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17/08/2016 Mídia Sem Máscara ­ Sem teologia nem libertação

Sem teologia nem libertação
ESC R I T O  POR   OLAVO  D E  C AR VALH O  |  07  J AN EI R O  2015 
AR T I GOS  ­  M OVI M EN T O  R EVOLU C I ON ÁR I O

A técnica da superposição é, a rigor, o único procedimento estilístico e dialético do sr. Boff e o resumo
quintessencial do seu, digamos, pensamento.

O estilo é o homem? Sim, e o é para o bem e para o mal. Para o bem, quando a análise revela, por trás das
construções sintáticas e figuras de linguagem, a percepção viva de aspectos obscuros e dificilmente dizíveis da
experiência humana, que assim emergem da nebulosidade hipnótica onde jaziam e se tornam objetos dóceis da
meditação e da ação, transfigurando­se de fatores de escravidão em instrumentos da liberdade. Para o mal,
quando nada mais se encontra por baixo da trama verbal senão o intuito perverso de construir uma “segunda
realidade” à força de meras palavras, transportando o leitor do mundo real para um teatro de fantoches onde tudo
e todos se movem sob as ordens do distinto autor, elevado assim às alturas de um pequeno demiurgo, criador
de “outro mundo possível”.

Para demonstrá­lo, pedirei ao leitor a caridade de seguir até o fim esta exposição do sr. Leonardo Boff,
conselheiro de governantes e, segundo se diz, até de um Papa, bem como, e sobretudo, porta­voz eminente de
uma “teologia da libertação” onde não se encontra nenhuma teologia nem muito menos libertação:

“A pobreza não se restringe ao seu aspecto principal e dramático, aquele material, mas se desdobra em pobreza
política pela exclusão da participação social, em pobreza cultural pela marginalização dos processos de
produção dos bens simbólicos...

“A pauperização gera por sua vez a massificação dos seres humanos. O povo deixa de existir como aquele
conjunto articulado de comunidades que elaboram sua consciência, conservam e aprofundam sua identidade,
trabalham por um projeto coletivo e passa a ser um conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados,
um exército de mão­de­obra barata e manipulável consoante o projeto da acumulação ilimitada e desumana.

“Essa situação provoca um modelo político altamente autoritário... Somente mediante formas de governo
autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da
pobreza.”

O trecho é extraído do livro E a Igreja se Fez Povo(Círculo do Livro, 2011, p. 167). Tudo o que aí se descreve
realmente aconteceu. São fatos, e fatos tão bem comprovados historicamente, que não teríamos como recusar
ao sr. Boff um definitivo “Amém”, se não nos ocorresse a idéia horrível de perguntar: Aconteceu onde e quando?

O segundo parágrafo fala­nos de algo que aconteceu na Europa nas primeiras décadas do século XIX: massas
de camponeses reduzidos à miséria pelo rateio dos seus parcos bens e obrigados a deixar suas terras para vir à
cidade compor um “conglomerado de indivíduos desgarrados e desenraizados”,  reservatório de mão­de­obra
barata para a prosperidade dos novos capitalistas. Karl Marx descreve em páginas que se tornaram clássicas a
formação do proletariado urbano com os destroços do antigo campesinato, no começo da Revolução Industrial.

Mas justamente onde isso aconteceu não aconteceu nem pode ter acontecido o que se descreve no parágrafo
anterior: a “pobreza política pela exclusão da participação social” e a “pobreza cultural pela marginalização dos
processos de produção dos bens simbólicos”. Bem ao contrário, a vinda dos camponeses para as
concentrações urbanas coincidiu com o advento das eleições gerais, não apenas convidando mas forçando a
participação das massas numa política que lhes era totalmente desconhecida no tempo em que viviam no
campo, isoladas dos grandes centros. E coincidiu também com a criação da instrução escolar obrigatória, que
extraía os filhos dos proletários das suas culturas locais provincianas para integrá­los na grande cultura urbana
da razão, da ciência e da tecnologia, substancialmente a mesma cultura das classes altas, dos malditos
capitalistas. Pode­se lamentar a dissolução das velhas culturas locais, mas ela não aconteceu pela exclusão e
sim pela inclusão das massas na vida política e na cultura urbana.

A “exclusão da participação social” e a “marginalização dos processos de produção de bens simbólicos”
aconteceram, sim, mas a centenas de milhares de quilômetros dali, em países da África, da Ásia e da América
Latina que viriam a ser chamados de “Terceiro Mundo” justamente porque neles não houve Revolução Industrial
nenhuma, nem portanto integração das massas, seja na política, seja na cultura urbana. O sr. Boff cria a
unidade fictícia de um espantalho  hediondo com recortes de processos históricos heterogêneos e
incompatíveis, ocorridos em lugares enormemente distantes uns dos outros. A única realidade substantiva
desse monstro de Frankenstein é o ódio que o sr. Boff desejaria instilar contra ele na alma do leitor.
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Mas a fisionomia do monstro não estaria completa sem uma terceira peça, que o sr. Boff vai buscar em outro
lugar ainda:

“Esta situação, diz ele, provoca um modelo político altamente autoritário... Somente mediante formas de governo
autoritárias e ditatoriais se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos ameaçadores que vêm da
pobreza.” 

Descontemos a imprecisão vocabular ­­ “provocam” em vez de “produzem” – e a sintaxe subginasiana: “esta” em
vez de “essa” e “se pode manter um mínimo de coesão e se abafam os gritos” em vez de “se pode produzir um
mínimo de coesão e abafar os gritos”. Vamos direto aos ponto essencial: é verdade que para controlar as
massas esfomeadas surgiram governos autoritários, mas não na Europa da Revolução Industrial nem nos EUA
da mesma época, onde justamente iam triunfando as instituições democráticas junto com o capitalismo
nascente, e sim, bem ao contrário, em países subdesenvolvidos (ou empobrecidos pela guerra), que, invejando a
prosperidade das nações industrializadas, mas não dispondo de uma classe capitalista pujante e criativa,
resolveram industrializar­se às pressas e à força  por via burocrática, desde cima, por meio do investimento
estatal maciço e da economia planificada. Foi essa a fórmula econômica da Alemanha nazista, da Itália fascista
e, obviamente, a de todas as nações socialistas queridinhas do sr. Boff. Foi também, pelas mesmíssimas
razões, e embora em menor grau, a da ditadura Vargas e a do governo militar brasileiro.

Em suma, se fosse possível juntar o que há de mau nos países mais distantes, nos tempos mais diversos e
nos regimes mais heterogêneos, teríamos aí o monstro ideal contra o qual o sr. Boff  deseja voltar a ira da
platéia. O sr. Boff aposta na possibilidade de que o leitor não repare na superposição postiça de recortes e,
impressionado pela soma de maldades, acredite piamente estar vivendo entre as garras do monstro, tirando daí
a conclusão lógica de que deve deixar­se libertar pelo sr. Boff.

Nisso, e em nada mais, consiste a “teologia da libertação”. A técnica da superposição é, a rigor, o único
procedimento estilístico e dialético do sr. Boff e o resumo quintessencial do seu, digamos, pensamento.
Podemos encontrá­la, praticamente, em cada página da sua autoria, onde em vão procuraremos outra coisa.

Já poucas linhas adiante temos outro exemplo, no trecho em que ele usa a figura de S. Francisco de Assis
como protótipo do revolucionário que ele mesmo pretende ser. O leitor, paciente e bondoso, por favor, siga mais
este paragrafinho:

“Tal atitude [a de S. Francisco ao rejeitar os bens do mundo] corresponde à do revolucionário e não a do
reformador e do agente do sistema vigente. O reformador reproduz o sistema, introduzindo apenas correções aos
abusos por meio de reformas.... O que [Francisco] faz representa uma crítica radical às forças dominantes do
tempo... Não optou simplesmente pelos pobres, mas pelos mais pobres entre os pobres, os leprosos, aos quais
chamava carinhosamente ‘meus irmãos em Cristo’.”

Francisco aparece aí, pois, como o revolucionário que em vez de servir ao sistema vigente busca destruí­lo e
substituí­lo por algo de totalmente diverso. Nem discuto a inverdade histórica, que é demasiado patente. S.
Francisco jamais se voltou contra o sistema hierárquico da Igreja, mas, ao contrário, fez da sua ordem
mendicante o instrumento mais dócil e eficiente da autoridade papal. Para usar os termos do próprio Boff,
corresponde rigorosamente à definição do “reformador” e não à do “revolucionário”. Mas o ponto não é esse. A
coisa mais linda é que, segundo o sr. Boff, quando Francisco se aproxima não somente dos pobres, mas “dos
mais pobres entre os pobres”, isto é, dos leprosos, há nisso um claro protesto contra a hierarquia social. Mas
desde quando a lepra escolhe suas vítimas por classe social? Não eram leprosos o rei de Jerusalém, Balduíno
IV, e o rei da Alemanha, Henrique VII, filho do grande imperador Frederico II e de Constança de Aragão?
Francisco recusaria o beijo ao leproso de família rica? Superpondo artificialmente a idéia da deformidade mórbida
à da inferioridade econômica, que lhe é totalmente alheia, o sr. Boff faz do menos anti­social dos gestos de
caridade cristã um símbolo do ódio revolucionário, e o leitor, estonteado pela imagem composta, nem percebe
que foi feito de trouxa mais uma vez, engolindo como pura teologia católica a velha distinção marxista entre
reforma e revolução. Desfeito pela análise o jogo de impressões, a “teologia da libertação” do sr. Boff revela­se
nada mais que uma técnica de escravização mental.

Sim, o estilo é o homem. Uns escrevem para mostrar, outros para esconder e esconder­se, lançando, desde as
sombras, a miragem de uma falsa luz.

Publicado no Diário do Comércio.

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