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Estudos Avançados [ISSN 0103-4014]

Estud. av. vol.26 no.75 São Paulo May/Aug. 2012

Luiz Gama,
contemptor de nossas falsas elites
Fábio Konder Comparato

D e sociólogos
muito tempo, historiadores
urante
consideraram ter havi-
do um claro contraste entre a escravi-
dão de africanos nos Estados Unidos e
no Brasil. Enquanto lá os escravos fo-
ram tratados cruelmente, aqui os cativos
receberam tratamento benigno, senão
francamente protetor.
A meu ver, na origem dessa suposta
contradição de atitudes, encontramos
uma diferença radical de mentalidades.
Os americanos não costumam dissimular
suas convicções, e dizem francamente o
que pensam. Nós, ao contrário, timbra-
mos em proclamar nossos bons senti-
mentos em relação aos pobres e infelizes. FERREIRA, L F. Com a palavra, Luiz
Gama – Poema, artigos, cartas, máximas.
Sob esse aspecto, encarnamos à per-
São Paulo: Imprensa Oficial, 2011.
feição o poeta fingidor de Fernando Pes-
soa. Fingimos tão completamente, que
chegamos por fim a nos convencer de
nossa “índole reconhecidamente com- vendido como escravo pelo próprio pai
passiva e humanitária”, como afirmou quando tinha dez anos, tendo aprendi-
o autor do único tratado jurídico sobre do a ler e escrever somente aos dezessete
a escravidão brasileira.1 Aliás, na Expo- anos, tornou-se um intelectual apurado
sição Internacional de Paris de 1867, o e o maior advogado de escravos que este
nosso governo informava, oficialmente, país conheceu. Praticamente sozinho,
que “os escravos são tratados com hu- logrou livrar do cativeiro ilegal mais de
manidade e são em geral bem alojados quinhentos negros – fato sem preceden-
e alimentados... O seu trabalho é hoje tes na história mundial da advocacia.
moderado... ao entardecer e às noites Mas, sobretudo, Luiz Gama, muito mais
eles repousam, praticam a religião ou vá- do que qualquer abolicionista brasileiro,
rios divertimentos”.2 não hesitou em desmascarar pela im-
Nesse contexto nacional de perma- prensa – o grande instrumento de con-
nente autoelogio coletivo, a personali- trapoder da época – a falsidade de nossas
dade de Luiz Gama, retratada neste livro pretensas elites.
muito bem organizado pela professora Gama escolheu como principais alvos
Lígia Fonseca Ferreira, aparece como re- de seus ataques desmascaradores os dois
almente excepcional. O menino negro, grupos que mais se distinguiram no tris-

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te papel de legitimar a escravidão negra: o nome da liberdade”, escreveu ele em
os clérigos e os magistrados.3 carta pastoral. “Nós, porém, mostremos
Já no século XVI, os jesuítas de An- que por ela, quando justa, como em nos-
gola distinguiram-se na coordenação do so caso, sabemos fazer algum sacrifício,
tráfico negreiro de Angola para o Bra- principalmente sendo este compensado
sil. À ordem de cessação desse comércio por bem de ordem mais elevada, sem
de carne humana, baixada pelo Geral da exclusão dos bens materiais e pecuniá-
Companhia em 1590, os padres de An- rios.” No Pará, na mesma ocasião, o bis-
gola responderam que “não é escanda- po d. Antonio de Macedo Costa dirigiu
loso de pagar as nossas dívidas em escra- enérgico protesto contra aquela Lei ao
vos, pois eles são a moeda corrente no presidente da província, arguindo que se
país, assim como o ouro e a prata o são tratava de violação dos direitos da Igreja
na Europa e o açúcar no Brasil”.4 por uma medida “irregular e anticanô-
No curso dos séculos seguintes, vá- nica”.7
rias ordens religiosas passaram a possuir Quanto aos magistrados, as providên-
grandes fazendas, onde acumulavam mi- cias de justiça que deles podiam esperar
lhares de escravos. Em algumas delas, os cativos eram praticamente nulas; não
instituíram-se criatórios de escravos. O só pelo velho costume da corrupção,
norte-americano Thomas Ewbank, que mas também por serem eles, quase sem
visitou o Brasil em meados do século exceção, proprietários de escravos.
XIX, informou que num “grande esta- A corrupção geral da Justiça no Brasil
belecimento” que a ordem beneditina foi atestada pela maior parte dos viajan-
possuía na Ilha do Governador, no Rio, tes estrangeiros.
“numerosas gerações de rapazes e moças No relato de sua viagem ao Rio de
de cor são lá criadas até terem idade su- Janeiro e a Minas Gerais, Saint-Hilaire
ficiente para serem enviadas ao trabalho observou: “Em um país no qual uma
nas propriedades do interior”.5 longa escravidão fez, por assim dizer,
Na verdade, os escravos eram tam- da corrupção uma espécie de hábito, os
bém numerosos dentro dos próprios magistrados, libertos de qualquer espé-
conventos de frades e freiras. Em mea- cie de vigilância, podem impunemente
dos do século XVIII, no Convento do ceder às tentações”.8
Desterro da Ordem das Suplicantes, em No mesmo sentido, John Luccock:
Salvador, 75 religiosas eram servidas por “Na realidade parece ser de regra que no
400 escravas.6 Brasil toda a Justiça seja comprada. Esse
Fato é que a Igreja Católica não ma- sentimento se acha por tal forma arrai-
nifestou, até as vésperas do 13 de maio, gado nos costumes e na maneira geral
o menor empenho pela abolição da es- de pensar, que talvez ninguém o con-
cravatura. sidere danoso (a tort); por outro lado,
Ao ser promulgada a Lei do Ven- protestar contra a prática de semelhante
tre Livre em 1871, D. Pedro Maria de máxima pareceria não somente ridícu-
Lacerda, bispo do Rio de Janeiro, em lo, como serviria apenas para provocar a
linguagem retorcida, fez questão de se completa ruína do queixoso”.9
pronunciar contra a abolição total e ime- E Charles Darwin, por ocasião da
diata. “Os revolucionários que profanem estadia do Beagle em nosso país: “Não

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importa o tamanho das acusações que gráficos”, publicado no Radical Paulis-
possam existir contra um homem de tano, onde é descrita sarcasticamente a
posses, é seguro que em pouco tempo pessoa de um bispo diocesano de São
ele estará livre. Todos aqui podem ser Paulo. Quanto aos magistrados, leiam-
-se todos os artigos de jornal reproduzi-
subornados”.10
dos nas p.101 a 129.
Compreende-se, assim, o grau de
4 Cf. História da Igreja no Brasil. Petró-
destemor e pertinácia, demonstrados
polis: Vozes, 1979. t.2, p.200.
por Luiz Gama, quando se opôs sem
meias palavras, em mais de uma ocasião, 5 Thomas Ewbank, Vida no Brasil. São
Paulo: Editora da Universidade de São
a juízes pusilânimes e servis diante de se-
Paulo; Livraria Itatiaia, 1976. p.102.
nhores de escravos.11
6 Cf. Pedro Calmon, História social do
Ao assim proceder, seguiu ele as li-
Brasil. São Paulo: Companhia Editora
ções de Cícero no De Oratore, sobre a
Nacional, s. d. 1º t., p.74.
conduta e as qualidades intrínsecas da-
7 História da Igreja no Brasil. Petrópolis:
quele que pleiteia no foro ou na tribu-
Vozes, 1980. t.II/2, p.277-8.
na política. Em primeiro lugar, o que
o grande romano chamou de acumen, 8 Auguste de Saint-Hilaire, Viagem pelas
províncias do Rio de Janeiro e Minas Ge-
vale dizer a argúcia em argumentar. Em
rais. São Paulo: Editora da Universida-
segundo lugar, a diligentia, ou seja, o
de de São Paulo; Livraria Itatiaia, 1975.
zelo e aplicação constantes na defesa das p.157.
causas confiadas ao seu patrocínio. Além
9 Notas sobre o Rio de Janeiro e partes me-
disso, o probare, ou destreza em provar
ridionais do Brasil, São Paulo: Editora
a verdade, aliado ao conciliare, ou arte da Universidade de São Paulo; Livraria
de atrair simpatia. Por fim, o movere, isto Itatiaia, 1975. p.321.
é, a capacidade de suscitar a emoção no
10 O Diário do Beagle. Editora UFPR, 2006.
espírito dos ouvintes. p.100.
Vamos, portanto, ler os libelos conti-
11 Leia-se o artigo “O Novo Alexandre”,
dos neste livro, como se estivéssemos a às p.121 e ss.
ouvir o maior defensor de escravos que
este país jamais conheceu.

Notas
1 Dr. Agostinho Marques Perdigão Ma-
lheiro, A Escravidão no Brasil – Ensaio
Histórico-Jurídico-Social. Rio de Janei-
ro: Typographia Nacional, 1866. t.II,
p.61 e 114.
2 Citado por Celia Maria Marinho de Fábio Konder Comparato é professor emé-
Azevedo, Abolicionismo: Estados Unidos rito da Faculdade de Direito da Universi-
e Brasil, uma história comparada (sécu- dade de São Paulo, doutor Honoris Causa
lo XIX). São Paulo: Annablume, 2003. da Universidade de Coimbra.
p.63. @ – fkcomparato@gmail.com
3 Em relação aos primeiros, leia-se, nas O texto foi publicado originalmente como
p.95 e ss., o artigo “Apontamentos Bio- prefácio à obra resenhada.

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Ilustração Acervo France Presse

Lavagem de diamantes, Minas Gerais, 1812. (John Mawe, London, 1812).

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