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consonância nas palavras de Umberto Eco (1984,p.20), ao afirmar que todos os romances contam
uma estória que já foi contada. Nesta comunicação, pretendemos fazer uma reflexão sobre o modo
pelo qual o romance desenvolve uma teoria sobre o processo do narrar, cumprindo, assim, a
Em Informe de Brodie, Jorge Luís Borges (1972, p.6) afirma que “ a linguagem é um sonho
verdade fingindo mentir”, pois, segundo Russo, uma das personagens do romance, “ um relato não
é outra coisa senão a reprodução da ordem do mundo numa escala puramente verbal. Uma réplica
uma construção humana, Piglia cria personagens que transitam em um universo ficcional em que os
limites do tempo, espaço e individualidade são imprecisos. O romance gira em torno de uma
máquina reprodutora de relatos, cujas transmissões foram captadas por Junior, o protagonista, que
O primeiro capítulo introduz a personagem e deixa claro para o leitor que as transmissões da
sobre as lacunas e incertezas que existem em sua biografia e bibliografia. O seu passado anarquista
e utópico e sua busca de uma maneira de superar a morte tornam-se o pilar sobre o qual o romance
foi construído.
Depois da morte da sua mulher, Macedonio passou a ter uma vida errante e escassamente
documentada. Seus textos, segundo depoimentos de Borges, foram abandonados nos diversos locais
em que morou e, ao invés de fixar suas idéias sob a forma escrita, ele procurava disseminá-las
através de longas conversas. Essa sua característica estabelece um vínculo com os relatos da
máquina.
No capítulo intitulado “Pássaros mecânicos”, o encontro da vida com a ficção é insinuado por
uma das personagens, Ana, quando esta observa que quando Elena Obieta adoeceu “Macedonio
conhecimento, passa a gerar relatos virtuais. Um deles, “ Os nódulos brancos”, é uma reelaboração
Faz quinze anos que caiu o Muro de Berlim e a única coisa que resta é a máquina e a
memória da máquina e não tem outra coisa(...) Por isso querem desativá-la. Primeiro,
quando perceberam que não podiam ignorá-la, quando ficaram sabendo que até
mesmo os contos de Borges vinham da máquina de Macedonio... ACA, 119
Para Borges, a originalidade não existe. O que confere a uma obra de arte algum tipo de
individualidade é a forma pela qual as estórias e histórias do homem são recontadas. Nesse
repentinamente, começa a ter atitudes estranhas, concebendo o mundo como uma projeção de si
mesma. Ela apresentava uma constante preocupação com o funcionamento das máquinas e
associava as luzes acesas às falas dos indivíduos. Subitamente, foi perdendo a capacidade de falar
normalmente, adotando uma linguagem funcional associada à sua experiência emocional, até que
No intuito de ajudá-la, seu pai começou a contar-lhe relatos breves. Como não dava sinais de
Segundo o narrador, a menina era a anti-Scheherazade que à noite recebia, de seu pai, o
relato do anel contado uma e mil vezes. Com a estrutura circular da estória, seu vocabulário foi
expandido e permitiu que voltasse a se comunicar com seu pai, até que um dia, pela primeira vez,
Com a leitura dos outros relatos, aos poucos, o leitor percebe que a máquina começara,
indiretamente, a falar de si mesma, a contar sua história, ainda que de forma desordenada. Cabe,
neste ponto, relembrar que, no primeiro capítulo, Emílio Renzi, personagem constante em todos os
(...) nós escutávamos as fitas quando os fatos já eram outros e tudo parecia defasado
e fora de lugar. Eu lembro disso, disse Renzi, toda vez que alguém fala nas gravações
da máquina. Seria melhor se o relato saísse direto, o narrador deve sempre estar
presente. ACA,11
No relato intitulado “Os nódulos brancos” , tem-se a versão do ponto de vista de Elena, que
está convencida de já ter morrido e de que o homem que a amava tinha incorporado o seu cérebro
a uma máquina. A clínica em que Elena encontra o Dr. Arana reflete uma “cidade interna”, em que
Aires inserida na diegese, cede lugar às múltiplas cidades internas que o imaginário do homem é
Junior, perdido em meio às gravações dos relatos da máquina tenta localizá-la e descobrir por
que querem desativá-la. Para tanto, procura a informação “nos cemitérios de notícias, nos bares do
Bajo onde vendiam documentos falsos, relatos apócrifos e primeiras edições das primeiras histórias”.
Naomi Lindstrom(1995,p.1) nos faz lembrar que os casos de falsificação de dados, a falsificação e
o roubo da informação, têm sido uma preocupação constante de Ricardo Piglia em seus ensaios e
entrevistas, estando também presentes na sua narrativa. A cidade ausente lida explicitamente com
a manipulação da informação:
A condição de Junior nesse panorama de realidades virtuais pode ser exemplificada pela
passagem a seguir:
Entrava e saia dos relatos, circulava pela cidade, procurava orientar-se nessa trama de
esperas e de protelações da qual já não podia sair. Era difícil acreditar no que estava
vendo, mas encontrava efeitos na realidade. Parecia uma rede, como um mapa do
metrô. Viajou de um lado para o outro, cruzando as histórias, e deslocando-se em vários
registros ao mesmo tempo.ACA,72-3
A máquina não havia sido concebida da maneira que se apresentava. Ela havia sido construída como
uma máquina de traduzir, que um dia ao invés de traduzir um relato o expandiu e modificou até que
ficasse irreconhecível. Seu criador, no romance, diz que o seu segredo é que aprende à medida que
narra, lembra do que já fez e talvez acabe por construir uma trama comum. Bastava que a
programassem com um conjunto variável de núcleos narrativos e deixá-la trabalhar. Era uma
de Morel, Piglia afirma que esses dois romances tratam do modo como se pode perpetuar o que já
não existe, ou melhor, sobre o que fazer com as imagens e vozes perdidas que persistem como
ao período da ditadura, não se pode deixar de observar que, primordialmente, ela alude ao poder
O relato intitulado “A ilha” trata das relações entre a linguagem e a memória. A narração
implica memória, pois lembrar-se é contar a si mesmo uma história, ainda que em fragmentos, em
estilhaços dispersos, mas é preciso uma história. A “Ilha do Tigre” , descrita por Ricardo Piglia, é um
russos e de gente que chegou de todas as partes do mundo, perseguidos pelas autoridades, exilados
construindo cidades, estradas e explorando a terra. Nessa região, todas as línguas se misturam. A
única fonte histórica que foi registrada na ilha é o Finnegans wake que, para a maioria, era
considerado um livro sagrado. Isto porque podia ser lido por qualquer indivíduo, qualquer que fosse
a sua língua.
instabilidade definia a vida na ilha. Os habitantes falavam e entendiam imediatamente a nova língua,
mas esqueciam a anterior. Os ritmos eram variáveis, às vezes um idioma permanecia durante
semanas, às vezes apenas por um dia. Durante anos, lingüistas trabalharam num projeto para
compor um dicionário que incorporasse as variantes futuras das palavras conhecidas e para definir
um léxico bilíngüe que permitisse comparar uma língua com outra, mas a tradução era impossível,
pois somente o uso definia o sentido. Todas as tentativas de construir uma língua artificial
sistema de signos sem mutações. Definiram, porém, um sistema de signo cuja notação se
transformava como o tempo, ou seja, criaram uma linguagem que mostrava como seria o mundo,
A tentativa de paralisar a máquina leva a uma situação ímpar, na qual, como atesta o narrador,
Junior “tinha a sensação de que todo mundo concordava em sonhar o mesmo sonho e que cada um
vivia confinado em uma realidade diferente”(p.73). A informação era controlada . O único sinal de
atividade da máquina eram as luzes da cidade, acesas mesmo durante o dia.
Os relatos dão conta do poder da linguagem e Junior percebe que há uma mensagem
implícita que enlaça todos os relatos pois a máquina cria duplos virtuais.
Valendo-se dessa imagem do sujeito cindido, Ricardo Piglia constrói várias personagens,
sempre duplas, transitando nas margens da história. Elena, por exemplo, sai dos sonhos e acorda
em outra realidade, tem alucinações. A fala de Elena explicita a redução da experiência do sujeito a
puros significantes materiais, diz ela: “Não me interessa a cura, só quero trocar de alucinações”
(ACA:59). Prossegue a personagem: “Este aqui é um lugar livre de lembranças – disse ela. – Todos
aqui fingem que são outros. Os espiões estão treinados para negar a sua identidade e usar uma
memória alheia” (ACA:62). A máquina é capaz de fazer circular a história que outros querem calar.
Segundo Piglia, seu romance filia-se a uma tradição da literatura argentina que trata não do
modo pelo qual o real aparece na ficção, mas do modo como a ficção aparece na realidade. O caráter
metaficcional do seu romance não pode ser ignorado.
O último capítulo invade o cérebro da máquina, que, como a Molly do Ulysses de James Joyce,
perde-se em um monólogo sem fim, posto que foi concebida para ser eterna. E até na eternidade
da máquina o encontro entre a realidade e a ficção é perceptível, pois enquanto existir a raça humana
o ato de narrar há de subsistir e o homem continuará a contar a sua história.
Referências bibliográficas:
BORGES, J. L. O informe de Brodie. Trad. Hermílo Borba Filho. Porto Alegre: Globo,
1976.
ECO, Umberto. Postscript to The name of the rose. New York: Harcourt Brace Jovanovich,
1984.
FERRARI, Oswaldo. Diálogos. Barcelona: Seix Barral,1992, p.37-43.
KOZAK, Claudia. Escribir la ciudad: graffitis para el insomnio de una ciudad ausente. In:
COUTINHO, Eduardo org. Cânones & Contextos: 5º Congresso Abralic- Anais. Rio de
Janeiro: ABRALIC, 1998, p.21-7.