peirce, distinguia a semiótica em sintaxe, semântica e p ra g -
4 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J k .

Nossa ambição, no trabalho que estamos apresen­


tando, é mais modesta. Em primeiro lugar, não quere­
mos e não podemos nos propor uma análise exaustiva
da própria pragmática. Limitamo-nos, por isso, a um
modelo de sentido meramente operacional, tendo em
vista a investigação do discurso normativo. Este modelo
enquadra-se numa espécie de lingüística do diálogo,
mais do que numa teoria do uso dos sinais, mas sem
atingir as dimensões transcendentais propostas por Ha-
bermas e Âppel. Os instrumentos de que nos utilizamos,
porém, nos levam também à pragmática no seu sentido
de teoria do ato de falar, unindo-se, propositadamente,
as noções de discurso e diálogo. Podemos, assim, de
modo geral, dizer que o modelo operacional que apre­
sentamos se ocupa primordialmente dos aspectos com-
portamentais da relação discursiva, tendo como centro
diretor da análise o chamado princípio da interação, 4
ou, seja, pretende ocupar-se do ato de falar enquanto
uma relação entre emissor e receptor na medida em
que é mediada por signos lingüísticos.

4 Cf. W a t z l a w ic k , B e a v in , J a c k s o n : Pragmática da C o­
municação Humana. Trad. A. Cabral. São Paulo, 1973, p. 32 et
seq.

mática, propondo, por sua vez, a distinção entre sintaxe pura


e descritiva, semântica pura e descritiva, mas não aplicando-a
à pragmática, que só podia ser descritiva, isto é, ligar-se a
um a língua natural. Mais tarde, R. M. M a rtin ( Towards a
Systematic PragmaVcs. Amsterdam, 1959) tentou um a p rag­
m ática pura, apoiando-se em intuições do próprio Carnap. No
segundo grupo podemos incluir, entre outros, os citados (em
nota anterior) Haberm as e Apel. No terceiro grupo, n a linha
vde Moore e Wittgenstein, encontram-se J. L. A u stin (H ow to
D o Things With Words. Oxford, 1962) e J. R. S earle (Speech
Acts. Cambridge, 1969).
T e o r i a da N o r m a J u r í d ic a 5

1.2 — Direito e linguagem.

A propositura de um modelo lingüístico-pragmáti-


co para a análise da norma jurídica releva uma questão
preliminar de natureza metodológica. Reconhecemos,
sem pôr em discussão, a pluridimensionalidade do obje­
to que chamamos direito, o que permite diversos ângu-
los de abordagem, ora separados, ora ligados por nexos
meramente lógicos ou didáticos, ora integrados em for­
mas sintéticas. Quem pretende realizar uma investigação
ontológica do direito corre, por isso, o risco de privilegiar
aspectos deste fenômeno plural, na forma de sociolo-
gismos ou psicologismos ou formalismos ou moralis-
mos, conforme a lição de Miguel Re ale a respeito. Solu­
ções integradoras e sintéticas, como o tridimensionaXis-
mo concreto e dinâmico5 procuram fórmulas capazes
de captar o fenômeno nos seus múltiplos aspectos, sem
perder-lhe o sentido unitário fundamental. A questão
não é acadêmica e basta ver as investigações sobre her­
menêutica jurídica ou, mais particularmente, sobre
hermenêutica constitucional, para ter-se uma idéia das
dificuldades práticas que o tema releva. Nossa aborda­
gem, porém, é mais simples e não se coloca ao nível
ontológico, mas, quando muito, de uma teoria geral
do direito. Não é nossa intenção definir o direito e seu
método de investigação, mas, apenas, a de propor um
modelo capaz de examiná-lo num dos seus aspectos de
manifestação. Nossa proposta é a de tratar o direito do
seu ângulo normativo (sem afirmar que o direito se
reduz a norma) e encarar a norma do ponto de vista
lingüístico-pragmático (sem afirmar que a norma jurí­
dica tenha apenas esta dimensão).

5 M. Rkalk: Filosofia do Direito. 2 v. São Paulo, 1960; O


Direito como Experiência. São Paulo, 1968.
6 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

Esta opção metodológica não é, porém, gratuita


ou infundada. Afirmamos, neste sentido, uma relação
básica, embora não reducionista, entre direito e lingua­
gem. Esta relação pode ser encarada dos seguintes
modos:6
a) podemos dizer, inicialmente, que o direito, en­
quanto um fenômeno empírico, tem uma linguagem,
usando-sé a palavra “ linguagem” indistintamente para
aquilo que os lingüistas chamam de língua e discurso
(langue/parole); falamos, assim, da linguagem do di­
reito, objeto das várias disciplinas lingüísticas, como a
semântica, a hermenêutica, etc.; b) invertendo-se a fór­
mula, podemos falar em direito da linguagem, caso em
que, ao contrário, esta aparece como objeto das discipli­
nas jurídicas, pois se trata aqui de questões referentes
à própria disciplinação da língua, não no seu sentido
lógico ou gramatical, mas jusnormativo, como a lin­
guagem processual, protocolar, etc.; c) finalmente, fala­
mos, num terceiro sentido, do direito enquanto lingua­
gem, num relacionamento que assimila o direito à lin­
guagem; neste último caso, estamos diante de uma tese
filosófica — tese da intranscendentalidade da linguagem
— que vai afirmar, de modo geral, que o jurista, em
todas as suas atividades (legislação, jurisdição, teoriza-
ção) não transcende jamais os limites da língua.
Assumimos, quanto à questão, uma posição inter­
média. Da terceira possibilidade (c), aceitamos limita­
damente que o fenômeno jurídico tem, basicamente, um
sentido comunicacional, que nos coloca sempre no nível
da análise lingüística. Todo direito “ tem por condição
de existência a de ser formulável numa linguagem,

8 A m e d e o C o n t e : Saggio sulla Completezza degli Ordina-


menti Giuridici. Torlno, 1962, p. 191 et seq.
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 7

imposta pelo postulado da alteridade” . 7 Dizemos, entre­


tanto, limitadamente, porque recusamos a redução total
do direito à linguagem, mesmo tomando-se esta num
sentido amplo de comunicação. Nestes termos, preferi­
mos dizer que o direito não é só um fenômeno lingüís­
tico, nem mesmo um fenômeno basicamente lingüístico.
Se ao nível normativo — o direito como sistema de
proposições normativas — , o aspecto lingüístico pode
ser encarado como fundamental, não se pode esquecer
que ele corresponde também a uma série-de fatos, empí­
ricos, que não são linguagem, como relações de força, con­
flitos de interesse, instituições administrativas, etc., os
quais, portanto, se não deixam de ter uma dimensão lin­
güística, nem por isso são basicamente fenômenos lin­
güísticos. Nossa opção pela possibilidade (c) é, nestes
termos, epistemológica e não ontológica, no sentido de
que, ao pretender-se o tratamento da norma como lin­
guagem, se o faz por necessidade operacional, sem fazer-
-se, com isso, qualquer afirmação sobre a essência do di­
reito. Da segunda possibilidade (b), aceitamos, apenas
como material de trabalho, o modo como o direito disci­
plina a linguagem. Ou seja, não nos colocamos, eventual­
mente, na perspectiva da disciplinação da linguagem pelo
direito, mas tomamos essa disciplinação como objeto de
análise. Com essas delimitações, nossa posição parece
aproximar-se mais e mais da primeira possibilidade (a ).
Isto é verdade*, mas num «sentido também limitado. Isto
porque não pretendemos realizar um estudo lingüístico,
mas ao nível lingüístico. Qual a diferença?
A diferença está em que não pretendemos estudar
a linguagem do direito ou da sua manifestação norma­
tiva, mas investigar o próprio direito, enquanto necessi­
ta, para a sua existência, da linguagem. Ou seja, o

i J t j a n - R a m o n C a p e l l a : El Derecho como Lenguage. B a r­


celona, 1968, p. 28.
8 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

direito é levado ao nível lingüístico, mas o estudo a


realizar não é de lingüística, mas jurídico, pois não
dispensamos, ao investigar a norma, as características
operacionais da teorização jurídica, como a referência
à praxis decisória, a possibilidade de solução de conflitos,
a regulamentação de comportamento, etc. A expressão
“ ao nível lingüístico” é usada em termos de “ ao nível
de discurso”. A propósito, notamos que a tradição uni­
versitária tende a tratar o discurso “ como um conjunto
de fatos lingüísticos ligados entre si por regras sintá­
ticas de construção” . 8 Em nome das leis das regulari-
dades da linguagem procede-se, usualmente, a uma in­
vestigação do discurso político, filosófico, científico, etc.
Aqui se propõe, contudo, que estes “ fatos de discurso”
sejam tratados não mais simplesmente sob seu “ aspecto
lingüístico” , no sentido estrito mencionado, mas como
“ jogos, jogos estratégicos, de ação e reação, de pergunta
e resposta, de dominação e de esquiva, como também
de luta” . 8 Esta concepção do discurso como um con­
junto de “ fatos lingüísticos” que incorpora o nível
lúdico conduz a pesquisa, a nosso ver, ao plano privile­
giado da pragmática. Em outras palavras, a investiga­
ção que propomos de norma jurídica nos leva ao nível
de discurso, da norma nos seus aspectos lingüísticos
dimensionados no seu plano lúdico. Isto significa que
evitamos, na medida do possível, uma análise da norma
que proceda de modo puramente construtivo, procuran­
do, por convenção, determinar as regras para o uso do
termo norma, pois deveremos partir das características
de uma linguagem já dada — a do direito. Isto é, não

» M i c h e l F o u c a u l t : As verdades e as Formas Jurtdicas —


Cadernos da PUC, n.° 16. Trad. de Roberto C abral de Melo
M achado e Eduardo Jardim de Moraes. Rio de Janeiro, 1974,
p. 6.
9 lie m , ibidem.
T e o r ia d a N o r m a J u r í d ic a 9

será o caso de propor uma definição de norma, em


nome da qual se decidiria da propriedade ou da impro-
priedade dos diversos usos jurídicos que se faz da pala­
vra, mas, sim, investigar o fato lingüístico norma, tal
como ele aparece na experiência discursiva do direito.
Para entender isto, é necessário saber se o fato do
qual predicamos a expressão “ norma jurídica” é, ele
próprio, fato lingüístico. Distinguimos, com este fito,
entre a linguagem como fato e a linguagem como ins­
trumento, ou, seja, entre a menção e o uso da lingua­
gem. Percebemos a distinção, quando dizemos: “ isto é
um cavalo” e “cavalo é um substantivo” . O primeiro é
um caso de uso, o segundo de menção. Podemos, assim,
dizer que determinadas palavras são significativas de
entidades não-lingüísticas (por exemplo, cavalo em “ isto
é um cavalo” ). Outras predicam entidades lingüísticas
ou propriedades de entidades lingüísticas (por exemplo,
“ cavalo é um trissílabo” ) . A questão é saber se quando
dizemos: “ isto é uma norma jurídica” , o termo norma
jurídica tem ou não por material vim fato lingüístico.
Sem cair num reducionismo, é possível responder afir­
mativamente à questão. Ao menos no sentido de que,
ao predicarmos “ isto é uma norma” , estamos sempre
nos referindo materialmente a uma proposição ou a um
tipo de proposição. A literatura jusfilosófica costuma
discutir se é possível, ao contrário, uma norma que não
seja um fato lingüístico (von Wright), se, por exemplo,
um sinal de trânsito indicando a proibição de estacio­
nar é, de -per si, uma norma. Neste caso, estaríamos
predicando de uma tabuleta redonda com uma letra
cortada a expressão “ norma jurídica”. Parece pacífico,
porém, que a tabuleta não é norma, quando muito a
expressão reduzida de uma norma individual: “ é proi­
bido estacionar neste local”. Não aprofundamos a ques­
tão. Ficamos com a tese: normas jurídicas são fatos
10 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

lingüísticos, ainda que não exclusivamente linguagem,


como veremos no decorrer da exposição.

1.3 — Pragmática jurídica.

No que se refere ao direito, os trabalhos no setor


são ainda poucos ou apenas tangenciais, na maior par­
te realizados por lingüistas, que tomam o discurso ju­
rídico como objeto, mas esparsamente, ou cuidando de
alguns aspectos de pequeno alcance, como a linguagem
dos acusados nos procedimentos penais,10 ora voltando-
-se para os problemas de hermenêutica dentro de uma
análise semântica. Uma tentativa importante de prag­
mática da norma nos parece a de Ross, feita há alguns
anos, que procura fornecer uma visão global de natu­
reza pragmática, embora ainda estreitamente ligada
à semântica e à sintaxe.11 Nós mesmos, em trabalho
publicado em 1973, tentamos esboçar uma pragmática
do discurso jurídico em geral, onde o discurso norma­
tivo constitui parte importante, mas analisada apenas
no que tange os seus aspectos argumentativos no sen­
tido da retórica. Recentemente, a última edição da
Tópica e Jurisprudência de Viehweg foi acrescida de um

10 Cf. R u t h L e o d o l t e r : Das Sprachverhalten von Angeicic-


gten bei Gericht — Ansaetze zu einer soziolinguistischen T h eo-
rie der Verbalisierung. Kromberg/Ts., 1975.
11 Cf. R oss: Logica de las Normas? Trad. José S. P. Hierro.
M adrid, 1971. O ponto de vista sustentado por Ross a propó­
sito da pragmática é mais estreito do que aquele que propo­
mos, pois se ocupa do ato discursivo enquanto dirigido à pro­
dução de efeitos (portanto a relação emissor-receptor, sem
considerar o retorno em issor-receptor-em issor), abstraindo das
peculiaridades “não lingüísticas” da comunicação (p. 15), ni­
tidamente n a linha de Carnáp. Além disso, a diferença básica
entre discurso indicativo e diretivo, central no seu pensamento,
não está no nível pragmático, m as no semântico, como ele
próprio reconhece (p. 71, ! 18).
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 11

capítulo, com preciosas incursões e indicações em ter­


mos de pragmática, voltada ao direito. Ainda quando
escrevíamos este trabalho, pudemos ler, em manuscrito,
tese de livre-docência a ser apresentada, em Mainz, por
Schrekenberger, que realiza longa análise, fundada es­
pecialmente, em Peirce e Morris, de normas e decisões
tendo em vista as suas possibilidades interpretativas.
Uma teoria pragmática ensaia também Tammelo, com
importantes reflexões sobre o sentido pragmático da
lógica jurídica, que atendem, sobretudo, alguns proble­
mas básicos da teoria da justiça.12
Nossa intenção, neste trabalho, é propor, em linhas
gerais, uma visão da norma jurídica do ângulo da prag­
mática. O fato de privilegiarmos este aspecto não sig­
nifica que menosprezemos a semântiea e a sintaxe, mas
apenas que, como já salientamos, encaramos a norma

12 Sobre a literatura mais recente, vide, entre outros:


I lmar T a m m e l l o : Rechtslogik und materiale Gerecntígkeit.
Frankfurt/M., 1971; T heodor V ie h w e g : Topik und Jurispru-
denz, n a última edição revista e aumentada, I 9. München,
1974; W aldemar S chrekenberger : Ueber die Pragmatik der
Rechtstheorie, in Jahrbuch F. Rechtssoziologie V. Rechtstheo-
rie, Bd. II, 1972, p. 561 et seq.; H ubert R od in g en : Ansaetze zu
eíner sprachkritischen Rechtstheorie, in A R S P -L V III, 1972,
p. 161 et seq.; T h o m a s S eibert : Von Sprachgegenstaenden zur
Sprache von juristischen Gegenstaenden, in A R S P -L V III, 1972,
p. 43 et seq. N a Introducción a la Logica Jurídica, de G eorges
K a l in o w s k i (Trad. Ivan A. Cacaubón. Bueno Aires, 1973) h á
certa referência à pragm ática, n a linha de Carnap. Leia-se
ainda, com especial proveito, Luiz A lberto W arat : El Derecho
y su Lenguage. Buenos Aires, 1976; Luiz A lberto W arat e
A n to n io A n selm o M a r t in o : Lenguage y Definición Jurídica.
Buenos Aires, 1973; E duardo A ngel R u sso e C arlos O scar
L erner : Lógica de la Persuasiôn. Buenos Aires, 1975; P aolo
S em a n a : Linguaggio e Potere. Milano, 1974; P aolo S em a n a :
Argomentazione e Persuasione. Milano, 1974; C h a im P er elm an :
Logique Juridique. Bruxellas, 1976.
12 T e b c io S a m p a i o F e r r a z J r .

como fato lingüístico, incorporando a dimensão lúdica


Ademais, significa também que acreditamos serem as
características pragmáticas da norma fundamentais
para o seu entendimento, no sentido de que uma análise
semântica e sintática dificilmente conseguem descrevê-
-la a contento, sem tais características. O fato de não
ensaiarmos, então, uma semiótica jurídica, os três aspec­
tos estariam reunidos, dá-se porque faltaria uma análise
prévia de natureza pragmática, para que os resultados
pudessem ser satisfatórios. É nesse sentido, aliás, que
empreendemos nossa tarefa: dar subsídios para uma
futura semiótica da linguagem normativa.
Por isso, o nosso primeiro passo é fornecer um mo­
delo de pragmática. Aqui ele se apresenta nos seus deli-
neamentos gerais. Uma discussão mais aprofundada já
realizamos em outro trabalho, ao qual remetemos o
leitor.

1.4 — Discurso e situação comunicativa. 13

Admitimos que todo comportamento humano, como


falar, sorrir, chorar, correr, é um» ação dirigida a
outrem. Destes destaca-se o ato de falar como ação diri­
gida a alguém (ouvinte) por alguém (orador), como
apelo ao entendimento de quem ouve. Considera-se,
assim, discurso ou ato de falar apenas aquele que pode
ser entendido, isto é, ensinado e repetido. O aprender
corresponde à possibilidade de o destinatário repetir o
ato ensinado. Assim quando, digamos, alguém ordena
“ aproxime-se” e o ordenado se aproxima, dizemos que
o ato de falar se realizou. A situação de ensinar e
aprender, na qual se manifesta a compreensibilidade

13 P a ra esta parte até o n.° 18, vide o nosso livro: Direito,


Retórica e Comunicação. São Paulo, 1973 ( 1 * parte) e a bi­
bliografia ali citada.
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 13

da ação, denominamos situação comunicativa. Situação


comunicativa não deve ser confundida com uma relação
de partes físicas, isto é, entre seres humanos apenas
biologicamente considerados e sinais fisicamente iden­
tificáveis (por exemplo, entre o dedo que aperta o bo­
tão e a luz que acende), mas entre ações e resultados
de ações, o que faz que uma situação comunicativa
não tenha uma estrutura à parte do seu funcionamento.
Melhor explicando, as relações, conforme certas regras
(estrutura) que compõem a situação, só são identificá­
veis enquanto essa está funcionando. Neste sentido,
por exemplo, falar não é, em principio, uma seqüência
predeterminada e automática de articulações, não se
confundindo o seu agir com mero ritual (embora isto
não exclua as possibilidades de ritualizações do falar).
Cessado o ato de falar, nada resta da estrutura da si­
tuação, não ficando visíveis, como no caso dos .órgãos
do corpo humano, a anatomia das relações, mesmo de­
pois que o corpo deixou de viver.
Não sendo uma seqüência preestabelecida ritual­
mente, aquilo que faz com que uma ação ocorra é o
comportamento seletivo das partes postas em relação
de ensinar e aprender, determinando alternativas, esco­
lhendo caminhos, absorvendo incertezas, transforman­
do questões complexas em questões simples, etc. Estas
seqüências, que compõem as situações comunicativas,
revelam-se como ações inter homines, sendo apenas, de
modo secundário, uma relação entre agentes humanos
e coisas.
Uma situação comunicativa não ocorre, porém, num
vácuo, mas se manifesta sempre num conjunto de arti­
culações complexas que a circundam, tendo, assim, um
limite identificável. Este limite tem um aspecto externo
— mundo circundante — e um aspecto interno — es­
trutura da situação. O mundo circundante corresponde
14 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

ao conjunto complexo de alternativas, ações, possibili­


dades de ação, conflitos em larga escala, ausência de
consenso, etc. Toda vez que esta imensa complexidade
é, em parte, reduzida pelo estabelecimento de regras e
de relações, estrutura-se a situação. O limite da situa­
ção é dado, pois, pela noção de alta complexidade do
mundo circundante e pela estrutura da própria situa­
ção que se revela como complexidade reduzida (Luh-
mann). Por exemplo, a situação em que cinco garotos
se atiram num monte de feno para descobrir 20 bolinhas
de vidro e a situação em que o monte é dividido em
cinco setores, um para cada garoto, estão em relação
de maior e menor complexidade. Não, necessariamente,
por uma razão de eficiência, mas pela simples dimi­
nuição de possibilidades de ação e encontro de ações
ou redução de alternativas. Nestes termos, podemos
dizer que uma situação comunicativa pode ser vista
como constituindo um sistema (no sentido da Teoria
dos Sistemas). Neste sistema, se as ações são ações de
falar, a ação de quem fala (orador) quer ou deve ou
pode provocar uma resposta por parte de quem ouve
(ouvinte), influenciando-o, ao torná-lo passivo, reati­
vo, etc. Por sua vez, a reação do ouvinte influencia o
próprio orador e, por conseguinte, a sua ação de falar.
Dizemos que entre ambos há troca de mensagens. Uma
série de mensagens trocadas entre orador e ouvinte se
chama interação. Toda situação comunicativa é, nestes
termos, um sistema interacional.

1.5 — O modelo da pergunta e da resposta.

O princípio básico da teoria pragmática é o prin­


cípio da interação. No estudo das ações humanas (no
sentido de comportamentos seletivos, redutores de com­
plexidade, que movimentam processos de ensino e
aprendizagem), a pragmática releva sempre o aspecto
T e o r ia d a N o r u a J u r í d ic a 15

comportamental dos atores, no seu relacionamento me­


diado por mensagens. A dogmática jurídica, de modo
geral, embora não possa olvidar jamais o sentido intera-
cional do direito, tende, porém, tradicionalmente, a uma
concepção monádica dos agentes, inclinando-se para
uma coisificação daquilo que a pragmática é levada a
considerar antes como complexos padrões de relação e
interação. Se tomamos, por exemplo, um conceito bási­
co como o de direito subjetivo, em que pesem as diver­
sas análises críticas que a noção tem sofrido, notamos
que os manuais e a prática universitária continuam a
falar em facultas agendi para defini-lo. Embora a dou­
trina não deixe de pôr em relevo o aspecto relacionai
do conceito, ligando-o a direito objetivo, ao sujeito
agente, etc., a noção acaba assumindo, para o usuário
do termo, uma pseudo-realidade própria, até que, final­
mente, direito subjetivo se converta realmente num fe­
nômeno isolado, algo que se tem. Assim, o vocabulário
dogmático, ainda que não despreze os contextos inter­
pessoais (oposição de direito erga omnes), guarda forte
sentido monádico.
O princípio da interação, ao contrário, domina a
perspectiva pragmática. Para melhor apresentá-lo, va­
mos propor um modelo de situação comunicativa, ba­
seado na ação de perguntar e responder. O ser humano
age e se comporta também no sentido de que se orienta
e reflete. Falando, ele traz para o presente um compor­
tamento passado ou futuro. Este trazer para o presente
algo já acontecido ou por acontecer significa um estar
inseguro do seu próprio presente, que põe em estado de
incerteza os fundamentos do seu agir. Denominemos
pergunta este comportamento. Perguntar significa, pois,
estar inseguro quanto ao seu próprio comportamento.
Daí a possibilidade de, perguntando, distinguir entre
as finalidades e as conseqüências do seu agir e, assim,
16 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

entre o falar fundamentado e o não fundamentado. A


partir disto, a ação de pergunta permite a distinção
entre diversas possibilidades de ação: dever agir, poder
agir, querer agir, etc. Perguntar, porém, não é uma
ação num vácuo, mas se articula num mundo circun­
dante. Este mundo constitui-se de justificações, atos
de falar que aparecem com a pretensão de autoridade,
isto é, são capazes e estão prontos para oferecer funda­
mentos e exigir confiança. São ações (de falar) que
chamamos, então, de consistentes. O comportamento
locucional que se apresenta como consistente chama­
mos de resposta.
O modelo pergunta/resposta esconde uma comple­
xidade. Não só quem pergunta desafia alguém para
uma resposta, como quem responde pode desafiar o
outro para uma fundamentação da própria pergunta.
O modelo, portanto, se aplica a si próprio. O ato de falar
se revela, assim, como reflexivo. A reflexividade signifi­
ca que a relação interaciohal admite sempre um aumen­
to de complexidade no interior da situação comunica­
tiva. Assim, por exemplo, se alguém diz: “ o senhor está
preso por prática de lenocínio” e o outro responde, “ não
discuto a sua ordem de prisão, mas não aceito a quali­
ficação lenocínio” , na situação comunicativa, a ordem
de prisão adqiiire uma complexidade maior, na medida
em que transferimos o modelo pergunta/resposta para
os fundamentos da ordem.

1.6 — Delimitação do objeto da análise


aos discursos fundamentantes.

A reflexidade da situação comunicativa pode ser


controlada. Este controle exige regras. A situação co­
municativa, cuja reflexidade é controlada por regras,
nos fornece um tipo de discurso que nos interessa pe­
culiarmente, qual seja, o discurso racional.
T e o r ia da N o r m a J u r í d ic a 17

Entendemos por racional o discurso fundamentan-


te. Todo discurso, dissemos, apela ao entendimento de
outrem. Nestes termos, discurso é ação lingüística que
pode ser aprendida, o que se mede na possibilidade des­
pertada de ser repetida. Além disso, há discursos que
não se negam a fundar o que se diz, que não impõem
arbitrariamente a sua sustentabilidade, mas que for­
necem instrumentos para a sua comprovação. Portanto,
discursos não apenas prováveis, mas coro-prováveis. Esta
comprovação depende do mútuo entendimento das par­
tes que discutem, o que não significa que o caráter
racional do discurso seja fruto de uma convenção (con­
vencionalismo) em termos de tudo é racional, desde
que as partes consciente ou inconscientemente (rela-
tivismo das culturas) estejam de acordo. A racionalida­
de, ao contrário, não emerge do acordo ou consenso
sobre o que se diz, isto é, sobre temas, assuntos, con­
ceitos, princípios, mas do mútuo entendimento sobre
as regras que nos permitem falar deles. Isto significa
que podemos ter até mesmo discenso sobre temas, sobre
interpretações, sobre conceitos, sobre fins, sobre meios,
sobre a relação entre ambos (reflexividade do discurso) ,
e, apesar disto, ter um discurso racional. Condição disto
é que as regras da discussão não sejam impostas de
fora da situação comunicativa, mas de dentro dela. Isto
significa que, para ser racional, não se exige do discurso
que ele fundamente tudo (princípio da razão suficien­
te) , mas que ele esteja aberto à exigência de fundamen­
tação. Discurso racional não é discurso fundamentado,
nem mesmo fundamentável, mas fundamentante. Para
ser racional, portanto, não é preciso que a cadeia refle­
xiva das fundamentações nos conduzam a um corpo de
axiomas e dele sejam dedutíveis, nem que, caso este
corpo não seja patente ou mesmo não exista, que seja­
mos capazes de descobrir princípios últimos, explicafl-
18 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

vos ainda que provisórios (discurso fundamentável),


mas sim que haja uma regra que me obrigue à funda­
mentação (regra do dever de prova), o que pode me
conduzir, às vezes, a questões aporéticas que, eviden­
temente, nem têm o caráter de corpo axiomático nem
de solução provisória, mas são motivo de ação coerente.
Assim, por exemplo, o discurso filosófico é tipicamente
um discurso que desemboca em aporias (que é o conhe­
cer, o faíar, o ser justo, o verdadeiro, etc.), mas, ao
enfrentá-las, reconhecendo-as como motivo último do
seu discursar, é racional, mesmo quando as “ resolve”
(embora não as “ solucione” ) , afirmando o absurdo como
fundamento. Em última análise, no discurso racional
tem de haver espaço para o questionamento que é outra
regra básica que me permite falar em discurso funda-
mentante.
A regra que permite o questionamento é, na ver­
dade, corolário da que exige a prova, a regra do dever
de prova. Esta é vista, assim, como o centro lógico e
ético da discussão racional. Lógico, porque, sem ela,
não há fundamentação, nem ordem nos fundamentos.
Ético, porque a racionalidade é também uma exigên­
cia de racionalidade. Daí uma relação possível entre o
irracional e o arbitrário, entre o racional e o legítimo
(usando-se a palavra legítimo num sentido amplo de
regulado). Não que não possa haver fundamentos arbi­
trários num discurso racional. A decisão de um árbitro
que decide contra toda coerência e mesmo contra o
protesto estupefacto daqueles que 0 escolheram como
tal, pode ser racional, ainda que proclame como fun­
damento do seu decidir o absurdo das suas próprias
razões (decido assim, porque não há outro fundamento
senão o meu próprio decidir): a racionalidade repou­
saria aí, por exemplo, numa regra absoluta de compe­
tência. Sem esta possibilidade, teríamos, por exemplo,
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 19

de taxar de irracional o discurso do soberano, v. g.,


nos moldes de Âustin. É claro que, com isto, não esta­
mos a dizer que tudo é racional, que uma decisão do
tipo “ todo aquele que nascer judeu está condenado à
morte” (Hitler) seja também racional. Se é verdade
que a racionalidade não está nos fins propostos da ação
(racionalidade dos fins), nem na correlação de fins e
meios (coerência da ação), nem por isso deixa de haver
um traço divisório entre razão e irrazão. A visão prag­
mática da racionalidade nos permite dizer que esta não
se localiza nem em “formas” (invariáveis, essenciais),
nem em “matérias” (variáveis, contingentes), nem na
sua manipulação, nem mesmo em “ premissas” que
ocorrem sempre, como componentes estruturais do de­
curso da discussão, mas no tratamento correlacionai e
regrado de questões e solução de questões. A condena­
ção dos judeus é irracional porque, embora ela seja
aparentemente possível, graças a uma regra absoluta
de competência (vontade do Fuehrer), na verdade ela
está “sustentada” por uma regra que afirma ou, melhor,
que transforma-uma aporia num axioma: não há sobe­
rania sem obediência (a aporia está no caráter refle­
xivo e infinito da regra: o soberano obedece suas pró­
prias normas), sem perceber que, ao fazê-lo, está, na
verdade, impondo uma regra à situação que não passa
nem pode passar pelo mútuo entendimento, sendo posta
de fora, e que foge ao dever de prova: a regra que
afirma que não há regra. Esta regra não constitui
discurso fundamentante, ao contrário, elimina a sua
possibilidade, pois permite às partes apenas dois com­
portamentos: ou não falar, o que toma a relação comu­
nicativa indeterminável, ou falar qualquer coisa, caso
em que há discurso, mas não pode ser nem sustentado
nem contestado.
20 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

Um discurso é racional, portanto, na medida em


que se submete à regra do dever de prova. A regra
do dever de prova nos permite determinar o orador
como aquele que, na situação comunicativa, tem o
onus probandi. O onus probandi, por sua vez, está sub­
metido a regras que determinam o seu decurso. Estas
regras são regras da situação comunicativa e não para
ela. Isto é, surgem na situação comunicativa e não fora
dela. Falar racionalmente é obedecer a essas regras.
Esta obediência é controlada pelo ouvinte, de tal modo
que quem fala está obrigado a provar o que diz, na
medida da exigência crítica do ouvinte. Esta exigência
crítica, em princípio, é ilimitada, mas, na prática, ela
se exerce limitadamente. Isto porque a crítica ilimitada
leva ou à paralisação do discurso ou à inversão do
onus probandi (o orador pode, por exemplo, pôr em
questão as próprias questões do ouvinte, caso em que
o orador passa a ouvinte e o ouvinte a orador). Ao
contrário, um discurso irracional é aquele que não res­
peita e dever de prova, que não segue as regras de
fundamentação, introduzindo regras estranhas à situa­
ção comunicativa, procurando desqualificar o compor­
tamento crítico do ouvinte.

1.7 — Estrutura do discurso.

A estrutura do discurso racional ou fundamentante


está determinada pela regra do dever de prova e outras
que a ela se ligam. O que dá o sentido da sua unidade
é a possibilidade pragmática do discurso, ou seja, as
regras compõem uma unidade em função da possibili­
dade de comportamentos discursivos fundamentantes.
A primeira regra, consoante a noção de racionalidade
exposta, que assegura ao ouvinte o seu papel crítico,
afirma que todo ato de falar pode ser posto em dúvida.
O exercício limitado da crítica exige, entretanto, que,
T e o r ia da N o r m a Ju r íd ic a 21

a partir desta regra, se estabeleçam entre orador e


ouvinte “ diálogos parciais” com o intuito de se fixarem
ações lingüísticas primárias, sob forma de presunção,
postulado, axioma, pressuposto, etc. Isto posto, uma se­
gunda regra afirma que uma ação lingüística primária
do orador (por exemplo, numa discussão jurídica, “ o
ponto de partida de qualquer argumentação deve ser
a lei” ) não pode mais ser atacada pelo ouvinte, pois o
orador pode defendê-la. Em compensação, terceira re­
gra, o orador não mais poderá modificar suas ações
lingüísticas primárias. Vamos denominar o discurso
fundamentante que tenha esta estrutura de discurso
dialógico. A dialogicidade, como se vê, não pressupõe o
princípio do terceiro excluído que exigiria, no caso, que
todo ato de falar fosse ou atacável ou inatacável, o
que feriria a primeira regra.
As regras do diálogo estabelecem típicas relações
entre orador, ouvinte e as mensagens que os interme-
deiam. Assim, as mensagens — aquilo que é dito — ,
dada a primeira regra, aparecem como questões dubi-
tativas ou dubium. Um diibium é, dado o comporta­
mento, em princípio, ilimitadamente crítico do ouvinte,
um conjunto de possibilidades estruturadas em álter-
nativas, de alta reflexividade. Assim, quem diz A, numa
estrutura dialógica, aceita, de princípio, ao menos a
possibilidade de não-A. Diante desta possibilidade, o
discurso passa a ter junções características.
Por função entendemos não o efeito buscado pelo
ato de falar, mas um sinal que representa uma ligação
entre duas (ou mais) posições. Assim, as funções prag­
máticas do discurso não se confundem com aquilo que
se busca ou com a finalidade procurada, mas se referem à
relação generalizada possível entre orador e ouvinte.
Sob o ponto de vista do orador falamos, então, em
função sintomática no sentido de que todo discurso
22 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

expressa sentimentos, posições, modos de entender (dor,


amor, ódio, compreensão, dúvida, etc.) em termos de
uma relação do emissor para o receptor (um discurso
é sintomático para alguém, para outrem, para si mes­
mo). Sob o ponto de vista do ouvinte, o discurso tem
função de sinal, isto é, ele desperta no ouvinte uma
reação — uma modificação ou manutenção no seu
modo de pensar, falar, ser, etc. — , em termos de uma
relação que vai da posição do receptor para a do emissor.
Por fim, do ponto de vista do objeto do discurso — a
questão, aquilo que é dito e que pode ser posto em dú­
vida — falamos em função estimativa do discurso em
termos da relação de convergência dos comportamentos
sintomáticos e de sinal sobre a questão, que aparece,
então como duvidosa, inteligente, boa, má, etc.
Pois bem, numa estrutura dialógica, a função sin­
tomática é personalíssima, no sentido de que todo dis­
curso aparece como expressão pessoal de quem fala: é
impossível dissociar o que é dito daquele que diz, sob
pena de se desentender o ato locucionário, sendo o ora­
dor responsável (regra do dever de prova) pessoalmente
pelo que diz. Assim, por exemplo, uma declaração de
vontade — eu quero isto — se enquadra tipicamente
aqui. Do mesmo modo, a função de sinal mostra que o
ouvinte se liga à situação comunicativa de modo espe­
cial, participando do discurso não como mero especta­
dor, mas como ator, convidado a intervir na ação. Fa­
lamos, então, em reação ativa. Por fim, quanto à fun­
ção estimativa é, marcadamente, dubitativa, donde o
caráter de dubium da questão: trata-se de questões to­
madas a sério, responsáveis (isto é, surgidas num con­
texto), cuja alta reflexividade pode nos conduzir sem­
pre a aporias. Esta alta reflexividade determina o
discurso com um jogo infinito de estratégias que se
organizam a partir de topoi.
T e o r ia da N o r m a J u r í d ic a 23

Topoi ou lugares comuns são fórmulas de procura


que orientam a argumentação. Não são dados ou fenô­
menos, mas construções ou operações estruturantes,
perceptíveis no decurso da discussão. Assim, por exem­
plo, na moderna teoria jurídica da interpretação, em
contraste com a doutrina predominante no século pas­
sado, na sua primeira metade, a flexibilidade interpre-
tativa das leis em oposição ao princípio da interpretação
literal, pode ser visto como um topos da hermenêutica
atual. No caso do direito, os topoi aparecem, inclusive,
no próprio texto legal como, por exemplo, no art. 5.°
da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que
dispõe: “ Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins
sociais a que ela se destina e às exigências do bem
comum”. Tanto a noção de “ fins sociais” quanto a de
“ bem comum” são, do ponto de vista da pragmática,
noções tópicas que, no caso, devem orientar o discurso
aplicativo da lei. A presença de topoi, no discurso, dão
à estrutura uma flexibilidade e abertura característica,
pois sua função é antes a de ajudar a construir um
quadro problemático, mais do que resolver problemas.
Outros topoi da argumentação jurídica são a imparcia­
lidade do juiz, a noção de interesse, a noção de boa fé,
a presunção de inocência, até prova em contrário, etc.
A dialogicidade, porém, não esgota a estrutura do
discurso, do ângulo pragmático. Pois é possível que, a
partir da regra do dever de prova, colocar, de antemão,
como regra básica do discurso a disposição, segundo a
qual nem todos atos de falar do orador possam ser
atacados. Segue-se uma segunda regra pela qual os
mesmos atos são divididos em dois grupos opostos: os
atacáveis e os não-atacáveis ou os defensáveis e os
não-defensáveis. Daí uma terceira, que propõe que, se
o ato for defensável, não poderá ser posto em questão,
se for atacável, não poderá ser proposto. Neste caso,
24 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

denominamos a estrutura de monològica. A monologi-


cidade, como se vê, ao contrário da dialogicidade, pres­
supõe o princípio lógico do terceiro excluído, pois os
atos de falar são, de princípio, ou atacáveis ou inata­
cáveis, excluída uma terceira possibilidade.
Estas regras estabelecem típicas relações entre os
componentes do discurso, ou seja, entre orador, ouvinte
e objeto. O orador, garantido pelas regras, pode se colo­
car num segundo plano, pois, desde que não proponha
atos de falar atacáveis, toma-se cambiável, não sendo
responsável pessoalmente, pois as fundamentações de­
correm do que foi assumido como defensável. Isto faz
dele mero proponente. Assim, uma demonstração mate­
mática, não importa quem a faça, é válida dentro dos
quadros de coerência. O discurso, portanto, não é sinto­
ma pessoal, mas há a possibilidade de generalização e
universalização. Do mesmo modo, quanto à função de
sinal, o ouvinte toma-se passivo, um espectador que
assiste ao espetáculo, sem interferir nele, a não ser
para acompanhar a coerência das operações. Por isso,
quanto à função estimativa, o objeto do discurso reve­
la-se como um certum, isto é, uma questão cuja refle-
xividade está interrompida, cujas alternativas são redu-
tíveis a duas possibilidades contraditórias: sim ou não,
verdadeiro ou falso, 0 ou 1, etc. Não sendo reflexivo, o
monólogo se desenvolve apenas numa direção: para
frente, a partir da quaestio certa, ao contrário do diá­
logo, que se desenvolve para frente e para trás, na forma
de questões sobre questões, etc. O discurso monológico,
tendo um ponto de partida certo, admite axiomatização.
O dialógico, sendo tópico, é sempre aberto e não axioma-
tizável, e como os topoi são fórmulas presas à situação
comunicativa, o discurso dialógico experimenta certa
historicidade. Contudo, propriamente dita, não é a estru­
T e o r i a d a N o r m a J u r íd ic a 25

tura dialógica, mas as estratégias do diálogo, enquanto


orientadas por topoi, é que são históricas.
Para exemplificar as duas formas estruturais do
discurso,) do ângulo pragmático, tomemos o caso de um
discurso pericial, de balística, apresentado num tribu­
nal. O discurso pericial, independentemente da sua
apresentação no tribunal, pode, eventualmente, assumir
caracteres monológicos. A questão é do tipo certum: ou
a bala saiu da arma criminosa ou não saiu, ou a proba­
bilidade (quantificação) é maior de um lado ou do
outro. O discurso, neste caso, não é expressão pessoal
do técnico x ou y, mas de um técnico. Pressupõe um
ouvinte que apenas acompanha a coerência da argu­
mentação e não é convidado a intervir. Não é reflexivo,
pois exclui questões sobre os fundamentos da balística
que são, em princípio, aceitos e não postos em dúvida
perene. Por isso é um discurso abstrato, no sentido de
que não está preso à situação de um determinado ora­
dor e um determinado ouvinte, podendo, nas suas linhas
teóricas, ser transportado para outros sujeitos e outras
armas. O discurso do promotor público, porém, que exi­
be a perícia como prova do crime, incorpora o discurso
pericial num outro contexto comunicativo, tipicamente
dialógico. A questão pericial “ em si” não deixa de ser
quaestio certa, mas na palavra do promotor ela se torna
quaestio dubia, pois a parte contrária pode levantar
novas alternativas do tipo: qual o grau de confiabili­
dade em termos de sua relevância jurídica, do laudo
técnico, até que ponto àquela prova pericial pode ser
usada como instrumento de incriminação. Neste contex­
to, o perito em balística perde sua universalidade abs­
trata, sua condição pessoal de perito passa a exercer
uma interferência no próprio sentido da perícia e o
auditório, ao qual se dirige, perde também sua passivi­
dade, tornando-se contestativo e tendo que ser levado
26 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

em conta para a organização estratégica dos argumen­


tos.

1.8 — Modos de discurso.


O exemplo apresentado tem, porém, nuances que
precisam ser reveladas. Isto nos conduz ao problema
dos modos pragmáticos do discurso.
A literatura filosófica costuma estabelecer diferen­
ças do tipo: juízos de ser e de dever-ser, teóricos e prá­
ticos, juízos de realidade e juízos de valor, descritivos
e diretivos, etc. Admitamos, sem discutir longamente,
que uma distinção do tipo ser e dever-ser tem uma rele­
vância basicamente sintática (caso não se dê àquelas
expressões sentido ontológico), já a distinção entre juí­
zos descritivos e diretivos teria relevância mais semân­
tica. Ora, nossa intenção é propor, na mesma linha,
uma distinção de natureza basicamente pragmática,
que afete, pois, a relação interativa de orador e ouvinte.
Imaginemos vim primeiro caso, a posição de um
cientista, tentando descobrir a possibilidade de se iden­
tificar a arma da qual saiu uma bala pelas marcas
contidas nesta última. Este homem levanta dados, com­
para possibilidades, propõe uma hipótese. Verifica-se
que a hipótese é viável. Outros cientistas a estudam,
tentam confirmá-la ou desconfirmá-la. No último caso,
devolvem a hipótese ao autor e concedem-lhe a chance
de continuar as pesquisas. Por outro lado, admitamos
um segundo caso, também de um cientista que, tendo
proposto uma hipótese, verificou-a e agora constrói uma
teoria balística. Por fim, um terceiro caso, em que uma
perícia é realizada e apresentada no tribunal. Para
simplificar, vamos tomar dos três discursos o seguinte
ato locucionário: “ as estrias fixadas no projétil, com­
paradas com a arma, permitem identificar a arma” .
Sob o ângulo sintático, não há distinção a fazer, pois
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 27

não são três, mas o mesmo enunciado. Isto é válido


também para o ângulo semântico. Não, porém, para a
pragmática.
Admitindo-se que estamos falando de discursos
submetidos ao dever de prova, portanto racionais, não
podemos ignorar que a interação entre orador e ou­
vinte admite duas relações básicas: ambos discutem
um com o outro ou um contra o outro. Para que o
primeiro caso ocorra, é necessário que entre ambos
exista homologia, no sentido socrático do termo: am­
bos possuem qualidades, não só para discutir um com
o outro, mas também para verificar interpessoalmente
o que é enunciado. Digamos que ambos dominam uma
língua, cujos elementos são convencionados e cujo uso
é disciplinado por uma série de regras. Assim, no exem­
plo dado, está pressuposto que o modo como se devam
entender os termos projétil, arma, marcas foi discipli­
nado. Domina aqui, portanto, mútua confiança e res­
peito, que conduzem à cooperação e que se fundam na
“ competência comunicativa” das partes (comunidade
lingüística comum, capacidade de controle comum, etc.).
A relação é predominantemente simétrica, não neces­
sariamente no que se refere às partes, mas aos atos de
falar, o que faz com que o comportamento do ouvinte
não vise diretamente a pessoa do orador, mas a sua
fala. No caso de uma estrutura dialógica, combinam-se,
pois, aqui, a responsabilidade pessoal do orador, com
certa imunização contra a crítica pessoal por parte do
ouvinte. Isto permite, aliás, a tranqüila passagem de
uma estrutura diológica para uma monológica. Quanto
à fundamentação, o discurso-com ou homológico
atende a uma estratégia de convencimento. Convicção
entenda-se como um sentimento que se funda na ver­
dade. Só há convicção (o termo não deve ser enten­
dido psicologicamente, mas como condição de possibi­
28 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

lidade da homologia) se o ouvinte se submete ao pro­


cedimento verificador, o que não exclui a possibilidade
de tentativa de falsificação para testar a veracidade.
Isto é, uma falsa asserção não produz convicção, o que
exclui da relação homológica a mentira.
No caso, porém, em que se discute um contra o
outro, a relação é basicamente heterológica. Aqui um
eventual consenso entre as partes não é fruto da ver­
dade, mas, ao contrário, a “ verdade” se funda no con-
censo obtido. Não há lugar, pois, para convicção, mas
para p“ ersuasão. Persuasão é entendida como um senti­
mento que se funda no interesse. Enquanto a verdade
se liga aos procedimentos verificadores (e falsificado­
res) nos quadros da comum competência comunicativa,
o interesse se liga a procedimentos de controle de opi­
nião. Tanto a ação quanto a reação de orador e ou­
vinte são eminentemente partidárias, ambos defendem
suas opiniões. Por isso, o objeto do discurso, a quaestio,
aparece sob a forma de con/Kfo. Conflitos são questões
em que a relação entre as partes é predominantemente
não simétrica, constituída de alternativas incompatí­
veis. Alternativas incompatíveis se distinguem das con­
traditórias. Estas são mutuamente excludentes e a sua
afirmação conjunta não tem sentido. Alternativas in­
compatíveis, porém, não são de imediato mutuamente
excludentes, pois elas não indicam, fora de qualquer
contexto, que a adoção de uma exclua a outra. Assim,
por exemplo, num sistema de regras de conduta, uma
regra que se recomende cautela nos negócios e outra
que peça a coragem de assumir riscos aparecem como
incompatíveis, se alguém, na realização de um negócio,
tem que optar. A incompatibilidade só surge, então, da
oposição entre duas proposições, analíticas (agir com
cautela e assumir riscos) e de uma proposição empírica
T e o r ia d a N o r m a J u r í d ic a 29

(fazer tal negócio). Além disso, conflitos são alterna­


tivos incompatíveis que pedem unja decisão.
Entendemos por decisão um ato de falar que so­
luciona uma questão sem eliminá-la. Para explicar isto,
tomemos, por exemplo, um sistema ético, onde conste:
a) a verdade deve ser dita; b) devemos ser misericor­
diosos. Supondo-se que um médico se pergunte se deve
ou não contar a um moribundo que sua morte se apro­
xima, temos um caso de conflito. Ora a decisão, diga­
mos, de dizer a verdade, soluciona o conflito, mas não
o elimina, pois as alternativas permanecem na sua se­
letividade de novo objeto de decisão. Decisões, neste sen­
tido, podem ter, mas não têm, necessariamente, por
finalidade estabelecer consenso, mas, sim, “ absorver
insegurança” (Simon/March), pois decisões não elimi­
nam alternativas, mas tornam alternativas indecidíveis
em decidíveis. Daí poder-se dizer também que. a funda­
mentação dos discursos heterológicos visa não a de­
monstração, mas a justificação das decisões.
Podemos, assim, entender porque as três proposi­
ções anteriores constituem do ângulo pragmático, pelo
menos, dois modos discursivos diferentes. A primeira
pode ser localizada como uma discussão-com de es­
trutura dialógica. A segunda é uma discussão-com
de estrutura monológica. A terceira é uma discussão-con-
-tra de estrutura dialógica. A distinção entre discurso
homológico e heterológico pode ser apreciada também
em discussões políticas. Numa conferência internacional
sobre a segurança européia, em Helsinque (julho de
1975), um dos pontos importantes era a determinação
do sentido atribuível a expressões do tipo “ segu­
rança” , “ relações humanitárias” , etc. Ora, podia-se
observar que os participantes, ao discutirem, não
estavam empenhados em convencionar o sentido
destas palavras dentro de uma possível comunidade
SC T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

lingüística, mas, sim conquistar uns dos outros um sen­


tido que lhes fosse mais favorável. Assim podemos dizer
que o problema não estavam no nível semântico, mas
pragmático, pois o eventual trabalho de tradutores, fi­
xando os textos nas diversas línguas, não estava resol­
vendo a questão, que era de nível preponderantemente,
pragmático e, no caso, de discussão-contra.

1.9 — Propriedades pragmáticas fundamentais


do discurso.

O que dissemos até agora nos quadros de um es­


quema breve, já nos basta para o encaminhamento dos
itens principais de uma teoria pragmática do direito.
Podemos assim ordenar os seguintes pontos principais
que abordaremos neste trabalho. Antes, porém, é pre­
ciso resumir em termos gerais os principais resultados
da exposição precedente, fixando as propriedades fun­
damentais do discurso do ângulo pragmático.
Ponto de partida da análise pragmática é o princí­
pio da interação. Assim concebemos o ato de falar como
uma ação lingüística dirigida a outrem, como apelo ao
entendimento de outrem. Esta ação comporta como ele­
mentos fundamentais o sujeito que fala ou orador, o
endereçado da fala ou ouvinte e o objeto, aquilo que
se fala ou questão. Estes três elementos são incontor-
náveis e não há discurso sem eles. O discurso não se
confunde, pois, com um enunciado, um conjunto de pala­
vras sintaticamente ordenadas e dotadas de sentido,
mas abarca modos expressivos digitais e analógicos. 14
Comunicações verbais são basicamente digitais. Quando
digo: retire-se! e diante do rosto espantado do inter­
locutor, segue-se longo e pesado silêncio, este silêncio
e o rosto espantado prolongam, por assim dizer, de modo

w W a t z l a w i c k et allii, clt., p. 44 et seq.


T e o r i a d a N o r m a J u r íd ic a 31

analógico, o discurso verbal, momentos antes proferido.


Alguns chamam o modo analógico de paradiscursivo
(Wunderlich). Enquanto o modo digital é cheio de
recursos que permitem controle e disciplina do falar
(denotação), o modo analógico é pobre de recursos e
conotativo. Assim, o silêncio pode ser, num interroga­
tório, consentimento, indiferença, ignorância, dependen­
do da sitaução em que ocorre. Por isso, no seu modo
analógico, o discurso é de difícil generalização, ao con­
trário do digital, que se generaliza com facilidade.
Quanto ao objeto do discurso, aquilo que se fala e
que, em relação ao modelo pergunta/resposta, chama­
mos de questão (dúbia ou certa), distinguimos entre o
relato e o cometimento como dois níveis diferentes.13
Isto porque quem fala não transmite apenas uma in­
formação (relato), mas transmite, ao mesmo tempo,
como esta informação deve ser entendida (cometimen­
to), isto é, quem fala informa e determina a relação
entre si próprio e o seu ouvinte. Assim, as divergências
doutrinares no entendimento da lei quanto à chamada
mens legis ou ratio legis são, no fundo, divergências
em torno do nível cometimento. Por exemplo, se um
texto legal preceitua: “ Quando o juiz verificar pelo
auto de prisão em flagrante que o agente praticou o
fato nas condições do art. 19, ns. I, I I e III, do Código
Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público,
conceder ao réu liberdade provisória, mediante termo
de comparecimento a todos os atos do processo, sob
pena de revogação” (art. 310 do Código de Processo
Penal), a expressão poderá transmite junto com a in­

15 No mesmo sentido, Erving G ofím an distingue n a ex­


pressividade do indivíduo dois tipos de atividade significante:
a expressão que ele dá e a expressão que dele emana (.La p re-
sentación de la persona en la vida cotidiana. Trad. Torres P e r-
rén e Flora Setaro. Buenos Aires, 1971, p. 14).
32 T e k c io S a m p a i o F e r r a z J r .

formação também uma ordem que afeta o comporta­


mento do endereçado, em relação ao emissor da norma,
tanto que os intérpretes chegam a divergir se, neste
termo, está contida apenas uma permissão ou uma
obrigação. Esta discussão hermenêutica afeta à relação
entre emissor e receptor. O relato, no caso, é a possibi­
lidade de concessão ao réu de liberdade provisória, den­
tro de determinadas condições. O cometimento é o as­
pecto metacomunicacional de como o relato deve ser
entendido, se mera permissão ou se obrigação.
Quantc a orador e ouvinte, como elementos do
discurso, é preciso salientar que não se trata, em prin­
cípio, de papéis fixos e predeterminados; ao contrário,
no processo discursivo, são posições intercambiáveis.
Crador é sempre aquele que, de acordo com a regra
do dever de prova, assume o onus probandi, mas este
assumir uma posição depende da situação comunica­
tiva. Assim, para um expectador externo, um discurso
pode ser visto como uma troca contínua de informa­
ções, mas do ponto de vista dos participantes a carga
da prova sempre cabe, em cada momento, a um deles.
For recursos estratégicos, às vezes, empurramos esta
carga para o outro, de tal modo, que o orador não é
aquele que fala, mas o receptor da mensagem. Por
exemplo, alguém diz a uma criança: agora você vai
para a cama, não vai? Isto que parece uma pergunta
é, antes, uma ordem a uma provável recusa, que deverá
ser justificada. Há uma antecipação a qualquer justifi­
cação da criança em não querer ir dormir. A discor­
dância em tomo da distribuição do onus probandi está
na base de incontáveis disputas em torno das rela­
ções, não podendo ser ignorado, neste sentido, o próprio
direito processual como uma fórmula normativa, que
organiza essa distribuição no discurso jurídico.
T e o r ia da N o r m a J ü k íü u j a 33

Por último, convém lembrar o modo homológico e


heterológico do discurso, conforme a simetria ou a com­
plementaridade das relações interacionais. Aqui nos
interessa, particularmente, o discurso heterológico, que
tem por objeto conflitos e pede decisão. Portanto, ques­
tões que não podem ser solucionadas por meros atos
de escolha, caso em que as alternativas confinariam
um sistema simples, em que todas as posições poderiam
ser enumeradas e avaliadas de acordo com critérios
definidos. Trata-se, ao contrário, de questões que fogem
a tais critérios, onde a racionalidade simétrica entre
problemas e soluções de problemas não é a regra, e
onde as partes têm comportamentos heterológicos, que
se manifestam na diversidade de interesses ou da sua
interpretação, na diversidade, pois, das condições de
avaliação, ocorrendo então um diálogo ao nível opina-
tivo, sendo partidários as reações. As interações hete-
rológicas têm formas específicas de controle, como ve­
remos posteriormente.
Isto posto, resta-nos agora levantar os problemas
que nos propomos. Nossa intenção, dados os limites que
nos impomos, não é tratar da pragmática do direito em
geral, mas escolher um tema específico. Este tema deve
ser limitado pe.la noção de norma jurídica ou discurso
normativo. Consoante o modelo pragmático apresen­
tado, a investigação se preocupa, em determinar em
que situação comunicativa ocorre o discurso norma­
tivo.
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SITUAÇÃO COMUNICATIVA E DISCURSO


NORMATIVO

2.1 — Dificuldades preliminares quanto ao


objeto da análise.

Foder-se-ia perguntar se uma proposta tão ampla


como a da análise pragmática da norma jurídica não
estaria, de antemão, destinada ao fracasso, já pela
diversidade empiricamente constatável de objetos áos
quais nos referimos, quando usamos a expressão norma
jurídica. Um juiz aplica leis, costumes, dita sentenças,
o poder legislativo edita leis, o executivo regulamentos,
a administração pública age através de atos adminis­
trativos, os particulares celebram contratos, árbitros
promovem mediações, os Estados assinam acordos, tra­
tados, convenções. Será possível reduzir uma atividade
de tantos nomes a um único denominador norma ju rí­
dica? Não estaríamos trabalhando, neste caso, com uma
abstração lógica, distante da práxis do direito? Mesmo
admitindo-a, quem nos assegura que a abstração possa
ser usada de modo uniforme? Isto é, inclusive em alto
nível de abstração, não é fato que a expressão gené­
rica norma tem diferentes aplicações.16 A literatura
sobre a norma é vasta, difícil de ser reduzida a uma

is H e n r i k v o n W r i g h t : Norma y Acción, Ed. Tecnos. M a -


drld, 1970, p. 14.
36 T e r c io S a m p a i o F e r r az J r .

unidade. Houve já quem, só no âmbito sociológico, con­


tasse 82 definições de norma.17 A doutrina jurídica
mais tradicional (aquela que transparece nos manuais
e é ensinada com mais freqüência nos cursos jurídicos)
parte, em geral, do caráter imperativo dos enunciados
normativos. Numa forma pregnante encontramos, no
século passado, uma exposição bastante clara do pro­
blema.
Jhering18 adota conscientemente o modelo do
comando, em que a norma aparece como regra de na­
tureza prática, ou seja, como orientação para a ação
humana. Norma é regra. A orientação que ela contém
é o seu conteúdo. Este conteúdo é expresso por uma
proposição, a proposição jurídica. Esta orientação, ilém
disso, não é apenas uma indicação de comportamento
possível, mas tem caráter vinculante: ela atua sobre a
vontade alheia, obrigando-a ou proibindo-a. A noção de
norma se confunde com a de imperativo e um ipera-
tivo específico, aquele que é produto de uma vontade
mais íorte, capaz de impor-se a vontades que se sub­
metem, portanto, uma relação interpessoal. Por último;
este imperativo é abstrato, pois estabelece um tipo de
ação para todos os casos de certo gênero. São conhe­
cidas as objeções a esta definição. Em primeiro lugar,
ela assume, sem muita reflexão, o topos “ vontade” , de
relativa operacionalidade quando imaginamos situações
interindividuais, mas tornado quase impraticável em
contextos supra-individuais, mantendo-se, então, só a
custa de metáforas de interpretação duvidosa e impre­
cisa (vontade da maioria, do governo, da administra­
ção, do povo, etc.). O termo é, além disso, adjetivado

17 Cf. R ü e d ig e r L a u t m a n n : Wert und Norm. Kòln-Opladen,


1969, p. 54.
»» R u d o l f v o n J h e r i n g : Der Zweck im Recht. 5.a ed., 1916,
p. 256 et seq.
T e o r ia da N o r m a J u r I d ic a 37

numa linguagem icônica, quando fala em vontade mais


forte e mais fraca, contribuindo, no contexto, para deri­
vações patéticas e românticas. Apesar disso, em torno
destas derivações muita tinta correu dos tinteiros dou­
trinais, aparecendo questões em larga escala que, assu­
mindo o termo vontade numa forma hipostasiada de
coisa, de algo que se tem, propuseram de modo equí­
voco o problema do endereçado da norma (os cidadãos?
um grupo? os aplicadores?) — mas também do editor
normativo (o povo? seus representantes? grupos de
pressão?), do conceito de soberania (vontade última?
regulada?), de interpretação (vontade da lei? do legis­
lador?), etc. O modelo, além disso, tem que se haver
com casos que parecem escapar-lhe como, por exemplo,
os das declarações de princípios constantes nas moder­
nas constituições, onde o caráter de comando é pouco
visível, obrigando a doutrina a distinções do tipe nor­
mas primárias e secundárias ou independentes e depen­
dentes, etc. A este problema se agrega a dificuldade de
que as formulações imperativas (faça isto, deixe aquilo)
são relativamente raras no direito, levantando a possi­
bilidade de que as normas teriam formulações hipoté­
ticas que esconderiam, porém, um sentido imperativo,18
sendo o sentido hipotético próprio das proposições da
ciência jurídica — proposições jurídicas — que seriam
enunciados sobre normas, estas sempre imperativas.
Esta distinção aliás, possível de ser feita, simplificava
um pouco o problema, pois reduzia a ciência do direito
a enunciados sobre normas (enunciados descritivos),
quando sabemos que, muitas vezes, as proposições da
doutrina jurídica são antes enunciados para-normaiivos,
isto é, que prolongam a reflexão, atribuindo-lhe sentidos

!'•' Assim K elsen na segunda edição da sua Teoria Pura


do Direito (Reine Rechtslehre. Wien, 1960, p. 7 ).
38 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

“ próprios” , “ exatos” , “ justos” , etc.20 Por último, o pro­


blema do caráter abstrato também dito da generalidade
do comando, que envolve, nas suas origens, não uma
configuração teórica, mas uma necessidade ideológica
de fugir aos privilégios, à arbitrariedade, ao tratamento
desigual, e que, divulgada e levada ao triunfo pelo libe­
ralismo do século passado, acabou por levantar o pro­
blema do formalismo e do tecnicismo jurídicos.
Esta rápida incursão tem a finalidade de melhor
situar nossa análise no seu contexto problemático. Ela
nos dá uma breve medida das dificuldades com a qual
nos temos de medir.
Para contornar estas dificuldades (e não para eli­
miná-las cabalmente, o que não nos parece possível em
definitivo), vamos fazer uma proposta de natureza epis-
temológica. Vamos tomar o termo norma, evitando uma
coisificação, como um sinal que representa a ligação
entre duas posições. Esforçamo-nos por ver normas
como a expressão abreviada de uma forma particular
de relação em curso. Assim como aprendemos que o
movimento é algo relativo, que só pode ser percebido
em relação a um ponto de referência, do mesmo modo
abordaremos o problema da norma (mas não da lei,
da sentença, do regulamento, etc., cujo estudo não
apresenta a mesma dificuldade). Para isso, executamos
dois cortes epistemológicos: o primeiro se dá na redução
do âmbito da investigação ao plano do discurso — fala­
mos preferivelmente em discurso normativo ou em nor­
ma como seu sinônimo; o segundo está na configuração
de um modelo pragmático, capaz de relevar as posições
em que a comunicação normativa ocorre. Tenha-se pre­
sente que o que se segue é a descrição de um modelo

2° C f. O ta W e in b e r g e r : Rechtslogik. Wien, New York, 1970,


p. 235.
T e o r ia d a N o r m a J u r í d ic a 39

e não de uma realidade empírica, cujo objetivo é, justa­


mente, propor um esquema analítico capaz de tornar
transparente uma das múltiplas facetas da dimensão
empírica. Além do mais, o modelo não deve ser confun­
dido com uma definição ostensiva do direito.21

2.2 — Situação comunicativa normativa.

Para captar o discurso normativo como uma intera­


ção, vamos assumir o ponto de vista das teorias da
comunicação, que concebem genericamente a comuni­
cação social como interações, em que ambos os comuni­
cadores são, em princípio, ao mesmo tempo, emissores
e receptores. Dentre as múltiplas possibilidades de co­
municação social, escolhemos, em seguida, conforme o
modelo da pergunta e da resposta, o caso de interrupção
da comunicação. Entendemos por interrupção a situa­
ção em que um dos comunicadores que, num dado mo­
mento, é emissor, recusa-se a emitir mensagem pedida
ou em que um deles, sendo receptor, recusa-se a receber
mensagem enviada.
O modelo é amplo e abstrato. Para torná-lo mais
intuitivo, tomemos, por exemplo, a relação médico/pa­
ciente. Digamos que o médico dirija ao paciente men­
sagem no sentido de que este deva ser operado. O
paciente responde que não quer submeter-se à opera­
ção^ Admitamos que o médico peça uma justificação da
recusa, trocando sua posição de orador (aquele que tem
o ônus da prova) para a de ouvinte (aquele que tem a
postura de interrogante); à continuação, a interação
pode realizar-se, discutindo ambos sobre o relato (infor­
mação primária contida na mensagem e digitalmente
expressa como “ a operação deve ser realizada” ), pro­

21 R o b e rto José V ern en go : La interpretación literal de


la ley y sus problemas. Buenos Aires, 1971, p. 22 et seq.
40 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

pondo o paciente as razões da sua recusa (medo, moti­


vos religiosos, dificuldades financeiras, etc.). O médico,
por sua vez, pode reassumir a posição de orador, apre­
sentando razões clínicas para a sua mensagem inicial.
Admitamos, porém, que num dado instante, o médico,
tendo feito uma avaliação das condições físicas e psíqui­
cas do paciente, passe a exigir que este se submeta à
operação, mesmo contra a sua vontade. Neste momento,
pode ocorrer que o paciente venha a revidar, dizendo
que o médico não tem direito de exigir aquilo. A partir
daí, podemos supor que a discussão progrida, sem que
o relato (o paciente deve ser operado) tenha ainda o
mesmo relevo anterior, isto é, as partes, de certo modo,
põem o relato num segundo plano e começam, para
além dele, a discutir quem é quem na interação. Ou
seja, a quaestio do discurso passa do relato para o come-
timento, para o aspecto da interação referente à defini­
ção das posições ocupadas pelas partes na discussão.
Enquanto o objeto (quaestio) da discussão era o
relato, sendo até esquecido o cometimento, talvez se
pudesse supor até mesmo certa homólogia entre as par­
tes, que dominaria todos os procedimentos probatórios.
Poderíamos supor que justificações e razões estariam
sendo apresentadas, tendo em vista a conveniência ob­
jetiva da operação. A partir do momento em que o
cometimento ganha relevo, isto seria um indício de
que a questão fica dominada por uma heterologia entre
as partes. (A heterologia podia já existir antes, mas
admitamos que este não era o caso). Neste momento,
mesmo argumentos apartidários, que visavam à susten­
tação de teses opostas, ganham colorações de interesse,
que passam, então, a influir no próprio significado das
mensagens. A questão torna-se, assim, conflitiva e os
procedimentos probatórios passam a visar a uma per­
suasão, com o fito de provocar e implementar uma
T e o r i a da N o r m a J u r í d ic a 41

decisão, fazendo-se, é claro, abstração da intencionali-


dade consciente ou não dos comunicadores.
Na seqüência, mais e mais poderia ocorrer que a
própria decisão assumisse o caráter de objeto da dis­
cussão, que se tornaria discussão sobre a decisão. Ê
bem possível que, em tese, esta situação, de alta refle-
xividade, pudesse ser levada a extremos incontroláveis,
em termos de discussão sobre a discussão da decisão,
sobre os seus motivos, sobre os motivos dos motivos, e
até sobre as partes que discutem, sobre sua capacidade,
sobre a sua competência para decidir, sobre a sua mo­
ral, etc. Uma situação comunicativa, assim, pode levar-
-nos a conflitos sobre conflitos em larga escala, até que
o engajamento pessoal das partes venha a eliminar a
possibilidade mesma do discursa fundamentante, na for­
ma de conflito violento, generalizado, isto é, sem espe­
cificações, onde tudo é motivo para novos e novos con­
flitos.
Fara que isto não chegue a ocorrer, admitamos que
a situação se mantenha, apesar de sua alta reflexivi-
dade, dentro de regras. Estas regras devem viabilizar
uma institucionalização do conflito, isto é, a transfor­
mação do conflito numa questão em que os procedi­
mentos decisórios a ele referidos sejam regulados. Esta
institucionalização do conflito exige, porém, um aumento
no repertório (nos elementos componentes) da discussão,
que ganha, assim, mais um comunicador. Vamos deno­
minar este terceiro comunicador, genericamente, de
comunicador normativo.
O comunicador normativo pode assumir diversas
posições perante os demais. Isto se dá pela própria refle-
xividade do discurso que, tendo sido levado ao terceiro
comunicador com o fito de evitar conflitos em larga
escala, não elimina os conflitos, apenas os canaliza. Ou
seja, a reflexividade (questão sobre a questão da ques­
42 T i r c i o S a m p a i o F e r r a z J r.

tão, etc.) não se interrompe, mas se organiza. Admita­


mos, pois, que as partes que trocavam mensagens (ní­
vel relato) tivessem certas expectativas de como elas
estivessem sendo entendidas (nível cometimento). No
momento em que as expectativas são desiludidas, a
possibilidade de conflitos em larga escala aparece. Ou
seja, o médico, suponhamos, imaginava que seu recep­
tor o visse como autoridade médica, dirigindo-se a ele
em Conformidade com esta expectativa, o que implicava
um correspondente comportamento do paciente. Este,
porém, que deveria ver o médico como alguém de quem
espera orientação e que lhe inspira confiança, vendo-se
a si próprio como indefeso e confuso, na verdade o
encara, em dado momento, como uma espécie de oposi­
tor, trocando a relação complementar por uma simé­
trica. A desilução conseqüente, para ambas as partes,
pode motivar dois comportamentos: adaptação ou ma­
nutenção da expectativa desiludida. O primeiro caso
denominamos, com Luhmann22 “ expectativa cogniti­
va", o segundo “ expectativa normativa” . A situação
conflitiva surge quando ambas as partes têm expecta­
tivas normativas, surgindo então o recurso ao terceiro
comunicador. Mas ao recorrerem, podem as partes estar
visando apenas a uma “ satisfação imediata” no sentido
de obtenção de uma decisão capaz de resolver a relação
entre ambas. Sentindo-se igualmente fortes, elas se aco­
modam, sob a forma de um compromisso, ou, sentindo-
-se desigualmente fortes, mas não percebendo como
estão distribuídas as forças ou temendo conflitos maio­
res, chegam a uma conciliação. O terceiro mediador é aí
apenas um mediador ou um árbitro. Quando, porém, a
satisfação visada é mediata, isto é, quando se questiona
e se pede decisão sobre os fundamentos e condições do

“ N ik la s Luhmann: Rechtssoziologie, 2 v. Reinbeck bel


Ham burg, 1972, v. I, p. 40 et seq.
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 43

compromisso e da conciliação, temos não apenas um


problema de manutenção de expectativa desiludida
(expectativa normativa), mas de garantia daquela ma­
nutenção, portanto de garantia de expectativa de expec­
tativa. É o conflito sobre esta garantia que faz com
que o terceiro comunicador apareça como comunicador
normativo. Neste caso, a sua palavra sobre aqueles fun­
damentos e condições aparece como premissa da
discussão (e não como tema). Por isso ele entra na
discussão de modo fortalecido, no sentido de que sua
fala passa a ligar as partes entre si como partes confli­
tantes, isto é, garantindo-lhes a possibilidade de confli-
tarem em termos de um exercício autônomo da ação
de questionar dentro de certos limites, ao mesmo tempo
que impede que elas possam deixar de conflitar. Ou
seja, sem eliminar o caráter subjetivo da interação (au­
tonomia das partes) estabelece entre elas uma coorde­
nação objetiva da qual elas não podem mais escapar.
Sob o ponto de vista da linguagem, observamos, então,
que as partes começam a falar protocolarmente (lin­
guagem contratual, regulamentar, legal, etc.), num
modo que não é mais o delas, mas o do terceiro, que
lhes garante o engajamento conflitivo. Neste caso, a
relação entre o terceiro, o comunicador normativo, e os
demais deixa de ser apenas complementar, para, na
medida em que sobre a própria complementaridade já
foi decidido, transformar-se em meta-complementar.
Isto significa que o comunicador normativo entra
fortalecido na situação, justamente porque ainda que a
sua posição ao discursar seja a de orador, ele fica isento
do dever de prova pelo que asserta, discutindo-se como se
aquela prova já tivesse sido produzida. Há, então, uma
inversão peculiar, em que o onus probandi que, num
discurso-contra, heterológico, de estrutura dialógica,
cabe a quem emite, se transfere para o destinatário, que
44 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

passa a responder pela sua recusa em receber a infor­


mação transmitida ou recusar a exigida. Com isso, a
ação lingüística do comunicador normativo toma um
caráter peculiar também no sentido de que, dirigindo-se
a um conflito entre as partes, toma irrelevante as
expectativas dos endereçados perante a sua própria
expectativa, as quais, não importa se são ou não ajus­
tadas, passam a vigorar conforme a sua. Ou seja, a sua
decisão passa a valer, independentemente de as expec­
tativas dos endereçados serem, de fato, contrárias, va­
lendo ainda que os endereçados insistam em desiludi-la.
Como, portanto, a decisão do comunicador normativo
tem força contrafática, tendo garantida a sua expecta­
tiva, ainda que de fato os comportamentos exigidos
sejam divergentes, acatem ou não a decisão, explica-se
que ela soluciona os conflitos, não porque os elimina
de fato, mas porque lhes põe um fim, encerra-os.
A situação comunicativa normativa é, pois, carac­
terizada pela presença de três comunicadores, sendo
que entre os comunicadores sociais e o terceiro se ins­
taura uma interação, cujas regras fundamentais privi­
legiam a posição do último. Estas regras, pelo que foi
dito, podem ser denominadas: a) regra de imputação
do dever de prova pela recusa da comunicação ao ende­
reçado; b) regra de garantia do conflito, pela qual os
comunicadores sociais não podem mais eximir-se da si­
tuação, sem que o terceiro, de algum modo, se mani­
feste, o que dá ao conflito seu caráter institucionalizado;
c) regra da exigibilidade, que dá às expectativas do co­
municador normativo o seu caráter contrafático. Gra­
ças a essas regras, a relação entre comunicador norma­
tivo e seus endereçados se configura como meta-com-
plementar.
A estrutura do discurso normativo, por causa
dessas regras, passa a ter uma ambigüidade própria.
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 15

Temos, na situação, dois grupos básicos de comunicado­


res: os que estão isentos do dever de prova, cuja ação
lingüística vale de modo contrafático, e os que, embora
ouvintes, tem o ônus da prova pela recusa. Vamos cha­
mar, genericamente, os primeiros de editor normativo,
os segundos de endereçado normativo. Para elucidar a
ambigüidade referida, tomemos, por exemplo, o seguinte
texto: “ contrair alguém, sendo casado, novo casamento:
pena-reclusão, de dois a seis anos” . Os endereçados
deste discurso são, em princípio, todas as pessoas casa­
das. De certo modo, também os funcionários da Justiça,
aos quais cumpre zelar pela observância e pela aplicação
da norma. Além disso, podemos incluir na posição de
endereçado toda a comunidade que, de modo abarcante,
inclui também os anteriores. Este tipo de identificação,
porém, precisa ser especificado. Preferimos, pois, dizer,
que, entre os endereçados, há duas atitudes básicas a
distinguir: uma de atenção ao relato da mensagem,
outra de mero expectador, para quem o relato é secun­
dário, importante é o cometimento que exige comple­
mentaridade. Conforme o modelo pragmático de que
partimos, no primeiro caso os endereçados são ouvintes
ativos, dos quais se espera reação ativa; no segundo, são
ouvintes passivos, dos quais se espera adesão passiva.
De um lado, aguarda-se que o endereçado interprete o
relato, se defenda, proponha saídas, de outro, que se
submeta, dando seu aval difuso. Está aí o comporta­
mento ambíguo que nos leva à ambigüidade estrutural
do discurso normativo. O endereçado é, ao mesmo tem­
po, convidado a participar, co-determinando o sentido
do relato, e convidado apenas a submeter-se. No pri­
meiro caso, as possibilidades de reação são múltiplas:
impugnar, não impugnar, impugnar parcialmente, ou
seja, concordar, discordar, concencionar, comparar, etc.
No segundo, submeter-se ou não. Se podemos dizer que
Tntcio S a m p a io F erraz Jk.

o endereçado, aquele que tem o ônus da prova pela


recusa, deve assumir a norma como premissa do seu
comportamento, neste assumir há duplo significado:
como ouvinte ativo, assumir significa deixar-se persua­
dir — o endereçado aparece como intérprete; como
ouvinte passivo, assumir significa estar convicto — o
endereçado aparece como sujeito.
Ora, este duplo comportamento reativo tem seus
reflexos no comportamento do próprio editor normati­
vo, que, correspondentemente, convida o endereçado a
participar, mas também exige a submissão difusa. Se o
endereçado deve ambiguamente assumir, o editor deve
ambiguamente impor. Assim, de um lado, ele é parte
argumentante, pois deve persuadir o endereçado, com os
procedimentos pertinentes; de outro, ele aparece como
autoridade, impõe complementaridade, exigindo adesão
convicta, o que exclui meios externos de coação, bem
como procedimentos persuasórios, pois, como observa
Hanna Arendt, onde se utiliza a força, a autoridade
fracassou, e onde se utilizam argumentos persuasórios,
a autoridade está suspensa.
Ora, esta dupla ambigüidade de comportamentos
dos comunicadores faz do discurso normativo uma ação
lingüística sui generis, que, estruturalmente, é, ao mes­
mo tempo, dialógica e monológica. £ dialógica quando
o relato é relevante e os comunicadores aparecem como
parte argumentante e intérprete. É monológica quando
o relato é secundário e os comunicadores aparecem
como autoridade e sujeito.
Se o discurso normativo é, pois, dialógico e mono-
lógico, disto decorre que o objeto do discurso, conforme
o modelo pragmático, a questão (quaestio), é também,
ao mesmo tempo, um certum e um dubium. É um cer-
tum, tendo em vista a relação autoridade/sujeito, de
estrutura monológica, cuja regra básica diz que nem
T e o r ia d a N o r m a J u r I d ic a 47

todas as ações lingüísticas do orador podem ser postas


em dúvida pelo ouvinte, donde a sua classificação em
atacáveis e não atacáveis, as inatacáveis não podendo
ser postas em dúvida, as atacáveis não podendo ser
afirmadas. É um dubium, tendo em vista a relação parte
argumentante./intérprete, de estrutura dialógica, cuja
regra básica diz que todas as ações lingüísticas do ora­
dor podem ser postas em dúvida pelo ouvinte, donde a
necessidade de diálogos parciais para a obtenção de
enunciados primários, de força persuasiva, a partir dos
quais o diálogo decorre.
A ambigüidade do discurso normativo explica, a
nosso ver, que a norma, nas diferentes teorias, participe
ora de formas hipotéticas, ora de formas imperativas,
que dela se diga ser sempre interpretável, albergando
múltiplos sentidos (interpretabilidade) , mas também
imponível sem discussões, sendo premissa de discussões
(dogmaticidade).
Para melhor entendimento, porém, da ambigüidade,
é preciso uma referência mais detida sobre o relato e o
cometimento das normas, a fim de que se explique
como, apesar dela, entre os dois aspectos prevalece certa
compatibilidade.

2.3 — O aspecto relato e o aspecto cometimento


da norma.

Partamos, como exemplo, do seguinte texto: “ nin­


guém será preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita de autoridade competente. A lei disporá sobre a
prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer
pessoa será imediatamente comunicada ao juiz compe­
tente, que a relaxará, se não for legal” . Neste texto,
uma informação é transmitida. Concomitantemente,
porém, há uma determinação da posição do emissor,
48 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

em face do receptor. Embora aí o emissor não seja men­


cionado e haja uma multiplicidade de receptores, exer­
cendo papéis diversos, façamos abstração deste dado e
analisemos o texto, enquanto mensagem.
Dissemos, anteriormente, que o objeto do discurso,
do ângulo pragmático, é aquilo que se diz, que, em
razão do modelo pergunta/resposta, se apresenta como
questão. Distinguimos ainda, no que se refere ao obje­
to, entre relato e cometimento como níveis separáveis.
A idéia básica aqui expressada é a de que o ato de
íalar, dado o seu caráter interacional, sempre implica
uma ordem, isto é, quem fala (ou decide), não só trans­
mite uma informação (apela ao entendimento de al­
guém) , mas, ao mesmo tempo, impõe um comportamen­
to. Por exemplo, quem diz: “ você é um tolo” , diz tam­
bém: “ este é o modo como eu quero que você perceba
como eu o vejo” . Respectivamente, temos o relato e o
cometimento. O relato é a informação transmitida. O
cometimento é uma informação sobre a informação,
que diz como a informação transmitida deve ser enten­
dida. Nas interações, em geral, o aspecto cometimento
raramente é deliberado e consciente, o que pode ser
fonte de equívocos. Para tomá-los inequívocos, ao me­
nos numa certa medida, a convivência impõe regras,
de cortesia, de boa educação. Assim, quando alguém
diz: “ você está engordando” , pode corrigir a má im­
pressão metacomunicando através de fórmulas como:
“ desculpe, não tive intenção de ofendê-lo” ou “ digo isto
para o seu bem” , etc. Aqüi, o cometimento, isto é, a
ordem para o outro, no sentido de como a informação
devia ser entendida, toma-se patente, através de novo
ato de falar que, por sua vez, também terá, de novo,
um aspecto relato e um aspecto cometimento, o que,
então, poderia, eventualmente, gerar novo equívoco,
levando as partes a se desentenderem progresslvamen-
T e o r ia da N o r m a J u r í d i c a 49

te.23 Em geral, os cometimentos são expressos de modo


analógico, portanto, de modo não verbal, por exemplo,
através do tom da voz, da mímica do rosto ou, em in­
terações mais complexas, através de comportamentos
simbólicos, como a organização de uma parada militar,
um movimento de tropas que podem insinuar que uma
troca de mensagens diplomáticas deva ser entendida
como “ nós somos poderosos, é bom que vocês nos tenham
por amigos”.
Ora, a aplicação desta distinção às normas jurí­
dicas pode trazer curiosos esclarecimentos. Se é verdade
que todo discurso tem um aspecto cometimento e outro
relato, também é verdade que, embora, em geral, comu-
niquemo-nos tanto analógica quanto digitalmente, há
discursos capazes de minimizar os aspectos analógicos,
criando condições para uma metacomunicação adequa­
da. Por exemplo, o discurso matemático. Este não é o
caso, porém, do discurso normativo. Em cada norma,
podemos perceber o aspecto cometimento e o aspecto
relato, bem como a utilização tanto de linguagem ana­
lógica quanto digital. Embora o discurso normativo
apresente uma tendência a digitalizar o seu aspecto
cometimento, o uso mesmo da chamada linguagem na­
tural já constitui limite à digitalização.
Normas jurídicas são decisões. Através delas, ga­
rantimos que certas decisões serão tomadas. Elas esta­
belecem assim controles, isto é, pré-decisões, cuja fun­
ção é determinar outras decisões. Embora isto não sig­
nifique, como veremos, uma redução da norma à norma
processual, o ponto de vista pragmático não deixa de
ressaltar este aspecto procedimental do discurso nor­
mativo. No exemplo que estamos analisando, podemos
levantar uma série de alternativas conflitivas que en­

23 w a t z l a w i c k e t a llii, cit. p . 49, 73 e t seq.


50 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

volvem decisões a tomar: ser preso ou não ser preso,


legalmente ou ilegalmente, por autoridades ou por qual­
quer um, tendo cometido um delito ou não tendo
cometido um delito, em flagrante ou não, pagan­
do fiança ou não pagando, admitindo-se fiança
ou não se admitindo, etc. Estas alternativas são
do tipo incompatível, portanto, conflitivas. A nor­
ma cumpre a tarefa de determinar .quais as decisões,
ou seja, quais alternativas decisórias devem ser esco­
lhidas. O objeto do discurso normativo, ou seja, o obje­
to da situação comunicativa olhado do ângulo do comu­
nicador normativo, não é propriamente o conjunto das
alternativas, mas a decisão que, diante delas, deve ser
tomada. Ou seja, no exemplo, são as decisões: só pren­
der em flagrante delito ou por ordem escrita da autori­
dade, comunicar ao juiz a prisão ou detenção, relaxar
a prisão ilegal. Temos, pois, dois ângulos distintos: as
alternativas conflitivas (ser preso ou não, legalmente
ou não), objeto do discurso dos comunicadores sociais,
e o objeto do discurso do comunicador normativo, que
também constitui um conflito, diferente do outro, na
medida em que considera um conflito sobre o conflito,
que requer decisão sobre a decisão. Assim, o objeto da
norma, sua questão conflitiva, não é apenas “ ser preso
ou não ser preso”, “ legalmente ou ilegalmente” , mas
também “só prender em flagrante ou por ordem escri­
ta: decisão obrigatória ou proibida ou permitida/ou
indiferente/ou facultativa/etc.” Na terminologia prag­
mática, o comunicador normativo não apenas diz qual
a decisão a ser tomada — pré-decisão — mas também
como essa pré-decisão deve ser entendida pelo endere­
çado — informação sobre a informação. Respectiva­
mente, temos o relato, e o cometimento dor discurso
normativo, que, no seu conjunto, formam o objeto
(quaestio) do discurso normativo.
T e o r i a da N o r m a J u r í d ic a 51

Aqueles que estejam familiarizados com a lógica


deôntica podem estar pensando que estamos chamando
de aspecto-cometimento ou ordem metacomunicacional
aquilo que é conhecido como operadores ou funtores
deônticos,24 embora, tratando-se de pragmática e não de
sintaxe, estes “ operadores” estejam entendidos na rela­
ção usuário-signo-usuário. De qualquer modo, a distin­
ção entre relato e cometimento nos permite esclarecer
que os discursos normativos são dialógicos no que se
refere ao aspecto relato, monológicos no que se refere
ao aspecto cometimento. Isto implica que as normas
possam ser questionadas de dois modos distintos, ou,
melhor, que elas constituem dois modos diferentes de
questão: quaestio certa e quaestio dubia: o relato —
só prender em caso de flagrante ou por ordem escrita
— é um dübium; pois não há limites de contestação,
sendo o endereçado convidado a co-determinar o discur­
so pela sua reação ativa (que significa flagrante? que
fazer em casos em que não haja nem flagrante nem
ordem escrita?), mas o cometimento — é proibido pren­
der, é obrigatório comunicar ao juiz, é obrigatório rela­
xar a prisão — é um certum, pois o endereçado assume
a reação passiva de cumprir a norma de determinado
modo, excluídas outras possibilidades. Com isto esclare­
cemos, também, que os endereçados, antes menciona­
dos, não pertencem a grupos fixos e determinados, mas
colocam-se em posições diferentes, conforme a situação.
Juizes, advogados, autoridades administrativas, são en­
dereçados dialógicos nas expressões “ o juiz relaxará a
prisão ilegal” , “ a lei disporá sobre a prestação da fian­
ça” , mas são também endereçados dialógicos os indiví­

2* “O conectivo dever-se triparte-se em obrigatório (f a -


zer/n ão-fazer), permitido (fazer/não-íazer) e proibido (fazer
/não-fazer) ”. L ourival V il a n o v a : Lógica Jurídica. São Paulo,
1976, p. 124.
52 T e h c io S a m p a i o F e r r a z J r .

duos privados, as sociedades, etc., nas expressões do


tipo “ senão em flagrante delito” ; por sua vez, os mes­
mos sujeitos são endereçados monológicos no aspecto
cometimento, obedeça, cumpra (é proibido, é permitido,
é obrigatório).
O aspecto-cometimento da norma não é, entretan­
to, tão simples de ser identificado, como possa parecer
à primeira vista. Isto porque, embora, sobretudo no
direito moderno, ele tenda a ser expresso digitalmente
— e mesmo neste caso há dificuldades, como nos mos­
tram as disputas da lógica jurídica — , muitas vezes
ele é apenas implícito, ou, ainda, expresso analogica-
mente. Assim, por exemplo, se um cidadão resolve esta­
cionar o seu carro, optando por um determinado lugar,
pode suceder que lhe surja um policial, que lhe diga:
“ aqui o senhor não pode parar”. Embora o enunciado
esteja no indicativo presente e possa mesmo ser tomado
como uma descrição de um regulamento, aceitemos que
se trata de um ato decisório normativo que predetermi­
na a provável decisão do cidadão de estacionar como
excluída. Temos, porém, um ato de falar normativo,
que implica um cometimento. A informação de que não
se pode estacionar está, sem dúvida, acompanhada de
um aspecto-cometimento, que regula a interação ao
metacomunicar sobre a informação. Isto é, não se trata
de um conselho, de uma recomendação, de um aviso,
mas de uma ordem, cuja expressão digital seria: “ eu
sou autoridade, estou aqui para prover o bom anda­
mento do trânsito, o senhor tem que se submeter”. A
não ser numa situação exasperada, esta metacomuni-
cação, é claro, não aparece desta forma. Ela pode assu­
mir configurações analógicas, como o ato de puxar o
caderno de multas e ficar com o lápis pronto para entrar
em ação, manifestar-se na farda com que se veste o
policial (o que indicará que ele está em serviço). O
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 53

direito em geral é, neste sentido, pródigo em metaco-


municações deste gênero, como a toga do juiz, a soleni­
dade do processo, dos atos parlamentares, podendo-se
incluir, aqui, até mesmo, num sentido amplo, os atos
de força e de violência, como formas analógicas de
metacomunicação normativa. As formas analógicas,
contudo, são, como vimos, de uma sintaxe relativamente
pobre, por isso mesmo formas de expressão conotativas,
que desconhecem recursos sintáticos elementares, como
o uso do não para a negação. Por isso, o uso da farda
pelo policial pode também assinalar prepotência, abuso
de autoridade, e serão as condições situacionais que
poderão diminuir a conotatividade, indicando se o poli­
cial, numa sociedade corrupta, ao mostrar o caderno
de multas não estaria antes sugerindo o suborno. Estes
problemas, referentes às dificuldades de determinar,
num discurso dado, a espécie de cometimento que ele
estabelece, não nos interessam por enquanto. Parece-
-nos mais importante, no momento, buscar os traços
comuns (redundâncias) da comunicação normativa, ten­
tando fixar um modelo pragmático capaz de nos mos­
trar, tanto no aspecto-cometimento quanto no aspecto-
-relato, quais os instrumentos comunicativos básicos da
norma jurídica.

2.4 — Os operadores pragmáticos, conteúdo e condi*


ções de aplicação da informação normativa.

Normas jurídicas são entendidas aqui como discur­


sos, portanto, do ângulo pragmático, interações em que
alguém dá a entender a outrem alguma coisa, estabele­
cendo-se, concomitantemente, que tipo de relação há
entre quem fala e quem ouve. Ou seja, o discurso nor­
mativo não é apenas constituído por uma mensagem,
mas, também, por uma definição das posições de orador
e ouvinte. A lógica deôntica costuma definir as “ propo­
94 T e r c io S am p a io F e r r a z J r .

sições normativas” como prescrições, isto é, proposições


construídas mediante os operadores ou funtores “ obri­
gatório/proibido” e “ permitido” , aplicados a ações. Na­
turalmente, não às “ ações mesmas” (plano empírico),
mas à sua expressão lingüística.
As ações, diz-nos von W right,25 são interferências
humánas no curso da natureza. Se esta interferência é
positiva — por exemplo, derrubar uma árvore — trata-
-se de um ato. Se é negativa — por exemplo, não cons­
truir uma casa — temos uma omissão. O conceito de
omissão é mais complicado. Na linguagem cotidiana2*
não significa simplesmente não fazer, mas não fazer
algo. Só omitimos aquilo que devemos ou estamos habi­
tuados a fazer. Por exemplo, num dia de céu límpido,
se alguém não abrir o guarda-chuva, não diríamos que
houve uma omissão, que, é claro, só ocorreria se alguém
se esquecesse de abrir o guarda-chuva, estando choven­
do. Não se trata, além disso, de uma questão de agir
consciente ou inconscientemente, mas de exprimir a
relação entre algo que foi e como poderia ter sido. Por
isso, o que uma pessoa descreve como um ato pode ser
descrito por outra como uma omissão e vice-versa. Isto
quer dizer que atos também exprimem uma relação do
que foi, em função de como poderia ter sido. Assim, por
exemplo, se alguém entra num quarto escuro e acende
a luz, há um ato do ponto de vista do agente, mas uma
omissão do ponto de vista do fotógrafo, que revelava
chapas fotográficas. Isto nos permite dizer que ações
não são apenas interferências no curso da natureza,
mas interferências em relação a como poderia ou deve­
ria ter ocorrido. Toda ação, nestes termos, traz uma

25 H. vo n W r igh t : op. cit., m , 2.


26 Ju a n -R a m o n C a p e ix a : op. cit., p . 50.
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 55

nota de tipicidade27 correspondente à relação entre a


interferência no curso da natureza e o conjunto das
articulações que a circundam.
Esta concepção de ação implica, além disso, que
partimos de um estado de coisas que muda para um
outro estado de coisas (a luz está apagada muda para
a luz está acesa). Para que a ação se realize, é preciso
que os estados de coisa se apresentem, de certo modo
compatível com a ação (por exemplo, que a luz esteja
apagada para passar a estar acesa). Fala-se, assim, em
condições (lógicas) da ação e seu resultado. Dada uma
condição de ação, é possível tanto realizar um ato como
uma omissão, sendo diferente o resultado, num e noutro
caso. Von Wright fala, em suma, que as normas são
compostas de um operador normativo (permitir, obri­
gar), de uma descrição de ação e de uma descrição da
condição de ação. O primeiro dá o caráter da norma
(norma permissiva, de obrigação), o segundo o seu
conteúdo (atos e omissões), o terceiro a sua condição
de aplicação.
Sob o ponto de vista da pragmática, a descrição
da ação e a descrição da condição da ação constituem
o aspecto-relato da mensagem normativa. Nisto, porém,
não se esgota a sua análise, pois dela fazem parte o
editor e o sujeito mais a relação meta-complementar
que entre ambos se estabelece. A meta-complementa-
ridade se determina ao nível ou aspecto-cometimento
do discurso e é prevista, a nosso ver, pelos operadores
normativos. Em outras palavras, os operadores norma­
tivos têm uma dimensão pragmática além da dimensão
sintática, pelas quais, não só é dado um caráter prescri-
tivo ao discurso ao qualificar-se uma ação qualquer,

27 M i g u e l R e a l e : O Direito como Experiência. São Paulo,


1968; vide também M i g u e l R e a l e Jr.: Antijuridicidade Con­
creta. São Paulo, 1975.
56 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J b .

mas também lhe é dado um caráter meta-complemen-


tar ao qualificar a relação entre emissor e receptor.
Estabelecida uma norma, o editor, ao transmitir
uma mensagem, define as posições de tal modo que o
endereçado assuma uma relação complementar (meta-
-complementaridade). Para fazê-lo, ele pode simples­
mente transmitir a mensagem ou pode, além disso,
fazer um comentário sobre ela. Por exemplo: “ efetuada
a prisão, a autoridade comunicará ao juiz. . . ” ou “ efe­
tuada a prisão, a autoridade é obrigada a comunicar
ao juiz” ou “ efetuada a prisão, a autoridade poderá
comunicar ao juiz” , etc. Expressões como “ é obrigado” ,
“ está proibido” , “ está permitido” , sob o ponto de vista
da pragmática, são metacomunicacionais, correspon­
dendo a “ comentário” sobre a mensagem transmitida,
no sentido de definir as relações entre as partes. Como
a relação não é apenas complementar, mas imposição
de complementaridade, as expressões obrigar, permitir,
proibir são fórmulas digitais, pelas quais a autoridade
controla as possíveis reações do endereçado à definição
das respectivas posições. Existem inúmeras fórmulas
deste gênero na linguagem comum e o direito se utiliza
de todas elas. Assim como se faz no plano sintático,
vamos nos referir basicamente a estas três: obrigar,
proibir, permitir, admitindo que outras, como facultar,
delegar, autorizar, etc. sejam redutíveis a elas.
A lógica deôntica, como vimos, trata estas fórmu­
las como funtores ou operadores deônticos. Através deles,
os comportamentos expressos na norma adquirem um
status deôntico, qualificam-se deonticamente. Por exem­
plo, se a norma diz: é proibido pisar na grama, a ação
“ pisar na grama” adquire o status deôntico “ proibido”.
Sob o ponto de vista da pragmática, porém, interessa-
-nos o modo como, através dos operadores, a autoridade
determina a relação entre ela e o endereçado como com­
TKORIA DA N o r m a JUKÍDICA 57

plementar (imposição de complementaridade ou meta-


-complementaridade). É muito importante que se enten­
da que a relação definida, no discurso normativo, é
meía-complementar, pois isto indica que o orador nor­
mativo procura fazer com que o endereçado assuma a
posição complementar e, para isso, usa de recursos cora
o fito de evitar reações incompatíveis. Ora, as reações
possíveis do ouvinte a uma definição pelo orador da
relação entre ele e o ouvinte são três:28 ou confirmar,
ou rejeitar, ou desconfirmar. Confirmação é uma res­
posta pela qual o ouvinte aceita a definição (compreen­
de e concorda); rejeição é uma resposta pela qual o
ouvinte nega a definição (compreende e discorda); des-
confirmação é uma resposta pela qual o ouvinte desqua­
lifica (não compreende ou ignora) a definição. A dife­
rença entre rejeição e desconfirmação está em que, na
primeira, o ouvinte, de certo modo, reconhece o orador
como autoridade, para depois recusar a definição, en­
quanto, na segunda, ele age como se o orador não
existisse. Uma relação definida como meta-complemen-
tar não pode suportar este terceiro tipo de reação, pois
a desconfirmação eqüivale ao aniquilamento da autori­
dade enquanto tal. Os sistemas normativos costumam
estabelecer, por isso, ou de modo explicito, através de
uma norma cujo relato o diga, ou implicitamente, na
forma de um cometimento analógico, que não se reco­
nhece a alegação da ignorância da lei como justificativa
para a licitude do próprio comportamento. Ao nível da
cometimento, portanto, entendemos que o discurso nor­
mativo só reconheça (e procure estabelecer como possí­
veis) duas reações: confirmação e rejeição, excluída a
possibilidade de desconfirmação. For outro lado, as rea­
ções de confirmação e rejeição têm o efeito de dar à
autoridade o seu sentido de autoridade, visto que nas

2» W a t z l a w i c k e t a l li i: op. cit., p . 74 e t seq.


58 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

relações complementares uma definição do próprio


emissor só pode ser mantida pela do parceiro que tem
que desempenhar um papel específico. Se não houver
confirmação, não há autoridade, mas se não houver
rejeição, a autoridade não se percebe, agindo como tal,
e não tem condições de se afirmar. Neste sentido, ao
estabelecer uma norma, o editor, definindo a relação
meta-complementar, já predetermina as suas próprias
reações às eventuais reações do endereçado, em termos
de confirmar uma eventual confirmação, rejeitar uma
eventual rejeição e desconfirmar uma eventual descon-
firmação. Ao fazê-lo, ele está mostrando ao endereçado
que a sua posição perante ele, editor, é de sujeito,
sendo ele editor, autoridade, ignorando-se qualquer
tentativa de comportamento à parte ou alheio à relação
normativa. Por isso, como dissemos, no nível do come­
timento, a estrutura do discurso é monológica.
Ao determinar um comportamento qualquer ou a
sua omissão como proibido ou obrigatório, o editor esta­
belece a meta-complementaridade, que é uma definição
das relações do tipo quaestio certa, pois, de antemão,
abre duas opções de reação e já dispõe qual delas deve
ser escolhida: ò ouvinte é jungido a cooperar, ou, de
outro modo, sua reação será rejeitada. A análise sintá­
tica da norma costuma levantar aqui o problema de se
saber se é possível colocar os funtores proibir e obrigar
como operando de maneira similar. Isto porque a intui­
ção parece mostrar que as normas “ é proibido pisar na
grama” e “ é obrigatório omitir pisar na grama” não
têm exatamente o mesmo “sentido” . 29 Apesar disso, se
reconhece a possibilidade" de se mostrar a interdefini-
bilidade dos dois operadores (desde que se admita que
a linguagem normativa contenha descrição de ações e

C a p e l l a : o p . cit., p. 226 e t seq.


TKOHIA DA NOKMA JU&tDICA 59

não nomes). Podemos indagar se problema semelhante


surge ao nível pragmático. A resposta nos parece nega­
tiva. Proibir e obrigar são fórmulas digitais, que esta­
belecem lima relação complementar, ou, seja, através
delas é imposta a relação autoridade/sujeito como um
cometimento explícito, que obedece o esquema confir­
mação da confirmação, rejeição da rejeição e desconfir-
mação da desconfirmação. Uma questão mais complica­
da, porém, está referida à possibilidade de existirem
ou não normas permissivas, ou esja, a questão de se a
permissivididade não resulta antes da ausência de proi­
bição e obrigação.
Ao nível sintático da análise, a idéia mais comum
é de que as normas permissivas não existem como nor­
mas independentes, isto é, não são um tipo à parte das
normas de obrigação/proibição. Assim, quando o editor
normativo usa a expressão “ permitir” o faz apenas para
descrever o fato de que uma ação não está nem proibida
nem é obrigatória, portanto, que não há norma sobre
aquela ação. Esta tese se funda na pressuposição de
todo sistema normativo admitir a chamada “ norma de
clausura” , segundo a qual tudo o que não esteja juridi­
camente proibido ou não seja obrigatório, estaria auto­
maticamente permitido. Não vamos discuti-la. Deseja­
mos observar, pondo de lado o caso de ausência de
norma (de obrigação), os casos em que a permissão
aparece. Um deles é o das exceções a normas de obri­
gação. Por exemplo, a norma que permite matar em
legítima defesa. A norma “regra geral” seria a que
proíbe matar, para a qual a admissão da legítima de­
fesa seria uma exceção. Outro caso é o das permissões
independentes *° ou normas permissivas, cujo conteúdo
não é o conteúdo de nenhuma norma “ geral” de obri-

»o H . von W r ig h t: op. clt., p. 101 et seq.


«0 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

gação. Neste caso, o legislador permite uma ação, por­


que quer dizer ao endereçado que tolerará a ação (per­
missão fraca) ou ainda porque combina a tolerância
com a garantia de realização do ato tolerado, capaci­
tando o- agente a realizá-lo (permissão forte). Alguns
autores31 negam a existência deste segundo tipo, reco­
nhecendo apenas o primeiro, caso em que a norma
permissiva aparece como simples negação de uma nor­
ma de obrigação. Afora o caso de exceção, o legislador,
segundo Ross, para permitir simplesmente se cala (nor­
ma permissiva independente seria ausência de norma).
A questão é difícil de se resolver. Entre as nor­
mas permissivas independentes costumam-se incluir as
declarações de direitos humanos constantes nas moder­
nas Constituições. Von Wright reconhece-as como noi>
mas permissivas, mas não sem pôr em relevo o seu
“ peculiar aroma moral” , pois eles parecem, de um lado,
garantir a liberdade do sujeito contra a intervenção de
terceiros, de outro, uma autoproibição, que a própria
autoridade se dá a si mesma de interferir, uma espécie
de autocompromisso (moral) dificilmente compatível
com o sentido prescritivo das normas jurídicas; por isso
mesmo, reconhece igualmente o caráter não satisfató­
rio da solução. O problema está em que o elemento
coercitivo é reconhecido como típico do direito e a nor­
ma permissiva, sendo uma espécie de “ declaração polí­
tica” de intenção de não interferir em certos casos, teria
por fundamento apenas esta espécie de compromisso
público da autoridade e mais nada.32 Não se poderia
dizer que o sentido prescritivo destas permissões (por
exemplo, declaração de direitos) decorresse de certas
proibições de interferência de terceiros (por exemplo,
garantias constitucionais), pois derivadas são estas e

A lt R oss: op. cit., p. 116 et seq.


32 C apella : op. cit., p. 218 et seq.
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 61

nao aquelas e querer dizer que as declarações imperam


por causa das garantias é inverter a relação.
Esta questãq tem relevância para a pragmática.
Trata-se de saber se, através do operador “ permitir” ,
é possível um cometimento que define a relação entre
as partes como meta-complementar e de modo peculiar,
independente de normas de obrigação. Fara discuti-la,
comecemos por admitir que a autoridade não se mani­
feste perante o sujeito, no sentido de que nenhuma
informação é transmitida. Esta é a hipótese de um
silêncio do editor. Admitindo-se, igualmente, que não
há comportamento fora de uma situação comunicacio-
nal, todo silêncio é também forma de comunicar. Dada
uma situação comunicativa normativa, portanto a ocor­
rência de um conflito decisório que pede uma meta-
-decisão, a questão é saber se o silêncio do comunicador
normativo tem sentido de mensagem normativa ou um
outro qualquer. Que tem sentido de mensagem, não
há dúvida. Mas haverá uma mensagem qualificando a
relação? A tentação de se dizer que o silêncio libera
o endereçado de qualquer vinculação complementar é
grande. Isto nos levaria a dizer que o silêncio eqüiva­
leria à permissão. Acontece, porém, que se interpreta­
mos o silêncio como uma mensagem normativa que
libera o endereçado, temos de admitir igualmente que
o endereçado pode reagir ou confirmando ou rejeitando
ou desconfirmando. A partir do silêncio do editor, po­
rém, não é possível determinar a contra-reação da
autoridade, pois o seu silêncio pode tanto indicar con­
firmação, rejeição ou desconfirmação. Embora o seu
silêncio comunique, parece que, ao nível do cometi­
mento, a única coisa que se pode inferir é que a rela­
ção entre editor e endereçado fica inqualificada. Chamar
esta situação de permissão parece, pois, antes uma me­
táfora, para exprimir que o caráter da relação é inde-
62 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

cidivel. Ora, querer dizer que a inqualificação constitua


um status normativo é uma contradictio in terminü,
o que não significa, porém, como observe analogamente
ao nível da análise sintática Amedeo Conte,83 que a
relação inqualificada não possa ter um status norma­
tivo, colocando-nos o silêncio do comunicador norma­
tivo exatamente no âmbito do problema da existência
ou não de lacunas no sistema normativo.
Se é verdade, portanto, que o silêncio do comuni­
cador normativo é apenas uma indicação, ao nível do
cometimento, de que a relação é indefinida ou inquali­
ficada, não podemos deixar de rever a hipótese de uma
afetiva qualificação normativa da relação como não-
-complementar. Para que isto ocorra, é preciso uma
manifestação do comunicador normativo através de
discurso normativo (e não de um silêncio) que defina
a relação entre editor e endereçado, de tal modo que
às possíveis reações do endereçado (confirmação, rejei­
ção, desconfirmação) correspondam contra-reações do
editor, cuja combinação garanta a relação definida.
Assumimos que a fórmula digital deste tipo de cometi­
mento seja exatamento “ é permitido que” , no sentido
de que o editor, ao permitir determinada ação, estabe­
lece um cometimento do tipo: eu ignoro qualquer rea­
ção de confirmar ou de rejeitar minha definição da
relação, só confirmando uma eventual desconfirmação
(ou seja: desconfirmação de uma eventual desconfir­
mação) . Trata-se de uma situação comunicativa curiosa,
tanto da parte do editor, quanto do endereçado. Ao
permitir uma ação qualquer, o comunicador normativo
qualifica normativamente a ação como indiferente. Para
que esta qualificação seja normativa e não apenas de
sentido moral (autocompromisso de não interferência),

** A. C o n t e : op. clt., p. 17.


T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 63

é preciso reconhecer-lhe um certo caráter paradoxal, ao


nível pragmático. De fato, o editor, ao qualificar a ação
como indiferente, metacomunica ao endereçado que
este não deve considerá-lo, no caso, como autoridade
e a si próprio como sujeito, portanto que a relação
entre ambos é simétrica. Mas ao fazê-lo, diz mais,
porque impõe esta definição de relação simétrica, isto
é, não deixa ao endereçado outra opção senão a de
igncrá-io como autoridade. Trata-se, pois, não de uma
simetria, mas de uma pseudo-simetria, caso em que o
editor impõe ao endereçado a relação simétrica. Da
parte do editor, a situação é paradoxal, pois ao impor
a simetria, o editor ao mesmo tempo que se desquali­
fica como autoridade (somos simétricos), de novo se
qualifica como tal (devemos ser simétricos). Do lado
do endereçado, a situação é igualmente paradoxal, pois
diante da norma permissiva, ele tem de sujeitar-se na
medida em que rompe (desconfirma) a relação de su­
jeição. Nestes termos, somos levados à conclusão de que
a ncrma permissiva é norma paradoxal. Ela difere do
silêncio do editor normativo pelo fato de que a relação
é definida ou qualificada e não inqualificada, e difere
da norma de obrigação/proibição porque esta impõe
uma relação de complementaridade, enquanto a norma
permissiva impõe uma relação de simetria. Como, po­
rém, a simetria imposta ou pseudo-simetria redunda
numa meta-complementaridade implícita, a diferença
entre ambas está mesmo nas combinatórias de reações
e contra-reações, com as quais o comunicador norma­
tivo controla o comportamento do endereçado. Ou, seja,
a diferença está no modo de controle e não no resultado.
O ponto de vista proposto, parece-nos, afasta-se da po­
sição de von Wright, para quem a norma permissiva
(norma-declaração da autoridade comprometendo-se a
não interferir na liberdade de alguém), sendo uma
64 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

“ proibição de interferir” da autoridade a si própria,


falta-lhe um sujeito, para que pudesse ser plenamente
uma prescrição. Assim, por exemplo, se uma norma
estabelece: “ a todo cidadão é garantido o acesso à pro­
priedade privada” , poderíamos transcrevê-la em termos
de “ a todo cidadão é permitido ter propriedade pri­
vada” ; segundo von Wright, há aqui uma declaração
da autoridade de que esta se obriga a si própria a não
impedir que qualquer cidadão tenha propriedade, pri­
vada, sendo o sujeito da norma a própria autoridade,
donde o seu incerto caráter prescritivo. Em nossa inter­
pretação, ao contrário, o sujeito é todo cidadão, ao qual
é imposta uma definição de relação como simétrica
(pseudo-simetria). No fundo é preciso reconhecer, a
norma permissiva é uma norma de obrigação parado­
xal, pois uma norma do tipo “ a liberdade é um direito
imprescritível do homem” tem seus correlatos em norma
que assegura que “ ninguém pode abdicar da sua liber­
dade” (vide, neste sentido, o art. 27 do Código Civil
suíço).
Distinguimos, assim, a norma permissiva do mero-
silêncio do editor normativo, como manifestação ex­
pressa da autoridade. O silêncio do editor não permite,
mas indetermina. Já a permissão determina de modo
específico. E aqui é preciso de novo distinguir os casos
em que a permissão é usada para abrir exceção em
norma anterior de proibição ou obrigação e os casos
de permissão com conteúdo próprio. No primeiro caso
se incluem normas como a que abre exceção de legíti­
ma defesa, tendo em vista proibição geral a respeito
ou ncrmas que estabelecem isenções de impostos, tendo
em vista obrigações gerais. No segundo caso, incluímos,
de modo geral, as chamadas normas programáticas de
uma Constituição, que não são exceção a proibições ou
obrigações gerais, mas normas de conteúdo próprio, que
T e o r i a d a N o r m a J u r íd ic a 65

impõem simetria aos seus sujeitos (pseudo-simetria) no


sentido de que eles não podem eximir-se do vinculo
estabelecido no e pelo cometimento que lhes assegura
uma faculdade. Para as permissões que abrem exceção,
propomos que o funtor seja “é permitido» porém, que” ,
indicando-se pelo “porém” a exceção aberta no conteúdo
da norma geral de obrigação.
Em resumo, reconhecemos as seguintes possibili­
dades:
a) normas de obrigação/proibição: através dos
operadores “ é proibido” e “ é obrigatório” uma deter­
minada ação ou omissão é qualificada juridicamente
como obrigatória ou proibida; com isso dá-se igual­
mente uma determinação jurídica da relação entre emis­
sor e receptor como relação complementar imposta;
b) normas permissivas que constituem exceção a
uma norma geral de obrigação/proibição: através do
operador “ é permitido, porém, que” determinada ação
ou omissão é qualificada juridicamente como faculta­
tiva ou permitida, tendo em vista uma proibição ou
obrigação geral; a determinação jurídica da relação
como simétrica depende de uma imposição de comple­
mentaridade geral, da qual constitui uma exceção;
c) normas permissivas independentes: através do
operador “ é permitido” uma determinada ação ou omis­
são é qualificada como facultativa ou permitida, sem
que haja, sobre o mesmo conteúdo, norma geral de
obrigação/proibição; a relação entre emissor e receptor
é determinada, juridicamente, como relação simétrica
imposta ou pseudo-simétrica;
d) ausência de norma: o silêncio do editor torna
uma ação ou omissão nem obrigatória, nem proibida,
nem permitida ou facultada, mas, juridicamente, in-
decidível; a relação entre emissor e receptor pode ser,
então, indiferente simétrica ou complementar, não ocor­
66 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

rendo, em nenhum dos casos, nem imposição de com­


plementaridade, nem pseudo-simetria.
Em conclusão, temos condições de reconhecer os se­
guintes operadores normativos básicos: obrigatório que,
proibido que, permitido que; os seguintes comporta­
mentos: obrigatório, proibido, permitido; as seguintes
relações: complementaridade imposta, pseudo-simetria.
A combinação de operadores, comportamentos e relações
èficteca Vaüe Ferrei

nos dá, por fim, as seguintes qualificações, conforme


o quadro infra:

COMPORTA-
OPERADORES RELAÇÃO QUALIFICAÇÃO
MXNTOS

Obrigatório Obrigatório Complemen­ Obrigatorie­


taridade dade

que imposta

Proibido Proibido Complemen­ Proibição


taridade

que imposta

Permitido Permitido pseudo- Permissão


-simétrica

que

Silêncio Indecidivel Indeterm i­ In qualifica-


nada çâo

normativo

2.5 — Relação entre norma e sanção.


Do até agora exposto, podemos dizer que nos per­
mite configurar o discurso normativo como um discurso
T e o r ia d a N o r m a J u r í d i c a 67

decisório, estruturalmente ambíguo, em que o editor


controla as reações possíveis dos endereçados ao garan­
tir expectativas sobre as expectativas de reação, deter­
minando as relações entre os comunicadores na forma
de uma meta-complementaridade caracterizada como
imposição de complementaridade e imposição de sime­
tria.
Através dos operadores, não apenas qualificamos
juridicamente os comportamentos, mas também deter­
minamos as relações entre os comunicadores, através
dos quais se exprime a díade autoridade/sujeito
nas suas diferentes modalidades (obrigação, proibição,
permissão). Isto significa que a relação de autoridade
se define pela garantia estabilizada de que certas ex­
pectativas devem prevalecer, independentemente de o
comportamento exigido ocorrer ou não. O importante
para o cometimento normativo não é o cumprimento
efetivo do relato (uma norma pode ser desobedecida e,
apesar disso, a relação de autoridade permanece), mas
a garantia de que reações que desqualificam a autori­
dade, como tal, estão excluídas da situação comuni­
cativa. Isto quer dizer que a meta-complementaridade
não se confunde com a imponibilidade dos comporta­
mentos expressos no relato.
No entanto, embora a relação de autoridade deva
manter-se de modo contrafático, isto é, subsiste ainda
que o endereçado não queira ou não possa adaptar-se,
esta posição não pode manter-se de modo obstinado,
no sentido de que o editor veja apenas e sempre o seu
lado da relação. A autoridade tem, assim, de ser imple­
mentada, tanto no sentido de que possa ser compre­
endida, o que implica argumentação e discussão, como
também fortalecida, o que implica argumentos refor­
çados. A expectativa da autoridade subsiste em cada
caso, mas não nos permite esperar genericamente de
68 T e k c io S a m p a i o F e r r a z J r .

modo contrafático. Isto nos levaria a um rompimento


da comunicação. Por isso tem de haver, na comunica­
ção normativa, instrumentos discursivos capazes de tor­
nar o comportamento desiludidor que, como fato, é
incontestável, em algo compreensível e integrado na
situação.
O discurso normativo, assim, sem abdicar da rela­
ção de autoridade, tem de canalizar e encaminhar as
desiluções ou infrações, estabelecendo para isso proce­
dimentos especiais, em que a autoridade é, ao mesmo
tempo mantida, mas temporariamente suspensa, evi­
tando-se o rompimento da comunicação, ou, seja, pro­
cedimentos em que o editor possa aparecer como parte
argumentante e o endereçado como intérprete. Para
isso, a determinação das expectativas possíveis de rea­
ção do endereçado deve ser acompanhada de previsões
de comportamentos possíveis do editor, no caso de rea­
ção desiludidora. Esta colocação, que decorre da pró­
pria ambigüidade estrutural do discurso normativo,
exige, entretanto, tratamento mais detalhado.
Esta ambigüidade abre caminho, a nosso ver, para
esclarecer do ângulo pragmático, a questão da relação
entre norma e sanção. Em princípio, parece-nos possível
afirmar o caráter coercitivo de todo e qualquer discurso
normativo. O problema é saber se este caráter está
ou não ligado = a sanção. Os autores, como Kelsen, da
segunda fase, que sustentam esta ligação, são obriga­
dos a reconhecer uma distinção entre normas indepen­
dentes (que prevêem a sanção) e dependentes (que têm
a sanção em outra norma). Esta distinção tem dois
defeitos: primeiro, ela confunde as relações entre as
normas num “sistema” (sistema de validade) com as
“ conexões” entre elas, independentemente do sistema
(conexão entre a previsão de uma conduta com a pre­
visão de sanção para o comportamento contrário); se­
T e o r i a d a N o r m a J u r íd ic a 69

gundo, ela acaba por sustentar que na sanção está a


causalidade genética do direito, o que nos conduz a
dificuldades no sentido de se distinguir entre normas
jurídicas e normas que representam uma ordem parti­
cular e sem caráter geral, como a ordem de um bando­
leiro, que ameaça a sua vítima, para que lhe entregue
algo. Assim, por exemplo, Kelsen, depois de reconhecer
a sanção como elemento essencial da norma e de dis­
tinguir entre normas independentes e dependentes,
acaba por recorrer a uma norma última, hipotética,
não sancionadora, que deve fundar toda a ordem ju­
rídica: a Grundnorm, confundindo as duas formas de
relação, a sistemática e a de conexão, sem esclarecer, de
modo satisfatório, a questão da legitimidade do direito.
O problema da sanção tem, a nosso ver, três aspec­
tos: determinação do seu sentido — que é sanção? — ,
relação entre sanção e norma — toda norma tem de
prever uma sanção? — , fundamento da norma na san­
ção — o direito é uma forma de violência? Quanto ao
primeiro aspecto, podemos dizer que sanção designa um
fato empírico, socialmente desagradável, que pode ser
imputado ao comportamento de um sujeito. A deter­
minação do que é este fato empírico não é de natureza
nem lingüística nem jurídica, mas psicossociológica.
Trata-se de uma reação negativa contra um determi­
nado comportamento, portanto, avaliada como um mal
para quem a recebe. Além de psicossociológica, sua
determinação é, pois, também axiológica. Sob o ponto
de vista lingüístico, o fato empírico-social da sanção
interessa menos. Isto porque as sanções não entram nas
normas, do ângulo discursivo, como parte de um “ ato
locucionário” , 34 isto é, como uma constatação de um

34 J. L . A u s t i n : How to Do Thlngs with Words. Trad. ale­


mã ( Zur Theorie der Sprechakte. Stuttgart, 1972), em várias
passagens. Vide, em princípio, a primeira lição.
70 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

estado de coisas — exemplo: “ para o crime de morte é


prevista uma sanção de prisão” — nem mesmo como de
um “ ato ilocucionário” , isto é, a realização de uma ação
através de uma asserção — por exemplo, a ação de
ameaçar ao dizer “ está ameaçado de prisão, quem matar” ,
mas, sim, como parte de um “ato perlocucionário” , isto
é, a consecução de uma ação ao falar: ao dizer “ quem
matar, será preso” desperta-se no endereçado uma expec­
tativa, a de estar sendo ameaçado. Através de “ atos per-
locucionários” , por assim dizer, executamos atos ilocucio-
nários” . Em outras palavras, podemos dizer que “atos
locucionários” têm um significado, “ atos ilocucionários”
desempenham um papel (o papel de ameaçar ao des­
crever uma sanção), “ atos perlocutivos” visam a certos
efeitos, não são instrumentos para agir, mas realizam
imediatamente uma ação. Neste sentido, normas não
são discursos indicativos que prevêem uma ocorrência
futura condicionada — dado tal comportamento ocor­
rerá uma sanção — mas sim discursos que constituem
de per si uma ação: imposição de comportamentos como
jurídicos (qualificação de um comportamento e estabe­
lecimento da relação meta-complementar). A sanção, do
ângulo lingüístico, é, assim, ameaça de sanção: trata-se
de um fato lingüístico e não de um fato empírico. As
normas, ao estabelecerem uma sanção, são, pois, atos
de ameaçar e não representação de uma ameaça.
Esta posição levanta, porém, uma dificuldade. Em
termos de ameaça, notamos, intuitivamente, uma dife­
rença entre uma norma legal, geral, e a sentença do
juiz, individual, que manda executar a sanção e entre
esta e o ato do funcionário que a põe em prática.
Admitindo-se que nos três casos temos ameaça de san­
ção, podemos levantar uma dúvida sobre se, no último
caso, ao menos, permanece o caráter de ameaça ou se
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 71

há ali outra coisa, por exemplo, sanção efetiva e não


simples ameaça.
Esta questão toca de perto o problema da conexão
entre normas e a sua análise nos permite dizer que
todas as normas, embora com características comuns,
exercem suas funções pragmáticas de variado modo.
Assim, nos três casos, temos atos perlocucionários, atos
que não representam, mas executam uma ação. Mas a
lei que prevê uma sanção é ato perlocucionário de
ameaçar no sentido de exercitar um ato, isto é, no
sentido de que ameaça, decidindo-se contra determi­
nado comportamento. Não é, primariamente, avaliação
de um comportamento, mas a sua pronúncia. Já a sen­
tença tem o caráter perlocucionário de veredicto, isto é,
primariamente, ela decide sobre fatos e valores e, em
geral, com fundamento em discursos exercitivos. Ao
mandar executar, porém, ela tem também caráter exer-
citivo, ela executa ameaça. Por fim, o ato do funcio­
nário que põe em prática a ameaça tem, primaria­
mente, o caráter perlocucionário condutivo, isto é, o dis­
curso condutivo reage a um comportamento, exigindo
outro, mas, ao mesmo tempo, sendo exercício de com­
petência, mantém caráter de ameaça. Só o ato, não
lingüístico de pôr alguém atrás das grades é sanção
pura e simples e não mais ameaça.35

A ameaça de sanção não deve ser confundida com


fórmulas premiais, através das quais o editor norma­
tivo pode motivar um comportamento qualificado ccmo
indiferente por uma norma permissiva. Este tipo de
“ sanção” não constitui o que entendemos por ameaça.
incluindo-se, pois, apenas reações do editor que possam
constituir para o endereçado algo que coaja e não ape­

35 a u s t in : op. cit., 12.B liçã o .


72 T e r c io S a u p a i o F e r r a z J r .

nas o motive. Aqui se incluem, pois, ameaças com pe­


nalidades, como a perda de liberdade, execução forçada,
multas, anulação (mas não nulidade, pois a nulidade
é uma situação que pode ser reconhecida, mas não pode
ser exercida, isto é, é possível dizer se um ato é nulo,
mas não é possível estabelecer, impor nulidade, mas
apenas anular). A noção de ameaça de sanção exclui
também a crítica de que aqui se deveria incluir a im­
posição de tributos, crítica que se faz à definição de
sanção como uma reação desagradável para o endere­
çado, pois a aplicação de impostos ou de direitos alfan­
degários, ainda que pudessem ser uma reação desa­
gradável, não são estabelecidas na forma de ameaça.
Por outro lado, o problema de se saber quando uma
fórmula lingüística constitui uma ameaça, este é pro­
blema de natureza empírica, que variará de comuni­
dade lingüística para comunidade lingüística.
O segundo problema se refere à relação entre a
norma e a sanção. Constitui toda norma uma ameaça
de sanção? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer,
invertendo-se a questão, que o caráter jurídico da
ameaça de sanção está em que ela é regulada norma-
tivãmente. Isto é, é possível executar a ameaça de san­
ção, sem que haja discurso normativo no sentido exposto
anteriormente, sem que haja, pois, qualificação de com­
portamentos e estabelecimento de relação de autoridade.
Duas pessoas brigando podem fazer-se ameaças e, nem
por isso, temos sanção no sentido jurídico. Mas o pro­
blema é saber se toda norma ameaça de sanção. Ora,
há normas que prescrevem comportamentos e estabe-
celem a meta-complementaridade autoridade-sujeito,
sem fazer ameaça. Assim, a ameaça de sanção pode ou
não estar presente, admitindo-se, então, que ela esteja
em outra norma. Esta é a questão da conexão entre
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 73

normas 3" e não da sua sistematização, que é problema


de relação de validade, como veremos posteriormente.
Podemos, assim, reconhecer que uma das características
da norma jurídica está em que nelas a sanção é sempre
prevista ou por ela mesma ou por outra norma, sem
que isto nos obrigue a afirmar que na sanção esteja a
causalidade genética do direito. Como explicar isto na
perspectiva pragmática? Esta é a nossa terceira questão.
A ameaça de sanção aparece na norma ao nível
do relato. Assim, uma norma prescreve: “ é obrigatório
cumprir o contrato” , o conteúdo do relato é “ cumprir
o contrato” , cuja negação interna é “ não cumprir o
contrato” , que seria condição de aplicação de uma pres­
crição de sanção: “ é obrigatório pagar a multa” . Note-se
que, na prescrição da sanção, “pagar multa” é o con­
teúdo do relato da norma sancionadora. Assim, tanto
a norma que manda cumprir o contrato, como a que
manda pagar a multa, definem relações meta-comple-
mentares de autoridade e sujeito, o que se determina
através dos operadores ou funtores, mas não pelo con­
teúdo do relato. Em outras palavras, a relação meta-
-compiementar não é constituída pela sanção, mesmo
numa norma que se esgote em prescrevê-la. Na reali­
dade, a ameaça de sanção faz parte da norma no seu
aspecto dialógico e não no seu aspecto monológico.
Neste sentido, ela é argumento de persuasão, consis­
tindo para o endereçado — o sujeito normativo — uma
indicação do comportamento do editor — a autoridade
— em determinadas circunstâncias. Trata-se, pois, de
elemento de ligação para o controle de um discurso
superveniente: dado um comportamento do sujeito, se-
guir-se-à umâ reação do editor, que pode ser a aplica­
ção da sanção, ou novo procedimento discursivo, que

:l1' Capeli.a: op. cit., p. 183 e 233.


74 T e r c io S a m p a i o F e r b a z J r .

levará àquela aplicação ou ainda à edição de novu


norma, este último caso, como observa Capella,17 ocor­
rendo com freqüência nas transgressões do direito in­
ternacional.
O discurso normativo, portanto, enquanto discurso
de autoridade, exclui a persuasão e a violência que.
entretanto, nele entra, ao nível do relato. Esta ambi­
güidade e incompatibilidade é explicável, porém, como
uma condição de autoridade da decisão normativa. Ter
autoridade, é ter capacidade de seleção entre alterna­
tivas, a qual é manifestada por decisão. Quem tem
autoridade pode motivar outros a assumir sua decisão
como premissa de comportamento de modo vincuiatório
No caso da norma, esta capacidade não é conse­
qüência de uma demonstração de um estado de coisas
— produção de convicção fundada na verdade — nem
do exercício concreto de coação, mas de procedimentos
regulados. Isto significa que a aceitação de decisões de
outrem como premissa do próprio comportamento exige
a mobilização de motivos, para o próprio agente e para
terceiros. Neste sentido, o discurso normativo não é
mera proposição, letra morta perfeita e acabada, mas
forma de interação: um procedimento regulado. Isto
implica a sua ocorrência temporal, em termos de que
a decisão da autoridade exige uma distância que separe
o emissor do receptor como condição de sua autonomia,
pois, sem ela, as normas ficariam ao sabor das situa­
ções e não poderiam ser generalizadas. Para isso, ne­
cessitamos de uma técnica através da qual a autoridade
é provisoriamente suspensa e ao mesmo tempo mantida.
O aparecimento da sanção, ao nível do relato em forma
condicionada, exerce justamente esta função. Quando
o editor prescreve um comportamento e prevê a sanção

:i; C a p e l l a : op. cit.. p. 184.


T ío k ia da N orm a J u r íd ic a 7b

no caso de comportamento contrário, ele introduz um


procedimento lingüístico, que ao mesmo tempo mantém
sua autoridade e a suspende provisoriamente, até que
o comportamento condicionante ocorra. O discurso nor­
mativo obriga, assim, os endereçados à generalização
prospectiva das suas expectativas. Nele se exprime uma
pretensão de comportamento, que pode ser assumida
também em relação a comportamentos divergentes. Daí
a ambivalência do discurso normativo, onde se com­
binam o fático e õ contrafático, este no sentido de even­
tual decepção, que é generalizada concomitantemente.

2.6 — Situações subjetivas jurídicas.

Estamos de posse, agora, de elementos suficientes


para dedicarmo-nos ao problema que a moderna teoria
jurídica refere com o nome de situações subjetivas jurídi­
cas. Estes elementos são: a noção de norma como meta-
-decisão, em que se estabelece, através de certos opera­
dores, uma relação meta-complementar entre as partes;
a noção de editor normativo como autoridade e de
endereçado como sujeito, sendo autoridade e sujeito não
pessoas, mas papéis que pessoas assumem na díade
meta-complementar; a diferença entre normas de obri­
gação e normas permissivas; a noção de sanção como
elemento do aspecto-relato da norma que é uma indi­
cação para o endereçado do comportamento reativo da
autoridade, em caso de determinada reação do sujeito.
Na análise de todos esses elementos, ressaltamos que o
discurso normativo se caracteriza como forma de con­
trole das reações do ouvinte discursivo pelo orador no
sentido de que a regra geral do dever de prova, segundo
a qual, quem afirma, responde pelo que diz, é invertida,
jogando-se o ônus da prova para quem recusa e ques­
tiona. Esta regra especial, que faz do discurso norma­
tivo um discurso estruturalmente ambíguo, deve orien­
76 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

tar-nos, agora, na análise das situações subjetivas ju­


rídicas.
Justamento uma das dificuldades, para a doutrina,
é encontrar um critério que permita dar um quadro
coerente destas situações, que são desenvolvidas, pela
ciência jurídica, mais ao sabor das necessidades práti­
cas do que a partir de critérios lógicos. Existem, assim,
simples enumerações de situações, como também tenta­
tivas de ordená-las. Uma destas tentativas é a proposta
de Hohfeld,38 que se limita a distribuir os conceitos na
forma de pares de oposição e correlação. Uma outra
é a de Ross,30 que, assumindo a proposta de Hohfeld,
desenvolve, a partir da noção de obrigação, uma espécie
de quadro que é, antes, uma estilização dos conceitos
tradicionais. Interessante é também a sugestão de Ca­
pella, 40 que tenta uma enumeração na base de um cri­
tério unitário, localizado na posição que o sujeito nor­
mativo assume em função da sanção, distinguindo os
casos em que o sujeito pode ser ameaçado de sanção,
em que pode ameaçar de sanção e em que está isento
de sanção, respectivamente obrigação jurídica, poder
jurídico e direito subjetivo. O próprio Capella, porém,
embora afirmando que com esses três casos é possível
enumerar todas as situações comumente elaboradas pela
doutrina, que são a eles redutíveis, reconhece41 algumas
dificuldades em seguir o seu critério à risca. Isto porque,
ao determinar a situação de poder jurídico, observa que
ele aparece como a conexão entre uma norma permis­
siva que permite editar outra normas e uma segunda
norma, de obrigação, que sanciona as transgressões das

as W esley N ew comb H o h feld : Fundamental Legal C on-


cevtions. Y ale University Press, 1919.
■i!) A lf R oss: S o b r e e l D e r e c h o y la J u s t ic ia . Trad.
w C a p e lla : o p . c it., p . 231 e t seq.
C a p e l l a : op. cit., p. 240.
T e o h ia da N o m i a J u r íd ic a n

normas editadas ou, então, a conexão entre uma norma


permissiva com uma norma de obrigação, cuja condi­
ção de aplicação está no conteúdo da norma anterior.
Ora, neste segundo caso, o critério não está apenas na
conexão (relação entre a norma e a prescrição da san­
ção), mas atende também às condições de aplicação.
Além disso, há o caso da situação do sujeito, a qual
se tolera por meio de norma permissiva, sem que haja
qualquer ação (o que corresponde a um dos sentidos
de normatividade duvidosa da permissão, conforme ob­
servação de von Wright, supra mencionada).
Nossa intenção é, neste momento, examinar a ques­
tão do ângulo pragmático. Propomos, pois, seguindo
Capella, e acrescentando o nivel pragmático de análise
como critério para o estabelecimento das situações sub­
jetivas jurídicas, a posição ocupada pelo sujeito nor­
mativo perante o ônus da prova da recusa em se co­
municar bem como perante a sanção. O critério é duplo
porque, sendo a análise pragmática orientada pelo prin­
cípio da interação, toda situação se determina pela ação
de um comunicador e pela reação do endereçado que
modifica a ação do primeiro, provocando séries intera­
tivas. Como, por outro lado, as interações são, em nosso
tema, estabelecidas por discursos que denominamos nor­
mas, na realidade a análise das situações subjetivas
jurídicas é, no fundo, uma análise das próprias normas
na sua conexão.
O critério que propomos procura abarcar os dois
aspectos pragmáticos da norma, o aspecto-relato e o
aspecto-cometimento. Assim, quando falamos na impu-
tação do ônus da prova ao comunicador que se recusa
aceitar a ação lingüística do orador, estamos nos refe­
rindo a um problema do aspecto-cometimento da norma.
Quando falamos na ameaça de sanção, referimo-nos ao
aspecto-relato. Ambos estão relacionados, pragmatiça-
78 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J b .

mente no sentido de que o editor normativo, ao imputar


o ônus da prova ao endereçado, dá-lhe também uma
indicação de qual será o seu comportamento em caso
de determinadas respostas. A imputação do ônus da
prova se dá através de normas de obrigação/proibição
e de permissão. No caso das primeiras, a autoridade ao
dizer, por exemplo, “ é obrigatório pagar as dividas” ,
exige do endereçado, que recusa a sua posição pelo não
cumprimento da ação prescrita, uma prova da sua re­
cusa, no sentido de que a autoridade se exime de provai
o que diz, mas o endereçado tem de provar porque
impugna. Como o endereçado está numa relação meta-
-complementar, esta prova tem de estar referida ao pró­
prio discurso normativo. Assim, se o endereçado não
pode provar com fundamentos normativos a sua recusa,
segue uma contra-resposta do editor, em termos de
ameaça de sanção. O caso das normas permissivas é um
pouco diferente, pois, através delas, a autoridade impõe
uma relação de simetria, desqualificando a possibili­
dade, quer de confirmação, quer de rejeição. Mas, como
a simetria é imposta — pseudo-simetria — , a mensagem
da auotridade não é transmitida por um silêncio (ausên­
cia de norma de obrigação), mas por uma norma que
isenta o endereçado do ônus da prova. Do lado da
ameaça de sanção, podemos dizer, por sua vez, que se
o endereçado tem o ônus da prova da recusa, ele pode
ser ameaçado de sanção, caso não possa provar norma-
tivamente; e se está isento do ônus da prova, não pode
ser ameaçado de sanção.
Isto posto, podemos distinguir três posições do su­
jeito perante o ônus da prova: a) ele tem o ônus e
responde pela recusa; b) ele está isento do ônus e ç)
ele próprio pode imputar o ônus a um outro sujeito.
Tendo em vista a sanção, diremos, então, que, no caso
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a

(a), se o sujeito tem imputado o ônus da prova da


recusa, a autoridade pode ameaçá-lo com sanção; no
caso (b), se ele está isento do ônus, então não pode
ser ameaçado com sanção; e no caso (c), se o sujeito
pode imputar a outro o ônus da prova, então pode
também ameaçá-lo com sanção (incluindo-se, aqui,
também a hipótese de o sujeito poder isentar a outro
do ônus da prova, não podendo, então, ameaçá-lo com
sanção).
Para que ocorra o primeiro caso (a ), é preciso uma
norma de obrigação 1 que, no seu relato, prescreva um
comportamento e, no seu cometimento, imponha com­
plementaridade, imputando o ônus da prova pela recusa
ao sujeito, e uma norma de obrigação 2' que, pelo seu
relato, ameace de sanção o sujeito da norma 1 e, no
seu cometimento, imponha complementaridade a ele.
Para que ocorra o segundo caso (b), é preciso o con­
curso de uma norma permissiva 1 que, no seu relato,
permita um comportamento e, pelo seu cometimento,
imponha simetria, isentando o sujeito do ônus da prova
pela recusa, e uma norma de obrigação 2 que, pelo seu
relato, sancione a tentativa do editor ou de terceiros
de ameaçar o sujeito de sanção e de lhe imputar o
ônus da prova pela recusa, e, no seu cometimento, esta­
beleça relação complementar em face do editor e dos
terceiros. Para que ocorra o terceiro caso (c), é preciso
uma norma permissiva 1 que, pelo seu relato, permita
0 comportamento de editar normas e, pelo cometimen­
to, imponha simetria, isentando o sujeito do ônus da
prova da recusa, e uma norma de obrigação 2 que,
pelo seu relato, sancione os contraventoras das normas
estabelecidas pelo sujeito da norma 1, impondo-lhes
complementaridade, ou então, uma norma permissiva
1 que, pelo seu relato, permite um comportamento —
estabelece simetria — que é condição de aplicação de
86 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

uma segunda norma de obrigação 2, cujo relato ameaça


terceiros de sanção, impondo-lhes complementaridade
ao nível do cometimento.
Podemos, isto posto, distinguir três situações sub­
jetivas básicas: obrigação ou dever jurídico, poder jurí­
dico e direito subjetivo. O sujeito tem obrigação se tem
o ônus da prova da recusa e pode ser ameaçado de
sanção, caso a sua recusa não seja normativamente
fundamentável; tem um poder jurídico, se pode imputar
imediata ou mediatamente o ônus da prova da recusa
e ameaçar de sanção, em caso de a recusa não ser fun­
damentável; por último, tem direito subjetivo, se está
isento do ônus da prova da recusa e da ameaça de san­
ção, sendo sua isenção normativamente fundamentável.
Note-se que, nos três casos, há uma referência ao norma­
tivamente fundamentável. Este elemento é importante,
para compreender-se o sentido, por assim dizer, técnico-
-jurídico das situações. Isto porque os discursos norma­
tivos não são apenas enunciados prescritivos, mas 'pro­
cedimentos interativos fundamentantes, regidos pela
regra do dever de prova e pela abertura ao com­
portamento crítico do ouvinte. A expressão situação
(subjetiva jurídica) não deve, pois, nos iludir no sen­
tido de estar indicando qualidades ou propriedades
do sujeito. Ao contrário, ela indica antes posições
variáveis do sujeito, dentro da interação, que se modi­
ficam em função das forças argumentativas do seu dis­
curso. Para que estas forças argumentativas se mani­
festem juridicamente, temos de pressupor uma instância
de poder jurídico que acompanha as situações aventa­
das em cada caso; é preciso, assim, que o sujeito das
diversas normas 1 tenham ação, isto é, que uma norma
lhe permita (norma permissiva) formular uma preten­
são em face dos órgãos jurisdicionais e outra norma
obrigue (norma de obrigação) estes órgãos a um proce­
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 81

dimento, caso a pretensão seja formulada. Isto significa


que o sujeito normativo não é puramente o sujeito
passivo de um monólogo, mas também um sujeito rea­
tivo do diálogo. Nestes termos, ao contrário do que
ocorre para Kelsen, para quem as situações subjetivas
são apenas relações entre normas, do ângulo pragmá­
tico elas são também comportamentos discursivos fun-
damentantes dos sujeitos, que podem ser mais ou me­
nos persuasivos.
Podemos dizer que, sendo as normas, do ângulo
pragmático, procedimentos interativos prescritivos que
prevêem por si ou por outra norma uma sanção, para
que o sujeito seja determinado numa situação subje­
tiva jurídica, é preciso verificar sua posição perante o
ônus da prova pela recusa da comunicação, perante à
ameaça de sanção, mas também perante à força argu-
mentativa do seu procedimento discursivo. Esta força
introduz na conceituação de situação subjetiva um ele­
mento de eficácia que, como veremos em próximo capí­
tulo, pode alterar as relações de validade entra as
normas. Por outro lado, a força argumentativa do pro­
cedimento é responsável pela mobilidade das posições
em termos de que ter uma obrigação ou um poder ju rí­
dico ou um direito subjetivo são posições que se assu­
mem, que se mantém, que se reduzem, que se perdem,
que se recuperam, é verdade que a força argumentativa
do procedimento está ligada à situação de ter ação,
mas nada impede que haja outros instrumentos pro­
cedimentais, cuja força repousa em situações de fato
que podem criar condições para uma composição de
interesses (como o caso do locatário que tem a obriga­
ção de pagar, mas que, por circunstâncias de mercado,
goza também de um poder econômico de barganha, que
altera, de algum modo, o poder jurídico do locador), ou
em situações axiologicamente imprecisas, que podem
82 T e r c io S a m p a i o F e r r a z Jr.

igualmente gerar um conflito de valores capaz de alte­


rar as posições (como ocorre em juízos equitativos contra
legem), etc. Aqui se propõe, porém, a questão de se saber
da possibilidade de mensuração e controle da força argu-
mentativa da interação procedimental, questão esta que
discutiremos posteriormente, ao tratar do problema da
validade das normas, sua relação sistemática e sua liga­
ção com a afetividade.
£ importante, portanto, ressaltar que nossas três
noções básicas foram obtidas, atendendo-se o ponto de
vista pragmático que nos obriga a ver a norma, tanto
como a transmissão de uma mensagem, bem como um
cometimento que define as relações entre os comuni­
cadores. Ou seja, por exemplo, a noção de obrigação
jurídica não se reduz (como para Kelsen, que nos fala
em dever jurídico (Rechtspflicht), enquanto o comporta­
mento que evita a sanção42) à posição do sujeito pe­
rante à ameaça de sanção, mas se refere concomitante-
mente ao estabelecimento da relação meta-complemen-
tar que, como dissemos, não é produzida pela sanção.
Assim, é possível reconhecer-se, neste sentido, que a
noção de obrigação tem, além de uma dimensão sintá­
tica (conexão entre normas) e de uma dimensão semân­
tica (relação entre os comportamentos exigidos e san­
cionados com a realidade) uma dimensão pragmática
(imposição de relação complementar). Isto significa
que o sujeito da obrigação não é apenas aquele que,
com seu comportamento, pode evitar a sanção, mas
também aquele que se encontra em relação meta-com-
plementar perante o editor normativo. Isto nos permite
contornar certas dificuldades que aparecem, por exem­
plo, na concepção kelseniana. Kelsen, definindo o delito
como o comportamento que provoca a sanção e o dever

« K e l s e n : o p . cit., p . 120 et seq.


T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 83

como o que evita, admite que, no direito positivo, nor­


malmente, a sanção de execução civil constitui dois
deveres ou obrigações: o dever de não provocar danos
(obrigação principal) e o dever de reparar o eventual
dano (obrigação substituta), sendo, neste caso, a segun­
da não uma sanção, mas um dever. Ora, dado um caso
em que alguém se obriga a pagar e não o fazendo, a
reparar, observamos que o comportamento que evita a
sanção não é o pagamento (isto o sujeito pode deixar
de fazê-lo sem sofrer sanção), mas a reparação. Isto
nos leva à conclusão paradoxal de que o não cumpri­
mento do comportamento exigido — o pagamento —
não configura um delito! (o que contraria o princípio,
aceito por Kelsen inclusive, de que pacta sunt servan-
do) . 43 Ao contrário, em nossa concepção, é perfeitamen­
te possível dizer-se que, no caso de execução civil, o
sujeito que deixa de pagar já cometeu um delito por
romper a relação meta-complementar, ainda que a
ameaça de sanção fique na dependência de um segundo
comportamento, a reparação. Por outro lado se explica
que um sujeito possa estar ameaçado de sanção sem
ter uma obrigação, pois a meta-complementaridade não
é rompida, como é o caso em que se lhe impõe o paga­
mento dos danos, segundo as regras da responsabilidade
objetiva ou da impossibilidade excusável Poderíamos
incluir nesta mesma linha de raciocínio a distinção
entre obrigação e responsabilidade. Para Kelsen, não
sendo o sujeito que responde pelo delito de terceiro
igualmente sujeito de dever (por exemplo, quando este
sujeito apenas responde pelo delito, mas não pela obri­
gação, ele não pode, com o seu comportamento, nem
evitar nem provocar uma sanção), o sujeito responsável

43 Cf. R ic a r d o E n t e l m a n : Reparación Obligatoria y C u m -


plimiento Facultativo de los Contratos, lido em manuscrito
gentilmente ceâido pelo autor.
84 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

não configura uma situação subjetiva jurídica, mas é


apenas objeto de um comportamento estabelecido pela
ordem jurídica como conseqüência da sanção. A nosso
ver, a responsabilidade é um caso de situação subjetiva
em que o sujeito é ameaçado de sanção, mas sem que
se lhe impute o ônus da prova de recusa (que é impu­
tado apenas ao sujeito da obrigação), com força argu­
mentativa inferior, portanto. Neste caso, a dimensão
pragmática ressalta o duplo aspecto do discurso norma­
tivo, tendo em vista o controle das reações do ouvinte.
Esta instância de controle das informações que retor­
nam, dado o ato lingüístico do editor, atribui ao sujeito
que tem obrigação, uma posição complementar perante
o editor normativo que pode ameaçar de sanção, caso a
recusa não seja fundamentável. Aqui é preciso esclarecer
que a relação de meta-complementaridade se refere as
posições de editor e sujeito normativos e não às ações
que devam ser cumpridas, que estão no aspecto-relato
da norma. Isto é, se tomamos, por exemplo, um con­
trato em que A esteja obrigado a pagar 1.000 a B e B
a entregar X a A, o que chamamos de aspecto-òome-
timento meta-complementar da norma, não é a relação
entre A e B, mas a que ocorre entre ambos e o editor
da norma contratual que eventualmente são os pró­
prios sujeitos, mas enquanto assumem, graças a uma
norma permissiva, a posição de editores (autonomia
privada). Ou seja, entre as partes contratantes pode
haver uma relação de simetria que, como tal, não é
jurídica, mas simplesmente social ou econômica ou cul­
tural, mas, em face da norma contratual que os une,
se toma jurídica. Com isto se esclarece, como já aventa­
mos anteriormente, que as noções de autoridade e sujeito
se referem não a pessoas determinadas, mas a posições
definidas na mensagem normativa. Assim, que um su­
jeito tenha uma obrigação perante outro sujeito é uma
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 85

situação de meta-complementaridade para com a auto­


ridade da norma contratual, que pode ser a posição
assumida pela comunhão da vontade de ambos. O pro­
blema não é de pessoas ou indivíduos, mas de papéis,
podendo o mesmo indivíduo assumir, ao mesmo tempo,
diferentes papéis.
Quanto à noção de poder jurídico, aí estão subsumi-
das as de capacidade e competência, pois em ambos
temos uma concorrência de normas que dá a possibili­
dade ao sujeito de imputar o ônus da prova de recusa
e de ameaçar com sanção, o que, na terminologia jurí­
dica usual, corresponde à possibilidade de emitir enun­
ciados chamados atos jurídicos ou, em Direito Privado,
declarações dispositivas (por exemplo, uma promessa,
um testamento, uma lei, uma licença administrativa).
Como dissemos, esta instância de controle das informa­
ções que retornam é a chave para o entendimento do
discurso normativo como tal. Sendo este um discurso
em que a relação entre as partes é definida como meta-
-complementar, a situação subjetiva de poder jurídico
representa um momento de metacomunicação, pois
uma norma permissiva, ao permitir a um sujeito a edi­
ção de outras normas, tem como aspecto-relato a pró­
pria relação-meta-complementar das normas a serem
editadas. Assim, se a norma permissiva 1 diz: “X está
autorizado a legislar em tais casos” , a informação
transmitida está definindo como meta-complementar o
aspecto-relação das normas editadas pelo seu sujeito.
O problema da validade, como veremos, está intima­
mente ligado a este caso. A seu tempo, discutiremos,
então, a questão da autoridade primeira e da norma
fundamental. Por ora, cumpre assinalar que a instância
de controle no caso de poder jurídico e de obrigação
é diferente na medida em que, para o primeiro, a viola­
ção da norma afeta a validade dos atos, para o segun­
86 T E r o io S a m p a i o F l r r a z J r .

do, encerra uma responsabilidade. Em geral, na atri­


buição de uma competência temos os dois casos, pois o
sujeito competente, ao mesmo tempo em que o poder
lhe é concedido, tem regulado o exercício da compe­
tência por normas de obrigação, sendo, pois, possível
distinguir-se entre a sua competência e as suas obriga­
ções ou deveres (é bom assinalar, porém, que esta dis­
tinção, na redação das leis, nem sempre é clara, exi­
gindo, assim, interpretação.44 Esta distinção nos ajuda,
por sua vez, a entender melhor o sentido paradoxal das
normas permissivas. Como nelas temos uma imposição
de simetria (pseudo-simetria), a sua violação não ocorre
por um comportamento contrário (qual seria o contrá­
rio de editar ou não editar normas?) ao prescrito, ou
seja, não é determinável ao nível do relato, mas ao
nível do cometimento da norma. Se, como dissemos, ao
permitir, impõe-se simetria, confirmando a desconfir­
mação, a violação da norma permissiva que estabelece
uma competência se dá quando o sujeito a quem foi
imposta a simetria tenta eximir-se dela ou os que dela
estão excluídos tentam assumi-la. Nestes casos, a con­
tra-reação da autoridade não é de rejeição, acompa­
nhada da ameaça de sanção, mas desconfirmação, des­
qualificando-se os atos dos sujeitos, de tal modo, que o
sujeito, investido de uma competência, não pode ele
próprio desqualificar seus próprios atos, bem como não
pode qualificá-los juridicamente aquele que não está
investido. Um pouco mais complicado é o caso de poder
jurídico como capacidade negociai, por exemplo, pois
aqui o sujeito é indeterminado e a imposição de simetria
parece escapar-nos. Se pensamos, contudo, que a capa­
citação a “ legislar” por contrato, no que se refere às
relações recíprocas, está também ligada a certas con­

** Cf. A l f R o s s : Lógica de las Normas, cit., p. 124.


T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 87

dições estabelecidas na própria norma permissiva, pode­


mos dizer também, neste caso, que a violação da norma
se dá ao nível-cometimento, do mesmo modo que para
as normas de competência. Portanto, aquele que é de­
terminado como capaz pode executar uma série de atos,
mas não pode definir-se a si próprio como incapaz (em­
bora possa transferir sua capacidade).
O caso de direito subjetivo envolve longas discussões
doutrinárias que, atendendo o espírito esquemático e
tético da exposição, não serão analisadas, pois isto nos
obrigaria a incursões expositivas, fora de nosso plano.
Não vamos, pois, como nos casos anteriores, expor teo­
rias jurídicas sobre o assunto, mas esclarecer apenas a
posição pragmática. Trata-se de uma situação em que
ao sujeito é imposta a simetria, combinada com imposi­
ção de complementaridade aos que tentem interferir
na condição simétrica estabelecida. Como dissemos, a
situação de direito subjetivo, para que adquira o seu
sentido técnico, é acompanhada da instância específica
de poder jurídico em termos de ter ação, mas não se
confunde com ela. Interessa-nos aqui em que medida
o conceito de direito subjetivo revela, como os anterio­
res, uma instância de controle das reações do sujeito.
Acreditamos que esta situação nos mostra, na sua extre­
ma agudeza, o sentido paradoxal da comunicação nor­
mativa jurídica. Aqui é preciso lembrar, primeiramente,
que, na discussão das modalidades subjetivas, nos limi­
tamos, por um corte epistemológico, ao nível da lin­
guagem, de tal modo que as diferentes situações repre­
sentam apenas veículos lingüísticos, por meio dos quais
as relações entre os comunicadores são definidas. Isto
exclui da análise (mas não invalida) investigações de
natureza ontológica sobre a substancialidade do direito.
Portanto, a expressão direito subjetivo, como as ante­
riores, quer apenas expressar um tipo de relação entre
88 T e r c io S a m p a i o F e r r az J r .

orador e ouvinte normativos definida por normas per­


missivas e de obrigação. Em segundo lugar, devemos
ter em mente que, sendo as normas discursos estrutu­
ralmente ambíguos, a noção de controle prévio de com­
portamentos decisórios do ouvinte não implica apenas
um processo de imposição/obediência (caráter monoló-
gico do aspecto-cometimento das normas), mas também
um processo de aprendizagem da parte dos sujeitos, ca­
pazes, pelo seu comportamento, de modificar a própria
situação, através de interpretação (caráter dialógico do
aspecto-conteúdo das normas), o que faz do discurso
normativo um procedimento comunicativo que ultra­
passa o plano individual, exigindo, para ser entendido,
certa dissolução das motivações, dos impulsos e das
reações, numa ordem social complexa. Nestes termos,
o controle prévio mencionado exige certo planejamento
e inovação, não no sentido de mera combinação sintáti­
ca das normas, mas no sentido pragmático de uma
exploração mais completa e minuciosa possível, em ter­
mos de esforços sucessivos, a partir de frustrações ocor­
ridas ou previstas, das possibilidades argumentativas.
Isto posto, podemos dizer que no caso de obrigação
jurídica, o editor normativo impõe a complementari­
dade, assumindo uma posição hierarquicamente supe­
rior, na medida em que só ele emite, só ele é emissor,
sendo os sujeitos meros receptores (ainda que não abso­
lutamente passivos); no caso de poder jurídico, o editor
impõe simetria, assumindo uma posição hierarquica­
mente superior à do sujeito, na medida em que ele só
emite, é apenas emissor, mas sem que o sujeito perca a
sua posição de emissor, sendo receptor e emissor a um
tempo, continuando, pois, o sujeito, a exercer sua posi­
ção, graças à intervenção do editor normativo; final­
mente, no caso de direito subjetivo, o editor assume
uma posição hierarquicamente “ igual” à do sujeito, pois,
T e o r ia d a N o r m a J u r í d ic a 89

como este, ele é ao mesmo tempo emissor e receptor.


Este caso é o mais complexo, porque, como vemos, o
editor impõe simetria e, por assim dizer, parece auto-
-impor-se complementaridade, sendo, ao mesmo tempo,
autoridade e sujeito.
A noção- de auto-imposição parece aludir a um
autocompromisso público da autoridade no sentido de
isentar o sujeito do ônus da prova da recusa e de ameaça
de sanção, mas isto faz supor que a autoridade, ao
ameaçar-se a si própria de sanção, se auto-obriga. Esta
situação, que a nosso ver é típica para a determinação
de direito subjetivo, só pode ser entendida, a contento,
com uma referência a um elemento histórico, à chamada
“ divisão dos poderes” nos direitos modernos. De fato, a
divisão dos poderes pode esclarecer que a auto-imposição
seja, na verdade, uma obrigação de um “ poder” a outro
“ poder” . Nestes termos, direito subjetivo seria a situação
configurada por normas permissivas (imposição de si­
metria) e por normas de obrigação (imposição de com­
plementaridade de um “ poder” a outro). Isto nos leva a
concluir que, na hipótese de uma comunidade primi­
tiva, que desconheça a divisão (do trabalho) de “poderes”
jurídicos, não há condições para falar-se em direito
subjetivo no sentido pragmático mencionado. For outro
lado, a divisão dos poderes é justamente um princípio
ordenador que assegura um equilíbrio de forças, tor­
nando possíveis os compromissos. Assim, a divisão só
aparece legitimamente quando, na discussão-contra ju­
rídica, os âmbitos de interesses que devam ser regula­
dos não podem ser justificados discursivãmente, exigin­
do compromisso.45 Portanto, a situação jurídica chamada
direito subjetivo só aparece, por sua vez, autentica-

43 C f. J ügen H aber m an : Legitimationsprobleme im Spã-


tkapitalismus. Frankfurt/M , 1973, p. 155.
90 T e r c io S a u p a i o F e r r a z J r .

mente, se a) entre as partes há equilíbrio de forças;


b) os âmbitos de interesse a serem regulados não podem
ser justificados discursivamente (isto é, não há argu­
mentos que liquidem os outros); c) as condições ante­
riores exijam compromisso; d) o equilíbrio de forças
seja regulado pelo princípio da divisão dos poderes.
Historicamente, a configuração de uma teoria dos direi­
tos subjetivos está ligada a uma situação em que estas
condições pareciam teoricamente existentes ou realizá­
veis. A evolução histórica, porém, nos mostrou que nas
complexas sociedades de nossos dias, estas condições
não eram preenchidas, dando surgimento a formas apa­
rentes, a pseudodireitos, ou, caso mais comum, a afir­
mações cripto-normativas de certos interesses acima de
outros, justificadas por interpretações de natureza ideo­
lógica, cuja função é assertar a validade dos .sistemas
normativos e evitar que certos âmbitos de interesse
possam ser questionados.
Os pseudodireitos correspondem, num certo sentido,
à chamada situação de “ tolerância” , 46 caso em que, em
nossa terminologia, há norma permissiva impondo si­
metria, mas não há norma de obrigação impedindo
interferências que impeçam a assunção da simetria.
For exemplo, uma norma constitucional garante o direi­
to ao trabalho, mas não há nenhuma norma que obri­
gue a um terceiro a dar trabalho a quem quer exercer
o seu direito. Outras formas seriam ainda normas que
garantem certos direitos, mas regulam a ameaça de
sanção contra a interferência através de normas hierar­
quicamente inferiores — por exemplo — , normas cons­
titucionais do tipo: “ é assegurado o direito de associa­
ção; a legislação ordinária regulará o seu exercício’’,

48 C f. C a p e l l a : op. cit., p. 235; vo n W r ig h t : op. cit., p. 105.


T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 91

ou “ todos têm o direito de expressar livremente sua


opinião nos limites da lei” , etc.
Direitos subjetivos ideologicamente garantidos são
os mais comuns. A própria divisão dos poderes, que
é a sua garantia “ formal” , representa um dado ideoló­
gico no sentido de uma fórmula funcional que permitiu,
à sua época, a neutralização política do Poder Judiciá­
rio e, parcialmente, do Poder Executivo.47 De fato, esta
neutralização, com todos os percalços que a acompa­
nham, torna-se pedra angular dos sistemas políticos e
jurídicos, a partir do século X IX , pois permite a substi­
tuição da unidade hierárquica concreta, simbolizada pelo
rex, por uma estrutura complexa de comunicação e
controle de comunicação entre forças mutuamente in­
terligadas. Esta atuação é acompanhada de uma desvin­
culação progressiva, que irá sofrer o direito de suas
bases éticas, políticas e até mesmo sociais (por exemplo,
na chamada teoria pura do direito de Kelsen). Com isso,
em comparação com as ordens jurídicas anteriores, o
direito deixa de ser uma base em nome da qual são
rechaçadas mudanças e transformações, passando a ser
reconhecida a legitimidade difusa do desejo de mudan­
ça e transformação, tornando-se regra a exigência do
direito novo, em oposição à supremacia do antigo. Ora,
a canalização c.e todas as projeções normativas com
pretensão de validade para o endereço político do Poder
Legislativo e o conseqüente tratamento oportunístico dos
.valores máximos, se de um lado exige a centralização
organizada da legislação, de outro condiciona o apare­
cimento da necessidade funcional da legitimação ideo­
lógica de certos interesses, que atuam como formas
reguladoras da relação entre editor e sujeito normativo.

« Cf. N. L u h m a n n : op. cit., v. II, p. 275, nota 77.


92 T e k c io S a m p a i o F e r r a z J r .

Como se vê, a situação que denominamos direito


subjetivo nos obriga agora a examinar o problema da
validade do direito, pois a hipótese assumida de que a
ameaça da sanção é elemento do aspecto-relato da nor­
ma, que não produz complementaridade (aspecto-come-
timento), apresenta, neste caso, certas dificuldades. O
problema colocado se refere ao próprio sentido de posi­
ção complementar de autoridade. Se aceitamos que ela
é forma sutil de violência, que tem de excluir a própria
violência, embora permita seü aparecimento ao nível
do conteúdo da norma, temos de aceitar igualmente
que o discurso normativo jurídico possa ser distinguido
de outras formas normativas, como o “ direito” de um
bando de ladrões. As escolas positivistas e as teorias
analísticas da linguagem costumam afirmar que esta
distinção, sob o ponto de vista descritivo da análise, é
impossível, pois ela exige um juízo superior (de valor)
que não pode ser descrito, mas aponta para outros
juízos de valor. Com isto, alguns positivistas concluem
pela irracionalidade dos sistemas éticos-normativos.
Para nós, esta dificuldade se toma ainda mais aguda,
na medida em que, ao contrário, sustentamos o caráter
racional (fundamentante) do discurso normativo jurí­
dico. Para resolver o problema, portanto, faz mister
uma consideração da questão da validade e da legitimi­
dade do discurso normativo, o que examinaremos a se­
guir, ressaltando, como sempre, o aspecto pragmático.
C a p ít u l o 3

ORGANIZAÇÃO DA COMUNICAÇÃO
NORMATIVA

3.1 — A questão da validade.

No item anterior, procuramos situar o discurso


normativo como um elo dentro de uma interação espe­
cífica. Isto nos permitiu revelar algumas características
nucleares da norma do ângulo pragmático. No que se
segue, estas características deverão ser refinadas, com
o fito de nos fornecer uma visão aperfeiçoada da situa­
ção comunicativa, em que a norma é o elemento central.
O problema genérico, que nos preocupa agora, é saber
como se interligam os comunicadores normativos, em
cadeias normativas, o que exigirá a elaboração de um
instrumental analítico capaz de pôr em relevo as di­
versas vinculações, bem como as suas qualidades prag­
máticas.
Pela ordem, a exposição deverá se ocultar inicial^
mente com problema da validade, já acenado no último
parágrafo. A questão é central, para a compreensão do
discurso normativo, havendo autores que costumam
identificar a presença da norma pela sua qualidade de
norma válida48 o que, sem dúvida, propõe inúmeras
dificuldades, sobretudo no que se refere a uma com­

« fi Por exemplo, K elsen : op. cit.. p. 9.


94 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

preensão do papel, na comunicação normativa, das


chamadas normas inválidas. Sua determinação, porém,
é fundamental para o problema da unidade do ordena­
mento normativo, questão que nos ocupará a seguir.
Esperamos, neste item, mostrar, do ângulo pragmáti­
co, como se organiza a tipologia das normas, inclusive
na sua dinâmica.
A questão da validade das normas jurídicas é tema
de muitas facetas. Nele estão implicados problemas re­
lativos ao fundamento da ordem jurídica, que relevam,
por sua vez, discussões em tomo dos conceitos de lega­
lidade e legitimidade. Validade também se toma no
sentido de afetividade, de cumprimento e de aplicação
das normas.49 Não se pode esquecer ainda as discussões
em tomo da validade, como termo primitivo da lógica
deôntica, ou as especulações sobre o sentido lógico-trans-
cendental do valer como categoria básica do pensar
normativo. A Dogmática Jurídica, por seu lado, costuma
assumir o termo nas suas implicações práticas, girando
suas discussões em torno da capacidade da norma em
resolver tais e tais conflitos, criando-se, então, conceitos
como direito vigente, direito eficaz, normas em vigor,
suspensão da vigência, da eficácia, que procuram en­
quadrar questões como a do âmbito de aplicação, re-
troatividade e irretroatividade, nulidade e anulabilida-
de, etc.
Para os propósitos de nossa análise, é necessário,
pois, encontrar um critério capaz de determinar uma
ordem na discussão, impondo limites ao tema, mas tam­
bém o sentido da seqüência do seu tratamento. Isto
porque, como se vê, o problema afeta disciplinas diver­
sas, com diversos pressupostos, podendo-se duvidar se

49 Assim Ross, Sobre el Derecho y la justicia, cit., também


em Lógica de las Normas, cit,., p. 100.
T e o r ia da N o r m a J u r í d ic a 95

uma tentativa de sincretismo nos conduziria a um re­


sultado satisfatório, parecendo, ao contrário, que seria­
mos levados a uma generalização indevida ou a uma
simplificação prejudicial.
É verdade que o objetivo temático de nossa análise
cumpre já uma função limitadora. Estamos interessa­
dos na norma como discurso normativo. Isto nos obriga,
de princípio, a discutir a validade como uma qualidade
lingüística do discurso. Não se trata, porém, de opção
meramente epistemológica, ditada pelo ângulo da abor­
dagem. Observa Capella,50 neste sentido, que os fatos
reais, em razão dos quais predicamos “ vaiidez” das
normas jurídicas, têm a peculiaridade de ser fatos rela­
tivos a linguagem. Assim, “ vermelho” ou “ quente” são
predicáveis a objetos cuja matéria não é linguagem. Ao
contrário, “ ter sílabas” é predicável a objetos cuja “ ma­
téria” é linguagem. Isto significa que a própria lingua­
gem, além de ser veículo de expressão, pode ser, ela
própria objeto. Distinguimos, pois, entre entidades não-
-lingüísticas (a casa é vermelha), entidades lingüísticas
(“ vermelho” é uma palavra) e propriedades de relações
entre entidades lingüísticas (“ vermelho” tem três síla­
bas). Neste último caso, está “ validade” , termo que se
refere a propriedades de entidades lingüísticas. É claro
que isto pressupõe que as normas jurídicas, que são
válidas ou inválidas, sejam entidades lingüísticas. Ora,
como decorre da introdução a este trabalho, não vemos
dificuldade em adotar esta posição. Resta-nos, pois,
encaminhar a discussão.
O termo validade tem muitos usos, inclusive, não
jurídicos.51 Nossa análise se refere apenas à validade
jurídica, aparecendo os outros usos apenas na delimi­

60 Cf. C apella : op. cit., p. 151.


51 Cf. vo n W r ig h t : op. cit., p. 201.
96 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

tação do uso jurídico, não sendo diretamente temati-


zados. Mesmo na análise da validade como qualidade
do discurso normativo é, possível, entretanto, distin­
guir: a própria doutrina costuma empregar o termo,
ora como significando que a norma assim qualificada
é aplicável ao caso ou aos casos em geral, ou que se
trata de norma obrigatória (deve ser cumprida), ou
que faz parte do sistema, etc. A questão se complica,
quando ouvimos expressões como “ norma válida, com
eficácia suspensa” , isto é, a norma faz parte do orde­
namento, mas não pode ser aplicada, ou “ norma eficaz,
mas sem vigência” , isto é, norma que foi e vem sendo
aplicada, gerando, inclusive conseqüências, embora não
exista para o sistema. Do ângulo discursivo, resta-nos
tentar um levantamento das possibilidades de uso do
termo. Sabemos que a teoria jurídica mesma tem pro­
posto várias classificações, onde, por exemplo, toma-se
validade como termo gênero, distinguindo-.se então e/i-
cácia como validade fática, vigência como validade for­
mal e, às vezes, legitimidade como validade ética ou
fundamento ético da norma; outros tomam a validade
como um complexo, com aspectos de eficácia, vigência
e fundamento,52 outros, ainda, reconhecem diferentes
conceitos, sem a possibilidade de um que seja geral e
abarcante, falando, assim, em validade fática, como o
caso em que, preenchida a hipótese normativa, a con­
seqüência jurídica ocorre, validade constitucional como
conformidade aos preceitos constitucionais, validade
ideal como proposta doutrinária de uma norma como
solução genérica para um conflito de interesses.53 Do
ângulo discursivo, atendo-se aos três ângulos da aná­

52 V. M iguel R eale : Filosofia do Direito, cit., p. 514 et seq.


53 Cf. R upert S chreiber : Die Geltung von Rechtsnormen.
Berlin, Heidelberg, New York, 1966, p. 58 et seq.
T e o r ia d a N o r m a J u r í d i c a 97

lise semiótica, podemos falar em validade na dimensãu


sintática, semântica e pragmática.
De início, devemos dizer, porém, que, e^iDora seja
possível mostrar que os três aspectos são viáveis, nosso
interesse é mostrar a relevância semiótica, no sentido
de se saber se o termo validade, para o jurista, tem
antes uma relevância sintática ou semântica ou prag­
mática. Por isso vamos explorar, rapidamente, algumas
soluções, salientando-lhes as vantagens e as desvaníá-
gens.
Exemplo mais comum (sobretudo entre os publicis­
tas) de análise da validade encontramos, em Kelsen.04
Para este, “ validade” é o modo de existência específico
das normas. A norma só é válida, se promulgada por
um ato legítimo de autoridade, não tendo sido revogada.
Mas a qualidade válida da norma não depende deste
ato da autoridade, que é apenas sua condição, mas não
fundamento de existência. O fundamento da validade
da norma está sempre em outra norma, o que o leva
até à hipótese complicada da norma fundamental. Pode­
mos extrair, desta teoria, que a validade é uma quali­
dade sintática da norma, pois com ela designamos uma
propriedade das relações entre normas, independente­
mente do seu usuário ou da sua relação a um compor­
tamento, que a norma exige. Isto é, a norma é válida,
ainda que não tenha sido aplicada ou ainda que o seu
editor não mais exista. Ela é válida no sistema das
normas, sendo validade justamente o nome da relação
que entre as normas do sistema é estabelecida. Alguns
autores costumam dizer, assim, que Kelsen reduz a
noção de validade à de vigência formal,55 acrescentan­
do, porém, que a posição reducionista é insustentável.

s* Cf. K else n : op. cit., p. 9 et seq.


»•-’ M iguel R eale : op. cit., p. 10 et seq.
98 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

O próprio Kelsen parece dar-se conta do problema,


quando estuda o problema da relação entre validade e
efetividade, enquanto aplicação efetiva da norma, res­
saltando a necessidade de um mínimo de eficácia para
que uma norma seja válida.50 Isto é, uma norma que
nunca é aplicada pela autoridade, nem obedecida pelo
endereçado, perde sua validade. A ressalva, porém, é
confusa, não só porque deixa ohscuro o caráter sintá­
tico da validade, mas também porque se revela incapaz
de esclarecer termos relevantes para a ciência jurídica,
como a diferença entre desuetudo e costume negativo,
isto é, entre omissões que ocorrem diante de fatos que
constituem condição para a aplicação da norma e omis­
sões que ocorrem, porque aqueles fatos não sucedem.
Na verdade, Kelsen parece insistir, sem o perceber cla­
ramente, que validade para ele é uma qualidade pura­
mente sintática quando se trata de normas derivadas,
mas uma qualidade semântica, quando fala da norma
fundamental, dizendo, por exemplo, que uma norma só
é válida tio sistema, mas que o sistema, como todo (re­
ferência à unidade proporcionada pela norma funda­
mental), só é válida se eficaz. É verdade que Kelsen
procura dar a efetividade um sentido até certo ponto
formal, quando fala em “ efetividade no sentido jurídico” ,
distinguindo entre a mera correspondência entre a nor­
ma e o comportamento exigido (sentido não-jurídico)
e a aplicação efetiva da norma quando da ocorrência
do comportamento delituoso (sentido jurídico), mas
mesmo assim o conceito de efetividade continua a ter
por matéria um fato real e não uma relação entre fatos
lingüísticos, donde a insuficiência da identificação da
validade com efetividade no todo do sistema. Além
disso, Kelsen, quando fala das normas derivadas, espe­

5r* K elsen: op cit., p. 10 et seq.


T e o r ia ba N o r m a Ju r íd ic a 99

cialmente das normas individuais, parece introduzir o


aspecto pragmático para resolver problemas como o da
sentença manifestamente ilegal, mas que, se não im­
pugnada, produz efeitos, devendo ser considerada váli­
da. Aqui a validade chega a ser uma qualidade da norma
na sua relação com o seu editor, tornando-se uma rela­
ção de competências normativas.
Comijns são também as teorias que costumam rela­
cionar a Validade com a efetividade da norma. Podemos,
assim, interpretar a validade como a qualidade da nor­
ma, cuja hipótese de incidência ( Tatbestand) é reali­
zável, seguindo-se então a conseqüência jurídica pre­
vista. Para que isso ocorra, é necessária, como se pode
perceber, a atuação do órgão judicador e/ou sancio-
nador, podendo-se dizer, então, que neste sentido lato,
normas válidas são aquelas que descrevem, com altc
grau de probabilidade, a atuação do aparelho sancio-
nador. A título de exemplo, poderíamos mencionar aqui
a teoria de Alf Ross.
Para Ross, a norma é um “ diretivo” que se encon­
tra em relação de correspondência com certos fatos
sociais.57 Fara designar esta relação de correspondência,
utiliza-se ele do termo “ validade” . “ Validade” distin­
gue-se da mera “ regularidade” do comportamento refe­
rido, isto é, norma “ válida” não é, necessariamente,
aquela que é “ regularmente” obedecida, mas a que é
obedecida com consciência de seguir uma regra e da
obrigação de fazê-lo assim. Ross fala, nesse sentido, em
“ experiência de validade” . Esta “ experiência” qualifica
peculiarmente a norma, podendo haver casos em que
diretivos são obedecidos — por medo de sanção, por
oportunismo — sem que se os considere normas “ váli­
das”. Não se trata, pois, de uma relação entre a norma

C f. K o ss: L ó g ica de las Norm as, cit., p. 81 et seq.


100 T eu c io S a m p a io F e rbaz J r .

e a realidade jurídica, mas da relação entre a norma


e o aparelho sancionador: normas são regras sobre o
uso da sanção, donde a norma “ válida” ser aquela que
prevê a atividade da “ maquinaria jurídica” .
Poder-se-ia discutir, nesse passo, se a concepção de
Ross não seria antes pragmática. O próprio Ross fala
em análise pragmática, embora reconheça que a di­
ferença fundamental entre discurso “ indicativo” e
“diretivo” (no qual inclui as normas) se encontra no
nível semântico,38 ou, seja, no “conteúdo” do discurso
que, se “ indicativo” , é “ tema concebido como real” , se
“ diretivo” é “ idéia-ação”. Podemos deixar de lado este
problema. O importante, parece-nos, é que a concepção
de Ross apresenta, como a de Kelsen, limitações. O
próprio Kelsen59 nota que a validade em Ross é con­
ceito de pouca utilidade para o jurista, pois admite
graus — normas podem ser mais ou menos válidas — ,
o que para o sociólogo do direito é útil, mas para o
jurista o impede de agir com segurança, no sentido de
dizer se há ou não há direito. Na verdade, Ross procura
dotar seu conceito de validade de certa precisão, na
medida em que incorpora à previsão do comportamento
do tribunal o efeito psicológico das normas, evitando
assim os casos de falta de motivação. A restrição, con­
tudo, não é suficiente para excluir os casos de mero
oportunismo e medo de sanção ou de simples hábito.
Além disso, Ross não pode excluir, ao contrário, acaba
admitindo a relação sintática entre normas derivadas e
normas constitucionais, sem que fique claro como isto
afeta a questão da validade, ainda que, de algum modo,
esta afecção exista.#0

e* Cf. R oss: idem, p. 71.


s# Cf. K e l s e n : op. cit., p. 19.
80 R oss: Sobre el Derecho y la Justicia, cit.
T e o r i a da N o r m a J tíf íd ic a 101

Biante das dificuldades apresentadas pela adoção


da validade como uma qualidade (sintática ou semân­
tica ou pragmática) do discurso normativo, uma saí­
d a 01 seria afirmar a impossibilidade de reunir, num
único conceito, os diferentes problemas, nos quais se
articula a validade jurídica. A nosso ver, entretanto,
isto não soluciona a questão, pois, mesmo admitindo-se
que não há nem pode haver um só conceito de validade,
resta sempre o problema de se explicar como o uso (heu­
rístico) do termo na Dogmática Jurídica consegue so­
breviver, sem esta clara distinção, sem ocasionar con­
fusões ao menos na atividade prática do jurista. Cremas,
pois, que é necessário encontrar um conceito unitário,
que não se encontra nem no nível sintático, nem no
semântico, mas no pragmático.

3.2 — Localização da questão.

Podemos partir da observação de que a doutrina;


usualmente, distingue validade e eficácia. Por vezes tra­
ta o problema do fundamento da validade em separado,
falando em obrigatoriedade (ou imperatividade ou auto­
ridade ou força). Podemos reconhecer que não há acor­
do quanto ao significado destes termos, pois isto não
aietará nossa investigação. Vamos, neste sentido, come­
çar por deslocar a questão, tirando, provisoriamente, o
acento do problema que é a validade e a eficácia e a
obrigatoriedade? transferindo-o para: qual a função da
diferença estabelecida?
Podemos omitir-nos de entrar nos detalhes da
discussão da Teoria Geral do Direito, mencionando a
doutrina dominante, que costuma distinguir, primeira­
mente, validade e eficácia. Validade é tomada como
relação de conformidade entre o fato-tipo da norma e a

«l N este sentido, S c h r e i b e r : op. cit., p. 55 e t seq.


102 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

hipótese normativa superior, que a prevê e a disciplina.


Em princípio, portanto, como uma qualidade sintática,
em nossa terminologia. Eficácia é entendida como a
relação entre a ocorrência (concreta) dos fatos estabe­
lecidos pela norma superior, que condicionam a produ­
ção do efeito, e a possibilidade de produzi-lo. Em nossa
terminologia, uma qualidade semântica que designa a
correspondência com certos atos (ou fatos — a doutrina
é incerta, a respeito). Deixando de lado o problema da
influência mútua entre validade e eficácia, indaguemos
das razões da distinção. Esta serve, segundo a doutrina,
para: a) tornar efetiva a imperatividade da norma (no
sentido de “ força” — de lei — , de impor, de poder
impor); b) permitir que certas normas, que sabemos
inválidas se rigorosamente tomadas, possam ser salvas,
enquanto substancialmente conformes a certos postu­
lados de justiça, ordem, segurança; c) permitir o con­
trole da norma emanada, suspendendo-lhe medio tem-
pore a eficácia.
Nesta rápida exposição estão presentes os três pon­
tos principais da discussão teorética em tomo da vali­
dade: o problema da obrigatoriedade, o problema da
relação entre as normas num sistema, o problema da
sua efetividade. As concepções que acentuam o aspecto
sintático tendem a reunir os dois primeiros num só
item; as que acentuam o aspecto semântico, o primeiro
e o terceiro. Deixando de lado a questão, notamos que
os motivos apresentados para a distinção apontam para
um endereço: genericamente, o controle das situações
normativas.
A noção de controle precisa ser mais bem esclare­
cida. 62 Trata-se de noção eminentemente pragmática,

82 Sobre “controle”, C f . F á b io C a m p a r a t o , O Poder de Con­


trole na Sociedade Anônima. São Paulo, 1976, p. 9 et seq. A
T e o r i a d a N o r m a Ju r í d i c a 103

que afeta a interação, portanto, o comportamento de


emissor e receptor. Procura-se garantir a propriedade
“força” — de que é dotada a voz do emissor, criando-lhe
condições para dispor das regras que o disciplinam,
tendo em vista possíveis reações que sua ação desenca­
dearia. Pela noção de controle podemos, assim, estabe­
lecer uma conjugação dos três aspectos em tela, não,
porém, na forma de uma justaposição heterogênea, mas
de um terceiro ângulo que os organiza numa unidade
sintética, ao nível pragmático.
A colocação da questão da validade, a partir da
noção de controle, tem a vantagem, para os nossos pro­
pósitos, de ressaltar o âmbito da análise. Se queremos
ver a validade como uma propriedade de entidades lin­
güísticas normativas — discursos normativos — é bom
eliminar qualquer conotação ontológica. Quando se diz
que uma norma é válida, este enunciado pode despertar
a impressão de que a norma tem validade como algo
que é seu e lhe é próprio. Neste caso, validade parece o
nome de algo, uma espécie de entidade platônica, que
é atirada sobre a norma, ou da qual a norma participa.
Como se pudéssemos fazer uma analogia entre as ex­
pressões: “ a cabeça tem cabelo” e “ a norma tem vali­
dade” (e “ a cabeça não tem cabelo” e “ a norma não
tem validade” ). Não é esta, evidentemente, a nossa in­
tenção. A noção de controle postula, pois, que o discurso
normativo é primordialmente uma interação e que a
validade designa uma propriedade desta interação. Isto
é, normas não são entidades independentes e os seus
caracteres têm de ser examinados no seu sentido intera­
tivo.

noção de controle está usada, em princípio, no sentido de


domínio, embora não esteja excluído totalmente o sentido de
fiscalização.
104 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

Estes caracteres, como vimos, são o editor, o sujeito,


a informação, o cometimento, a meta-complementari-
dade, o caráter decisório de discussão-contra. Que que­
remos, diante disto, dizer quando enunciamos que uma
norma é válida? Façamos abstração de qualquer relação
hierárquica e admitamos uma norma que diz: “ o empre­
gador só poderá despedir o empregado estável se houver
justa causa” , uma outra que diz “ os casos de justa causa
são apenas os seguintes: a, b, c, d, e”, e uma terceira que
diga: “ o comportamento X do empregado, sendo um
caso de justa causa, permite que o empregador despeça
o empregado estável”. Note-se que a terceira é assumida
como norma e não como a descrição de um caso, por­
tanto, digamos, como sentença de um juiz. Podemos,
assim, dizer que a terceira norma é válida, pois está
conforme às outras, que a disciplinam. Esta disciplina,
contudo, é referência à norma como um todo ou um
dos seus caracteres? Segundo a doutrina dominante, a
questão se refere à relação entre “um caso de justa
causa para que este seja despedido” e as hipóteses nor­
mativas — “só pode ser despedido se houver justa causa”
combinado com “justa causa é a, b, c, d, e”. Do ponto de
vista pragmático, isto é, apenas a informação decisória,
no seu aspecto-relato. Note-se, entretanto, que a pri­
meira norma, cuja informação tem o seguinte aspecto-
-relato: “ o empregado só poderá ser despedido por justa
causa” , implica também um cometimento do tipo: “ o
editor impõe ao endereçado uma relação simétrica den­
tro de certos limites” . Este aspecto-cometimento da
primeira norma, por sua vez, é, em parte, o aspecto-rela­
to da segunda norma, que fornece e explicita os limites
“ só são casos de justa causa os seguintes.. . ” , que, por
sua vez, implica um cometimento do tipo: “ a quçstão
não é saber o que é justa causa, mas quem diz o que é
e o que não é justa causa e quem diz é o editor e não
T e o r i a da N o r m a J u r í d ic a lOã

o endereçado”. Não levemos adiante esta regressão, mas


cuidemos da terceira norma. Basta a comparação dos
aspectos-relato da sua informação com os das outras
para dizer que a norma é válida? É claro que não, pois
se a terceira norma fosse pronunciada num palco, por
alguém que faz, numa peça teatral, o papel de juiz,
ninguém falaria em validade. Seria, então, uma questão
de verificar o cometimento e, pois, a congruência da
meta-complementaridade das posições? Também não,
porque o problema da validade pode estar localizado
na relação entre o aspecto-relato de uma norma e o
aspecto-cometimento de outra. Estas considerações ini­
ciais não respondem a nossa questão, mas mostram que
o problema da validade é mais complexo do que parece
à primeira vista. Ele envolve o discurso normativo como
interação em todos os seus caracteres. Para falar em
validade, é preciso, pois, examiná-los no seu conjunto.

3.3 — Validade e imunização.

Do ângulo pragmático, a noção de controle Ja


situação comunicativa está ligada a uma qualidade
central do discurso normativo enquanto decisão, qual
seja, a sua capacidade de terminar conflitos, pondo-lhes
um fim. De modo geral, nossa intenção é mostrar que
a validade das normas está ligada a essa qualidade.
Da exposição anterior, podemos perceber que a validade
não é (apenas) uma propriedade sintática dos discursos
normativos, em respeito ao aspecto-relato, mas se revela
peculiarmente como propriedade pragmática. Através
da expressão norma válida, queremos referir-nos à re­
lação entre discursos normativos, tanto no aspecto-rela­
to, quanto no aspecto-cometimento. Esta relação precisa
de melhor esclarecimento. Neste sentido, referimo-nos à
função de terminar conflitos, pondo-lhes um fim (ins­
106 T e r c i o S am p a io F e r r a z J r.

titucionalizando-os), entendendo, que a validade expri­


me uma relação de competências decisórias e não uma
relação dedutiva de conteúdos gerais, para conteúdo in­
dividualizado ou menos gerais. Como, entretanto, o prin­
cípio que guia a análise pragmática é o da interação,
a relação de validade inclui também a provável reação
do endereçado e, desta forma, tanto o aspecto-relato
como o aspecto-cometimento. Para precisar nosso pen­
samento, vamos chamar esta conexão pragmática entre
os discursos normativos, de imunização. Deste modo,
precisamos nossa própria concepção para: “ validade é
uma propriedade do discurso normativo que exprime
uma conexão de imunização”. Imunização significa,
basicamente, um processo racional (fundamentante) que
capacita o editor a controlar as reações do endereçado,
eximindo-se de crítica, portanto cadacidade de garantir
a sustentabilidade (no sentido pragmático de pronti­
dão para apresentar razões e fundamentos do agir) da
sua ação lingüística.63
A imunização (contra a crítica) pode ser alcan­
çada de diversos modos e o discurso normativo jurídico
não é o único que é válido neste sentido. Assim, por
exemplo, numa discussão-com, num texto em que se
expõe uma hipótese científica, é possível imunizar cer­
tas asserções contra crítica recorrendo a presunções,
postulados, axiomas. Isto faz parte, inclusive, da pró­
pria estrutura dialógica da discussão-com, caso em que,
como vimos, a partir da primeira regra: “ todas as asser-

83 U m a norm a válida, neste sentido, pode ser usada pelo


editor como garantia de sua expectativa em face da expecta­
tiva dos endereçados em geral (ela é um “prognóstico” nor­
mativo do comportamento reativo do endereçado), ou, especi­
ficamente, como um a instrução garantida p ara o comporta­
mento do aplicador das normas, ou como um instrumento
garantido de solução de conflitos.
T e o r ia d a N o r m a J u h í d ic a 107

ções do orador podem ser questionadas” , há um procedi­


mento de diálogos parciais para a obtenção das asser­
ções primárias. Nas discussões-contra, porém, a imuni­
zação chega às raias do contrafático. Isto é, enquanto
na discussão-com, no exemplo da hipótese cientifica, a
manutenção das regras do diálogo implica uma pronti­
dão do orador para modificar as suas asserções primá­
rias, correlata do comportamento crítico do ouvinte
homólogo em conceder ao orador a possibilidade de re­
tomar a experiência fracassada, na discussão-contra, de
estrutura em princípio dialógica, pode ocorrer uma pas­
sagem para a estrutura monológica (como é o caso da
norma jurídica), que implica uma recusa em modificar
as asserções primárias, mesmo quando o decurso da
discussão parece exigi-lo. Isto é já intuitivo quando
vemos, por exemplo, que uma norma jurídica é válida,
mesmo que desrespeitada. A imunização do discurso
normativo jurídico se caracteriza, pois, por ser conquis­
tada a partir de outro discurso normativo, o que faz da
validade uma relação pragmática entre normas, em que
uma imuniza a outra contra as reações do endereçado,
garantindo-lhe o aspecto-cometimento meta-comple-
mentar. Isto é, se, como vimos, cada norma, através
dos funtores, define a relação entre orador e ouvinte,
consideramos válida a norma, cujo aspecto-cometimento
não apenas está definido como meta-complementar, mas
está imunizado contra críticas através de outra norma.
Se um ladrão, numa rua escura, exige de alguém o seu
dinheiro, dizendo: “ passe-me a carteira” , o funtor no
caso — _você está obrigado a passar-me a carteira —
define a relação como complementar (o ladrão, nas
condições, se determina como superior ao endereçado,
podendo ameaçá-lo, inclusive com sanção). Mas a esta
norma falta a relação de imunização, que não se funda
na capacidade do ladrão de ameaçar com sanção, mas
108 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

no caráter atribuído ao editor de autoridade. O ladrão


é superior (pois pode usar de violência), mas não é
autoridade, posição que, inclusive, exclui o uso da vio­
lência e não admite argumentação. Esta posição só é
conseguida pelo editor normativo através da imuniza­
ção, que é um recurso racional do discurso-contra,
análogo ao estabelecimento de presunções, postulados,
axiomas, na discussão-com. Se isto explica o problema
anteriormente posto, de se saber como se dá a gênese
da meta-complementaridade (que não é produzida pela
ameaça de sanção), coloca, por sua vez, outro pro­
blema, qual seja, o de saber, primeiro, como uma norma
imuniza outra e, segundo, qual o fundamento do pró­
prio processo de imunização. A primeira questão está
referida aos modos de imunização, sendo uma questão
técnica. A segunda é mais complexa, e se refere à pró­
pria legitimidade dos ordenamentos. Importante, nas
duas questões, é lembrar que imunização é uma relação
entre o aspecto-relato de uma norma e o aspecto-come-
timento de outra, ou, seja, se uma norma, digamos,
através do funtor é proibido estabelece entre as partes
uma relação meta-complementar, é esta definição da
relação que é imunizada contra crítica por outra norma.
Que a relação-meta-complementar é imunizada significa
que o editor que, através do funtor, se definiu como
superior, não precisa apresentar razões desta definição,
pois ela já está fundamentada de antemão. Ou, seja,
pela definição, através dos funtores, o editor joga o ônus
da prova da recusa para o endereçado. Pela imunização,
ele se exime, inclusive de ter de provar esta possibili­
dade mesma de transferir o ônus da prova. Exime-se,
não porque não pode, mas porque está dispensado da
apresentação das razões do seu agir. Isto posto, pode­
mos examinar as duas questões apresentadas.
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 109

3.4 — As técnicas de validação.

Comecemos com a primeira. Uma norma imuniza a


outra: a) disciplinando-lhe a edição; b) delimitando-lhe
o relato. Trata-se de dois modos de imunizaçção ou de
duas técnicas, permanecendo a noção de validade a
mesma nos dois casos (norma válida é norma imuni­
zada). Para entender as duas técnicas, recorremos à
distinção da cibernética, entre programação condicio­
nal e programação finalista.64 Podemos programar uma
decisão na medida em que estabelecemos as condições
em que ela deve ocorrer, de modo que, dadas as condi­
ções, segue-se a decisão. Também se pode programá-la,
estabelecendo os fins que devem ser atingidos, liberan­
do-se a escolha dos meios, de tal modo que, seja qual
for o meio escolhido, o fim deve ser atingido. No pri­
meiro caso, temos uma programação condicional. No
segundo, finalista. A primeira é mais elástica no que
tange os efeitos procurados. O decididor é responsável
pelo correto emprego dos meios, aos quais está ligado,
mas não pelo efeito a atingir ou atingido. As segundas
são mais elásticas quanto à escolha dos meios, estando
vinculadas aos fins procurados. O decididor é respon­
sável pelo efeito a atingir, sendo da sua conta a seleção
de bons meios, sejam quais forem, pois o importante
é o resultado. Por exemplo, uma decisão é programada
condicionalmente na seguinte regra: em caso de pe­
rigo, as luzes devem ser apagadas. Aí, a decisão de
apagar as luzes está presa à ocorrência de perigo. O
decididor é responsável pela constatação do perigo, não
pela relação entre perigo e apagar as luzes, e se, por
causa disso, a casa é assaltada, isto não lhe será impu­
tado. Por sua vez, uma decisão é programada fina-

Cf. L u h m a n n : op. cit., p. 227 et seq.


110 T k r c io S a m p a i o F k h r az J r .

listi-camente na seguinte regra: o índice inflacionário


não deverá ultrapassar os 12%. A escolha dos meios
para assegurar o índice é livre, não há vinculação a
meios determinados, mas o decididor é responsável pelo
fim a ser atingido e, pois, pelas conseqüências da de­
cisão. Caso não seja atingido o fim proposto, para exi­
mir-se da crítica, o decididor pode usar de técnicas de
transferência, descarregando o insucesso em razões es­
tranhas ao processo, que teriam modificado a situação
(por exemplo, as crises internacionais como fato novo
a influenciar os fins estabelecidos de controle da in­
flação) .
Tendo em vista as técnicas da imunização, vamos
distinguir, pois, entre imunização condicional e fina­
lista. Nos dois casos, pode-se falar em norma válida.
A imunização condicional ocorre com a disciplina de
edição das normas por outra norma. Como a validade
é relação entre normas, vamos chamar uma de norma
imunizante e a outra de norma imunizada. Tomemos
um exemplo: a norma (a) — norma imunizante — es­
tabelece que a criação, aumento ou isenção de tributos
é de competência exclusiva do legislador; a norma (b)
— norma imunizada — estabelece o tributo X, a ser
recolhido pelo sujeito y. A posição meta-complementar
do editor de (b) é garantida pelo aspecto-relato da
norma (a). A imunização é condicional, pois a norma
imunizante fixa o “ antecedente” (no caso de tributos,
ser legislador), a partir do qual o “ conseqüente” é
possível, conforme o esquema: quem pode o “ s e ...” ,
pode o “ e n tã o ...” (vide a fórmula condicional “s e ...
então. . . ” ), Como a responsabilidade (centro de even­
tual crítica) do editor está condicionalmente imunizada
— pelas conseqüências, por exemplo, inflação, má dis­
tribuição de renda, bancarrota, etc., ele não é respon­
sável — a meta-complementaridade do aspecto-relação
T e o r i a da N o r m a Ju r í d ic a 111

da norma (b) não é atingida, seja qual for a conse­


qüência para o endereçado. A norma é válida. Esta
técnica de imunização é bastante apropriada para os
precedimentos de delegação de poderes e o controle
da validade se resolve com a constituição de sistemas
hierárquicos, donde o estabelecimento de conjuntos nor­
mativos que guardam entre si uma coordenação verti­
cal de superioridade e inferioridade. Neste sentido po­
demos dizer que a norma inferior tem seu fundamento
de validade em norma superior.
A imunização finalista ocorre com a delimitação
do relato. A validade continua aqui a ser a relação
entre o aspecto-relato da norma imunizante e o aspecto-
-cometimento da norma imunizada. Mas a técnica é
outra. A norma imunizante não se importa com a edi­
ção da norma imunizada, mas fixa-lhe um determinado
relato. Por exemplo, a norma imunizante (a) estabelece:
todo trabalhador tem direito a uma remuneração que
garanta a ele e sua família condições mínimas de subsis­
tência; a norma imunizada (b) estabelece: o salário-mí-
nimo regional será X. A meta-complementaridade da po­
sição do editor da norma (b) é imunizada contra a crítica
do endereçado pela garantia do relato, posto como um
fim a ser atingido. Enquanto na imunização condicio­
nal são fixadas condições para o aparecimento da de­
cisão normativa imunizada, na imunização finalista
fixados são os efeitos a atingir, deixando-se em aberto
as condições necessárias. Esta técnica é menos apro­
priada à constituição de sistemas hierárquicos, pois o
mero estabelecimento de fins não justifica os meios
utilizados (Luhmann). Daí a necessidade de um con­
trole constante, avessp à mera delegação, por meio de
instituições paralelas capazes de decidir, a todo mo­
mento, sobre os fins estabelecidos. Neste caso, os con­
juntos normativos tendem a apresentar uma Gestalt
112 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

diferente, de relações entrecruzadas de coordenação


vertical e horizontal, não sendo sempre o caso de se
falar em fundamento da validade da norma “ inferior”
em uma “ superior” , pois a norma imunizada pode estar
fundada em outras normas da mesma hierarquia (em
termos de validade condicional) e, até mesmo, de hierar­
quia inferior (sentenças, regulamentos, portarias em re­
lação a leis).
A distinção entre as duas técnicas de validação está
referida à posição do editor da norma no sentido da
sua imunização. Da nossa exposição, parece decorrer
que elas são empregadas separadamente, quando, na
verdade, elas são utilizadas concomitantemente. Pode
ocorrer, entretanto, que uma norma obedeça às técnicas
de validade condicional, mas não a de validade finalista.
É o caso de uma norma, editada por órgão competente,
mas incompetente ratione materiae. Ora, para que uma
norma seja válida, isto é, para que haja imunização,
exige-se a concorrência das duas técnicas, caso contrá­
rio, a norma será inválida. A invalidade, contudo, como
veremos, admite graus (mas não a validade, pois a
norma não pode ser mais ou menos válida), desde que
se lembre que ^ relação de imunização é de natureza
pragmática, estando diretamente ligada ao controle e à
força de controle de comportamentos. Além disso, sendo
as técnicas de validação, pragmaticamente, procedimen­
tos imunizantes, o próprio proceder está sujeito a re­
gras que determinam a maneira pela qual o editor
executa aquilo que lhe compete. Trata-se daquilo que
a técnica do Direito norte-americano denomina de due
process of law. Observamos, asim, que a relação de
validade se estabelece através de técnicas de validação,
as quais envolvem procedimentos eles próprios regula­
dos, o que faz do discurso normativo um sistema extre­
mamente complexo, que reúne esquemas hierárquicos
T e o r i a d a N o r m a J u r í d ic a 113

de matérias e competências com esquemas não hierár­


quicos de controle de decisão, introduzidos pelo prin­
cípio da divisão dos poderes, o qual separa competên­
cias constitucionais e legislativas, administrativas, ju­
diciárias, ao mesmo tempo que as liga numa relação
sopesada de mútuos pressupostos e vinculações, de ativi­
dades preliminares e de trâmites decisórios. É exata­
mente isto que faz da relação de validade uma quali­
dade pragmática das normas muito mais complexa que
a simples relação de adequação sintática entre elas
(como numa visão kelseniana). É evidente que, nesta
colocação, o problema da relação entre validade e efeti­
vidade das normas toma outra configuração. Partin­
do-se, porém, de que a validade, de modo geral, é uma
qualidade pragmática pela qual o discurso do editor é
imunizado contra eventuais críticas, no sentido de que
determinado comportamento é exigível (validade como
condição de exigência de um comportamento), resta­
dos, então, examinar uma segunda qualidade, pela qual
o comportamento exigível é também obedecível. No sen­
tido de condição de obediência, falamos na efetividade
da norma.

3.5 — A questão da efetividade.

No discurso normativo, o aspecto-relato — por


exemplo: “ não pise na grama” — está sempre acompa­
nhado do aspecto-cometimento — “ isto é uma ordem,
obedeça” — . Ora, enquanto a validade exprime uma
relação entre o aspecto-cometimento de uma norma e o
aspecto-relato de outra que a imuniza, a efetividade
exprime uma relação entre o aspceto-cometimento e o
aspecto-relato da mesma norma. Em outras palavras,
não é possível saber se uma norma isolada é válida ou
não, mas é possível dizer se ela é efetiva. Neste sen­
114 T i r c i o S a m p a i o F e r r a z Ja.

tido, entendemos que a efetividade é uma relação de


adequação entre o aspecto-relato e o aspecto-cometi-
mento da mesma norma. Sabemos que o aspecto-come-
timento das normas nem sempre é definido e deliberado
digitalmente, mas tem, em geral, uma expressão analó­
gica. Por isso mesmo, a relação estabelecida costuma
ficar num plano secundário. As normas são, nestes ter­
mos, tanto mais efetivas quanto mais isto ocorre. Neste
sentido, pode-se dizer, numa formulação simplificada,
que normas efetivas são as normas obedecidas. Mas esta
simplificação oculta um dado importante, qual seja, que
a obediência é apenas uma conseqüência da efetividade
e não a própria efetividade. Mesmo porque, uma norma
pode ser obedecida, tendo em vista outras motivações
que não a própria prescrição normativa, havendo obe­
diência de uma norma ineficaz! Que o aspecto-relato
e o aspecto-cometimento de um discurso normativo são
adequados significa, pois, que a mensagem transmitida
(relato) é o ponto de um eventual questionamento por
parte do endereçado, mantendo-se equilibrada a relação
entre editor e süjeito normativos. Para melhor entender,
compare-se a norma pronunciada pelo capitão de um
navio em alto-mar: “em caso de perigo, os marinheiros
devem pôr-se à disposição de seus superiores imediatos”
e a mesma norma pronunciada, depois de um naufrá­
gio, de que só marinheiros sobreviveram. Neste caso,
podemos admitir que ambas as normas sejam válidas,
a segunda, porém, tem um grau de efetividade nitida­
mente inferior. O exemplo é intuitivo e coloca dificul­
dades que devem ser clarificadas.
Recordemos, inicialmente, que a norma está sendo
concebida como discurso (decisóriò). Que discurso é
ação, ação lingüística, em que alguém dá a entender
alguma coisa a outrem. Inclui, portanto, não só pala­
vras pronunciadas, mas quem pronuncia, quem ouve
T e o r ia d a N o r m a J u r í d ic a 1X5

e as respectivas reações, conforme certas regras. Para


enquadrar melhor este complexo de “ ações” e “ reações” ,
dissemos que o discurso é um ■procedimento interacio-
nal. Trata-se, além disso, de um procedimento conven­
cionado numa relação de ensino e aprendizado. A con-
vencionalidade do procedimento não se refere apenas às
palavras que compõem a mensagem, mas ao orador que
as usa, ao ouvinte, às regras, ao entendimento de algo.
O discurso é, assim, um procedimento em que certas
pessoas em determinada situação pronunciam determi­
nadas palavras produzindo determinado entendimento.
De modo geral, em qualquer discurso, está em jogo o
sucesso da comunicação. Este sucesso depende do pro­
cedimento usado. Suponhamos, por exemplo, que num
simpósio científico se estabeleça uma confusão e que o
presidente da sessão se dirija aos companheiros, dizen­
do: “ Senhores, afinal isto é uma tertúlia entre cientis-
tistas, voltemos ao assunto”. Independentemente do fato
de todos acatarem a recomendação, podemos imaginar
que foi usado um procedimento viável. São palavras
determinadas, para agentes determinados em determi­
nada situação, para produzir um resultado determinado.
O mesmo não sucederia, se o presidente se dirigisse aos
seu pares em termos de baixo calão, usando palavras
impróprias para agentes impróprios, numa situação im­
própria. Todas estas noções se enquadram perfeitamente
numa análise pragmática do discurso. E valem tanto
para os discursos homológicos (discussão-com) quanto
para os heterológicos (discussão-contra). No primeiro
caso (discussão-com), sendo as partes homólogas e
mantendo-se a homologia, o problema do sucesso da
comunicação abstrai do cometimento implícito no ato
de falar, concentrando-se no aspecto-relato. Se um cien­
tista propõe numa investigação que dada a reação X
segue-se o resultado Y , o aspecto-cometimento (seja, por
116 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

exemplo, “estou orgulhoso da descoberta, mas a modés­


tia me impede de externar o meu orgulho” ) é, por
assim dizer, apagado. O sucesso da comunicação depen­
de inclusive da manutenção deste “ abstração” , sendo
apropriado o procedimento (ação lingüística) que a
garante. Exagerando um pouco, diríamos que seria im­
próprio um procedimento do tipo: “ é com indisfarçável
orgulho que trago ao reconhecimento público a seguin­
te descoberta. . . ” . Note-se que estamos falando do su­
cesso da comunicação e não da verdade ou falsidade
das ações lingüísticas. O sucesso da comunicação não
interfere com a verdade ou falsidade, embora seja con­
dição para que um discurso envolva um problema dc
verdade ou falsidade (envolva um problema de verdade,
não seja verdadeiro), mesmo porque, não havendo ho-
mologia, não há possibilidade de discursos verdadeiros.
E basta uma rápida consideração dos discursos das
chamadas ciências humanas, para se ter uma medida
de como isso é importante. É freqüente, neste caso, que
as ações lingüísticas estejam sempre sendo criticadas
ao nível do cometimento, com mútuas acusações de
“ ideologia” , ocultação de interesses, etc. Os discursos
dos cientistas sociais não são, por isso, mais ou menos
verdadeiros, mas a homologia periclitante interfere na
colocação dos problemas. Tratando-se, porém, de dis-
cussões-contra, pressuposta é a heterologia das relações.
Neste caso, o sucesso da comunicação depende de um
procedimento apropriado, que não elimine a heterologia
(isto poderia produzir um efeito até contrário), mas
que impeça seu desequilíbrio. Assim, por exemplo, o
direito moderno tende a instituir uma simetria nas
relações (heterológicas) entre marido e mulher, mas a
opção por um procedimento inapropriado pode levar
as partes a uma escalada em simetria, acentuando ou
criando condições para um relacionamento competitivo,
T e o r ia da N o r m a J u r í d ic a 117

até o rompimento da comunicação. A imposição, pela


norma, de uma simetria entre ambos pode conduzi-los,
eventualmente, a um comportamento à margem da
norma. Neste caso, a imposição meta-complementar da
autoridade, na medida em que encoraja a simetria entre
o casal, tenderá a uma rigidez formal progressiva, rece­
bendo como reação por parte deles uma aceitação igual­
mente rígida e meramente formal. A norma poderá não
ter sucesso comunicativo.
Na teoria jurídica, tradicionalmente, encontramos
dois conceitos diferentes relacionados à efetividade das
normas, que nem sempre são usados com a devida espe­
cificação. “5 Do ângulo lingüístico, podemos dizer que
há concepções meramente sintáticas da efetividade, caso
em que a doutrina usa, embora com certa indecisão,
o termo eficácia, no sentido de aptidão para produzir
efeitos jurídicos por parte da norma, independente­
mente da sua efetiva produção. Chamemos esta noção
de sintática, no sentido de que a efetividade (ou eficá­
cia no sentido técnico) está ligada à capacidade de o
relato de uma norma dar-lhe cond;ções de atuação ou
depender de outras normas para tanto. Por outro lado,
há concepções meramente semânticas da efetividade
(correspondendo ao termo alemão Wirksamkeit) , como
encontramos, por exemplo, em Kelsen,86 segundo as
quais a norma efetiva é a cumprida e aplicada concre-
tamente em certo grau. Chamemos esta noção de se­
mântica, no sentido de que se estabelece como critério
a relação entre o relato da norma com o que sucede
na realidade referida.
Do ângulo pragmático, há uma combinação dos
sentidos anteriores. Efetiva é a norma cuja adequação

«* Cf. F ábio C omparaxo : op. cit., p. 29, nota 52.


°o Cf. K e lse n : op. cit., p. 10.
118 T ercio S a m p a io F erraz J r .

do relato e do cometimento garante a possibilidade de


se produzir uma heterologia equilibrada entre editor e
endereçado. Este equilíbrio significa que o cometimento
é tranqüilo, permanecendo, em segundo plano, de tal
modo, que os efeitos podem ser produzidos. Ao contrá­
rio, se pelo relato se exprime mal o cometimento ou
se o faz de modo limitado (a norma faz referência a
sujeitos ou a condições de aplicação que ela não especi­
fica), o seu cometimento fica intrinsecamente afetado
em diversos graus. Isto, evidentemente, pode ocorrer por
uma falha, mas, também, por motivo de controle, de
modo intencional. Uma norma pode, assim, ser plena­
mente eficaz, se a possibilidade de produzir os efeitos
previstos decorrem dela imediatamente (por exemplo,
uma norma revoga outra: o efeito extintivo é imediato),
contidamente eficaz, se a possibilidade é imediata, mas
sujeita a restrições por ela mesma previstas (por exem­
plo, normas que prevêem regulamentação delimitadora),
limitadamente eficaz, se a. possibilidade de produzir os
efeitos é mediata, dependendo de normação ulterior (por
exemplo, as normas programáticas). 67
No primeiro caso, o relato da norma é adequado
ao cometimento: a meta-complementaridade não sofre
restrições. No segundo caso, a adequação é parcial, a
relação de autoridade não sofre restrições senão as por
ela mesma previstas, mas que ainda não ocorreram.
No terceiro caso, a adequação está no limiar da inade­
quação, exercendo-se a relação de autoridade apenas
num sentido negativo: é possível reconhecer o que o
sujeito não deve fazer, mas não o que ele deve fazer.
Note-se que a efetividade no sentido pragmático
não se confunde com o sentido meramente semântico

a terminologia é de José A f o n s o d a S i l v a : Aplicabili­

dade das Normas Constitucionais. São Paulo, 1968, p. 75.


T eoria da N orm a J u rídica 119

ou sintático. O sentido sintático prescinde do nível co­


metimento e vê a efetividade como mera relação entre
o relato de uma norma e as condições que ela mesma
estabelece (que podem estar em outra norma) para a
produção dos efeitos. Prescinde também da relação para
com os comportamentos de fato ocorridos e não vê ne­
nhuma influência entre a obediência efetiva da norma
e a possibilidade de produção de efeitos. O sentido se­
mântico liga diretamente efetividade e obediência de
fato, não prevendo, per conseguinte, os casos de deso­
bediência de normas eficazes (no sentido técnico). Po­
demos dizer, em conseqüência, que, no.nível semântico
da análise, uma norma será tanto mais efetiva quanto
mais as ações ou omissões exigidas ocorram. O sentido
jurídico da efetividade, contudo, atende mais ao plano
pragmático, podendo dar-se, como dissemos, uma norma
eficaz (possibilidade de produzir efeitos) que não seja
de fato obedecida e aplicada. Por exemplo, uma norma
revoga outra, produzindo imediatamente os seus efeitos,
pois manifesta* adequadamente a relação meta-comple-
mentar de autoridade, mas cumprida socialmente con­
tinua a ser a norma revogada. A distinção é importante.
A adequação meramente semântica nos obriga a consi­
derar a questão — sociológica — dos motivos pelos quais
a norma é ou não cumprida. A adequação pragmática
evita o problema de se saber se a regularidade (ou irre­
gularidade) da conduta tem por motivo a norma, pois
importante é a qualificação dos efeitos jurídicos. Um
sujeito pode cumprir regularmente um comportamento
movido por vários motivos (hábito, medo, esperteza,
razões econômicas, políticas, etc.). Para a adequação
semântica, o importante é o fato da obediência regular.
Para a pragmática importante, é a relação meta-com-
plementar e, em conseqüência, às condições de aplica­
bilidade, exigibilidade ou executoriedade da norma, ainda
220 T ercio S a m p a io F erraz J r .

que ela seja ou esteja sendo regularmente desobedecida.


Âpesar disso, hã uma conexão com o aspecto semântico
e com o sintático. Como, pragmaticamente, a efetivi­
dade é relação de adequação entre o relato e o cometi­
mento de uma norma, o sentido, como dissemos, é
inclusivo, abarcando o nível sintático e semântico. Uma
norma efetiva deve atender a condições que o seu pró­
prio relato estabelece, ligando-as, também, ao relato de
outras normas, mas tem de levar em conta a relação
meta-complementar estabelecida, a qual pode ser afe­
tada pelo fato da obediência ou desobediência. Assim,
embora os três níveis (pragmático, semântico e sintá­
tico) não se confundam, eles guardam uma conexão
que se toma manifesta toda vez que o ângulo privile­
giado da análise é pragmático. A distinção entre efeti­
vidade plena, contida e limitada, releva o aspecto sin­
tático, mas reflete no cometimento. Assim, a distinção
entre as normas de efetividade limitada e contida con­
tém um elemento nitidamente pragmático, qual seja,
limitar a expansão da eficácia normativa, aumentando
ou diminuindo ou transformando a relação meta-com­
plementar (imposição total ou parcial de complementa­
ridade ou de simetria). Por outro lado, a distinção e a
conexão entre o sentido pragmático e semântico da
efetividade nos permite configurar dois conceitos im­
portantes da teoria jurídica: desuso e costume negativo.
Assim, se uma norma é sintaticamente eficaz, mas é
semanticamente inefetiva (é, de fato, regularmente de­
sobedecida), falamos em inefetividade pragmática no
sentido de desuso ou desuetuão, ou seja omissões que
ocorrem diante de fatos que constituem condição para
a aplicação da norma. Se, por sua vez, uma norma é
sintaticamente ineficaz e é também desobedecida regu­
larmente (semanticamente inefetiva), falamos em ine­
fetividade pragmática no sentido de costume negativo,
T eoria da N orm a J u ríd ica 121

ou seja, omissões que se dão, porque ós fatos que se­


riam condição para a aplicação da norma não ocorrem.
Ora, uma norma que entra em desuso não perde a sua
eficácia, a qual não existia no caso de costume negativo.
A distinção é importante, se vemos o discurso norma­
tivo como instrumento de controle de comportamento.
É intuitivo, que o sujeito que, numa discussão jurídica,
alega costume negativo apresenta, perante o editor, um
argumento mais forte que o que alega desuetudo, tendo
em vista a não exigibilidade do comportamento. Assim,
a própria doutrina (que nasceu no Estado moderno e
nele aprendeu a ver a preponderância do direito legis­
lado sobre o costumeiro) se nega, de princípio, o caráter
ab-rogatório da lei pelo costume, vacila nos casos em
que mudaram as circunstâncias previstas pelo legislador
(Geny-Méthode-440-II, Du Pasquier-50). Independente­
mente do problema da ab-rogação ou da derrogação,
podemos reconhecer que só a obediência regular não
define a efetividade jurídica (no sentido pragmático)
da norma, mas pode afetá-la, aumentado-lhe (ou dimi­
nuindo-lhe, no caso de desobediência) a força argu-
mentativa, permitindo uma graduação. Podemos, então,
concluir que, no caso de desuetudo, a norma que não
foi revogada por outra norma mantém a sua eficácia,
sendo, pois, aplicável; no caso de costume negativo, a
norma não foi revogada, mas, sendo ineficaz, não pode
ser aplicada.
A questão, entretanto, é mais complicada, se inda­
gamos sobre a relação entre a noção de efetividade e a
noção de validade. A norma ineficaz e regularmente
desobedecida (costume negativo) perde a sua validade?
Que significa que uma norma inválida tenha efeitos
próprios? Pode haver norma inválida ou isto é uma
contradictio in terminis?
122 T khcio S a m pa io F xkraz Jh.

3.6 — Relação entre validade • efetividade:


o problema da norma inválida.

A concepção de efetividade que apresentamos afas­


ta-se, sem dúvida, das concepções que relacionam ime­
diatamente efetividade e cumprimento real da norma,
caso em que efetividade é, antes, uma relação — semân­
tica — entre o comportamento exigido pela norma e a
regularidade do comportamento real. Uma das princi­
pais dificuldades destas concepções é determinar a rela­
ção entre efetividade e validade da norma. Assim, para
Kelsen, por exemplo, sendo a efetividade ( WirksamJceit)
o fato de que ela seja aplicada e obedecida realmente
e validade (Geltung) uui conceito formãl, que expressa
relações formais entre as normas, toma-se difícil enten­
der como a inefetividade em certo grau (que grau?
Kelsen não o diz) provoca a invalidade da norma, con­
forme ele o diz expressamente. A doutrina dominante,
embora não seja kelseniana, stricto sensu, vê a efeti­
vidade como algo independente da validade. Esta inde­
pendência exige, entre outras conseqüências teóricas,
que o conceito — formal — de validade seja dotado de
certas determinações, cuja natureza formal é difícil de
se precisar. Esta concepção formal (podemos também
num sentido lato dizer sintático) tende a operar com
a validade, como se se tratasse de uma grandeza abso­
luta, no que se refere ao tempo e ao espaço. Em prin­
cípio, se dizemos que validade é uma qualidade formal
da norma, a temporalidade e espacialidade da norma é
reduzida a um momento objetivo e atual, em que se
reduzem as dimensões passadas, presentes e futuras e o
âmbito de sua aplicação. Se o discurso normativo fosse
um discurso-com, de estrutura monológica, por exemplo,
de tipo matemático, não haveria os problemas que sur­
gem, ao se tentar operar com este conceito simples de
TKORIA DA NOBMA JtJKÍDICA 123

validade. Como se trata, porém, de uma discussão-


-contra, de estrtura ambígua, a doutrina é obrigada a
construir conceitos acessórios, como o de“ârribito de
validade” . 88 Neste sentido as normas valem espacial e
temporalmente e o seu âmbito pode ser limitado ou ilimi­
tado, falando-se ainda de um âmbito “ pessoal” e “ ma­
terial” . Este “ âmbito” , é um “ elemento do conteúdo”
da norma.69 Isto permite que questões como a da efe­
tividade de normas inválidas sejam resolvidas na prática
(com certas limitações, é verdade), pois a negação da
norma não coincidiria imediatamente com a negação
do seu âmbito de validade, podendo-se estabelecer que
certos efeitos da norma inválida permanecem, outros
não. Como fica, porém, a questão teórica? Kelsen, por
exemplo, é conseqüente ao afirmar que a expressão
“ norma inválida” no sentido de “ norma nula” é uma
contradição in terminis, pois norma é sempre norma
válida. 70 Validade, para ele, é uma relação “ dinâmica”
e não “ estática” . Normas são válidas num processo dis­
ciplinado pela própria ordem normativa, através do qual
as normas podem perder a validade — anulabilidade —
retroativamente, desde o momento em que ela foi edi­
tada, ou aperas a partir de um momento posterior,
caso em que os efeitos anteriores permanecem. Assim,
falar-se dos efeitos de uma norma inválida seria uma
expressão metafórica e imprópria. Explica-se então que
uma sentença, cujo conteúdo não corresponde ao da
norma superior, da qual, porém, não se recorre, seja
válida e, decorridos os prazos, o seja definitivamente.
O caso de relação entre normas gerais e individuais ou
de leis e a Constituição se toma, assim, solúveL Mas

“ Assim K elu en : op. cit., p. 9 et seq.


88 Idem, p. 12.
70 Idem, p. 275 et seq., p. 280 et seq.
124 T ercio S a m p a io F erraz J r .

se invertemos o problema, a questão se complica. Para


torná-la palpável, exemplifiquemos num caso simples: a
uma norma (no sentido kelseniano) convoca o cidadão
A para realizar o ato X no dia Y (por exemplo, ser
mesário numa eleição). O cidadão A toma-se contra-
ventor, e, transcorrendo o prazo para sua punição,
não sendo ele punido, a norma não é absolutamente
cumprida. Nas palavras de Kelsen, faltar-lhe-ia um
“ mínimo de eficácia” . Seria norma inválida? Para Kel­
sen, sim. Mas, neste caso, o órgão que legitimamente
convocou o cidadão teria editado uma norma inválida?
A posição de Kelsen se toma obscura neste passo. Isto
nos incita a rever a relação entre validade e efetivi­
dade.
A validade, do ângulo pragmático, não expressa,
como vimos, mera relação entre normas, mas entre nor­
mas enquanto interações, pois a relação de imunização
inclui os comportamentos comunicantes. Por isso, a va­
lidade não é conceito monádico, não se limitando, pois,
a uma relação linear entre a norma A e a norma B,
mas leva, ao contrário, em conta o movimento oposto,
qual seja, a relação da norma B sobre a norma A.
O princípio da interação exige que se observe a vali­
dade, não como uma cadeia linear e progressiva que
tem um começo e um fim, mas como uma relação,
cujo padrão é a circularidade, o que nos obriga a aban­
donar a noção, por exemplo, de que a norma A ocorre
primeiro e a norma B é determinada pela ocorrência
de A. A linguagem jurídica tende a trabalhar com uma
díade em que válido é ligado ao “ normal” , e inválido
ao “anormal” . Assumido, porém, o princípio interacional
da pragmática, a validade (e invalidade) se desprende
desta linearidade abstrata, devendo ser vista no contexto

71 O exemplo é de Capella: op. cit., p. 107.


T eoria da N orm a J u ríd ica 125

situacional, donde o sentido discutível que passa a ter aí


o conceito de “ anormalidade” . Assim, a invalidade, vista
como uma figura anormal, ou a invalidade, como uma
resposta coerente dentro de uma situação, eis dois pontos
de vista diacrepantes, que lançam sobre a teoria da
norma luzes diferentes, o que faz de nossa análise algo
mais que mero exercício acadêmico.
Como o princípio da interação exige o padrão da
circularidade (a norma A afeta B, mas a afecção de B
afeta de novo A ), a invalidade não é simplesmente a
quebra de um elo numa cadeia linear, nem um fenô­
meno marginal, que não pertence às cadeias normati­
vas, mas uma configuração relacionai específica, ao lado
da validade. Para entender isto, é preciso reconhecer o
seguinte: quando dizemos que a norma A imuniza o
aspecto-cometimento da norma B, o que ocorre se in­
vertemos o ponto de referência e observamos o reflexo
da norma imunizada sobre a imunizante? Por exemplo,
a norma A diz: “ cabe à autoridade X zelar pelos par­
ques e jardins da cidade” , a norma B estabelece: “ é
proibido pisar na grama” . A doutrina costuma falar
aqui em individuação da norma superior pela inferior,
como algo que diz respeito à relação entre generali­
dade e particularrzação. Outros autores (Reale), porém,
alimentam aqui um aspecto mais amplo do problema,
mostrando que a individuação ou, melhor, concretização
é mais que isso, implicando uma concepção que rompe
com a idéia de que toda norma seja capaz de expressar,
pelo seu conteúdo, a sua validade, incluindo a norma,
ao contrário, também a situação normada. No contexto
de nossa análise, podemos dizer que a relação de vali­
dade expressa uma espécie de estado constante ou de
estabilidade de um conjunto normativo, que é, em geral,
para usar uma terminologia cibernética, mantido por
mecanismos de “ retroalimentação negativa” no sentido
126 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

da existência de procedimentos como anulação, capazes


de manter a estabilidade do conjunto. Neste sentido
tem razão Kelsen, quando observa que validade ê pro­
visória ou definitiva, na dependência de um processo
dinâmico, através do qual as normas são continua­
mente editadas, confirmadas ou anuladas. Há, assim,
casos em que, sendo possível a anulação, por exemplo,
por incompatibilidade de conteúdos (norma inconsti­
tucional, sentença ilegal), aquela não ocorrendo, o con­
junto normativo é capaz de observar a norma anulável
como norma definitivamente válida, sem que a estabi­
lidade do conjunto sofra um desequilíbrio. Existe, con­
tudo, casos de retroalimentação positiva que, ao invés
de ajudar a manter a estabilidade do conjunto, ajudan­
do-o a corrigir os desvios, tende a aumentá-los. Referi-
mo-nos aos caso em que o aspecto-cometimento não é
imunizado, não ocorre anulação e a norma adquire uma
“ validade definitiva” , mas com uma efetividade total­
mente diferente das normas que são consideradas “vá­
lidas” no sistema. Estes casos, a teoria kelseniana não
explica ou tende a explicá-los confusamente. Assim, por
exemplo, são conhecidos no Direito Privado os fenôme­
nos de grupos, que chegam a inventar uma regulação
normativa total ou parcialmente fora da estatal, re­
cusando até a tutela que esta lhes oferece, estabele­
cendo tutelas sucedâneas; ou, caso ainda, mais grave,
no Direito Público, onde esta invenção não é permitida,
mesmo que se aja uti privati, mas onde ocorrem atos
ilegítimos, que, não lesando direitos ou interesses de
terceiros, admitem uma tendência a que não sejam
impugnados, quando estes “ vivem em toda tranqüili­
dade” . 72 Aqui também há uma modificação no con-

72 C f. M . S. O i a n n in i: D iritto . Ámministrativo, Mllano,


1970. v. I, p. 611.
T eoria da N orma J urídica 127

junto normativo, mas que, curiosamente, devendo con­


duzi-lo ao desequilíbrio, não o fazem. Para entender
esta ocorrência, é preciso recorrer a um pressuposto
mais abrangente, pelo qual os discursos normativos não
expressam apenas uma relação de estabilidade diante
de pertubações (validade), mas sobretudo uma estabi­
lidade das mudanças e variações, não no sentido Kel-
seniano, de que a validade de uma norma depende, em
última análise, de outra, que regula a possibilidade de
revisão, mas no sentido de que o discurso normativo
incorpore outros mecanismos de manejo das mudanças,
referentes à coordenação de validade e efetividade. Nestes
termos, falamos em imperatividade ou obrigatoriedade
das normas.

3.7 — A imperatividade das normas jurídicas.

Dissemos que a efetividade é uma qualidade da


norma que exprime uma relação de adequação do seu
aspecto-cometimento e do seu aspecto-relato (possibi­
lidade de obediência). Validade, por sua vez, é uma
qualidade intemormativa que exprime a relação de
imunização entre o aspecto-relato da norma imunizante
e o aspecto-cometimento da norma imunizada (possibi­
lidade de exigência). Pois bem, a imperatividade é uma
qualidade igualmente pragmática da norma, que ex­
prime uma relação entre o aspecto-cometimento de uma
norma e o aspecto-cometimento de outra.
O problema da imperatividade é um dos mais com­
plexos da literatura jusfilosófica. Com ele pisamos no
controvertido chão do fundamento da validade, isto é,
do caráter vinculatório das normas jurídicas. É claro
que nossa intenção, neste passo, está longe de fazer
um levantamento crítico ou meramente descritivo das
diversas etorias a respeito. Contudo, ao menos e apenas
128 T e r c io Sampaio F erra z Ja.

com o intuito de melhor compreendê-lo, vamos mencio­


nar algumas das principais questões que o problema
coloca.
Lembremos, rapidamente, a posição kelseniana, que
pretende resolver o problema nos quadros de uma racio­
nalidade científica. Kelsen, sabidamente, identifica va­
lidade e imperatividade.73 Expressamente diz ele: “ que
uma norma, que se relaciona ao comportamento de um
homem, “ vale” , significa que ela vincula (verbindlich-
ist), que o homem deve comportar-se do modo deter­
minado pela norma” . Se perguntamos a Kelsen, então,
quais são as normas que vinculam, ou, seja, que são
válidas, ele recorre à hipótese da norma fundamental.
Esta não prescreve às demais nenhum conteúdo espe­
cífico, mas apenas que aquelas normas que correspon­
dam à primeira Constituição histórica, são as normas
válidas. Numa forma abreviada, Kelsen formula sua
norma fundamental, dizendo que ela ordena que nos
comportemos conforme a Constituição.71 A norma fun­
damental, como sabemos, não tem para Kelsen caráter
ético-político, mas cognitivo, isto é, ela é condição de
possibilidade do conhecimento jurídico. Já isto basta­
ria para impugnar a solução kelseniana, pois uma pro­
posição cognitiva pode formular conexões (entre as nor­
mas), às quais se atribua obrigatoriedade, ou mesmo
indicar quais as normas que são, de fato, obrigatórias,
mas não pode fundar a obrigatoriedade. Segue-se que a
fórmula: comporte-se como manda a Constituição, é,
no fundo, uma proposição ético-política. Dizer que a
norma fundamental é apenas norma pensada e não
querida, apenas complica a situação, pois pretende que
o direito (e não apenas a ciência do direito) repouse

"3 K e l s e n : op. cit., p. 196.


74 K e ls e n : op. cit., p. 196.
T e oria da N orma J u rídica 129

num ato de conhecimento, o que significa, em última


análise, transformá-lo, sub-repticiamente, num ato po­
lítico. Nestes termos, contundente é a crítica de Ali
Ross,75 que observa que, se, para Kelsen, uma norma
é válida (obrigatória), significa que os indivíduos devem
comportar-se como a norma estipula, e se a norma
mesma, pelo seu conteúdo imediato, expressa o que os
indivíduos devem fazer, caímos, então, numa curiosa
redundância, segundo a qual “ os indivíduos devem fazer
o que devem fazer” ! Esta redundância esconde uma
forma de jusnaturalismo, pois significa que a norma
não apenas manda que os indivíduos se comportem de
determinado modo, mas que “ objetivamente” , “ verda­
deiramente” devem comportar-se deste modo. Uma saída
para Kelsen seria fazer repousar a obrigatoriedade das
normas na sua efetividade. A isto parece chegar sua
teoria, quando reconhece que a ordem jurídica, como
um todo, e cada norma, individualmente, têm de ser,
grosso modo, efetivas. Kelsen não esclarece o que signi­
fica grosso modo (im grossen und ganzen). Seria, como
diz o fundador da Teoria Geral do Reconhecimento,
Adoif Merkel,76 úma “ união das prescrições jurídicas
com as forças morais vivas em um povo” ? As explica­
ções de Kelsen pecam por obscuras. Mas mostram, de
qualquer modo, que o caminho positivista nos conduz
a um momento de “ irracionalidade” (no sentido posi­
tivista da palavra) no sentido dé fazer a imperati-
vidade das normas repousar não num “ conhecimento”
(Erkenntnis), nem num “ reconhecimento” (Anerken-
nung), mas num ato de crença (Bekenntnis).

A lf . R oss: Lógica de las Normas, cit., p. 145.


■o A d o lf M e rk l: Gesemmelte Abhandlungen aus dem G e -
biete der allgemeinen Rechtslehre und des Strafrechts. 1890,
Bd. 2. p. 590.
130 T ercio S a m p a io F erraz J r .

Na verdade, qualquer tentativa de fundar a impe­


ratividade das normas jurídicas exige a presença de
proposições das quais ela decorra. Se o discurso norma­
tivo fosse do tipo discussão-com, seria possível conten­
tar-se com a consistência das conexões dedutivas, o que
excluiria a indagação da imperatividade das próprias
premissas, pois isto seria exigir proposições capazes de
dizer algo sobre si próprias, o que nos poria dentro de
uma antinomia semântica. Como dissemos, porém, em
outro trabalho,77 nas discussões-contra (e o discurso
normativo aí se inclui), a fundamentação de uma decisão
tem uma função diferente da fundamentação de uma
hipótese científica (discussão-com). Enquanto esta visa
a produzir no ouvinte um sentimento de convicção, que
se funda na verdade, a fundamentação do discurso-
-contra não exige (nem pode fazê-lo) que o ouvinte sç
renda, mas apenas que este reconheça que o autor da,
fundamentação está seguro do que diz (fundamentação
persuasiva), donde ser função da fundamentação de
uma decisão constituir um elemento de ligação e de
controle de uma discussão superveniente, isto é, for­
necer ao ouvinte as indicações para o seu comporta­
mento (por exemplo, numa decisão judicial, se desta
deve ou não ser recorrida). Daí decorre para o pro­
blema da imperatividade esta situação paradoxal, que
exige, não só a demonstração do caráter vinculatório
das normas, mas das próprias premissas em que nos
apoiamos. Em vista disso, alguns autores78 concluem
que a noção de imperatividade (Verbindlichkeit) é cien­
tificamente imprópria, devendo ser abandonada pela
ciência jurídica.

” T é r c i o S a m p a io F e r r a z J r . : Direito, Retórica e Comuni­


cação, c it ., p . 43 e t s eq .
™ S c h r e ib e r : o p . c it., p . 140.
T eoria da N o rm a J u ríd ica 131

Nossa intenção é reinterpretar o conceito nos qua­


dros da pragmática, que, desde logo, como mostramos,
o exige como pressuposto mais abrangente, capaz de
explicar a coordenação entre validade e efetividade.
Efetividade é relação de adequação (entre o aspecto-
-relato e o aspecto-cometimento da norma), validade é
relação de imunização (do aspecto-cometimento de uma
norma pelo aspecto-relato de outra), imperatividade por
sua vez será definido como relação de calibração (do
aspecto-cometimento de uma norma pelo aspecto-come­
timento de outra). Trata-se de qualidade pragmática do
discurso normativo, através da qual a norma se adapta
a mudança e desvios em razão de uma estabilidade
conhecida, constituindo um padrão de ordem superior
caracterizado pelo rompimento e reconstrução de um
padrão aplicável a maiores unidades de tempo.79 Assim,
propomos que haja uma “ regulagem” da possibilidade
de exigência (validade) e de obediência (efetividade)
de um discurso normativo que expressa umá estabili­
dade, de tal forma, que qualquer desvio (ilegitimidade,
falta de competência ou descumprimento, não aplica­
ção), dentro de um âmbito, é contrabalançado (medi­
das disciplinares, sanções, anulação, declaração de nu-
lidade). Num outro nível, porém, esta mudança pro­
duz-se a longo prazo, devido, por exemplo, à ampliação
de certos desvios (desobediência regular de normas
inefetivas — costume negativo — ou efetivas — desue-
tudo — , modificação drástica nas condições de legiti-
dade — revolução), o que pode, eventualmente, redun­
dar em novo estado da situação comunicativa normativa.
A imperatividade é justamente a qualidade (relação de
calibração) que explica certa constância das variações
também dentro deste âmbito.
t» Sobre a noção de calibração ou regulagem dos sistemas
interacionais, cí. W a t z l a w i c k et allii: op. cit., p. 132.
132 T ercio S a m p a io F erraz J r .

A grande dificuldade de se captar a imperatividade


está em que ela é uma relação entre os cometimentos
das normas, não se referindo, aos aspectos-relato. Por­
tanto, uma relação que se expressa numa linguagem
analógica e diz respeito às valorações ideológicas do dis­
curso normativo. Isto esclarece, a nosso ver, as disputas
em que se mete a teoria jurídica, ao tentar captá-la
digitalmente, realizando complicada tradução da lin­
guagem analógica, quer reduzindo imperatividade à va­
lidade, como fazem alguns positivistas, quer reduzindo-a
à efetividade, como fazem outros, quer expressando-a
na linguagem (digital) do Direito Natural, quer tradu­
zindo-a em valores (idéia de justiça, idéia de direito).
A dificuldade aqui é dupla, pois não só leva em consi­
deração o problema de tradução do analógico para o
digital, como também o fato de que, sendo o “ material”
analógico, por exemplo, a mímica do rosto, o tom da
voz, a solenidade do procedimento, o aparato, as de­
monstrações de força, etc., sumamente antitético, ele
se presta a interpretações digitais muito diferentes, com
freqüência incompatíveis, mesmo dentro de uma tradu­
ção até certo ponto pacífica (por exemplo, admitindo-
-se como “ correta” a tradução em termos do Direito
Natural, as disputas interpretativas em torno deste). A
linguagem analógica, como dissemos anteriormente,
não tem uma sintaxe equiparável à digital, faltam-lhe
os mínimos recursos, como a negação, a conjunção, a
disjunção, etc. Por isso, é relativamente fácil transmitir
analogicamente: eu vou puni-lo (por exemplo, na rela­
ção entre pai e filho, o movimento de tirar a cinta),
mas é quase impossível transmitir a negação: eu não
vou puni-lo. Para isso, recorre-se a soluções curiosas,
problemáticas, comci, por exemplo, propor uma ação e
depois deixar de executá-la (na mesma situação de pai
e filho, isto eqüivaleria a dar uma cintada e depois
T eoria da N orm a J u rídica 133

metacomunicar, dizendo: “ isto é só uma amostra” ou


“ da outra vez será pior” , etc.). Uma outra saída, é
utilizar-se do ritual, como processo comunicativo inter­
mediário entre o analógico e o digital, caso em que o
“ material” analógico é simulado de modo repetitivo e
estilizado, o que permite, na comunicação humana,
curiosa sobreposição da linguagem analógica e da digi­
tal. Bom exemplo disso está no uso de certas fórmulas
procedimentares na linguagem jurídica, que comumente
identificam o jurista, como se pode observar nos proce­
dimentos do direito processual. Através de manifesta­
ções ritualísticas, torna-se, então, possível “ canonizar”
certos aspectos das relações, tanto no sentido “ afirma­
tivo” como no “ negativo” . O Direito conhece, assim, fór­
mulas curiosas, como a que permite entrar com uma
ação de despejo para, depois, não deixar que ela seja
executada, o que pode ser entendido como forma ritual
de definir as relações e que, numa “ tradução” digital,
eqüivaleria a dizer: “ eu não vou despejá-lo, embora
tenha esse direito” . No sentido “ positivo” , as ritualiza-
ções permitem que os discursos normativos, que podem
ter uma gama enormemente variada (por exemplo, nas
regulamentações casuísticas), alcancem considerável
economia em termos do que é passível de discussão e de
como deve ser discutido, como se os comunicadores ti­
vessem excluído vastas áreas do seu repertório interacio-
nal e nunca mais tergiversassem sobre elas.
Justamente esta estabilização da definição dos
aspectos-cometimento das normas é que chamamos im­
peratividade. Trata-se de regulagem (calibração), ou
seja de enunciado das possibilidades admitidas de varia­
ções ao nível de relação, num determinado âmbito. Uma
norma é vinculante no sentido de que estão reguladas
as variações de sua possibilidade de imposição dentro
de um âmbito determinado. Do mesmo modo que para
134 T ehcio S a m p a io F erraz J k.

a validade e para a efetividade, a imperatividade não é


algo que a norma tem, ou seja, não se trata de entidade
platônica, da qual a norma participa. Sendo o discurso
normativo uma interação, também a imperatividade
designa uma propriedade desta interação. Uma norma
é vinculante ou tem imperatividade na medida em que
se lhe garante a possibilidade de impor um comporta­
mento independentemente do concurso ou da colabora­
ção do endereçado, portanto, a possibilidade de produ­
zir efeitos imediatos, inclusive sem que a verificação da
sua validade o impeça. Por exemplo, pode ocorrer, num
caso extremo, um ato administrativo inválido (a expro-
priação estabelecida por uma autoridade absolutamente
incompetente) que será impugnado pelo endereçado,
mas, entrementes, o seu direito de propriedade fica
extinto, não podendo ele gozar do bem expropriado,
nem impedir modificações físicas, não cabendo à auto­
ridade suportar os riscos eventuais se o bem perecer.
Percebe-se que a imperatividade afeta imediatamente o
problema da legitimidade do direito.
Como a imperatividade é uma relação entre come-
timentos, ela não se expressa digitalmente, não se en­
contrando, por assim dizer, numa cadeia normativa,
enunciados cujo conteúdo a preveja. Não há, pois, nor­
mas que estabeleçam a imperatividade ou a retirem,
como normas que derrogam outras ou que lhes suspen­
dem a eficácia. No Direito, como dissemos, sua forma
de expressão é ritual. Estas ritualizações podem expres­
sar-se, porém, através de dígitos-analógicos e isto é
observável no uso estilizado e repetitivo de certas fórmu­
las normativas, por exemplo, no uso de palavras técni­
cas que indicam uma tendência a diminuir o âmbito
de possibilidades interpretativas, ou no uso de expressões
abertas, que aumentam aquele âmbito, ou no uso de
expressões orientadoras que apontam caminhos a serem
T e o r i a da N o r m a J u r íd ic a 135

precisados no intercâmbio. Podemos observá-la, assim,


em fórmulas preambulares do tipo: “ os signatários, cien­
tes de sua responsabilidade na manutenção da paz, con­
cordam q u e ...” , “ os representantes do povo, no cum­
primento do seu sagrado dever.. “as forças armadas,
diante da crise que solapa as instituições e convictas do
seu dever de zelar pela manutenção da ordem. . ou
em regras que acompanham certas codificações, como,
por exemplo, no Código Penal alemão: “ O Direito Penal
está a serviço da proteção dos valores elementares da
vida comunitária, especialmente da vida, da liberdade,
da propriedade e da moralidade... ” , ou em princípios
do tipo “ para trabalhos iguais, iguais remunerações” ,
“ todo cidadão tem direito ao trabalho” , “ dar a cada
um o que é seu” , ou em princípios doutrinais do tipo
“ o povo é um sistema de atos individuais regidos pela
ordenação jurídica do Estado” .
A noção de regulagem ou calibração, embora nela
repouse a imperatividade e, como tal, seja responsável
pela coesão e delimitação do sistema, não se confunde
com a de “ norma fundamental” . Esta, na formulação
kelseniana, tem, como se sabe, dois sentidos básicos:
um lógico-transcendental e outro empírico-positivo. O
primeiro corresponde a uma proposição de dever-ser,
hipotética que fornece às demais normas o seu caráter
de validade. Kelsen a toma como uma espécie de condi­
ção de possibilidade do sistema normativo no sentido
kantiano. Assim, a norma fundamental é não só respon­
sável pela possibilidade do conhecimento jurídico, mas
também pela própria experiência objetiva do direito,
isto é, ela é responsável pelo conhecimento e pelo objeto
ao mesmo tempo. Sem o pressuposto a priori de uma
proposição que manda obedecer a autoridade constituí­
da, não só não há conhecimento das normas vigentes,
como também não se pode sequer reconhecer quais nor-
136 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

mas estão na relação de validade e constituem o siste­


ma. A noção é, contudo, em Kelsen, ambígua, pois este
distingue, por assim dizer, duas funções sistemáticas
para a norma fundamental; ela é princípio estático e
dinâmico e apenas no segundo caso tem função trans­
cendental. No primeiro, atua como mera premissa lógi­
ca, da qual se deduz, por via formal, o conteúdo das
demais normas, o que explica que o sistema normativo
possa ser representado estaticamente, isto é, ahstraindo-
-se do seu processo contínuo de produção, como sistema
dedutivo. Seguem-se daí algumas críticas a Kelsen, que
põem em dúvida o sentido transcendental puro da nor­
ma fundamental. No sentido empírico-positivo, a norma
fundamental se confunde com a Constituição, em ter­
mos técnico-jurídicos. Aqui também os críticos não ces­
sam de apontar a eventual inutilidade da duplicação
do conceito, sobretudo quando despido do seu aspecto
transcendental, não vendo razão para a distinção.80
Não é nossa intenção entrar em detalhes da teoria
pura e da sua crítica, já mencionada. Mencionamo-la,
apenas, para melhor expor nossa noção de imperativi­
dade. Esta se revela, como vimos, como regulagem,
portanto, um conjunto de regras responsáveis pelas re­
lações entre editores e endereçados. Estas regras, em
primeiro lugar, não constituem um corpo, por exemplo,
no sentido de uma Constituição, não se confundindo
com esta. Isto limita a idéia de que o sistema norma­
tivo, como um todo, tenha a forma de uma ordem esca­
lonada, unitária, repousando num princípio único e
último, capaz de determinar originaiiamente o sentido
da validade das demais normas, num movimento linear
e descendente. A noção de calibração, ao contrário, pres­
supõe o padrão circular, que não exclui o escalonamen­

*° K e l s e n : op. cit., p. 204, 198.


T e o r ia d a N o u u J u b íd ic a 137

to, mas o relativiza como um dos relacionamentos pos­


síveis; ou, seja, no sistema normativo jurídico, visto
do ângulo pragmático, é impossível determinar-se o sen­
tido do sistema apenas pelo seu estado inicial ou sua
origem, por exemplo, a partir de uma Constituição esta­
belecida, ocorrendo, outrossim, inter-relação entre as
normas que se acumulam e modificam continuamente
o sistema; este é, então, independente até certo ponto
das suas condições iniciais, sendo mais importante, para
a sua compreensão, mais que a sua origem, a sua orga­
nização atual. Assim, o jurista se preocupa, na captação
do sistema, não só com o escalonamento das normas,
em termos de hierarquia de competências, compatibili­
dade de conteúdos, mas também com relacionamentos
cruzados, que podem até desconfirmar as hierarquias,
ditadas por regras doutrinárias, princípios de interpre­
tação, regularidades de aplicação (jurisprudência), etc.
Por exemplo, no caso dos chamados direitos fundamen­
tais, a sua conexão com as garantias, nos permite dizer,
no sentido kelseniano, que se trata de proibições de
edição de normas que, se editadas, poderão ser anula­
das, em função da sua inconstitucionalidade, por meio
de um procedimento específico e rigoroso. Quando, po­
rém, topamos com as chamadas “ pseudogarantias” —
exemplo: “ o direito de associação é garantido; o seu
exercício será regulado por lei” — , caso em que a Cons­
tituição delega ao legislador ordinário o estabelecimento
de direitos e obrigação e a delimitação da liberdade, o
sentido escalonado do sistema se vê inclusive invertido,
obrigando o intérprete a recorrer a outros critérios re­
lacionais.
Não constituindo um corpo, estas regras estão, por
assim dizer, “ espalhadas” pelo sistema. Elas permitem
determinar, em cada caso, a relação de autoridade, a
138 Tncxo Sampaio Fekkaz J e.

meta-complementaridade, fazendo com que o sistema


normativo, como um todo, mantenha sua capacidade
de terminar conflitos, pondo-lhes um fim. Assim, por
exemplo, se um oficial diz a um soldado: "retorne à sua
guarnição”, o aspecto-cometimento (eu sou o superior
e você é o subordinado — imposição de complementa­
ridade) pode ser acompanhado de uma metacomunica-
ção do tipo “ isto é uma ordem1’. Esta metacomunicação
define a autoridade do oficial perante o soldado e vice-
-versa. A validade da norma do oficial depende de outra
norma, do regulamento militar, que exija que os mili­
tares obedeçam seus superiores. Trata-se de uma imu­
nização condicional. A efetividade da norma, a adequa­
ção entre seus aspecto-relato e aspecto-cometimento
(a norma é efetiva, por exemplo, se houver um soldado,
uma guarnição, etc.) independe da sua validade. Do
mesmo modo, a sua validade não depende da sua efeti­
vidade. Pelo princípio da interação estamos, porém,
obrigados a entender estas conexões conforme um pa­
drão circular. Assim, imaginemos uma cadeia norma­
tiva x, da qual a norma b proíbe a edição da norma a
(por exemplo, um regulamento militar que proíba que
soldados dêem ordens aos oficiais) e, em conseqüência,
a edição das normas al, a2, a3, art (ordens de soldados
a oficiais).81 Supondo-se que, apesar disso, a norma a
é editada, ela inaugura, assim, uma nova série norma­
tiva y, da qual fazem parte as normas al, a2, a3, an.
A norma a, não estando imunizada, é inválida. Mas as
normas al,, a2, a3, art, curiosamente, são imunizadas
pela norma a, sendo ao mesmo tempo válidas e inváli­
das (inválidas segundo o critério dá cadeia x, mas vá­
lidas dentro da cadeia y). É verdade que o critério pelo

»x Cf. Capella: op. cit., p. 1"3.


T z o b ia d a N o r m a J u r íd ic a 139

qual a norma a é inválida, não é o mesmo pelo qual as


normas al, a2, a3, an são válidas. Isto, a nosso ver,
refuta uma tese kelseniana, isto é, de que validade é
uma grandeza indiferenciada e de que as cadeias nor­
mativas constituem sempre um sistema, uma ordem
hierárquica e unitária, redutível, pois, há um principio
único: a norma fundamental. Kelsen diria, assim, que
toda a cadeia y é válida provisoriamente.82 No caso
de norma a ser considerada o início de um ato revolu­
cionário, Kelsen teria de explicar em que medida, se­
gundo sua teoria, a norma a teria de ser efetiva, para
tornar-se uma nova norma fundamental (no sentido
jurídico), falando-se, então, de um novo sistema. A
questão, porém, se complica para ele, se imaginamos
que as cadeias x e y fazem parte do mesmo “ sistema”,
que teria, neste caso, duas normas fundamentais. Exem­
plos concretos não faltam e basta lembrar o caso da
relação entre a Constituição Brasileira de 1967, modi­
ficada pela Emenda de 1969, que estabelece séries nor­
mativas em alguns pontos vitais, incompatíveis com as
séries estabelecidas pelo Ato Institucional n.° 5, perma­
necendo, porém, ambas como válidas e efetivas num
mesmo sistema. Ora, se quisermos entender esta possi­
bilidade, é preciso romper com o pressuposto de que o
ordenamento jurídico constitui um sistema enquanto
ordem linear, unitária e hierárquica, que culmina numa
única norma fundamental, reconhecendo, ao contrário,
que o “sistema” normativo admite a presença de várias
cadeias com diversas “ normas-origem” , 83 até mesmo
entre si incompatíveis. É claro que o sistema, nesse caso,
terá outro sentido. Qual?

S2 K e l s e n : op. cit., p. 273.


83 A e x p re s s ã o é d e C a p e l l a : op. cit., p. 131.
140 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

3.8 — A ordem normativa como sistema.

Entendemos por sistema um conjunto de objetos e


seus atributos (repertório do sistema), mais as relações
entre eles, conforme certas regras (estrutura do siste­
ma). Os objetos são os componentes do sistema, especi­
ficados pelos seus atributos, e as relações dão o sentido
de coesão ao sistema. 84
Normas são entendidas como discursos, portanto,
interações em que alguém dá a entender a outrem algu­
ma coisa, fixando-se, concomitantemente, a relação
entre quem fala e quem ouve. Do ângulo da pragmáti­
ca, é importante esta concepção do discurso como rela­
ção entre orador e ouvinte, enquanto mediados pov
mensagens. Os discursos normativos constituem um
sistema interacional no sentido de que comunicadores
normativos estão, ao falar, num processo constante de
definição das suas relações, que determinam as suas
falas como quaestiones.
Os padrões das relações (aspecto-cometimento das
normas) independem, até certo ponto, das mensagens
(aspecto-reiato das normas). Como, porém, as relações
se manifestam também através dos relatos, a análise
dos sistemas normativos leva em conta o problema da
adequação do relato e do cometimento (efetividade)
de cada norma e da imunização do aspecto-cometimento
de uma norma pelo aspecto-relato de outra (validade).
Os discursos têm componentes (orador, ouvinte,
quaestio) interligados por certas regras (regra do dever

84 Sobre a noção de sistema, seguimos W a t z l a w ic k et


allii: op. cit., p. 109 et seq.
Sobre a noção de sistema no âmbito juridico, cf. nosso
livro: Conceito de Sistema no Direito. São Paulo, 1976. Vide
também L o u riv a l Vilanova: As Estruturas Lógicas e o Sistema
do Direito Positivo. São Paulo, 1977.
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 141

de prova, tratando-se de discursos fundamentantes).


Como tais, constituem unidades. Os sistemas norma­
tivos têm por objeto estas unidades discursivas que
chamamos normas. Note-se que normas não se confun­
dem com os seus relatos, mas incluem os cometimentos.
Normas jurídicas são discursos heterológicos, decisórios,
estruturalmente ambíguos, que instauram uma meta-
-complementaridade entre orador e ouvinte e que, tendo
por quaestio um conflito decisório, o solucionam na me­
dida em que lhe põem um fim. Assim, o objeto dos
sistemas normativas (repertório do sistema) são normas
(especificadas por seus atributos: validade e efetivida­
de). O que dá a coesão do sistema, como um todo, são
as relações entre elas. As relações são de imunização
contra certas reações dos endereçados e de produção de
certas reações (exigência e obediência). As relações, por
sua vez, são reguladas por certas regras — calibração
do sistema — que dão ao sistema o seu parâmetro:
imperatividade.
O sistema normativo jurídico é do tipo aberto, es­
tando em relação de importação e exportação de infor­
mações com outros sistemas (o dos conflitos sociais,
políticos, religiosos, etc.), sendo ele próprio parte do
subsistema jurídico (que não se reduz a normas, mas
incorpora outros modos discursivos). Como sistema a se,
ele conhece uma relação típica-complementaridade en­
tre editor e sujeito normativo — , de tal modo que toda
reação que reforça a meta-complementaridade é consi­
derada retro-alimentação negativa (mantém o sistema),
toda reação que leva à simetria é retro-alimentação
positiva (leva a um rompimento do sistema). O resul­
tado do funcionamento do sistema é impedir a conti­
nuação de conflitos, pondo-lhes um fim. Este resultado,
como dissemos, não é determinado por condições iniciais
do sistema (norma fundamental), mas pelo parâmetro
142 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

do sistema, isto é, sua organização atual (e não a sua


origem). Os sistemas normativos são sistemas globais
e não-somativos. Isto é, são todos coesos, onde a varia­
ção numa parte afeta o todo e vice-versa; por isso, eles
são não-somativos, isto é, o sistema tem qualidades que
não resultam da soma das qualidades das suas partes.
Esta qualidade do sistema é sua imperatividade. Isto
explica que a validade de uma norma se apoie em outra
norma, que a imuniza, até a hipótese de normas-origens
que, cm si não são válidas nem inválidas (porque são
origem e não têm outra norma que as valide), mas que
podem ser efetivas ou inefetivas, concluindo-se com Ca­
pella que o critério de validade de uma norma é a efeti­
vidade e não a validade da norma que regula o ato de
sua edição (normas origens não são autoválidas). Mas,
em que repousa a efetividade? Como determiná-la? Esta
é, em última análise, a questão de imperatividade do
sistema. A imperatividade, neste sentido, calibra a rela­
ção entre validade e efetividade. Dentro de um mesmo
corpo normativo, há muitas normas-origens, que são
normas efetivas, dando origem a cadeias válidas. O pro­
blema de quais normas-origens são “mantidas” no siste­
ma depende, não da efetividade do sistema como um
todo, mas da sua calibração, isto é, da sua imperativir
dade. Como a imperatividade é uma relação entre come-
timentos, que usa de uma linguagem analógica e, pois,
antitética, não surpreende que os sistemas normativos
sejam dotados, como dissemos, de uma curiosa “lógica” ,
um universo de crises e reconciliação onde a coerência,
às vezes, parece incoerência. Podemos entender, nestes
termos, que o mesmo “ sistema” normativo albergue di­
versos subsistemas, cujas normas-origens não são nem
válidas nem inválidas e, ao mesmo tempo, sejam, no
seu relacionamento, inválidas umas perante as outras.
T e o r i a d a N o r m a J u r íd ic a 143

Explica-se, com isto, que a invalidade não seja uma


figura “ anormal”, nem um fenômeno marginal, mas
uma resposta “ coerente” , dentro de uma situação. Por
sua vez, esta possibilidade lança uma luz diferente sobre
a questão da relação entre validade e efetividade. Se
se pode manter a regra, segundo a qual a validade de
uma norma não depende da sua efetividade e vice-versa,
é possível reconhecer que a inefetividade da norma de­
rivada afeta a efetividade da norma-origem no sentido
de que o sistema, globalmente, modifica a sua regula­
gem chegando até o clímax de uma nova situação ou
novo estado. Esta modificação na regulagem ou no sen­
tido obrigatório do sistema normativo pode ocorrer pela
reinterpretação da norma-origem ou pela edição de uma
nova norma-origem que revogue ou derrogue a anterior,
ou pelo recurso a uma ação drástica, exterior ao siste­
ma, que implanta novo ciclo de validades, com o apa­
recimento de novo-sistema. No exemplo de oficiais e
soldados, a norma a (ordem de um soldado a um ofi­
cial), inválida perante a norma b do regulamento mi­
litar, mas, diante das normas al, a2, a3, an, nem válida
nem inválida, afeta, com sua invalidade relativa (ao
regulaçnento militar) a efetividade da norma b, que
proíbe que soldados dêem ordem aos oficiais. Esta afec-
ção se faz sentir na modificação da regulagem do siste­
ma, por exemplo, pelo aparecimento de uma norma que
anistie os insubordinados ou por uma reinterpretação
da norma b do regulamento militar no sentido de incor­
porar novas situações, no conteúdo normativo, para que
este expresse “ melhor” a sua efetividade ou pela mu­
dança drástica e global de todo o regulamento, estabe­
lecendo nova situação.
Podemos assim entender que a invalidade seja outra
figura normativa e a norma inválida não seja não-nor-
ma.
144 T e r c io S a u p a i o F e r r a z J r .

A relação entre norma válida e inválida não é, neste


sentido, a de uma negação lógica, isto é, nos quadros
de nossa concepção, a invalidade não é negação da
validade tout court. Definida a validade como uma re­
lação de imunização, norma válida, como vimos, é a
norma cuja aspecto-cometimento está imunizado por
outra norma contra o comportamento de desconfirma­
ção do endereçado. Ora, a invalidade significa, é verda­
de, algo distinto de validade, mas não a pura ausência
de imunização e, sim, outro tipo de imunização. Trata-
-se de imunização que não repousa em outra norma,
mas em regras de calibração do sistema, como, por
exemplo, as regras atinentes à eficácia da norma invá­
lida, segundo as quais esta tem a mesma eficácia da
norma válida, desde que não seja invalidada, ou não
tenha eficácia, desde que não seja verificada a validade,
ou tenha uma eficácia disponível da parte da autoridade
que a editou, ou da contraparte, ou do juiz, de ofício
ou a requerimento da parte. Em todos os casos, o im­
portante é a manutenção da imperatividade. Estas re­
gras se referem, neste sentido, não propriamente aos
relatos das normas, mas ao seu aspecto-cometimento,
pois, ao manterem a imperatividade, elas apenas con­
firmam a autoridade da norma inválida como tal ,em
termos de que o destinatário não pode subtrair-se ao
seu vínculo, e em termos de que há uma garantia de
que a autoridade deverá assumir a norma inválida como
vinculante.
Exemplos característicos da presença de regras de
calibração, conferindo validade a certas pretensões ma­
nifestamente inválidas e gerando normas-origens res­
paldadas na imperatividade do sistema são inúmeros.
Um deles diz respeito à pretensão da União de cobrar
imposto de renda sobre a remessa de lucros para o ex­
terior, devidos em razão de contratos de mútuo, na
T e o r i a d a N o r m a J u ç x d ic a 145

ausência de norma prevendo a hipótese de incidência


no seu relato. Pelo princípio da estrita legalidade, que
é também uma das regras de calibração do sistema tri­
butário tornada norma, isto não seria possível. Mas,
atendendo a exigências globais de manutenção do sis­
tema, a autoridade judiciária aplica fórmulas difusas,
que contrariam o princípio, mas que permitem o con­
trole em outro nível. Assim, o Acórdão proferido pela
Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, em 17
de junho de 1975 (Revista Trimestral de Jurisprudên­
cia, 75/280), afirmou que: “ a remessa de juros para
atender a obrigações de empréstimos simples está sujeita
ao imposto de renda, segundo as regras gerais do tribu­
to”. Uma decisão deste teor, que não tinha como fun­
dar-se num Decreto-lei como o de n.° 401, de 68, que
previa incidência sobre remessa de juros decorrentes
de contrato de financiamento, mas não de mútuo, é
clara demonstração de que a unidade do sistema nor­
mativo repousa não em hierarquias que culminam em
norma fundamental, mas em regulações (regras de ca­
libração) que têm lógica própria, antitética, onde a
coerência parece incoerência. Assim, a garantia, de que
a autoridade assumirá a norma inválida como vinculan-
te, fica incorporada ao sistema, o que se observa, inclu­
sive no voto do Ministro Leitão de Abreu, que recorre
ao princípio de uniformidade da jurisprudência, citando
diversas decisões da Corte, que reforçariam a decisão
em tela.
Também o dilema kelseniano, antes lembrado, de
uma norma válida que convoca um cidadão determi­
nado para um ato determinado numa ocasião determi­
nada, mas que não é cumprida e, decorrendo prazos
para a punição, não é aplicada, adquire nestes quadros
o seu sentido. Para Kelsen, teria de ser uma norma
válida, porque editada legalmente, mas que seria invá­
14# T e b c io S a m p a i o F e r r a z J r .

lida, por ser absolutamente inefetiva. Em nossa termi­


nologia seria, porém, uma norma válida, eficaz, mas
descumprida. Para o cidadão que a descumpre, o seu ato
implica uma decisão que inaugura nova cadeia nor­
mativa que contém, é verdade, uma única norma, a
própria norma-origem (não respeitar a autoridade elei­
toral). Em si, esta última é norma efetiva, nem válida
nem inválida, mas inválida em relação à cadeia das
normas eleitorais. Temos, então, no sistema, a existên­
cia de uma norma inválida, que produz efeitos próprios,
cuja invalidade afeta a efetividade da norma de convo­
cação, no sentido de que a regulagem do sistema é reca-
librada. A norma de convocação permanece válida e
eficaz, mas, em nome da obrigatoriedade do sistema, o
caso é “ arquivado” . A arquivação do caso é, tipicamente,
uma ritualização que expressa, analogicamente, o come­
timento “ nós podemos ou poderíamos tê-lo punido, mas
não o fazemos ou fizemos em nome da inexpressividade
do seu comportamento” . Este cometimento eqüivale exa­
tamente a uma desconjirmação do comportamento rea­
tivo do endereçado que, curiosamente, aceitando a efe­
tividade do seu ato inválido, garante a imperatividade
do sistema.
Vamos tentar resumir os principais pontos da ex­
posição. Assumido que, do ângulo da pragmática, os
sistemas normativos guardam entre seus objetos (dis­
cursos normativos) relações de validade e efetividade,
conforme as regras de calibração, é possível ensaiar um
esquema de uma tipologia normativa, tendo em vista
a dinâmica do sistema (no sentido pragmático de pro­
cesso de interações).
Em primeiro lugar, conforme as noções de validade/
invalidade, distinguimos dois tipos básicos de normas:
normas-origens e normas-derivadas. Normas-origens são
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 147

normas que guardam eventualmente, entre si, relações


de invalidade, mas que, em si, não são nem válidas
nem inválidas, mas, apenas, efetivas, conforme as re­
gras de calibração do sistema. As normas derivadas são,
em relação às suas normas-origens, normas válidas, po­
dendo ser inválidas em relação a outras normas-origens;
em si, elas são efetivas ou inefetivas. Enquanto a vali­
dade das normas derivadas não depende da sua efetivi­
dade, a efetividade das normas-origens depende da efe­
tividade das suas normas derivadas, isto explica que,
entre validade e efetividade, haja certa independência
e certa dependência. Assim, uma norma derivada que é
inefetiva não perde, por isso, a sua validade, mas, como
isto, afeta a efetividade da norma-origem, ela pode tor­
nar-se inválida em função da inefetividade da sua nor­
ma-origem.
Aqui podemos distinguir os casos de desuso e de
costume negativo. No primeiro, como vimos, a norma é
eficaz, mas regularmente desobedecida. No segundo, é
ineficaz e regularmente desobedecida. Neste último caso,
a inefetividade pragmática da norma derivada afetan­
do a efetividade da norma-origem, a norma derivada
perde a sua validade por inefetividade da norma-origem.
No primeiro, apesar da desobediência regular, a norma
derivada não perde a sua validade, senão por revogação
expressa (ou derrogação, no caso de desuso parcial).
As normas-origens são sempre efetivas, em si nem
válidas nem inválidas, èmbora possam ser eventual­
mente inválidas, em relação a outras normas-origens,
sem que, por isso, a sua efetividade seja afetada. Isto
explica que um sistema normativo possa abarcar, ao
mesmo tempo, normas válidas e inválidas. Aqui, é pre­
ciso distinguir entre os pares conceituais norma-origem/
/norma-derivada e norma-imunizante/norma-imuniza-
148 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

da. Toda norma-origem é norma-imunizante, rnas nem


toda norma-imunizante é norma-origem. Donde se se­
gue, que há normas-derivadas imunizantes. Estas nor­
mas são imunizadas em relação a outra norma-imuni­
zante, que pode ser uma norma-origem, mas pode ser
imunizante em relação às normas delas derivadas.
Criam-se, com isto, cadeias normativas que, dentro do
sistema, podem assumir formas hierárquicas, embora
as diversas cadeias, entre si, guardem, antes, formas
circulares de competências entrecruzadas, de mútuas
limitações.
O sistema, nestes termos, não tem, necessariamen­
te, um ângulo superior, como na pirâmide kelseniana.
Assim, por exemplo, uma Constituição imuniza as nor­
mas legais votadas pelo Legislativo e as decisões de um
tribunal constitucional que julgue da constitucionali-
dade das leis, sendo estas decisões, por sua vez, imuni­
zantes (no sentido de imunização finalística) das pró­
prias leis. Mas ele pode ter outras normas-origens, para­
lelas à Constituição, que se tenham efetivado no desen­
volvimento do sistema, como seria o caso de uma nor­
ma legislada, declarada inconstitucional pelo tribunal
que, entretanto, não tem poder de revogá-la, sendo assim
mantida pelo editor, o que faz dela nova norma-ori-gem,
produzindo efeitos próprios, iguais ou diferentes dos
previstos pela própria Constituição. Ou, como no caso
das Súmulas do Supremo que, não tendo validade apoia­
da em outras normas, mas permitidas na regulagem do
sistema, tornam-se normas-origens (ao menos parcial­
mente) — portanto, efetivas — , imunizando uma série
de outras decisões e eliminando outras que não têm
condições de fazer frente à sua efetividade. O sistema
normativo tem, assim, centros de referência que são
dados pelas diversas normas-origens. Ele pode tér, por
T e o r ia d a N o r m a J u p íd ic a 149

assim dizer, no seu nascimento, um único ou vários


centros de referência, que vão se multiplicando dentro
dos limites das regras de calibração. O processo de de­
senvolvimento do sistema depende, assim, em parte,
desta multiplicação, ou, seja, da complexidade das ca­
deias derivadas.
Dentro do sistema, as normas podem ser classifica­
das conforme sejam normas-origens, normas-derivadas
imunizantes, normas-derivadas apenas imunizadas.
Uma classificação deste gênero, contudo, atende apenas
a uma necessidade didática, pois, na vida do sistema,
qualquer norma pode vir a assumir outros caracteres,
desde que a calibração do sistema o permita. Nestes
termos, normas-origens são, por exemplo, as Constitui­
ções (escritas), mas podem ser também costumes ou
ainda atos para-constitucionais, como os atos institu­
cionais brasileiros. Normas-derivadas imunizantes são,
por exemplo, leis, decretos, normas costumeiras. Nor­
mas-derivadas imunizadas são, em geral, as chamadas
normas individuais, que, entretanto, como dissemos, po­
dem assumir, no sistema, o caráter de imunizantes. Na
verdade, uma norma puramente derivada imunizada é,
no limite, uma norma “ morta” no sentido de que, no
desenvolvimento das interações, não tem condições de
imunizar nenhuma outra norma, sequer na forma mar­
ginal de constituir um elo na regularidade de decisões
que, em nome de uma calibração do sistema, que aceita
esta regularidade como critério de outras decisões, esta­
ria contribuindo para uma certa imunização.

3.9 — C a rá te r id eo ló gico dos sistem as n o rm a tiv o s.

Reconhecemos, quanto à imperatividade, que se


trata de uma noção até certo ponto obscura, pois cor­
responde à idéia de regulagem do sistema normativo
150 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

o de uma regulagem que se dá ao nível dos cometi-


mentos, portanto, numa linguagem analógica, às vezes
expressos em fórmulas ritualísticas. Para melhor expli­
cá-la, faz mister, portanto, uma análise desta lingua­
gem na comunicação normativa jurídica. Isto nos
conduz a um tema até agora subentendido e apenas
mencionado aqui e ali, sem maiores esclarecimentos.
Referimo-nos ao aspecto axiológico do discurso norma­
tivo, tanto no que se refere ao seu caráter valorativo,
questão dos valores — , como ideológico — problema da
ideologia. Nossa tese é de que a imperatividade do dis­
curso está ligada à noção de ideologia e de que as regras
de calibração do sistema são, em última análise, expres­
sas numa linguagem ideológica. Esta tese exige uma
reconsideração de algumas noções básicas do conceito
de discussão-contra, que passamos a retomar.
Em nossa exposição da situação comunicativa nor­
mativa, reconhecemos que o discurso normativo se en­
quadra dentro daquilo que chamamos de discurso hete-
rológico ou discussão-contra. Toda discussão-contra é
persuasória, sendo persuasão um sentimento que se
funda em interesses. -Ser persuadido, é deixar-se guiar
por opiniões fundamentadas que servem interesses. In­
teresses, no sentido pragmático, não são entidades, coi­
sas, mas funções intersubjetivas. A dimensão subjetiva
de interesse se revela já no original latino interesse,
estar entre, tomar parte em, estar vinculada.85 Inte­
resses são vinculações intersubjetivas (interpessoais,
intergrupais, intercomunitárias), nas quais se fundam
os procedimentos persuasórios, podendo-se falar em
desinteresses como desvinculações, nas quais se fundam
procedimentos dissuasórios. Tendo em vista o princípio

85 c f. C a r l Friedrich: El Hom bre y el Gobierno. Trad.


Gonzales Casanova. Madrid, 1968, p. 80.
T e o r ia d a N o r m a J u r íd ic a 151

da interação, base da pragmática, interesses surgem


precisamente como disposições a interagir. Numa intera­
ção discursiva dada, eles podem, por isso, ser reforça­
dos, modificados, suprimidos, etc.
Sob o ângulo da pragmática do discurso, interesses
se manifestam através de valores. Não vamos entrar na
discussão em tomo do conceito de valor. Para isso, re­
metemos o leitor a outros trabalhos.86 Assumimos, pois,
que valores são símbolos de preferência para ações in-
determinadamente permanentes, portanto fórmulas
integradoras e sintéticas para a representação de con­
senso social. Manifestando interesses, valores são consi­
derados como entidades, compondo um sistema em si
— mundo dos valores — mas com funções interacio-
nais. Valores, “ valem para” 87 os comportamentos intera­
tivos, em termos de um processo seletivo das informa­
ções em curso. Neste sentido, valores são topoi da argu­
mentação. Estes processos seletivos são de duas ordens.88
Partindo-se de que o discurso é ato locucionário de
alguém (orador) para alguém (ouvinte), o valor pode
ser posto, pelo orador, como invariante e utilizado como
critério para a seleção de comportamentos diversos. Isto
é, a partir do valor posto, são filtradas as informações
contidas na reação do ouvinte. Em razão do valor, com­
portamentos são selecionados. O valor é prisma, projeto
modificador e demarcatório dos comportamentos aos
quais se dirige. Por exemplo, alguém diz: “ este proce­

8« c í. Direito, Retórica e Comunicação, cit.; Die Zw eidi-


mencionalitaet des Rechts. Meisenheim/Glan, 1970.
87 A formulação é de E m i l L a s k : Die Logik der Philoso-
phie und die Kategorienlehre n a edição de suas obras comple­
tas organizadas por Eugen Herrigel — Gesammelte Schriften.
Tübingen, 1923-24, v. II, p . 83 et seq.
88 Cf. N i k l a s L u h m ann : Soziologische Aufklaerung. O p la-
den, 1971, p. 192.
152 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

dimento é mais seguro” (valor segurança). A expressão


“mais seguro” exerce função seletiva, no sentido de
excluir alguns procedimentos, mantendo outros. Em
outras palavras, o valor controla as reações possíveis
do ouvinte, no sentido de que elas venham a se adaptar :
os comportamentos são variáveis; o valor — invariante
— os seleciona. Pode suceder, porém, um processo sele­
tivo inverso. Suponhamos que um beberrão diga: “bom
mesmo é beber cerveja” . Neste caso, o valor “bom” é
posto como variável, sendo invariante o comportamento
ao qual se dirige. Aqui há também um processo seleti­
vo, mas que representa um movimento do comportamen­
to para o valor. Em termos pragmáticos, vamos chamar
a primeira função seletiva de função modificadora, a
segunda de função justificadora. Na primeira, as infor­
mações se adaptam ao valor. Na segunda, o valor se
adapta às informações.
Na prática, nem sempre é fácil distingui-las, mor­
mente porque o discurso heterológico é sujeito a estra­
tégias que visam à persuasão (note-se que estamos fa­
lando de discursos racionais). Isto é, a estratégia pode
“esconder” a real função do valor, dando, por exemplo,
a impressão que estamos modificando, quando, na ver­
dade, estamos justificando. Sobretudo no discurso nor­
mativo, isto pode ser observado com freqüência.
Valores aparecem no discurso normativo, sobretudo
no direito moderno, no nível cometimento. Por exemplo,
na norma: “ Nas localidades em que não houver esta­
belecimento adequado ao recolhimento dos que tenham
direito à prisão especial, o ju iz... poderá autorizar a
prisão do réu ou indiciado na própria residência...” ,
(Lei Federal n.° 5.256, de 6 de abril de 1967, art. l.°),
a decisão implica um cometimento do tipo “ os endere­
çados devem aceitar como humano e socialmente, útil
que algumas pessoas, pelas suas condições, tenham
T solú m N orm a Ju i £dica 163

tratamento condizente", onde humano e útil têm fun­


ção justificadora (os valores são variáveis, que se deter­
minam a partir de situações comportamentais, justifi­
cando-as). Podem, entretanto, aparecer também ao ní-
vel-relato. Por exemplo, normas que prescrevam justa
causa para a demissão, que punam injúria grave, que
apelem ao prudente critério do juiz, que lhe ordenem
decidir o que lhe parecer fusto e razoável, etc., casos em
que, no geral, o valor tem função modificadora (o com­
portamento se adapta ao valor, que é invariante).
A função seletiva do valor mostra-se, no discurso
normativo, como instrumento de controle do comporta­
mento. Trata-se de instrumento persuasório, que visa a
um ouvinte reativo que deve ser conquistado. Assim, na
sua função seletiva justificadora, o discurso normativo
pode expressar (função sintomática) uma informação
“redundante”, partindo do pressuposto de que o ouvinte
já sabe e quer aquilo que se diz, procurando integrar-se
no seu sistema de expectativas, exigindo dele uma con­
cordância com o que já havia concordado, consciente
ou inconscientemente (função de sinal). O discurso
normativo ê, neste caso, fictivamente informativo e ino­
vador, procurando simplesmente atiçar as expectativas
do ouvinte. 89 Faz-se o ouvinte acreditar que a decisão
é nova, mas no fundo parte-se de um universo já aceito.
Como exemplo, temos a valoração do matrimônio cris­
tão (referida justificadoramente a instituições como a
monogamia, a família — estatuto de pais e filhos — , a
herança), da liberdade (referida ao contrato e à sua
força vinculatória), da propriedade (referida à proprie­
dade privada). Em nome destas valorações, fazemos

s» C f. U m b x r t o E c o : A Estrutura Ausente = Introdução


à pesquisa semiológica. Trad. Pérola de Carvalho. Sio Paulo,
1971, p. 72 et seq. e 83 et seq.
154 T m c io S a m p a io F b u u z J b .

aprovar situações de conveniência e certeza (como le­


tras de câmbio, fixação de prazos para fazer notifica­
ções), aceitamos a tradição, argumentamos contra abu­
sos. 90 Do ponto de vista do editor normativo, supomos
que tais valores são articulados (justificadoramente),
porque ele conhece os seus efeitos, dispondo-os, de tal
modo, que provoquem no ouvinte (aquele que tem de
assumir a norma como premissa do seu comportamento)
escolhas determinadas.
Nesse espaço da função justificadora há, porém,
lugar para a função modificadora, que persuade na
medida em que reestrutura ao máximo aquilo que já é
conhecido. O discurso normativo parte, neste caso, de
premissas já adquiridas, mas para questioná-las, subme­
tendo-as ao crivo crítico. Ele expressa (função sistemá­
tica) algo inusitado, sendo, neste sentido, efetivamente
informativo, pressupondo que o ouvinte não sabe nem
quer saber (e/ou) aquilo que se diz, visando a uma
reação positiva (de aceitação) — (função de sinal). Como
a reação pode ser, porém, de contestação (controlada),
o objeto mantém seu caráter de dubium conflitivo. For
isso, em geral, quando o valor tem função modificadora,
há um enriquecimento do universo de expectativa. Como
exemplo, podemos citar casos em que a liberdade é pos­
tulada como valor, provocando alterações nas relações
de renda e sua distribuição, entre o trabalhador e o
empregador, nas possibilidades de acesso ao ensino e à
cultura, etc.
A presença dos valores no discurso normativo, po­
rém, não faz da norma um juízo de valor. Mas também
não nos autoriza a ver a norma como axiologicamente
neutra. Afirmamos, contudo, que, para exercer sua fun­

•o Cf. A r n o l o B r s c h t : Teoria Política. Trad. bras. Rio de


Janeiro» 1965, 2 v., p. 197 et seq.
Tboria dá Norma J u r íd ic a 155

ção na norma, os valores são neutralizados. Neutraliza­


ção é processo pelo qual os valores perdem suas carac­
terísticas dialógicas, na medida em que se interrompe
a sua reflexividade (questão sobre a questão da questão
da questão...). No discurso normativo, este processo
tem um caráter ideológico.
Ideologia é termo equívoco, significando, ora falsa
consciência, ora tomada de posição (filosófica, política,
pessoal, etc.), ora instrumento de análise crítica (teoria
da ideologia), ora instrumento de justificação (progra­
ma de ação). Em nossa concepção, funcionalizamos o
conceito. 91 Admitimo-lo como conceito axiológico, isto é,
a linguagem ideológica é também valorativa. Só que,
enquanto os valores em geral constituem prisma, crité­
rio de avaliação de ações, a valoração ideológica tem por
objeto imediato os próprios valores. Além disso, com
qualidade pragmática diferente. Enquanto os valores
são expressões dialógicas, reflexivas e instáveis, a valo-
ração ideológica é rígida e limitada. Ela atua no sentido
de que a função seletiva do valor no controle da ação
se toma “consciente”. Isto é, a valoração ideológica é
uma metacomunicação que estima as estimativas, va­
lora as próprias valorações, seleciona as seleções ao
“dizer” ao endereçado como este deve vê-las. Neste sen­
tido, porém, é valoração sui generis que, de certo modo,
se desacredita como tal. Pois, sendo uma valoração dos
valores, ela garante o consenso daqueles que precisam
manifestar os seus valores, assegurando-lhes a possibi­
lidade de expressão (os valores se tomam comunicáveis),
mas, ao mesmo tempo, estabelece uma instância, que
neutraliza as valorações, “pervertendo-as”, de certo mo­
do, pois lhes retini a reflexividade. Por exemplo, a liber­

*l Cf. Ndoas Luhmanic: Sozioloçische. . . cit., p. 54 et seq.;


ver também Caju, Friídiuch: op. cit., p. 107 et seq.
156 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

dade é um valor, mas na norma ela é sempre liberdade,


no sentido liberal, conservador, fascista, comunista, etc.
A ideologia atua no discurso normativo como ele­
mento estabilizador. Valorando os próprios valores, ela
os fixa, quer justificando sua função modificadora, quer
modificando sua função justificadora. Com isso, a ideo­
logia mesma exerce a função importantíssima de orga­
nizar os valores, possibilitando a sua sistematização, a
construção de hierarquias o que, em última análise,
significa a possibilidade de integração de interesses e
da sua realização, bem como a possibilidade de sistema­
tização do próprio discurso normativo.
Podemos, assim, entender melhor o sentido que
damos ao termo imperatividade, à imperatividade como
calibração do sistema normativo e como fundamento da
relação meta-complementar autoridade/sujeito, final­
mente, a própria organização do sistema. Dissemos que
uma norma tem imperatividade na medida em que se
lhe garante a possibilidade de impor um comporta­
mento, independentemente do concurso ou da colabo­
ração do endereçado. Isto deve ser entendido, do ângulo
pragmático, como a uma valoração ideológica, portanto,
global, estabilizadora da relação autoridade/sujeito, em
termos de uma confirmação última da meta-comple-
mentaridade, que desconfirma outras possibilidades. Ou,
seja, ela torna rígida a relação estabelecida, dando-lhe
os limites de variação, mas garantindo-a contra even­
tuais desqualificações, mesmo à custa de uma coerência
lógica.
A ideologia, isto é, a avaliação ideológica, através
da qual podemos identificar a qualidade imperatividade
do sistema normativo, sendo meta-comunicativa, cons­
titui, portanto, por assim dizer, uma pauta de segundo
grau, pressupondo a existência das próprias normas.
T k o r ia da N o r m a J u b íd ic a 157

Ela calibra o sistema normativo na medida em que só


por ela é possível determinar, numa situação dada, que
tipo de efetividade deve possuir ele, como um todo, para
que suas normas constituam cadeias válidas e, em con­
seqüência, que tipo de autoridade deve ser assumida
como legítima. Assim, por exemplo, máximas do tipo:
“ ninguém deve permitir-se obter proveito de sua própria
fraude ou tirar vantagens de sua própria transgressão” ,
são inspiradas em considerações que tem seu funda­
mento em avaliação ideológica, como as que afirmam o
primado universal da ordem, da justiça, enquanto valor
social, podendo decidir, em conseqüência, sobre a vali­
dade e efetividade de testamentos, contratos e outros
atos jurídicas, confirmando-lhes, alterando-lhes, supri­
mindo-lhes a força obrigatória. Elas não são dirigidas
diretamente aos relatos das normas, mas aos seus co-
metimentos, tocando, por isso, imediatamente na defi­
nição da relação entre editor e sujeito como meta- com­
plementar.
No sistema normativo podemos, pois, discriminar,
entre outros, os seguintes focos de significação da ava­
liação ideológica, enquanto responsável pela imperati­
vidade vista como regulagem do sistema: a) ela indica
“ propriedade fundamental” , “ núcleo básico” , “ carac­
terística essencial” e se manifesta, por exemplo, pelo
princípio da divisão dos poderes, na inamovibilidade dos
juizes, da indissolubilidade do matrimônio, etc.; b) ela
estabelece, assim, guias ou orientações gerais capazes de
expressar generalizações de redundâncias observadas na
aplicação do direito, como, por exemplo, o princípio da
ausência de responsabilidade sem culpa, o da boa fé, o
da responsabilidade objetiva, etc.; c) ela nos mostra as
fontes geradoras, as causas, as origens, valorando direta­
mente certos juízos de valor reconhecidas, ligando-os,
por exemplo, à “ consciência jurídica popular” , ao “ es­
158 T b k c io S a m p a i o F o u a z J k .

pírito do povo”, etc.; d) ela detemina finalidades, pro­


pósitos, metas do sistema, permitindo o controle da
mens legis e sua interpretação; e) ela responde pela
constituição de premissas, postulados, pontos de partida
da argumentação jurídica, identificando certos requisi­
tos que a ordem jurídica deverá obedecer, como o ca­
ráter geral das normas, a sua irretroatividade, sua
clareza, não-contraditoriedade, a exigência de promulga­
ção, etc., {fornecendo uma determinação das chamadas
regras práticas de conteúdo evidente, regras éticas in­
questionáveis. 92
Este caráter da regulagem dos sistemas normativos,
que faz com que o Direito não se confunda com regu-
laridades empíricas de comportamento, nem com gene­
ralizações destas regularidades, bem como com regras
de natureza lógico-formal, permite, assim, que o sistema
normativo seja concebido como sistema ideológico de
controle de expectativas, isto é, um sistema em que o
agente age de certo modo, porque os demais agentes
estão legitimamente seguros de poder esperar dele tal
comportamento. Um sistema, portanto, de controle de
expectivas comuns e- mútuas, controle este dado, em
última análise, por uma decisão fortalecida ideologica­
mente e que assegura uma relação meta-complementar
entre editor e endereçado. Quando do ângulo pragmá­
tico, falamos em sistema de normas, é preciso que se
tenha sempre em mente que se trata de discursos en­

02 Inspiramo-nos, neste passo, com evidente transposição


de sentido, nas considerações de Carrió sobre diferentes signi­
ficados da expressão “principio Jurídico”. Cf. Principio Jurídi­
cos y Positivismo Jurídico. Buenos Aires, 1970, p. 32 et seq.
Vide, a propósito, o uso do topos “reciprocidade” no Direito
Internacional Público em C e ls o L a t e s : Da Reciprocidade no
Diretto Internacional Econômico — O Convênio do Café de
1976. São Paulo. 1977.
T e o r ia da N o k m a J u r íd ic a 159

quanto interações, em que alguém dà a entender a


outrem alguma coisa, fixando-se, concomitantemente, a
relação entre ambos. Os discursos normativos constituem
sistemas de controle de expectativas no sentido de que
os comunicadores, ao falar, estão num processo cons­
tante de imposição da definição das suas relações. A
peça chave desta definição imposta é a valoração ideo­
lógica, pois ela constitui, não só uma explicação da
razão, porque certas expectativas de comportamento
podem ser esperadas, mas também a razão pela qual
estas expectativas são fundamentadas ou legitimadas.
Quando alguém age conforme as normas, age sabendo
ou acreditando que outros esperam dele esta ação. O
fundamento ou legitimidade da ação, por sua vez, re­
pousa na legitimidade da expectativa dos outros. E esta
legitimidade é dada pela valoração ideológica. 93
Esta última observação nos obriga a enfrentar o
problema da legitimidade dos sistemas normativos. Na
análise que fizemos, ela não se confunde com a noção
de legalidade, ligada antes à questrão da validade, em­
bora mantenha com ela relações importantes. Na ver­
dade, localizamos o problema na noção de imperativi­
dade. Como esta, porém, afeta a validade e a efetivi­
dade dos sistemas, a questão, necessariamente, as inclui.
Tendo este relacionamento em vista, procedamos, então,
ao exame da legitimidade.

»» Cf. A l e 88ah d « o Lkvi: Teoria Generale dei Diritto. Pa-


dova, 1953, p. 30 et seq , onde a ordem jurídica é vista como
sistema de relações Intersubjetivas.
C a p ít u l o 4

A LEGITIMIDADE DOS SISTEMAS


NORMATIVOS

4.1 — A quMlio do ângulo pragmático.

O problema da legitimidade dos sistemas normati­


vos é um dos mais intrincados da literatura jusfilosófica.
Os critérios que se apresentam para a sua discussão são
diversos e divergentes, sendo a questão ainda mais can-
dente, dada a sua relevância para o plano da ação con­
creta. 04
De modo como estamos propondo o tema, a questão
da legitimidade não se confunde nem com a da vali*
dade, nem com a da efetividade, nem mesmo com a
da obrigatoriedade ou imperatividade. Embora, na lite­
ratura jurídica, haja reduções diversas entre estes ter­
mos, para nosso uso eles devem ser considerados distin­
tamente, embora sejam interdependentes. Vimos comq
validade e efetividade se ligam em relação as normas-

04 vide deste ângulo concreto a questão da legitimidade


do sistema politico brasileiro em C e l s o L a t i r : o Sistema Polí­
tico Brasileiro: Estrutura e Processo. São Paulo, 1975, p. 38 et
seq. e 72 et seq., .117 et seq. Para uma discussão teórica abran­
gente da questão da legitimidade sobretudo tendo em vista a
bibliografia mais recente, Cf. Josi E d uar d o F a r i a : Poder e Legi­
timidade. São Paulo, 1978, tese de mestrado apresentada à Fa­
culdade de Direito da USP publicada pela Editora Perspectiva.
182 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

-origem e como estas, por sua vez, estão referidas à impe­


ratividade enquanto manifestada pelas regras de cali­
bração do sistema. Por último, a questão da legitimidade
surge diante do caráter ideológico da própria calibra­
ção jurídica. O problema, no contexto pragmático em
que examinamos a norma jurídica, refere-se não ao
modo como o sistema normativo estabelece a sua im­
peratividade, mas à justificação do próprio modo como
isto é feito. Se a ideologia é o instrumento básico da
calibração, qual o reflexo disto na questão referente
aos chamados fundamentos últimos do Direito?
É claro que, quando falamos em fundamentos, es­
tamos pensando nos quadros da pragmática lingüística,
em justificações do discurso normativo, tema que de­
corre imediatamente do caráter racional do discurso.
Ou, seja, partimos do pressuposto de que o discurso
normativo seja um discurso submetido ao dever de
prova. É dentro destes limites que a questão se propõe.
Neste sentido, um problema prévio se coloca, qual seja,
o de saber se a possibilidade de uma justificação última,
seja ela qual for, é viável em termos de racionalidade
ou se, ao contrário, a questão extrapola este limite,
sendo o problema da legitimidade um problema irreso-
lúvel nos quadros do discurso racional. Discutida esta
questão, deveremos, então, propor o problema da rela­
tividade ou não das justificações últimas e, assim, da
própria legitimidade, questão afeita aos próprios fun­
damentos ideológicos da obrigatoriedade. Por último
coloca-se o problema tipicamente pragmático de como
a legitimidade, em termso de justificação do discurso
normativo, ocorre, momento em que a questão da legi-
midade se transforma em questão da legitimação. Ou,
seja, temos a passagem de uma questão do tipo: que
é a legitimidade? Para uma outra do tipo: como o dis­
curso normativo se legitima?
Tk om a da Norma. JtnUnxcâ. 163

4.2 — Legitimidade • racionalidade do discurao.

Ás chamadas concepções decisionistas, como encon­


tramos, por exemplo, em Karl Schmitt, 96 costumam
fundar a legitimidade das normas em decisões. As pró­
prias normas, concebidas como decisões, só podem ser
fundadas em outras decisões, havendo sempre uma de­
cisão última que estábelece inapelavelmente a legitimi­
dade da série. Concepções decisionistas reconhecem, em
geral, a tese do positivismo lógico de que as questões
da razão prática não são capazes de verdade, ou seja,
de que normas são proposições deônticas às quais não
cabe a alternativa verdadeiro/falso. Mas esta tese as
leva, via-de-regra, a pressupor a irracionalidade dos
juízos (e das correspondentes argumentações) morais e
jurídicos, admitindo um conceito de racionalidade, que
permite apenas a chamada argumentação dedutiva. Ora,
como esta argumentação não produz novas informa­
ções, nem contribui para a determinação dos valores
de verdade dos seus componentes, a argumentação
moral e jurídica tem de se limitar ao teste analí­
tico da consistência de suas premissas de valor ou do
sistema de referências condicionantes das decisões ou
ao teste empírico da realizabilidade dos fins, estabele­
cidos conforme os critérios de valor. A posição decisio-
nista tem, assim, de culminar num relativismo que
afirma o pluralismo dos valores últimos, que não pas­
sam de atos de crença, resignando-se em aceitar a pos­
sibilidade de um rompimento destes pluralismos através
de atos de violência ou de imposição violenta que não
pode ser, racionalmente contraditada, tendo de ser ad­

®» Cf. Carl S c h m i t t : Verfassungslehre. Berlin, 1970; Le~


galidad y Legitimidad. Trad. José Dlaz Garcia. Madrid, 1971.
164 Totcio S a m p a io F w u ia i Jr.

mitida como um fato. Neste sentido, a posição de Kelsen,


de que o direito nazista, embora criticável do ângulo
de boas intenções moralizantes, ainda assim era direito,
é exemplo típico.
Em primeiro lugar, podemos argumentar que esta
concepção de racionalidade é muito estreita e que um
decisionismo que a assume parte, na verdade, de um
solipsismo metódico capaz de afirmar o primado (e a
possibilidade absoluta) do pensamento e da ação mono-
lógicos, caso em que todo discurso é racional na medida
em que expressa a coerência do agente discursivo consigo
mesmo. Esta concepção, possível desde que a dimensão
pragmática seja abstraída, exclui da análise a possibi­
lidade de um sujeito da argumentação e com ela a
possibilidade de uma reflexão sobre as condições de
possibilidade da própria argumentação, 90 a não ser na
forma de uma hierarquia infinita de línguas e meta-
-línguas, onde uma língua é sempre objeto de outra e
uma língua não objetivável é vista, automaticamente,
como um momento de irracionalidade ou de limite na
série regressiva. Áo contrário, a posição pragmática, se
não nos conduz a isto, necessariamente, ao menos, abre
a possibilidade de uma indagação de condições trans­
cendentais do discurso que não culminam na aporia
do regresso ao infinito, mas sim no pressuposto incon-
tornável da impossibilidade de não comunicar no sen­
tido de que quem não participa de uma argumentação
ou não está preparado para participar, não pode deixar
de estar já e sempre dentro de uma situação comuni­
cativa. Alguns autores07 denominam este pressuposto
de “primeiro axioma conjectural da pragmática”, ou­

•• Cf. H abem cas: op. cit., p. 145.


07 Cf. W a t z l a w ic k et allll: op. cit., p. 44.
T e o r ia d a N o r m a J u r í d i c a 165

tros98 o elevam a um a priori (transcendental) comu-


nicacional.
Aceito este princípio, quer na forma de um axioma,
quer na forma de um a priori, parece-nos possível reco­
nhecer um conceito mais amplo de racionalidade que
abarque, não apenas discursos homológicos, mas tam­
bém heterológicos. Isto porque a racionalidade do dis­
curso passa a depender de regras que a situação comu­
nicativa manifesta e exige, em termos de um compro­
misso inerente a toda comunicação. Este compromisso,
como dissemos anteriormente, está expresso na regra
do dever de prova: quem fala, responde pelo que diz.
Neste sentido, falamos em discurso fundamentante ou
racional. Como, porém, a regra do dever de prova se
entende a partir do principio da interação, a exigência
de fundamentos decorre do comportamento crítico do
ouvinte, no sentido de que os passos da fundamentação
são proporcionais às instâncias de controle que o ou­
vinte estabelece. A participação critica do ouvinte é,
em princípio, ilimitada, mas, na prática, ela se exerce
limitadamente, pois a crítica ilimitada leva ou à para­
lisação do discurso ou à inversão do onus próbandi.
Isto explica a possibilidade de estruturas dialógicas,
onde o comportamento questionador do ouvinte é ilimi­
tadamente garantido e, ao mesmo tempo, para que a
relação comunicativa não se rompa, é limitado pelas
regras que asseguram o estabelecimento das ações lin­
güísticas primárias, aquelas que, em virtude de um
diálogo preliminar (que pode ser explícito ou implícito)
foram admitidas como inatacáveis.

08 Cf. K a u . O t t o A f e l : Transformation der Ph.ilosoph.te.


Frankfurt, 1973, v. n, p. 405 et seq. (Das Apriori der Kommu-
nlkatlonsgemelnschaft).
T e k c io S a m p a i o F e r b a z J b .

Em nossa distinção entre discussão-com e discussão-


-contra, tentamos modelar duas situações comunicati­
vas: na primeira, as partes que discutem são homólogas;
na segunda, heterólogas; na primeira, apenas, a busca
da verdade como condição de consenso é possível, na
segunda, o consenso é possível, mas não em razão da
verdade (que ali se torna função do consenso), mas em
razão de uma decisão. Note-se que afirmamos ser o
consenso uma função da decisão e não o contrário, o
que exclui a possibilidade de se legitimar pura e sim­
plesmente a decisão no consenso fático eventualmente
obtido. Isto é, admite-se a possibilidade de decisões legi­
timas que não tenham o consenso fático das partes às
quais se destinam, apoiando-se, neste caso, as decisões
em consensos fictícios, que elas sejam capazes de im­
plementar. Na situação homológica, a possibilidade de
verdade por si só garante uma passagem da estrutura
dialógica para a monológica, pois a discussão-com vive
exatamente desta tentativa de o orador conseguir que
o ouvinte se renda (se convença), caso em que, então,
a estrutura do discurso passa a se determinar a partir
de uma perspectiva privilegiada que exclui outras pos­
sibilidades, a perspectiva verdadeira, donde a consti­
tuição de sistemas axiomáticos ser possível. Na situação
heterológica, ao contrário, a decisão não instaura uma
perspectiva privilegiada desta natureza, mas apenas um
esquema unitário que coordena a pluralidade dos pon­
tos de vista, que continuam a se determinar mutua­
mente, um em oposição ao outro. Neste sentido, dis­
semos que as decisões não eliminam conflitos, mas
apenas constituem indicações para uma discussão super­
veniente. Por isso, a presença de uma estrutura mono­
lógica numa discussão-contra não só exclui um sistema
axiomático, mas também é resultado de um artifício
argumentativo: a homologização artificial de partes ne­
T b o b ia p a N o r m a J u r íd ic a 167

cessariamente heterológicas. Isto afeta, sem dúvida, o


problema da legitimidade das decisões. Enquanto os
discursos verdadeiros relacionam sua legitimidade à
competência comunicativa dos comunicadores, isto é, à
sua qualificação para usar os meios de comprovação
empregados e indicados ou empregàveis e indicáveis na
verificação ou falsificação de ações lingüísticas, os dis­
cursos decisórios fazem desta competência o ponto de
partida das questões que envolvem a sua legitimidade.
Por isso, eles nunca abandonam a estrutura dialógica,
mesmo quando, como é o caso do discurso normativo,
um momento monológico parece predominar, isto é,
enquanto os discursos verdadeiros (homológicos) ascen­
dem de uma estrutura dialógica a uma monológica,
instaurando uma espécie de compulsão tirânica que
força as partes a se renderem, os discursos decisórios
(heterológicos) representam uma constante indagação
que vai da consistência da opinião à consistência da
autoridade dos que emitem opiniões. Neste sentido, é
possível axiomatizar discursos verdadeiros, mas só é
possível dogmatizar discursos decisórios, ou, seja, os
discursos verdadeiros podem ser reduzidos a uma ou a
um corpo de ações lingüísticas não reflexivas, que são
auto-evidentes (axiomas ou postulados ou pressupostas),
enquanto os discursos decisórios repousam em questões
aporéticas, diante das quais qualquer opção é ponto de
partida que pode ser ensinado (dogma, “dokein” ) , mas
não pode eliminar outras possibilidades, repousando sua
força justamente na sua capacidade de sustentar-se no
confronto com outras possibilidades.
A possibilidade da racionalidade axiomática pode ser
aceita quando se trata de um discurso do tipo homo-
lógico, explicando-se, assim, inclusive, o princípio posi­
tivista mencionado, que vê, no regresso ao infinito, um
limite da própria racionalidade. Mas a posição positi­
188 T e r c io S a m p a i o F e r r a z J r .

vista, que aplica às discussões heterológicas o mesmo


critério das homológicas, acaba transformando as pri­
meiras em irracionais. Estas, a nosso ver, repousam
justamente num momento ideológico que exclui do
dever de prova certas asserções, não na forma de pre-
sunções ou axiomas ou postulados, mas de dogmas,
cuja força depende da sua referência às questões apo-
réticas, que são o seu ponto de partida. A diferença
básica entre discursos axiomáticos (homológicos) e dog­
máticos (heterológicos) está, assim, na exclusão, nos
primeiros, de questões aporéticas, como limites da ra­
cionalidade, e na assunção, nos segundos, da aporia
como um ponto de partida do seu pensar racional.
Nestes termos, o limite da racionalidade dos discursos
heterológicos está na sua capacidade de assumir apo-
rias, sendo irracionais os que as excluem ou tentam
eliminá-las.
Importante é fixar que, embora condicionalmente
aporética, a racionalidade do discurso dogmático está
ligada às regras que a própria situação comunicativa
estabelece. São as regras mesmas que explicam a pos­
sibilidade de se pôr ideologicamente algumas ações lin­
güísticas fora de dúvida, eximindo o orador de apre­
sentar fundamentos. Isto em contraposição revela como
discurso irracional aquele em que os partícipes não res­
peitam a regra do dever de prova, introduzindo regras
estranhas à situação comunicativa. Isto acontece, par­
ticularmente, quando as regras do discurso que viabi­
lizam a comunicação se transformam em objeto de si
próprias. Assim, num discurso dogmático podemos es­
tabelecer a regra, segundo o qual certas asserções não
devem ser postas em dúvida, mas não podemos trans­
formar a própria regra num dogma, pois isso eqüivale
a uma recusa do dever de prova, pois desqualifica c
comportamento crítico do ouvinte e instaura uma situa-
TSOKIA DA N o KMA JVKÍMCA

çao comunicativa, cuja possibilidade repousa na impon­


derabilidade do comportamento do orador que “ obedece”
a uma só regra: tudo o que eu digo vale, independen­
temente de qualquer prova; justifica-se por si mesmo.

4.3 — A legitimidade como fundamento último: o


sistema normativo como "jogo sem fim".

Estas considerações sobre o caráter aporético do


/ discurso dogmático e sobre a sua racionalidade hete-
rológica permitem que se veja o sistema normativo
como uma espécie de “ jogo sem fim” .
Um caso conhecido de “ jogo sem fim” é aquele em
que os jogadores combinam inverter o sentido de tudo
que venham dizer. Por exemplo, se se diz: quero um
copo d’água, isto significa: não quero um copo d’água.
Este jogo é sem fim, porque a mensagem: “ vamos parar
de jogar” , não pode ser coerentemente proposta, pois
significaria: “ vamos continuar jogando” . E se alguém
propusesse a última, como meio de interrompê-lo, esta­
ria numa situação paradoxal, pois os demais poderiam
entender que a fórmula: “ vamos continuar jogando” ,
embora devesse ser entendida no sentido oposto, dá con­
tinuidade ao jogo, pois é feita nos seus quadros. Exis­
tem, é verdade, meios (externos ao jogo) para inter­
rompê-lo, isto é, para dizer se o jogo acabou. Por exem­
plo, combinar antes do início do jogo uma fórmula do
tipo: quem quiser parar o jogo deve fazê-lo em outra
língua (hipótese da meta-língua), ou marcar tempo
limitado, depois do qual o jogo se encerra, ou recorrer
a um mediador que decide, de fora, se o jogo terminou.
A questão é saber se estes meios são aplicáveis aos
170 T m cio S a m p a io F x u a z J r .

sistemas normativos. Ora, os sistemas normativos são


tipicamente jogos sem fim que, graças ao principio da
impossibilidade de não comunicar, exigem sempre uma
comunicação que, interrompendo o Jogo anterior, ins­
taura sempre uma relação normativa. Além disso, são
jogos também sem começo, sendo inviável uma hipótese
de uma interação humana sem normas. Sobretudo, por
esta última razão, é difícil aplicar os instrumentos de
interrupção do jogo sem fim, mencionado anteriormen­
te is interações normativas. Estes instrumentos teriam
justamente o caráter de verdadeiros critérios últimos
de legitimidade, capazes de dizer se jogo normativo está
ou não sendo jogado, se d e continua ou se, em com­
paração com o padrão último, terminou. Estes instru­
mentos seriam, por exemplo: a) antes de iniciar o jogo,
combinar uma fórmula metacomunicacional que pu­
sesse às claras o sentido de jogo e os seus limites,
como a hipótese de um “ pacto societário” à la Rousseau;
ou b) combinar de antemão um limite de tempo, o
que, na verdade, seria introduzir no jogo um fator ex­
terno: o tempo conceptualizado, como na hipótese de
reverter o jogo normativo a uma dialética histórica
capaz de lhe determinar as crises e as superações; ou
c) recorrer a um mediador que, mesmo depois de ini­
ciado o jogo, pudesse, a qualquer momento, dizer se o
jogo acabou e como poderia ser retomado, como nas
hipóteses utópicas de se instituir um tribunal interna­
cional ou de se instituir um Estado Universal dotado
de um “ superdireito” . A primeira solução é, talvez, a
T e o k ia da N o r m a J u r íd ic a 171

mais enfatizada no direito moderno, onde a Constitui­


ção de um Estado tende a ser interpretada como uma
“metalinguagem” normativa, capaz de decidir se e
quando os aspectos relacionais dos discursos normati­
vos devem ser mantidos ou modificados. Este seria o
sentido, dentro das Constituições, das regras de modi­
ficação da própria Constituição ou da existência dos
chamados cernes fixos. É preciso, porém, ressaltar que
na comunicação normativa, não existe uma metalin­
guagem que seja exclusivamente empregada para co­
municações sobre a comunicação, o que toma inevitável
a questão reflexiva sobre a legitimidade das próprias
regras de modificação e dos cernes fixos. A segunda
solução é, teoricamente, impraticável, pois, em primeiro
lugar, acarreta um recurso a um fator externo — o
tempo conceptualizado por um terceiro observador que
não deveria estar participando do jogo — , o que poderia
dar uma explicação dos fundamentos da legitimidade,
mas não poderia fundamentá-la enquanto tal. A ter­
ceira possibilidade se assemelha à anterior, com a dife­
rença de que o terceiro a quem se recorre deveria estar
armado de instrumentos eles próprios normativos, o
que, claramente, faz com que o problema se repita em
outro nível.
Exemplo de situação de jogo sem fim, que revela
todas as dificuldades no que tange à legitimidade, po­
demos encontrar nos sistemas normativos dos chama­
dos Estados de Direito, em que existe uma regulagem
que permite a mudança “ ilimitada” de suas normas,
172 T e r c io Sampaio F erraz J r.

respeitados certos procedimentos. A questão de se saber


se uma proposta normativa que elimina a próprie re-
gulagem é ou não admissível nos coloca numa situação
paradoxal, que pode ser vista na dificuldade de certos
Estados em admitir partidos que advoguem soluções
“ totalitárias” . A situação é de jogo-sem-fim, pois negar
esta possibilidade é negar a própria regulagem, mas
admiti-la também o é. No limite — e o problema mo­
derno do terrorismo é extremamente concreto para dar
ao exemplo o sentido de realidade — , o paradoxo ex­
pressa, a nosso ver, de maneira crucial, o sentido ideo­
lógico da imperatividade e analógico da sua linguagem
que é antitética, revelando uma “ lógica” curiosa, um
universo de crises e reconciliações, onde a coerência
parece, às vezes, incoerência, ao mesmo tempo consti­
tuindo uma explicação para o sentido equívoco de
“ ideologia” , que ora significa instrumento crítico, ora
cosmovisão ou instrumento de doutrinação, ora “ falsa
consciência” , ora “ condicionalidade última e incontor-
nável” .
Estas observações conduzem-nos a conclusões pouco
satisfatórias sobre a legitimidade tomada como um pro­
blema de justificação última do discurso normativo. O
seu caráter de jogo sem fim mostra, por analogia, que
qualquer tentativa de exigir padrões últimos, capazes
de decidir inapelavelmente sobre a “ lisura” do jogo,
sobre se o jogo continua sendo jogado ou se está sendo
feito apenas na aparência, exige critérios que não estão
dentro do sistema, mas, de algum modo, fora dele. Ou,
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 173

seja, com respeito ao jogo normativo em si, tais crité­


rios, se por hipótese pertencerem ao jogo como avalia­
ções ideológicas, não conseguem constituir-se naquele
padrão último desejado, mas relativizam-se no interior
do sistema, sendo um critério entre critérios; se, por
hipótese, não pertencerem ao jogo como tal, sendo uma
espécie de metalinguagem em relação a ele, não tem
meios para viabilizarem-se como crité’rios dentro de
quadros do jogo sem fim.

Ora, estas conclusões parecem levar-nos a certo


relativismo quanto à questão de legitimidade, muito
próximo daquele ao qual chegam o decisionismo e o
positivismo. Somos levados a afirmar que, dentro do
jogo, apenas por motivos ideológicos, é possível con­
quistar um padrão de legitimidade que, pelas razões
antes apresentadas, não tem condições de verdade. Sen­
do a ideologia um instrumento metavalorativo, pelo
qual se perverte o sentido dialógico dos valores, cairía­
mos num decisionismo à moda de Luhmann, que reduz
a legitimidade a procedimentos decisórios, pois, para
este autor, bastam as regras de procedimento legal co­
mo premissas legitimadoras; sendo a'função da decisão
obsorver insegurança, para fundar uma decisão, basta
que se contorne a incerteza de qual decisão (material­
mente falando) ocorrerá pela certeza de que uma decisão
(formalmente falando) ocorrerá; a legitimidade estaria,
assim, para este autor, baseada numa certa crença na
legalidade, mas propor fundamentos para esta crença
não teria, então, funcionalmente, nenhum sentido, pois
174 T & k c io Fn u u z Jb .

um dos constituintes da legitimidade estaria justamen­


te na ficção de que esta possibilidade exista, mas não
seja realizada. Isto faz com que Luhmann conceba a
legitimidade das normas como uma üusão funcional­
mente necessária, que não pode ser posta a descoberto,
sob pena de abalar-se a própria crença na legalidade. **
Esta tese decisionista de Luhmann, em última análise,
nos leva ao Direito como forma de comunicação, que
dissimula um cometimento do tipo: eu lhe garanto o
direito de questionar-me, mas não se atreva a fazê-lo.
O Direito toma-se, então, um instrumento de controle
e de manipulação e, pois, forma pervertida de comu­
nicação, pois ilude o endereçado, ao dar-lhe a impressão
de que o discurso obedece às regras situacionais de
fundamentação, quando, na verdade, isto é um engodo,
que esconde as regras reais, introduzidas de fora pelo
editor e por ele dissimuladas, caso em que o sistema
normativo se legitima na medida em qiie esta ilusão
é garantida.

£, entretanto, o caráter aporético do fundamento


último dos discursos normativos que explica, a nosso
ver, a sua peculiar forma de legitimação. Como neles
o aspecto-cometimento e o aspecto-relato são, até certo
pònto, independentes, pode-se entender que a norma
jurídica seja indiferente à verdade, admitindo uma
lógica própria. O que determina o caráter normativo
do discurso é o aspecto-cometimento, de tal modo que

«* N. Luhmann: Legitimation durch Verfahren. Neuwled/


Rhein-Berlln, 1969, p. 233 et seq.
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 175

uma dúvida quanto ao relato — por exemplo, que signi­


fica a expressão “ emprego de violência” no art. 2.°, § 4.°,
do Estatuto das Nações Unidas? — que se resolveria,
eventualmente, ao nível de uma constatação empírica,
sempre esconde um problema de cometimento, caso em
que as interpretações sutis dos juristas do seu “verda­
deiro” sentido revelam disputas ideológicas em que o
conteúdo é reduzido a segundo plano, convertendo-se a
questão em problema de “ ascendência comunicativa” ,
grupai ou pessoal.

Denominemos esta ascendência comunicativa, usan­


do um termo de Bourdieu-Passeron:100 “ poder de vio­
lência simbólica” em termos de um poder capaz de
impor significações como legítimas, dissimulando as
razões de força que estão no fundamento desta força,
agregando sua própria força (simbólica) a essas rela­
ções de força. Tendo em vista o momento monológico
da sua estrutura, todo discurso normativo se revela
uma violência simbólica, enquanto imposição, por um
poder arbitrário, de um tipo de relação comunicativa
que decide do sentido do relato da comunicação. A no­
ção de arbitrário não deve ser confundida com gratuito,
nem a noção de poder com a noção de imposição pela
força. O discurso normativo, neste sentido, não se con­
funde com a sanção que ele prevê, nem resulta de uma
imposição pela força de uma forma de cometimento.
O caráter arbitrário significa, apenas, que a norma

100 C f . P ie r r e B o u r d i e u e J e a n - C l a u d e P a s s e r o n : La Re
produetion. Paris, 1970, p. 18.
176 T jlk c io Sam paio > k re a 2 Ja.

representa um momento de seleção fortalecida do siste­


ma de opções por este ou aquele comportamento, tra­
tando-se de mwfl seleção de seleção ou decisão sobre
possíveis decisões, como vimos anteriormente. Esta no­
ção de arbitrário está intimamente ligada ao caráter
dogmático do discurso normativo. Como este é discurso
decisório, heterológico, está sempre referido a questões
conflitivas que, pela sua reflexividade, dominam o pró­
prio discurso decisório o qual, num outro nível, é tam­
bém questão conflitiva. Isto é, uma norma não apenas
resolve conflitos pondo-lhes um fim, mas é, em relação
a outra norma, questão conflitiva, que exige decisão:
ela se refere a conflitos e é produto de conflitos. Por
isso, a própria fundamentação da autoridade do editor
normativo constitui questão dúbia conflitiva. Como
questões conflitivas não se eliminam como tais, Isto é,
como não é possível encontrar um critério que elimine
a dubiedade da questão, a decisão normativa toma o
caráter de um arbitrário, ou, seja, de uma opção que
contorna a questão, mas não a elimina. Mais ainda:
não só a elimina, como assume a impossibilidade de
eliminação como um pressuposto da sua própria legi­
timidade, ou, seja, é diante de alternativas permanen­
tes que para os partícipes da situação comunicativa
constituem uma situação incômoda, que a decisão nor­
mativa se toma e se fortalece.
Assim, o fundamento da legitimidade é sempre mo­
mento de força, que procura se justificar, estando, pois,
pelo menos implicitamente, referido a uma fundamen-
tabilidade discursiva, isto é, a possibilidade de que a im­
T e o r ia m N o n u J u *1d ic a 177

posição normativa (definição da relação como meta-


-complementar) seja justificável e defensável quando
criticada, devendo-se notar, porém, que esta referência
implícita, por sua vez, não é conseqüência de si própria,
mas de uma cosmovisão garantidora da dominação,
numa palavra, ideologia. Isto explicaria, entre outras
coisas, que o discurso normativo compatibilize a ambi­
güidade entre monólogo e diálogo no sentido de que
a força da autoridade não repouse em meios externos
de coação (não se reduza à sanção), mas, ao mesmo
tempo, reintroduza a força ao nível do relato das nor­
mas. Ele não se funda na força, porque é sempre uso
justificado ideologicamente da força que passa, então,
a fazer parte dele, ao nível do relato, sob forma da
sanção. Com isto se ilumina também a possibilidade,
dentro do sistema, de se distinguir entre o discurso
normativo legítimo e as normas de um bando de la­
drões, cuja violência não encontra a referência implícita
à cosmovisão ideológica, não sendo, pois, discursiva-
mente justificável.
Nestes termos, o poder de violência simbólica, em­
bora atue por dissimulação, tem um limite na própria
situação comunicativa, portanto, nas regras de calibra-
ção do sistema. Sendo uma dissimulação das relações
de força que estão no fundamento da sua força, ele
não pode suprimir as próprias relações de força, pois
é delas que as suas reivindicações dc legitimidade têm
sua força relativa. Isto significa que não há, do ângulo
pragmático, uma “ força intrínséca da idéia do Direito”,
pois são sempre as relações de força que fornecem os
178 Tercio Sampaio Fxxkaz Ju.

limites dentro dos quais pode agir a força de persuasão


do editor normativo no sentido de que todo discurso
normativo pressupõe uma delegação de autoridade;
assim, mesmo uma autoridade que pretenda encontrar
por si mesma o princípio de sua consistência (por
exemplo, um sistema normativo de fundamento caris­
mático, em termos de Weber), só se exerce na medida
em que se apoia sobre uma delegação de autoridade
(ainda que tácita e virtual) anterior. A legitimidade
conhece, assim, instâncias, sem que haja uma instân­
cia superior que decida inapelavelmente da legitimidade
das próprias instâncias, pois o padrão do sistema nor­
mativo, sendo circular, expressa relações entrecruzadas
e concorrentes, onde os editores se apoiam mutuamente
e, mesmo quando se excluem, têm de estar voltados
uns aos outros. Assim, quando falamos em soberania,
soberania da Constituição ou do povo ou de um grupo
elitário ,temos antes uma expressão de reivindicação de
legitimidade que oculta e dissimula as relações de con­
corrência. Em outras palavras, a legitimidade do sistema
normativo é irredutível a uma base ou princípio único
do tipo “ norma fundamental” , tendo de ser encontrada
na própria atividade (atualidade) do sistema, que é
sempre a sua melhor explicação.
O limite da legitimidade de um sistema normativo
é dado assim pelo modo mesmo como o sistema é capaz
de manter-se nos quadros de sua racionalidade aporética.
Se entendemos, pois, a autoridade soberana como aquela
que, na situação comunicativa, é apenas emissor e não
receptor de normas, a possibilidade de tal autoridade.
Teoria da Norma J ukídica 179

na medida em que, toda autoridade é autoridade dele­


gada, repousa numa regra do discurso que coloque
íora de questionamento as normas editadas por ela
e a declare como não submetida às regras de nenhu­
ma autoridade, senão às suas próprias para si própria
estabelecidas. Ora, esta regra assume o caráter aporé-
tico do conceito de soberania: a relação de soberania
só se entende se houver complementaridade, em que
um manda e outro obedece, e soberano é aquele que
“obedece” a si próprio, é emissor e receptor complemen­
tar de si próprio. Para a lógica dos discursos homológi-
cos, este conceito não tem sentido, mas para a lógica dos
discursos heterológicos ele é uma possibilidade de con­
tornar a aporia do regresso ao infinito, viabilizando os
discursos decisórios. O caráter aporético do conceito,
porém, não pode ser eliminado, sob pena de cairmos
numa forma irracional do discurso, como seria o caso
do discurso que pretendesse transformar a regra que
viabiliza a noção de soberania ela própria num dogma.
Isto porque a regra é posta na e pela situação comuni­
cativa heterológica, enquanto repousando em aporias
e a sua transformação em dogma faz com que ela deixe
de viabilizar a soberania para justificá-la. Que isto é e
foi históricamente possível não se exclui, mas os siste­
mas normativos, neste caso, tendem a se tornar cada
vez mais fechados, isolando-se e tendendo a formas
patológicas que ou se autodestroem ou provocam uma
reação violenta fora do contexto comunicacional em que
ocorrem.

O caráter dogmático do discurso normativo revela,


portanto, um modo específico de racionalidade que con­
siste em não eliminar, ao contrário em assumir aporias
como ponto de partida do seu discursar, estabelecendo
180 T e r c io S a m p a io ' F e rr az J r .

premissas que apenas contornam a aporia, as quais se


mantêm na medida em que estão abertas a um con­
fronto com outras possibilidades. Curiosamente, neste
sentido, o discurso normativo, enquanto dogmático, é
um discurso aberto no sentido da viabilidade das deci­
sões, mas que, por isso mesmo, corre o risco de absolu-
tizar-se. Toda vez que ele nega seu momento dialógico
e vê apenas os seus valores mentalizados ideologicamen­
te como os únicos prevalecentes, ele se exime de suas
próprias regras e se toma irracional. Esta irracionali­
dade é o que o faz ilegítimo. A legitimidade do discurso
normativo repousa, pois, não em premissas incontestá­
veis e absolutas, mas na garantia da posição de outras
possibilidades, em confronto com as quais o dogma se
sustenta.
A impossibilidade de se sair dos limites ideológicos
não deve ser entendida, porém, como a afirmação abso­
luta de um relativismo. O que se diz, é que dentro dos
discursos heterológicos ou de dentro deles, estamos sem­
pre referidos a limites ideológicos, embora um discurso
heterológico possa ser, como tal, objeto de um discurso
homológico que terá condições, então de pôr o problema
em termos de verdade. Um juízo homológico, porém,
sobre os fundamentos de um discurso' heterológico não
lhe confere um fundamento verdadeiro. E quando isto é
tentado (e a tentação é sempre grande), assistimos a
uma mudança no próprio sentido homológico daquele
juízo que passa a fazer parte do discurso heterológico
que ele tentou explicar. Nisto está justamente a força
e a impotência da ciência, bem como o dilema de toda
teoria do valor e, mais ainda, de toda tecnocracia. Pois,
como fizemos ver no modelo introdutório, a verdade
não é impossível, mas só é possível numa relação homo-
T e o r ia da N o r m a J u r íd ic a 181

lógica, ora, a discussão-contra é exatamente ausência


de homologia, ainda que não seja sinônimo de irracio­
nalidade no sentido de gratuidade, portanto, de ações
lingüísticas, sem referência num sistema dado. Neste
sentido, se a possibilidade do diálogo é eliminada pela
desconfirmação do ouvinte como partícipe ativo da co­
municação, o discurso normativo se toma irracional e,
em conseqüência, ilegítimo.
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