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Arisca

Ana Júlia Carvalheiro 1

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Carlos Rafael de Longo Souza ME — Editora Medita
Rua Maria Madalena Selim Zanchetta, 22
Vila São João - Barão Geraldo - Campinas-SP
13084-577
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www.editoramedita.com.br

coleção Galo Branco - Proac

editor responsável | Tiago Fabris Rendelli


preparação dos originais | Ana Elisa de Arruda Penteado
projeto gráfico e diagramação | Wladimir Vaz
assessoria de impressa | Maura Voltarelli
Fotografia | Pedro Spagnol

www.colecaogalobranco.wordpress.com

© copyright Ana Júlia Carvalheiro.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Carvalheiro, Ana Júlia, 1994-


C331a Arisca / Ana Júlia Carvalheiro - Campinas, SP: Editora Medita,
2015. 72 p. (Coleção Galo Branco).

ISBN 978-85-65093-36-1

1. Poesia brasileira. 2. Poesia contemporânea.I. Carvalheiro, Ana Júlia,


1994- II. Título. III. Série.

CDD: B869.1
CDU: 82-1

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Arisca

Ana Júlia Carvalheiro

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prefácio por guilherme agostini

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fábulas sem moral

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eu, a fada e a jaguatirica

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incompletas

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notas da autora

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prefácio

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Após o sinal diga o seu nome
e a cidade de onde está falando

Ana, ontem sonhei com você e depois fiquei horas na cama


sem saber das possibilidades. Li seus textos novamente,
gosto de muitos e sempre fico em dúvida sobre quem disse
que a vida é feita de surpresas. O passarinho me contou
um segredo, “piu-piu”, e eu podia jurar que ouvi histórias
doidas de quem passa a vida dormindo. Estava com sono
ainda, os olhos inchados, meio destrambelhados.
Dia desses tinha ido na sua casa, não fiz, mas até poderia
espionar: revirar a mobília, olhar embaixo do sofá, escon-
der por safadeza um de seus trequinhos preferidos. E em
silêncio no dia seguinte, dar uma de coitado, tapar a cara no
lençol emprestado e lamentar com você as horas perdidas.
O jogo só para testar os limites, além do texto, ver o rosto
e a literatura cotidiana e ocasional que precipita nas emo-
ções. Encontrar os vestígios de seu texto no rosto lavado
de manhã.
Sobre a intimidade compartilhada, entre tantas. Ainda
duas que já passaram, um cômodo pequeno em cima da
mesa e uma chance completa de revisão, derrubo novida-
des sobre uma empilhadeira. Sempre me interessaram as
viagens, e por viagem anoto tudo aquilo que nos move: as
corridas que cruzam de calçada, o sorriso largo cheio de
dentes, que vai de um canto ao outro da boca, sem sair do

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lugar, as estridentes paixonites anunciadas em trotes inte-
rurbanos de celular. É possível acreditar nos seus contos de
amor? É possível levar em conta as safadezas das histórias
de amor? E se apaixonar por obscenidades, uma aventura e
mudar de mundo?
“Tudo passará”, li num texto sobre antiguidade, e o bom
de lidar com antiquários é que sempre nos armamos com
jargões. Era uma frase inscrita no anel do Rei Salomão, na
parte que fica voltada pra pele, que permanece oclusa, en-
costa, e que rima com casquinha de limão. Talvez seja esse
o que uso para conversar.
Reli os textos, tomei provas, decorei partes “ouvi dizer, foi
passarinho velho que me contou”. Seja como for, a es-
perança é a última que morre, não sei vocês, mas sempre
soube que a poesia é a primeira. E poesia é termo vago
pra danar, prima da danação, irmã da opulência e viúva da
disciplina. Lembro um dia que lhe enviei um edital nas
mensagens de Facebook, um edital de prosa, de poesia, ou
qualquer desses congêneres que nunca sabemos definir, e
um dos itens dizia: “contos que promovam ao bem-estar
e valores morais” e em seguida você respondeu “dois mil
conto para o mais moral de todos”; depois, recebi a respos-
ta final com o arquivo em doc. do texto “busão”. E eu ri em
casa, bem alto, um riso bem estridente de euforia.
Aquilo que resta, provavelmente, são os encontros e esses
pequenos mistérios que permanecem nas linhas e nas pa-
lavras desencontradas, nos dias comuns, nas histórias sem
história, e nos desmotivos das coisas. Afinal, o que quer a
escrita que não ser dos outros? A mentira tal como a ver-
dade são jogadas corriqueiras, o mesmo nódulo de nós di-

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ferentes “não fechar os olhos/ enquanto eu não abrir os meus”.
A revolução aqui é não é de mudança, a revolução pode ser um
passo sobre si mesmo, e uma contrarrevolução que se aproveita
dos choques internos para tirar um filé de nós mesmos e dar
vazão a um grande açougue de feira, desses que vendem pra
gente do bairro, só pode ser sem querer.
Tomo Casa Branca como sendo um anel, que botamos no
dedo e que emperra, difícil de tirar, só arranca lambuzando a
mão de margarina barata de supermercado. A cidade com o
nome dito pra dentro, sem fôlego, toda toda, com flores cla-
ras e melequentas, cavalos e éguas, amores e sabores, um deus
nos acuda tremendo. Aí, me pergunto se Casa Branca também
passará, me pergunto se daqui a uns anos vão sobrar os textos
que li, reli e ainda leio, se os pássaros, os busões, os hipotóta-
mos e um zoológico ficarão ali engaiolados na cabeça junto
com o tesã... ops, não quero parecer indelicado. E quase no
fim descubro que as circunstâncias são outras e não vale a pena
quebrar a cuca com tantas perguntas: mas então, Ana? Você
foi mesmo dormir ou foi somente um recado para dizer que
não estava lá? Ia sugerir pros seus textos, nota de rodapé: não é
flor que se cheire. Oras, e não seria exatamente o oposto? Um
narigão fungando pétala por pétala, espirrando com tanto pó-
len entalado, anotar o odor. No fundo, eu não saberia dizer isso
aquilo e espero que um dia alguém te leia e te pegue no pulo
do gato e me responda tudo isso que me coça, ah como coça!

— Guilherme Agostini

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Arisca

Crianças tocam um pop demoníaco.


Ou serão apenas ideias sintéticas?
Que te fazem sempre pertencer
a uma infância mal resolvida.
Sempre a ideia de crianças sorrindo,
não.
Minhas crianças, como eu
dão risada quando dormem
bizarro e bonito.

Tenho uma pressa urgente


de ser da minha terra
de pertencer ao tempo
de esfregar minha lágrima no chão.

Pulsam os meus fios cheios de sangue


Agressividade do bem
Bom comportamento deveria ser exterminado do
vocabulário
Ingenuamente sábios

Desço do pedestal de cadeira de praia,


falo a você sobre meus planos.
Não posso enlouquecer
prometo ir à praia uma vez por mês.

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Vou penteando meus enfeites
distraída, mas cuidando para não retrair minhas emoções.
Expô-las.

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**

Aprendi muitas coisas: a respirar, colocando o ar para fora,


todo ele, buscando ele fundo debaixo das entrelinhas dos
pulmões, enrolado nas curvas dos ombros. Aprendi a exer-
citar os músculos da xoxota.

Aprendi a reler o que escrevo, número de vezes necessário


para Enfiar, com letra maiúscula, dentro dos poros e saber
de cor todos os erros.

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Texto

Aos poucos vão surgindo nas paredes as impressões, os pés,


as mandalas de pedra-sabão, as fotografias amadoras, os
papeizinhos que vão cair logo, as rachaduras, de tempos
vou ficando mais reta, direta, uma flecha com pluma na
ponta aguda.
Ferindo com suavidade, deixando sangrar as hachuras,
nada fica no lugar quando se tem uma tempestade.
Ergue-se na chuva um troféu. Não, é uma mulher, ela é
exausta. É desesperada. É reta e também angular. Não é um
troféu próprio, é uma haste prematura que leva a bandeira
falsa, dos falsos admiradores, do abuso sobre a delicadeza,
do abuso contra a tentativa de amar não como se fosse a
primeira vez, mas como se fosse a última.
Não a sentem, apenas olham. São pêndulos que caem,
são ídolas que caem ao serem idolatradas por excessos, ao
beberem em alambiques para se perderem em vertentes
claustrofóbicas. A palavra ídolas aparece como errada no
meu editor de texto, você não quis dizer ídolos? Que tal
idosas? Não, eu quis dizer ídolas.
Meu amor é inseguro. Assim, meu poema sempre obscuro,
esconde-se mim, dentro da sombra. Obscurecendo o senti-
do, prolongo a chegada da derrota.
Estou sempre derrotada.

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Sou a última a chegar, porque parei no meio do caminho
pra acariciar os musgos, daí senti seu cheiro, e quando che-
guei perto de você, você era um bezerro. Mas os olhos, ain-
da eram seus.

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HIperPARABÓLICA PARÁBOLA PARANóiCA PaNorÂmiCa

Era um peixe de asas de fogo, que não sabia se amava rá-


pido por medo de acabar, ou tomava cuidado ao nadar e
amar com muita cautela para não bater na cauda do mar.
In cauda venenum.
Não sabia se queria mar ou céu, na água seu fogo durava
pouco, e no céu também porque logo suas asas queimavam-
-se toda. Peixe com asas, ouvia o elefante de sombra uivar
de noite, mas nunca sabia ao que a sombra correspondia,
era como ouvir uma voz bonita sofrendo e pensar que ela
vem de fantasma. Sendo que isso não faz sentido já que
fantasma não tem alma, ou será que fantasma era só alma?
Não lembro.
Se ele nascesse em 1970, com certeza seria um beatnik
atrasado já que esse pessoal era bem mais visto em 1950 e
pouco, e viveria por estradas dos Estados Unidos em bus-
ca de pequenas aventuras libertadoras, com um whisky em
cada mão. Com certeza na sua juventude ele iria morar nos
Estados Unidos, lá é muito grande, e tem vida fácil, é o que
diziam, mas peixe de asas de fogo sofria por sua aparência
indefinida, e sempre tinha medo de se mostrar, ainda mais
de sair por aí bebendo whisky e cantar country-folk-funk.
Deixava isso para as Gigantes Mariposas que, em suas vi-
das muito curtas, eram destemidas e porra-loucas de água
muito pura (uma palavra que peixe de asas de fogo admira-
va muito do fundo da sua poça).

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Decidiu ficar na sua poça, que pra ele era um mar, cheia
de pequenas ondas produzidas por passos de gente que
já tinha ido à Califórnia e já tinha atravessado a linha de
Greenwich umas 365 vezes por ano. Pessoas banhadas pelo
Sol, e também pela Lua, mas que apenas conseguiam se
molhar com água, coisa que para o peixe de asas de fogo era
normal, nunca estava molhado.
Um dia, em toda sua vida medrosa, peixe de asas de fogo se
apaixonou terrivelmente por Girafa-Bexiga-Cheia de O2.
Foi amor à primeira vista lente olho-de-peixe.
Ele compreendeu que ela era igual a ele, indefinida, por-
que ninguém pergunta se uma girafa é girafo, ainda mais
se for de borracha. Assim como ninguém pergunta se é
peixo ou peixa, ainda mais no caso de ter asas. A cada dia
Peixe Asas de Fogo dava dois pulinhos chochos pra fora da
água pra recuperar O2 combustível para seu fogo (e para
o fogão). Então calculou a distância que tinha que pular
para ir ao encontro furtivo com Girafa-Bexiga-Cheia de
O2. 90m/s. Com a força da paixão, Peixe Asas de Fogo se
lançou babacamente pelo ar, e deu um beijo estilhaçado na
Girafa-Bexiga-Cheia de 02. Foi um Peijaço, um tipo de
manifestação, que depois um cartunista brasileiro iria usar,
não se enganem, cartunistas fazem parte do reino animal.
Acontece que Girafa-Bexiga-Cheia de O2 tinha pele frágil
ao contato com fogo. E puf! Explodiu em fogos de arti-
fício, as Pessoas Banhadas pelo Sol e T.P.L acharam que
o futebol havia dado porco e outros acharam que era um
atentado darwinista, e foi aquela correria. Muitas Pessoas
B.S e T.P.L confundem Balões Cheios de O2 com Balões
de Quadrinho, que são muito diferentes, mas ambos peri-
gosos e engraçadinhos.

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Peixe Asas de Fogo achou que as pessoas estavam enfureci-
das com tamanha violência amorosa e estavam preparando
uma fogueira ou algo do tipo para matá-lo. Então resolveu
voar, mas chorava tanto pela morte da amada que a crise
paulista de água, foi por água abaixo, e hoje em dia o Peixe
Asas de Fogo vive num mar de amargura e todo mundo
toma banho no Tio Et, porque a água do bidê acabou.

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Busão

Uma lesbona rabuda escalava as púbis próprias esticada no


banco lateral. Enquanto uma cavalona de peitinho aceso
galopava o gargalo da cachaça atrás de um pinto duro. To-
das as estreletas de safadices apostas debruçavam seus pei-
tões e peitinhos numa assanhada corrida para engulirem
um peru, no mínimo, e sentar na sombra. Venha, sente em
mim disse a sombra. Enroscando axilas suando pelas per-
nas per-nudas. Adiantava o pedido não esquece do liqui-
dificador, e de meter gostosinho. Passando a mãozona nas
teta untada avistaram uma cachorra que olhava o vucovuco,
toda espevitada, ôo cachorra cachorra. Ô homem safado,
deixa a cachorra e termina de me comer. Minha veia fica
de quatro e balança o rabo, só balanço se me der seu rabo.
Ô veia, tome esse cu logo que já tá em tempo de ser des-
rabado. A moça com cara de anja e de cavalo espiava tudo
quietinha, gozando num cantinho.

Numa hora a ninfeta e a cavalona se juntaram prenderam o


homem e pintaram na barriga cabeluda —Bulkovski (erra-
do mesmo) você pode até entender de cacete, mas de xota
você so deu uns fora”, um pauzinho caía murcho e nin-
guém lhe prestou medicação. Acontecia todo dia naquele
busão. 3,50 para transporte e prazer, para mover e foder.
Enquanto as praças públicas foram tomadas por pombos,
os motéis encarecidos pelo luxo sem luxuria, o coletivo
móvel regurgitava salivas e feromônios. A foda é só uma

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distração, prazer dolorido que arrecada tesão. Isso, é fanta-
sia formulada. Coletivão desceu a ladeira, mas nunca mais
voltou a subir, atolou na ribanceira e até hoje nunca mais vi.

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Mastigo

Mastigo meus fones com os olhos fechados como se fos-


se um terço, e cada nota que por ele passasse fosse uma
bolinha do terço, cheia de música rezada. Aumento a le-
tra do meu teclado para poder enxergar ideias vacilantes.
Entrego todos os sentimentos, pois sei que minhas ideias
são baratas. Continuo te amando como se ama a um rato.
É possível amar um rato? Sou julgada por ter uma língua
pouco funcio-anal. Não sou religiosa, mas se fosse seria a
mais foda. Acreditaria em tudo que me falassem, inclusive,
naquela história que você só quer meu bem. Meu bem, se
toca, desaparece que essa toca já tem dona, e se eu te mos-
tro meus dentes não é com a intenção de um sorriso, mas
de uma rosnada.

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fábulas sem moral

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A Via Láctea

Viu a Via Láctea do quintal e achou que tudo soava anor-


mal.
Os passos dos pássaros nas costas.
Somos tão mínimos e proclamamos nossa independência
e direito de possuir uma imensidão maluca e inútil, que é
desabitável. Viviam em conglomerados, faziam babelismo.
Chiavam, brigavam e mentiam um ao outro.
Migravam entre constelações arruinadas, sentiam sede de
esperança, e davam gargalhadas ao som do sinal. Nas lon-
gas torres, de quarenta mil andares, ao fim do exaustivo tra-
balho ouvia-se ecoar pelas constelações apenas um sonoro:
AHHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHA
(gargalhadas de seres humanos)
Depois voltavam a colocar uma espécie de miniconchas
acústicas nos ouvidos, mas não era para ouvir barulho do
mar. Eram sons produzidos eletricamente, eram bombas,
relógios, eletrodomésticos, automóveis, penetravam seus
ouvidos e faziam um labirinto do dia a dia.
E, por fim, exaustos, dormiam um sono semiconscientes.
Viviam semiconscientes, ser semiconsciente é escovar o
dente sonhando pular corda nos fios de telefone, é comer
plástico enlatado e achar que é pudim de ameixa. Há aque-
la tal divisão, de um tal médico de loucos: subconsciente,

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inconsciente, falta da tal consciência. Mas que, no entanto,
faz parte da mente desses seres.
Ouvi dizer, foi passarinho velho que me contou.

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O mito

Era uma mistura de objetos pessoais e sentimentos mate-


rializados. Sua mala consistia em ser de couro encruado,
ou como ele gostava de falar malpassado, quase se sentia o
cheiro do boi. Tinha um cadeado, tinha o segredo do cade-
ado. E só ele e seu cavalo sabiam do segredo. Eu também
sei, mas é tão decepcionante que prefiro nem falar.
Depois vinha o céu, mas esse, todos conhecem. Diga-se
apenas o breve: o céu estava acabando.
E seu Virgílio foi chamado para dar um jeito, uma conti-
nuidade.
Um traço de azul, umas manchas brancas condensadas,
uma pitada de infinito e gases estufantes. E no outro lado
do pano que representava a noite, um escuro meio azul
quase preto, feito com leite láctea, umas luzinhas indepen-
dentes e imensidão que era pra dar um sentimento de soli-
dão, saudade... todas essas coisas sentimentais que Virgílio
não compreendia na sua cabeça quadrangular.
Diga-se também de passagem que Virgílio tinha cabeça
um pouco grande e cheia de ideias independentes de juízo
terráqueo, mas sua forma lembrava um caixão quadrangu-
lar.
Ele era míope e não usava óculos. Por isso não conseguia
ver o céu de longe, só de perto. Esse era seu trabalho, res-

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taurar o estandarte azul, ou como preferem os românticos,
o “céu”.
Desfazia o segredo da mala, tirava o que precisava de lá.
Tintas, cores falantes, pegou a extensão e ligou as estrelas
na tomada. Pronto. Agora era só se afastar e não ver nada.
Só uns borrões de luz.

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*

Ela mora na rua do amor.


Isso parece tão longe
canção de pequenos,
aventuras pré-fecundais.

Em cada dedo desmontado


no decantar de cada onda telepática
um grande suspiro de aliviar
os pulmões cansados da respiração
ofegante
de tanto contemplar as covas escuras
e cheirosas
de cheiro que vem do sal e da água
do corpo.

Suar frio
até escorregar o ombro do travesseiro
até as matérias que não sentimos
estarem vivas
e não ter medo de rotação rotulada.

Esquecer os anos que nos endureceram


soluçar

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em alto tom
manter a respiração forte dentro de
vidros furados
deixar sair assovios.

Dente de leite que segura


a cordinha amarrada na linha
grande distância percorrida
na companhia de Cão, o gato.
A porta
fechada na deprimente tentativa de
levar sempre uma vida vulgar
sem grandes emoções.

Na rua do amor

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Nas tigelas de porcelana que acabaram de ser quebradas,
ela lia o futuro do filho. Velhos cromossomos brigam, não
sabem se são mais X do que Y. Ele recortou um artigo de
jornal sobre avanços das ciências que permitiriam a ele ter
o pai que quisesse, e assim não precisariam brigar mais: o
pai e a mãe. Porque sempre essa coisa das escolhas virem
dos pais? poderia assim a sociedade, decidir quem seriam
seus pais, e acabar com essa onda de tantos complexos.
Isso já não importa mais, nunca fomos uma família nuclear,
nos mudamos para a rua do amor, e aqui não há brigas, não
há o que temer. A não ser o seu próprio formato Y, que a
baia da praia faz, quando o rio que desaguava com nome
de peixe Bororo, encharcava as calças de brejeiras e brejei-
ros, que corriam em um ato de celebração. Não existiam
esgotos na rua do amor. Apenas um Brejo Agridoce, em
que escoavam, gotejavam reservas agridoce de uma sensa-
ção antiga mantida para mais tarde, depois da janta. Tinha
gosto, cheiro e notas encantadas pelos nobres mosquitos
antialérgicos que encomendaram pelo caixote-eletrônico, e
não vinham de nenhum egito.

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A Fada sem Calcinha

Saiu da bicicleta, as canelas grossas e as pernas finas, sen-


tou o pé e molhou com o sabão que saia da cozinha e es-
corregava no concreto rebocado do quintal. O cachorro na
corrente latia. Cada bolha que formava no sabão se mul-
tiplicava em milhões de outras bolhinhas, espuma branca
que cobriu a pele negra, ficou notando aquela cena com os
olhos apertados.
A mãe encostou na parede, Berenice, vai pra casa, larga essa
bicicleta, sua vó precisa da gente lá. A menina ajudou a mãe
a terminar de lavar a cozinha. A moça da casa ficou brava
que ela e a mãe saíram mais cedo, mas ela que se dane,
sua mãe não merecia ouvir tanta reclamação. Muitas vezes
quando não se distraía com coisa pequena como a espuma,
riscava fósforo e tinha ideias grandes como, por exemplo,
botar fogo naquela casa grande daquela mulher nariguda.
Pegaram o ônibus, sua mãe segurava sua mão com muita
força, e apertava ela e às vezes doía e ela mexia a mão den-
tro pra tentar desvencilhar, mas só fazia sua mãe mais brava
apertar mais a mãozinha. Não gostava de quase ninguém
que encontrava no ônibus, principalmente os que sorriam,
achavam que ela era boba, só por que era pequena? Sou
pequena, mas boba não sou. Naquele ato rebelde e prema-
turo, de querer ser diferente da mãe, sua mão cansava e se
aquecia.

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O cheiro ela já reconhecia, café, alfazema, e um cheiro
muito forte. A vó sentada na mesa da cozinha, com a toa-
lhinha posta, as velas acesas, casa silenciosa. A vizinha da
frente vinha carregando o netinho no braço. “Mãe Alzira
tá bezendo? Calma, calma Filipina acabei de chegar, senta
ali no sofá vai, já já ela te chama”.
A voz que saía não podia pertencer a ela, mas a menina
não tinha medo da vó, porque muitas vezes conversara com
aquela voz, e com outras tantas. Ficava muito brava com
as crianças da rua e os vizinhos zombeteiros que falavam
que sua vó tinha engolido o diabo e não largava, que aquela
casa era do diabo. Já distribuiu muitos socos na barriga e
chute na canela por causa disso. Já tinha visto até a mesa
rodar.
Bem de noitinha a velha estava muito cansada, e esticada
na sua cama, com poucas roupas e nenhuma calcinha re-
pousava e respirava, tomando uma mistura divina. A meni-
na passou uma vez pela porta. Entrou sem a vó perceber e
ficou espiando a xoxota da velha. Mas que estranho aquilo
era, imaginava que assim como a pele da velha, sua xoxo-
ta também seria enrugadinha, que nada, parecia a de uma
mocinha, igual das primas que tomavam sol no quintal e
depois banho. Aquilo não saía da cabeça da menina, em
todo lugar que ia lembrava da xoxota moça da vó.
Um dia até sonhou com a xoxota da velha. Sonhou que
seus olhos conseguiam ver detalhes e profundezas, e viu
que arrepio, a vó era virgem. Como podia aquilo! No sonho
um pássaro grande pousou na janela perto da cabeceira da
vó, que começou a conversar em passarinhês.

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Pegou um espelhinho que a mãe tinha, e colocou embaixo
da sua xoxota, que para sua surpresa era a coisa mais estra-
nha que já tinha visto, toda enrugada, uma xoxota de velha
dada. Como podia? Começou a pensar que talvez o diabo
fosse um monstro muito horrível, e tivesse feito alguma
troça com as duas. Tomou um banho longo, com muita
espuma esfregou a sua perereca, e quando saiu do banho
continuava toda enrugada.
Ficou pensando se tinha feito coisa errada. Chamou a mãe
e falou que tinha uma coisa estranha, minha perereca mãe,
olha. A mãe viu e falou, que estava tudo bem, não tinha
nada de anormal. A menina olhou para a perereca toda
enrugada, como assim?!
“Olha só, mãe!”
“Não tô vendo nada, tudo normal.”
“Mas mãe tá enrugada igual buraco de velha! Deixa eu ver
a sua.”
A mãe disse pra ela parar de falar aquelas coisas, que não
ia mostrar nada, a dela era peluda de grande, ela tinha tido
dois filhos, era muito diferente da dela, que era de uma
criança. “Mas a minha é de velha, e da vóvó, você já viu
mãe, a da vóvó? é de menina. Será que o diabo trocou?”
“Que isso menina tá ficando louca?” A mãe contou à avó,
que só ouvia enquanto fumava um cachimbo. Assentindo
com a cabeça, isso é coisa de preto velho, nha nha nha.
Entrou no meio do mato no final da rua, e voltou só de
noite na casa, com o gato preto entrelaçando as pernas e
o pássaro no ombro. Ferveu uns matos colocou na bacia.

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Menina senta nessa bacia. E depois ela sentou e se banhou.
Enquanto tomava banho tomou um chá preto com gos-
to muito forte, engoliu tudo de tanto medo. Pensou, se eu
dormir, talvez, isso tudo seja um sonho, e quando acordar
nada disso aconteceu.
Dormiu. E no sonho, viu de novo a vó e o pássaro. A vó
deitada e o pássaro a bicava todo o corpo, os seios, a bar-
riga, a boca, e até lá embaixo na xoxota. Ele cantou, e ela
se abriu. Um cheiro bom saiu de lá, cheiro que não sabia
identificar.
O pássaro sugou o líquido que saiu da xoxota da velha.
E pousou na cabeça da menina descarregando o líquido
todo. Ficou toda brilhante e gosmenta, feita placenta sem
ovo. Não tinha aversão e nem emoção. Apenas o líquido
escorria. A velha se vestia, se levantava do chão. Pronto,
minha filha, que também você é filha minha. Pode tomar
um banho de rio, e vai tudo melhorar. Não queira ser velha
antes da hora, deixa sua primavera chegar.

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eu, a fada e a jaguatirica

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Casa Branca

Estudar a matéria quântica que fica entre meu ódio


e meu amor
a quântica que nos une as pernas num frêmito atrito
talvez eu tenha sido a única animal
da extinta mata atlântica que circunda seu fundo de
quintal quitado
e os buracos que cercam a cidade.
Lembro muito do seu medo da areia movediça e das
plantas inofensivas
o mini-grand canyon que a gente brincava
fizemos um pacto de sangue no carnaval
você fez uma piada
e eu estava apaixonada
depois de muitas camadas de argila
me tornei insensível
mas a brisa gelada da tarde me curtia os ossos, e o
rio Espraiado onde a gente deixou nossas pedrinhas.
Entreguei as últimas que eu tinha para você fazer seu
arremesso, não te contei na hora, mas você era bem ruim
de mirar.
Dormimos no mesmo quarto, fazíamos pocker de feijão
e meia
o outro matava as formigas com fósforos.
Você gostava de me irritar.
A cesta de basquete, o porão, a comida inventada com

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jabuticaba
mortadela de madrugada
a galinha-cachorro
a namorada da capital
eu e você
os pelos no rosto
o amor correspondido
a demolição da casa
o terreno baldio
a cidade dorme
o beijo que roubei
os aplausos das crianças da rua
a desculpa do pão
minha descrença, minha culpa
não, foi outra coisa
a demolição da gente.

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Self

Self
Selves
Selvas

Preciso levantar,
mas as palavras continuam na horizontal
os peitos apontam o sul
o norte, o cu
os pés o oeste, o leste ou lês-te
rosa dos ventos de ponta cabeça.

Estou começando a compor


estão começando a me recompor
saiu cabisbaixo
da inebriante experiência
de se tornar aos poucos um lance de luz

E agora não sabe pra onde ir


são fatais os perigos de se deixar cair
debaixo da árvore
que compõem sete sílabas
do canto desbravado
por folhas que abastecem o solo
por elas é em cada troca de estação
enterro solar

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Quero me liquid(ific)ar
pela gruta
descascando a fruta pela serra dos Dentes
sabe
aquela que atravessa as Depressões do Seu céu da boca
formando um festival de cordilheiras Tortas

Mi está sentada, arqueada, sustentada por um solo


barro-oco
Si levanta para acompanhar os passos cambaleantes
tanto sóbrios quanto harmônicos de

que se desfaz num eletrônico zunido bestial
indo em frente, mas com passos de curupira
retoma em cada passo futuro
seu mito preservado
entre os capítulos 20 e 5
E assim
torna-se sempre atrasado em relação
ao desenvolvimento orgânico dos outros
Esse negócio de andar um passo adiante
sempre voltando outro pra conferir o résultado
deixa o bicho encurvado, igual C
mas aos poucos aprende Si a tornar-se Ré
velho e antiquado
como Mi.

E por fim, nesse flautear, trepa-se na grade a trepadeira


da moça.
como se em cada furo aberto nascesse uma daninha.

Tá vendo, nem foi preciso muita rima.

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Caderno Revertido
Para as bacias da Sarah e as magias de Ítalo

Não sabia cronometrar quanto tempo estavam as duas ali,


com os pés imersos na bacia. Sentadas no chão com as pernas
dobradas. Olhavam para seus pés que ficavam enrugados.

“Não estou passando bem...”


“Que que você tem?”
“Um enjoo, assim.”
“Você precisa ver isso...”
“Tô grávida.”
“De novo?”
“Desculpa não queria ter te falado isso. A mulher massa-
geia a batata da perna até os tornozelos.”
“Tudo bem...”
“Poxa...tô feliz por você, de verdade...Parabéns. Quanto
tempo?”
“Dois meses pelo jeito, me sinto tão cansada...”
“Sabe, eu queria ter um fundo de filosofia, ser filósofa sabe?
Assim, como seu eu tivesse uma estratégia de pensamento,
e adaptasse ela para todos os acontecimentos da vida, como
uma forma de mostrar que tenho refletido sobre o que se
passa comigo.”
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“Você pode ser mesmo. Seria bom pra você. Ganhar mais
sensibilidade...”
“Você acha que eu sou insensível? Não, é sério isso. Você
acha?”
“Às vezes.”
“É estranho, porque é o contrário que sinto, sempre parece
que vou explodir por dentro.”
“Você deveria.”
Risada. Pausa no meio da risada.
“Você tá ficando cansada de mim Marília? - em tom de
real consternação.”
“Por que isso agora Gi? Nada a ver... eu tinha te falado, tô
cansada.”
“Você está triste, isso sim.”
“É a mesma coisa.”
“Não é não, se você tá cansada você dorme, mas você dorme
tanto, que sua canseira deve ter virado tristeza.”
“Tô cansada do que me deixa triste, tô cansada de tudo.”

Gi e Marília se olham, idades tão distintas, idades tão sal-


tos de trampolim. Gi abraça Marília, que quase chora, mas
não chora.
“Tá sentindo esse cheiro?”
“Deve ser esse vizinho maldito colocando fogo no quintal
de novo.”

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“Puta que pariu.”
A água vaza da bacia com os movimentos abruptos.
“Acho que a única coisa que me tornaria mais sensível, é
se eu engravidar.... deve tornar a gente tão diferente... ser
mãe”
Marília olha para os pés fixamente
“Não sei.”
“Marília, posso te perguntar uma coisa?”
“Fala Gi.”
“Você não quer ter esse filho, não é?”
A gravidade nos deixa mais serenas e estáveis.
De longe se ouve um som.
Ay mamá,¿ qué pasó?
Ay mamá,, qué pasó?
“Não é isso... você sabe, tem o Mateus, eu tô sozinha de
novo...”
“Se você não quiser, eu quero.”
“Gi! Não fala uma coisa assim.”
“Assim como? Você acha que eu não sou boa para cuidar
de alguém? Só porque eu sou irresponsável pra caralho?
mas vai ver isso me transforma, me dá vontade de viver. Eu
quero ter um filho, Marília.”
“Você tá falando da boca pra fora... As coisas não funcionam
como você quer.”

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“ Ai, não é isso Gi! Eu disse, mas não era isso que eu queria
dizer. Não consigo mais me explicar por palavras, elas so-
mem, os significados se distorcem, e eu pareço ficar fazen-
do profecias irônicas sem esperança. A única coisa que me
define é porque estou sempre calada. Isso não é horrível?
Ser definida pelo seu silêncio. E te botam uma casca de
misteriosa, mas seus pensamentos e sentimentos não são
nada demais... só me falta a tradução.”
“Acho que as pessoas ficam se perguntando, o que deu na
nossa cabeça de virmos morar um tempo em uma bacia de
água. Se não fosse eu mesma fazendo isso, ia achar bem
esquisito.”
“Quando você corta alho e passa perfume por cima, o diabo
come rosa dos maços de cotidiano caramelado.”
“Sua futilidade é encantadora, Gi.”
“Obrigada Marília, a sua beleza é muito asquerosa.”
“Muita delicadeza da sua parte, Gi.”
“Ninguém entende o amor enrustido dentro do humor dos
trocadilhos, que não seguem lógica gramatical nenhuma.”
“Seus aforismos só comprovam sua mediocridade com re-
lação às pessoas. Viviam em cima de uma pedra. São pe-
dras.”
Marília, devíamos ter pensamentos mais saudáveis. Fre-
quentar mais as aulas de yoga, aprender a respirar, e masti-
gar 30 vezes antes de engolir.
“Não tenho tempo pra isso Gi. Sou tão má comigo mes-
ma.”

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“Bobagem.”
No semáforo parado juntaram três homens cantando
aquela música cubana, sobre a Tula1 que esqueceu a vela
acesa. Chamem os Bombeiros! Chamem os Bombeiros!
“Será que existe alguma forma de crença? Um ser maior?
Ou menor, que fica nessa bacia, e na água. Uma vontade
maior do que a nossa? Será que sou só isso? Estou matando
o que está dentro de mim.”
“Gi, se atenha aos problemas pequenos. Não abrace o ema-
ranhado da existência, que está fora do seu alcance.”
Hipnotizada por uma visão do passado, precisava sair da
bacia, e se salvar daquele incêndio molhado, a vida e a visão
estavam ali na sua frente. Difícil distinguir uma da outra.
As pernas de uma começaram a roçar a da outra. Sensações
amorais de satisfação.
Volver a los diecisiete después de vivir um siglo
Es como decifrar signos sin sábio competente
Volver a ser de repente tan frágil como un segundo
Volver a sentir profundo como um niño frente a dios2

“Ai caramba, será que é só isso? A gente é só libido?”


“Ainda acredito em Deus, Gi...”
“É que eu conheci um moço que ficava se perguntando
isso...”
1
“El cuarto de Tula”, música do filme Buena Vista Social Club.
2
“Volver a los 17”, música de Violeta Parra.

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“Se eu fosse freudiana, não estaria usando calças.”
“Como começava o “Pai Nosso”, mesmo?”
“- Ih, não lembro...”
Pegou Marília nos braços e a chacoalhou para que houves-
se ali uma quebra com a bacia.
“Marília! Marília! A vida é maravilhosa! A vida é maravi-
lhosa!”
(cochichou nos ouvidos por final).
Suspensão da irrealidade das palavras. Tiraram as tolhas
do varal, enxugaram os pés, que ganharam consistência de
musgos grudados nas pedras de cachoeira.
“Era mentira.”
“Eu sabia.”

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Cheirox

Abriu-se em suspensão
O pequeno mundo de Adão
Recitava poema pro ar
E aprendeu a navegar de olho vendado pro mar.

Não sei que gentilezas ele trouxe


Fazia rima boba pra caber dentro da sacola
“Preciso da chave pro s´meu mundo”
Correndo o risco de me aposentar das ideias paraplégicas
Encosto meu corpo junto ao terreno que vai pro leilão.
São quinhentos hectares
Da terra amassada por bois e pés descalços
Me afundei em cova rasa.

Não sei se consigo me sustentar


Apenas olham lá de cima passar as pontas dos aviões
Umbigo
Chega mais perto o abstratismo
Abismo-atrativo
É hora de nos despedir por detrás da cortina
Daqui para trás nada pode fazer menos sentido.

Abre-se um dia incomensurável


Vejo suas fotos
Olhar distante

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Disse que a angústia é coisa de mulher
Augústia
Não acredito em dados
Testando
Testando
Pronto para gravar sua voz de pássaro de asa quebrad
À direita
Me senta uma velha
Metáfora pra morte.

Vendo suas rugas


Sinto seu pensamento
Imagino que deva ser
Duro viver tanto.

Escuta, é a primeira e última vez que falo


Uso dessa forma
Pra abreviar a angústia
E provar se tem alguém que me ausculta, ausculta,
ausculta.

Mas “continua falando como se tivesse sido interrompido”


não cabia mais na palma
Porque às vezes o corpo não comporta
Alma lá corrói, os cheios de boas intenções fracassadas,
A calma caminhando cala
Destrói todas as noites faladas.

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Vil uvez

Quero ser viúva do mundo


— dizem, é fácil se comportar assim.

Quero que repare no meu estado metamórfico


não sou leve
apesar da minha estrutura óssea expressar o contra-
peso, peso como pálpebra cansadas
como sacolas de supermercado roubadas
como dinossauros superfaturados na cadeia alimentícia
do açougue.

Seus ombros não conseguem me carregar


me arrastam
então
pelas vias drummondianas
pelos castelo branco que é tão prestigiado em nossas
cidades fantasmas
viro à esquerda na rua Médici, caio na praça de algum
coronel,
mas continuam me falando que a situação atual é péssima
soando um tango argentino
um filme do Babenco, que até hoje não sei se é latino ou
se é brasileiro
e brasileiro não é latino, meu deus do céu?

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Prostituí minha figura de giz de cera,
quando tinha 14 na parede
nas páginas que você menino crescido usa para abafar
seu cheiro destilado

(só estou tentando te situar, na minha situação)

Se quiser, fuja
não tentarei decifrar seu dialeto pichado
mas sou compreensiva para uma psicotrágica
reconheço seu nome
e que você não quer fama
mas difamar o estatuto do bem-ou-amar

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Divadi

Fico te olhando dormir


não preciso te acordar
meu sacrifício é:
não fechar os olhos enquanto
não abre os teus
Guardar teu sono
Não interromper nenhuma respiração
profunda
Fico tão concentrada na tua existência
Que não existo mais,
existimos
e de repente e sem querer
adormeço
como uma coberta que cobre a cabeça e descobre os pés
você abre os olhos e
ao me ver dormindo
promete a ti mesmo
fazer um pequeno sacrifício:
não fechar os olhos enquanto eu
não abrir os meus.

E na ampulheta deitada
a areia se divide imóvel e igualitária
neste momento.

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E dentro dela guardamos pequenos escorpiõezinhos
que fugirão
do vidro de areia
perfurarão nossa pele do pé
transmitirão um veneno
Que subirá pela nossa corrente sanguínea
esquentando nossos sexos.

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/_\

Estranha
Esfinge
Esférica
te espia

Nascida aos poucos


e berros
Esquiva
Macia
E angular

Formando um corpo
propenso
ao apego

Desmancha
Saliva no ar

Cabelos pequenos
Pentelhos
Boca sem tampa
não sabe falar

Mas respira
pela fresta
do vestido

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Expele um cheiro
ácido
suspenso
carregado de éter
magnífico

Dança
de músculos
que sugam
intenso
caráter
onírico

Dúvida
eterna
etérea
de gozo

Estéril
fértil
correntes interruptas
banham terras
secas
fica reluzente
seduzida pela língua
molha toda a boca

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Parabéns

A correnteza de terra
nos transformou num continente
latimos
latimos porque éramos vira-latas
e nos apossaram como se fôssemos selvagens
a única violência
é a túnica
camuflada
sem nenhum broche de premiação.
Brinco com você no quarto
de soldarmos uma cama cabana
andamos verticalmente pela praia
uns corpos grudentos de água e areia.
Tocam uma balada cigana
estamos perto do trem da morte
Fidel e você são primos distantes.
Quanta magoa camarada
quanta perversidade para dois pares de narizes aduncos.
Vamos fazer uma viagem austral ao Fim do Mundo
você me olha fascinado
sopro areia na sua cara
com biquíni americano e chapéu de guerrilha
soltam um tiro ao longe,
parabéns, é seu aniversário.

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Quantos anos

Do quarto
cansada de olhar as cicatrizes dos seus dentes
na minha bochecha inferior
a mulher do outro lado da rua
faz sinal
para entrarmos dentro da sua virilha
com meia arrastão
olhos chumbados
e dentes de sucata
segue muito triste, a esquina
vira
e se transforma em uma fada
de dentadura e carne dura
querem levá-la para um manicômio
mas ela só queria mais uma vez ver a jaula da jaguatirica
num reconhecimento mútuo de cárcere
tiramos uma fotografia mental das três
Eu, a fada e a jaguatirica.

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incompletas

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Rezinhas brabas resmungadas para atrair bons olhados.

Retina, menina que retém vida nos olhos.

Às vezes não precisamos expelir para o mundo. Apenas


impelir o mundo.

Uma crente meio cigana


Morder a mão
Estalar a mandíbula
Será que tem algum passarinho precisando de um
implante de coração?

Fiz uma revolução, mas foi sem querer.

Continuava acentuando pára e idéia, era sua revolta


contra o sistema.

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Arranhas

vou arrancar um riso de você


como farei isso?
com as unhas
e depois pintarei elas de preto
para não enxergarem entre elas
a sujeira da piada suja que usei
para te fazer rir.

depois
plantarei feijões
e entre as unhas ficará
terra
vou lavar elas debaixo da pia
e se couber me lavo inteira

no ônibus
vou levá-las até a boca
e na boca encontram-se os dentes
vou roê-las uma a uma
e depois ficaram ardentes
as pontas dos dedos

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quando eu descascar cebolas
vou lembrar
que só estão doendo
por sua causa
as minhas unhas.

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Curriculum Vitálico

cruzo as pernas
descruzo os braços
boto o terror
desabotoo as calças
cruzo e fixo os olhos
entorto as placas
ranjo os dentes
aperto a bunda
digito náuseas
sussurro figuras
arroto sentimentalismo
trepo canudos
chupo cactos
arranho algodão
planto carrapatos
adentro as mãos
corto radicais
confisco cera de ouvido
anexo mandioca frita
transcrevo chamadas nunca feitas
causo alucinações leves
não me responsabilizo pelos efeitos
finjo a militância
atuo diretamente
reflito sob conflitos
ando para trás

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ando para frente
pros lados também
atendo na segunda ligação
respondo se puder
agarro sistemas
subverto o caos
aplico ketchup
masturbo os dedos
penteio peitos
panfleto camisinhas
lavo calçadas
não pago multa
calço 37
sou ariana
sou desconfiada
sou confiável
sou legal
mais ou menos
você que sabe.
Me ajuda
Me dá um emprego
Então
Esquece.

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I

Sempre tive a impressão de que eu morreria cedo.


E sempre me imaginei velha.

Saber que você respira perto de mim.


Vi sua foto na internet, lambendo uma xota
e vi seu cacetinho do lado de uma planta carnívora.
preciso tanto saber de você.

Ontem enquanto fiquei na rede, e os cachorros passavam


por baixo do meu corpo suspenso, fazendo brincadeiras, me
excitei, e lembrei, vendo eles tão peludos e felizes em cima
das quatro patas, de uma história que minha avó contou
pra mim de uma Loba que engoliu o Homem Todo. Não
sei de onde ela tirou, já que lá pelas tantas que contou já
estava um tanto caduca, mas gosto mesmo assim.

Meu amigo chegou, eu fiquei admirando os cabelos dele,


que são muito bonitos, eu chorei perto dele e nos olhamos
com os olhos úmidos. Por que o amor não é feito amigo?

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II

Queria dizer, bem rápido. Uma coisa sobre escrever po-


emas e a questão da crença. Um dia cheguei a conversar
com um quase-amigo, que fiz por aí de um jeito meio des-
trambelhado porque não sou de falar depois de aspas, sobre
o tempo e o mundo, e quase cheguei a dizer que o mundo
ditava o tempo, e que a gente estava do lado do mundo, de
lado assim, por causa da gravidade, daí lembrei da Via Lác-
tea, que é uma via bem desorganizada, por que será que o
trânsito não poderia ser caótico e bonito como a Via Lác-
tea? E assim via-se o leite.
E descobri, lendo, que você também tem asteriscos nas lu-
netas miopióticais, e talvez seja um cristão literário, desses
que passam grifa-texto verde-limão no Eclesiastes da tia
do Davi. Não vou mais encher o saco, mas aos poucos estou
descobrindo que meu ponto cético vai até onde acredito,
pois acredito nas pessoas que acreditam em algo. Não pre-
ciso acreditar naquilo que elas creem, mas creio que elas
acreditam e assim minha esperança flutua entre o ponto
que sai da ponta do Chile, dá a volta, e chega num Golfi-
nho dos pérsicos.
Gosto secretamente daquela região. Quando estava no co-
legial, eu ansiava pelas aulas de geopolítica porque era o
mais próximo que conseguia chegar de informações e dis-
cussões sobre a região do Oriente Médio, Jerusalém e do

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começo da primavera árabe. Tentava persuadir os professo-
res humanóides para saber qual era a opinião deles, ou era
muito secreto e complexo para mim, ou eles não tinham
nenhuma. Dei para pensar em ser repórter de guerra, pra
ir pra lá. Sempre recebia aqueles jornais da escola, que vi-
nham com mapas, ditando sobre política, e nem um pouco
a fim da religião. Tanto que meu interesse era descobrir um
meio, através da cartografia, de resolver os conflitos, como
se as linhas imaginárias daquela região, pudessem por al-
gum ponto estratégico do meu conhecimento minúsculo
de geometria se tornar livre para todos, um espaço aural.
Olha que bobagem. Também fiz uma camiseta com um
escrito em árabe bem pequeno do lado, com uma frase de
libertação para as mulheres que se manifestavam contra os
abusos sofridos. Encontrei na ilustração de uma marroqui-
na na Folha de S. Paulo. Não podemos negar que a religião
torna-se uma questão política.
Mas ainda estou riscando uma estratégia de roubar Jesus-
-e-seu-harém para mim. Harém de fanáticos, claro, mas
não serei nenhum “Ave Maria”, acha Cleo pra tanto suici-
da! Ai que heresia a minha, descuido político, esses tempos
desenfreados de censura com mel e aveia. Brincadeiras à
parte, gostei de saber que Jerusalém já foi centro do mapa-
-múndi. E tenho uma história (lá vem) com uma mulher e
uma laranja e o Arpoador, depois procuro. Mas na verdade
estou rabiscando mais do que Jerusalém, ia te falar, mas
ainda é pequeno o pensamento. Tem nome, igual cons-
telação que tem nome, mas demora pra explodir, sempre
alegorias astrológicas porque não deixa de ser universal.
“Suprimentos para uma guerra inventada” ou “...para uma
revolução inexistente”, tenho dúvidas. Ando me munindo

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de mapas, interesses geopolíticos, conflitos além-mar, e
conflitos do além também são bem-vindos.
Aos textos que chocamos sem ser galinhas.

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nota da autora

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Eu acordei, muitas noites mal dormidas, muitas conversas
mal resolvidas, muitas imagens de pessoas escorreram pelo
meu rosto. Doeu tão forte que acho que chegou a sangrar
para dentro. Esses dias uma pessoa me falou que tinha uma
frase que ela não lembrava de quem era, mas dizia assim:
“Precisamos nos enxergar mais como um mistério, do que
como um problema a ser resolvido”. E coube tão bem a
este livro e a mim mesma boiando nele. Tentei tantas ve-
zes resolvê-lo, mas ele não tem solução. Mistério que ainda
não descobri de onde veio, como saiu, para que serve, para
onde vai. Mistério porque não sei responder quase nenhu-
ma pergunta sobre ele, são apenas hipóteses. Tenho guar-
dado comigo um caderninho de capa mole, pertencente à
Regina, minha mãe. Sua capa é azul indefinido, com vários
planetinhas recortados de papel metálico; chama-se “A ter-
ra e seus mistérios” de 1975. Com direito à figurinha do
Star Trek tirada da revistinha, ela que escreveu com uma
letra difícil.
Prazer, meu nome também pode ser Terra, como tantos
outros que inventei. Meu falso eu, esse ser do eu lírico me
permitiu tantas aventuras, tantos casinhos, tantas liberda-
des que eu não sei se peço um tempo ou se caso logo com
ele.

Ana Júlia Carvalheiro 71

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aqui em suas mãos, a poucos centíme-
tros da sua respiração e visão, encon-
tra-se este livro composto em Adobe
Caslon Pro e Source Sans Pro, com im-
pressão da Gráfica Elyon no papel off-
set 75 g/m2.

1500 cópias
Inverno de 2015

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