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BRANDÃO
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Somente quem vive com a terra
uma relação de amor escuta a
voz da pedra.
Marcelo Barros
A Noite do Maracá
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Apresentação
A quem leia estas páginas: não se trata de um prefácio, mas de modesta e despretensiosa
apresentação. Além de sucinta, por considerar ser a atitude mais correta perante a qualidade do
objeto a apresentar-se. Ou seja, que fale o objeto por si mesmo. Ainda mais na situação particular
da poesia, amparo-me em outro insigne Carlos, para quem “escrever é cortar palavras”.
(Caminhante,
não faço o caminho em que
eu caminho mas o caminho
me faz o seu caminho).
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Parece estar aí mesmo o sentido que, senão intencional e proclamado, transparece
docemente inevitável em orar com o corpo, ainda mais vindo tal modo de oração de quem é
sempre uma contagiante presença de pessoa humana, sábio e poeta, que sabe, como poucos,
valer-se do inefável que é o poder de transcendência da poesia.
Brandão cultiva, em seu modo de viver, ser e estar presente, a preciosa capacidade de
fazer o que o ser humano mais devia fazer, que é humanizar aquilo que faz, tanto quanto possível
ou na medida que o poeta sugere, como o primeiro dos gestos, de manhã cedo, em
Despertar
A ninguém é facultado
dizer: chega!
O tempo é impensável
e sempre sobra.
Um cisne bate à porta
e acorda a casa. E acordas.
Uma janela que abras
já te baste.
Fiz este milagre, dizes
e lavas o teu rosto.
Lavas com as duas mãos
o rosto e te salvas.
Orar, pois, com o corpo, no procedimento humano, nos gestos das horas do dia, ao
longo do percurso. E agradecer ao poeta que torna o caminho mais rico de grandeza humana, ao
longo do qual ele se junta com um antigo, que avisou
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“Nel mezzo Del camin di nostra vita
mi ritrovai per uma selva oscura (...)”
E aí, ele, o Brandão, encontra, talhado na Pedro no meio do caminho, “(...) entre Viceso e
Oms (...)”, seu enigma:
“(...) é um rosto?
de quem? de um homem? quem foi?
o que ele disse um dia? disse algo?
ressuscitar
Naquele tempo,
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Estes escritos de preces e preceitos foram
começados em Santiago de Compostela e em Santa Maria
de Oms, no outono de 2001. Foram revistos, aumentados e
concluídos na Rosa dos Ventos, no Vale da Pedra Branca,
no sul de Minas Gerais, no começo da primavera, em 2003.
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Introdução
Cada poema é aqui um verbo e sugere um gesto, ou alguns. Cada um em sua vez e todos
juntos, eles querem sonhar imagens do corpo ao longo dos momentos da vida entre as horas do
dia. Alguns poemas sugerem cenas de alguns gestos do corpo e do espírito. Outros lembram
preceitos do viver e outros, mais raros, aspiram serem preces.
Não sei dizer ainda, agora que escrevo este breve prólogo, depois de haver concluído as
páginas deste livro, se posso dizer que eles são poemas e se este é um livro de poesia.
O poema não se pensa quando alguém o escreve. Ele vem com palavras e invade o poeta.
Toma-o e se escreve antes que quem o põe no papel pense sobre ele. Então – falo por mim e falo
de minhas vivências – é só quando um poema ficou escrito que, ao ler pela primeira vez o que
escrevi, eu vejo e sei o que escrevi. Antes disso, não. Antes os poemas são as suas palavras em
busca primeiro de imagens – e elas às vezes nem existem. Em busca do ritmo que dá corpo às
palavras, antes que o sentido venha lhes dar um espírito. Primeiro as palavras do poema dançam,
depois é que elas se pensam. Pois é só depois que as frases “tomam corpo” e se ajuntam e se
ajustam na procura de um sentido para que o poema diga algo. Mas um poema “diz algo?”
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mais perigoso. E uma vez ou outra ele ameaça empobrecer a poesia em duas direções que não
são as suas: fazer filosofia e dar conselhos de vida.
Por isso todo o livro de poesia que contenha do começo ao fim um “programa” qualquer,
deve ser lido com desconfiança. Este é um livro assim.
Orar com o corpo foi pensado antes de haver sido escrito. Sem haver sido programado,
ele tem plano do começo ao fim. Repito, de uma página a outra os poemas deste livro são
pequenos preceitos ao redor do verbo que lhes dá um nome. Mas, de modo algum, ele deveria ser
lido como um receituário de atitudes éticas por meio dos recados de uma poesia. Dar recados
éticos ou propor conselhos de vida e – pior ainda – de autoajuda, foi o que menos eu quis fazer
aqui. Alguns poemas desejam ser como uma prece. Como um dizer a um Deus amoroso o que
um momento do coração de quem fala ousa lembrar sobre o que Ele já sabe. Sabe mesmo?
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alta madrugada
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sonhar
Desenha, Deus
no caderno um arco-íris.
És bom pintor, eu creio,
um bom artista.
Depois cantarola sete notas
como se fosses
meu Deus, um passarinho
desses que cantam
quando o sol vem vindo.
Soletra o meu nome de criança
e depois me dá a mão
como a um amigo.
E que eu te ame assim,
devagarzinho,
com velas e preces
pão e vinho,
como se eu fosse um deus
e tu, um menino.
amar
Se te escolho
é porque já estavas em mim
e se te amo
é porque acordo à noite
e sonho que já não sei
viver sem ti.
conhecer
Não sei quem és
que me crias.
Não sei ainda.
Mas te sinto
como quando chove
e a chuva passa
e eu sei que chove ainda.
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madrugada
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dizer
perdoar
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hora da aurora
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despertar
A ninguém é facultado
dizer: chega!
Há verbos que limitam
mesmo um deus
e o tempo é impensável
e sempre sobra.
Um cisne vem do Norte
bate à porta e acorda a casa.
E então acordas: são seis horas.
Uma janela que abras já te baste.
Fiz este milagre, dizes
e lavas o teu rosto
e a ave te vê.
Com as duas mãos
lavas o teu rosto
e te salvas.
matar
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descobrir
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de manhã
manhã cedo
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ir
clarear
Restou da manhã
o que aí está:
o teu corpo e este sol de maio.
Volta a ele o teu rosto
e o ilumina
E depois fecha os olhos
e de repente é noite.
Lembra isto sempre,
porque quando morreres
alguém virá aqui dizer:
porque não levantas
e não acendes a luz?
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chegar
Um lugar entre flores, junto ao fogo
seja dado ao viajante. Um lugar como aqui
seja dado ao que chega enfim
e vem de longe, de um país de areia
onde a palavra amor tem sete letras,
e viaja como quem esquece a casa
e pergunta a Deus: onde era? onde foi?
Um lugar à mesa, aqui na sala
entre as flores de um ipê lilás.
Entre as flores de agosto, um lugar.
E que se acenda a luz e ela clareie
a sala. E a ele, o que veio de tão longe
seja dado um recanto ao lado do calor.
Um lugar a quem veio e chegou aqui
e é sem nome e nada trouxe de precioso
e esqueceu de onde era e olha as chamas
e aquece o corpo e de novo esquece,
e come pão e bebe o vinho
e bebe de novo pensa: aqui é bom.
almar
Faz um calor de outono e é outono.
É maio e a manhã clareia o chão das coisas.
É maio, vê, e inda agora foi ontem
e debaixo do quê estão as coisas do dia?
As pequenas coisas deixadas na beira da trilha:
um ninhozinho de beija-flores azuis
um ramalhete de margaridas do campo
os ovos deixados pela rã na poça da estrada
as frutas maduras de jurubeba ou do caqui
à espera do sol, de mãos ou passarinhos.
Uma trilha de pés de moça , um torrão de areia
um galho de ipê caído sobre a cerca de arame
algumas folhas que o vento da tarde varrerá
e o fino fio do riacho coberto de copas verdes.
Quero aprender a amar todas estas coisas
como se fossem o meu nome, minha testa,
o meu sangue, um poema nunca escrito
uma cesta de novelos, uma de pão.
o silêncio depois do amor a dois,
o desenho de um menino na areia
as palavras ditas por Jesus
e esquecidas no evangelho de João.
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meio da manhã
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comungar
Seu nome de homem
é de um anjo: Gabriel.
E será de um santo o gesto?
Levar na mão o pão feito à noite
com fermento, sal e noz moscada
canela, malva e grãos de aveia.
Um pão escuro como se usa no subúrbio
comprado com moedas de centavos.
Levar o corpo de um Cristo embrulhado
em papel de nuvem cor de chumbo
e repartir os pedaços pela rua.
Dar o pão a quem não crê em Deus
não conhece as cartas de Paulo Apóstolo
e tem o olhar de neve e não agradece
e não se converte a coisa alguma
e nem vota em quinze de novembro.
Dar meio pão àquele de quem fogem os anjos
e sonha, no entanto, como um rosto sonha
com uma vida cheia de feriados
com cheiros de cerveja, o jogo de baralho
e o corpo bom de uma mulher sem nome.
ajoelhar
Agora é
como nunca
e nada há.
Este é o milagre
e diante dele eu
caio de joelhos.
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semear
Olha, escuta.
Já que comes esta fruta
agora, quando é cedo aqui
na beira deste quintal de teus avós
porque, ao invés de cuspires os grãos
como quem despreza o que não é doce,
porque não te curvas um pouco sobre o chão
e não te ocupas por um momento
em semear aqui e ali pequenos grãos
que o teu gesto transformará em árvores?
Um dia, que a vida também faça o mesmo
com o teu corpo, já sem o dom do sopro.
E quando um teu neto vier num julho
e comer um fruto da planta que semeaste
sem saber o que faz, ele te fará eterno.
ler
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escalar
De vez em quando,
pendurado por uma corda
sobre o abismo,
e buscando com os dedos
alguma cicatriz da pedra
onde me salvar da queda
e prosseguir a subida
entre algumas aves e amigos
eu sonhava não tanto
com o cume da montanha
Sonhava mas com o calor
da volta da fogueira
entre as barracas
do acampamento. Sonhava
com o cheiro bom do café
que deixei lá, por vir aqui.
deixar-se ir
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meio do dia
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consagrar
Junto as duas mãos em concha
aperto os dedos
e modelo como num pote
a argila da pele.
Mergulho as mãos na fonte
e volto como um pastor
de um lago nas montanhas.
urinar
Aqui, na sombra desta mangueira
a essas horas, enquanto é meio-dia
eu, como quem, cego, tateia estrelas
espreito perto e ao longe o horizonte.
Mijo e estou só como um último guerreiro
abro as calças e devolvo à terra a água
e bem mais anjo do que marinheiro
eu não navego, mas eu invento um rio.
E entre demiurgo e envergonhado
penso: e se vier alguém agora?
Não virá! responde o vento
nem te envergonhes. Lembra, um deus grego
fez isto antes de Tróia, e era um deus.
E o que pensavas que fazia Ulisses
pouco antes de dizer: “aqui é Ítaca?”
Um deus fez assim e tudo houve
e quem faz isto é como um deus
um pouco.
acender
Soprava com os lábios e a boca
como quem prolonga um “u”
a brasa na ponta de um galho de angico.
Rodava nos dedos a madeira
e soprava de novo, e assoprava.
E fazia assim sem saber
pois apenas queria
acender um cigarro de palha
o gesto de um deus
quando começa um mundo.
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crer
Aqui te baste: vê.
Aqui onde havia um céu de sábado
há um jardim de girassóis agora.
Como Tomé, toca olha e crê.
Semeavas este gesto: o corpo curvado
e os pés plantados no chão do outono.
Nasceram ontem essas flores amarelas.
Sem esperar o sol elas nos olham.
E, jardineiro, deves dizer: creio.
Para o que elas então dizem: volta!
ousar
Ao vento da noite e à poeira que avermelha o mundo?
Aos frios de julho e aos vidros do inverno?
Ou a uma ainda última chuva do mês de outubro?
Em nome de quem, entre outono e primavera,
andamos por aqui como peregrinos ao Norte
e procurando Deus, andamos sem destino?
Não cremos no corpo do apóstolo
enterrado, dizem os de lá, em Santiago.
Andamos a esmo e oramos ao vento
Semeamos pelo caminho pés de amora
e não desejar nada e não querer chegar
quando vem a noite a parte alguma
eis o que nos faz santos.
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compreender
Anos depois essas flores de acácia
amarelas como o mel que vem do sol
estarão aqui a cada lua nova de maio.
Alguém haverá de pisar as pétalas caídas.
E outros serão os viajantes, uma gente de longe
chegada aqui a passeio ou em busca de um irmão.
De quem nós fomos não saberão nada
e nem sonhariam perguntar qualquer coisa.
Por isso alguns de nosso tempo tomam a faca
e com a ponta ferem um nome nas árvores.
Deixemos a eles este pequeno desejo do eterno
de que imaginamos estarmos livres
como quem esquece na areia o sinal do corpo.
A noite virá, e o vento e o mar saberão apagá-los
e já amanhã os pássaros de hoje terão esquecido
a nossa breve e efêmera passagem por aqui.
Assim terá sido. E assim se esquece
e um dia não estaremos mais sob esta sombra
juntos como agora entre essas flores de acácia.
Fiquemos pois um pouco mais sob a sua copa
para que duas ou três flores caiam do alto
sobre os nossos ombros e os nossos nomes.
Uma outra florada destas gotas de limão-e-ouro
haverá de deixar caírem pétalas sobre o chão.
Efêmeras elas e também nós, amigos.
Mas a cada ano em maio elas retornam
e nós? Onde estaremos nós então?
Onde estaremos quando for o maio
de um tempo depois de um último outono.
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colher
Colhi a flor das pedras:
o bronze é verde e o cobre cor da carne.
A prata espelha o ouro que há no sol
e é este o meu jardim de abril.
Que outros semeiem centeio e trigo.
Eu, garimpeiro e mago
colho o grão de pólen destas pedras.
esperar
Como era o tempo de mangas maduras
chegaram juntas as crianças e as abelhas
e havia na curva da estrada uma mulher
de um vestido negro, um par de brincos,
um outro de botas gastas e um olhar -
como direi? - um olhar de quem espera
a cada tarde do tempo das mangabas
a volta de alguém de um outro porto.
Um alguém que não virá. Não virá
e ela sabe, mas espera até quando
secam as amoras e somem as crianças e as abelhas.
Pois ali, na beira da estrada, indiferente aos risos
e sem o desejo da vida e das mangabas
quando passamos ela nos saudou com a mão
e antes que alguém respondesse, ela disse:
Vejam, ele não veio de novo e não virá
ele não virá nunca, mas eu espero aqui.
porque, se eu esperar
é como se ele estivesse vindo.
catar
As mãos têm rugas mas são sábias
e há setenta anos fazem isto: catam feijão.
Separam dos grãos os grãos
e do feijão as pedras e as palhas.
Como as mãos de um rei criam a ordem
e desenham no mapa da mesa
o lugar dos perdidos e o dos salvos.
Tocam cada grão dizendo um nome
e colocam de um lado o joio
e do outro o trigo. E a voz canta
uma canção de chamar os santos
sem saber que é do Nazareno
que as duas mãos falam na cozinha.
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começo da tarde
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descalçar
Aqui na porta apenas da terra que te separas.
Protegido pelo couro que ora abandonas
não manchastes os pés da cor do chão
se é que a terra mancha; ela tinge
e dá a tudo o seu tom de vida: a cor da terra.
Livres da lama, limpos na pele
o que são os teus dois pés
menos do que os sapatos que te deixam
e sobram cobertos de barro do lado de fora da casa?
Um dia nasceu de novo ali, nos teus sapatos.
Agora, descalço, sai pela porta.
Lá fora a terra te espera e um outro dia
será de novo a casa onde, sem sapatos,
caminharás como quem volta.
Toca-a, portanto, com quem sabe
como quem ora.
Faz isto enquanto é tempo. e anda agora.
descascar
Tudo o que o navegante Colombo
fez no ano da graça de mil
quatrocentos e noventa e dois
eu faço agora, aqui, de novo
e assim, sentado na varanda
ao redor da mesa às oito horas.
Colho como se um mundo uma laranja
e com as dez naus dos dedos
e mais o vento da faca afiada
saio armado de mapas, silêncios
e astrolábios e velejo a Oeste.
E viajo com sede ao redor da Terra
em busca dos segredos do Oriente
escondidos num gomo de laranja.
conjugar
vivo
creio
confio
entrego
crio
partilho
aceito
acolho
agradeço
bendigo
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de tarde
31
comer
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sertanejar
Sou gente de muito fazer. Me olho e vejo a
manhã nascente. Esses sóis de agosto. Ou
será que é ela quem nasce de eu já estar assim:
de pé, escuro ainda, na soleira da porta, as
mãos adiante, na frente do ar, do sol, para o
que o dia venha? Eu abro as mãos assim: veja.
Anseio é arranhar os ventos. Com as duas
mãos planto esses verdes. Com as duas mãos
teço canções: os pés de milho crocando folhas
secas no ar de maio. Sertões? Fui eu. Agora
acordo ocasos. Houve um tempo em que eu
tinha um desvairio de idéias. Agora tenho
menos. Pois fecho os olhos e o que eram
verbos são agora as cores que algum dia não
verei mais. Pensar assanha o corpo e almeia a
alma. Mas com o passar dos meses dos anos
da vida é isso o que faz a gente parar de olhar
a lua. Por amor dela, seus altos ouros na noite,
deixei de fazer versos. Da viola pendurada na
parede quero agora só a música sem as
palavras. Desaprendi minhas rimas e meus
anseios de hoje são sem nome. Já gostei
menos de sonhar silêncios.Aprendi a ouvir
o que não forma eco. O que não faz sentido e o
que existe fora da gramática. Um pio de
pássaro é todo o meu salmo. Rezo para Deus
batendo os pés no chão, as mãos, uma na
outra quando assobio alto. Ele escuta.
Aprendi a ouvir até a fala dos peixes na
manhãzinha do riacho. Mas só depois, com as
mãos limpas de terra escura. Pois nela tudo há
e acontece. Lá, de onde eu sou, lá de onde eu vim.
quando foi. Lá.
33
optar
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escolher
(o caminho)
Já que todos
os caminho
conduzem
a um mesmo
lugar, porque
não escolher
o caminho
do amor?
Dito isto:
se do amor
vens
e do amor
vais,
escolhe
um caminho
qualquer
e começa
a andar.
caminhar
(Antônio Machado)
Caminhante,
não faço o caminho
em que eu caminho
mas o caminho me faz
o seu caminho.
E quando eu chego
não chego a parte alguma
além do caminho
de onde eu vim.
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desbravar
Ir além do vento
como com a foice
e deitar no chão
como quem com sono.
Morder o cravo
como alguém na missa
e vestir a calça nova
como quem se casa.
Guardar no bolso
um sol e seis sementes
e amanhar a chuva
como quem soletra um nome.
Como quem soletra um nome
e sonha... e sonha.
filosofar
este cheiro
de manga
pelo ar
me faz pensar
que janeiro
já chegou.
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fazer
Olha. Nesta mesa de uma madeira escura
e antiga, feita por um marceneiro cego de amor
morto em uma festa do Corpo de Deus
amigo de cabras negras e de estrelas
há marcas do tempo. Com cuidado
saberás ler algumas figuras, manchas dos anos
e outras de um óleo de plantas raras derramado
sob a luz de velas cor de aveia.
Espia atento e de nada te envergonhes
e vê que algumas são claras como o bálsamo.
Será como se o pão esquecido entre a noite e a manhã
deixasse impressa aqui a sua face. Olha bem, alguém fez
e há alguns riscos desenhados com as unhas,
mas quem? Por quê?
E outros, fundos, lavrados com metais de faca.
Não sei se ao cabo destes dias, agora que te vais
terás deixado na mesa algum sinal. Deixa também
e antes de ir embora volta e põe por um instante
as duas mãos sobre ela: assim, sem pressa.
Melhor do que os traços que o tempo varre
é o haveres deixado aqui o peso de tua alma.
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crepúsculo
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escurecer
Um pouco virá da luz.
Seu tempo será o do lampejo.
Um momento e o sopro apaga a vela
e a parede espelha a escuridão.
Um pouco virá da brasa. Virá da fuligem
e da pedra de fogo sem o fogo, sem o lume
vivo do vento como acendia a dançarina.
Um pouco virá da cinza. Sua areia
boa ao tato, pois ela é o fogo quando pó.
Recolhida na concha rosa das mãos
ela retorna ao chão de saibro
e é sinal de Deus atento.
Pois é o que resta do milagre
e devolve à casa da terra o que era dela:
a madeira, a folha, a alma e a vida.
A primeira chuva é o esquecimento
e um pouco virá do sopro do silêncio.
Isso de que o vento fala quando atiça o fogo.
beber
Vê essa concha? São tuas mãos.
Aperta os dedos com jeito
mas que um pouco de água te escape.
Antes de tomar dá de beber
a um grão do pó do chão, a um inseto
a uma folha seca, a um galho de canela
a um mito de outros povos, a um duende
a um fio do vento, a um ar do sol
a uma criança e a um velho.
E depois bebe.
O que sobrou é a tua parte.
Bebe.
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gaguejar
Palavras pelo meio ela dizia.
Balbucios: “ar” ... “arm”
para dizer “amor”.
a palavra “sim” para “silêncio”
três consoantes sem pronúncia
para “deus”
e a letra “e” para dizer “eu sou”.
apontar
Pois aqui começam as palavras!
Quem escreve aponta o lápis com o canivete.
Cada gesto ensaiado entre os dedos da mão direita
desvela um pouco mais da face da lança
com que o homem se veste de Quixote
e desafia os moinhos e os silêncios.
Um pouco mais e a ponta preta aparece
e ele refaz esse milagre treze vezes
e cantarola uma canção de ninar
enquanto acorda a véspera do poema.
Ele fecha nas mãos a arma da ousadia
e recolhe da mesa lascas de sândalo e poeira.
Assopra dos dedos um pouco de fuligem
e suspira como Deus diante do barro
e como quem cria quando fala, ele escreve.
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começo da noite
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chorar
É tarde.
chora
agora
e apara
a lágrima
nas mãos
em concha.
desentender
Eu que de você nem esperava
esta palavra sonolenta e bocejante
saída da cama com olhos turvos.
Essa palavra como um relógio sem corda
guardado sem uso entre o avô e o neto
como a flor caída antes do fruto
ou como quem vai morrer e faz um gesto
e cria uma coisa de dizer e não diz nada.
Essa palavra como a escrita na parede
com nove letras, sendo cinco apagadas
onde se lê ainda um erre, um ene e o quê?
Essa palavra sombra como a sombra
quando a hora foi e deixou o rastro de
quando já não há sol e nem há sombra.
42
ver
Não fosse a ilha em volta
essa paragem.
Não fosse ao largo o mar
essa como água de meninos.
Não fosse a noite sobre a rua
esse lençol da Lua Nova
e a luz clara de Sírius na cintura.
Não fosse isso assim, aqui e agora
e entrevisto de repente, de relance
no vidro amarelo da janela
e não seria a alma a pedra da memória.
E não seria esse rosário essa demora:
o inventário de ontem colhido pelo chão
com as duas mãos como a flor de lótus
como em prece, como um Credo
lavrado na boca de quem ora
tatuado no rosto de quem espera
e polido na ara da pedra da aurora.
dizer
o que dizemos não ouvem as rãs,
as estradas e o ouvido do vento.
O que dizemos num murmúrio
São gestos, no entanto, como preces
e os astros mais além das árvores
as escutam quando noite alta
o orvalho reflete ao mesmo tempo
o sol, a lua e o olhar de Órion.
É quando as abelhas nos entendem
e os cometas nos escutam quando passam.
Pois quando se pensa que nada foi dito
é que se pronunciam as palavras
de que o universo vive a cada dia e sempre.
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alta noite
44
esperar
Será como isso foi: o fruto doce
depois de comido. A semente caída
na terra ao azar do passo.
Assim se come a melancia, assim se cospe.
E trinta em cada uma dão em nada e uma brota.
Será como escolher um caminho sem saber:
dois se perdem adiante e um chega ao porto.
Será como aqueles que saíram pelo mar:
seis não voltaram e um achou uma ilha
onde os dias e as noites são iguais.
Não há porque não ir, portanto
pois se de mil um volta, foram todos
e quem salva um homem, salva o mundo.
duvidar
Sei que me resta pouco tempo
para ser estas vidas desvairadas
que esqueci de haver até aqui.
me faz falta uma alma ao vento
mais errante ainda e adiante de mim.
Me falta um corpo em estado de fogo
mais do que este, afeito a quinhões pequenos
de estrada de terra, de colinas e águas calmas.
Me faz falta um espírito mais sereno
e afeito a ouvir os anjos.
Me faz falta uma inocência de gestos
sem sentido, sem uma razão conhecida
e sem qualquer proveito
como a de quem caminha
e responde a quem pergunta: pra onde?:
existe isto, amigo? Existe “onde”?
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transar
Viúva e envelhecida
Teresa, a lavadeira
sorri para si mesma e ao vento
enquanto põe na água do tanque
o teu lençol da noite de ontem
com alguns fios de cabelos claros
e manchas dos sucos de dois corpos.
Houve um tempo, ah, houve um tempo!
E ela pensa enquanto lava e lava:
quando o meu lençol branco
já foi também assim também.
ser
Que este musgo me cubra o corpo.
Fui gente e sou agora a pedra.
A chuva me poliu o corpo e eu calo
e espero o dia, o sol da manhã
e a lixa número zero do vento.
Cresce na pele de quem sou
esse tom de verde musgo
que não era meu um dia.
Uma mancha de cores me desenha
este jardim de março e primavera.
Ah, quem me veste de vida?
Eu que sou pedra e sonho
A cor da cinza
e a seta de Zenão de Eléia.
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musicar
Senhor,
faz de mim
um instrumento
de tua música.
Onde há silêncio
que eu leve o si.
Onde houver dor
que eu leve o dó.
Onde há a lágrima
que eu leve o lá.
E onde houver trevas
que eu leve o sol.
vigiar
Não passou o que chamamos de espera.
O instante entre o canto do cuco e o silêncio.
Entre a cantilena da mãe e a lembrança.
Entre a ave morta e o vento roçando o arco do rei.
Nada passou, nem mesmo a noite
e por isso, vigia, calas de olhos bem abertos
como quem espreita o anjo ou o inimigo.
O corpo como quem acende a vela
e empunha a espada e treme.
Os ouvidos acesos como quem vê na escuridão
e ouve sozinho o anúncio do final dos tempos.
Como quem não obstante silva e chama pássaros
ou como quem acena a ninguém e chove e é dia.
Como quem na parede decifra o olhar do outro
e fala de Deus como quem soletra
cantigas de ninar, canções de inverno.
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noite alta
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acolher
Não seria preciso dar a este corpo
jovem um dia e agora calmo, colhido pelos anos
a cor da pele do tempo dos heróis
pois nada nele foi o elmo e o escudo
e nem foi a carne dada aos deuses
e nem a volta pelo mar de Circe.
O que eu fiz foi com estas roupas de feira
e a lembrança de um vinho e de um amigo.
Agora, quando não há mais o arder do fogo
espero a morte como quem se banha
e veste a roupa do domingo e faz a barba
e pensa em deus dizendo: agora é tempo!
E não põe a mão na tranca e nem no arado
E vai embora pela rua sem remorsos.
envelhecer
Foram ásperos os teus anos.
Os dias de ontem foram duros
mas agora chegas e descansas.
Limpa das unhas com a ponta da faca
a terra havana. Foram ásperos os teus anos.
Raspa do calcanhar essa pele tornada pedra:
a dura obra que os passos fizeram de tua carne.
Banha o corpo com a água morna e sal
e que te seja um amigo o mês de maio
(não se morre em maio. não ainda).
Esfrega com sabão de cinzas e palha de milho
o corpo de cor da terra como a terra
repousa a alma enquanto a noite
cobre os campos onde semeastes trigo.
Esquece os números:
a Deus as contas e o futuro.
Esquece o tempo e lembra:
havia uma canção? Havia um canto
e o pai sabia e te cantava quando era junho
e juntos abriam trilhas nos sertões de Minas?
Esquece as contas, lembra o canto.
Foram ásperos os tempos.
Agora é o tempo. Canta!
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apagar
(Imagens de Brión, na Galícia)
Enquanto pode a parede suporta
os traços do homem talhados na pedra.
Mas com o tempo a areia apaga o símbolo
e devolve ao corpo da matéria a sua origem.
No portal da casa em Morentans
no caminho entre Viceso e Oms
talharam de um lado um rosto
e do outro o signo de Santiago.
Tanto tempo depois de tantos anos
e o desenho nem semelha o ar de alguém
e quem passa depressa nem o vê.
E quem repara pergunta: é um rosto?
de quem? de um homem? quem foi?
o que ele disse um dia? disse algo?
E agora espera a noite, e já é tanto.
Até quando não reste na pedra do portal
coisa alguma além da alma de seu nome
e mais nada afora a sombra de seu rosto.
partir
Cora Coralina
Já não faz mais doces
e segredava: sou doceira,
a poesia é só o acaso.
Tinham pouco açúcar e eram doces
e esse, dizia, é o meu segredo.
Já não andava nas ruas da cidade
as pedras cansavam os pés, eram aventuras
de antes, e do mundo baste o seu quintal
de figos e mamões, milho e memórias.
Houve um tempo quando o rio Vermelho
tinha ouro, peixes e águas limpas.
Hoje, do que vale olhar pela janela?
Há dentro dos olhos uma paisagem e é mais bela.
Já quase não escrevia, gastou o rol das rimas
e sonhava ser sábia em silêncio.
Quando a morte veio um outro dia estava pronta
como quem tira do forno o doce
apaga a vela, põe no ombro o xale
e abre a porta e sai e vai embora.
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ressuscitar
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