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III SIMPÓSIO SOBRE A BIODIVERSIDADE DA MATA ATLÂNTICA.

2014 45

Coleções Biológicas: Conceitos básicos, curadoria e gestão,


interface com a biodiversidade e saúde pública

Arion Tulio Aranda1


1
Biólogo, Tecnologista em Saúde Pública da Fiocruz e curador substituto da Coleção de
Simulídeos do IOC – CSIOC, Laboratório de Simulídeos e Oncocercose -
LSO/IOC/Fiocruz.
Email: arion@ioc.fiocruz.br

Introdução

O ato de colecionar é uma das atividades humanas mais transversais a diferentes


culturas em todo o mundo. O objeto colecionado, seja ele uma pedra, moeda, selo, ou uma
concha, é repleto de significados para quem os colige e armazena, não obstante a coleção
em si seja desvestida de uma função primária, ou mesmo de questionável valor utilitário.
Nas culturas ocidentais, em função do estímulo pelo sistema de desenvolvimento
econômico baseado no consumo, há situações onde o colecionismo chega a níveis
definidos como patológicos.
Outros acervos apresentam um determinado nível de organização e relevância, que
são utilizados, ou subsidiam a geração de conhecimento nas mais diversas áreas: Ossos de
animais, vestes indígenas, objetos paleolíticos, pergaminhos antigos, conchas, dentre
outros acervos arqueológicos, antropológicos, ou associados à história natural, são alguns
dos representantes de uma coleção científica. No entanto, nem toda coleção científica é
biológica. As coleções biológicas são aqueles acervos científicos que possuem uma maior
complexidade de matéria orgânica, portanto, sua preservação para longo termo é um
enorme desafio. Como preservação, entende-se o processo de desaceleração ao máximo da
decomposição natural da matéria orgânica, tendo em vista que, para cada tipo de material
serão necessários procedimentos técnicos, conservantes e métodos de preservação
específicos.
A coleção biológica pode ser entendida como um conjunto de organismos, ou
partes destes, preservados fora do ambiente natural, isto é, de seu sítio de coleta. Seus
componentes são preparados e organizados de modo a informar a procedência e
identificação taxonômica de cada um dos espécimes, o que lhe confere status científico.
Tais acervos, muito mais que servirem como repositórios de material biológico à pesquisa
científica, subsidiam atividades de ensino e importante prestação de serviços, além de
apresentarem valioso material de importância histórica. Sumarizando, organizar, qualificar
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e disseminar a informação taxonômica e biogeográfica, além de promover a conservação


ex situ de exemplares da biodiversidade são os maiores objetivos de uma coleção
biológica.

Estrutura organizacional. Para que estes acervos sejam mantidos em condições


adequadas desenvolvendo seu potencial científico e tecnológico, se faz necessário que
todos os seus processos e atividades sejam mapeados, planejados e executados por uma
estrutura organizacional denominada curadoria. Para Ubirajara Martins (in Papavero,
1994) a curadoria diz respeito tanto às atividades de zeladoria da coleção (coleta,
preservação, armazenamento, catalogação e disponibilização do acervo), quanto as
atividades de gestão da coleção, que envolve desde a tomada de decisões técnico-
científicas, até a definição de políticas de manejo, acesso e disponibilização de informação.
Portanto, como responsável pela curadoria é preciso um profissional plenamente
capacitado, profundo conhecedor da taxonomia dos grupos de seres vivos do escopo do
acervo, que seja capaz de garantir que a rotina da coleção contemple a incorporação de
novo material biológico, concomitante a revisão curatorial do acervo pré-existente. O
curador deve atrair colaborações com outros pesquisadores, que promovam a constante
atualização taxonômica, sobretudo quando o acervo for megadiverso. Coordenar as
atividades de curadoria envolve tanto os aspectos técnicos, científicos e metodológicos,
quanto a capacidade de fazer interlocução com seus gestores institucionais, contribuindo
para a correta visibilidade e reconhecimento formal da coleção enquanto patrimônio da
instituição que a alberga, quer seja um museu, universidade, ou instituto de pesquisa.
Além do curador, uma equipe qualificada é fundamental para a manutenção de uma
coleção biológica. No mapeamento de competências da Equipe de Curadoria, é vital que
exista um gerente, que auxilie o curador na parte executiva e acompanhe cada processo,
garantindo seu devido registro e monitoramento, além de contribuir com uma parcela de
seu tempo para o desenvolvimento de pesquisa científica, quer seja sobre o conhecimento
da biodiversidade representada no acervo, ou sobre as metodologias de preservação da
coleção. Não menos importante, devem existir técnicos na equipe para suporte finalístico à
manutenção do acervo, em quantidade diretamente proporcional ao tamanho e
complexidade do mesmo. Além dos técnicos em curadoria é estratégico que existam
responsáveis pela catalogação informatizada da coleção, garantindo a elaboração e
disponibilização de um catálogo virtual para a comunidade científica, o qual poderá ser
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valioso instrumento de novas colaborações científicas, estruturação de projetos e, em


alguns casos, oportunidades de negócios.
Coleções de interesse biotecnológico, ou aptas a agirem como Centro de Recursos
Biológicos, prestando serviço na caracterização molecular de organismos, ou isolamento e
depósito de micro-organismos de importância ambiental, médica, ou industrial, já podem
contar com marcos legais que determinam a repartição de benefícios econômicos, quando
envolvidas em projetos de prospecção tecnológica. Em outros casos envolvendo acesso ao
patrimônio genético, a partir de material biológico consignado às coleções zoológicas, ou
botânicas, estes acervos também podem estar contemplados nos contratos de repartição de
benefícios, estabelecidos com os interessados no desenvolvimento de tecnologia,
utilizando seus biocompostos.

Dinâmica Curatorial. Sobre manejo de coleções biológicas, Simmons e Muñoz-Saba


representaram diversos fatores que interferem na dinâmica curatorial de uma coleção
biológica e que devem ser
observados em cada protocolo,
atividade, processo, ou política
envolvendo estes acervos. Estes
fatores podem ser entendidos como
múltiplos vetores em um gráfico
tridimensional, capaz de gerar
bastante entropia aos acervos. O
fluxo Caos x Ordem é o primeiro
eixo representado, que se relaciona a
aspectos que vão desde as consequências da manipulação do acervo por seus usuários, até
mudanças no racional de sua organização. Todas as novas decisões que impactam na
organização do acervo precisam ser pensadas com bastante critério, tendo em vista que
suas implicações podem ser desastrosas: Uma nova base de dados que não tenha suporte e
confiabilidade certificada, novas etiquetas adquiridas para todo acervo, sem que estejam
em conformidade com as especificações técnicas e necessidades para cada método de
preservação, uma alteração na organização física, sem considerar que componentes
preservados em via seca e úmida precisam estar em espaço físico distinto, etc., são alguns
exemplos de como uma curadoria mal gerida pode ser desastrosa. Outro fluxo que pode
trazer problemas na curadoria do acervo é estabelecido pela relação Crescimento x Perda.
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Há situações onde grande quantidade de material biológico é coligido pela equipe, ou


legado ao acervo ao mesmo tempo, o que pode representar sobreposição de material,
dificuldade de armazenamento, perda de registro, ou registros incompletos, além de uma
tendência de se valorizar o material mais recente, em detrimento do mais antigo. Existe
sempre a possibilidade da equipe de curadoria priorizar conservantes, insumos, recursos
humanos para o material adquirido sob sua gestão e uma parcela do material pregresso
acabar sendo negligenciado, ou perdido. Como terceiro eixo da dinâmica curatorial, é
destacado o fluxo Conservação x Deterioração. Este é, provavelmente, o que representa o
maior desafio para a curadoria de uma coleção biológica. Ainda que o acervo esteja bem
organizado, conservado dentro de padrões internacionais de controle de umidade e
temperatura, etc., o acervo continua a se deteriorar, mesmo que em grau desacelerado.
Ciente disso, o curador precisa estar atento na promoção de uma curadoria para o conjunto
do acervo, de forma sistêmica, independente do fato de que parte do acervo possa ser mais
relevante do que outra.

Gestão de Coleção Biológica. Como vimos, o desafio da equipe de curadoria, sobretudo


do curador, em manter uma coleção biológica não se relaciona apenas às técnicas
pertinentes, inclui também aspectos gerenciais. A coleção biológica cresce, se diversifica
ao longo do tempo e está sujeita a flutuação de recursos e aporte institucional, mesmo no
caso de acervos formalmente reconhecidos. Os gestores institucionais são substituídos, as
vertentes de financiamento estabelecidas pelas agências governamentais são
redirecionadas, enquanto o acervo necessita de recursos regulares para sua manutenção,
expansão e recuperação.
Para concatenar todas essas necessidades, a gestão de coleções biológicas envolve o
planejamento integrado de todas as atividades desempenhadas na coleção, observando-se a
definição de metas e indicadores de acompanhamento, além de: Promover a busca pela
melhoria contínua do acervo; Criar medidas para otimização de recursos financeiros,
humanos, equipamentos, através do desenvolvimento de plataformas multiusuário; Integrar
acervos de mesma natureza em projetos para captação de recursos externos; Desenvolver
políticas institucionais voltadas para o segmento; Buscar interlocução interna com a alta
direção da instituição, sensibilizando-a para as necessidade de reconhecimento de seus
acervos; Buscar interlocução com as diferentes agências governamentais, adequando os
diferentes processos e atividades aos marcos legais; Articular maior sinergia com os
demais segmentos institucionais.
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Este planejamento precisa ser realizado a partir de necessidades imediatas, além da


avaliação de cenários de médio e longo prazo. Para tanto, a coleção precisa realizar um
plano de trabalho anual - com previsão de gastos com material de consumo e outros
insumos, viagens, equipamentos; Definição da capacidade operacional de atendimento a
colaboradores, bem como de novos depósitos e demais serviços desempenhados pelo
acervo; Definição de metas e indicadores de desempenho para cada atividade. É preciso se
ter uma base real do custo da coleção/ano.
Para médio prazo se faz necessário um Planejamento Plurianual, elaborado
coletivamente, como um plano estratégico, contemplando análise de contextos externos e
internos, identificação de oportunidades e dificuldades, para definição de uma matriz
gerencial, com eixos estruturantes, ou macroprojetos. Estes macroprojetos serão
desdobrados em algumas linhas de ação, com suas respectivas metas e indicadores. Este
plano permitirá a definição de prazos e responsáveis para cada atividade, que deverá
contemplar um cronograma de prospecção e elaboração de propostas a editais regulares de
financiamento externo relacionados ao acervo.

Abaixo, são indicados alguns destes editais de interface com projetos envolvendo
coleções biológicas:

Agência Edital Potencial inserção Periodicidade


Infraestrutura, digitalização,
Ação Transversal Bianual
Sistemas de Qualidade e Ambiente
Finep
Infraestrutura (equipamentos e
CT-Infra Anual
obras)
Apoio a Preservação de Infraestrutura e Prestação de
BNDES Bianual
Acervos Serviços
Fundações Apoio à Infraestrutura de
Apoio emergencial a conservação Semestral
de apoio Acervos – APQ4 (Faperj)
Manutenção, promoção e difusão
Petrobrás Petrobrás Cultural Bianual
de acervos culturais
Manutenção e promoção de
Ministério Fundo de defesa de acervos nas áreas de meio
Anual
da Defesa Direitos Difusos ambiente, patrimônio cultural e
outros de interesse coletivo
Secretaria
Manutenção e promoção de
Estadual Preservação de acervos Anual
acervos
de Cultura

Para longo prazo, se faz necessário um documento similar ao plano estratégico de


médio prazo, mas que contemple claramente as expectativas para 10 anos, ou mais,
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alinhadas às diretrizes de sua instituição. Neste documento, é preciso que se identifique a


estrutura organizacional que sustenta o acervo, baseando-se no seguinte fluxo: Para que
existimos (missão) - Onde estamos (análise de situação e resposta) – Onde queremos
chegar, ou o que queremos realizar (visão de futuro).
Outra vertente importante na gestão institucional das coleções biológicas se
relaciona com a gestão da qualidade. A padronização adequada e transversal de todos os
acervos que mantenham material biológico favorece a melhoria contínua de quesitos
envolvendo qualidade, biossegurança e ambiente (QBA). Quando a instituição já possui
um programa da qualidade em execução, fica mais fácil envolver o segmento coleções
biológicas nos cronogramas de capacitações, auditorias internas e avaliação de
conformidades.
Para tanto, primeiramente se faz necessário verificar quais as normas de qualidade
seguidas pela instituição e se essas são adequadas as suas coleções biológicas. As Boas
Práticas de Laboratório – BPL são um bom exemplo de norma a ser seguida, pois abrange
tanto a questão da rastreabilidade, por meio do registro documental, quanto busca pela
melhoria das condições de infraestrutura. Outra norma pertinente é a ISO IEC 17025,
norma para laboratórios de ensaio e calibração, que auxilia nas mesmas questões, bem
como apresenta outros quesitos ligados a questões gerenciais de equipamentos e
procedimentos técnicos, além do mapeamento e definição de competências entre membros
da equipe. Existem ainda ferramentas que a qualidade se apropria e que podem ser
observados na dinâmica laboratorial e gerencial das coleções, como o ciclo PDCA - um
método iterativo de gestão de quatro passos, utilizado para o controle e melhoria contínua
das atividades desenvolvidas, o Programa 5 S para melhoria administrativa, dentre outras.
Seja qual for o sistema da qualidade escolhido, sendo uma iniciativa institucional,
ou da equipe de curadoria, o fundamental é que todos os membros da equipe atuem dentro
de suas premissas, considerando que a qualidade é um processo contínuo, onde possíveis
não conformidades são encontradas, nós críticos identificados, no sentido de se aprimorar
os processos e instalações físicas.
Para tanto algumas metas podem ser sugeridas. A primeira é mapear as
necessidades de cada Coleção Biológica para definição de um diagnóstico de infraestrutura
(espaço físico, equipamentos e mobiliário de guarda) de acordo com as normas de
biossegurança. Outra medida importante é atualizar o levantamento de RH nas coleções
para identificação de necessidades específicas, visando à padronização mínima de recursos
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humanos (Curador, Curador substituto, Tecnologista/pesquisador, Técnico, Gerente da


Qualidade, etc.).
O comprometimento institucional e pessoal com o sistema de QBA certamente
agrega ainda mais valor a estes acervos, contribuindo de forma determinante na melhoria
das condições de preservação e crescimento, tornando-os mais acessíveis, seguros e
confiáveis.

Coleção Biológica: do acervo de trabalho ao patrimônio institucional. Coleções


Biológicas são comumente organizadas a partir de exemplares testemunho das ações de
pesquisa, ou ensino, realizadas por profissionais, ou instituições com essas missões,
inseridas nas mais diversas áreas do conhecimento. Todo o material biológico coletado
segue um fluxo de triagem, identificação, depósito, ou tombamento, o que permite sua
disponibilização para a comunidade científica, promovendo empréstimos, doações,
permutas e o estabelecimento de novos projetos de pesquisa, que acabam por repercutir em
novos depósitos e intercâmbios.
Com os marcos legais relativos a atividade de coleta restringindo a ação de pessoas
sem vínculo institucional e formação científica é cada vez mais raro o surgimento de
coleções particulares. No entanto, nas instituições de pesquisa e ensino, muitos
profissionais se esforçam para coligir, organizar e manter acervos de trabalho, testemunho
de sua atividade profissional na execução de projetos de pesquisa e orientações de alunos.
Este material coletado ao longo de anos se consolida e passa a ter valor científico
agregado, até que passe a atuar como coleção de referência na sua área de aplicação.
No concernente ao entendimento de coleção biológica e patrimônio, para a
arquivologia documento é tudo o que tem caráter probatório e as coleções biológicas são
testemunho das atividades desenvolvidas com seu material biológico. Por serem
mencionadas em trabalhos técnicos, laudos, artigos científicos, teses, etc., comprovam a
realização destas mesmas atividades e permitem sua rastreabilidade. Portanto, o material
biológico de uma coleção pode ser considerado um bem patrimonial arquivístico. E seu
conjunto – a Coleção Biológica – patrimônio científico e cultural.
Não raras vezes, acervos com este histórico de geração e difusão de ciência passam
a ter tamanha dimensão e importância, que deveriam ter sua existência reconhecida
formalmente por suas instituições de origem, o que, infelizmente, não é uma regra. Em
muitos casos a aposentadoria do pesquisador responsável, ou mudança dos atores na gestão
institucional podem representar uma descontinuidade destes acervos, ou mesmo sua perda.
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Exatamente por isso, a comunidade científica precisa estar atenta e exigir sua manutenção
e salvaguarda pelas instituições, principalmente quando há alguma forma de registro,
catálogo, ou banco de dados disponível. Para tanto, existe amparo legal que trata o material
biológico como patrimônio científico e cultural. O artigo 216 da Constituição Federal
define:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto ... nos quais se incluem... III - as
criações científicas, artísticas e tecnológicas... §1º - O Poder Público, com a colaboração
da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação”.
No caso de gestores, ou representantes legais de uma instituição que
negligenciarem, ou ameaçarem alienar acervos dessa natureza, há a seguinte implicação no
Código Penal (artigo 165):
“Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade
competente em virtude de valor artístico, científico, arqueológico ou histórico”),
que prevê pena de detenção de seis meses a dois anos, além de multa.
No Ministério da Saúde, através da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), as coleções
biológicas atuam na pesquisa básica, experimentação biológica, prospecção
biotecnológica, produção de insumos e bioprodutos de aplicação em saúde pública. No
conjunto, os biotérios, biotecas, centros de experimentação animal e as coleções biológicas
representam os acervos biológicos institucionais (Aranda & Maia-Herzog, 2011).

Para a Fiocruz, consideram-se “coleções biológicas institucionais aquelas que


prestam serviços de preservação, depósito, fornecimento, identificação e capacitação,
utilizando técnicas e processos que certificam a qualidade do material biológico e que
estejam de acordo com as leis, regulamentos e políticas nacionais” (Manual de
Organização das Coleções Biológicas da Fiocruz).
O reconhecimento institucional de suas coleções biológicas pela Fiocruz foi
formalizado em 2011, através da portaria 526 e desde então o conjunto de seus acervos
passa a ter status de patrimônio inalienável, com definição de recursos específicos para sua
manutenção essencial.
A condição de coleção biológica reconhecida institucionalmente repercute na
visibilidade externa destes acervos e chancela a elaboração de projetos integrados visando
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a melhoria de sua infraestrutura, harmonização de procedimentos e otimização de recursos


comuns às coleções de mesma natureza.

Interface com a biodiversidade e saúde pública. O Brasil é o maior país da região


neotropical e seu território abrange alguns dos biomas mais biodiversos do planeta. As
coleções biológicas são valiosos instrumentos para registro, documentação e consulta para
se confirmar hipóteses de identificação taxonômica e distribuição geográfica desta
biodiversidade.
Em 2005, Lewinsohn e Prado estimaram que a biodiversidade brasileira abrigava
entre 170 mil e 210 mil espécies biológicas conhecidas - cerca de 10% da biota mundial- e
projetaram que o número total da biota brasileira corresponda a cerca de 1,8 milhões de
espécies. Considerando a alta taxa de perda ambiental, estes números demonstram o
gigantesco desafio para os pesquisadores sobre a premência em se compreender a
taxonomia, a biogeografia e a bionomia destes organismos, com vistas a sua conservação e
possibilidade de uso sustentável da biodiversidade.

A correlação entre dados de ocorrência de espécies nas coleções biológicas, seu


padrão de distribuição ao longo do tempo, associados a diversas técnicas de modelagem de
nicho ecológico, permitem a compreensão da potencial dispersão espacial destas espécies
(Elith et al., 2006). Estas análises permitem a confecção de mapas de distribuição,
definição de rotas de dispersão, além de outras ferramentas que podem subsidiar a tomada
de decisão sobre o manejo e preservação de espécies ameaçadas, estabelecimento de novas
unidades de conservação e medidas para recuperação de áreas impactadas, corredores
florestais, ou proteção de áreas de cobertura vegetal associada a recursos hídricos.
No concernente a saúde pública, fica evidente a importância das coleções
biológicas na área de vigilância epidemiológica, principalmente para doenças parasitárias,
através da correlação de informações de coleções de bactérias, fungos, protozoários e
helmintos – agentes etiológicos de doenças - e metadados de coleções zoológicas -
correspondentes a seus vetores, reservatórios, ou hospedeiros. Estes dados são vitais para a
estruturação de políticas públicas em saúde, bem como para monitoramento e controle da
dispersão destes males em território nacional. O avanço de doenças negligenciadas para
áreas urbanas, como a leishmaniose, por exemplo, foi possível em função de não se
considerar estes aspectos em tempo hábil.
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No caso da específico da Fiocruz, por ser uma instituição de saúde pública e uma
das principais detentoras de coleções microbiológicas e zoológicas de importância médica
no Brasil, é estratégico que se consiga integrar as informações destes acervos, muitos dos
quais se encontram em laboratórios, que já pertencem a rede de serviços de referência do
Ministério da Saúde, prestando valioso serviço na identificação de vetores e isolamento e
detecção de agentes etiológicos em amostras clínicas, hospitalares, ou ambientais. Os
recursos necessários para se promover essa integração, em termos de estruturação de
bancos digitais e ferramentas de automação de dados são mínimos, se comparados ao custo
de se perder a oportunidade em gerar soluções para a saúde, a partir de informações que já
estão disponíveis na instituição.
As coleções biológicas de importância médica possuem ainda um potencial
biotecnológico em franca exploração, relacionado desde a produção de fármacos e vacinas,
a kits de diagnóstico rápido de doenças, dentre outros bioprodutos em saúde.

Desafios Futuros. Mesmo com o cenário favorável de valorização das Coleções


Biológicas - enquanto locais de salvaguarda do patrimônio genético da biodiversidade
brasileira - a institucionalização de coleções ligadas às universidades, a fixação de recursos
humanos, a limitação de espaço físico e a modernização de sua infraestrutura são os
grandes desafios do segmento para as próximas décadas. É necessário que as diversas
instituições que mantém coleções biológicas criem canais de articulação no sentido de
buscarem alternativas conjuntas, que permitam o enfrentamento desta realidade. Neste
mesmo racional, devem procurar representação nas diferentes esferas governamentais e
interlocução com as agências regulatórias que interferem nas atividades da pesquisa e
intercâmbio de material biológico.
Outra questão que carece de destaque é relativa a fixação de taxonomistas. Embora
os cursos de graduação e pós-graduação em ciências biológicas estejam formando um
número crescente de profissionais, a demanda por especialistas em vários grupos de seres
vivos continua reprimida, associada a dificuldade de se contratar essa força de trabalho
para certificação de material zoológico, botânico, ou microbiológico nas coleções afins. Os
editais de fomento com este viés são escassos e quando surgem, a exemplo da chamada
pública para estruturação do Sistema Brasileiro de Informação sobre Biodiversidade,
possuem valores de bolsas pouco atrativos e direcionados para a informatização de dados e
não geração de informação. Para minimizar este problema, algumas alternativas podem ser
indicadas, como a estruturação de plataformas multiusuários de caracterização molecular,
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utilizando análises moleculares seguindo a metodologia do DNA barcoding, espectrometria


de massa, ou espectroscopia de infravermelho. Estas análises têm se mostrado promissoras
para diversos grupos de seres vivos, embora representem um alto custo de investimento em
equipamentos e insumos, não obstante cada vez mais propostas nestas áreas sejam
contempladas pelas agências financiadoras. Ainda assim, necessitam de material
certificado por especialistas para análises comparativas. Outra opção para o incremento da
certificação/atualização taxonômica dos acervos pode ser posta em prática através da
utilização de expertise externa. Projetos direcionados para a manutenção de especialistas
de outras instituições, com o provisionamento de recursos para diárias, passagens e
insumos, podem representar um impacto significativo na qualificação taxonômica da
coleção, a baixo custo por exemplar, ou lote de exemplares. A atividade, sendo bem
planejada, pode trazer outros benefícios, como a capacitação de um ou mais membros da
equipe na taxonomia do grupo, que sejam disponibilizados para auxiliar o pesquisador
durante sua estadia.
O compartilhamento de dados ecológicos e taxonômicos, o desenvolvimento de
metodologias de caracterização molecular e de novos métodos de preservação de material
biológico em diversas coleções biológicas brasileiras, seu impacto positivo no
desenvolvimento de bioprodutos nas áreas de saúde, ambiente e indústria, fortalecem o
segmento no país, evidenciando a demanda reprimida de estruturação de uma política
nacional voltada para as coleções biológicas, com vistas a sua manutenção e ampliação,
tornando-as mais seguras e eficientes na geração de conhecimento, prestação de serviços
especializados e salvaguarda de material biológico. A expectativa sobre esta política é no
sentido de que seja promotora de ações de preservação deste patrimônio, estabelecendo
ambiente de articulação multinstitucional, padronizando condições adequadas de
infraestrutura, garantindo recursos para a pesquisa e amparo legal para a realização de sua
missão. Atualmente, diversas agências regulatórias impõe uma série de normas e
exigências para uma mesma atividade, prejudicando o intercâmbio científico e o
desenvolvimento de pesquisas envolvendo o material biológico presente nas coleções.
A descoberta de biocompostos a partir de material biológico consignado às
coleções biológicas, ou que sejam depositados para certificação de sua identidade
taxonômica, indicam uma janela de oportunidades para a exploração sustentável da
biodiversidade brasileira, considerando que uma parcela da renda proveniente deste
patrimônio natural seja revertida na conservação ambiental, na pesquisa científica e na
modernização da infraestrutura destes valiosos acervos. A relevância das coleções
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biológicas na preservação ex situ do patrimônio genético e sua certificação geram impactos


cada vez maiores na bioeconomia, inserindo estes acervos científicos num patamar
estratégico para o desenvolvimento biotecnológico brasileiro, bem como para o
conhecimento e conservação de sua biodiversidade.

Literatura Citada
Aranda, A. T. & Herzog, M. M., Curadoria Integrada à gestão de Coleções Zoológicas: A
Coleção de Simulídeos do IOC como estudo de caso. In: Aranda, Arion Tulio,
Herzog, Marilza Maia & Thiengo, Silvana Carvalho (Org.) I Seminário sobre
Gestão e Curadoria de Coleções Zoológicas da Fiocruz, 2011, Rio de Janeiro.
Corbã Artes Gráficas LTDA, v. 1. p. 22-24. 2011.
Elith, J., graham, C. H. et al., Novel methods improve prediction of species distributions
from occurrence data. Ecogeography, 29: 129-151,2006.
Lewinsohn, T. M., Prado, P. I., Biodiversidade brasileira: síntese do estado atual do
conhecimento. São Paulo:Editora Contexto, 2002.
Papavero, N. (Org.). Fundamentos práticos de taxonomia zoológica: coleções, bibliografia,
nomenclatura. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. 1994.
Simons, J. E. & Saba, Y. M., Cuidado, manejo y conservación de las colecciones
biológicas, Universidad Nacional de Colombia, 288pp. 2005.

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