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A cidade ausente : uma análise do


50 discurso de Ricardo Piglia

Nombre del Autor: Shirley de Souza Gomes Carreira


mitchell@centroin.com.br
Palabras clave: metaficción - relato - información

Minicurrículo: La autora es Máster en Lingüística Aplicada (UFRJ) y Doctora en Literatura Comparada


(UFRJ). Profesora de Lengua Inglesa hace veintiún anos, actualmente coordina el sector de Lengua
Inglesa de la UNIGRANRIO. Su línea de investigación es la metaficción historiográfica y de
manipulación política y social de la información. Sus últimos trabajos tienen por objeto el enfoque
metaficcional en la obra de John Fowles, José Saramago y Ricardo Piglia.
Resumo: O ato de narrar tem sido o modo pelo qual o homem tenta conciliar a realidade e a fantasia e também a
estratégia principal por ele utilizada para formar opinião, refletir sobre o presente e o passado, e manipular a
informação. Este artigo trata dos caminhos trilhados pelo homem em sua tentativa de domar o poder da linguagem.
Resumen: El acto del narrar ha sido el modo por el cual el hombre tenta conciliar la realidad y la fantasía y también
es la estrategia principal por el utilizada para formar la opinión y reflexionar sobrer el presente y el pasado y
manipular la información. Este artículo trata de los caminos pisados por el hombre en su tentativa de dominar la
potencia del lenguaje.

O esvanecimento da cidade em A cidade ausente é uma metonímia da transcendência do ato

de narrar e a atividade da máquina de Macedonio- uma máquina multiplicadora de relatos- encontra

consonância nas palavras de Umberto Eco (1984,p.20), ao afirmar que todos os romances contam

uma estória que já foi contada. Nesta comunicação, pretendemos fazer uma reflexão sobre o modo

pelo qual o romance desenvolve uma teoria sobre o processo do narrar, cumprindo, assim, a

proposta pós-moderna de problematizar os conceitos de falso e verdadeiro, de real e ficcional.

Em Informe de Brodie, Jorge Luís Borges (1972, p.6) afirma que “ a linguagem é um sonho

dirigido”. No universo ficcional de Borges , o sonho pode ser

compreendido como o locus nebuloso do encontro entre a realidade e a ficção.


A cidade ausente, de Ricardo Piglia, trata desse encontro, em que a obra literária diz “ a

verdade fingindo mentir”, pois, segundo Russo, uma das personagens do romance, “ um relato não

é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo numa escala puramente verbal. Uma réplica

da vida, caso a vida fosse feita só de palavras”(p. 114).

Retomando a concepção de Borges de que a verdade nasce com a linguagem e é, portanto,

uma construção humana, Piglia cria personagens que transitam em um universo ficcional em que os

limites do tempo, espaço e individualidade são imprecisos. O romance gira em torno de uma

máquina reprodutora de relatos, cujas transmissões foram captadas por Junior, o protagonista, que

trabalha na redação de um jornal. Graças às transmissões, Junior conseguia publicar as matérias

antes que os fatos se produzissem.

O primeiro capítulo introduz a personagem e deixa claro para o leitor que as transmissões da

máquina constituem uma ameaça ao establishment. A informação programada e manipulada, as

realidades artificialmente construídas e os dados suprimidos constituem matéria importante na

tessitura de um romance que prima pelo discurso intertextual.

Em A cidade ausente, predomina a figura de Macedonio Fernández e as estórias que surgiram

sobre as lacunas e incertezas que existem em sua biografia e bibliografia. O seu passado anarquista

e utópico e sua busca de uma maneira de superar a morte tornam-se o pilar sobre o qual o romance

foi construído.

Depois da morte da sua mulher, Macedonio passou a ter uma vida errante e escassamente

documentada. Seus textos, segundo depoimentos de Borges, foram abandonados nos diversos locais

em que morou e, ao invés de fixar suas idéias sob a forma escrita, ele procurava disseminá-las

através de longas conversas. Essa sua característica estabelece um vínculo com os relatos da

máquina.

No capítulo intitulado “Pássaros mecânicos”, o encontro da vida com a ficção é insinuado por

uma das personagens, Ana, quando esta observa que quando Elena Obieta adoeceu “Macedonio

decidiu que a salvaria” . No romance, a derrota da morte se dá através da construção de uma


máquina que, tendo armazenado os dados que havia no cérebro de Elena, sua memória e seu

conhecimento, passa a gerar relatos virtuais. Um deles, “ Os nódulos brancos”, é uma reelaboração

do relato “Cirurgia psíquica da extirpação”, de Macedonio.

O intertexto Museu do romance da eterna, de Macedonio Fernández, proporciona a idéia da

mulher-máquina que Piglia desenvolve em A cidade ausente.

Piglia faz referência explícita à importância de Macedonio Fernández na ficção de Borges:

Faz quinze anos que caiu o Muro de Berlim e a única coisa que resta é a máquina e a
memória da máquina e não tem outra coisa(...) Por isso querem desativá-la. Primeiro,
quando perceberam que não podiam ignorá-la, quando ficaram sabendo que até
mesmo os contos de Borges vinham da máquina de Macedonio... ACA, 119

A máquina de Macedonio funciona como uma metonímia do ato de narrar. Em sua

característica de multiplicar e transformar os relatos que produz, ela reflete o caráter

intertextual da literatura e a concepção de que toda obra traz em si as marcas de outras

obras, de que todo texto é uma tessitura de outros textos.

Para Borges, a originalidade não existe. O que confere a uma obra de arte algum tipo de

individualidade é a forma pela qual as estórias e histórias do homem são recontadas. Nesse

sentido, a atividade da máquina é um simulacro da atividade do escritor.

No relato intitulado “A menina”, é contada a história de Laura, uma garota que,

repentinamente, começa a ter atitudes estranhas, concebendo o mundo como uma projeção de si

mesma. Ela apresentava uma constante preocupação com o funcionamento das máquinas e

associava as luzes acesas às falas dos indivíduos. Subitamente, foi perdendo a capacidade de falar

normalmente, adotando uma linguagem funcional associada à sua experiência emocional, até que

perdeu totalmente a noção de referência, reduzindo a comunicação a sons.

No intuito de ajudá-la, seu pai começou a contar-lhe relatos breves. Como não dava sinais de

percepção do significado, o pai passou a contar a mesma estória em versões variadas.


Esperava que as frases entrassem na memória de sua filha como blocos de sentido. Por
isso resolveu contar sempre a mesma história e variara as versões. Desse modo o
enredo era um modelo único do mundo e as frases se transformavam em modulações
de uma experiência possível. ACA, 47

Segundo o narrador, a menina era a anti-Scheherazade que à noite recebia, de seu pai, o

relato do anel contado uma e mil vezes. Com a estrutura circular da estória, seu vocabulário foi

expandido e permitiu que voltasse a se comunicar com seu pai, até que um dia, pela primeira vez,

a menina fugiu da estória e pediu-lhe que lhe comprasse um anel de ouro.

Com a leitura dos outros relatos, aos poucos, o leitor percebe que a máquina começara,

indiretamente, a falar de si mesma, a contar sua história, ainda que de forma desordenada. Cabe,

neste ponto, relembrar que, no primeiro capítulo, Emílio Renzi, personagem constante em todos os

romances de Piglia, ao comentar as fitas de Perón trazidas clandestinamente, diz:

(...) nós escutávamos as fitas quando os fatos já eram outros e tudo parecia defasado
e fora de lugar. Eu lembro disso, disse Renzi, toda vez que alguém fala nas gravações
da máquina. Seria melhor se o relato saísse direto, o narrador deve sempre estar
presente. ACA,11

No relato intitulado “Os nódulos brancos” , tem-se a versão do ponto de vista de Elena, que

está convencida de já ter morrido e de que o homem que a amava tinha incorporado o seu cérebro

a uma máquina. A clínica em que Elena encontra o Dr. Arana reflete uma “cidade interna”, em que

“cada um enxergava o que queria ver”.

O esvanecimento da cidade, que dá título ao romance, é emblemático, pois a Buenos

Aires inserida na diegese, cede lugar às múltiplas cidades internas que o imaginário do homem é

capaz de construir. A cidade que desaparece tipifica a transcendência do ato de narrar.

Junior, perdido em meio às gravações dos relatos da máquina tenta localizá-la e descobrir por

que querem desativá-la. Para tanto, procura a informação “nos cemitérios de notícias, nos bares do

Bajo onde vendiam documentos falsos, relatos apócrifos e primeiras edições das primeiras histórias”.

Naomi Lindstrom(1995,p.1) nos faz lembrar que os casos de falsificação de dados, a falsificação e

o roubo da informação, têm sido uma preocupação constante de Ricardo Piglia em seus ensaios e
entrevistas, estando também presentes na sua narrativa. A cidade ausente lida explicitamente com

a manipulação da informação:

Procurava se orientar nessa trama fraturada, entender porque queriam desativá-la.


Alguma coisa estava fora de controle. Uma série de dados inesperados tinha se
infiltrado, como se os arquivos estivessem abertos. Não revelava segredos, porque era
capaz de sequer conhecê-los, mas dava sinais de querer dizer algo diferente daquilo
que todos esperavam. Tinham começado a aparecer dados sobre o Museu e sobre a
construção. Estava dizendo algo sobre o seu próprio estado. Não contava a sua história,
mas permitia que fosse reconstruída. Por isso mesmo iam tirá-la de circulação. Vazava
dados reais...ACA,72

A condição de Junior nesse panorama de realidades virtuais pode ser exemplificada pela

passagem a seguir:

Entrava e saia dos relatos, circulava pela cidade, procurava orientar-se nessa trama de
esperas e de protelações da qual já não podia sair. Era difícil acreditar no que estava
vendo, mas encontrava efeitos na realidade. Parecia uma rede, como um mapa do
metrô. Viajou de um lado para o outro, cruzando as histórias, e deslocando-se em vários
registros ao mesmo tempo.ACA,72-3

A personagem se define como o ponto de inflexão, de onde a percepção da fratura e da

heterogeneidade possibilita a compreensão de múltiplas concepções da verdade.

A máquina não havia sido concebida da maneira que se apresentava. Ela havia sido construída como

uma máquina de traduzir, que um dia ao invés de traduzir um relato o expandiu e modificou até que

ficasse irreconhecível. Seu criador, no romance, diz que o seu segredo é que aprende à medida que

narra, lembra do que já fez e talvez acabe por construir uma trama comum. Bastava que a

programassem com um conjunto variável de núcleos narrativos e deixá-la trabalhar. Era uma

máquina muito útil, uma vez que os velhos estavam morrendo.

Em uma entrevista sobre esculturas de Boccardo inspiradas em A cidade ausente e A invenção

de Morel, Piglia afirma que esses dois romances tratam do modo como se pode perpetuar o que já

não existe, ou melhor, sobre o que fazer com as imagens e vozes perdidas que persistem como

fantasmas nos vazios da memória.


Se muitos vêem nessa afirmação um teor político, com base no relato que alude claramente

ao período da ditadura, não se pode deixar de observar que, primordialmente, ela alude ao poder

da tradição, ao poder da palavra transmitida.

O relato intitulado “A ilha” trata das relações entre a linguagem e a memória. A narração

implica memória, pois lembrar-se é contar a si mesmo uma história, ainda que em fragmentos, em

estilhaços dispersos, mas é preciso uma história. A “Ilha do Tigre” , descrita por Ricardo Piglia, é um

modelo em miniatura das grandes metrópoles transnacionais, povoada de ingleses, irlandeses,

russos e de gente que chegou de todas as partes do mundo, perseguidos pelas autoridades, exilados

políticos, jurados de morte. Eles se esconderam nas margens da ilha e foram

construindo cidades, estradas e explorando a terra. Nessa região, todas as línguas se misturam. A

única fonte histórica que foi registrada na ilha é o Finnegans wake que, para a maioria, era

considerado um livro sagrado. Isto porque podia ser lido por qualquer indivíduo, qualquer que fosse

a sua língua.

A linguagem na ilha se transformava conforme ciclos descontínuos, era instável e essa

instabilidade definia a vida na ilha. Os habitantes falavam e entendiam imediatamente a nova língua,

mas esqueciam a anterior. Os ritmos eram variáveis, às vezes um idioma permanecia durante

semanas, às vezes apenas por um dia. Durante anos, lingüistas trabalharam num projeto para

compor um dicionário que incorporasse as variantes futuras das palavras conhecidas e para definir

um léxico bilíngüe que permitisse comparar uma língua com outra, mas a tradução era impossível,

pois somente o uso definia o sentido. Todas as tentativas de construir uma língua artificial

fracassaram devido a experiência temporal de estrutura e porque não conseguiam imaginar um

sistema de signos sem mutações. Definiram, porém, um sistema de signo cuja notação se

transformava como o tempo, ou seja, criaram uma linguagem que mostrava como seria o mundo,

mas que não permitia nomeá-lo.

A perda da língua transforma os habitantes da ilha numa representação da identidade perdida,


mas ainda visível nas escrituras “sagradas” do livro, que é comparado ao primeiro livro da Bíblia, e
nos relatos que servem para mapear as nações imaginadas. A posse da língua constitui a legitimação
do sentimento de pertencimento e a pátria conceitualmente concebida é substituída pelos resíduos
de vida fragmentados e multiplicados pelos relatos.

O espaço da “ilha” é um espaço fronteiriço de reinscrição subjetiva, lugar de contradições,


onde coexistem as diferenças.

A tentativa de paralisar a máquina leva a uma situação ímpar, na qual, como atesta o narrador,
Junior “tinha a sensação de que todo mundo concordava em sonhar o mesmo sonho e que cada um
vivia confinado em uma realidade diferente”(p.73). A informação era controlada . O único sinal de
atividade da máquina eram as luzes da cidade, acesas mesmo durante o dia.

Os relatos dão conta do poder da linguagem e Junior percebe que há uma mensagem
implícita que enlaça todos os relatos pois a máquina cria duplos virtuais.

Valendo-se dessa imagem do sujeito cindido, Ricardo Piglia constrói várias personagens,
sempre duplas, transitando nas margens da história. Elena, por exemplo, sai dos sonhos e acorda
em outra realidade, tem alucinações. A fala de Elena explicita a redução da experiência do sujeito a
puros significantes materiais, diz ela: “Não me interessa a cura, só quero trocar de alucinações”
(ACA:59). Prossegue a personagem: “Este aqui é um lugar livre de lembranças – disse ela. – Todos
aqui fingem que são outros. Os espiões estão treinados para negar a sua identidade e usar uma
memória alheia” (ACA:62). A máquina é capaz de fazer circular a história que outros querem calar.

O romance contém indícios, cuidadosamente espalhados, de que Junior é parte de um relato

maior da máquina, sem que se perceba inserido nele.

Segundo Piglia, seu romance filia-se a uma tradição da literatura argentina que trata não do
modo pelo qual o real aparece na ficção, mas do modo como a ficção aparece na realidade. O caráter
metaficcional do seu romance não pode ser ignorado.

O último capítulo invade o cérebro da máquina, que, como a Molly do Ulysses de James Joyce,
perde-se em um monólogo sem fim, posto que foi concebida para ser eterna. E até na eternidade
da máquina o encontro entre a realidade e a ficção é perceptível, pois enquanto existir a raça humana
o ato de narrar há de subsistir e o homem continuará a contar a sua história.

Referências bibliográficas:

BORGES, J. L. O informe de Brodie. Trad. Hermílo Borba Filho. Porto Alegre: Globo,
1976.

ECO, Umberto. Postscript to The name of the rose. New York: Harcourt Brace Jovanovich,
1984.
FERRARI, Oswaldo. Diálogos. Barcelona: Seix Barral,1992, p.37-43.

LINDSTROM, Naomi. La historia literaria de los 1920 y 130 en La ciudad ausente de


Ricardo Piglia. http://www.lanic.utexas.edu/project/lasa95/lindstrom.html

KOZAK, Claudia. Escribir la ciudad: graffitis para el insomnio de una ciudad ausente. In:
COUTINHO, Eduardo org. Cânones & Contextos: 5º Congresso Abralic- Anais. Rio de
Janeiro: ABRALIC, 1998, p.21-7.

PIGLIA, Ricardo. Installations. http://www.boccardo-carlos.com.ar/english/installations.html

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