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Luiz Gama,
contemptor de nossas falsas elites
Fábio Konder Comparato
D e sociólogos
muito tempo, historiadores
urante
consideraram ter havi-
do um claro contraste entre a escravi-
dão de africanos nos Estados Unidos e
no Brasil. Enquanto lá os escravos fo-
ram tratados cruelmente, aqui os cativos
receberam tratamento benigno, senão
francamente protetor.
A meu ver, na origem dessa suposta
contradição de atitudes, encontramos
uma diferença radical de mentalidades.
Os americanos não costumam dissimular
suas convicções, e dizem francamente o
que pensam. Nós, ao contrário, timbra-
mos em proclamar nossos bons senti-
mentos em relação aos pobres e infelizes. FERREIRA, L F. Com a palavra, Luiz
Gama – Poema, artigos, cartas, máximas.
Sob esse aspecto, encarnamos à per-
São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
feição o poeta fingidor de Fernando Pes-
soa. Fingimos tão completamente, que
chegamos por fim a nos convencer de
nossa “índole reconhecidamente com- vendido como escravo pelo próprio pai
passiva e humanitária”, como afirmou quando tinha dez anos, tendo aprendi-
o autor do único tratado jurídico sobre do a ler e escrever somente aos dezessete
a escravidão brasileira.1 Aliás, na Expo- anos, tornou-se um intelectual apurado
sição Internacional de Paris de 1867, o e o maior advogado de escravos que este
nosso governo informava, oficialmente, país conheceu. Praticamente sozinho,
que “os escravos são tratados com hu- logrou livrar do cativeiro ilegal mais de
manidade e são em geral bem alojados quinhentos negros – fato sem preceden-
e alimentados... O seu trabalho é hoje tes na história mundial da advocacia.
moderado... ao entardecer e às noites Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais
eles repousam, praticam a religião ou vá- do que qualquer abolicionista brasileiro,
rios divertimentos”.2 não hesitou em desmascarar pela im-
Nesse contexto nacional de perma- prensa – o grande instrumento de con-
nente autoelogio coletivo, a personali- trapoder da época – a falsidade de nossas
dade de Luiz Gama, retratada neste livro pretensas elites.
muito bem organizado pela professora Gama escolheu como principais alvos
Lígia Fonseca Ferreira, aparece como re- de seus ataques desmascaradores os dois
almente excepcional. O menino negro, grupos que mais se distinguiram no tris-
Notas
1 Dr. Agostinho Marques Perdigão Ma-
lheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio
Histórico-Jurídico-Social. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1866. t.II,
p.61 e 114.
2 Citado por Celia Maria Marinho de Fábio Konder Comparato é professor emé-
Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos rito da Faculdade de Direito da Universi-
e Brasil, uma história comparada (sécu- dade de São Paulo, doutor Honoris Causa
lo XIX). São Paulo: Annablume, 2003. da Universidade de Coimbra.
p.63. @ – fkcomparato@gmail.com
3 Em relação aos primeiros, leia-se, nas O texto foi publicado originalmente como
p.95 e ss., o artigo “Apontamentos Bio- prefácio à obra resenhada.