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OPoderdaHonra Master PDF
OPoderdaHonra Master PDF
A REDENÇÃO
Livro 1
William R. Silva
1ª Edição
Porto Alegre
2014
Senda Literária
Copyright © William R. Silva 2014
Impresso no Brasil.
ISBN 978-85-65319-22-5
CDU 869.0(81)-31
CDD 869.3
Editora Escândalo
www.editoraescandalo.com
O guarda que dormia na cabine de vigilância nada percebia e, cochilando cada vez
mais, se desconectava do ambiente e de tudo que acontecia ao seu redor. Não havia nin-
guém passando pelo lugar, pois era de manhã e dia de semana. Poucas pessoas passeavam
por lá durante esse período. O garoto Dionísio olha rapidamente por detrás do muro e, fi-
nalmente, em meio à multidão de alunos, vê as suas vítimas se dirigirem ao local próximo
de seu esconderijo. Maria do Rosário estava junto a eles. Novamente veio em sua mente
que a menina estava com Túlio e os dois guardas que foram socorrê-lo. Mas, de que lado
ela está? Será que ela sabia de tudo? Era cúmplice dos quatro ou não?
Interrompeu seus pensamentos, pois sabia que não tinha mais tempo para isso. Por um
golpe de sorte, ou melhor, um golpe de azar, os cinco se aproximavam do local e ele se sentia
mais agitado que terremoto em países do norte da América. Apesar de tudo, decidiu que não
iria atingir Maria do Rosário. Tinha seis tiros para quatro pessoas. Teria que acertar a cabeça
de todos, atingi-los fatalmente e depois se suicidar. Quase não poderia errar os disparos. Os
seus batimentos cardíacos se tornavam cada vez mais agressivos, tão fortes que davam pan-
cadas violentas em seu peito. Ana, Roberto, Maria, Paulo e João Sérgio entram no parque,
mas, como o garoto gordinho estava atrás do muro, não perceberam a presença dele.
Dionísio, tremendo e com dificuldade para respirar, olha ao redor para ver se não ha-
via mais ninguém passando pelo local. Observa o guarda que ainda estava em sono profun-
do, tira de forma desesperada o revólver da cintura e aponta em direção aos quatro jovens.
– Agora vocês vão pagar por tudo que me fizeram de mal, seus desgraçados!
Os cinco se viram e observam com olhares assustados a cena do menino gordinho
apontando a arma em sua direção. Dionísio, com ódio no olhar, primeiro aponta a arma em
direção a Roberto, enquanto Ana, Maria, João e Paulo observam assustados e sem ação.
– Você vai ser o primeiro, Roberto! – disse ele irado, se voltando para o adolescente.
– Dionísio, por favor, não faz isto com a gente! – disse Maria do Rosário, com a res-
piração ofegante, tentando impedi-lo, olhando-o com pavor e ao mesmo tempo compaixão.
– Sai daqui, Maria do Rosário, não farei nada com você. Na verdade, sou grato por
ter me ajudado ontem. Some daqui! Meu problema é com esses três – disse o menino ao
ouvir as súplicas da garota, fazendo um gesto com as mãos, que a esta altura estavam ainda
mais trêmulas, para tentar acalmá-la.
Ana Júlia, que já estava nervosa, começou a gritar e a chorar desesperada, implo-
rando para que o garoto não os matasse. Paulo, aos poucos, vai se afastando com medo e
com os olhos arregalados. João Sérgio vira o rosto e começa a procurar apreensivo por uma
saída segura para poder fugir e não ser atingido pelos tiros que, sabia ele, seriam disparados
em sua direção assim que a primeira vítima caísse. Roberto permanece imóvel e sem pro-
nunciar uma só palavra, enquanto Maria do Rosário se ajoelha e começa a orar. Dionísio se
aproxima, encosta a arma na testa de Roberto e dispara...
– Nãããoooo! Socorro, meu Deus! – grita Ana Júlia, apavorada e quase aos prantos.
William R. Silva
A REDENÇÃO
O MENINO SOLITÁRIO
não os usa por diversão e sim para esquecer das suas tristezas. No entanto, cedo ou tarde
seus medos e frustrações vêm à tona, o que lhe dá duas alternativas: se revoltar ou sentir
pena de si mesmo. Ambas deprimentes, pois quando se sentia descontrolado, não sabia ao
certo o porquê e contra quem se rebelar, não sabia se culpava a si mesmo, os colegas de
escola que o humilhavam perante os outros (leia-se “garotas”), sua mãe ou quem quer seja.
Sentimentos de autopiedade e de destruição se confundem, às vezes se alternam, chegando
ao momento de nem mesmo saber o que estava sentindo.
Ter dó de si mesmo, para o menino solitário, é tão ruim quanto a revolta, pois lhe
proporciona um certo desespero, um desejo de sair deste corpo, mudar de vida, fugir desse
mundo, desligar-se da situação na qual se encontra.
Não é que tenha vontade de morrer, embora pense nessa hipótese às vezes. Na realidade,
sonha em recomeçar tudo de novo. É um menino de poucos amigos. Na verdade tem apenas
um que, por sinal, é tão sofrido e humilhado quanto ele. Dionísio quase não tem contato com
outras pessoas fora do colégio. Nem mesmo sua mãe, Maria Clara de Menezes, com quem
divide o mesmo teto, o conhece direito. Mal sabe ela, por negligência, falta de interesse ou ima-
turidade materna, dos problemas emocionais do filho. Espelhos em seu quarto, fez questão de
retirar, só mantendo o do banheiro, pois tem desprezo por sua autoimagem. Da mesma forma,
criou certo pavor de fotos. A simples menção da palavra faz com que o pobre gordinho deseje
se esconder para não ser obrigado a encarar a si mesmo nas fotografias. Assim se resume sua
história nos últimos dez anos. Desde a primeira vez que entrou em contato com a sociedade,
raramente teve momentos de alegria e entusiasmo.
Entretanto, este domingo não foi tão cruel e angustiante como normalmente pre-
senciava. Dionísio passou o dia esperançoso, feliz e confiante. Permaneceu durante horas
elaborando sua carta de amor. Estava decidido a declarar sua paixão, a lutar pela afeição da
garota que habita seus sonhos, sua colega de classe Ana Júlia. A menina, sua musa inspira-
dora, é a causa de todo o seu ânimo. Na verdade, a sua única alegria.
Desde a vez em que a garota se sentou perto dele para que respondessem umas ques-
tões discursivas de história, na aula da professora Carmem, ele jamais conseguiu ficar um
minuto sem pensar nela. Ele se apaixonou pela moça desde o primeiro dia que a viu, mas
não se considerava esperançoso até este momento.
A maioria das garotas o via com desprezo. Grande parte dos meninos do colégio zom-
bava de suas características. Tinha que suportar inúmeras piadas de mal gosto, agressões ver-
bais e físicas e alguns outros constrangimentos perante os demais alunos. Por outro lado, Ana
Júlia o tratou bem. Junto dela, se sentiu um garoto normal e até atraente.
A menina não o desprezou como faziam quase todas as garotas do colégio. Ela con-
cordou em fazer o trabalho sem se queixar com a professora, coisa rara de acontecer, pois
frequentemente era hostilizado pelos colegas de classe. Foi excluído tantas vezes, que
aquela nobre atitude o fez se sentir especial. Estava determinado a conquistar Ana Júlia.
Ele a considerava diferente e por ela seria capaz de todo o esforço possível.
Durante horas, desenvolveu a carta. Escreveu, reescreveu, leu e releu, até que chegou
ao final e a carta, foi concluída. Deu alguns toques finais, corrigiu alguns erros de ortografia e
pronto. Bastava ter calma e esperar a segunda-feira para que ele pudesse atingir seu objetivo
e entregar a sua declaração amorosa à linda senhorita dos olhos verdes.
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William R. Silva
Por um instante, parou sentado na cama, observou ao redor e viu que tudo estava uma
zona. Se alguém ali entrasse, provavelmente teria a impressão de que acabara de terminar
uma luta corporal entre três ou quatro pessoas: livros, cartuchos de jogos, meias, tênis,
folhas de cadernos rasgadas e amassadas, camisas, embalagens e farelos de waffer, latas
de refrigerante e uma infinidade de coisas espalhadas pelo chão, algumas das quais nem
mesmo sabia o que eram. Não se lembrava bem qual tinha sido o último dia que arrumou
seu quarto, talvez uns quatro ou sete dias atrás.
Pegou um envelope que estava ao lado da mesa e, em seguida, colocou a carta dentro
e guardou em sua mochila. Sentiu sua vista cansada ao ver que já marcavam 23 horas no
seu Nokia 1100. Deitou-se na cama e adormeceu.
A Semana – O início
17 de Maio de 2004.
Num piscar de olhos, a noite se transformou em madrugada, e a madrugada em ma-
nhã. O céu de segunda-feira surge mais azul do que o anterior e o sol, que atravessou o vi-
dro da janela, dá as caras para clarear, aos poucos, as volumosas bochechas do garoto Dio-
nísio, que dormia feito uma criança recém-nascida. O celular treme agitadamente e toca
uma música irritante. O alarme marcava seis horas e trinta minutos, era hora de acordar. Se
dependesse dele, continuaria deitado a manhã inteira. Não achava nada agradável quando
chegava o início da semana e tinha de ir ao colégio, mas sabia que era sua obrigação, caso
contrário, sua mãe o mataria.
Em virtude disso, dá um salto da cama, segue andando em direção ao seu guarda-roupa
para pegar seu uniforme azul. Entra no banheiro, escova os dentes, toma uma rápida chuvei-
rada, veste-se e se dirige até a cozinha para tomar o seu café. Chegando lá, vê sua mãe em
frente à mesa, comendo uma torrada e tomando um café com leite. Com uma aparência meio
cansada, segura a xícara com tanta dificuldade que parecia que havia dentro dela algo mais
pesado que chumbo e não café e leite. Morde a torrada tão levemente que até lembra um da-
queles velhinhos sem dentadura. Mastiga com muita dificuldade.
– Bom dia, mãe! – disse o menino ao puxar a cadeira e sentar-se.
– Bom dia, meu bem! – devolveu ela de maneira apática.
Os dois trocam olhares, Dionísio organiza a sua refeição matinal.
– Dionísio! – invocou com voz um pouco mais enérgica – Preciso te dizer uma coisa.
O adolescente lança-lhe um olhar inquieto e depois baixa a face.
– Esta semana ganhei folga do trabalho. Irei viajar e só volto no sábado.
– Sempre me deixa sozinho, não tem nada de novidade nisso – resmungou Dionísio,
sem ter coragem de encarar a mãe. Cabisbaixo, continua a devorar o desjejum.
A mulher ignora a lamúria do garoto. Escorrega os dedos sobre a superfície lisa da
mesa e segura um pedaço de papel. Conduz o pequeno cartão até o filho. O menino pega o
papel e o ergue diante dos olhos. Vê apenas números de telefones e lugares.
– Deixei tudo o que você precisa e tem comida preparada na geladeira, basta você
colocar no microondas para esquentar. Estarei em outro estado, então terá dificuldade para
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O Poder da Honra
me contatar. Esses são os números do hotel que vou ficar. Em caso de urgência, pode ligar
para qualquer um deles que te retornarei – explicou ela, bocejando – Ah! Não abra a porta
para estranhos!
– Está bem. Está bem! – concordou ele, tristonho.
O púbere apoia a mão direita no queixo e mastiga sem muito ânimo. Sua mãe estava
cada vez mais sonolenta.
– Acho melhor andar depressa com esse lanche, rapaz. Você fez muita hora no ba-
nheiro, vai se atrasar – responde ela, colocando mais café em sua xícara.
– Tudo bem, vou acabar de tomar meu café – disse Dionísio meio sem jeito.
Discretamente, observou o rosto de sua mãe outra vez e percebeu que seus olhos
estavam fundos, sua voz um pouco fraca e quase rouca. Não precisou pensar muito para
chegar à conclusão de que na noite passada saiu com as amigas, encheu a cara de bebida,
passou a noite toda acordada e fez Deus sabe o quê. O estranho é que ela não era de sair
aos domingos, ou melhor, era sim, mas o que ela não fazia era beber dessa maneira. Nunca
gostou de acordar de ressaca na segunda, pois leva muito a sério seu trabalho de gerente,
ainda mais numa empresa tão respeitada como a que trabalha. Mas, dessa vez estava livre,
a resposta já estava diante de si. Sua mãe se esbaldou porque sabia que não iria trabalhar no
dia seguinte, se não, jamais faria o que fez, seu trabalho e o status de mulher independente,
para ela, é a sua razão de viver. Ele sabe bem disso. O emprego que tem, na sua visão de
mundo, é o seu bem mais importante. Sempre arcou com todas as contas da casa com uma
responsabilidade exemplar. Dionísio nunca viu chegar um único aviso de conta atrasada,
cortar a luz ou a água, faltar comida ou qualquer outro item. Ela sempre fez questão de se
gabar disso. Fala com orgulho para os amigos e conhecidos que não precisa de homem para
nada, que é uma mulher moderna e sabe se virar sozinha. Ninguém tem alternativa a não
ser concordar, pois há várias evidências que comprovam isso.
No entanto, se por um lado é uma ótima funcionária na empresa e uma mulher res-
ponsável com suas contas e obrigações, é péssima como mãe. Mal teve tempo para ir às
reuniões de escola do filho, nunca se deu conta das crises de tristeza e depressão que o
garoto passa frequentemente durante horas no seu quarto e nunca se importou com nada
relacionado ao filho. No fundo, ela sente certo desprezo pelo garoto e tem vergonha dele,
embora nunca tenha assumido. Facilmente se pode notar, observando o relacionamento
dos dois. Ele sempre sentiu isso, desde quando era mais novo.
O menino ficou tão distraído pensando sobre sua mãe que não se deu conta de que
tinham se passado mais de trinta minutos desde a hora que acordou, escovou os dentes,
tomou banho e sentou-se na mesa. Observou a mãe novamente e percebeu que ela estava
cochilando sentada, segurando a xícara apoiada na mesa. Em seguida, limpa sua boca e
as mãos com uma toalha de mesa, levanta-se e abre a porta, passa pelo corredor e vê seu
cachorro dormindo. Abre o portão e vai para a rua.
Fica por alguns segundos sem poder enxergar, devido ao raio de sol que atingiu em
cheio seus olhos. Todavia, aos poucos, a escuridão embaçada vai tomando forma e se trans-
formando em carros em movimento, pessoas caminhando apressadas pela calçada, cães e
gatos vadios perdidos por entre os cantos, ruas, casas, ônibus e todo o cenário de cidade que
estava acostumado a ver pela janela, mas que nunca deu atenção, pois sempre considerou esse
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William R. Silva
mundo sem importância e ruim, algo que não fazia parte da sua realidade.
De longe surgia o ônibus escolar com seu motorista, um senhor de sessenta e poucos
anos que mantém, com muito orgulho, o seu charmoso bigode. Em poucos segundos, o
veículo já estava em frente à sua casa. Parou, abriu a porta e o desajeitado garoto entra
no ônibus com certa timidez e falta de jeito, porque não gostava de ser notado por muitas
pessoas, o que era inevitável, uma vez que naquele ponto era o único a subir.
O motorista, com ar de velho amigo, olha na direção do menino gordinho e desen-
gonçado, com uma voz carinhosa e simpática o cumprimenta:
– Bom dia, meu jovem garoto. Está pronto para mais uma semana de estudos?
– Sim. Como vai o senhor?
– Vou muito bem. Sente-se e fique à vontade, meu garoto. Qualquer coisa é só pedir.
– Sim. Muito obrigado, senhor Chico.
Havia pouco mais de vinte alunos sentados e nem um terço deles percebeu o passa-
geiro que estava entrando, só duas garotas que, de imediato, cochicharam uma no ouvido
da outra e sorriam discretamente, dois meninos que não esboçaram nenhuma reação e uma
menina que consertou os óculos para ver quem acabara de entrar. O resto dos jovens estava
distraído, conversando e observando lá fora ou dormindo nos bancos. Dionísio rapidamen-
te vê um banco vazio e se assenta.
Reparando pela janela, vê homens dormindo nas ruas, outros pedindo esmolas, carros e
motos cada qual procurando seu espaço, centenas de pessoas se amontoando nos transportes
coletivos, onde a maioria delas ficavam em pé. Numa rápida comparação, viu que seu ônibus
era mais confortável e não havia estudantes em má situação dentro dele.
A viagem é curta, o colégio não era tão longe de sua casa. Com menos de trinta mi-
nutos chegava ao seu destino. Poderia gastar até menos tempo se não fossem as paradas.
Ao chegar ao colégio, Dionísio, com frequência, faz as mesmas observações. Primeiro olha
com medo para ver onde estão os garotos que zombam dele, para assim poder se desviar e
passar despercebido. Depois, observa por alguns instantes para ver se consegue avistar Ana
Júlia e, por último, presta atenção com muita tristeza em alguns dos pais de seus vizinhos
parando, beijando os filhos e os vendo sair do carro.
Caminhando com um olhar assustado, o garoto de rosto arredondado, olhos casta-
nhos claros, acima do peso e com os cabelos caídos na testa, subia as escadas da instituição.
Seu semblante não era dos melhores. Estava preocupado, o que era aceitável, pois, desde
o começo do ano, não se passou um só dia de aula em que não sofresse pelo menos uma
tentativa de bullying.
Todavia, dessa vez, não se intimidou. Estava decidido a pôr seu plano em ação: en-
tregar a carta à linda Ana, a menina dos seus sonhos, declarar todo o amor que sentia por
ela e, assim, namorar uma das meninas mais lindas do colégio, ser respeitado e nunca mais
sofrer humilhação de ninguém.
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O Poder da Honra
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William R. Silva
de si. Engoliu o bullying dos três garotos, todas as suas agressões, físicas e verbais, a zoação,
os nomes pejorativos, os xingamentos e observa que, além deles, ainda havia ali um grupo de
quinze a vinte garotos e garotas rindo, uns de modo discreto, outros de forma explícita. Havia
também sinais de reprovação e tristeza por parte de alguns dos presentes, mas, para o seu
desespero, a maioria ria e se divertia com o que acontecia.
Dionísio tem vontade de sair correndo, se esconder e chorar, ou, na pior das hipóteses,
bater em todos os três ou um tiro, uma facada, mandá-los para o quinto dos infernos ou qualquer
outra coisa que os fizessem desaparecer e acabar com essa humilhação. Porém, nada podia fa-
zer, apenas aguentar. Era sempre assim, todos os dias da semana, de segunda a sexta, de manhã,
no recreio, na sala de aula e na hora de ir embora. Tinha vontade de sair daquele lugar e nunca
mais voltar. Sabia que não tinha como, sua mãe nunca o ouvia e nem nunca se interessou em
ouvir. Sempre o acusava de mal agradecido e reclamão.
Ela, a vida inteira, jogou em sua cara que sempre lhe deu tudo: comida, roupas, boas
escolas, brinquedos, passeios e tudo mais o que a maioria das crianças nunca teve na vida.
Dizia que seu pai nunca se importou com ele. Vivia acusando-o de ser ingrato e dizia que ele
deveria agradecer por ter uma mãe como ela. Não tinha ninguém na vida com quem pudesse
contar. Seus professores nunca perceberam o que estava ocorrendo, para eles eram simples
travessuras de crianças sem maldade alguma. Não repararam nem por um minuto na gravi-
dade da situação. O pobre infeliz pensa em várias alternativas, mas não encontra nenhuma,
a não ser aguentar calado e não se queixar com ninguém.
Por sorte, o sinal da primeira aula é ouvido e as dezenas de alunos somem pelos corre-
dores. Os três vão embora se sentindo os reis do mundo, os maiorais, poderosos. Dionísio não
entende como garotos como eles sentem tanto prazer em humilhar os outros. Roberto Tavares,
João Sérgio e Paulo Munis eram os três meninos mais insuportáveis da escola e Dionísio tinha
medo deles. Com certeza, se os tivesse visto, teria se desviado ou saído daquele local, entraria
no banheiro ou usaria de qualquer outro meio para escapar daqueles rapazes cruéis e sem es-
crúpulos. Dessa vez, terminou a sessão de torturas, mas ele sabe que há grandes chances de que
eles voltem. Terá que pensar numa saída. Quando ia seguir para sua sala, percebeu uma mão
em seu ombro. Virou-se e viu que era seu melhor amigo, Túlio Vieira, um menino franzino,
desajeitado e com óculos que pareciam pesar em seu nariz.
– Não liga pra isso não, Dio. Esses caras são uns otários, vamos para sala – pronun-
ciou ele em atitude de compaixão.
– Eu sei, Túlio. Vamos lá então – disse Dionísio, passando a mão nas costas de Túlio
de forma amigável.
A professora já estava na sala, sentada em sua cadeira, quando as duas criaturas en-
traram e se ajeitaram em seus lugares. Alguns alunos da sala observam os dois com certo
ar de desprezo e, às vezes, um olhar cômico. Dionísio corre a visão no canto direito da sala,
próximo à mesa da professora Lúcia. Repara Ana Júlia por alguns segundos, a menina
sorri e ele se sente feliz por isso. Lúcia levanta-se da cadeira, cumprimenta os alunos com
o clássico “bom dia”, escreve algumas anotações no quadro negro, avisa de qual página do
livro se trata e inicia a aula.
– Mesóclise, próclise e ênclise, esses termos se referem à posição do pronome em
relação ao verbo. Cada um deles tem regras específicas de uso, mas não há muito que se
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O Poder da Honra
Não conseguiu mais se conectar ao seu mundo fantasioso. Tinha muito o que copiar
no caderno e correu contra o tempo. Dos cinquenta minutos de aula, já se passou a metade, e
ainda precisava prestar atenção às dicas da professora. Suas letras são tortas e quase saem da
linha limite do caderno. Algumas frases são obscuras e algumas letras se confundiam umas
com as outras. Um “a” parecia um “o”, um “m” se confundia com “n” e mais um monte de
detalhes na sua ortografia nem mesmo ele entendia. Não importava a sua estética, precisava
escrever tudo antes do término da aula, senão teria que pedir um caderno emprestado. Com
muita pressa, terminou a tempo. Com os punhos doloridos apoiados no caderno, vira um
pouco o rosto e observa despistadamente Ana Júlia, que conversa distraída com Maria do
Rosário, sua melhor amiga. As duas estavam tão entusiasmadas no assunto que nem se deram
conta de que estavam sendo vigiadas.
– Está apaixonado, é? – disse Túlio, curioso, ao vê-lo observar as duas garotas.
– Eu escrevi uma carta pra ela ontem – disse o menino sorridente.
– Você o quê? – perguntou ele sem entender as palavras do colega.
– Escrevi uma... – disse Dionísio se aproximando do ouvido do menino magro.
– Vamos deixar a conversa para hora do recreio, meus amores, e vamos prestar atenção
na aula – disse a professora Lúcia com um tom meio de autoridade, mas carinhoso.
O menino tímido, ao ouvir a represália, arruma-se no assento. Bastante constrangido por,
naquele instante, ter se tornado o centro das atenções, baixa a face e encara o caderno.
– Professora Lúcia, posso ir ao banheiro? – perguntou Ana Júlia do outro lado.
– Pode, sim, Ana Júlia – autorizou a professora ao pegar o giz e fazer outra ano-
tação na lousa.
A menina se retira do local de estudos, ele a acompanha com os olhos. Dionísio sente
mais uma vez seu coração acelerar, sua respiração ofegar e suas pernas bambearem. Percebe
que aquela era a sua chance de ouro e não deveria jamais perdê-la. Observou ao redor para
ver se não havia ninguém olhando, pegou a carta da mochila e guardou no bolso da calça.
Em questão de segundos arquitetou todo o plano. Pediria para sair também ou inventaria
outra desculpa. Ficaria aguardando em frente ao banheiro feminino com a carta na mão e a
entrega a Ana. Ela ficaria feliz com o que lesse e daria uma chance a ele. Tudo daria certo e
todos os seus problemas acabariam naquele momento. Alguns minutos depois da garota sair
da sala, Dionísio coloca sua ideia em ação.
– Professora, posso ir no pátio pegar um copo de água? Preciso tomar meu antialér-
gico e está na hora – perguntou Dionísio, com medo de receber uma recusa.
– Sim, pode ir, mas volte logo – respondeu ela de costas e terminando suas anotações.
O menino sai da sala e segue caminhando pelo corredor. Vê por ali uma simpática
mulher negra e de cabelos cacheados, com uma roupa verde, varrendo os corredores da
escola. Mais pela frente, a sala da diretoria entreaberta. Lá dentro dois alunos sentados
ouvindo sermões da diretora. Não entendia bem o que se passava, mas intuitivamente teve
uma leve noção. Provavelmente alguns alunos que estavam dando problemas foram parar
lá para que fossem tomadas algumas providências. O estranho é que as maiores atrocidades
eram cometidas por Roberto Tavares e seus fiéis seguidores e a diretora nunca os castigava
nem os questionava por isso. Nada acontecia a ele nem a seus comparsas. No entanto, com
os outros alunos, toda vez que ocorria uma briga ou algo grave, os culpados eram punidos,
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O Poder da Honra
minutos do início do intervalo e ninguém praticou bullying contra a dupla: zoações, xinga-
mentos, tapas no pescoço, apelidos humilhantes e nem nada que costumava acontecer durante
os minutos do recreio, aconteceu. Parecia muito estranho e os dois até gostaram disso. Esta-
vam curtindo todo aquele momento de paz. Olham ao redor e nenhum dos seus cruéis agres-
sores estava por ali. Não viam Roberto, João Sérgio e nem Paulo. Pela primeira vez, o trio os
deixava em paz, parecia até um milagre. Pensou ele que talvez fosse devido à presença de um
dos funcionários da escola. Todavia, o porteiro, professores, funcionários ou quem quer que
fosse não estavam no local, somente adolescentes.
Tentou ver se encontrava Ana Júlia. Não a viu em lugar algum. Achou estranho
ao perceber que sua melhor amiga, Maria do Rosário, lanchava sozinha, o que não era
comum. As duas quase não se separavam. Quer muito descobrir qual será o retorno da
estudante que recebera a sua carta. Pelo menos saber se ela já a leu.
O sinal avisa que os trinta minutos haviam se passado e os alunos gradativamente
começam a se recolher. Dionísio e Túlio voltam para sala espantados, ninguém fez nada
de mal a eles. Seria um milagre? Será que os alunos resolveram dar uma trégua? Essas e
dezenas de outras perguntas bombardeavam a mente dos dois adolescentes.
Todos retornam a suas respectivas salas. Enquanto a professora Carmem lia o capítulo
do livro sobre a Guerra Fria, o menino distraído se transportava novamente para suas centenas
de mundos paralelos. Dessa vez, ele não era filho da professora Carmem, nem estava na sua
casa como ocorrera nas “viagens” anteriores. Neste momento, imagina-se ao lado da menina
que encantou o seu coração. Ela em seus braços, agradecendo-o por ter sido tão carinhoso e os
dois se amando como nas cenas românticas de novela.
O restante das aulas se passou entre os devaneios de Dionísio e aquele dia letivo
terminou mais tranquilo do que o normal.
Ainda surpresos, os dois garotos observam a moça que estava parada à sua frente.
Dionísio tenta esfregar os olhos para ver se era verdade aquilo que acabara de acontecer.
Ficam os dois parados em frente à menina dos cabelos dourados, pálidos e sem ação. O
menino desajeitado e nervoso olha para os lados e constata que ela havia chamado ele
mesmo, uma vez que todos os alunos já haviam saído do corredor, sobrando apenas dez
que se dirigiam à saída.
– Em retribuição, também escrevi uma carta para você. Espero que goste – disse a
menina, de forma meiga e inocente.
– Obri-obriga-obrigado, Ana Júlia! – respondeu Dionísio, tremendo, sem acreditar.
– Tchau, vê se não se atrasa, hein? – revelou a moça, se afastando dos dois sujeitos.
Antes que pudessem perguntar o que ela queria dizer com o “não se atrasa”, a garota
passa pela porta da saída e desaparece.
Túlio tenta por várias vezes perguntar a Dionísio do que se tratava, mas sem sucesso,
pois o garoto permaneceu um bom tempo paralisado, sorrindo e sem dizer nada. Despede-se
do seu amigo e vai embora com a carta em suas mãos, andando depressa, com medo de perder
seu ônibus. O menino franzino pressente que havia algo de estranho, mas infelizmente não
tem tempo de alertar seu colega. E, mesmo se pudesse, seria em vão.
Dionísio, de tão ansioso para ler a carta, decide não pegar o ônibus para retornar
à sua casa. Vai até um parque ecológico em frente ao colégio, procura um banco para se
sentar e descobrir do que se tratava o conteúdo que tinha em mãos. Rasga o envelope com
tanta pressa que por pouco não danifica parte do papel junto ao lacre que estava preso com
fita adesiva. Com as mãos trêmulas, segura aquela folha como se tivesse consigo uma joia
preciosa. Sem muita cerimônia, começou a ler palavra por palavra.
“Dionísio, que bom que você teve a coragem de me dizer o que sente por mim. Con-
fesso que desde o dia em que fizemos o trabalho de geografia juntos...”
– Geografia? Mas, não era história? – interrompeu a leitura, fazendo o referido ques-
tionamento ao coçar os cabelos – Normal, ela deve ter se confundido – disse ele ao voltar
sua atenção para o pedaço de papel.
“... também não consegui deixar de pensar em você. Por isso te digo que o amor é
um sentimento puro e nobre e que não deve nunca ser adiado. Encontre-me daqui a vinte
minutos na “Praça São Genaro”, em frente ao colégio. Estarei te esperando perto do
chafariz. Naquele local não há circulação de pessoas e nem os guardas, e as árvores nos
protegem da visão de curiosos. Assim poderemos ficar mais à vontade.
Espero por você. Com muito amor e carinho, Ana Júlia”.
Ao ler aquelas palavras, sente como se tivesse alcançado os céus. Não acreditava no que
estava acontecendo. Seria mesmo verdade? Não seria um sonho? Será mesmo que Ana Júlia
também gostava dele e queria encontrá-lo? Seu peito se encheu de alegria e teve vontade de
berrar para que todos vissem a felicidade que tinha dentro do coração.
O menino desajeitado segue pelo parque a passos apressados, o que faz com que fique can-
sado e sem fôlego. Mesmo assim, não desiste e continua a caminhar por entre as árvores. Entra
no lugar escondido por árvores e vegetação. Ao chegar ao lugar indicado, olha com muita alegria
a moça que estava à sua espera. Dionísio ainda pensava estar sonhando. Devido à sua costumeira
timidez e falta de confiança, não consegue olhar a garota nos olhos. Sente novamente seu coração
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pulsar com mais força, sua voz tremula e as pernas vacilarem. Fica sem ação, sem saber o que
dizer. Assim, a menina puxa conversa, tentando quebrar o gelo.
– Oi – falou ela, com um sorriso sereno.
– Oi, Ana. Tu-tudo bem? – disse ele, ainda de cabeça baixa.
– Sim... Veio alguém com você? – questionou a menina de cabelos dourados ao
averiguar se vinha alguém por de trás do garoto obeso.
– Não, só eu. Estamos sozinhos – respondeu ele, contemplando a menina como se
fosse uma entidade sagrada.
– Que bom. Gostei bastante da carta. Você é um menino muito romântico, adoro
romantismo – disse Ana Júlia com um brilho nos olhos.
– Que bom que gostou. Eu ten-tentei mostrar todo o amor que sinto por você – disse
ele emocionado. – Espero que... – risadas maliciosas são ouvidas por detrás dos galhos,
Dionísio se assusta e interrompe sua fala. Toda a magia do momento é perdido e seus
temores esquecidos, regressam.
O menino, em estado de pânico, começa a correr os olhos por toda parte à procura dos
responsáveis por tais zumbidos. Olha para o rosto de Ana e percebe que, neste momento, a
moça está com uma fisionomia diabólica. Era como se a menina doce, carinhosa e ingênua
que lhe fazia companhia há pouco se tornasse outra pessoa. Tinha algo de errado acontecendo
ou que haveria de ocorrer. Não precisou esperar muito tempo para que, por entre as os galhos
esverdeados, aparecessem três rapazes que vieram caminhando em sua direção. Percebeu
logo que era o trio que adorava humilhá-lo no colégio: Roberto, Paulo e João Sérgio. A prin-
cípio pensou que a garota era tão vítima quanto ele, mas, aos poucos, sua ficha caiu, vendo a
cena que acabara de se desenrolar. Ana Júlia não está atraída por ele, não gostou da carta que
ele escreveu e provavelmente estava de rolo com um dos três rapazes. Tudo não passava de
um plano para fazerem chacota dele.
– Tem que ser muito otário para acreditar que uma “mina” dessas iria dar mole para
um menino imbecil e gordo feito você. Não se enxerga não, rolha de poço? – disse Roberto
em tom de deboche.
– Vamos dar umas pancadas nesse otário – ordenou João Sérgio, de maneira cruel e
insensível.
Assim como acontecia quando via Ana, o seu coração mais uma vez estava acele-
rado. Mas dessa vez era diferente, não estava assim pelos efeitos hormonais da paixão e
sim por medo. Roberto e João Sérgio pareciam possuídos por uma maldade que ele ja-
mais viu nos olhos de alguém, nem mesmo daqueles vilões de filmes, novelas e seriados.
Principalmente João Sérgio, este era o mais sombrio dos três, dava medo encará-lo. Seus
olhos tinham algo diferente, vermelhos e arregalados, não estava no seu estado normal e
facilmente se notava isso. Ana Júlia, que até alguns instantes achava graça e se divertia
com tudo que estava acontecendo, começou a transformar o seu semblante, apresentando
sinais de preocupação.
João Sérgio, por um impulso de maldade, empurra o menino e lhe dá uma rasteira,
derrubando o garoto no chão que, devido ao seu peso, cai com força na grama e tem difi-
culdade para se levantar. Com um sorriso no rosto, Roberto começa a chutá-lo repetidas
vezes e Dionísio começa a gritar com as pancadas na cabeça e nas costas. Paulo e Ana, que
17
O Poder da Honra
neste momento está com as mãos na boca, permanecem parados, assistindo o ato covarde.
O menino geme de dor e começar a chorar.
– O que foi Paulo, vai amarelar? – perguntou Roberto ao chutar as pernas do menino
caído.
Por ordem de Roberto, Paulo, um pouco sem jeito e com uma expressão de terror e
sentindo dó, se junta aos dois. E os três começam a chutar covardemente o menino.
– Por favor, parem com isso. Era só uma brincadeira. Para, Roberto, para, para.
Manda eles pararem, parem com isso, assim vocês vão matá-lo. Não era esse o combinado
– gritou Ana Júlia, vendo os meninos agredirem fisicamente o garoto obeso, assustada ao
perceber o rosto da vítima sangrar.
Os três garotos não dão nenhuma atenção à Ana, que gritava desesperadamente. Os
meninos agridem-no tanto verbal quanto fisicamente e, mesmo vendo sua face sangrar,
ainda permanecem chutando o corpo e o rosto do pobre menino, que tentava de várias
formas se defender, porém nada adiantava, eram três e ele um.
Enquanto Roberto e João riam e se divertiam com a dor e as lágrimas da vítima que es-
tava sendo espancada, Paulo o agredia com um semblante de agonia, não se sentia confortável
participando daquele ato covarde. Incluía-se na maioria das maldades dos dois amigos e gosta-
va da companhia deles, mas não concordava em nada com a atitude dos dois.
– Toma, gordo babaca! Toma, idiota! – disse Roberto ao golpear as pernas e costas
da vítima ensanguentada.
– Otário, mané – repetiu João Sérgio com um sorriso maléfico.
– Gordo idiota, vai apanhar para deixar de ser idiota. Babaca – disse Roberto, aumen-
tando a intensidade das pancadas.
Dionísio nada faz, apenas chora e sussurra de dor a cada pancada que levava dos três.
Conforme era agredido na cabeça, ia perdendo sua consciência até que desmaia e permane-
ce sem esboçar nenhuma reação. Ao perceber que o menino não mais gritava ao receber os
golpes, os três cessaram as agressões. Ana Júlia olha assustada para o menino desmaiado
na grama. Perplexa e desesperada, começa a falar aos soluços e com as mãos na boca:
– Vocês mataram ele! A gente tá ferrado.
– Puta que pariu, cara! E agora? – diz Roberto, com uma expressão de preocupação.
– Eu disse para vocês pararem, eu disse – comentou Ana Júlia, aflita.
– Vamos dar o fora daqui antes que apareça alguém – sugeriu João Sérgio, puxando
a camisa de Roberto.
– Caralho, matamos o gordinho. Estamos ferrados. Ferrados! E agora, e agora? – dis-
se Roberto, ao segurar Ana com agressividade, chegando a apertar seu pulso.
Ana os segue com os olhos cheios de lágrimas e Paulo foge cheio de remorsos. No
fundo, ele queria ficar e socorrer Dionísio, mas teve medo de alguém vê-lo e arcar sozinho
com tudo o que os quatro fizeram ou de seus amigos o acusarem de traidor. Os quatro saem
correndo do local, deixando a vítima ensanguentada e desmaiada.
Não se sabe por quanto tempo ficou caído e desacordado. Ao recuperar a consciência
permaneceu por alguns minutos confuso, sem se lembrar do que aconteceu. Contudo, pou-
co a pouco, ia surgindo em sua mente uma sequência de acontecimentos: acordar cedo, sua
mãe dormindo na mesa, sala de aula, entregou a carta para Ana Júlia, o encontro, Roberto,
18
William R. Silva
NO LIMITE DO ÓDIO
18 de maio de 2004.
O garoto, ainda com hematomas, se recupera sozinho em casa. Passou a noite no
hospital e foi liberado pela manhã. Os pais de Túlio lhe ofereceram toda ajuda necessária
e, se quisesse, poderia se recuperar na casa deles. Mas o garoto recusou, aceitou apenas a
carona que lhe deram até sua casa. Perdeu o cartão que sua mãe lhe entregou, por isso não
pode contatá-la. Na verdade, nem se interessou. Não fazia ideia de onde ela estava, mas
19
O Poder da Honra
para ele, em virtude de seu estado de decepção, pouco importava o seu paradeiro. Se Maria
Clara não voltasse mais, nenhuma diferença faria.
Não queria mais viver em sua casa, nem em lugar algum. Não queria estar nesse mundo.
Tem vontade de se matar, perdeu o gosto pela vida, não mais se interessava pelos jogos de
videogames, revistas e nenhuma outra atividade que o fazia distrair-se. Pensa no rosto de Ana
Júlia se transformando e o olhar com maldade. Como? Como ela teria sido capaz disso? Por
quê? Sente-se desconfortável com esses questionamentos.
– Ana, Roberto, João e Paulo, malditos desgraçados! Todos vão me pagar, um por
um, isso não vai ficar assim – murmurou o jovem deprimido, apertando os punhos.
Permanece sentado em seu quarto, com as luzes apagadas e com seus pensamentos
escuros e sombrios. Pensamentos de ódio, desânimo, vingança, decepção e desilusões. Liga
a TV para assistir o noticiário, crimes e mortes; propaganda da novela, com cenas de amor, o
amor verdadeiro; comercial de lojas de eletrodomésticos, entre outros. Para ele, tudo era lixo,
a televisão era um lixo, as pessoas eram lixo, o mundo era uma merda.
Lembra-se novamente de Ana, o parque, o encontro, ele a vendo feliz e cheio de
esperanças, João o empurrando e ele caindo com a cara na grama. Sente o ódio fluindo
pelas suas veias. Por impulso, começa dar socos repetidas vezes no guarda-roupa. Numa
crise de ódio, chuta a mesa, fazendo com que o despertador caia no tapete. Em questão de
segundos, seu quarto, que não era nada organizado, se torna ainda pior.
Mesmo com o corpo dolorido, continuou com as pancadas nos móveis e utensílios do
quarto. O guarda-roupa foi jogado no chão. Prosseguindo com seu ataque de fúria, raiva e
choro, quebrava cada objeto. O videogame ficou em pedaços com a pressão dos pés. Neste
momento, está se sentindo de um modo como nunca se sentira antes. Estava fora de si, se agi-
tou demais. No clímax do seu momento de raiva, vira-se e dá um soco na janela, quebrando o
vidro e cortando a mão. Por sorte, não cortou o pulso. Após o ocorrido, aos poucos recuperou
a consciência, deitou-se no tapete em meio à bagunça e à desordem. Permaneceu deitado por
horas, segurando a mão sangrando e chorando aos soluços.
Não havia mais esperanças. Tinha muito ódio em seu coração, uma carga tão pesada que
não podia suportar. Queria se livrar dela. A vingança era a única forma de acabar com todo o
inferno mental. Pensamentos obscuros entraram em cena, decidiu arranjar uma arma e acabar
com tudo de uma só vez. Assassinar Ana Júlia, Roberto, João Sérgio e Paulo. Vingar-se de
todos, castigar a sociedade e até mesmo sua mãe, que nunca dera a menor atenção aos seus
sentimentos e frustrações. Logo em seguida, iria se matar. Não tinha o desejo de ir para a cadeia
ou ficar marcado pelo resto da vida com fichas de assassinatos nas costas.
Uma vez tinha escutado na televisão que menores de idade podiam tudo no Brasil,
pois as leis eram fracas e defendiam os infratores juvenis. Tinha carta branca para fazer as
maiores atrocidades e ficaria impune. No fundo, não se mataria por causa das consequên-
cias e sim porque não tinha mais vontade de viver.
Dionísio, desde os oito anos, adquiriu o hábito de escrever ou desenhar. Não por pra-
zer ou criatividade, mas como forma de transportar seus sentimentos, negativos e positivos,
para o papel. Da mesma forma que tinha escrito uma declaração amorosa para Ana Júlia,
pegou um pedaço de papel e começou a escrever uma espécie de carta, confessando os seus
futuros atos: os assassinatos que iria cometer, o seu suposto suicídio e as possíveis causas
20
William R. Silva
NO MORRO DO IGARAPÉS
– São vinte e sete reais e quarenta e dois centavos – disse o taxista, virando-se com
o pescoço para trás.
– Pega aí essas três notas de dez. Não precisa me dar troco, pode ficar pra você – dis-
se Dionísio, ao contar o dinheiro e entregá-lo ao motorista.
– Deus lhe pague, tenha um bom dia.
Desceu sem olhar para trás e sem se despedir do motorista. Andando e observando
22
William R. Silva
em estado de alerta e com sua já conhecida paranoia de estar sendo observado por outras
pessoas, e elas com o intuito de gozar da cara dele. Se dirigiu a um bar a menos de dois
metros de onde foi deixado pelo taxista.
Entrou no recinto meio desconfiado. Dentro do local havia dois homens grisalhos,
magros e mal vestidos, bebendo cervejas, comendo uma porção de carne de boi e linguiça
picada em pequenas fatias, um garotinho de aproximadamente nove anos, que, ao comprar
uma pipoca e uma garrafa de refrigerante, se despedia do dono do bar, e, também, um rapaz
magro, mulato, com barba mal feita cobrindo-lhe a face, boné e uma tatuagem nas costas que
era facilmente visível por causa de sua camiseta. Este último, estava com as mãos apoiadas no
balcão. Do outro lado da divisória, o dono do bar, assistindo o noticiário do jornal da manhã
na televisão: “Homem é preso com setenta e cinco quilos de droga no porta-malas do carro,
mulher é assassinada pelo ex-marido, assaltante é morto durante assalto, polícia federal
prende empresários e funcionários públicos suspeitos de fraudes no INSS”. Sem dizer uma
só palavra, faz companhia aos dois homens que assistiam distraídos o telejornal, imaginando-
se sendo noticiado no dia seguinte: “Jovem de dezesseis anos atira em alunos e se suicida na
porta da escola”.
O dono do bar, que a essa altura percebeu a presença do menino parado em frente ao
balcão, deixa de ouvir as notícias e atende o seu novo cliente.
– O que deseja? – perguntou o homem.
– Me dá um refrigerante e uma dessas coxinhas – apontou para os salgados na estufa.
Assim que recebe das mãos do homem uma coxinha gordurosa e uma pequena garrafa
de Coca-Cola, pousa os olhos no salgado por uns segundos, pensa em desistir de comê-lo,
mas volta atrás, pois precisa parecer uma boa pessoa para obter a informação que queria.
Ajeitou-se na cadeira, encostou-se no balcão e aproximando-se do rosto do senhor que acabou
de lhe servir, com uma voz baixa e sem querer chamar muita atenção, se achega para fazer a
pergunta que deseja, desde o momento em que entrou no bar.
– Sabe onde posso encontrar um homem que atende pelo apelido de Picolé? – per-
guntou o gordinho reparando ao seu lado o homem meio desconfiado.
O velho movimenta as sobrancelhas e faz um olhar de desaprovação. Analisa Dioní-
sio por alguns segundos e faz uma cara de espanto ao ver sinais de espancamento em sua
face. Sem dizer nada, coça os poucos cabelos brancos que tem na careca e responde de uma
maneira nada educada.
– Escuta aqui, moleque. Cada um faz o que quer e não tenho nada com a vida de
ninguém. Quem quiser fumar, que fume, quem quiser beber, que beba, e quem gosta de
drogas, que se vicie e vá para os quintos dos infernos. Mas não acho nada bom um menino
tão novo e bem vestido como você vir aqui atrás de cocaína ou pedra de crack. Se quiser se
drogar, problema é seu, mas não quero que sua destruição seja culpa minha.
– Senhor, eu não uso drogas e nunca tive vontade de usar – falou ele, tentando se safar.
– Não me venha com justificativas, todos na redondeza sabem a fama desse sujeito
que você quer encontrar. Você sabe muito bem o que ele é e o que faz. Duvido muito que
chegou até aqui por motivos honestos. É melhor sair daqui, não quero pessoas da sua laia no
meu estabelecimento – excomungou ele, fazendo o visitante se sentir constrangido.
O idoso não quis mais prosseguir a conversa. Estava irritado e sem paciência para con-
23
O Poder da Honra
tra-argumentar com o menino curioso. O idoso virou-se e entrou numa porta que tinha atrás
do balcão. Todavia, a sua raiva maior é porque um de seus dois filhos foi assassinado há três
meses por causa de uma dívida de drogas. Qualquer assunto que o fizesse se lembrar do aconte-
cimento, deixava-o nervoso. E não gostava de ver outros jovens na mesma situação. Dionísio,
decepcionado, da as costas e vai saindo do lugar para continuar sua busca.
– Aí, mano, se o lance for cocaína, maconha ou pedra, te levo na quebrada pra com-
prar o que tu quer. E aí, o que é que pega? – disse uma voz vinda do balcão.
O aprendiz de meliante estava prestes a cruzar o vão de saída, mas interrompe seus
passos para terminar de escutar seu interlocutor. Bruscamente, volta-se para posição ante-
rior e descobre que o autor da voz era o mesmo homem magro, barba mal feita e de tatua-
gem que estava assistindo o jornal no balcão.
– Não gosto de droga, não, cara. Já disse que não – disse ele, ao se dirigir ao rapaz.
Averigua a sua volta e diz receoso, em voz baixa – Estou precisando é de uma arma de
fogo... um revólver. Você vende?
O meliante escancara os olhos e fica surpreso, mas não se intimida.
– Está falando com o cara certo. Vem comigo, parceiro, antes que o velho volte e
atrapalhe nosso esquema – disse o sujeito, rindo ao dar um salto do banco.
Os dois, após saírem do bar, entram num beco estreito que mal cabiam duas pessoas
andando uma ao lado da outra. Sente um odor estranho de água podre, esgoto e lixo de
matéria orgânica apodrecida. Assim que encontrou a saída, constatou de onde saía aquele
mau cheiro. Era de um córrego que transporta uma água imunda, mas, apesar do odor que
embrulhava seu estômago, não se assustou com a água suja e sim com as casas que foram
construídas em frente ao referido esgoto a céu aberto. Havia crianças brincando, mulheres
lavando roupas em tanques e, para o seu espanto, donas de casa descascando laranjas, cebo-
las, legumes, lavando arroz, feijão e outros alimentos naquele local.
– Meu nome é Vanderlei, mas a galera me chama de Deco. Pode me chamar assim se
quiser. E você, qual é seu nome, parceiro? – perguntou o rapaz, guiando Dionísio por entre
as casas, pessoas e tudo mais que havia no caminho.
O menino de classe média não acreditava que podia existir seres humanos que vivem
em lugares assim, algo totalmente fora da realidade dele. Pela primeira vez aprendeu de
verdade que tinham mundos diferentes e mais tristes que o seu. A cena foi o suficiente para
comovê-lo, mas não para fazê-lo desistir do que queria.
– Meu nome é Dionísio – respondeu o menino gordinho, reparando nas estranhas
pichações nas paredes.
– Que nome estranho esse. Puta que pariu! – disse o mulato de maneira engraçada.
Deco começa a subir uma longa escadaria. Dionísio olha com desânimo o vasto caminho
que terá de percorrer, entretanto não se intimida e começa a fazer o percurso. No trajeto, vê
mulheres descendo com sacolas nas mãos, quatro rapazes fumando um cigarro fedorento e uma
idosa mal vestida descendo a passos lentos, degrau por degrau, como se estivesse em contagem
regressiva. Quase sem fôlego, consegue alcançar o topo. Então, Deco vira à esquerda e entra em
outro beco, que dessa vez não tinha odor de água podre e sim de algum mato queimado. Não
soube identificar o que era, apenas percebeu que o cheiro o deixava um pouco tonto e que era o
mesmo que os rapazes estavam fumando a pouco na escadaria.
24
William R. Silva
Um pouco aliviado por ver que não tinha mais escadas para subir, segue Deco por entre
as vielas, finalmente chegando ao seu destino. Deco, com dificuldade, tenta abrir a porta de um
barraco de paredes sujas de carvão, com uma janela de vidros quebrados e um cobertor tam-
pando a visão de dentro da casa para que curiosos não observem no interior de sua morada. Em
sua fachada, várias embalagens de cigarros, folhas de cadernos rasgadas, latinhas de cervejas
amassadas e outros tipos de coisas inúteis que contribuem para intensificar toda a sujeira, o que
faz com que qualquer um perceba que com frequência há reunião de pessoas para se drogarem
e consumir bebidas alcoólicas naquele local.
– Mas que merda. Caralho de porta, porra! – reclamou Deco, impaciente, pois a porta
não queria abrir mesmo rodando a chave várias vezes.
Devido a algumas tentativas e um pontapé, finalmente consegue ter acesso e o rapaz,
em seguida, convida o menino para entrar.
A residência de Deco, com quatro cômodos e um banheiro, para a sua surpresa, estava
mais limpa do que seu quarto, que mesmo antes de ter seus móveis e objetos destruídos por um
acesso de fúria do jovem garoto, ainda estava bem mais sujo e desorganizado se comparado com
a casa de Deco. Tudo limpo e arrumado, louças lavadas, o piso brilhava como diamante lapidado,
a cozinha tinha um cheiro bom de detergente com amaciante de roupas. A impressão de que se
tem é a de que, se a entrada é suja, o resto também era, mas nesse caso não. Por nunca ter entrado
antes numa favela, fez um julgamento precipitado, ou melhor, preconceituoso. Só por que viu
que a favela tinha becos, ruas e lugares sujos e por ter visto pessoas brincando, fazendo comida e
outras atividades na beira de um córrego imundo, pensou que dentro das casas haviam porcarias
também. Não que não houvesse casas sujas no Morro do Igarapés, mas havia muitas pessoas
higiênicas morando no aglomerado.
Sob o comando do morador, Dionísio se dirige até o quarto. Sem dizer uma só pala-
vra, Deco levanta a sua cama com um pouco de esforço e a afasta totalmente para o lado
direito, tornando visível uma espécie de caixa de gordura, ou de esgoto, que estava debaixo
do móvel. Depois, munido de uma chave, destranca o cadeado que fecha a caixa. De olhos
bem abertos, Dionísio observa que havia dentro dela alguns papelotes de drogas, a qual não
tinha conhecimento do que se tratava, além de algumas notas de cem, cinquenta e vinte
reais e, junto a tudo isso, dois revólveres trinta e oito.
– Está carregada, basta puxar o gatilho e mandar o fulano para o inferno – disse Deco ao
pegar uma das armas e a erguer diante de Dionísio, com uma expressão de crueldade.
– Quanto te pago por ela? – perguntou o menino com os olhos arregalados, que até
este momento não tinha sentido medo por estar naquele lugar.
Estava tão cego de ódio, que não percebeu com quem estava se metendo e a gravidade
da situação. Perambulando em um local de tráfico de drogas e de armas, no meio de bandidos
e pessoas perigosas. Começou a ficar preocupado, com medo de ser preso ou assassinado. Não
tinha mais vontade de viver, mas não queria morrer sem antes executar seu plano de vingança
e muito menos parar em um desses reformatórios de jovens infratores.
– Te faço por novecentos reais? Tem? – perguntou Deco, com o bico da arma virada
para cima.
Com medo e certa desconfiança, tira o maço de notas de dentro do bolso para entre-
gar-lhe e recebe a arma de Deco. Se sente poderoso com o objeto de metal nas mãos, forte
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O Poder da Honra
emocionalmente como se nada e nem ninguém pudesse detê-lo. Dessa vez, não vai mais
sofrer bullying de ninguém, nem insultos e nem ser humilhado. Sente-se como se naquele
momento tivesse o controle da situação. Seus hematomas ainda doíam e sentia certo in-
comodo nas suas contusões, mas de agora em diante, sabia ele, que a amargura que sente
terá o seu fim, todos os culpados arcarão com as consequências. A partir dali, todas as suas
dores seriam ignoradas, passou a enxergar apenas seu objetivo.
Passada a transação de compra e venda, guarda a arma em uma mochila velha que
Deco lhe entregou. Despede-se e se dirige em direção à porta, porém para assustado e sem
ação diante da saída. Com o ranger da maçaneta, deparar-se com dois homens na entrada
da casa. Um deles era alto, magro, de cabeça raspada, com um bigode e bem vestido. O
outro era baixinho, gordo e de cabelos lisos.
– É você, Picolé? Entra, velho – disse o mulato dono da casa.
– A polícia está rondando a favela e revistando geral, acho melhor não vender nada
pra ninguém por enquanto – disse Picolé ao reparar Dionísio com desaprovação.
– Beleza, Picolé. Esse garoto não comprou nada, não, ele está de saída – disse Deco ao
empurrar o menino para fora com medo que fale sobre a transação que acabaram de fazer.
Então esse é o tal Picolé?, pensou Dionísio, observando os dois rapazes por mais uns
instantes, principalmente o homem que ele já tinha ouvido falar.
– O que foi, moleque? Se manda, gordinho. Sai fora daqui – advertiu Picolé, visando
expulsar o garoto da residência.
Apavorado e sem muita cerimônia, sai a passos rápidos por entre o beco. Vira-se para
descer a enorme escada, descendo degrau por degrau com pressa. Não demorou muito para
perceber que no final da escadaria havia quatro policiais com armas nas mãos. Estavam procu-
rando algo no meio do córrego e revistando jovens que passavam pelo local.
Em segundos, Dionísio começa a suar, suas pernas ficam novamente trêmulas. No en-
tanto, continua descendo os degraus. Quando finalmente termina a escadaria, um dos policiais
olha em sua direção, aponta a arma que tinha em punho e dá a voz de prisão.
– Ei, rapaz, pode ficar parado aí. Revista a mochila dele, acho que é este cara. – orde-
na um dos homens fardados com o cano do revólver na direção do garoto.
O jovem gordinho, que até poucos instantes era branco, agora estava mais vermelho
que um pimentão. Sem conseguir respirar e tremendo, vê os policiais dirigindo-se em sua
direção. Já ia preparar-se para correr quando é interrompido por um dos policiais.
– Sai fora daí, gordinho. Vai ficar na frente da arma feito um idiota? Quer que eu
atire em você? – advertiu o militar, fazendo com que Dionísio fique sem entender nada do
que acabara de acontecer.
O menino obeso olha para trás e percebe que os polícias não estavam se referindo a
ele, quando deram a voz de prisão, mas a um jovem negro e desconfiado, com uma mochila
nas costas, que estava bem atrás dele.
Dionísio, não desperdiçando a oportunidade, foge acelerado do local. Antes de sair
do aglomerado, dá uma rápida observada nos dois policiais revistando o rapaz e outros dois
olhando por dentro da mochila à procura de objetos. Estava tão ansioso para sair do morro,
que foi correndo pelo córrego, quase tropeçando em becos, ruas e pessoas que transitavam
pela periferia.
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William R. Silva
Numa rápida passagem pelo bar do senhor que há pouco tinha lhe insultado, observou
no relógio preso à parede que faltavam quinze minutos para as dez da manhã. A aula termina-
va onze e meia. Tinha mais ou menos uma hora e quarenta minutos para chegar ao colégio e
assassinar de vez aqueles três agressores imbecis e a menina que lhe fez de idiota. Era hora de
dar fim naquele inferno e nada nem ninguém poderá pará-lo, dizia a si mesmo. Pouco tempo
depois, pega outro táxi que passava naquele momento.
A REDENÇÃO
Dionísio estava tão absorvido em seus pensamentos que quase não percebeu que
o táxi estava parado à porta do São Magno. Pagou a corrida ao motorista e se retirou do
veículo em passos apressados, seguindo em direção à porta do colégio. Faltam quinze mi-
nutos para a saída dos alunos e estava se sentindo cada vez mais nervoso e ansioso, mas, ao
mesmo tempo, determinado em seguir com seu plano. Tira a mochila velha das costas e a
coloca no muro para se acomodar melhor e pensar sobre o que irá fazer nos próximos vinte
a quarenta minutos seguintes.
Mas havia um problema: não podia executar seu plano naquele lugar. Apesar de estar
com uma grande carga negativa em seu coração, não desejava fazer mal a pessoas inocen-
tes e, se fosse disparar os tiros em meio à multidão de alunos, poderia acertar alguém que
não tinha nada a ver com o acontecido.
Como costumava observar, na maioria das vezes que admirava Ana Júlia chegar ou
ir embora do colégio e entrar na sua condução, sempre a via chegando de um local perto da
entrada da Praça São Genaro ou indo para lá na hora de se despedir dos colegas, o famoso
parque ecológico que um dia atrás foi o cenário do pior episódio de sua vida. Lembrou-se que
Roberto, João e Paulo também se dirigiam para aquele lugar ao irem embora.
Por medo e insegurança, decorou o caminho percorrido pelo trio para fugir deles quan-
do necessário. A sua distração foi tanta que nem sequer ouviu o sino tocar e se agitou por
perceber que, a uma distância não muito longa, vinham pessoas marchando na sua direção.
Levanta-se, olha para o muro onde colocou sua mochila e sente-se confuso, pois ela não esta-
va mais lá em cima. Coloca as mãos sobre o muro e, com um pouco de trabalho devido ao seu
excesso de peso, ergue-se e consegue ver a mochila caída do outro lado.
Pula o muro e pega a mochila que estava no chão. Furtivamente, olhando para os lados,
tira a arma, coloca na cintura e parte em direção ao local onde estarão os jovens.
Chegando ao parque ecológico, acomoda-se atrás de uma enorme parede que há no
acesso principal do ambiente público, segurando o cabo da arma que estava guardada em
sua cintura. O guarda que dormia na cabine de vigilância nada percebia e, cochilando cada
vez mais, se desconectava do ambiente e de tudo que acontecia ao seu redor. Não havia nin-
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O Poder da Honra
guém passando pelo lugar, pois era de manhã e dia de semana. Poucas pessoas passeavam por
lá durante esse período. O garoto Dionísio olha rapidamente por detrás do muro e, finalmente,
em meio à multidão de alunos, vê as suas vítimas se dirigirem ao local próximo de seu es-
conderijo. Maria do Rosário estava junto a eles. Novamente veio em sua mente que a menina
estava com Túlio e os dois guardas que foram socorrê-lo. Mas, de que lado ela está? Será que
ela sabia de tudo? Era cúmplice dos quatro ou não?
Interrompeu seus pensamentos, pois sabia que não tinha mais tempo para isso. Por um
golpe de sorte, ou melhor, um golpe de azar, os cinco se aproximavam do local e ele se sentia
mais agitado que terremoto em países do norte da América. Apesar de tudo, decidiu que não
iria atingir Maria do Rosário. Tinha seis tiros para quatro pessoas. Teria que acertar a cabeça de
todos, atingi-los fatalmente e depois se suicidar. Quase não poderia errar os disparos. Os seus
batimentos cardíacos se tornavam cada vez mais agressivos, tão fortes que davam pancadas vio-
lentas em seu peito. Ana, Roberto, Maria, Paulo e João Sérgio entram no parque, mas, como o
garoto gordinho estava atrás do muro, não perceberam a presença dele.
Dionísio, tremendo e com dificuldade para respirar, olha ao redor para ver se não havia
mais ninguém passando pelo local. Observa o guarda que ainda estava em sono profundo, tira
de forma desesperada o revólver da cintura e aponta em direção aos quatro jovens.
– Agora vocês vão pagar por tudo que me fizeram de mal, seus desgraçados!
Os cinco se viram e observam com olhares assustados a cena do menino gordinho apon-
tando a arma em sua direção. Dionísio, com ódio no olhar, primeiro aponta a arma em direção
a Roberto, enquanto Ana, Maria, João e Paulo observam assustados e sem ação.
– Você vai ser o primeiro, Roberto! – disse ele irado, se voltando para o adolescente.
– Dionísio, por favor, não faz isto com a gente! – disse Maria do Rosário, com a respira-
ção ofegante, tentando impedi-lo, olhando-o com pavor e ao mesmo tempo compaixão.
– Sai daqui, Maria do Rosário, não farei nada com você. Na verdade, sou grato por ter
me ajudado ontem. Some daqui! Meu problema é com esses três – disse o menino ao ouvir as
súplicas da garota, fazendo um gesto com as mãos, que a esta altura estavam ainda mais trêmu-
las, para tentar acalmá-la.
Ana Júlia, que já estava nervosa, começou a gritar e a chorar desesperada, implorando
para que o garoto não os matasse. Paulo, aos poucos, vai se afastando com medo e com os olhos
arregalados. João Sérgio vira o rosto e começa a procurar apreensivo por uma saída segura para
poder fugir e não ser atingido pelos tiros que, sabia ele, seriam disparados em sua direção assim
que a primeira vítima caísse. Roberto permanece imóvel e sem pronunciar uma só palavra,
enquanto Maria do Rosário se ajoelha e começa a orar. Dionísio se aproxima, encosta a arma
na testa de Roberto e dispara...
– Nãããoooo! Socorro, meu Deus! – grita Ana Júlia, apavorada e quase aos prantos.
Assim como Maria, a loira também não conseguiu ver a cena pois havia abaixado o ros-
to no exato momento. Ajoelha-se ao lado da amiga e começa a chorar. Paulo coloca as mãos
sobre os ouvidos e João Sérgio corre em direção à cabine do guarda para acordá-lo e tentar
salvar a sua vida e de seus outros colegas, mesmo sabendo ser uma tentativa quase inútil. Sua
busca por socorro é frustrada, o estudante se atrapalha com as próprias pernas e desaba no
chão. João Sérgio, boquiaberto, se arrasta temendo ser o alvo seguinte.
Ana Júlia, com lágrimas nos olhos, levanta a cabeça em estado de pânico e vê que Rober-
28
William R. Silva
to ainda estava vivo. Dionísio, olhando para ele e sua arma, fica confuso e sem entender por que
o tiro não atravessou a cabeça da vítima após ter sido disparado. Em razão disso, descobriu que
na verdade não tinha saído bala nenhuma. Dionísio, com o revólver ainda na face do estudante,
começa a dar disparos um atrás do outro, mas o rosto de Roberto permanece intacto. Finalmen-
te, Dionísio compreende que não havia munição, o tambor estava totalmente vazio. Por mais
que disparasse, nada aconteceria, seria em vão.
Maria do Rosário levanta-se aliviada. Dionísio ainda não entendia por que sua arma
estava sem munição, uma vez que Deco lhe garantiu que estava carregada. Fora enganado?
Aquele marginal lhe passou a perna? Com que objetivo Deco lhe venderia uma arma sem
munição? Será que queria salvá-lo ou salvar suas vítimas? Inúmeras hipóteses nortearam a
mente do garoto transtornado, mas nenhuma com a resposta exata. Em virtude disso, o bra-
ço armado de Dionísio perde as forças e pende na direção de sua cintura. Imóvel, o menino
atordoado mira seu algoz apavorado pelo que possa acontecer a partir daquele momento.
João Sérgio vendo que tudo se acalmou, se apoia em um tronco de árvore e toma impulso
para se levantar, as duas moças se levantam, Paulo continua a tapar as orelhas e Roberto,
gradativamente, altera a expressão de seu rosto de amedrontado para odioso e acusador.
– Assassino! Vou chamar a polícia, você vai para a cadeia! – berrou Roberto.
João o mira com repreensão, os demais silenciam ainda em estado de choque.
– Não precisa se preocupar com a polícia, meu caro! Já estou aqui. Deixem que eu
cuido de tudo! – disse alguém vindo por trás de todos, fazendo sua voz cortar o ar.
A princípio, a turma de alunos pensa se tratar do guarda, mas ao se virarem simulta-
neamente para ver o autor da ordem e, ao longe, o vigia dormindo na guarita, mostram-se
confusos. As folhas esverdeadas das árvores que despencavam, corriam ao redor do mis-
terioso homem e os feixes da luz solar que atravessavam os galhos, iluminava-lhe a face.
A passos calmos, o homem que surgiu ninguém sabe de onde, aos poucos se aproximava
do grupo de jovens. Seus cabelos compridos soltavam longos fios diante dos olhos, o olhar
intimidador os paralisava, não aparentava ter mais que quarenta e cinco anos e sua barba
era suavemente desenhada em volta dos lábios.
– Você é Policial? – indagou Paulo, com a atenção fixa no homem.
O sujeito nada diz, apenas assente com a cabeça. Dionísio sente seu sangue gelar, era
o fim da linha, dentro de instantes estaria sob o poder da lei e não havia nada que se pudesse
fazer. Boquiaberto, deixa o revólver deslizar de sua mão e cair.
Os quatro jovens abrem espaço e o suposto agente da lei, com um semblante sério,
passa por entre eles e vai rumo ao menino atemorizado. Os olhos de Dionísio pareciam su-
plicar-lhe socorro. O vigilante na guarita continuava dormindo. O homem se agacha, pega
a arma de fogo e se vira para os estudantes.
– A arma é de brinquedo! Tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto – revelou
ele, dirigindo-se aos jovens. – Saiam todos daqui, deixem que eu cuido do resto.
– Vai prender ele? – perguntou Roberto, com uma expressão diabólica.
– Isso não é da sua conta, sumam daqui! Andem logo! – berrou ele.
Maria do Rosário, franzindo as finas sobrancelhas, achega-se mais e analisa minuciosa-
mente as características do sujeito truculento. Temendo uma represália, diz em voz alta:
– Ei, moço? Agora estou lembrando... eu conheço você. Foi você quem socorreu...
29
O Poder da Honra
– Cale a boca, menina! Disse para vocês saírem daqui, querem que o os prenda tam-
bém? – cortou o homem de modo autoritário, fazendo-a se calar.
Maria, de olhos esbugalhados, recua de medo, e parte junto a Paulo e Ana Júlia.
– Idiota, se ferrou – falou João sorrindo, mirando o garoto obeso nos olhos.
Roberto e o amigo também se retiram.
Pais e alunos surgem no local, mas andam normalmente. Por não saberem do ocor-
rido de minutos antes e não terem visto nada, atravessam tranquilos o caminho, sem notar
Dionísio e seu detentor. O homem de cabelos longos lança-lhe um olhar pavoroso e diz em
tom de comando:
– Vem comigo, rapaz! E não tente fugir. Caso contrário, te encontro onde estiver.
Dionísio fica paralisado. O homem segura seus braços com agressividade e ambos
saem a caminhar. O menino, detido e impotente, prende a visão no homem e o indaga:
– Qual é o seu nome, policial?
O sujeito o encara com bastante firmeza e diz, enquanto se encaminhava para a saída:
– Cale a boca e ande!
O SALVADOR
– Preciso ligar para minha mãe. Você não pode me prender sem antes comunicar a
ela. Isso não é certo.
Rapidamente, o homem vira a face e o encara com seus óculos escuros. A cor do
semáforo se torna verde, todos os veículos na via dão partida.
– E quem disse que vou te prender? – interrogou ele, ao fazer o Honda percorrer
a avenida.
O garoto move os lábios, mas as palavras não saem. A revelação poderia tê-lo dei-
xado feliz, mas o efeito foi oposto, uma avalanche de dúvidas o perturba ainda mais. O
mistério que envolvia o seu detentor era preocupante. Dionísio, mesmo sendo intimidado,
tenta arrancar-lhe informações.
– Qual é o seu nome? Aposto que não é policial coisa nenhuma. Estamos andando
a mais de quinze minutos, já deveria ter me levado para a prisão há muito tempo. Quem é
você? Anda, diga logo!
O veículo, continuando a seguir seu trajeto, vira à direita e entra numa pista com
pouco movimento. Dionísio permanece confuso, pois não sabia para onde estava sendo
levado. Num surto de loucura, prende os dedos no pino da porta com a finalidade de abri-la,
planejando saltar do veículo em movimento, mas não obtém sucesso na tentativa, uma vez
que o sistema estava travado.
– Não seja tão idiota. Por um acaso quer morrer? – disse o motorista, sem se alterar.
Dionísio o fita de modo provocador e bastante irado.
– Como posso confiar numa pessoa que não diz nem sequer o nome? Minha mãe
sempre me disse que não devo confiar em qualquer um, ela sempre me disse que existem
pessoas ruins no mundo. O que me garante que você não é mau?
O condutor, dando uma freada brusca, franze as sobrancelhas, vira-se para o jovem
meliante e diz com uma voz enérgica:
– Se eu fosse uma pessoa ruim, você já estaria trancado numa cela para criminosos
juvenis e, quando saísse, seria a maior piada do colégio. Sofreria ainda mais com as zoações
e ainda teria que conviver com o desprezo de todos por ter se tornado um criminoso.
O passageiro recua, treme de medo só de pensar na hipótese. Seu ano letivo nem chegara à
metade e já sofrera o suficiente para uma vida inteira. Os ataques de Roberto e sua turma seriam
ainda maiores daquele dia em diante, com certeza, não deixariam o susto que passaram impune.
Se a trupe já o atormentavam sem ter motivos para isso, agora iria perturbá-lo mais ainda. Seu
temor foi tão forte que seus neurônios nem se deram ao trabalho de raciocinar sobre como o
sujeito sabia daquelas informações ou como teve acesso a elas.
O estado de desespero estava prestes a dominá-lo, entretanto, algo estranho acontece.
O motorista guia o veículo para as proximidades da residência de Dionísio, tornando-o bas-
tante desnorteado. No início, pensou que sua mãe tivesse sido convocada para socorrê-lo
e, há essas horas, já estava em casa para, junto com o policial, repreendê-lo. Lembrando-
se que Maria Clara estava em outro estado, entende que seria impossível ela ter chegado
tão rápido, mesmo partindo de avião. Sem contar que o suposto agente da lei não deveria
saber onde ele morava. Deve ser coincidência, deve ter alguma delegacia próxima da
minha casa, pensou Dionísio. Para sua surpresa, a rua de sua residência se torna a rota dos
dois. Encontrando a entrada da casa de Dionísio, o automóvel freia subitamente, fazendo o
31
O Poder da Honra
pneu deslizar e deixar marcas no asfalto. O menino, com os olhos esbugalhados, volta-se,
boquiaberto, para o sujeito.
– Como... como é que... como é que você sabe onde moro?
O homem nada diz e leva o dedo a um botão na parte inferior da janela. Um ruído
automático é ouvido e todas as portas se destravam, o pino ao lado de Dionísio se ergue.
– Serei bem direto com você, pois nunca gostei de rodeios – disse o homem, manten-
do sua postura implacável. – Ficarei com sua arma em meu poder, saiba que está com suas
digitais. Também tenho testemunhas a minha disposição para provar o crime que cometeu.
– Eu não cometi crime nenhum, eu não cheguei a matar ninguém – interferiu Dioní-
sio, alarmado.
O sujeito austero tira os óculos escuros e mira o garoto com intimidadores olhos negros.
– Adquirir arma ilegalmente é crime... tentativa de assassinato também é. Você esta
encrencado, rapaz. Não tenha dúvida disso.
Os olhos do menino ficam prestes a transbordar em lágrimas, mas por ser mestre em
conter suas emoções na presença de terceiros, respira fundo e faz o possível para não demons-
trar medo. O adolescente deprimido fica cabisbaixo, sem ter coragem de enfrentar o orador.
– Você vai descer do carro, entrar em sua casa e, a partir de agora, fará tudo o que eu
mandar – ordenou o homem, fazendo o menino levantar a cabeça indeciso. – Pretendo te
ajudar, mas não quero que faça perguntas e nem me questione.
– Eu nunca te vi, não sei de onde você veio e até agora não me deu provas de que é da
polícia. Como posso confiar num estranho? – rebateu Dionísio com certo receio.
Franzindo o cenho, olhos fixos na fisionomia de pavor do menino, diz com firmeza:
– Você não tem escolha. Ou segue as minhas instruções, ou te levarei preso. Tenho
todas as provas suficientes para te condenar e ferrar sua vida colegial nos próximos dois
anos de curso. Aceitará a minha ajuda ou irá sofrer os efeitos de seus atos.
O garoto não viu alternativa, a não ser a de concordar. Mas, mesmo assim, tenta
descobrir a real intenção do seu provável salvador.
– Em troca do quê você me ajudaria? Por dinheiro? Já sei, você é um daqueles po-
liciais corruptos. Se for dinheiro o que você quer, sinto muito, mas já gastei ele todo na
compra da arma.
– Isso não lhe interessa. Apenas acredite que irei te ajudar. Não vá ao colégio essa
semana. Ou melhor, não saia na rua. Deixe que resolverei tudo. Agora cale-se e não faça
mais perguntas. Ande, desça!
O ocupante abre a porta do veículo, mas não se retira do assento.
– Pelo menos, me diga qual seu nome, já que serei obrigado a confiar em você.
O indivíduo intimidador se volta para o retrovisor e gira a chave na ignição.
– Meu nome é Nélson Átila, mas pode me chamar de Átila. Entre para sua morada
e aguarde meu retorno.
– Esta bem – disse Dionísio estarrecido, saindo do Honda.
Átila segue acelerado, vira à esquerda e desaparece.
– Estou ferrado! Agora sim arrumei um grande problema – resmungou angustiado.
O Honda Civic de Átila corta a rodovia em alta velocidade, o vento bagunça seus cabe-
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William R. Silva
los. Seus óculos escuros de design italiano davam-lhe um charme especial e a música Blow me
away, da banda Breaking Benjamin, que tocava nos alto falantes, fazia o trajeto ainda mais esti-
mulante. Reduzindo a marcha, olha pelo retrovisor e, não tendo ninguém a correr na sua lateral,
invade uma estreita estrada de terra, sentindo seu corpo tremer ao fazer os pneus trepidarem em
minúsculos buracos, pequenas pedras, cascalhos e a poeira que se espalhava pelo ar. A imagem
de um grande lago se projeta diante do visitante.
Ninguém é visto no lugar. Sabia que o ambiente era quase sempre deserto, pois
passara por lá tempo antes de seguir para a capital. Demorou mais de uma hora para reen-
contrar o caminho, mas não se importou. Estaciona o veículo ao lado da área alagada, abre
a porta e sai. De pé, admira a extensão do lago em paz consigo mesmo.
Dá um meio sorriso, inspira o ar puro e o cheiro fresco. Certificando-se de que estava
só, desliza a mão direita para dentro de sua jaqueta e retira o revólver trinta e oito. Com
um super arremesso, lança a arma a metros de distância, fazendo o referido objeto de metal
afundar na imensidão aquática, gerando pequenas ondas circulares, que se propagam na
superfície do lago, afastando-se do ponto de impacto.
Novamente, Nélson Átila abre o zíper de outra parte de sua jaqueta. Torna a colocar a
mão dentro do bolso e faz um sutil movimento para, dessa vez, tirar de lá objetos menores.
Mostra-se satisfeito ao ver os seis projéteis na palma de sua mão. Balança a cabeça positiva-
mente, sentindo-se vitorioso por ter conseguido tirar as munições do quase assassino sem que
ele percebesse. Afasta o braço direito para trás e, com outro lançamento, joga os seis projéteis
para o alto e os faz despencarem no lago. Mais seis pequenas ondas circulares se propagam.
– Essa foi por pouco! – disse Átila suspirando, sentindo paz interior.
A REVELAÇÃO
22 de maio de 2004.
Dionísio Augusto limpa os últimos estilhaços de vidros que sobraram debaixo da
cama. Seu quarto estava melhor do que antes, tanto na limpeza quanto na organização e na
vivacidade dos móveis, que eram todos novos. Nélson Átila fez questão de comprar outros
móveis para substituir os danificados e ajudar o menino na organização, para corrigir o ato
de brutalidade que quase levou o cômodo ao chão. O novo amigo, embora ainda esteja a
causar-lhe bastante desconfiança, o ajudou muito no decorrer da semana. Se ele realmente
era um policial, até o momento não tinha certeza. Depois de tudo o que ocorreu, decidiu
não mais tocar no assunto, já que nada de ruim lhe aconteceu em virtude de suas tentativas
de assassinatos. O aluno revoltado não tinha maturidade o bastante para entender a vida,
mas compreendia que nenhum homem como aquele ajudaria alguém sem um motivo forte
33
O Poder da Honra
para tal atitude de altruísmo. Seria por pena? O que levaria Átila a querer ajudá-lo e arcar
com a resolução de todos os problemas que o assolavam? Sua mãe lhe orientou a não dei-
xar estanhos entrarem na moradia. Contudo, o filho a desobedeceu, essa seria mais uma de
suas preocupações. Ele pouco falava com a mãe, mas raramente mentia para ela, sempre
foi de cumprir suas ordens.
Por orientação de Átila, não compareceu à escola desde o triste e doloroso episódio
na entrada do parque. O garoto agora sente vergonha de si mesmo toda vez que se lembra
do acontecido. Refletindo com mais clareza, não consegue entender como foi capaz de
planejar uma atrocidade dessas. Mesmo não tendo descoberto o motivo pelo qual a arma
estava descarrega, sente-se eternamente grato por não haver munições no tambor e por
Átila tê-lo ajudado. Graças a isto, agradece e pede perdão a Deus todos os dias antes de
dormir. Seu ajudante misterioso desapareceu faz dois dias. Prometeu que iria voltar, mas
ainda não retornou.
Enquanto removia os restos da destruição e outras sujeiras que ainda insistiam em per-
manecer no piso e no tapete, atenta-se a televisão e assiste, sem muito interesse, o noticiário da
tarde. Até o momento não prestava muita atenção, mas parou imediatamente suas atividades
assim que escutou uma notícia que acabou por deixá-lo curioso e assustado.
“Homem é preso por tráfico de drogas, armas e suspeito de cometer três homicídios
na região dos aglomerados do Morro do Igarapés. Marcos Medeiros Silva Rocha, mais
conhecido como “Picolé”, foi preso na entrada da favela, ao tentar fugir do bloqueio po-
licial. Vanderlei Soares Cunha, popularmente conhecido como “Deco”, e José Moreira,
o “Bola”, ainda permanecem foragidos” – anunciou o repórter na bancada, com fotos dos
marginais divulgadas logo atrás dele.
De olhos arregalados, senta-se na cama e assiste inerte as imagens dos mesmos homens
que viu dias antes, quando foi ao morro adquirir a arma de forma ilegal. A situação a qual se
envolveu era ainda pior do que pensava. Dionísio, conforme ia caindo na realidade, percebeu-
se livre de várias situações arriscadas. Escapou da prisão, correu riscos por ter se envolvido
com pessoas perigosas como Deco e Picolé, safou-se da morte e também da maldição de ter
causado dor a outras pessoas. Nunca imaginou que um dia pudesse entrar em contato com
homens assim e, outra vez, fica aliviado por não ter lhe acontecido nada de mal quando esteve
na presença daqueles elementos criminosos.
Dionísio continua assistindo os programas seguintes enquanto come um lanche, po-
rém não está mais concentrado como antes. Estava outra vez pensativo, lembrando como
essa semana foi agitada, talvez a mais agitada de toda a sua vida. Lembrava das pessoas
que conheceu e das situações diferentes em que cada uma delas surgiram: Deco e Picolé na
favela, o dono do bar, Nélson Átila e a ligação que cada uma delas tiveram nos episódios
que se sucederam, sem falar nos que já faziam parte da sua rotina- Roberto, Ana Júlia, João
Sérgio, Paulo, Maria e Túlio. Qual será a opinião de cada um deles a seu respeito após o
acontecido? – pensava o menino que sempre teve seu ego diretamente influenciado pela
opinião dos outros.
Túlio é o seu melhor amigo, talvez o perdoe e o compreenda. Faz dias que não o
vê. Levanta-se e pensa em ir à casa dele para conversar. Muda de ideia ao escutar alguns
passos no corredor. Entusiasma-se pensando ser Nélson que voltou para visitá-lo. Vai em
34
William R. Silva
direção à entrada da casa, entretanto não é o seu amigo misterioso que surge na porta da
cozinha, mas sim sua mãe. A mulher bem aparentada, cabelos lisos, de vestido florido,
salto alto, chapéu, óculos escuros, um sorriso no rosto e um monte de sacolas e uma bolsa
nas mãos, abre os braços.
– Oi, bebê. Sentiu saudades da mamãe? – perguntou Maria, alegremente.
– Sim, senti saudades de você, mãe – disse o garoto, com uma voz preguiçosa e sem
vigor algum.
A euforia da mulher dura pouco. Apavora-se ao ver marcas de pancadas na face do
filho. Solta as sacolas no chão e corre em direção ao menino, tocando levemente as mãos
em suas feridas.
– O que aconteceu com você, meu bem? – indagou ela, atônita sentindo as marcas
das feridas.
–Eu cai da escada do colégio – mentiu ele, recusando as carícias maternas.
– Meu Deus – suspira ela, aliviada, mas ainda preocupada – Mesmo assim, quero que
me dê detalhes. Estou morta de fome, vou me banhar e comer algo. Assim que terminar
tudo, quero que me explique tudo o que aconteceu.
O adolescente sentia-se muito revoltado com a mãe por tê-lo desamparado por tantas
vezes na vida e não sabia como expressar sua necessidade afetiva.Vira-se de costas e, se-
gundos depois, sai em direção ao corredor. Sua mãe não mais pergunta sobre como o filho
passou a semana sozinho em casa, como foram seus dias de estudo e nem nada relacionado
ao garoto, apenas vai para o quarto e faz o que pretendia.
Dionísio, como sempre, se sente triste e decepcionado com a atitude da mãe. Ten-
tando suprir sua carência emocional, senta-se no quintal, abraça Sansão, o seu cachorro de
estimação, e começa a acariciá-lo. O cão fica por algum tempo no aconchego do jovem e os
minutos correm. Os instantes de paz duram pouco. Repentinamente, o animal fica a rosnar
e permanece com olhos vorazes fixos no portão. Seu dono, curioso, olha na mesma direção
e nada vê. Mesmo assim, o cachorro começa a latir.
Com um movimento habilidoso de suas patas, Sansão salta dos braços gordos e for-
tes do menino e para em frente ao portão, latindo repetidas vezes em estado de alerta como
se estivesse prestes a combater um inimigo. O menino, que até então nada tinha percebido,
vê surgir uma sombra por entre o vão da entrada, que sua mãe há pouco deixou entreaber-
ta. Dionísio ruma para o acesso da residência, assim que abre o portão, deixa transparecer
um sorriso no rosto ao ver que era Nélson Átila, o visitante que estava por trás da porta. O
homem já se preparava para tocar a campainha para que alguém o atenda e o chame para
entrar, contudo, Dionísio apareceu no exato momento.
– Que bom que você veio. Entre, minha mãe está aqui. Venha conhecê-la – disse
Dionísio, convidando-o a entrar.
Nélson, por ter ouvido as palavras “minha mãe”, faz um movimento com as sobran-
celhas e sutilmente modifica a sua expressão facial, mostrando-se bem mais sério. Retira os
óculos do rosto, coloca-o no bolso da sua jaqueta jeans e, sem nada dizer, entra no quintal,
ignorando o cachorro que latia e corria em sua direção e o menino que tentava acalmar o
animal, segurando-o com dificuldade.
O homem enigmático, ao virar-se na direção da porta da cozinha, permanece parado,
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O Poder da Honra
sério e com um olhar firme, reparando na mulher de cabelos alisados que comia biscoitos e
tomava um chá em cima da mesa. Dionísio, que com muita insistência conseguiu domar o
animal, corre para o lado do homem, mas fica confuso ao ver sua mãe, que naquele instante
já tinha visto quem visitava seu lar.
A mulher mira Nélson Átila com ódio enquanto ele nada dizia, observando apenas
o seu estado de ira. Maria Clara, ao levantar de forma inesperada e empurrar com agressi-
vidade a cadeira e a mesa, chegando ao ponto de deixar alguns biscoitos caírem no chão,
avança apreensiva e para em frente ao homem que a contemplava em silêncio.
– Desgraçado! – disse Maria Clara ao olhar em seus olhos. – Como pode ter me
abandonado por quase quinze anos e agora aparecer aqui na minha casa na maior cara
de pau? E as pessoas que você prejudicou? Se esqueceu que seu nome está sujo por aqui,
pensa que todos esqueceram o que você fez? Acha que é só chegar assim, do nada, que
tudo vai se resolver, ser esquecido? Anda, diz alguma coisa! Seja homem, vai ficar calado,
canalha?... Canalha!
Maria Clara, de forma agressiva, aponta o dedo na cara de Nélson, que ouve tudo
calado e sem nenhuma reação, com uma calma sobre-humana.
–Você é um cínico, um ordinário!
Dionísio, que até então não entendia o porquê de sua mãe ter agredido o homem
que ali estava, conclui, ao ouvir as palavras ditas por ela, que ele era um de seus amores
do passado, mas que, sabia ele, não estava tudo esclarecido, pois escutou frases e palavras
desconexas e acontecimentos passados que ele não conhecia até o presente momento. Ain-
da havia peças a serem encaixadas nesse quebra-cabeça, por isso continuou observando a
discussão dos dois, visando encontrar mais explicações.
A mulher, que a esta altura estava vermelha de raiva e proferia palavras e frases
grosseiras e xingamentos, num surto de raiva ergue as mãos em direção ao rosto do homem
com intenção de agredi-lo. Mas este, com uma agilidade ninja, segura seu braço e a imobi-
liza. Dessa vez era ele quem dominava a situação. A mulher, olhando em seus olhos, nada
diz. Átila com as mãos e a voz firmes, inicia o diálogo.
– Eu sei que cometi muitos erros, abandonei vocês dois, fui um irresponsável e mau-
caráter, não só com vocês, mas com muitas outras pessoas que foram justas comigo. É por
isto que estou aqui. Quero me redimir dos meus erros, fazer pelo garoto aquilo que eu não fiz
nos últimos quinze anos. Venho aqui para arcar com as consequências dos meus atos e pedir
perdão, ressarcir aqueles que prejudiquei. Você tem o direito de me odiar, de me condenar, mas
não tem o direito de me negar essa chance, pois você não é Deus.
Maria Clara, que tem dificuldade em acreditar em tudo que Nélson Átila acaba de
falar e por não se convencer de que o referido homem deixou de ser a pessoa mau-caráter
que conheceu anos atrás, começou a amolecer ao escutá-lo dizer o nome de Deus. Ela se
lembrava bem dele no passado, dizendo aos quatro cantos, que Deus não existia, que era
uma invenção do homem, uma neurose. Nunca tinha ouvido falar de algum ateu que pas-
sou a acreditar em Deus. Ainda estava cética em relação a ele, precisava de mais provas
concretas para aceitar as suas palavras.
O que a deixou surpresa não era o fato de ele ter deixado de ser ateu, mas sim o fato de
ele ter mudado sua conduta moral, se remodelado de corpo, mente e espírito em virtude disto.
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William R. Silva
Dionísio, parado, calado e perplexo, mas ao mesmo tempo feliz, presta atenção em
Átila soltando as mãos de sua mãe. Maria Clara, com cara de descontentamento, levanta a
mão esquerda com as palmas viradas para cima, virando-a para o lado de Átila e fazendo a
tão esperada revelação que o menino desejava ouvir.
– É este aí, Dionísio. Este homem é seu pai – revelou ela sem entusiasmo algum.
– Sim, já nos conhecemos há alguns dias – disse Dionísio, satisfeito, cheio de
ânimo e alegria.
A mulher que, por questão de nervosismo, não havia parado para pensar que foi
Dionísio quem abriu a porta para que o homem entrasse em sua residência. Em razão disso,
colocou a mente para trabalhar e percebeu que o menino já tinha certo afeto pelo homem
que estava em sua casa.
Nélson Átila, de alguma forma, conseguiu nutrir a afeição pelo garoto e o garoto por
ele de maneira como ela não conseguira nos últimos dezesseis anos. Havia naquela hora
uma cumplicidade entre os dois. Constatou ela que aconteceu algo de especial enquanto
esteve fora. Assim, resolveu dar uma segunda chance ao homem e o chamou para que os
dois pudessem ter uma conversa particular sobre o destino de Dionísio, que, sabiam eles,
era um adolescente problemático, inseguro e deprimido, que não era capaz de controlar
suas próprias emoções, não estava bem no seu aspecto psicológico e físico, precisava ur-
gentemente de ajuda.
OS REIS DO COLÉGIO
23 de maio de 2004.
Pais, professores, alunos e centenas de torcedores gritam animados ao verem Paulo chu-
tar a bola e fazê-la parar no pé de Roberto, um dos artilheiros da equipe de futebol do colégio,
que, com suprema habilidade, dribla três jogadores do time adversário e fica frente a frente com
o goleiro. Uns vibram, outros roem as unhas, alguns se levantam de seus lugares e erguem as
mãos, quase pulando para dentro do campo. Apesar de todos estarem nervosos e ansiosos para
o término da partida, Roberto, que é um rapaz extremamente prepotente, se mostra equilibra-
do, mesmo sentindo seu coração pulsando forte. Ele é o melhor, o preferido de todos, o rei do
colégio. Sem muita pressa, para a bola no pé direito, ajeita e a chuta no canto esquerdo, o que
faz com que a bola encoste nas pontas dos dedos do goleiro, que quase bate os ombros na trave,
devido a tentativa inútil de tentar desviar o objeto redondo da rede. O rapaz esbelto faz o gol
mais perfeito da partida e classifica a equipe para a final.
O time do São Magno, um dos melhores do campeonato, acaba de ganhar do colégio
Santa Helena Rocha, desclassificando a instituição da competição. A turma de estudantes fre-
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O Poder da Honra
néticos e agitados grita o nome de Roberto, enquanto este tira a camisa, mostrando sua barriga
sarada e seus braços definidos, e bate com as mãos no peito, levando uma multidão de garotas
a chamarem seu nome com mais entusiasmo e satisfação.
Ana Júlia, com seu pompom, guia as outras sete bailarinas na coreografia: mãos para o
alto, passo para frente, sacode as mãos, outro passo para trás, gira, rebola, volta-se para frente,
vira a esquerda, braço embaixo, braço pra cima e começa de novo. As oito pomponetes não se
cansam de dançar alegres e animadas. Se pudessem, ficariam o dia todo dançando por causa
da classificação. Os demais jogadores e todo o resto da equipe invadem o campo para come-
morar a vitória, encerrando-se assim mais uma fase do campeonato anual estudantil. Roberto é
carregado por João Sérgio, enquanto Paulo e os outros jogadores pulam de um lado para outro
ao redor dos dois. O jovem arrogante, sobre os ombros do amigo, segura sua camisa fazendo-a
girar com um movimento do braço direito.
Do alto da arquibancada, Dionísio, por quase cinco minutos, correu os olhos ao redor
do lugar à procura de Túlio, mas não conseguiu encontrá-lo em meio à multidão. Distrai-se
observando Ana Júlia com seu shortinho curto, blusinha colada e jogando o pompom para
cima e para baixo, chegando até mesmo a se esquecer de procurar seu amigo.
– Esse seu amigo não deve estar aqui, não. Tem certeza que ele veio? – perguntou
Nélson Átila, que está ao lado de Dionísio, mas não obtêm resposta, pois o menino estava
assistindo a garota pulando alegre com as colegas pomponetes
– Tem certeza que Túlio está aqui? Dionísio, prestou atenção no que eu te perguntei?
– disse ele outra vez, na esperança de que o menino escute sua voz.
– Sim, pa... Nélson. Ele vem todos os anos. Túlio sempre gostou desses campeonatos.
– Vamos procurar por mais dez minutos. Se não conseguirmos encontrá-lo, vamos
embora porque detesto viajar durante a noite, e, se demorarmos mais, é isso o que vai
acontecer – advertiu Átila, com sua já conhecida voz autoritária, ao prestar atenção em seu
relógio e ver que já era tarde, olhando mais uma vez em volta da quadra.
Dionísio continua encantado com a menina que balançava seus cabelos longos e loiros,
porém sua alegria termina ao ver que João Sérgio, que estava com Roberto em seus ombros,
para diante das meninas de pompom e desce seu parceiro das costas, fazendo com que fique
em frente a Ana Júlia. Dionísio vê a cena como se fosse um filme de terror. Mesmo tendo
medo, estava na expectativa de ver o próximo acontecimento. Dos olhos do menino obeso
correm lágrimas ao ver Ana Júlia pular nos braços de Roberto e os dois começarem a se beijar.
Nélson, por ter percebido a tristeza do filho, dá três suaves tapas em suas costas e, meio sem
jeito, diz algumas palavras tentando amenizar a sua dor.
– Não se preocupe, você tem muito para viver ainda. Essa menina é só mais uma
entre milhões, apenas isto – disse Átila de forma amigável.
– É melhor sairmos mesmo, não tenho mais vontade de ficar aqui. Infelizmente vou
ter que partir sem me despedir do meu amigo, meu único e melhor amigo – disse o adoles-
cente, com um sorriso triste ao girar o pescoço para o lado do seu companheiro.
Dionísio e seu pai descem as escadas. O menino balança a cabeça para os lados com
medo de ser visto por Paulo e João Sérgio, que estavam a mais ou menos cinco metros de
distância. Contudo a dupla não conseguiu notar a presença dele, pois estavam ocupados re-
cebendo beijos e abraços das garotas que os agarravam fogosas ou dando apertos de mãos
38
William R. Silva
nos colegas de classe que vinham parabenizá-los. Dionísio e Nélson atravessam a multidão
e, com muita dificuldade, encontram a saída. O homem sai, mas o menino gordinho para
por mais uns segundos a fim de olhar pela última vez Ana Júlia abraçando Roberto e os es-
tudantes dançando em volta do casal. E também observar Paulo e João em meio aos outros
adolescentes que estavam a cortejá-los.
– Eu vou voltar – prometeu Dionísio a si mesmo. Em seguida, atravessando correndo
o portão, essa é a última vez que o menino vê a turma de alunos do Colégio São Magno no
ano de dois mil e quatro e nos dez anos seguintes.
Maria do Rosário, saindo por uma porta, aparece como num passe de mágica em uma
parte mais alta e confortável da arquibancada, andando por entre os professores que, por ques-
tão de status, assistiram à partida em um lugar diferenciado dos demais torcedores. A menina
desce rapidamente as escadas e passa por entre os rapazes do time adversário que se dirigem
ao vestiário tristes e decepcionados. Ela, cansada, para e olha para trás.
– Onde foi parar aquela anta do Túlio, meu Deus do céu? – disse a menina nervosa
e em voz baixa.
Acalma-se ao ver o menino magricela e atrapalhado descer as escadas e caminhar
na sua direção. Desse modo, ela aproveita e arruma apressada seu vestido vermelho que se
bagunçou devido à maneira como estava andando.
Roberto diz algo no ouvido de Ana Júlia e vai para junto de Paulo, João Sérgio e mais
dois jovens que, após conversarem por um tempo, descem todos para uma área desconhecida
da quadra de esportes, não dando a mínima para a presença de seus pais que estavam nas arqui-
bancadas saindo de seus lugares e se despedindo do local. Maria do Rosário e o raquítico Túlio
se aproximam de Ana Júlia, que era bajulada por todas as outras meninas ali presentes, uma vez
que era uma das garotas mais bonitas, divertidas e populares do colégio.
– Ana, preciso falar com você – exclamou Maria por de trás da colega.
Ana vira-se, sorri para Maria e depois, olhando Túlio com desprezo, puxa a amiga
pelos braços e põe-se a falar discretamente nos ouvidos da moça de vestido longo.
– Maria, você está faz um tempão andando com o Túlio. O pessoal vai pensar que
você está ficando com ele. Vai acabar queimando seu filme, hein? – aconselhou Ana, dei-
xando Maria envergonhada.
– Deixa de besteiras, Ana. Você sabe muito bem de quem eu gosto, mas não é disso
que eu vim falar. Vamos agora fazer aquilo que você me prometeu. Onde estão Roberto e
aqueles dois malucos? – retrucou Maria do Rosário com certa desaprovação.
– Vem comigo, mas saiba que eu não vou fazer o que você quer – disse Ana Júlia,
segurando nos braços de Maria.
– Vai, sim – disse Maria do Rosário, indo os três à procura dos rapazes.
Roberto, João, Paulo, Rodrigo e Mateus conversam aos risos em um local usado
para armazenar o lixo. Frequentemente vão a este lugar nos períodos de aula para fumar
um baseado ou jogar conversa fora. O depósito era a parte do colégio preferida da turma,
pois raramente alguém aparecia por lá, somente faxineiros para colocar o lixo na rua em
dias de coleta.
Enquanto Roberto, Mateus e João revezam o cigarro de maconha, puxando a fumaça
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O Poder da Honra
um sorriso malicioso olhando em seus olhos. Maria do Rosário, que se sente incomodada com
o assédio, dá um tapa na mão do rapaz em sinal de censura e se afasta dele.
– E aí? Vão todos na casa dele pedir desculpas ou não? – perguntou Maria do Rosá-
rio, ainda obstinada a confrontar Roberto.
Roberto, já sem paciência, dá um chute em um saco de lixos que estava no chão,
mandando em direção a Túlio e ordenando que os dois saiam do local. O menino franzino
chega a subir dois degraus da escada com medo de ser agredido, mas desiste de sair por
causa da amiga que ainda estava lá. Maria tenta pela última vez seu pedido, presta atenção
no rosto de Paulo e este nada diz.
– Deus vai cobrar cada um de vocês por isto. Vamos embora, Túlio – disse ela, ao
sair acompanhada do menino magricela.
– Não liga pra ela não, Beto. Ela é evangélica – disse Ana Júlia dando um beijo no
rapaz e saindo do local.
Mateus, que até o momento não disse uma só palavra, pega o cigarro que estava
dentro da lata de lixo e pronuncia em voz alta:
– Então, vamos reiniciar a nossa comemoração.
Terminado o episódio, Paulo se despede dos rapazes e se dirige à saída do depósito.
– Aonde você vai, meu brother? – perguntou João Sérgio.
Ao ouvir a pergunta, Paulo para, pensa, coça a cabeça e, sem se virar, responde o
estranho adolescente.
– Vou embora, meus pais estão me esperando – assim, sobe as escadas com pressa, dá
uma checada para ver se seus companheiros não estão vendo para onde ele vai, procura Maria
e Túlio e os encontra com facilidade, pois a maioria das pessoas já tinha saído da quadra de
esportes. Paulo corre e, com muito esforço, consegue alcançar os dois, que olham com uma
expressão de dúvida, esperando descobrir o que ele pretendia. Paulo demora um tempo para
recuperar o fôlego e, com dificuldade para falar, diz aos dois o que desejava.
– Vamos lá na casa do Dionísio, eu quero pedir desculpa a ele.
Maria e Túlio, com seus rostos iluminados pelo reflexo da luz e sorridentes, balan-
çam a cabeça em sinal de aprovação. Mal sabem eles que, infelizmente, todo o sacrifício
dos três será em vão, pois Dionísio já estava na estrada, indo para longe, morar numa cida-
de do interior de Minas Gerais.
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O Poder da Honra
II
DOR E
APRENDIZADO
10
MOMENTO DE INSÔNIA
5 de junho de 2004.
“Meu nome é Dionísio, tenho dezesseis anos. Quando todos vocês, que nem sei quem
são, lerem esta carta, certamente estarei morto e também vou ter matado Ana Júlia, a
menina que brincou com meu coração, que mentiu para mim. Eu gostava muito dela, mas
ela fingiu gostar de mim. Estou com muita raiva, com raiva do mundo, com raiva do co-
légio, com raiva da minha mãe que toda vez viaja e me deixa sozinho, com raiva do meu
pai que nunca aparece, com raiva da vida, com raiva de mim, mas com mais raiva ainda
de João, Roberto, Paulo e Ana, porque eles me fizeram de idiota. Ana Júlia me levou lá
só para eles me baterem. Ela é mentirosa, não liga para o que eu sinto, merece morrer.
Os quatro vão morrer. Todos morrerão, não por minha causa, sim por causa deles. Hoje,
vou na escola matar todos eles e também vou me matar quando eles estiverem caídos no
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William R. Silva
chão. Obrigado, amigo Túlio. Obrigado, Maria do Rosário, que me ajudou nem sei por
qual motivo, mas obrigado assim mesmo. Obrigado aos guardas e obrigado mãe e pai do
Túlio que cuidaram de mim.
Assinado: Dionísio!”
São mais de duas horas da madrugada quando Nélson Átila, em seu quarto, lê a confis-
são de Dionísio pela vigésima vez e pensa sobre os últimos acontecimentos. Ele encontrou a
carta na primeira ocasião em que visitou a casa do adolescente problemático. Pode-se dizer
que o conteúdo da confissão foi o grande motivador para a união entre pai e filho, mas o con-
tato dele com Dionísio se iniciou bem antes do que o menino imagina.
A primeira lembrança que o acomete é a de uma manhã de quinta feira. Nesse dia,
estava ansioso para conhecer o herdeiro e disposto a enfrentar a ira de Maria Clara. Prepa-
rou-se para o reencontro como um soldado prepara-se para a guerra. Quando, pela primeira
vez, chegou em frente à residência da mulher que décadas atrás fora uma feliz e sonhadora
namorada, quase esposa, reparou bem ao redor para ver como estava o bairro em que morou
há quinze anos. Não teve coragem de se aproximar, precisava se certificar de que aquele ain-
da era o lar da antiga companheira e saber se era o momento exato da reaproximação. A rua
estava tranquila e ninguém o notou. Seguia, de dentro do carro, vagaroso pela via à espreita de
que alguém saísse ou entrasse da moradia. Sua espera não tardou. Em menos de dez minutos,
um ônibus escolar estacionou na rua e, dele, desceu uma figura desengonçada, acima do peso
e com uma postura retraída. Átila sempre fora um mestre em ler linguagens corporais. Não
precisou analisar muito para concluir que o garoto, sofria de baixa autoestima e timidez. Seria
aquele o seu filho? Pensou, recusando-se a acreditar. Para sua decepção, o jovem se dirige ao
portão no mesmo instante em que Maria Clara abria-o. Ao notar o estudante cumprimentar a
mulher, não teve dúvidas de que ele era mesmo seu filho. Não que tivesse algo contra pessoas
gordas, mas sempre imaginou que seu filho fosse um rapaz forte e esbelto como ele em sua
juventude. Pensava encontrar alguém completamente diferente daquele que lá estava. O peso
em sua consciência o atordoou naquele instante, vendo a postura fracassada do adolescente,
culpou a si mesmo por tê-lo abandonado ainda bebê, mesmo tendo fortes motivos para isso.
Os dois entram, o portão se fecha. Calmamente, o motorista passa pela calçada e percebe que
a seu antigo lar não mudara em quase nada, o carro vai embora, nada acontece.
No segundo dia, tenta descobrir em qual colégio o garoto estudava e decide seguir o ôni-
bus escolar pela manhã. O início da sexta-feira estava ensolarado, mas não chegava a incomo-
dar. O estudante deprimido sai de casa e aguarda a sua condução. Por sono ou distração, nem
se deu conta do Honda parado na rua e nem do homem no volante, que o vigiava de longe. Um
barulho de metal rangendo ecoa no final do logradouro, aos poucos, o ônibus se aproxima até
parar ao lado do novo passageiro. Dionísio, cabisbaixo, entra no ônibus. O veículo dos estudan-
tes segue seu curso, Átila começa a segui-lo. A viagem não foi longa, embora demorasse alguns
minutos, freia ao ver o ônibus despejar os alunos na calçada de um bonito colégio. Colégio São
Magno, Instituição Particular de Ensino, essa era a descrição na parte exterior mais alta do es-
tabelecimento. Já ouvira muito falar do lugar quando viveu na região. Queria saber o porquê de
o menino ser tão triste. Sentia instintivamente que muitas de suas angústias tinham ligação com
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O Poder da Honra
sua vida escolar. Notou que Dionísio não era de fazer amizades com facilidade, uma vez que,
em meio a centenas de alunos, não foi visto conversando e cumprimentando nenhum, apenas
botou os pés para fora, subiu a escadaria e sumiu para dentro da escola secundária. Desejava
sondar o comportamento do colegial durante as aulas, mas era impossível. Se foi, retornando
apenas na hora da saída.
No termino das aulas e no tocar dos sinos, a imensidão de jovens é liberada. Surpre-
endeu-se, ao ver que Dionísio, bastante feliz, descia a rampa com um sorriso estampado no
rosto. Era a primeira vez que via o menino alegre. Acontecera algo na escola que o motivou.
Átila teve uma leve noção do que se tratava, para um jovem daquela idade, só havia uma coisa
no mundo que levantaria a autoestima de um adolescente deprimido: garotas. Tudo levava a
crer que alguma menina da escola trouxe-lhe boas expectativas. Outra vez entra no ônibus e
desaparece do alcance de sua visão. Nélson tinha muitos assuntos para resolver, por isso ces-
sou sua vigília no final de semana, retornaria na segunda-feira. Custe o que custar, no início
da semana seguinte, iria se revelar para o rapaz e sua mãe.
Os dias correram e a segunda alvoreceu. Calculou o tempo em que o garoto já estaria
no colégio e o tempo antes de Maria Clara sair para o trabalho. Precisava vê-la a sós, sabia
que a executiva teria um ataque de fúria ao revê-lo, não queria que o adolescente os visse em
confronto. Às nove da manhã, estava a poucos metros da residência. Preparava-se para descer,
quando um taxi parou em frente ao endereço. Maria Clara surgiu pelo vão do portão, bem
vestida e segurando duas malas. Achou estranho ao ver que Dionísio não fora viajar com ela. O
taxi partiu, seu plano foi frustrado, teria de esperá-la retornar ou mudar de estratégia. Resolveu,
então, como mudança de planos, se tornar amigo do menino primeiro, para depois se deparar
com sua mãe. Ligou o carro e tomou caminho.
Novamente, no fim do dia letivo, Átila, estacionado, via a multidão de estudantes
se dispersar. Por um longo tempo, correu os olhos ao redor do amontoado de veículos,
pais, vendedores e demais transeuntes a procura do sujeito tímido, mas não o encontrou.
Instantes depois, vê o gordinho andando apressado e adentrando o parque ecológico. Era
a chance perfeita. Decidiu, então, se apresentar a ele. Adiantou-se mais alguns metros e
estacionou o Honda perto do acesso principal do parque. Desceu do carro e rumou para o
lugar. Não viu o menino em lugar nenhum. O ambiente era fresco, o ar era puro e arejado,
a vegetação agradável. Assim, dedicou-se a caminhar pelas redondezas. Seu objetivo era
encontrar o garoto. Poderia protelar suas outras tarefas e pendências. Sua prioridade na-
quela hora era outra. No máximo três pessoas eram vistas rondando o gramado. A fileira
de árvores e a solidão da natureza eram agradáveis.
Minutos se passam e nada do menino. Diferente de dias antes, o sol havia se escondi-
do e o céu desde as primeiras horas dava sinais de chuva. Não tardou para que as primeiras
gotas pingassem em suas vestes. Alcançou o estacionamento, apenas um carro preenchia
uma das vagas. Tinha espaço o suficiente para se esconder. Vê uma guarita desocupada,
não havia nenhum guarda por perto. Entra no cômodo apertado e, vendo a chuva aumentar,
fica ali, pensativo, esperando o aguaceiro que despencava das nuvens se esgotar. A chuva
finalmente acabou e o céu se abriu. Continuando a sua busca pelo filho, Átila refaz o seu
trajeto. Deduziu que o menino ainda estava no território, porque assim como ele, o rapaz
também deveria ter se escondido para não se molhar.
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William R. Silva
Suas pernas já estavam começando a darem câimbra, mas seguiu em frente. Após
alguns longos passos, estava de volta a entrada do parque. Totalmente desprevenido, fica
perplexo com a cena que passa diante de seus olhos. Dois guardas bufando de cansaço,
segurando, com dificuldade, um menino obeso nos braços, junto a uma garota e um menino
raquítico, apavorados, vindo logo atrás dos dois. O menino desmaiado era Dionísio. Com
cuidado, os dois funcionários deitaram o garoto na grama.
– Chamem a ambulância! – disse um dos vigias, preocupado.
A menina, tremendo, tenta fazer uma chamada pelo celular.
– Também precisamos entrar em contato com os pais deles, ou pelo menos os profes-
sores – falou o outro, tentando sentir a respiração de Dionísio.
Imediatamente, Átila corre em direção ao menino desacordado.
– Ele é meu parente. Vamos levá-lo até meu carro, eu o levo para o hospital e cuido
dos procedimentos seguintes – gritou Átila.
Os dois alunos, aliviados, miram o homem de cima a baixo e os guardas, dão sinal de
cabeça em tom de concordância.
– O que aconteceu com ele? – questionou Átila, revoltado.
– Não sabemos, senhor. Encontramos ele assim – devolveu um dos vigias.
Os três adultos conduzem o pesado corpo para dentro do Honda Civic. Túlio se as-
senta no banco de trás para evitar que Dionísio, sofra algum baque no percurso. Os guardas
voltam ao posto e a garota, entristecida, vê o automóvel sumir no asfalto.
Dionísio dava os primeiros sinais de recuperação, mas Átila decidiu não ir vê-lo, a
ocasião não era das melhores. Por ter meios de provar que era o pai legítimo do paciente,
não teve problema ao arcar com as despesas e tomar as devidas providências. Anos atrás,
pouco antes de partir, o homem o registrara em cartório, e o nome de Nélson Átila era
visível na documentação. As estrelas já cintilavam no céu e o frio da noite escapou pelas
brechas de uma das janelas do hospital. Correu a visão em torno da sala de espera e viu
que o menino magricela aguardava sentado na cadeira. Havia se esquecido dele. Desde o
ocorrido, não lhe dirigiu uma única palavra.
– Qual é o seu nome, menino? – perguntou ele, fazendo o aluno se assustar.
– Túlio. Meu nome é Túlio. E a garota que estava comigo é a Maria do Rosário –
esclareceu, acanhado.
– Seus pais sabem que você esta aqui? – inquiriu o homem de cabelos longos.
– Sim, eu os avisei pelo telefone, disseram-me que iriam se atrasar por causa do
trânsito, mas logo estarão aqui.
Átila se mostra agradecido e volta a admirar o céu estrelado pela janela de vidro. A
porta do elevador se abre, um casal sai às pressas e se dirige em direção a Túlio. Eram os
pais do garoto.
Decorreram muitas horas desde que trouxera o menino para ser medicado, tinha de ir e
não poderia passar a noite com Dionísio. Não conseguiram contato com Maria Clara e isso o
preocupava. Tinha de pensar numa forma eficaz de terminar sua missão da melhor forma possível.
Mas, quem poderia se responsabilizar por seu filho em seu lugar? Mal havia cogitado possíveis
alternativas quando os pais de Túlio pararam diante ele. Rapidamente, teve a brilhante ideia: pedir
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O Poder da Honra
ao generoso casal para que, assim que o filho recebesse alta, o levasse para se recuperar na casa do
amigo. Os dois não ofereçam resistência e Túlio gostou da ideia. Antes de partir, Átila, sem expli-
car o motivo, recomendou a eles que dissessem a Dionísio que foram eles que o socorreram e o
levaram para o hospital. Nenhum deles entendeu o porquê do pedido, mas aceitam sem questionar.
Átila afirma que voltará na manhã seguinte para visitar o paciente onde quer que ele
esteja e descobrir quem ou o que o deixou naquele estado. Entrega um papel com seu número
de telefone nas mãos de Túlio para que o mesmo possa contatá-lo. Despedindo-se da educada
família, vai embora. Talvez, Dionísio nunca soubesse a verdade sobre o que seu pai fez por
ele nesse doloroso episódio. Para Nélson, não fazia diferença nenhuma.
Suas lembranças são interrompidas ao perceber que estava sendo acometido por uma
das suas costumeiras fomes noturnas. Levanta-se com a finalidade de procurar algo para
comer, passa pelo quarto de Dionísio e o vê dormindo como uma pedra. Vai até a cozinha,
abre a geladeira, coloca uma pizza no microondas, e, quando pronta, a consome, bebendo
duas garrafas. Tem o hábito de beber cervejas, em épocas de insônia, para ver se conseguia
dormir. Na tenebrosidade da madrugada, sua mente torna a se distrair e prossegue com suas
recordações no ponto em que parou.
De tanta pressa para frear, Átila quase sobe no meio fio. Eram dez horas daquela inesque-
cível manhã de terça-feira. Estava decidido, nada mais o impediria. Contaria toda a verdade para
Dionísio, diria que ele é seu pai. Também exigiria que o menino contasse a ele o que lhe ocorreu
no parque São Genaro. Saiu do carro e se manteve diante da fachada da residência do filho. Tocou
a companhia e bateu no portão por várias vezes. Logo entendeu que não havia ninguém, mas o
portão não estava trancado, bastava um empurrão e se abria com facilidade. Assim fez, antes veri-
ficando se nenhum vizinho ou outra pessoa qualquer estava o vendo. Entrou na casa e se deparou
com o cachorro Sansão, que rosnava e se preparava para mordê-lo. Tinha que agir rápido. Por fim
teve uma ideia. Por instinto de defesa, pegou um grande caixote de madeira que havia no quintal
e colocou sobre o cachorro, que ficou preso e latindo desesperado, dando patadas e cabeçadas no
caixote até se cansar. No momento em que o pobre animal se viu encurralado, parou de latir e
deitou-se, indefeso.
Não só o acesso ao quintal estava aberto como também a entrada que dava acesso
à residência. O invasor, sem medo ou qualquer preocupação, entra nos cômodos da casa.
Primeiro na cozinha, prestando atenção na fineza dos azulejos, a geladeira, louças lavadas
e bem organizadas num armário ao lado da pia. Em cima da mesa, um copo de vidro cheio
até a metade com refrigerante, um waffer com a embalagem aberta, dois pães num prato de
plástico, manteiga, duas fatias de mortadela e queijo prestes a estragar. Depois, foi em dire-
ção ao quarto de Maria Clara. Olha suas bijuterias, suas roupas de grife, a delicadeza de cada
móvel e utensílios de seu quarto. No banheiro, havia perfumes importados, cremes, xampus,
tudo da melhor qualidade e um grande espelho no qual até ele, que era alto, podia se ver de
corpo inteiro. Assim, conclui que a mãe de seu filho continuava vaidosa, como a conheceu,
por volta dos seus dezesseis ou dezessete anos.
Continua a andar pela casa sem medo de ser surpreendido. Na sala, televisão de
última geração, tapete limpo, decorações de bom gosto, tudo bem arrumado. No corredor,
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William R. Silva
acha estranho ao ver pequenos cacos de vidros, folhas de cadernos amassados, um lápis de
escrever e uma caneta caída em frente a uma porta. Curioso, apressa-se para aquele quar-
to. Assusta-se ao ver o guarda-roupa caído, objetos quebrados, roupas bagunçadas e uma
grande desordem. De início, pensou ter ocorrido um arrombamento. Ladrões entraram para
roubar, por isto revistaram os móveis à procura de dinheiro ou objetos de valor, mas logo
percebeu que estava errado, uma vez que o quarto de Maria Clara, a sala e todo o resto do
lar estavam intactos, tudo em ordem, limpo e organizado.
Conclui que aquela desordem foi causada por um morador da própria residência. Vê
uma gaveta no chão e, dentro dela, algumas fotos. Vê Maria Clara carregando um bebê, de-
pois outras fotos de Dionísio com nove ou oito meses, engatinhando. Sorri ao vê-las. Puxa
mais uma e se mostra decepcionado ao pegar uma foto de um garoto obeso, aparentemente
triste e deprimido, na faixa dos seus treze ou quatorze anos.
Ainda empenhado em descobrir o que aconteceu, continua a investigar a bagunça e
tem sua tese constatada ao ver uma carta pregada na parede. Sem pensar muito, pega-a e
começa a ler. Não precisou lê-la mais de uma vez para deduzir todos os acontecimentos que
viriam daquela hora em diante. Como num clique, tudo ficou claro em sua mente. Aquela
era uma carta de confissão e o que estava escrito nela tem ligação direta com o fato de, no
dia anterior, ter sido espancado no parque. Fora parar no leito de um hospital porque os
colegas de escola lhe armaram um cilada para, depois, agredi-lo. O homem, no seu faro
investigativo, não tinha mais nenhuma dúvida quanto a isso. O aluno deprimido estava dis-
posto a se vingar, vai dar fim a vida de seus agressores. Cada centésimo de segundos se torna
importante daquela hora em diante, Átila precisava agir rápido.
Talvez, já tenha acontecido a tragédia, mas não custa nada tentar, pensou ele guar-
dando a carta dentro da jaqueta.
Em virtude disso, sai correndo pelos cômodos, passando pelo corredor. Antes de ir
para a rua, dá um chute ligeiro no caixote, libertando o cãozinho, que a esta altura estava
agoniado. Entra no Honda Civic e sai cantando pneus, quase atropelando um motoqueiro
que passava ao seu lado no momento da partida.
As ruas estavam diferentes. Sinais de trânsito onde antes não existiam, vias de mão
dupla que agora eram contramão, todos os acessos estavam diferentes. É normal as coisas
mudarem depois de certo tempo, ainda mais depois de uma década e meia. Em razão disso,
não se chateou, mas teve dificuldade para manter a calma, pois tinha pressa. Com sacrifício e
muita perícia, chega ao seu destino e estaciona o automóvel diante das escadas da instituição
de ensino. Olha o relógio, eram dez horas e quarenta e dois minutos. Vasculhou toda a área
com a visão, analisou bem e deduziu que não houvera crime nenhum por ali pela manhã. Se
tivesse acontecido algo, não estaria tudo em paz como estava naquela hora. Teria policiais,
repórteres, pessoas comentando e vários outros fatores que normalmente fazem parte de uma
catástrofe, e não havia nada disso. Via carros em movimento, pessoas andando tranquilas,
duas crianças correndo na saída do parque e um vendedor arrumando a barraquinha para
vender seus salgados quando os alunos saíssem.
Ficou dentro do carro esperando por mais de vinte minutos, quando, de longe, avista um
garoto desajeitado, gordo, de cabelos caídos na testa, aparentemente desconfiado e com uma
mochila nas costas, caminhando em direção à escadaria da entrada do colégio. Assiste todo
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O Poder da Honra
o trajeto do adolescente enquanto tira sua jaqueta, coloca-a no banco. Sai do carro sem que
o mesmo perceba, pois ele e seu veículo estavam localizados num ângulo que Átila poderia
observá-lo, mas o garoto dificilmente enxergaria seus movimentos, o que era quase impossí-
vel, uma vez que Dionísio estava completamente distraído, submerso em seus pensamentos.
O homem de cabelos longos e blusa xadrez presta atenção no garoto que senta na escadaria e
coloca a mochila em um muro. Átila, que a esta altura sabia o porquê do estranho sujeito estar
sentado ali, vai em sua direção para impedi-lo de fazer o que pretendia. Para no outro lado do
muro a fim de pensar em um plano.
Não consegue pensar em nada. Vai tentar persuadi-lo e, se não obter resultado, fará
tudo na marra. Quando ia entrar em ação, se depara com a alça da mochila pendurada diante
dos seus olhos. Puxa-a devagar para que o dono não perceba e sente um objeto de metal ao
tocar no tecido. Olha ao redor, não vê ninguém, abre o zíper com cuidado, apanha o revólver
trinta e oito e, com facilidade, retira as seis munições e as esconde nos bolsos. Sabia lidar
com armas. Houve épocas de sua vida nas quais precisava frequentemente delas. Pôs nova-
mente o objeto de metal no lugar de onde foi tirado e deixou a mochila no chão. Poderia ter
tirado a arma também, mas no fundo queria ver se realmente o jovem desengonçado seria
capaz de cometer aqueles assassinatos. Afastou-se do lugar e permaneceu a alguns metros,
observando as ações do possível matador.
Viu que o menino partiu apressado em direção ao parque ecológico. Após ver centenas
de alunos saindo da portaria e descendo as escadas, correu para o mesmo destino, mas não
foi pelo mesmo caminho que Dionísio. Preferiu usar outra entrada, que, apesar de ser mais
longe, teria mais facilidade para observar os acontecimentos sem ser notado. Escondido atrás
de uma árvore, vigia o menino encostado à parede do parque e balança a cabeça, reprovando
o guarda que estava dormindo na guarita. Presencia as cenas que se desenrolam uma a uma de
maneira fria e analítica: Dionísio escondido, os cinco adolescentes entrando no parque, o me-
nino nervoso tentando matar um deles, a arma apontada para a testa de um dos rapazes, duas
moças de boa aparência ajoelhadas chorando ou orando, um com as mãos no ouvido, outro
correndo para chamar o guarda e, em seguida, se espatifando no chão, o dedo do assassino
se movendo no gatilho e nenhum projétil a varar o crânio da vítima, deixando-o ileso. Neste
exato momento, Nélson Átila, tranquilo e com extrema sensatez, entra em ação, salvando o
menino de futuros problemas.
Lembra quando, fingindo-se de policial, expulsou os adolescentes e levou o gordi-
nho dali, fazendo com que entrasse no carro e saíssem o mais rápido possível. Pensa na
sua estratégia genial para fazer o filho ficar sobre seu controle até que pudesse esperar
o momento certo para contar-lhe que era seu pai e reverter a situação embaraçosa que o
filho criou. Foi ao São magno pensando em se encontrar com a diretora. Desconfiou que
houvesse alguma queixa contra Dionísio na escola, mas se surpreendeu. Nenhum dos cinco
alunos relatou o incidente aos pais. É bem provável que estivessem com medo, pois todos
ao terem ciência da tentativa de assassinato, iriam descobrir que os três estudantes haviam
agredido covardemente o aprendiz de assassino.
queixo, firma o cotovelo na mesa e, mais uma vez, volta a se entreter com suas lembranças.
Relembra quando ajudou Dionísio a arrumar a bagunça e a desordem no quarto, compran-
do móveis novos. Pensa também, no seu reencontro com Maria Clara, a discussão e os
dois, em consenso, conversando sobre o filho.
Ela era uma mãe negligente, pensava ele, mas sabia, pelo modo como falava, que estava
preocupada com as atitudes estranhas do menino. O dia todo no quarto, sem falar nada, sem
sair, com poucos amigos e, para piorar, estava acima do peso, o que era nocivo para a saúde
de qualquer ser humano, principalmente para um adolescente. Nélson Átila conta a ela sobre
o ocorrido no parque, sobre o que ele, munido de uma arma de fogo, pretendia fazer com
seus algozes colegiais e mostra a carta de confissão para a mãe aflita. Ela fica assustada, sem
acreditar no que acabava de ler, não aceitando que um possível assassino morava sob seu teto.
Conta a ela sobre os móveis quebrados e diz que o menino precisava urgentemente de ajuda
psicológica, espiritual ou qualquer outra ajuda exterior. Átila se propôs a ajudá-lo e Maria Clara
se sentiu aliviada por isto. Assim, a mulher deixou as mágoas do passado de lado e passaram a
se concentrar no adolescente, que era o problema maior.
Pensa nos três conversando na sala: Dionísio, Maria Clara e Átila, o menino dizendo que
não quer mais ir ao colégio e não voltará à instituição nem se for obrigado. Não queria mais
morar no bairro. Nélson propôs a ele que fosse morar consigo no sul de Minas Gerais. Dionísio
ficou feliz e gostou da ideia. Ele alertou o garoto, dizendo que sua vida não seria moleza e que
iria ter de mudar seus hábitos, tantos sociais e emocionais quanto os alimentares, por bem ou
por mal. Ele não teria opção. Ou aceitaria as regras ou voltaria a viver com a mãe. Maria Clara,
por não ter alternativa e não saber o que fazer, aceita tudo sem resistência. Na verdade, muito
antes, poderia ter feito pelo filho, muito mais que isso, mas para isto teria que comprometer sua
carreira e sua vida badalada, o que nunca esteve disposta a fazer.
Dionísio, cheio de sonhos e esperanças, arrumou as malas sentindo-se entusiasmado,
falando mais que papagaio. Ele pediu a Nélson que parasse no colégio a fim de se despedir
do seu melhor amigo, o único amigo, dizia ele. Os dois assistiram à partida de futebol entre
os estudantes. Átila sentindo desprezo e, ao mesmo tempo, dó, por ver o garoto chorando,
uma vez que a aluna que ele supostamente amava, beijava outro rapaz.
Faz quase quinze dias que estão morando juntos. Ele não tem experiência nenhuma
como pai e não sabe como proceder. Sabe tantas coisas na vida, mas não sabia ser pai, que
ironia, pensava ele. Mas, sempre arcou com suas decisões e dessa vez não seria diferen-
te. Precisava urgentemente tomar algumas providências. Teria que colocar o menino no
colégio para que não perdesse o ano letivo, iniciar o processo de emagrecimento e trans-
formá-lo em um homem de verdade, com virilidade e bravura, da mesma forma como lhe
havia ensinado seu pai e este, aprendera com seu avô. Não admitiam frouxos e fracotes
na família. De maneira alguma queria envergonhar sua linhagem, mesmo muitos de seus
parentes estando mortos. Iria transformá-lo em um macho de verdade. Era essa a sua meta
e não iria desistir enquanto não a atingisse.
Era essa a causa da sua insônia, ser pai. Como? De que forma? Já fez tantas coisas
difíceis na vida, tanto boas quanto ruins. Já escapou da morte, já traiu, já roubou, errou
muito e se arrependeu, passou por muitas situações complicadas. Conhece muito sobre a
natureza humana, na teoria e na prática, mas ser pai para ele era um desafio inédito, uma
49
O Poder da Honra
11
A CATEDRAL
6 de junho de 2004.
Dionísio cochila no banco traseiro do automóvel enquanto Nélson dirige tranquila-
mente pela cidade escutando uma das músicas da banda Titãs. O motorista do Honda Civic
já estava sentindo saudade de toda aquela paz e facilidade de acessos, com ruas tranquilas,
poucos carros, motocicletas e pessoas para disputar espaços. Não havia sinais de trânsito,
poucas faixas de pedestres eram vistas e as pequenas vias eram quase vazias, alguém atra-
vessando, um ou outro veículo, motos ou até mesmo carroças raramente o faziam parar
e esperar. Dirigir no pequeno município de Realinópolis não era tão estressante como na
cidade grande. Na maioria dos casos, o tráfego era fácil.
Seguindo seu caminho, depara-se com um enorme morro. Acelera violentamente fa-
zendo com que o menino acorde de seu sono. Dionísio, ainda com os olhos semiabertos e
bocejando, começa a prestar atenção nas maravilhas da cidade. As casas, em sua maioria, sim-
ples e com quase o mesmo estilo, lojas, supermercados e todas as construções sem nenhuma
pichação. Não encontrou mendigos pelas ruas, nem sujeiras e nenhuma outra poluição, nem
mesmo visual ou sonora. A cidade era toda limpa e calma. Não acreditava que poderia existir
ambiente assim no mundo.
Das vezes que saiu com o pai, dormiu durante todo o trajeto e não prestou atenção no que
se mostrava pela janela. Exceto dessa vez. Ele reparou em cada detalhe da cidade. Está sono-
lento pois ainda não se acostumou a dormir tarde e acordar cedo. Quando vivia com a mãe, sua
única obrigação era a escola. Cumprindo essa função, ficava livre durante o dia para fazer o que
quisesse. Poderia dormir à tarde, jogar videogame, ver televisão, ler revistas ou qualquer outra
coisa. Agora não. Deita por volta da meia-noite e acorda, quase todos os dias, com exceção dos
domingos, às sete da manhã, para executar suas obrigações diárias.
Quando Nélson aceitou levá-lo para morar com ele, disse que a vida do menino não seria
moleza. E estava cumprindo o que disse. Dionísio tinha de ajudar o pai no trabalho de segunda
a sábado, não possuía regalias. As regras que serviam para os funcionários de Átila também
serviam para ele. Não só adquiriu obrigações no trabalho e nos negócios do seu genitor, como
também teve de arcar com responsabilidades em casa. Quando toma café da manhã, almoça
ou janta, tem que deixar a louça limpa na prateleira. Se as roupas estiverem sujas, ele tem que
aprender a lavar. Não havia mais mesada. Se ajudasse Nélson no trabalho, teria seu salário. Se
50
William R. Silva
não ajudasse, não teria nada. O quarto devia ser organizado todos os dias e os demais cômodos
da casa. Se bagunçasse, tinha de arrumar até a meia-noite.
Não era dia de semana nem sábado mas, mesmo assim, teve de levantar bem cedo. O
moleque obeso pensou que domingo seria o dia que poderia dormir até a hora que desejasse e
fazer o que quisesse, mas não foi. Seu companheiro de morada o acordou por volta das sete e
meia da manhã alegando que iria levá-lo até a igreja, a fim de incentivá-lo a assistir semanal-
mente as missas. Conforme o tempo passava, o menino ia se sentindo como um membro das
forças armadas, cheio de regras e disciplinas. Seguia todas as ordens sem questionar, mesmo
ficando irritado, o que gradativamente vinha acontecendo.
Rapidamente, os dois chegam ao centro da cidade. Entre quiosques, coretos, árvores,
casarões antigos, bancos, a bonita praça e todo o perfeito e harmonioso cenário que surgia
diante do menino, aparece, por detrás das árvores, uma enorme igreja. Dionísio observa ad-
mirado cada detalhe daquela arquitetura histórica à sua frente, que mais parecia uma junção
de um trapézio com um triângulo em cima. De cada lado, duas torres com janelas que mais
pareciam mísseis da NASA prestes a decolar e, no meio, na metade exata do triângulo, um
enorme relógio, que teve medo de ver, pois não aguentava mais acordar com vontade de
continuar dormindo e aquela lista rigorosa de horários para cumprir determinadas obrigações
que o pai-patrão o forçava a seguir. Por fim, acabou adquirindo certa fobia por relógios e um
enorme daqueles para ele era como pesadelo.
No entanto, os dois não estavam indo assistir à missa de domingo, como pensava Dio-
nísio, pois, assim que desceram do automóvel, andaram pela praça, subiram a escada e foram
para dentro do templo. O adolescente constatou que não havia mais quase ninguém, somente
dois homens que se despediam dos presentes, além de um casal de idosos e uma jovem, todos
ajoelhados com seus rostos encostados num dos enormes bancos em frente ao altar. Havia
também três senhoras na faixa dos seus cinquenta e poucos anos, usando vestidos longos, que
se assemelhavam a freiras. Uma arrumava o altar, outra limpava alguns objetos e imagens e a
última, movendo a vassoura, varria uma parte da igreja.
Dionísio, que já estava maravilhado com a arquitetura pelo lado de fora, acabou
ficando ainda mais surpreso à medida que transitava no lugar. Admirava cada traço da
construção. Olhava todos os quadros de desenhos de Jesus Cristo, apóstolos e várias outras
ilustrações bíblicas pintadas no teto, como se fossem quadros daqueles famosos pintores
que ele ouviu falar nas aulas da professora Carmem.
– Será que foi um deles que fez? – disse, para si mesmo. Tanto faz, para ele não im-
portava como e quando aquilo foi parar ali, o importante é que era tudo bonito. A cada passo
que dava, mais queria seguir adiante, chegando ao ponto de deixar Átila para trás.
Os desenhos das janelas, a uniformidade dos bancos, tudo para ele era preciosidade.
Passeando pela casa sagrada, avista as três pessoas ajoelhadas em um dos bancos fazendo
orações. Nesse momento, lembra-se de Maria do Rosário e Ana Júlia, naquele episódio que
tentou matar Roberto e seus amigos. Sentiu-se culpado por isto. Dessa vez, foi ainda mais
doloroso, pois estava em um dos lugares abençoados por Deus. Suspira e fica triste por uns
instantes, mas logo volta a se distrair com a beleza do lugar.
Uma das pessoas que estavam ajoelhadas se levanta. Era uma linda menina, que aparentava
ter treze ou quatorze anos, cabelos longos, rosto de criança, olhos azuis e razoavelmente magra.
51
O Poder da Honra
Dionísio fica parado por um tempo observando a garota, fazendo com que ela perceba o seu estado
de hipnose. Ele, sem graça, se vira e continua a caminhar não sabia para onde.
– Você é novo na cidade, não é? Não lembro de ter te visto por aqui – diz a menina,
curiosa. Dionísio se vira, envergonhado, dando de cara com seu pai que assistia a cena, o
que faz com que o menino tímido responda a frase ainda mais sem jeito.
– Sim... Sou, sim.
– Legal. Meu nome é Marisa. E o seu? – disse a pequena garota aguardando a resposta.
– O meu é Dio-Dionísio – disse o menino obeso, meio desajeitado.
– Muito prazer, menino do nome estranho. Depois a gente se vê por aí – disse Marisa,
de maneira calorosa, ao ir em direção a Dionísio e apertar sua mão.
Os pais de Marisa também se erguem e saúdam os presentes. Terminada a apresen-
tação, a garota dá um sorriso, se despede e vai embora com seus pais.
A primeira das beatas, que percebeu a presença dos dois, coloca a imagem de Nossa
Senhora que acabou de limpar no altar, joga o pano que usou em um balde vazio e começa
a falar com sua visão voltada para a dupla de visitantes:
– Me desculpem, meus senhores, mas a missa de domingo já terminou.
– Eu sei – respondeu Átila, olhando-a sem o menor receio e seguindo seu percurso.
Pouco depois de pronunciar a frase, escutam-se passos vindos detrás do local onde são
postas as imagens de santos. As três beatas param imediatamente de fazer suas atividades,
Átila tira seu inseparável óculos escuros do rosto e Dionísio fica de olhos abertos esperando
ver quem se aproximava. Diante de todos, aparece um simpático senhor calvo, de óculos de
grau, na casa dos sessenta e cinco anos, usando uma batina branca bem limpa e passada, com
uma faixa amarela com linhas azuis em volta dos ombros. Assim que se fez visto, repara com
bastante consideração os novos visitantes.
– O bom filho sempre à casa retorna. Bom te ver de novo, senhor Nélson Átila – disse
o idoso de modo caridoso.
Dionísio vê seu pai com um sorriso no rosto. Nélson passa pelas beatas saudando cada
uma delas, para perto do simpático senhor e lhe dá um amigável aperto de mãos.
– Esse é meu filho, trouxe para que o senhor possa conhecê-lo – disse Átila com o
braço direito apontado para o menino gordinho e atrapalhado.
– Dionísio, esse é o padre Jerônimo – disse Átila, voltando-se para o filho.
– Tudo beleza, seu padre? – perguntou Dionísio com uma voz baixa e tímida, levan-
tando o braço direito e fazendo um sinal de beleza. Com os olhos medrosos a encará-lo,
ergue os dedos diante do rosto do senhor.
Padre Jerônimo e os presentes começam a dar risadas com os olhos fixos no dedão
do menino. Dionísio permanece sério e com raiva, sem entender o motivo da graça. Termi-
nado o momento de descontração, seguem-se alguns segundos de silêncio até que o Padre
novamente inicie a conversação.
– Com muito trabalho, honra, dignidade e fé, será um grande homem, assim como o
seu pai se tornou – disse o reverendo, abençoando o jovem menino.
Dionísio, ao ouvir as palavras, coça a cabeça e faz uma pergunta não muito comum.
– Seu padre, o que é fé? – perguntou o menino gordinho.
Átila e as três religiosas olham o menino em suspense, como se estivessem sido encur-
52
William R. Silva
ralados sem chance de defesa, mas Padre Jerônimo se mostra tranquilo e equilibrado.
– A fé é uma das coisas mais difíceis de se explicar – respondeu o idoso, ganhando total
atenção dos ouvintes. – Todos a carregamos dentro de nós, até mesmo aqueles que não têm
religião e não acreditam na existência do Senhor, nosso criador. Ela é tão necessária à espécie
humana quanto o sono e o alimento. Se o sono descansa o corpo e o alimento fortalece o orga-
nismo, a fé estrutura a alma, os desejos, objetivos e os sonhos. Está muito além do que podemos
imaginar. O que é fé? Infelizmente, não poderei dizer com palavras, pois nem mesmo eu tenho
tal habilidade. Mas, meu querido jovem – o simpático senhor interrompe sua fala deixando
todos na expectativa, desce os três degraus que o separam do seu interlocutor, põe-se diante
do menino que o olha atento e recomeça seu discurso –, independente do que você acredite, da
sua religião e da sua história de vida, chegará um momento em que você saberá o que é fé. E
isso não será através de palavras, desenhos e nenhuma outra forma de representação. Essa força
sairá de dentro e você vai apenas sentir e não explicar. Nesse momento crítico, a fé será uma
das únicas armas eficazes para salvar a sua vida e provavelmente a de outras pessoas. Vejo um
destino de glórias para você diante dos meus olhos, mas isso só será possível se souber unir a fé,
a humildade e a força de vontade a um dos mais sagrados poderes da humanidade, o chamado
“poder da honra”. Se não o fizer, se por acaso, em algum momento da sua vida, você perder
sua honra, prejudicará vidas, irá falhar na sua missão, vai passar por apuros e, o mais perigoso,
colocar em riscos as pessoas que são ou serão importantes para você.
Padre Jerônimo naquele momento acabara de decifrar parte do destino do menino, que
semanas antes era apenas um deprimido, obeso e fracassado social. Mesmo continuando na-
quela situação, Dionísio se fortalecia ao escutar aquelas palavras. Sentiu seu peito cheio de
esperanças, não tinha mais medo de ser um derrotado. Nessa sua nova fase, havia pessoas para
guiá-lo e aconselhá-lo e ele se sentia cada vez mais seguro em virtude disso.
Nélson Átila se mostra satisfeito com as palavras de Padre Jerônimo. Sabia que não
perdera a viagem ao levar o filho até lá. O Padre era um homem de grande sabedoria, uma das
pessoas mais inteligentes que Átila conheceu durante seus quarenta e dois anos de vida. Nélson,
por longo período, não acreditava na existência de Deus e detestava religiões. Para ele, todas as
religiões eram prisões mentais, uma matrix como ele comumente gostava de falar, uma forma
de manipulação em massa. Era um homem totalmente descrente, sem fé, um ser egoísta que só
pensava no próprio prazer. Mas, devido a momentos difíceis, pesos na consciência, remorsos e
crises de sentimento de culpa ocasionados por erros que ele cometeu no passado, com o auxílio
do líder religioso, começou aos poucos a mudar sua percepção sobre a fé, a existência de Deus
e a realidade do mundo.
Conheceu Padre Jerônimo em um dos momentos mais críticos de sua vida. O reve-
rendo ajudou-lhe a se reerguer e o guiou para o caminho da paz interior. O idoso se tornou
um dos seus maiores amigos e confidentes. Foi ele quem aconselhou Átila a reencontrar o
filho, se redimir de seus pecados, ressarcir as pessoas que prejudicou, pedir perdão pelos
seus erros e, assim, poder reencontrar o caminho da luz.
A conversa prosseguiu por algumas horas, mas não tão filosófica como no início. Se-
guiu mais para o ritmo da descontração, com Átila falando sobre seus planos nos negócios,
sobre o filho lhe ajudando em algumas tarefas, os avanços que o menino teve nessas quase
duas semanas que morava com ele e outros assuntos do cotidiano.
53
O Poder da Honra
Daquele dia em diante, Dionísio criou um laço com o Padre, considerando-o como
um amigo e conselheiro, assim como seu pai se tornara desde quando o conhecera. A partir
deste episódio, ganhou mais um novo aliado que, apesar de nenhum dos dois saber, seria
de grande importância num futuro não tão distante. Como forma de gratidão e amizade, o
jovem gordinho e desajeitado passou a frequentar a missa todos os domingos, apesar de
ainda não ter entendido o que era fé, por enquanto.
12
PARANOIA
14 de junho de 2004.
Dionísio corre pelos acessos do Colégio São Magno em estado de pânico. Apesar do
excesso de peso, consegue se desviar com facilidade dos obstáculos. Vira seu rosto para
trás e lá estavam eles, Roberto, João Sérgio e Paulo, correndo atrás da vítima, perseguindo
-o com olhares diabólicos e uma expressão de prazer. O menino grita pedindo ajuda. Mas,
não há ninguém para acudi-lo. Passa os olhos em todas as salas à procura de algum profes-
sor, funcionário ou qualquer outro adulto que possa ajudá-lo a se livrar dos seus agressores,
mas não havia ninguém em nenhuma das salas. Dionísio, em estado de pavor, desce uma
das escadas que dá acesso à área de recreação, enquanto os três rebeldes se aproximam
cada vez mais. Desamparado, procura por alguém no pátio e a única pessoa que vê é Ana
Júlia, sentada em um dos bancos da lanchonete.
O garoto obeso vai em direção à menina, mas fica sem entender o porquê dela estar
ali sozinha. Chega perto da moça e começa a lhe acariciar o rosto. Ela sorri e os dois se
olham apaixonados. De repente, o colégio começa a incendiar. O fogo se alastra por todos
os lados, os dois se abraçam com medo de serem incinerados. Por entre as chamas, faís-
cas e fumaça, surgem Roberto e João Sérgio usando roupas e objetos estranhos. Ambos
estavam com blusa de frio, touca na cabeça tapando parte do rosto e com óculos escuros,
crucifixo no pescoço, uma faca na mão esquerda e um soco inglês na direita. Estavam
com um sorriso mais maligno que antes. Por motivos desconhecidos, Paulo não estava
mais junto a eles. Dionísio solta a moça dos braços e vira-se de encontro aos dois, visando
defendê-la. Olha novamente para a menina e fica perplexo ao ver que, quem estava ao seu
lado não era mais Ana Júlia, mas sim Maria do Rosário. Uma se transformou na outra num
passe de mágica.
As chamas aumentam conforme o tempo se passava e os dois assassinos, um de cada
lado, erguem suas facas e partem para cima do casal. Nesse momento, Dionísio acorda com
o coração acelerado. Suado e confuso, olha para o relógio ao lado da cama. O despertador
ligado com um barulho insuportável mostrava que eram seis horas e quarenta minutos.
54
William R. Silva
Levanta-se ainda em estado de adrenalina, coloca as mãos sobre o rosto, olha ao redor do
quarto e se sente aliviado por tudo aquilo ter sido um sonho.
– Parecia tão real. Obrigado, meu Deus, por tudo ser só um sonho. Obrigado! – agrade-
ceu ele de cabeça baixa. Sentado, refletindo em cima da cama, está preocupado. Será aquilo
um aviso sobre como será seu primeiro dia de aula na nova cidade? Ou seria paranoia dele?
Dessa vez, terá de ir à escola e não há como escapar dessa exigência. Na semana passada, o pai
o matriculou, porque estava com medo de o filho perder o ano letivo. Dionísio ficou aos prantos
quando recebeu a notícia. Preferia trabalhar dia e noite sem receber um tostão a ter de voltar a
estudar. Não tinha boas lembranças das escolas que frequentou.
Com a cara amarrotada, toma seu banho matinal, escova os dentes e vai para a cozinha
preparar o seu café. Na mesa, café recém-passado, torradas, leite, pão, frutas e queijo, tudo
preparado pelo dono da casa, que sempre teve o hábito de acordar bem cedo e preparar seu
desjejum, salvo raras exceções. Ele não comeu na mesa. Está atrasado e tem de estar na escola
às sete e meia. Fez muita hora para acordar, tomar banho e fazer suas obrigações. Pensa em
inventar alguma desculpa, fingir-se doente ou outra mentira qualquer, mas desiste, pois sabe
que Átila é esperto, uma verdadeira raposa. Dificilmente alguém consegue enganá-lo. Está se
sentindo diminuído porque vai passar a estudar em escola pública. Não que Nélson não tenha
dinheiro para pagar uma particular, ele é um homem de posses, e nem que ele não queira
fazer isto. Entretanto, resolveu agir com precaução. A única escola particular que conhece se
localiza na cidade vizinha e não quer que o menino estude longe dele, pois deseja monitorá-lo.
Tem medo de que ele possa tentar ou cogitar a ideia de fazer besteiras de novo, como ocorreu
no Colégio São Magno.
O ônibus que o conduz até a escola não é tão luxuoso quanto o que tomava quando
estudava na capital. Dionísio entra no meio de transporte em estado de alerta. Seu coração,
como sempre, está acelerado. A condução não era nada confortável, tinha janelas sujas de
poeira. Os bancos estavam cheios de rabiscos de canetas, com declarações de amor, algumas
assinaturas, datas, saudações de natal, páscoa e ano novo, nomes de pessoas e vários outros
escritos. Inseguro, olha em volta para ver se alguém estava reparando nele. Os passageiros
conversam todos alegres e distraídos. Por haver meia dúzia de alunos ali, nenhum deles notou
sua entrada. O menino da cidade grande, de início, estranhou o sotaque dos moradores da tal
cidade, mas aos poucos foi se acostumando. Sempre em estado latente de alerta, o menino
permanece na defensiva com medo de que alguém possa lhe ferir o ego.
Quando seu estado emocional está prestes a se estabilizar, escuta meninas rindo no
banco de trás. Torna-se agressivo, impaciente e quase desce do veículo, pensando ser ele
a causa das risadas. Na medida em que os risos se intensificam, a raiva dele também. Não
tendo mais paciência, levanta-se de seu lugar e vira-se para encará-las. As meninas, tão
entretidas com um livro de piadas sujas, nem sequer percebem o gordinho que estava a
repará-las. Dionísio, entendendo que não era ele o motivo das gargalhadas, sem graça,
volta para o seu lugar.
Mesmo tendo sono, não foi capaz de cochilar dentro do ônibus como normalmente
faz quando está no carro do pai. Não considerava seguro, precisava analisar as pessoas o
tempo inteiro para que nenhuma delas zombasse dele. Estava determinado a não aceitar
mais bullying, a reagir e fazer o que fosse para ser respeitado. Desde o dia em que foi en-
55
O Poder da Honra
ganado por Ana Júlia e espancado pelos seus comparsas, não conseguiu confiar em nada e
nem ninguém. Todos para ele eram prováveis inimigos, pessoas que, de uma hora para ou-
tra, poderiam agredi-lo verbal ou fisicamente. As únicas pessoas que ele confia são Nélson
Átila e o padre Jerônimo. Em relação aos demais, se mostra constantemente desconfiado.
Todos os alunos desciam enquanto ele se sentia paralisado no mesmo lugar. Não se
mexia, apenas olhava para o colégio pelo vidro da janela. A maioria dos alunos estava unifor-
mizada, uns bem vestidos, outros mais simples, mas não eram como os alunos da sua antiga
escola. Havia muitas garotas bonitas e ele reparava cada uma delas, sonhando acordado, pen-
sando ser alguma sua futura namorada. Queria sair, mas havia algo que o prendia. Talvez o
medo, a insegurança, a péssima imagem que tinha de si mesmo ou tudo isso de uma só vez.
– Ei, moleque, não vai descer, não? Já estou de partida– avisou o motorista, prepa-
rando-se para sair do lugar. A atitude do condutor o faz levantar contra a sua vontade. Por
ele, ficaria ali dentro durante todo o período de aula.
Assim que desce do transporte, presta atenção por alguns segundos para ver se havia
alunos desejando caçoar dele. Como a maioria deles nem sequer percebeu sua presença, sai
disparado pelo portão, quase atropelando quem passava no local. Não se deu ao trabalho
de olhar para trás e nem pedir desculpas. Pegou o comprovante de matrícula e viu que sua
sala era a 201B, uma sala de fácil acesso, praticamente na entrada da escola. Entra, vê uma
carteira sem ninguém sentado, mas, quando ia se sentar, um rapaz alto, magro, que acabou
de chegar, o interrompe.
– Ei, bolota, nessa mesa quem senta sou eu.
Dionísio, ao ouvir o insulto, se mostra irritado e, com os punhos fechados, fita o
sujeito nos olhos, chegando ao ponto de deixá-lo constrangido.
– Desculpa, aí. Pode ficar com o lugar, então. Pode ficar tranquilo, o que não falta é
lugar para sentar – disse o colega de classe, com o objetivo de tentar acalmá-lo, percebendo
a possível revolta do novato.
A sala estava completa, com trinta e seis presentes. Dionísio, por estar sentado no
fundo da sala, fez questão de contar as cabeças para descobrir a quantidade de alunos.
Decidiu manter-se afastado para não ser percebido. Sua tentativa foi inútil, uma vez que
a professora o avistou. Dona Eunice, uma mulher baixa, morena e educada, manda toda a
sala ficar em silêncio e exige que o menino se apresente para a turma.
– Vejo que temos um aluno novo aqui. Venha, querido. Apresente-se para que seus
novos amigos possam conhecê-lo. – disse a simpática educadora.
Os colegas de classe se viram todos para o garoto tímido, que fica descontrolado
internamente, apesar de não demonstrar suas emoções de maneira nítida. Todos esperam
curiosos por sua apresentação, porém o menino não se retira do lugar e nada diz.
– Vamos, venha. Não precisa ter vergonha – disse a professora impaciente.
Devido à pressão dos alunos, que cochichavam a seu respeito, e da professora, que
o encorajava insistentemente, decide se levantar e falar sobre si perante toda a sala. Com
a respiração ofegante, tremendo e sem saber o que mencionar, não conseguindo encarar
os alunos da sala, que a esta altura riam baixinho e comentavam algo engraçado a respeito
dele, de cabeça baixa faz um esforço para fazer a tão esperada apresentação.
– Oi, meu nome é Dionísio – pronunciando a seguinte frase, anda apressado e se as-
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William R. Silva
senta novamente no seu lugar. Todos o olham desaprovando sua atitude, mas a professora
se mostra compreensiva e inicia a aula como se nada tivesse acontecido.
Aquietou-se durante todo tempo nas aulas iniciais e também não saiu da sala na hora
do intervalo. Em vez disso, ficou lendo uma revista em quadrinhos do Capitão América
que guardou junto aos livros didáticos. Considerou que ficar sentado ali era mais seguro.
Não queria ir ao pátio, era fraco psicologicamente. Sabia que não ia se sentir seguro e con-
fiante com aquelas pessoas desconhecidas.
Sofre durante quase uma hora de aula, pois estava com vontade de ir ao banheiro. No
entanto, não teve coragem de pedir a seus professores. Se pedisse, todos os alunos o veriam sair
e entrar na sala. Não queria confrontá-los de novo. Se sente perseguido. Pensa que todos vão
falar mal, rir e fazer observações maldosas dele, mesmo que de forma inconsciente.
Assim que o sino toca avisando o fim do dia letivo, Dionísio sai desesperado, esbar-
rando em alunos, mesas e cadeiras, deixando lápis e canetas caídos pelo chão. Corre para
o banheiro e mija aliviado, embora não consiga se livrar da sua desconfiança patológica,
com medo de estar sendo vigiado.
Na saída, caminha olhando para os lados com medo de que alguém faça chacota
dele. Qualquer esbarrão, risos, apelidos pejorativos, mesmo não sendo para ele, e qualquer
outra manifestação enigmática dos alunos o faziam ficar na defensiva. De longe, avista o
transporte público fornecido pela prefeitura esperando os alunos entrarem para levar cada
um a seu destino. Preparava-se para atravessar a rua e entrar no veículo, quando escuta uma
voz vindo em sua direção, seguida de vários risos.
– Ô, baleia, bola de futebol gigante. Toma aqui seu lápis e sua caneta, presta atenção
no seu material, sua mula!
As palavras do desconhecido, em segundos, fazem com que Dionísio mude a expressão
do seu rosto. De delicado e inofensivo, transforma-se em uma máquina de reações nervosas.
Observa ao redor e vê vários alunos em volta, a maioria rindo e se divertindo às suas custas.
Com os punhos fechados, a pressão a mil, adrenalina por todo corpo e a passos lentos, vira o
corpo para o lado e vê um rapaz alto e esbelto, segurando seus pertences.
De maneira inesperada, sem medo e num estado de descontrole, profere um soco no lado
esquerdo do rosto do rapaz com tanta força que faz com que o lápis e a caneta voem a meio
metro de altura e o sujeito caia nocauteado de cara no chão. Devido à merecida agressão, seu
colega de classe fica estirado na calçada, desmoralizado perante todo o colégio.
A multidão de alunos, todos de boca aberta, permanece em silêncio ao ver a cena.
Nada é ouvido e visto a não ser os passos e a presença de Dionísio. Pela reação causada
pelo ato, todos que estavam no seu caminho, ainda assustados, saem um a um da sua frente,
dando espaço para que ele passe e entre no ônibus.
Daquele momento em diante, nunca mais houve tentativa de bullying contra ele na
escola. A notícia do menino que derrubou um cara duas vezes maior com um só golpe
se espalhou por toda a redondeza. A partir desse dia, passou a ser conhecido. A maioria
das pessoas, alunos e moradores do pequeno município, passou a ter medo dele. Não era
mais chacota de ninguém, mas também não conseguiu, durante um bom tempo, conquistar
novos amigos. Prosseguiu assim durante quase um ano, tempo que levou para que todos
esquecessem o episódio.
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O Poder da Honra
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A ZONA DE CONFORTO
5 de maio de 2005.
Quase um ano se passou desde o dia em que Dionísio se despediu da sua cidade natal
e foi morar com o pai. Diferente do que esperava, não se tornou melhor, mais atraente e mais
popular, suas expectativas foram todas frustradas. Quando foi embora, estava cheio de espe-
ranças, sonhos e planos para o futuro, mas hoje se encontra na mesma situação. Continuava
sendo o mesmo menino fracassado, tímido, obeso e sem progressão para o futuro.
Não foi por culpa de Nélson. Ele fez tudo o que estava ao seu alcance. Contratou
profissionais de psicologia para tratar dos seus problemas emocionais, criou um conjunto
de regras e disciplinas para que ele desenvolvesse senso de responsabilidade, deu-lhe três
livros por mês dos principais pensadores para que lesse e entendesse sobre a natureza
humana e como lidar com sua própria vida e seus desafios, procurou um dos melhores
nutricionistas da região para auxiliar o menino no seu processo de emagrecimento, estava
pagando as mensalidades da academia e tomou muitas outras providências para que o ga-
roto mudasse de vida e conseguisse evoluir.
No entanto, nada deu certo. Dionísio se apegou à sua zona de conforto com tal inten-
sidade que nada e nem ninguém conseguia tirá-lo de lá. Precisava de um foco, um objetivo,
uma razão para lutar. A cada fracasso, se sentia mais inútil. Frequentou a academia durante
alguns meses, mas começou a faltar aos treinos, pois não se sentia bem vendo todos aque-
les homens fortes e bem desenvolvidos perto dele. Sentia-se um ninguém, não acreditava
que um dia poderia ficar como eles. Na sua opinião, seria uma pessoa obesa para sempre e
não havia nada que pudesse fazer.
No começo, ele até que se esforçou. Correu na esteira, fez as séries conforme foi en-
sinado e aprendeu todas as outras dicas e orientações que os instrutores lhe davam, porém
nada adiantou. Seu peso continuava o mesmo e o pior é que sentia cada vez mais vontade
de comer. A nutricionista lhe receitou uma dieta saudável que incluía desde variedades
de saladas a refeições de baixas calorias. Na presença de Átila, simulava estar seguindo
corretamente as recomendações, mas frequentemente comia salgados, pizzas, chocolates,
sanduíches e muitos outros alimentos que deveriam estar fora do cardápio. Fazia tudo
escondido em seu quarto ou nas lanchonetes mais distantes de sua residência. Bem que
tentou controlar sua gula. Até conseguiu durante certo tempo, mas não o suficiente para
surtir um efeito considerável. Por impulso, consome todo o alimento que deseja e depois é
acometido por um insuportável sentimento de culpa.
Não leu nenhum dos livros que ganhou, alguns ainda estavam plastificados. Quan-
do seu pai lhe perguntava se tinha lido, sempre confirmava que sim. As consultas com o
terapeuta eram marcadas, mas ele nunca ia. Os meninos da escola descobriram que ele as
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William R. Silva
frequentava e começaram a dizer que era um doente mental. Em virtude disso, desistiu de
participar das seções. Nenhum dos estudantes era capaz de zombar dele por causa disso,
apenas comentavam de longe ou com outras pessoas. A maioria tinha medo desde o seu
primeiro dia de aula, no ano anterior, quando deu um soco e derrubou um colega de classe
no chão. Nunca mais ninguém se atreveu a insultá-lo, nem mesmo o sujeito que foi no-
cauteado. Este, nunca revidou o golpe e passou a evitá-lo, ainda mais depois que percebeu
que Dionísio era filho de Átila, o patrão de seu pai. Rubens, o garoto golpeado, nunca mais
esqueceu a pancada e sentia seu rosto doer todas as vezes que via Dionísio, mas não se
atreveu a enfrentá-lo, embora tivesse vontade às vezes.
Até em questão de amigos a vida de Dionísio piorou. Na capital, tinha Túlio, seu
inseparável colega de todas as horas que ele nunca mais esqueceu. Na cidade onde mora
atualmente não tem amigo nenhum, ninguém se aproxima dele, pois sempre está mal enca-
rado, de mau humor. É agressivo o tempo todo. Nas festas da escola, no recreio e nas aulas
de educação física sempre fica isolado, no seu mundo, sem se entrosar com ninguém. Seu
quarto voltou a ser desorganizado e não estava mais cumprindo suas obrigações. Átila estava
com problemas nos negócios, pois uma das empresas que ele investiu uma grande quantia
em dinheiro teve queda no valor das ações e também por ter aplicado quase oitenta mil reais
em CDB’s em um banco que estava prestes a decretar falência. Corria o risco de não receber
seu dinheiro de volta, uma vez que esse valor não é coberto pelo Fundo Garantidor de Crédi-
to. Esteve dedicando todo o seu tempo e suas energias durante os últimos quatro meses para
recuperar o prejuízo. Devido a estes problemas, desligou-se totalmente do menino, parou
de cobrar suas obrigações, de monitorá-lo na escola e tomar certas providências. Não sabia
mais nada do que acontecia em relação à vida do filho. Por estes e outros fatores, e princi-
palmente pela falta de esforço de Dionísio, o adolescente não obteve nenhuma evolução.
Mas, o pior ainda está por vir. Faz mais de trinta dias que ele não vai ao Colégio e
seu pai vem muito irritado dirigindo pelas ruas da cidade, cantando pneus, desrespeitando
placas de pare, preferência, faixas de pedestres e outras regras de trânsito. O diretor da ins-
tituição, que o conhece de longa data, pois sempre compra produtos na sua rede comercial,
pediu que ele fosse até o Colégio para que dissesse o porquê de seu filho não ir à aula faz
algumas semanas. Nélson, que nada sabia do acontecido, se mostra completamente abor-
recido e sai atrás do menino sem terminar a conversa. Dionísio, durante todo esse tempo,
desviou-se do caminho do ônibus escolar e caminhou durante quase uma hora até uma
estrada de ferro desativada em uma parte isolada da cidade. Poucas pessoas transitavam
pelo local, às vezes uma ou outra criança e alguns adolescentes para soltar pipas ou correr
atrás de alguma que foi cortada pela linha com cerol de uma pipa rival. Na maior parte do
tempo, ficava sozinho, comendo as guloseimas, pedaços de pizzas, refrigerantes e outros
alimentos proibidos para ele e lendo suas revistas favoritas de super-heróis. Ali ficava até o
horário do término das aulas e voltava para casa como se nada tivesse acontecido.
Átila estava furioso. Parou o carro com tanta pressa que o estacionou na diagonal. En-
trou em casa bufando de raiva. Não admitia ser enganado por ninguém, sempre deixou isso
claro para seus empregados e já demitira muitos por isto. Mas, dessa vez era pior. Livrar-se de
empregados era fácil, mas como se livrar de um filho mentiroso? Estava com um sério dilema.
Desde o primeiro dia em que o menino foi morar com ele, fez questão de respeitar a sua priva-
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O Poder da Honra
cidade. Nunca entrou no quarto de Dionísio sem bater na porta, em hipótese alguma invadiu
a intimidade dele. Não perguntava o que não devia e não tomava nenhuma outra atitude que
pudesse ferir seus princípios de dignidade. Mas, dessa vez não. Entrou no quarto de maneira
tão repentina que não deu tempo de Dionísio esconder as guloseimas e pastéis que estava
comendo. O homem, ao encontrá-lo, observa-o com a boca cheia. E ficam parados durante
alguns minutos, um olhando para o outro.
– Você também não está seguindo a dieta que a nutricionista te recomendou? – per-
guntou o homem com um olhar de decepção.
– Não – respondeu o menino com semblante apavorado.
– E os livros que te comprei, leu algum? – perguntou ele em tom de julgamento.
Dionísio silencia por alguns segundos e, cabisbaixo, responde com voz apática:
– Não li nenhum. Não gosto de ler livros com muitas páginas, prefiro revistas.
Nélson, de forma agressiva, abre o guarda-roupa e vê mais de vinte livros amontoados
e a maioria deles ainda na embalagem, sinal de que nunca foram lidos. Vistoria todo o quarto
e encontra alguns doces, salgados e guloseimas em uma caixa de papelão debaixo da cama.
Irritado, repara em volta e vê que tudo que estava desorganizado como ele nunca tinha visto
nesse quase um ano que estavam juntos. Depois de mais de quinze minutos de confronto,
descobre que o menino não fez esforço algum para melhorar a situação a qual se encontrava.
Não foi à academia, não foi ao nutricionista e nem a nada do que o pai fez para ajudá-lo foi
dado o devido valor. Átila, que a esta altura estava prestes a perder a paciência, se manteve
no controle, pois é um homem calmo e já lidou com muitas situações complicadas, embora
este fosse um desafio novo com o qual não estava acostumado, ou melhor, não sabia lidar.
– Eu sou um lixo de ser humano. Não mereço ser ajudado por você e nem por ninguém.
Acho melhor voltar para casa da minha mãe, assim não te faço perder tempo comigo – disse o
sujeito obeso quase chorando, sem levantar o rosto para encarar seu interlocutor.
O homem, após olhar o menino com desprezo, pega os livros plastificados, um a um,
e os joga no chão. Vira o rosto para a janela e vê que o tempo está nublado. Volta-se ao
garoto que ainda insistia em ficar de cabeça baixa e começa a falar seu discurso.
– Tem razão. Você é um lixo, um dos seres humanos mais desprezíveis que já conhe-
ci – disse Átila, com uma sinceridade tão contundente que faz o jovem estremecer.
Dionísio enche os olhos de lágrimas ao ouvir a declaração, mas se mantém firme.
Mais tranquilo e sem demonstrar agressividade, Nélson Átila prossegue sua reflexão.
– E te digo uma coisa e guarde bem isso. Ser gordo não faz de ninguém um inútil fra-
cassado, mas agir como um preguiçoso covarde que desiste de lutar, sim – disse o homem
de cabelos longos em tom de advertência. – Você estará fadado ao fracasso não porque é
tímido, obeso ou devido aos seus problemas pessoas e sim porque escolheu assim. Não
sou dono do seu destino, faça o que achar melhor. Se deseja voltar a morar com sua mãe,
sinta-se à vontade, mas a partir desse momento, não culpe sua mãe, o mundo, a sociedade
e nem nada ou ninguém pelos seus fracassos. A culpa é e sempre será sua. Lembre-se disso
quando estiver bem velho, sentado em uma poltrona com uma aposentadoria miserável
e se lamuriando pelos sonhos que poderia ter realizado, da vida que poderia ter vivido e
dos feitos que poderia ter concretizado. Eu fiz minha parte e Deus fez a dele. Você não se
dispôs a fazer a sua.
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William R. Silva
Sem mais o que dizer, tira os óculos do bolso da jaqueta, coloca em seu rosto e sai do
quarto. Dionísio, triste, vê pela janela o Honda Civic desaparecer em meio à fraca neblina.
Horas depois do doloroso confronto, com as malas prontas, segue no carro de seu
José Pereira, o empregado de Átila que gerencia uma das lojas que o pai de Dionísio possui
na cidade. Os dois saem com destino à rodoviária da cidade. Por telefone, avisou a mãe que
estava voltando e ela o aceitou. Queria ter se despedido do seu pai, mas estava com vergo-
nha dele por tudo o que fez e deixou de fazer. No fundo, se sentia culpado por ter jogado
fora toda aquela preciosa ajuda que recebeu do seu genitor. Em menos de quinze minutos,
estavam os dois no terminal. Seu José tira o cinto de segurança, abre a porta do carro e sai,
pega a mala e a coloca no chão.
– Boa viagem, meu amigo. Deus o abençoe – disse o homem, apertando-lhe a mão
e, instantes depois, indo embora.
Dionísio faz força para pegar a mala que estava meio pesada, anda arrastando-a e se
desvia de ônibus estacionados, rampas e latas de lixo. Para em frente à atendente e solicita
uma passagem para o destino desejado. A moça, uma jovem de dezesseis anos e bem apa-
rentada, repara no rosto de Dionísio e dá um leve sorriso ao reconhecer o garoto.
– Ei, estudamos na mesma sala. Lembra de mim? Sou a Catarina – disse ela, olhando
nos olhos do colega de classe.
O menino sente uma leve sensação de alegria ao ver que a linda garota o reconhecera.
– Sim, lembro de você também – respondeu ele amenizando seu estado depressivo, pois
não imaginava que alguém da sua sala poderia reconhecê-lo ou lembrar-se dele, quando o visse
fora da escola. Quase ninguém lhe dava atenção, principalmente garotas.
– Está aqui sua passagem, Dionísio. O ônibus sai daqui a cinquenta minutos. Boa
viagem – disse a educada jovem ao dar um sorriso meigo.
– Obrigado, Catarina ! – respondeu ele educadamente, indo sentar em um banco
próximo de onde acabara de comprar sua passagem.
Sentado, começa a pensar sobre como era sua vida na capital. Voltará a ver Túlio,
Ana Júlia, Maria, os três rapazes maus que ele tanto odiava e o resto dos alunos que o humi-
lharam. Outra vez ficará à mercê da negligência de sua mãe e sua vida continuará a mesma.
A depressão aos poucos atingia o coração do pobre sujeito que, para tranquilizar a
mente, pede para que um dos funcionários guarde seus pertences no guarda-volumes e sai
caminhando pelas redondezas do terminal rodoviário.
Avista um barzinho. Entra para comprar um refrigerante e quase é acertado por um
taco de sinuca. Havia dois homens jogando no local e o menino distraído entrou sem per-
ceber que estava no território da competição.
– Ei, moleque, presta atenção por onde anda, caramba. Está me atrapalhando aqui.
Não enxerga, não? – disse um dos jogadores, um homem branco, olhos claros, uma barba
rala e cabelo liso penteado de lado.
– Calma, Tomy. Ele estava distraído. Vai ser ignorante assim lá no inferno, velho. Você
nunca muda, hein? – disse seu parceiro, um rapaz de quase um metro e noventa e cabeça raspa-
da, que parecia um soldado do exército, desaprovando a atitude do amigo.
– Fica de boa, aí, Armando. Deixa esse menino e presta atenção no jogo, mané – dis-
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O Poder da Honra
se Tomy, mascando chicletes e com um olhar prepotente, olhando o menino gordinho meio
de lado, prosseguindo sua tacada.
Dionísio, como é inseguro, desajeitado e medroso, desiste de comprar o que desejava. Sai
do bar e continua caminhando pela pequena rua. Cerca de três metros à sua frente, vê uma das
mais famosas lojas de games e eletrônicos da cidade, a Eletrônica Dantes. Nunca frequentou a
loja para comprar umas de suas mercadorias ou para pagar para jogar seus jogos prediletos, mas
ouvia com frequência os alunos da escola comentarem sobre os produtos e o entretenimento
que estava disponível no local. Era um dos lugares preferidos dos jovens da cidade.
Ao entrar no local, sente-se como uma criança no parque de diversões. Havia cente-
nas de CDs de jogos, videogames de última geração, manetes e tudo o que fosse necessário
para completar a felicidade de um jovem amante de jogos como ele. A loja estava vazia,
somente ele e o dono, Dantes, que há pouco estava concentrado fazendo algo em seu com-
putador. Ele avista o menino e tenta ajudá-lo.
– Deseja alguma coisa, nobre rapaz? – perguntou o educado homem.
– Não, moço. Infelizmente não tenho dinheiro – disse Dionísio, desejando possuir
um daqueles videogames.
– Meu nome é Eduardo Dantes, pode me chamar assim quando necessário – avisou
o proprietário do estabelecimento.
sualizar a reviravolta em sua vida desde o momento em que conheceu o pai e reflete sobre
o tanto que ainda pode aprender e melhorar sobre a tutela dele. A vida lhe deu uma chance
e não poderia perdê-la. Nas últimas horas, esteve tão movido pela emoção e pela sensação
de fracasso, que não reconheceu que o erro que estava prestes a cometer, será uma atitude a
qual irá se arrependerá pelo resto de sua existência. Dantes tinha razão, era ainda era muito
jovem e ainda tinha muito o que conquistar. Aquela simples frase, acendeu uma faísca em
seu coração e, ele, não entendia como. É certo que ainda se via como um lixo inútil, mas
era justamente isso que o incentivava a reverter a situação.
Após passar pelo avassalador surto de reflexão, é tomado por um impulso partindo
do peito, uma energia tão forte e avassaladora que, aos poucos, contagiava todo o corpo.
Foi-se transformando internamente e todas aquelas vibrações ruins que emanavam de sua
mente se transformaram em motivação. Olha para a rua e vê Marisa dentro de um modesto
carro, a menina que conheceu na igreja há tempos atrás o cumprimentando. Ela estava
esperando seus pais voltarem da loja de Dantes.
Ele sorri e balança as mãos para ela. Vira-se para Catarina e a vê vendendo passa-
gens para dois homens que partirão no mesmo transporte que ele. Pensa em todas as coisas
ruins que lhe aconteceram e os sonhos que teve e que ainda não se completaram. Quando o
motorista da empresa ia colocar um adesivo marcador em sua mala para guardá-la no com-
partimento de bagagem, ele a puxa das mãos do homem, pede desculpas e sai arrastando a
mala. Todos o olham sem entender. Logo após a estranha atitude, sai da rodoviária e para
ao ouvir a voz suave de uma moça.
– Desistiu de viajar? – perguntou Marisa pela janela do carro.
– Não, não desisti de viajar, nunca quis. Dessa vez eu desisti de desistir – respondeu ele,
sem voltar-se para trás e, em seguida, descendo e arrastando sua mala morro abaixo, cami-
nhando determinado pelas ruas da cidade de volta para casa, a casa de seu pai.
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APENAS AMIGOS
23 de setembro de 2006.
A Primeira Transformação
Senhor Emanuel, também empregado de Nélson, percebendo que José Pereira es-
tava demorando a retornar do depósito de estoques de mercadorias, resolve descer, pois
está preocupado, pensando ter acontecido algo com o companheiro de trabalho. O homem
negro, rosto redondo, de botas rachadas, chapéu estilo gaúcho e blusa xadrez desabotoada,
cruza o galpão com um olhar arisco, como se fosse um investigador à procura de algo
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O Poder da Honra
suspeito. Entrando na área de estoques, José Pereira é visto por ele, tranquilo, conferindo
mais de trinta notas fiscais de produtos que foram descarregados pelos entregadores du-
rante a tarde. José é o funcionário de confiança de Átila, uma espécie de braço direito, um
sujeito sistemático que conserva seu tradicional bigode, cabelo sempre penteado para trás
e tem como característica marcante de sua personalidade: um estilo rústico. Na maioria
das vezes, usa camisa social de manga comprida, calça jeans e suas inseparáveis botinas.
Lembra bastante aqueles cowboys do Texas. Um sujeito que sempre fez questão de fazer
jus à confiança do patrão. Um dos poucos homens que ainda preservavam a confiança na
base do fio do bigode.
– Ô, Zé, o patrão está chegando. Não acha melhor deixa isso pra manhã, não? – sugeriu
Emanuel, temendo que o amigo fique para trás. José Pereira, após conferir e carimbar a última
nota fiscal, abre uma gaveta e coloca o envelope de volta ao seu lugar de origem.
– Você está certo, Manuel. Vamos embora, então, porque o patrão Nélson nunca
gostou de esperar – respondeu o homem, ao coçar o bigode, pegar seu chapéu que estava
pendurado na parede e colocá-lo em sua cabeça.
A dupla sobe as escadarias do depósito em passos sincrônicos. Emanuel apaga as
luzes, tranca a porta e se assenta no meio fio à espera do seu admirável empregador.
É dia de receber o salário do mês e como ambos são homens de poucos estudos,
ainda não se familiarizaram com os caixas eletrônicos de bancos. Nélson, por várias vezes,
insistiu para que eles adotassem esses e outros mecanismos da modernidade, mas ambos
rejeitaram, dizendo preferir o método antigo.
Os dois, sentados na esquina, conversam até certo tempo amistosamente sobre as-
suntos corriqueiros, mas levantam-se em seguida ao ver, a uma longa distância, o Honda
Civic do patrão surgir se desviando de vacas perdidas, buracos e outros empecilhos na
estrada. Com perícia, o motorista conduz o carro até diante dos dois, faz uma manobra e
para no sentido de retorno.
Emanuel e José, tirando os chapéus em sinal de saudação, vão ao encontro do sujeito
que abria a porta para sair. José, que sempre foi um homem de educação e como já tinha
certa intimidade com o chefe, passando as mãos nos cabelos, está animado à espera do seu
envelope com dinheiro.
-– Até que enfim, hein, seu moço. Boa tarde, seu Nel... – antes mesmo que o homem
completasse a frase, os dois tomam um susto e permanecem com uma cara de interrogação,
pois quem acaba de sair do carro não era Átila mas, sim, seu filho Dionísio, que perdera quase
quarenta e cinco quilos e está bastante diferente desde a última vez que foi visto pelos dois.
O jovem de dezoito anos se aproxima da dupla que o observa admirada. Com dois en-
velopes em mãos, Dionísio os cumprimenta e entrega a cada um suas remunerações.
Os funcionários há muito tempo não perambulavam em torno da casa do patrão, mesmo
morando na mesma cidade. Viam Dionísio muito pouco, uma vez que o jovem passava o dia
todo em suas atividades ou cuidando de suas obrigações, frequentando academia, lendo livros e
cuidando de alguns assuntos. Raramente era visto pelas pessoas ao seu redor.
– Entrem no carro. Desculpem-me pela demora, meu pai teve que viajar e estou re-
solvendo alguns assuntos para ele. Vamos embora – disse ele, ao entregar os recibos para
serem assinados.
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William R. Silva
Os dois sujeitos entram no carro com um brilho no olhar, como pais satisfeitos de
um filho que acabou de lhes dar orgulho por um ato de dignidade. Os dois, apesar de não
pronunciarem uma só palavra durante todo o percurso, estavam admirados com a mudança
do adolescente. Estava magro, com um modo de falar confiante. Não acreditavam como
podia ter mudado tão rápido. Não era mais obeso. Seu rosto que há meses atrás era redon-
do, agora está bem modelado, masculino e bem afeiçoado. O modo de agir era mais firme,
não abaixava mais a cabeça para falar com os outros e mudava as marchas, manobrava,
subia e descia os morros, parecia que dirigia há anos. O garoto se transformou em homem
tão rápido que nem mesmo ele percebeu.
Dionísio, desde o ano anterior, seguiu rigorosamente a sua dieta e malhou com afin-
co, mesmo se sentindo inferior perante os frequentadores da academia. Enfrentou seu re-
ceio e faz seus exercícios físicos cinco vezes por semana, não se tornou nenhum daqueles
musculosos e, embora esteja a pouco mais de um ano na musculação, não tem qualquer
definição, está com um corpo comum, porém, bem mais magro.
Dionísio guia o carro na estrada de terra e levanta tanta poeira que quase perde a
visão do caminho que tinha pela frente. Sempre pela lateral, com as mãos firmes, uma no
volante e a outra na marcha, faz as manobras necessárias para primeiro se desviar de duas
motocicletas que surgem como mágica por entre a poeira vermelha, e depois para não se
chocar com duas mulas que guiavam uma carroça, com um homem sentado segurando
enormes tarros de leite para que não caíssem. Descendo o morro, depara-se com um con-
junto de casebres simples. Havia duas mulheres com seus filhos, cada uma esperando seus
respectivos maridos. Dionísio, de dentro do carro, balança as mãos e as mulheres, do outro
lado da rua, balançam a cabeça em sinal de retribuição. Os dois homens abrem a porta,
saem e se despedem do motorista, desejando que o garoto tenha um ótimo final de semana.
Na mesma hora em que os homens beijam suas esposas e entram para suas residências, o
automóvel sai acelerado pelas ruas do pequeno bairro.
Pedido de Namoro
O dia de hoje, para Dionísio, é especial. Além de ser sábado, também é dia de festa,
aniversário da cidade. Nessa época do ano, há muito entretenimento para os jovens, como
barraquinhas de maçãs do amor, shows de viola, parques de diversões, desfiles, encontro
entre amigos e várias outras opções de lazer. Entretanto, apesar de gostar bastante da festa,
não era exatamente isso que o estava deixando cheio de esperanças. Era Catarina, a menina
da sua classe, a mesma que o reconhecera na rodoviária naquele dia distante em que quase
partira. Desde aquele episódio, os dois se tornaram grandes companheiros. Sentam-se jun-
tos no ônibus quando vão à escola e ele constantemente a ajuda nos trabalhos escolares, em
matemática, física e história.
Dionísio, que dois anos antes tinha sido reprovado no primeiro ano do ensino médio e
era um fracasso como aluno, se tornou um dos melhores da classe. Conseguiu ser aprovado
com êxito em todas as matérias. Sua evolução foi fantástica, tanto em relação ao peso quanto
ao rendimento nos estudos. Ainda havia muitos setores da sua vida que precisavam ser apri-
morados, mas conseguira um grande avanço. Ainda tinha receios, inseguranças e algumas
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O Poder da Honra
outras fragilidades emocionais, mas muita coisa para ele estava melhor.
Catarina é uma menina super divertida, daquelas com quem se passa minutos e até
horas conversando sem que se perceba o tempo passar. Dionísio, para ela, é seu porto
seguro. Sempre que a moça precisa de algo ou alguém para auxiliá-la em alguma matéria,
carregar seus livros, ou qualquer outra atividade que esteja acima da sua capacidade, o ex-
gordinho está lá, pronto para socorrê-la.
Dionísio está preparado. Pretende se declarar para Catarina e pedi-la em namoro.
Tanto que, para isso, antes de buscar os funcionários do pai para levá-los embora, tinha
comprado um buquê e o guardou em uma caixa no banco de trás do carro. Tem certeza
que não está se precipitando, pois a menina é sempre meiga, amiga e carinhosa na presença
dele. Os dois são mais que amigos, conversam, riem, contam casos. Dionísio não é mais
aquele garoto ranzinza que todos temiam. Conseguiu conquistar alguns amigos, mas ne-
nhum deles era tão especial quanto a sua amada.
Catarina não é tão bonita quanto o seu amor do passado. Não tinha olhos verdes, mas
castanho-claros. Não tinha um corpo tão bem modelado como o de Ana Júlia, mas também
era uma moça atraente. Enquanto Ana era egocêntrica, insensível e pensava ser o centro
das atenções, Catarina era humilde, delicada e possuía uma grande sensibilidade em rela-
ção aos sentimentos dos outros. Para ele, ela era como um anjo de luz. Idealizava-a como
uma entidade mística, o caminho da sua felicidade. Dessa vez, não escreveu cartas de amor
porque não quer mais lembrar do que Ana Júlia fez com ele. Sente-se mal e nervoso toda
vez que lembra da época em que foi enganado e espancado. Desde aquele episódio, nunca
mais voltou a escrever cartas e poemas de amor. Sua última carta foi a que deixou relatando
seu desejo de assassinar os alunos que o espancaram, que, mal sabe ele, está guardada a
sete chaves no baú secreto de Nélson Átila.
Tinha combinado de ir buscar a garota às sete da noite. E lá estava ele em frente à
residência, aguardando-a se arrumar. Passam-se vinte minutos até que finalmente surge
Catarina com cabelos soltos, maquiagem, vestido azul e botas. Fecha a porta sorridente,
despede-se dos pais pela janela e desce apressada.
– Boa tarde, Dio. Quer dizer, boa noite. Já está quase escurecendo – disse a garota,
bastante animada.
Dionísio a aguardava na frente do carro com a porta traseira entreaberta, esperando
a moça se aproximar para fazer-lhe a tão esperada proposta. Ele estava confiante e tinha
certeza de que sua declaração surtiria um efeito positivo.
– Boa noite para você também – respondeu ele. – Espera um pouco, preciso falar
uma coisa com você. Há dias que estou tentando te dizer, mas nunca fui capaz – disse ele
quando a moça ia se preparar para entrar no carro, a interrompendo e segurando delicada-
mente em seus braços com certa timidez.
– Deixa para conversar comigo na praça. Vamos logo, Dio – disse ela, aflita por estar
com pressa de chegar à festa e encontrar as amigas.
A morena, que até o momento aceitava a atitude do amigo com desaprovação e sem
paciência para conversar, muda sua expressão facial ao ver que seu amigo tira um buquê
de flores de dentro do carro.
– Mas, o que é isto? – perguntou a moça com as mãos na boca, curiosa.
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William R. Silva
diz nada e sobe antes de César, sem ao menos olhar para trás e esperá-lo. Ele não se despede de
ninguém, sai apressado por entre a multidão, entra no carro, desce acelerado, quase atropelando
quem atravessava a rua. Vira o Honda Civic e para em uma esquina vazia. Com o rosto encos-
tado no volante, começa a tremer e a chorar angustiado.
Outra vez sentia a miserável dor da rejeição, do desprezo e da carência. Está assim
porque acabara de ver Catarina aos beijos e abraços com Ricardo Marone, encostados numa
árvore naquele local escuro. Eles eram um dos quatros casais que estavam juntos.
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A FACE DO MAL
26 de Setembro de 2006.
Na Cidade de Barbacena - MG
Os raios de sol refletem nas lentes dos óculos de Nélson Átila, enquanto ele passeia
pelas ruas da cidade de Barbacena. Estuda cada traço do município, cativado com as cons-
truções históricas, que são muito mais bonitas e variadas do que as que existem no lugar
onde mora. Nunca esteve na região, nem sequer de passagem. Ele foi, durante muitos anos,
um viajante. Conheceu quase todas as capitais dos estados brasileiros, locais históricos,
pontos turísticos, praias, lugares interessantes ao redor do país e também algumas nações
da América do Sul, mas Barbacena para ele era novidade. As informações que teve sobre
a cidade foram em sua maioria superficiais.
Quando criança, ouvia boatos de que era infestada de loucos, com dezenas de hospícios
com eletrochoques, camisas de força e todas as outras formas cruéis de tratamentos de doenças
mentais que são assistidas nas tramas de filmes, novelas e seriados. Não sabia se tudo era inven-
ção ou realidade, até mesmo porque nunca se interessou em averiguar. Com o passar dos anos,
continuava vez ou outra a ouvir falar do município. Uns relatos diziam que era a Cidade dos
Loucos e outros, a Cidade das Rosas. Esta última devido à fama de grande produtora da flor.
Embora ainda não tenha visto as famosas rosas e muito menos um louco andando pelas ruas,
não duvidava de nada em relação à fama do lugar.
Nélson, sempre foi um homem movido pela curiosidade, algo que o fez ganhar valiosas
experiências de vida, bens materiais e algumas vantagens, mas que, por outro lado, também
lhe trouxera muitas desgraças. Visitou bastantes lugares a fim de aproveitar ao máximo seu
passeio. Tinha o seu destino certo e não estava para diversão e lazer, mas como iria dormir na
cidade, não precisava ter pressa. Não desperdiçou uma só fração do tempo. Conheceu a estação
de onde se desembarcava o famoso Trem dos Doidos. Viu o Batalhão da Polícia Militar, a
Escola Preparatória de Cadetes Aéreos, a Escola de Hotelaria e o conhecido Museu da Loucura
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O Poder da Honra
com suas fotografias antigas, equipamentos de eletrochoques obsoletos, objetos antigos, docu-
mentos, crânios, ferramentas cirúrgicas, uniformes manicomiais e relatos que comprovaram
algumas das histórias que escutou quando era jovem.
Átila tinha acabado de jantar num restaurante quando seu celular tocou. Pega o aparelho
e vê que era a Dra. Elyane Schustner, a psiquiatra. Nélson é conhecido de um dos pacientes. Na
verdade, foi graças a Nélson, e mais algumas outras pessoas que o sujeito havia ido parar no
estabelecimento psiquiátrico. É essa a causa da sua visita à cidade. Precisava de informações
sobre o estado mental do sujeito. A psiquiatra é uma das maiores especialistas em transtornos
de personalidades e Barbacena, atualmente, concentra um dos mais respeitáveis centros de
tratamentos do país e o único de Minas Gerais que trata criminosos.
Após quitar a conta, beber o último copo de cerveja e avisar a mulher que já estava
a caminho, retira-se do estabelecimento tão depressa que não percebe os olhares sedutores
de duas lindas senhoritas que estavam na mesa do lado a observá-lo enquanto se despedia
do restaurante. Átila é um homem elegante. Normalmente anda bem vestido e tem uma
postura altamente masculina, o que faz com que frequentemente ative a atenção feminina.
Como é um homem fixo em seus objetivos, não estava com paciência e nem energia para
jogos de conquistas. Não naquele instante.
Eram sete horas da noite e as últimas luzes dos postes terminavam de se acender para
clarear as ruas. Estava com as pernas doloridas, andou demais e, como não viajou de carro, re-
solveu alugar um para trafegar e chegar mais rápido ao seu destino. Não quis dirigir na estrada
e viajou de ônibus, assim poderia dormir durante a viagem e, como tinha apenas um carro, o
deixou com Dionísio, que, conforme ia praticando, aos poucos se tornava tão habilidoso quan-
to ele ao volante. O filho tirou carteira de habilitação, deixando-o extremamente orgulhoso.
Estava muito satisfeito com a evolução do jovem e não tinha nada do que se queixar dele.
Houve momentos em que teve vontade de desistir. Porém, hoje via que fizera o certo. Suas
preocupações eram muitas e Dionísio, a menor delas.
O vento gélido que arrepia os pelos dos braços descobertos do visitante faz com que
seus longos fios de cabelos voem no rosto, atrapalhando tanta a sua respiração quanto a
sua visão. Durante a tarde estava calor, então, ele não pegou nenhuma das suas jaquetas e
deixara sua mala num hotel que, de tão distante, só pretendia voltar quando fosse dormir.
Sentia-se desconfortável com o frio, mas nada que o pudesse fazer desistir da sua missão.
Entre descidas e subidas de morros, quarteirões e manobras, lá estava ele em frente ao
Hospital Psiquiátrico e Judiciário.
Elyane Schustner o aguardava na entrada da instituição. O homem, saindo do carro, le-
vanta o braço esquerdo sinalizando para a mulher de cabelo curto, terno branco, óculos e que,
apesar de possuir quase quarenta anos, mantinha um rosto suave e calmo como de uma menina.
– Boa Noite, doutora. Creio que cheguei a tempo, não? – diz Nélson, ao vê-la.
– O combinado foi às vinte horas. Agora são dezenove e cinquenta e cinco, está no horá-
rio. Liguei só para confirmar – disse séria, prestando atenção no sujeito à sua frente.
– O que achou da cidade? – perguntou a profissional, ainda conservando a sua pos-
tura séria de falar.
– Bem, não se parece em nada com o que eu li no livro O Grande Mentecapto. Mas
a cidade é bem legal, sim – respondeu Nélson de modo divertido ao virar o rosto e reparar
70
William R. Silva
cheios de ira, com suas costeletas bem aparadas e usando um bigode grosso, fixa Nélson com
superioridade, tomba o rosto para perto do ombro direito e inicia uma sequência sinistra de
risadas. Elyane não se assusta. Está acostumada a lidar com essas situações. Nélson também
não se intimida, pois já esperava uma reação assim.
Cessando o riso, o transtornado homem levanta-se da poltrona e para em pé, olhando
dentro dos olhos de Nélson Átila, que fica na expectativa, esperando saber o que ele pre-
tendia. Assim, Ernesto começa a discursar sem a menor cerimônia.
– Finalmente resolveu aderir ao meu plano, o plano de salvação do mundo? Enten-
deu agora? Entendeu que esse mundo está infestado de imundos e pecadores? Devemos
restaurar a ordem, a honestidade, a honra e a dignidade e só há uma forma de consertar
tudo isto. Você veio me tirar daqui, me resgatar e seguir com a minha grandiosa obra. Não
há outra saída a não ser eliminar o lixo do mundo, nem que seja gradualmente. Você sabe
bem disso e veio me tirar daqui, não é?
Elyane se aproxima da porta para chamar a equipe de apoio, precavendo-se em caso
de emergência, e Nélson assiste atento ao discurso do rapaz.
– Continua com esses pensamentos estranhos. Não vim te resgatar e, mesmo se tives-
se poder para fazê-lo, não faria. Você tentou matar uma pessoa sem ter motivos para isto,
agiu como um louco covarde – disse Átila, criticando as palavras de Ernesto.
– Mero imbecil. Continua pensando que vai consertar o mundo somente através da
fé, conselhos, amadurecimentos e reflexões. Não adianta, há pessoas que nunca mudam,
nascem errantes e morrem errantes. Eu apenas estava fazendo um favor ao mundo, elimi-
nando um pecador, apenas isto – disse Ernesto, novamente balançado a cabeça para o lado
do ombro esquerdo, com nariz empinado e olhando nos olhos de Nélson.
Ernesto interrompe seus dizeres e se segura agressivo nas grades como se estivesse
querendo quebrá-las e, se não o fez, é porque não tem força física para tanto.
– Vocês não entendem. Faço tudo pelo bem de todos, pelo bem do mundo. Vocês
não aprendem. Você, Sílvio, Thales e Thomas Bruso são todos uma turma de inúteis. Sou
e sempre fui superior a vocês. Por isto, fiz bem em seguir o meu caminho sozinho e tentar
encontrar pessoas iluminadas como eu para seguir nosso plano de redenção divina – disse
o prisioneiro, revoltado e com uma voz diabólica.
– O tempo acabou, precisamos sair – advertiu Elyane, atenta às atitudes de Ernesto.
– Anda. Some daqui, seu merda! – disse Ernesto, dando socos nas grades. E preten-
tendo intimidar o visitante, manda seu recado final – Eu não vou ficar trancado para sempre.
Não vou, pode apostar!
A doutora sai antes, mas Átila para de costas e diz visando desafiá-lo:
– Eu sei. E saiba que todos estaremos esperando para prendê-lo de novo.
O visitante sai e deixa o detendo a dar socos na cela, rangendo os dentes de raiva.
72
William R. Silva
16
A EQUIPE
HOMENS DE HONRA
3 de Julho de 2007.
– E aí, Dionísio. Vamos brincar de Velozes e Furiosos? – perguntou Ricardo Marone,
parando seu carro ao lado do Honda Civic de Dionísio e o desafiando para um racha.
– Não, Ricardo. Hoje é festa na cidade. Vocês sabem que a BR fica movimentada
nessa época. Dio, não faz isso. Pelo amor de Deus – suplicou Catarina, desesperada e se-
gurando o braço de Ricardo, tentando impedi-los.
– Deixa de ser medrosa, Catarina. São três horas da madrugada, não tem ninguém na
rodovia agora – repreendeu Ricardo, tirando a mão da moça de seu braço.
– Se você correr, eu desço do carro. Estou falando sério – insistiu Catarina, na espe-
rança de fazê-lo desistir e temendo o pior.
– Dionísio, isso não é muito legal. Nós podemos morrer nessa brincadeira – advertiu
Leandro, que também não estava gostando nada da atitude dos condutores.
– Relaxa cara, relaxa – disse Dionísio, com o pé no acelerador, ao ver a preocupação
do amigo no banco de trás.
Mas, se por um lado uns querem impedir a disputa, outros incentivam. Sílvia, a garota que
está sentada ao lado de Dionísio, passa suavemente os dedos nas pernas do jovem motorista e,
mordendo os lábios de maneira sedutora, encoraja o garoto a seguir com o duelo.
– Vai, Dio. Vai, meu amor. Eu sei que você consegue ganhar dele – incitou a moça.
Tiago e César, ambos com latas de cervejas e alcoolizados, para desespero de Lean-
dro e Catarina, também começam a balançar os braços e a gritar, um no banco traseiro do
carro de Dionísio e outro, no de Ricardo, aumentando ainda mais o desejo dos motoristas
de acelerarem os automóveis e começarem o racha.
– Correr esse trecho da BR até a entrada de Realinópolis, fechado? – disse Ricardo,
preparando-se para arrancar.
Sílvia, aumentando o seu ritmo de respiração, estufa o decote, deixando os seios
quase à mostra, e olha sedutoramente para Dionísio, estimulando ainda mais o garoto para
a competição.
– Vai, mete o pé! – gritou César, com o rosto para fora, batendo três vezes na porta
traseira.
Ouvem-se roncos de motor, um barulho tão ensurdecedor que faz com que Catarina
coloque as mãos nos ouvidos e comece a gemer, enquanto Tiago e César riem e se divertem
com o início da disputa. Os carros arrancam, fazendo seus respectivos pneus deslizarem,
deixando marcas no asfalto.
Dionísio e Ricardo, no auge da adrenalina, correm em zigue-zague e, a cada curva,
73
O Poder da Honra
A turma, como ainda estava agitada devido à corrida que acabaram de presenciar,
não altera seu estado emocional, mesmo vendo centenas de jovens que conversam e ca-
minham alegres de um lado para outro e que bebiam cervejas, vodcas, uísques e outras
bebidas alcoólicas ao som da música que surgia de um enorme palco montado no final da
rua principal.
Sílvia é a primeira a descer, o que faz com que todas as atenções dos jovens se voltem
para ela, pois a moça, além de ser bonita e ter uma forma física perfeita, usava um short curto,
tênis e uma blusa tomara-que-caia, que quase deixava seus peitos e suas costas à mostra. César
e Leandro são os próximos a sair e, por último, Dionísio, que tem sua mão direita entrelaçada à
de Sílvia e é guiado por ela por entre os caminhos. Entretanto, Dionísio e seus companheiros não
prosseguem o percurso, pois acabam de ver o carro de Ricardo chegando e, ao parar, todos per-
cebem claramente que Catarina estava com os ocupantes. A moça, depois de muita insistência
do namorado, resolveu voltar e seguir com eles.
Dionísio, Sílvia, César e Ricardo, que deixa a namorada para trás, entram no Bar
Meia Noite e escolhem a mesa mais próxima, puxam as cadeiras, se assentam e pedem
bebidas ao garçom. O bar é um dos lugares mais interessantes e tradicionais da cidade, o
ponto de encontro dos jovens, onde se reúnem para se divertir e jogar conversa fora.
O ambiente é agradável. O teto é bem ventilado, garçons sempre bem vestidos, uma
mesa de sinuca com bom espaço para as manobras dos jogadores, fliperamas, caixa de
fácil acesso, televisão mostrando programas e filmes noturnos e uma variedade de bebidas,
74
William R. Silva
nentes com um soco certeiro no canto esquerdo do queixo, fazendo com que o rapaz caia em
cima de uma mesa, derrubando copos, garrafas e petiscos que haviam nela.
– Para com isso, molecada. Vão acabar com meu bar – gritou o proprietário, com as
mãos na cabeça, tentando, sem resposta, acalmar os jovens que quebravam uns aos outros
e também tudo ao redor. Junto a ele estavam os garçons, que também se moviam de um
lado a outro, na esperança de diminuir a confusão, mas em vão.
Um dos jovens, com um taco de sinuca, acerta Dionísio nas pernas, causando uma
queda e, assim, inicia uma sequência de pontapés em suas costas. De repente Dionísio não
se vê mais no bar. Sua mente se transporta para o passado, no dia em que foi agredido por
Roberto, Paulo e João no parque. Nesse momento sente muita raiva crescendo dentro de si e,
num salto quase acrobático, antes mesmo de terminar de ficar de pé, com o impulso profere
um golpe violento na face do agressor, que cai deitado em cima da mesa de sinuca com o
nariz sangrando. Tiago se defende de cadeiras que são arremessadas por um dos rapazes.
César, pensando ser um lutador de UFC, profere chutes e socos para todos os lados, sem nem
mesmo saber em quem acertar e Leandro tenta, sem sucesso, apartar a briga e fazer com que
os amigos desistam do ato de vandalismo.
A praça, que horas antes era animada e todos se divertiam, cai num silêncio desani-
mador, pois o som é desligado por ordem de Thales Delone, um rapaz alto, de cabelos lisos,
penteado de lado, exageradamente sério, daqueles que economizam sorrisos. Ele é o chefe
da segurança local, mais conhecida por Equipe Homens de Honra, uma equipe profissional
de seguranças particulares que atuam em shows, festas, ocasiões importantes e principais
eventos da região, e que é uma das mais respeitadas e solicitadas para esse trabalho. Nin-
guém sabe sua sede, sua origem e muito menos como surgiu. Eles aparecem em meio à
centena de pessoas, abrindo caminho com os braços, sem pedir licença, e dando ordens aos
demais agentes de segurança e dois policiais que os seguem.
As pessoas nada dizem, apenas abrem espaço e observam, curiosos, comentando e
olhando admirados a turma de homens de ternos pretos e com cassetetes, partirem em dire-
ção ao local da briga, fazendo grande parte das mulheres suspirarem de emoção.
– Sai da frente, sai da frente – disse Thales, empurrando levemente quem estava à sua
frente e conduzindo seus cinco auxiliares: Armando Amin, um rapaz de mais de um metro
e oitenta de altura, cabeça raspada, mau encarado e com um cassetete nas mãos; Alexander
Tomy Calvino, o mesmo que Dionísio conheceu dois anos antes num boteco próximo à
rodoviária; Eduardo Dantes o dono da loja de games; Arlindo Franklin, um rapaz alto, de
cabelos longos e enrolados; e Toni Esteves, um jovem de estatura média e aparentemente
o mais novo de todos.
Thales, sua equipe e os dois policiais militares entram no bar e chegam no exato
momento em que um dos rapazes agonizava em cima da mesa da sinuca pondo sangue
pelo nariz. Dionísio é contido por Tomy Calvino e Ricardo recebe uma chave de braço de
Arlindo e não consegue mais se movimentar. César é imobilizado por Eduardo Dantes e
Tiago desiste de quebrar uma cadeira nas costas de um dos rivais, pois é interceptado por
Armando Amin, que segura firme o objeto. Leandro, por ter sido o mais calmo e paciente
de todos, não teve necessidade de ser contido. E os demais jovens baderneiros são parali-
sados por Toni e os policiais.
76
William R. Silva
Thales, com olhar dominador e sem muita paciência, observa toda a bagunça do local.
Tacos de sinuca, cadeiras, copos, garrafas, pratos, todos quebrados, além de marcas de sangue
no piso. Viu também o dono do bar desesperado com o prejuízo, algumas pessoas entrando
para ver o resultado da batalha e os garçons arrumando toda a bagunça e recolhendo os cacos
para jogá-los no lixo ou amontoá-los em algum outro lugar.
– Todo mundo para a delegacia! – ordenou Thales, que acabara de se irritar profun-
damente com todo o estrago que fizeram no local.
Sílvia e Catarina, boquiabertas, atônitas junto à multidão, veem todos sendo levados pela
equipe de segurança. Os carros de Dionísio e Ricardo são rebocados e as duas moças são levadas
na viatura pelos policiais para suas respectivas casas. As moças não puderam acompanhar Ricar-
do, Dionísio e seus amigos até a delegacia.
17
A GAROTA FATAL
8 de Fevereiro de 2008.
Sílvia é uma moça sensual em todos os sentidos, com a suavidade da sua voz, o modo
extravagante de se vestir, os toques de maquiagem, batons vermelhos e seu modo provocan-
te de olhar. Ela não seduz e nem provoca os homens por mal, mas porque adora ser o centro
das atenções. É uma jovem altamente pueril, quase não tendo noção da própria infantilidade.
Frequentemente, dá em cima de garotos que a cortejam simplesmente para se sentir podero-
sa. E age assim, na maioria dos casos, sem intenção alguma de correspondê-los. Tem essa
mania, pois adora ter o ego amaciado, se sentir linda, amada e especial. Isso para ela é como
um vício. Se não receber pelo menos dois elogios durante o dia, nada valeu a pena. Por essa
razão, usa ao máximo o seu poder de atração.
Catarina, embora seja bastante vaidosa, não concorda em nada com o exibicionis-
mo da amiga. Como é uma cidade pequena, com um reduzido número de moradores, as
pessoas adoram falar da vida dos outros. Sílvia é uma das pautas principais das chamadas
conversas fiadas das comadres e desocupados do pedaço.
Dionísio, mesmo se sentindo inseguro com os comentários e a má fama da garota na
cidade, engana a si mesmo dizendo que tudo não passava de mentiras de invejosos. E a cada
dia que passa, se envolve com mais intensidade na relação. Ela diz a ele que todos esses
boatos são mentirosos, que ela sabe valorizar um homem e é mulher de um cara só.
Desde o dia em que os dois começaram a namorar, Dionísio reduziu suas horas de
estudos. Se antes estudava de quatro a seis horas por noite para concorrer a uma vaga no
vestibular da federal, hoje estuda apenas uma ou duas. Tempo que, além de ser pouco, não
o deixa assimila nem dez por cento do conteúdo, pois o tempo inteiro pensa na amada. Ele
77
O Poder da Honra
está apegado ao extremo, não consegue pensar em nada e anda constantemente desconec-
tado do mundo.
Por distração e descuido, perdeu uma enorme quantia em dinheiro das vendas das
lojas e dezenas de notas fiscais de mercadorias importantes, fazendo com que José Pereira
quase tivesse um enfarto de preocupação. José trabalha há anos para Nélson e nunca come-
teu um erro desses, por isso ficou à beira de um ataque de nervos. Dionísio conseguiu repor
o dinheiro perdido tirando do próprio bolso, mas em relação às notas fiscais, não tiveram
alternativa a não ser providenciar outras, mediante suaves taxas de pagamentos da segunda
via, todas bancadas por Dionísio, é claro.
Não há como negar de que Sílvia está sendo uma avalanche na vida do jovem emocional-
mente fraco e apaixonado. Ana Júlia foi o primeiro e o maior amor da sua vida, contudo Sílvia
quase a alcança em questão de apego, se é que já não alcançou. Dionísio, que tinha uma grande
quantia em dinheiro no banco, praticamente esvaziou a sua conta para dar de entrada num Pálio
Fire, ano dois mil e sete, zero quilômetro e dividindo o restante em suaves prestações que irá
demorar mais de três anos para pagar. Comprou o carro por exigência de Sílvia, pois ela constan-
temente se queixava da falta de um carro para levá-la para sair e passou a questioná-lo desde o dia
em que seu pai lhe tomou o Honda Civic e o vendeu. Se pai se desfez do veículo para castigá-lo
por ele e seus amigos terem quebrado o bar e terem participado daquela briga. Inclusive, usou o
dinheiro da venda do carro para sanar os prejuízos do proprietário. Átila deixara isso claro no dia
em que foi buscá-lo na delegacia.
Sílvia tem mais de mil amigos em sua rede social e quase todos os dias posta de
duas a cinco fotos sensuais no seu álbum pessoal, recebendo assim inúmeros comentários
de machos bajuladores. Dionísio se sente bastante irritado com isto, mas teme contrariar a
adolescente. Com certa frequência, ela também postava foto dos dois juntos, se beijando e
abraçados. Sílvia faz questão de exibir seu namoro nas redes sociais e, vez ou outra, deixa
declarações de amor.
Ele a leva para sair quase todas as sextas e sábados e nos domingos à tarde. O açaí
é obrigatório, senão, terá que aguentar a namorada com a cara emburrada durante toda a
semana. Dionísio não jogava mais bola com os amigos no sábado de manhã como era de
costume, não curtia mais seus games favoritos e foi obrigado a parar de frequentar a loja
de Eduardo Dantes. Definitivamente, parou de participar das peladas com os amigos e não
tinha mais suas tradicionais conversas com o pai, que eram todas as noites a respeito de
negócios, sociedade e valiosas lições de vida que, de certa forma, ajudavam muito no seu
processo de amadurecimento.
Não tem mais vida própria. Por causa da moça, deixou de fazer todas as atividades que
gosta. Uma das únicas coisas que ainda permanece em sua rotina é o trabalho, pois além de não
querer ter problemas com o pai, que ainda não o perdoou pelo incidente no bar, também não
quer ficar sem dinheiro. Está precisando muito para bancar os caprichos de Sílvia. É totalmente
controlado pela namorada. Sempre faz tudo o que ela pede, levando-a onde ela quiser, seja em
um parque, no cinema da cidade vizinha, em uma festa ou onde for. Dionísio, nas mãos dela, é
como um fantoche, um ser manipulável, um objeto de lazer.
Por outro lado, por incentivo da garota, está assíduo na academia. Se antes ia quatro
vezes por semana e dava prioridade somente a bicicletas e esteiras visando manter o peso
78
William R. Silva
e investia em uma dieta balanceada, atualmente vai cinco vezes por semana, malha bíceps
e tríceps, exercita os ombros, peito, coxas, trapézio e todos os outros músculos. Após se-
manas de treino, aos poucos seu corpo foi tomando forma. Não se tornara nenhum modelo
fisiculturista, mas já começava a parecer esteticamente melhor.
Os dois se conheceram através de Catarina, na época em que Dionísio ainda estava desilu-
do por ter sido trocado por Ricardo. Ele, Ricardo, Catarina, Tiago e Sílvia conversavam e lancha-
vam numa pizzaria numa noite de quinta-feira e Sílvia, de maneira sutil, sempre dava indiretas,
tentando chamar a atenção do rapaz. Mas, como Dionísio estava triste por continuar gostando de
Catarina, não prestou atenção na garota e nem nas palavras dela. Ele a ignorou o tempo inteiro.
Não tinha vontade de conversar, apenas ouvia a conversa dos amigos. Não se sentia bem ao ver
Ricardo e Catarina juntos, gostava dos dois e não desejava mal a eles, porém estava bastante
deprimido naquele momento. Quanto mais Sílvia puxava conversa com o triste rapaz, mais ele
a ignorava e ela se sentia menor por isto. Sílvia sempre foi o centro das atenções. Os homens do
bairro, da escola e de toda a cidade sempre foram loucos por ela, mas Dionísio não. Perto dele,
ela se sentia invisível.
No fim de quase quarenta minutos de conversa, sem que Dionísio dissesse uma só
frase, apenas respondendo monossílabos do tipo sim e não, todos pagaram a conta e se
despediram. Como Sílvia não se conformava em ser rejeitada, como última tentativa pediu
a Dionísio que a levasse de carro até sua casa. O garoto, que até então não tinha reparado
na garota, começou a olhá-la de cima a baixo e a ficar admirado com a beleza física e a
sensualidade da moça, aceitando, sem pensar duas vezes, dar a carona.
– Por que você não disse nada o tempo todo? Está chateado com alguma coisa? – inquiriu
Sílvia, olhando no rosto do motorista que guiava o carro por entre as ruas semidesertas.
Dionísio, que escutava concentrado uma música da sua banda favorita, não entendeu
direito o que a moça perguntou e, tentando parecer agradável, fala de forma educada:
– Perdoe-me pela distração! Não entendi sua pergunta.
Sílvia olha para o amigo com malícia, morde sensualmente os lábios, fazendo com
que Dionísio fique sem jeito, e repete a pergunta.
– Eu te perguntei por que não disse nada, por que se calou o tempo todo? Nem parece
que você estava entre a gente. Era como se estivesse em outro mundo.
Dionísio, de tão distraído com as pernas lisas que se abriam por entre a minissaia e pela
maneira com que a garota o olhava, quase fez com que o carro subisse no meio fio e derrubasse
uma lixeira. Isso raramente aconteceria se não fosse a provocação da jovem, pois Dionísio
aprendeu bem a dirigir com as dicas de Átila. Tornou-se um ótimo motorista e foi aprovado de
primeira no exame de direção. Mas acontece que a sensualidade de Sílvia estava por deixar seus
hormônios agitados. Ele nunca tinha cometido uma barbeiragem antes e, por isso, decidiu evitar
olhar para a moça durante todo o trajeto. Ao terminar de remanejar o carro novamente para a
rua, responde a amiga sem ao menos se virar para ela.
– Eu não estou me sentindo bem, não estava animado em participar da conversa. Foi mal.
Chegando à casa da moça, Dionísio para o carro e se despede dela, esperando que desça e
entre em sua casa. Entretanto, Sílvia continua inerte no banco do veículo e, novamente mordendo
os lábios e estufando os seios para frente, começa a fitá-lo sem parar. Dionísio, nervoso e sem
saber ao certo o que fazer, contra sua vontade olha novamente para o corpo da moça, não conse-
79
O Poder da Honra
guindo mais se concentrar em nada ao seu redor. Sílvia pega a mão esquerda de Dionísio e aos
poucos vai se aproximando do rosto do rapaz. Ele apenas corresponde aos movimentos sem nada
a dizer. Ela lhe dá um beijo tão inesperado que Dionísio sente seu corpo estremecer, como se uma
corrente elétrica o atravessasse. Sente o perfume que exalava do corpo da garota entrando em
suas vias respiratórias como se fosse uma droga alucinógena, provocando-lhe automaticamente
altas doses de sensações de prazer.
Ele, de maneira desajeitada e afobada, começa a correr as mãos por todo o corpo da
moça, enquanto mantém seus lábios freneticamente nos dela. Parte das pernas, umbigo e
chega até os seios. Nesse instante, ela interrompe o beijo, tira as mãos do jovem de dentro
de sua roupa e adverte, sorridente, o menino afobado.
– Calma, meu bem. Devagar.
Como qualquer homem na idade de Dionísio, o adolescente é acometido diariamente
por uma guerra interna em virtude do seu forte desejo sexual. Embora já tivesse dado seu
primeiro beijo em uma garotinha da escola, que há pouco se mudou da cidade, ainda era
virgem e todo e qualquer estímulo sexual o fazia perder quase todo o controle sobre si
mesmo. Dionísio tenta beijá-la novamente. Mas a moça desvia seu rosto, abre a porta do
carro e foge arisca. Para ao lado do condutor e, abaixando-se, coloca o rosto na janela do
condutor, acaricia o canto esquerdo do rosto de Dionísio e se despede.
– Tchau, meu bem. Depois continuamos o que começamos hoje – disse ela ao virar
as costas e entrar em casa, deixando o jovem inexperiente ainda sentindo o beijo, o cheiro
e todo o resto do corpo de Sílvia deixando seus desejos à flor da pele.
Nos dias que se seguiram, Dionísio não mais se lembrava de Catarina, esquecendo-
se totalmente da amiga que o rejeitou. Na verdade, não se desapegou. Pelo contrário, da-
quele dia em diante apenas trocou seu objeto de apego. Passou a pensar em Sílvia durante
todo o dia e até seus banhos passaram a ser mais prolongados.
A turma do colégio sempre sai junta: Ricardo, Tiago, César e Dionísio e as respectivas
“ficantes” de cada um deles. Devido ao ciclo constante de amizade, no início Dionísio vivia
entristecido porque sempre era obrigado a ver Catarina e Ricardo juntos. Depois de ter ficado
com Sílvia, se animava cada vez mais a sair com a turma, pois sabia que a moça ousada estaria
presente aos encontros. Devido a essas aproximações, os dois sempre iam embora juntos.
Na primeira vez que Dionísio tentou apresentar a moça para o pai, Átila, por motivos
pessoais, demorou a chegar em casa e os dois ficaram sozinhos. Como Sílvia é uma garota
que adora fazer coisas escondidas e tem certo fetiche em correr perigo de ser pega fazendo
o que não deve, sugere a Dionísio que a leve até seu quarto. O dono da casa, a princípio,
ficou receoso. Não porque não tinha vontade de ir para cama com ela. Desejou isto desde a
primeira vez que a beijou. Na verdade, teve medo de falhar ou de não ser um bom amante
e de seu pai pegar os dois em flagrante.
Mas, uma vez que a garota tinha uma personalidade atrevida, ela mesma o guiou até seu
quarto. Nesse episódio, o jovem finalmente perdeu sua virgindade e no dia seguinte acordou
orgulhoso de si, sentindo-se um homem de verdade e disposto a enfrentar o mundo e a ira
do seu pai, chamando-o de irresponsável por não ter usado preservativos. Dionísio está tão
submerso em sua paixão que já faz planos para noivado, casamento e, se a moça engravidasse
por causa da irresponsabilidade deles, ele a assumiria e a sustentaria.
80
William R. Silva
Seu pai constantemente lhe dá conselhos dizendo que as coisas não são como ele
pensa, que deveria conhecer a moça melhor e analisar friamente as atitudes e caráter dela.
E que não era bom entrar de cabeça na relação. Dionísio sempre ouviu os conselhos do seu
genitor, mas dessa vez ele o ignora e não escuta nada do que ele diz.
Houve momentos em que pai e filho quase discutiram por causa da moça, que faz de
Dionísio o que ela bem entende. No entanto nada aconteceu, pois ele tem muito respeito e
gratidão por Nélson e não teve coragem de discutir com ele, embora continue saindo com
a suposta namorada.
Nada no mundo importa, a sua vida é ela. Está totalmente cego de paixão. Os con-
selhos de Átila, as evidências sobre a conduta duvidosa da moça e os boatos que circulam
sobre ela na cidade, para Dionísio não importam. Ele faz vista grossa e não dá a mínima
para tais evidências. Sílvia, para ele, é a mulher da sua vida.
18
THOMAS BRUSO,
O DOUTRINADOR
8 de Julho de 2008.
O relógio da Igreja da Matriz, que é facilmente visível não importando o local onde cada
um esteja, principalmente pela forte iluminação que clareia os ponteiros e números, marcava dez
minutos para as três. Tudo indicava que esta seria uma madrugada de terça-feira como qualquer
outra, tranquila, calma e passageira, mas nem sempre a pequena cidade, com um tanto mais que
trinta mil habitantes, tem suas tradicionais e costumeiras noites de paz. As ruas, todas desertas e
tudo tão silencioso, davam a impressão de que não havia ninguém morando nela. Todos estavam
dormindo, nenhum bêbado deitado nas calçadas, sem carros com casais enamorados parados na
esquina e quase nenhum outro sinal de vida humana, a não ser pela presença de alguns jovens
imprudentes. Entre eles, Dionísio, Ricardo e Tiago, cada um com seus respectivos carros, aguar-
dando sem muita paciência o último integrante da turma, para, mais uma vez, praticarem suas
disputas de rachas, ou pegas, como dizem alguns. Todos têm consciência de que a brincadeira é
perigosa e que correm risco de vida, mas como são todos amantes da emoção, irresponsáveis e
apaixonados por esse veículo de quatro rodas, ignoram o perigo e competem animados como se
fossem personagens de filmes de ação.
Dionísio já fora advertido pelo pai, depois da confusão que ele e seus amigos arru-
maram no bar, as cobranças dobraram. Nélson não admitiria outra reclamação envolvendo
seu nome, porém, o jovem não conseguiu se livrar de seu desejo por adrenalina, de praticar
suas corridas ilegais. Ele adora dirigir, uma das raras coisas que atualmente desempenha
com poucas possibilidades de falhar. É um ótimo motorista e quase não comete erros, a não
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O Poder da Honra
– Estão vendo o relógio da igreja? Então, galera, assim que o ponteiro dos segundos
apontar o número doze, vamos correr até a saída da cidade, percorrer parte da BR até che-
garmos na outra entrada. Quem chegar primeiro, vence. Certo? – explicou Johnny, com o
pé no acelerador.
Dionísio, percebendo que era tarde demais para se arrepender, com uma agilidade de
mestre, encaixa a chave, pisa na embreagem, no freio e liga o veículo.
A cada movimento do ponteiro, o coração dos respectivos competidores vai batendo
com mais intensidade. Oito, nove, dez, onze e doze, Johnny parte acelerado na frente fa-
zendo os seus oponentes ficarem para trás. Seu Astra sai em zigue-zague, quase se chocan-
do com o meio fio. Numa jogada perigosa e ao mesmo tempo habilidosa, faltando pouco
para cair barranco abaixo, atravessa a saída e, numa curta fração de tempo, já estava na BR
e os outros carros atrás lutando para tomarem seu posto.
Tiago se sente amedrontado, com receio de ter algum outro veículo percorrendo o tre-
cho. Naquele horário, a estrada era tranquila, mas normalmente havia caminhoneiros trans-
portando cargas ou outros automóveis atravessando o trecho. Distanciando-se cada vez mais
dos outros corredores, decide se desligar da competição e fica a metros de distância dos outros
veículos. Ricardo, que estava na contramão com o desejo de ultrapassar Johnny e o outro
rival, ao enxergar uma carreta em sentido contrário a quilômetros de distância, volta para sua
faixa e quase se choca com um Siena. Ambos os carros se desviam do caminhão e Dionísio,
que fora deixado para trás, pois foi o último a ligar o automóvel por causa da sua distração,
aproveita a brecha deixada pelo veículo de grande porte. Assim entra disparado na contramão
e ultrapassa todos os carros, chegando ao local indicado e vencendo a corrida. Na freada brus-
ca, Dionísio, com a proteção do cinto de segurança, sente seu corpo ir e voltar. Os demais
veículos se alinham logo em seguida.
– Por mim, chega. É a última vez que participo disso. Poderia ter acontecido uma tra-
gédia se não se desviassem a tempo daquela carreta – reclamou Dionísio, saindo do carro
e batendo a porta de maneira agressiva.
Johnny, ao ver o estado de agitação do vencedor, abre a porta e deixando-a aberta, sai
do carro e diz encostando o dedo indicador no peito de Dionísio.
– Calma aí, velho. Tu ganhaste a corrida, não é? Então, fica de boa.
Ricardo, que se sente incomodado com a maneira pela qual Johnny fala com o ami-
go, se intromete entre os dois e se dedica a retrucar o suposto marginal.
– Tá na hora terminar com essa porra logo, cara. Vamos entregar o dinheiro para o
Dio e você cumpre seu trato. Senão, vamos ter que resolver essa parada do jeito que esta-
mos acostumados a fazer na rua.
Johnny, ao ouvir as palavras, fecha os punhos, olha nos olhos do rapaz e os dois
ficam se encarando. Dionísio se coloca entre os dois tentando acalmá-los. Ricardo, com
raiva nos olhos, começa a insultá-lo.
– Sabia que não poderia confiar num lixo como você. Nunca iria cumprir sua pala-
vra. Pelo que vejo, as provocações vão continuar.
O clima entre os três estava tenso, visto que Dionísio também se preparava para
defender o parceiro. Porém, a atenção muda de foco quando os jovens se dão conta da
ausência do terceiro integrante do grupo. Ricardo, momentaneamente se esquecendo do
83
O Poder da Honra
Bruso. O homem de cabeça raspada, sério e que tudo indica ser o suposto líder do grupo,
com um olhar fixo em Dionísio e depois em Caveira, deixa quase todos atemorizados, com
exceção de Johnny, que o olha com ar de superioridade.
– Bando de irresponsáveis. Estão cansados de saber que esses pegas, além de serem
proibidos, são perigosos. Por acaso querem morrer ou ficar pelo resto da vida numa cadeira
de rodas? – questionou o homem careca, mantendo sua postura firme.
Johnny Caveira, não se sentindo intimidado com as palavras de Thomas, sai do carro
e diz ao líder dos motoqueiros:
– Então, você voltou, não é? O grande Líder do Grupo Homens de Honra. Ainda continua
com essa mania de querer controlar a cidade. Mas, quer saber a verdade? Na minha opinião,
vocês todos não passam de uma turma de imbecis metidos a policiais pica grossa.
Tiago preocupado, assiste curioso a cena, sem saber ao certo onde tudo vai terminar.
Todos, na expectativa, olham qual será a reação de Thomas, e este, sem dizer nada, conti-
nua prestando atenção nas palavras de Johnny, que insiste em tirá-lo do sério.
O líder dos vigilantes, agora ignorando totalmente a presença do roqueiro de vesti-
mentas macabras, começa a dar o recado aos adolescentes infratores.
– Como não foram pegos em flagrante, vamos ter que deixá-los ir, mas ficaremos de olho
em vocês. Na próxima, serão todos penalizados. E isso não é uma promessa, é um aviso.
– Você não tem mais controle sobre mim, Thomas. Quer saber de uma? Vá se ferrar,
cara! – insultou Johnny, não dando a mínima para os outros que estavam presentes. Numa
atitude insolente, o meliante tenta agredir Thomas com um golpe no ombro. Com uma rá-
pida estratégia de defesa, o homem segura a mão do agressor e, em seguida, dá uma rasteira
em sua perna direita, fazendo com que caia de costas no chão.
“Eu já vi esse golpe em algum lugar”, pensou Dionísio ao vê-lo derrubar Caveira na pista.
– Não me faça te arrebentar a cara de novo, rapaz. Será que nunca vai aprender, seu
paspalho de merda? – advertiu Thomas, se desviando do jovem rebelde deitado no asfalto.
Vendo que os vigilantes não estavam para brincadeira, Tiago e ricardo se despedem de to-
dos e entram nos carros. Ambos partem, deixando Dionísio, que ainda observava o rapaz abatido
se levantando meio desajeitado e os outros quatro membros da Equipe, estacionados no mesmo
lugar onde pararam. Johnny, estonteado, dessa vez sem usar nenhum dos seus insultos, abre a
porta do seu Astra e se põe dentro do veículo. O meliante encara o líder pela última vez em tom
de ameaça, mas nada diz, assim; foge acelerado, cantando pneus.
Thomas Bruso, vendo o último competidor dentro do carro, achega-se a ele.
– Seu pai é um dos melhores homens que já conheci na vida. Não seja tão idiota a
ponto de não aproveitar os ensinamentos e lições dele – disse o homem careca, colocando as
mãos na porta do Pálio de Dionísio enquanto este o olha perplexo com a revelação.
Os motoqueiros, após colocar de volta seus capacetes, montados cada um em sua
moto, saem voando cidade adentro.
Dionísio fica parado por cerca de cinco minutos, pensando sobre as palavras que
acabara de escutar. Como aquele homem conhecia Nélson e sabia que ele era seu pai?
Primeiro foi Thales que cumprimentou Átila quando o mesmo foi buscá-lo na delegacia. E
agora esse homem. Será que seu pai tem alguma ligação com a Equipe Homens de Honra?
Este é seu último pensamento, antes de partir.
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O Poder da Honra
19
EM FAMÍLIA
16 de Agosto de 2008.
Camisa branca da Colcci, calça jeans skinny resinada, sapatos de salto scarpin, uma
bolsa Diamond forever, na qual aparecem centenas de diamantes. Não se sabe se eram ver-
dadeiros ou imitação de tão perfeito o brilho irradiado por eles. Usava também dois pares de
pulseiras de flor envelhecida com esferas espelhadas. Uma mulher que, apesar do pequeno
volume de gordura que surgia discretamente ao redor dos seus quadris e algumas celulites
estrategicamente escondidas, ainda mantinha seu corpo em forma. Uma pessoa dotada de
bastante elegância e uma cultura lapidada. Dona de um rosto sereno, mesmo tendo trinta e
cinco anos e leves rugas que a maquiagem fazia o favor de esconder, ainda conserva um rosto
bem desenhado e sedutor. Maria Clara de Meneses, com alguns de seus lisos fios de cabelos
voando sobre o rosto, que vez ou outra erguia a mão para tirar dos olhos, e com os cotovelos
encostados na janela – pensativa e admirada como se fosse a dona do mundo, uma divindade
suprema –, assiste a cena que acontecia no quintal da casa de Nélson Átila. Via Dionísio brin-
cando com Kamille, sua irmãzinha mais nova.
Kamille é uma criança agradável. Na maioria das vezes, está sorrindo. Não um sorri-
so comum e forçado, mas daqueles verdadeiros e cheios de sinceridade e inocência, capaz
de fazer até o mais mal humorado e deprimido dos homens entrar em estado de alegria e
esperança. Os olhos da pequena irradiavam uma paz bastante contagiante. Seu único de-
feito, ou qualidade, é o fato de ela quase não se cansar. Embora esteja com somente dois
anos de idade, tem uma energia de atleta olímpico. Se dependesse dela, ficaria brincando
com Dionísio durante toda tarde, noite e parte da madrugada. E se não prolongar por muito
tempo, é porque está cansada da viagem.
Dionísio, que até então não conhecia a irmã mais nova, está maravilhado e feliz
com a presença da garotinha em sua casa. Sua mãe chegou à cidade pela manhã e nem
sequer tocou no assunto da paternidade da criança. Seu filho não a questionou sobre
o assunto e é bem provável que não o faça. Sua mãe era, outra vez, uma mãe solteira.
Maria Clara se julga autossuficiente. Na visão dela, homens são como uma espécie
de brinquedo necessário, para dar prazer e diversão e ser descartado quando não houver
mais graça. Contudo, intimamente não é assim. No fundo, sente falta de um homem de
verdade, que a domine e a guie. A maioria dos que ela conheceu era fraco, carente e sem
autocontrole. Considera a figura masculina como seres desnecessários tanto para criação
dos filhos quanto para questões afetivas. Julga-se como sendo uma mulher invejável e ao
mesmo tempo capaz de criar sua filha com perfeição, uma mulher determinada e forte
emocionalmente. Uma verdadeira dama de aço.
Entretanto, neste momento tem que encarar uma verdade incômoda. Ela foi um fra-
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William R. Silva
casso na criação de Dionísio. O filho, sob a tutela do pai, se tornou tudo o que jamais seria
se ainda estivesse morando com ela. E a tendência é que, a cada ano, Dionísio evolua mais
como homem e como ser humano.
Ao mesmo tempo em que se sente satisfeita e orgulhosa do filho, se vê como uma
derrotada por não ter sido a mãe exemplar e esforçada que tanto faz questão de dizer às pes-
soas do seu círculo social. Não imaginava que aquele menino gordo, desajeitado, tímido,
fraco e inseguro, que passava a maior parte do tempo em seu quarto, que não era capaz de
conquistar garotas, fazer amigos e sem o menor traquejo social, viria a se tornar um homem
de verdade em tão pouco tempo.
Ela é a pessoa que colocou Dionísio no mundo e o sustentou nos seus primeiros dezes-
seis anos de vida. Nélson, não. Ele fez muito mais que isso, ele sim se tornou um pai de verda-
de. A respeitada executiva não tinha a menor esperança de que o jovem um dia melhorasse de
situação. Sentia vergonha do gordo Dionísio, aquele com quem ela conviveu. Desprezava-o
por não ser esteticamente e psicologicamente tão bem resolvido como ela. Mas, esse novo
Dionísio era outro, esse sim causaria inveja em suas amigas e, talvez, elas até passariam a
cobiçá-lo. Sua mãe não vivia bem por ter agido assim, embora seja, na maioria dos casos,
uma mãe irresponsável que pouco se importava com o filho. Ainda assim, queria vê-lo bem.
Maria Clara é um ser fortemente egoísta e, por ela, o mundo dos outros giraria em torno do
seu. Todavia, não é nenhum monstro insensível, sem coração.
Poderia ela estar em Búzios, Angra dos Reis ou algum outro lugar agradável, bastava
deixar a criança com a babá e aproveitar as férias. Mas, decidiu ir visitar o filho e levar
a irmãzinha para o garoto conhecê-la, mais por desencargo de consciência do que por
obrigação. Por mais estranho que possa parecer, sentia uma leve saudade do filho. Queria
vê-lo pessoalmente, saber como ele estava. Mesmo sendo uma mãe relapsa e negligente, é
plenamente capaz de nutrir algum sentimento em relação ao jovem.
A mulher, de tão absorta nos filhos e em suas reflexões, não percebeu a presença de
Nélson Átila que acabara de entrar na sala. O homem a observa, tira os óculos escuros e
os coloca sobre a mesa e fixa as chaves do carro num prego em um quadro pendurado na
parede. Ao mesmo tempo, o homem analisa de modo predatório as curvas, nádegas e toda
a figura da mulher apoiada na janela, que ainda permanecia distraída com as imagens que
passavam no seu interior e exterior.
Maria Clara, de forma instintiva, percebendo estar sendo vigiada, vira-se e seus olhos se
cruzam com os olhos de Nélson Átila, quebrando todas as suas barreiras e fazendo com que
seja arrancado um sorriso da mulher, mesmo que contra sua vontade. Desse modo, os dois são
transportados para um passado distante. Apesar de adultos e experientes em relação à vida,
voltam a se sentir como dois adolescentes que acabaram de se conhecer. Ela se sente outra
vez com seus dezesseis anos, como se tivesse voltado no tempo. Nélson também sente algo
estranho, um misto de atração física e incômodo.
Nenhum dos dois diz nada e o silêncio domina o ambiente. E assim decorre a cena
durante os primeiros segundos do reencontro, até que Kamille entra na sala correndo e
dando gargalhadas, quebrando o gelo e tornando-os adultos novamente. Maria Clara e
Átila prestam atenção na criança e ambos sorridentes novamente voltam a se olhar. A me-
nininha, eufórica, corre mais depressa ao ver que Dionísio se aproximava. E ela se espalha
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O Poder da Honra
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DE VOLTA AO PASSADO
17 de Agosto de 2008.
O vento balançava brandamente as folhas de uma árvore que enfeitava a praça cen-
tral. A Catedral brilhava com os raios de sol que incidiam diretamente em sua fachada.
Jovens enamorados sentados nos bancos, crianças correndo de um lado para outro ou de-
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O Poder da Honra
penduradas em galhos secos, pessoas passeando com cachorros, meia dúzia de fregueses
sentados nas mesas da sorveteria tomando açaí ou um dos seus sabores de sorvetes predi-
letos e tantas outras coisas aconteciam ao redor de Maria Clara e Dionísio, ambos sentados
em um banco. Dionísio prestava atenção em cada palavra que sua mãe dizia, sem virar o
rosto para os lados com medo de perder alguma informação que lhe seja útil e importante.
Na medida em que a mulher contava os acontecimentos do passado ao filho, ela ia se lem-
brando de cada cena, como se estivesse acontecendo naquele momento em que as narrava.
Ela começa a relatar certos eventos ocorridos horas depois de seu filho ter se mudado de
cidade com o pai.
claramente o rosto dos jovens que pretendiam visitá-la. Era uma garota bonita que usava
um vestido vermelho, um rosto moreno quase cor de jambo, de cabelos cacheados, que se
apresentava aparentemente dócil e inofensiva, o que fez com que Maria Clara simpatizasse
com ela no mesmo instante. Um dos rapazes usava uniforme de time de futebol, que cons-
tatou ela ser do time do colégio que o filho estudava, e o último, um garoto magricela, de
óculos e esquisito cuja aparência, para ela não era desconhecido.
– Boa tarde, desculpe pelo incômodo. Meu nome é Maria do Rosário, este é o Paulo
e o outro é Túlio, somos amigos do Dionísio. E você é a mãe dele, não é? – perguntou a
moça de cabelos cacheados.
– Boa tarde, linda. Sou mãe dele, sim. O que vocês desejam? – respondeu a dona
da casa com uma aparente expressão de surpresa, pois nunca antes um amigo de Dionísio
tinha vindo visitá-lo em sua casa, com exceção de Túlio. Ainda mais se tratando de garotas
bonitas como a que ela tinha à sua frente.
– Viemos aqui para falar com ele. Poderia chamá-lo, por favor? – disse Maria Rosá-
rio, enquanto os dois jovens balançavam a cabeça em sentido de aprovação.
– Entrem, tenho uma pizza enorme no micro-ondas e acho que não vou conseguir
comê-la sozinha. Estava mesmo precisando de ajudantes.
Sansão, o cachorro irritante, percebendo a presença dos intrusos no seu lar, corria
latindo de um lado para outro, ora na direção de Maria do Rosário, ora para Paulo. Túlio já
era um velho conhecido, pois tinha visitado Dionísio em sua casa algumas vezes e o animal
já estava acostumado com a presença dele. Por essa razão, o cão se zangava somente com
seus companheiros e o deixava em paz.
Maria do Rosário é a mais ativa dos três. Pouco depois de pedir licença, desembes-
tou-se a entrar na cozinha e sentar-se à mesa. Túlio, mesmo tendo visitado a casa outras
vezes e já ter conhecido a mãe do amigo, entra e senta à mesa de modo desajeitado. Paulo,
o último a entrar, senta-se sem nada dizer, desconfortável e tomando o máximo de pre-
caução para não fazer barulho ao arrastar a cadeira. O peso na consciência que o assolara
durante dias não o deixava em paz. Desejou nunca ter participado daquele ato covarde, es-
tava amargamente arrependido por ter ajudado a enganar e a espancar Dionísio e pretendia
pedir desculpas.
– Então, senhorita, qual é o seu nome mesmo? – perguntou a morena, mexendo ino-
centemente nos seus cachos que enroscavam nos dedos.
– Também sou Maria, igual a você, mas sou Maria Clara e você é do Rosário – disse Ma-
ria Clara, divertida, tirando a pizza do micro-ondas e colocando diante dos três sentados à mesa.
– Quando eu vivia com meu ex, adorávamos comer pizza. Mesmo tendo me separa-
do dele há mais de quinze anos, ainda conservo esse hábito e acho que ele também, onde
quer que esteja – confessou ela suspirando, pensando em Átila e o filho, que já estavam a
quilômetros de distância. – Dionísio não mora mais aqui. Ele se mudou hoje de manhã, não
faz nem quatro horas. Se tivessem chegado antes, teriam achado ele ainda em casa.
– Então, chegamos tarde. Que pena – reclamou Paulo Munis, resolvendo pela pri-
meira vez dar o tom da sua voz à conversa.
– Quando ele voltar, você conversa com ele, então. Deus sabe de todas as coisas e
ele sabe que seu coração está arrependido – disse Maria do Rosário, pegando no ombro de
91
O Poder da Honra
Maria Clara não chega a concluir o relato do acontecimento verídico, pois é interrom-
pida por Dionísio de forma tão brusca que sua mente é obrigada a retornar ao ambiente no
tempo presente, transformando sua cozinha e seus visitantes em árvores, pássaros, coretos,
pessoas e outras imagens que são parte do cenário da praça de onde estão.
– Túlio é meu amigo. Fui até o colégio para me despedir dele, mas não o encontrei.
Nesse dia, até estava tendo uma das partidas de futebol do campeonato estudantil – expli-
cou Dionísio, com uma voz triste, pois, no momento em que falava, se lembrava de Ana
Júlia abraçando e beijando Roberto.
Prestando atenção no relógio da igreja, que sinalizavam duas e quarenta da tarde, res-
pira ofegante e, franzindo as sobrancelhas com certa dose de rancor, prossegue sua confissão.
– Maria do Rosário... não sei bem por que, sempre querer bancar a boa samaritana.
Nunca soube o motivo, talvez por causa da religião dela. Seja o que for, não tenho nada
contra ela. O estranho é que ela nunca foi minha amiga, não me lembro de ter trocado uma
só palavra com ela quando estudávamos no São Magno. O que me deixou confuso foi o
fato do Paulo estar com eles. Juro que não entendi. Esse cara foi um dos que mais me pre-
judicou, um dos que mais me fez mal na época que cursava o ensino médio. Não acredito
que ele foi lá para pedir desculpas. Ele era um cara ruim que não tinha pena de ninguém na
hora de humilhar pessoas mais fracas do que ele. Nem ele e nem sua turma de covardes,
aqueles desgraçados!
A mulher, se assustando com a ira das palavras e no tom de voz do filho, começa a
acariciar o rosto do jovem. No início ambos se sentem estranhos. Apesar de serem mãe e
filho, não estavam acostumados a manifestar afeição um para o outro. Mas, após um cur-
to tempo de carícias, tal atitude se tornou um ato plenamente agradável e natural. Maria,
olhando em seus olhos e mexendo nos fios de cabelos que se emaranhavam em seu rosto, de
maneira calma e curiosa, estimula-o a contar sobre como era sua vida no colégio.
– Esse Paulo, o que ele te fez para ir na nossa casa te pedir perdão? O que realmente
aconteceu para você ter tanto ódio dele assim?
Dionísio, por estar com vergonha de algum conhecido aparecer por ali e vê-lo rece-
bendo carinho da mãe, porque na visão dele, aquilo não era nada másculo, mesmo sentindo
prazer com a carícia materna, tira a mão da mulher de seu rosto e começa a contar parte de
sua rotina na escola e a crueldade de seus algozes.
ção que dá diretamente para a fachada da cantina. Dionísio desce logo atrás, pois não conseguiu
acompanhar o colega por causa da sua dificuldade que tem de se locomover, motivada por seu
excesso de peso. No percurso, como normalmente ocorria, alguns prestavam atenção nos dois
com uma expressão de deboche. Enquanto algumas meninas olhavam com desprezo, garotos
riam e comentavam sobre eles ao vê-los passar.
– Os esquisitos da escola! – debochou um dos alunos, escutando-se assim uma sequ-
ência de risadas, fazendo com que Dionísio e o amigo se sintam constrangidos.
No mesmo instante, Ana Júlia, com seu braço esquerdo entrelaçado no braço direito de
Maria do Rosário, transitava pelo pátio, ambas sorrindo e distraídas de tudo e de todos, como
se estivessem sozinhas passeando pelo local. Como a beleza de ambas era algo que chamava
atenção, as duas passavam por entre os estudantes arrancando olhares maliciosos, pervertidos
e de cobiça dos garotos do colégio e, ao mesmo tempo, provocando um sentimento de inveja
em algumas meninas que não foram tão bem agraciadas pela natureza quanto elas. Em meio
a dezenas de alunos, Dionísio, admirado, assiste Ana Júlia desfilar pelo colégio com a amiga,
como se fossem duas modelos em uma passarela.
Depois de semanas de constrangimento, Túlio, na ânsia de se livrar das tentativas de
bullying dos estudantes rebeldes que adoravam humilhar e zombar deles, criou uma maneira
de se safar das agressões. Nos últimos dois dias, ele e o amigo gordinho estavam fugindo para
um lugar secreto para, assim, poderem lanchar e conversar despreocupados, sem que ninguém
os perturbasse. Lá era o segundo lugar menos visitado pelos jovens e funcionários, quase se
comparando com o depósito de lixo que os delinquentes da escola usavam para fumar ma-
conha escondidos. Nesse dia, não fizeram diferente. Aproveitando a brecha dos alunos que
deixaram de reparar na presença deles por estarem distraídos com Maria do Rosário e Ana
Júlia, partem ariscos para o local antes que alguém os veja.
O esconderijo, na verdade, se encontra logo atrás do enorme muro da cantina, que
é constantemente frequentado pelos casais de namorados e “ficantes”. Mas, desde que os
dois começaram a frequentar o lugar para passar o período de intervalo sossegados, todos
os casais que os viam ficavam receosos de ser dedurados. Em virtude disso, a paz que tanto
agradava a dupla de amigos não durou muito. Entre um assunto e outro, em um curto perí-
odo, todos já sabiam onde os dois se escondiam.
A dupla chega no seu destino e, triunfantes, acomodam-se no lugar.
Dionísio, assobiando satisfeito com a tranquilidade e segurança do ambiente, tirava
seu lanche da sacola, uma lata de refrigerante, dois pães com mortadela e um pacote de
biscoitos waffer, porém não chega a consumir nenhum dos alimentos. Ele interrompe ime-
diatamente tudo o que estava fazendo para prestar atenção em Túlio que, pálido de susto,
olhava para os quatro rapazes que, há alguns minutos, os observavam sem que ele e Dio-
nísio percebessem. Sabendo do paradeiro de suas vítimas, Roberto, o líder do grupo, João
Sérgio, Paulo e Mateus se dirigiram imediatamente até o esconderijo. Túlio, apavorado e
com os olhos arregalados, levanta-se na intenção de sair correndo dali, enquanto Dionísio
permanecia de boca aberta e sem ação, na mesma posição em que foi encontrado. Por um
impulso de maldade, Roberto empurra Túlio fazendo com que o magro garoto bata com as
costas na parede e seus óculos e sua garrafa de suco caiam na grama.
– Calma aí, esqueleto. Viemos visitar vocês. Que falta de educação com os colegas é
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O Poder da Honra
Dionísio, voltando a si, assim como a mãe, não termina seu relato. O estado de fúria
por ter chegado ao seu limite, fez com que o adolescente se levantasse do banco e ficasse
em pé de punhos fechados.
Sua mãe tenta pensar em algum conselho, alguma palavra que possa ser útil para dar-lhe
força e tranquilizá-lo. Mas, para a sua tristeza, não consegue sequer abrir a boca. Sentimento de
culpa que explode a ponto de deixá-la constrangida. Não em relação ao filho e muito menos com
as pessoas que estavam presentes, mas sim em relação a ela mesma. Dionísio tentou avisá-la
várias vezes sobre o que ocorria com ele na instituição de ensino e ela nunca se dedicou a ajudá
-lo, nem mesmo dava a mínima atenção. Pensava que tudo não se passava de choradeiras de um
menino fraco e mimado, não imaginava a gravidade da situação.
Dionísio, com peito estufado, punhos fechados, rangendo os dentes, em meio a
praça movimentada, observando tudo ao seu redor. Visualizando o rosto de cada um dos
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William R. Silva
seus covardes agressores, renova seu juramento de quatro anos atrás, quando se despediu
do colégio pela última vez, no dia do campeonato estudantil.
– Eu vou voltar. Vocês irão me pagar por tudo o que fizeram, um por um.
21
ENTORPECENTES
4 de outubro de 2008.
As luzes coloridas piscavam intermitentes. Vermelho, amarelo, azul, verde, rosa e roxo
se misturam nos olhos de Dionísio, chegando a provocar um efeito estonteante, o que foi ain-
da mais atenuado devido a algumas garrafas de cervejas e ice que consumiu durante a festa.
Nada mais que a música era ouvida. O som era tão alto, que a cada batida de ritmos, sentia-as
como pancadas em seus ouvidos, causando estremecimento nas orelhas.
No camarote, garçons transitavam com champanhes que soltavam faíscas da rolha, a
iluminação entrava em contraste com as luzes coloridas da boate. Quem não estava alcooliza-
do ou fora de si por causa do uso de algum produto de divertimento, se misturava a dezenas
de pessoas e dançava com o mesmo entusiasmo. Havia seguranças por toda parte, com seus
trajes pretos e fisionomia ranzinza. Um dos barmen, terminando seus shows de malabarismos
com garrafas, entrega os coquetéis a seus clientes. E o DJ, de um dos lugares mais altos e
inacessíveis da boate, movimentava os braços bastante empolgado, ajustando, controlando e
administrando a sequência de músicas e seus modos de execução.
Apesar disso e também pela dificuldade de locomoção ocasionada pela grande quan-
tidade de pessoas na boate, Dionísio não desgruda os olhos de Sílvia por nada. Mesmo
com problemas para enxergar, acompanha cada movimento da namorada, sua maneira de
requebrar fazendo suas curvas se mexerem como uma cobra em movimento, seus cabelos
voando de um lado para o outro de modo que seu rosto, a certo ponto, não fosse distin-
guível. Seus braços subiam e desciam, trazendo os cotovelos para cima e para baixo na
mesma intensidade e, por fim, a sua mania de morder os lábios sensualmente, provocando
ainda mais ciúmes no namorado e, ao mesmo tempo, excitação – não só em Dionísio, mas
também em vários outros homens na pista de dança.
Dionísio dançava sem jeito, sem a menor ginga e com movimentos travados, sentindo-
se inseguro e irritado com a atitude de Sílvia. A moça, que semanas antes era uma companhei-
ra amorosa e carinhosa, agora o ignora, nem nota a existência do namorado. Não consegue
entender por que a garota age com tanta frieza, pois durante todo esse tempo foi um rapaz
prestativo, fez todas as vontades dela, sempre diz que a ama e tudo o mais que um homem
romântico deveria fazer. Mas parece que nada disso é suficiente.
Enquanto ele permanecia dançando sem o menor entusiasmo e sempre atento aos
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O Poder da Honra
movimentos da garota, seus amigos se divertiam como todos ao seu redor. Catarina, apesar
de não dançar sensualmente como Sílvia, mantinha seus movimentos rítmicos e femininos.
Ricardo, Tiago e César, assim como a multidão na pista, levantavam os braços e os gira-
vam de uma posição para outra ao mesmo tempo que movimentavam as costas, todos com
sorrisos estampados no rosto e uma sensação de satisfação.
Como em qualquer balada com uma enorme concentração de jovens, o exagero no
consumo de bebidas, a libertinagem, o uso exacerbado de drogas e outras atitudes impen-
sadas são práticas usuais. E apesar de serem nocivas entre os frequentadores, eram estatís-
ticas em que os amigos de Dionísio se enquadravam bem. Perante as dezenas de jovens, um
homem estranho, surgindo entre a turma de dançantes que se divertiam no local, entrega
furtivamente pequenas sacolinhas na mão direita de César, que as guarda no bolso sem a
menor preocupação de que alguém estivesse reparando. Dionísio, desconfiando do que
se tratava, ao vê-lo colocar o conteúdo no bolso, fita-o seriamente nos olhos em sinal de
reprovação, enquanto Ricardo se aproxima do ouvido do rapaz animado. E, apesar de todo
barulho e bagunça do ambiente, sussurra-lhe algo.
– E aí, Cesar, é da boa? – perguntou Ricardo, batendo no bolso do parceiro.
– Claro, né, velho. Já me viu comprar coisa ruim? – respondeu Cesar, balançando o
rosto, movimentando os braços e todo o corpo na mesma intensidade da música.
– Nem pensar, Rick. Você não vai usar essas porcarias. A polícia vai nos prender por
causa disso, sabia? – disse Catarina, irritada e gritando nos ouvidos de Ricardo, segundos
depois de ter percebido do que se tratava o assunto.
Ricardo, segurando os braços de Catarina de maneira grosseira e olhando nos olhos
da moça, manda seu recado.
– Fica na sua, dança e cala essa boca!
A moça, com os olhos cheios de lágrimas, em silêncio, continua dançar, mas sem o
mesmo entusiasmo de antes.
Dionísio, mesmo estando atento à namorada como um cão de guarda disposto a
proteger o que é seu, assiste atônito a maneira como o amigo trata Catarina. Sozinho, sem
movimento, mesmo com todo o barulho e agitação, começa a refletir sobre o porquê de
Catarina ainda estar com ele, sendo que, na maioria das vezes, seu namorado a trata mal.
Ele, há tempos atrás, era apaixonado por ela. Foi carinhoso, educado, amigo e sempre
disponível quando ela precisou e, ainda assim, ela o desprezou, disse que o considerava
como um irmão e não queria nada com ele. Em compensação, Ricardo, durante todo o
relacionamento, foi um bruto, insensível e ignorante. Até Sílvia, embora ele tenha feito de
tudo para ser um bom amante, agora o despreza. A vida toda lhe foi ensinado de que as
mulheres amam os caras românticos, bons, honestos e afetivos. Mas, na prática, parecia
que era totalmente o contrário.
Não dando a mínima para o que ocorria, Cesar se distancia da turma e se aproxima de um
grupo de garotas, mas é rejeitado no momento em que tenta uma interação, pois todas elas se reti-
ram do lugar após perceberem a aproximação do predador. Triste com o que acabara de ocorrer,
coça a cabeça com cara de decepção. Percebendo que estava sendo observado pelo amigo, abre
os braços simbolizando o fracasso da tentativa. Tiago, unindo-se ao amigo, convida o jovem para
percorrer outras áreas da boate à procura de alguém disponível. Duas garotas encostadas no balcão
96
William R. Silva
do bar aguardavam o garçom trazer as bebidas que tinham acabado de pedir. Cesar e Tiago, perce-
bendo que aquela poderia ser uma chance de se darem bem na noite, imediatamente se aproximam
da dupla. Enquanto Cesar senta, de pernas abertas, numa cadeira ao lado da moça morena, Tiago,
de pé, começa a puxar conversa com a ruiva.
– Ei, linda, posso saber o nome da princesa? – perguntou Cesar, com um bafo de
álcool beirando o rosto da moça, fazendo com que ela se afastasse do rapaz.
– Não, não pode – retrucou a moça, após ouvir a cantada. Em seguida, puxa o braço
da amiga, que, para espanto de Cesar, estava aos beijos com Tiago.
Embora não tenha nada contra o sucesso do amigo, fica decepcionado, pois tentou inú-
meras vezes conseguir ficar com alguém, mas fracassou em todas as tentativas, enquanto que
o amigo teve êxito na primeira investida. A morena, desistindo de chamar a amiga ruiva que
beijava Tiago freneticamente, sai de perto de Cesar sem ao menos olhar para a cara do rapaz,
deixando-o parado, sem graça e angustiado, sem vontade de curtir a festa.
No mesmo instante, do outro lado da boate, Dionísio, cansado de tentar se aproximar
da namorada, encontra uma mesa vazia e senta-se, reparando em Sílvia e Catarina, com um
semblante melancólico, junto a Ricardo e outras pessoas. A namorada e as mulheres em volta
dançavam como deusas, rebolando sensuais entre nuvens de fumaças que exalavam do chão.
Sentado ali, com a mão direita no queixo, se lembra das palavras que sua mãe lhe disse a res-
peito da moça: “Ela não me inspira confiança”, os dizeres martelavam em sua cabeça com a
mesma pressão das músicas que ecoavam dos alto falantes.
Visualizava a imagem de Maria Clara nitidamente, como se estivesse ali em carne e
osso à sua frente dando o conselho. Quanto mais repetia a frase em seus pensamentos, mais
intensas as palavras se tornavam. Assim como Nélson, sua mãe havia desconfiado do cará-
ter duvidoso da adolescente. Recorda-se do padre Jerônimo, que constantemente afirma que
conselho de mãe e de pai deve sempre ser levado a sério, é como se fosse Deus prevenindo
sobre algo que fará mal. Pai e mãe, dizia ele, são o principal elo entre o criador e os homens,
até mesmo mais do que os líderes religiosos como ele. Mas aquela não era hora de pensar nos
seus pais, nem do padre e muito menos de assuntos religiosos e amorosos. Não querendo mais
se ocupar desses questionamentos, volta-se ao embalo do momento. Na esperança de tentar
descobrir o motivo de Sílvia o estar desprezando, com dificuldade de encontrar caminho por
entre dezenas de dançantes, que a essa altura estavam completamente fora de si, atravessa a
pista e para novamente do lado da moça.
– Sílvia, me diz por que você está me ignorando. O que eu te fiz? Me perdoa, meu
amor! – suplicou ele, se humilhando perante a moça, que continua dançando e olhando
firme em seus olhos.
– Não aconteceu nada, Dio. Só me deixe dançar, por favor. Quero curtir a noite – res-
pondeu ela, se distanciando para perto de Catarina e dançando junto com a amiga.
– Você não me deu atenção, está sempre estranha e, quando me vê, me trata com
desdém. Eu só quero saber o que foi que te fiz. Só isso – tentou Dionísio mais uma vez, se
aproximando da mulher que se movia de forma sensual.
– Ai, estou cansada de você, só isso. Me deixa – declarou Sílvia, esnobando-o.
O rapaz, nervoso, sai por entre a multidão de jovens que dançavam alucinados, chegan-
do a empurrar algumas pessoas devido à raiva e a pressa com que abria caminho até a saída.
97
O Poder da Honra
Do lado de fora não estava quente como dentro da boate. Pelo contrário, fazia tanto
frio que arrepiava os pelos dos braços do rapaz desconsolado. Esteve tão fora de si, que
se esqueceu de pegar a fita de identificação e se agora tiver intenção de voltar ao estabe-
lecimento, teria que pagar a entrada novamente ou, se tivesse sorte, algum dos seguranças
que aguardavam na porta se lembraria dele e o deixaria voltar. Mas, pouco se importava.
Sentia-se irado por causa da forma como fora tratado pela moça que tanto amou. Sua única
preocupação era que os amigos pagassem a conta sozinhos. Porém, isso ele poderia acertar
depois sem problema algum.
Por estarem a quilômetros da cidade onde mora, Dionísio, embora tivesse vontade
de ir para casa, decidiu esperar os amigos. É muito inseguro em relação a relacionamentos.
Teme que a namorada fique com outros homens e, se caso acontecesse algo do tipo, não
sabe o que seria capaz de fazer. Não cogitou a ideia de se matar, mas não duvidaria dessa
hipótese. Não muito longe de onde se encontrava, vê Cesar junto a um grupo de jovens que
conversavam e se divertiam num beco. Estava acostumado com a atitude daqueles jovens.
Sabia ele que todos estavam consumindo drogas. Mesmo assim, vai em direção à turma de
inconsequentes.
– É o Dio. Se junta aí, mano – comentou um dos rapazes, já meio alterado.
– Fica de boa, velho. Esse daí não curte a parada, não – advertiu Cesar ao rapaz, para
que não ofereça o que estavam usando para Dionísio.
Dionísio, ao perceber algumas embalagens de cocaína e comprimidos de ecstasy
em cima do capô do carro de um dos jovens, repara ao redor, temendo aparecer alguma
viatura da polícia no local. Sabe bem do risco que todos corriam e seria complicado para
ele explicar que não participava da festinha que estavam organizando. Por serem três horas
da madrugada, as ruas estavam quase vazias, mas todo cuidado era pouco. Todos com gar-
rafas de bebidas nas mãos, se revezavam para cheirar sua carreira de pó branco. Segurando
uma nota de dólar enrolado em forma de canudo, Cesar se agachava diante da linha branca
de cocaína em cima de uma tábua de madeira.
– Tem mesmo necessidade disso, cara? – questionou Dionísio ao ver Cesar se prepa-
rar para inspirar a substância.
– O que é que importa, cara? Minha vida é uma merda mesmo, tudo pra mim dá erra-
do, nem mulher eu consigo pegar – disse Cesar, com a nota em forma de canudo no nariz,
aspirando a carreira de cocaína.
Dionísio vê a cena sem nada a declarar. Não quer admitir, mas naquele momento
estava angustiado. Ele está enlouquecido por causa das atitudes de Sílvia. Se sente muito
atraído pela moça e, para ele, o amor dela é tudo o que ele deseja na vida. Embora esteja
relutando, inconscientemente se sente tentado em relação ao uso da droga. Por curiosidade
e por estar em estado de descontrole emocional. Pretende desafiar a si mesmo, ir contra as
orientações de seu pai para se manter longe de drogas – que inclusive explicou-lhe sobre
seus efeitos noviços – e matar sua vontade de praticar o ato ilícito.
– É a sua vez, brother. Pode curtir a última. Essa é sua – disse um dos rapazes, toman-
do a nota das mãos de Cesar e a entregando para Dionísio.
Cesar, alucinado, não percebe o que acaba de ocorrer com o amigo. Vira uma garrafa de
whisky goela abaixo e sai cambaleando entre os carros estacionados. Assim como Dionísio,
98
William R. Silva
Cesar estava revoltado, frustrado e desiludido, não se importava com nada e com ninguém.
Dionísio, com a nota enrolada entre os dedos, deixa o rapaz que segura a tábua com a carreiri-
nha e os demais jovens na expectativa, esperando que ele consuma a cocaína.
Estava alcoolizado, nervoso e chateado. Devido a tudo isso e aliado à sua curiosidade
infantil, se preparava para consumir pela primeira vez aquela substância. Por um momento,
lembra de Nélson, sua mãe, o padre, a irmã, sua vida e todos os conselhos que recebeu, dos
noticiários que viu diariamente sobre jovens que morreram de overdose, traficantes presos e
muitos outros problemas relacionados ao consumo e tráfico de drogas. Mas, pouco se importa.
Ignorando o barulho que emanava de dentro da boate, sua consciência, os jovens e o perigo
de que alguma autoridade policial apareça e os prenda, numa atitude de insensatez, insere o
canudo no nariz e, ao se preparar para aspirar a linha de pó branco, alguém o impede, dando
um chute na tábua, fazendo com que o pedaço de madeira suba a quase um metro de distância
e a cocaína junto a comprimidos de ecstasy voe pelo ar. A tábua, centésimos de segundos de-
pois, cai no vidro do carro causando uma leve trincada. Dionísio, com o canudo nas mãos, aos
poucos retoma a consciência, não entendendo bem o motivo de estar fazendo aquilo. Voltando
atrás, mais uma vez é livrado de um ato impensado.
Todos perplexos com o que acabara de acontecer, olham para o jovem que praticou a
ação. Ricardo estava com os olhos vermelhos de ódio e respirando rápido por ter acabado
de correr até os jovens e golpear a tábua para que o amigo não se drogasse.
– Se fizer isso de novo, nossa amizade acaba. Eu te encho de porradas – disse Ricar-
do, irado e apontando o dedo na cara de Dionísio.
– Ei, mané, mas você não gosta de curtir? – questionou um dos presentes.
– O que tem a ver uma coisa com a outra? – retrucou Ricardo, mirando o rosto do
rapaz com uma dose de raiva, pegando o canudo de Dionísio, abrindo uma das sacolas e
fazendo uma carreira em cima do próprio carro.
Ricardo, terminando o que fazia, se despede dos rapazes e parte com Dionísio à
procura de Cesar que saiu atordoado sob o efeito do exagerado consumo de drogas e be-
bidas. Dionísio, dessa vez, teve uma prova verdadeira de amizade, algo que nunca mais
esqueceria. Se não fosse pelo amigo, com certeza teria cometido um dos maiores erros da
sua vida. Ricardo e Cesar são usuários de drogas ilícitas e para ele nada disso era segredo,
mas nunca ousou experimentar e nem foi tentado por nenhum deles para que consumisse
algum desses entorpecentes.
Tempos depois, os cincos jovens seguiam de volta para a cidade. Sílvia dormia no
banco ao lado do motorista, enquanto Cesar roncava no banco de trás, bêbado e comple-
tamente inconsciente. Ao seu lado, o outro carro. Ricardo seguia dirigindo com Catarina,
ainda triste, ao lado e Tiago, satisfeito e feliz, no banco de trás.
Dionísio se sente culpado. Acha que a atitude da namorada fora culpa dele e está
disposto a se esforçar para melhorar a relação. Em sua opinião, Sílvia está no direito dela
e fará tudo para que ela volte a ser tão amorosa quanto antes. Um grande erro que estará
prestes a cometer.
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O Poder da Honra
22
19 de Outubro de 2008.
Praticando Artes Marciais
– Você está sendo dominado por ela. E é esse o seu problema. Ela está testando seu
apego, as mulheres fazem isso – disse Nélson Átila, se desviando dos socos de Dionísio.
– Não estou, não. Eu a amo, pretendo me casar com ela. Sílvia não é como você
pensa – refutou Dionísio, tentando golpear o pai várias vezes para derrubá-lo.
– Sabe qual é a sua dificuldade? Você é fraco – disse Átila, segurando a mão direita
do oponente, dando-lhe uma rasteira e derrubando-o no chão.
A sala de treino localizada na parte inferior da residência, uma espécie de andar
debaixo cujo único cômodo guardava utensílios de lutas, sacos de pancas e outros objetos
de práticas marciais, é o grande palco do combate. Nélson Átila observa o filho caído no
extenso tapete e este, por um lapso, se mantém na posição, pensativo. No entanto, sua
pausa dura pouco. Batendo as mãos na superfície, dobrando a coluna e tomando impulso
com os pés firmes, se levanta com agilidade e continua a atacar o mestre com seus golpes
desnorteados. Dionísio há tempos não duelava com o pai. E Átila percebeu bem o efeito
do seu despreparo e a diferença em seu desempenho. Seu filho-aluno quase não acerta
nenhum contra-ataque, suas defesas estão péssimas e, para piorar, está com um razoável
condicionamento físico.
Dionísio, não se contentando por ter sido derrubado pela terceira vez, contra-ataca
tentando acertar as coxas do oponente para desestabilizá-lo, a fim de fazê-lo cair. E prosse-
guiu a conversa, mas por outro assunto.
– O Thomas Bruso, eu já vi ele usando esse mesmo golpe. No dia, eu não me liguei,
mas foi exatamente como você fez agora. Ele me falou que te conhecia. Onde vocês se co-
nheceram? Ele e o Thales, o que você tem a ver com eles? – questionou Dionísio, ofegante,
tendo todos os seus golpes defendidos.
Átila, novamente numa jogada de mestre, frustra todas as estratégias de luta do filho
e, assim, o segura pelo braço direito, travando o rapaz entre as pernas e tombando, em
seguida, a ambos no tapete. Com sua mão imobilizada e completamente sem chances de
movimentos, Dionísio é encurralado pelo genitor. Constatando que o garoto estava inerte,
sem possibilidade de ação, Átila dá sequência ao diálogo.
– No momento certo, você vai saber de tudo. Preocupe-se com outros assuntos mais
importantes.
– Sempre cheio de enigmas. Isso é um saco! Falo na moral. Ai, ai, ai! – reclamou
Dionísio, gemendo e tentando soltar o braço.
100
William R. Silva
– Você está péssimo. Desisto de lutar, já foi melhor – disse Átila, destravando as
pernas do rosto do rapaz e se levantando. Sobe a escada e atinge o andar superior, ruma até
a cozinha à procura de algo para beber e comer para repor suas energias.
Manhã de Pescaria
Em meio a canto de pássaros, folhas verdes e secas caindo ao redor e colorindo o chão
de terra vermelha e grama, o estrilar de grilos, formigas e outros insetos, um bambuzal e um
enorme lago com sombras de peixes se movimentando na superfície da água, Nélson e Dio-
nísio, cada um com sua vara e seu anzol, aguardavam algum peixe fisgar a isca. Terminada a
sessão de luta entre os dois no começo do dia, ao tomarem o café da manhã, partiram de carro
para o local de pescaria da cidade. José Pereira e Emanuel, os empregados de Átila, também
aproveitavam o dia de descanso. Uma garrafa de cachaça, um pequeno recipiente contendo
uma ou duas dúzias de minhocas e uma força de vontade e entusiasmo fora do comum. Isso era
o suficiente para a felicidade da turma de pescadores.
– Você não consegue pensar, apenas ela ocupa sua mente. Uma mulher deve existir na
vida de um homem para ajudá-lo a evoluir, não para travar o desenvolvimento dele – disse
Átila, arremessando a linha no lago, provocando uma pequena onda circular.
– Você diz isso porque nunca gostou de ninguém de verdade – diz Dionísio, sen-
tindo-se irritado e lançando o anzol com certa dose de agressividade.
– Quem te disse que não? – respondeu o pai, com um olhar intimidador.
Inicia-se um silêncio estranho entre os dois. Dionísio sempre considerou Nélson
como um homem insensível, incapaz de ter amado uma mulher de verdade. Tal revelação
soou como uma surpresa. Em verdade, há muitos segredos sobre o passado de Átila que
ele nunca comentou com o filho e este talvez seja um dos mais interessantes e, ao mesmo
tempo, o mais doloroso. Tomando coragem, Dionísio com o braço imóvel para não mexer
a linha, no momento em que ia perguntar ao pai sobre o assunto, tem sua atenção desfocada
por causa do grito de José Pereira e das gargalhadas de Emanuel.
– Ê, lá em casa. Esse é dos bom, minha nossa senhora. O bicho tá arisco! – disse José
Pereira, entusiasmado com o enorme peixe que acabara de fisgar. Entretanto, mesmo se
esforçando para puxar o peixe, não consegue reunir forças para trazê-lo para si. Devido à
pressão exercida e os movimentos agitados do peixe, o caniço de bambu vai se entortando
até se quebrar ao meio, deixando todos ali aos risos, assistindo o enorme Curimba fugir,
provocando bolhas na água.
– Pode ir buscar outra vara ali na Varanda Pesqueira. Fala que podem pôr na minha
conta – disse Átila, virando-se para José Pereira com o pedaço de meio bambu na mão.
Senhor Emanuel ajeita seu chapéu e relança sua linha no lago na mesma hora em que
Seu José se levanta e vai buscar outra vara para continuar a sua distração preferida de dias de
domingo. Todos os pescadores mantêm a mente distante, uns pensativos, outros segurando
sua pescaria com orgulho ou colocando minhocas no gancho, e a maioria cantando baixinho a
moda de viola que tocava no radinho de pilha de Seu Antônio, um homem bigodudo, de grande
barba branca que, de acordo com Dionísio, lembra sem dúvida alguma o Papai Noel. Nenhum
deles prestava atenção à conversa profunda entre pai e filho que ocorria naquele mesmo lugar.
101
O Poder da Honra
– Essa mulher que você diz ter amado de verdade é minha mãe? – perguntou Dioní-
sio, voltando-se para Nélson, que se mantém ereto, olhando para o movimento dos peixes
em volta do anzol.
– Não – respondeu ele, sem se virar para o jovem curioso.
– O que aconteceu com ela? Por que nunca me falou dessa mulher? – indagou Dio-
nísio, olhando atento e esperando a vítima morder a isca.
– Por que ela morreu... por minha culpa, por minha causa – disse Átila, com uma voz
irada, puxando com força a vara com o peixe preso no gancho, se debatendo no ar e reme-
xendo a linha e o anzol. Num lançamento rápido, faz a tilápia cair sobre a grama.
O homem de cabelos longos se levanta e pisa em cima do corpo do peixe, depois se
agacha para tirar o gancho da boca do bicho que acaba de ser abatido.
– Foi minha culpa, minha culpa! – repetiu a frase com uma voz baixa, sem se dar
conta de que estava sendo observado pelo filho e alguns dos outros homens do lugar.
Dionísio, desde o dia em que conheceu o pai, sempre o considerou como uma caixa
de surpresas. Embora esteja há mais de quatro anos vivendo com Nélson Átila e aprenden-
do coisas valiosas com ele, o passado, a personalidade e as reais habilidades do pai ainda
permaneciam um grande mistério. Quem é esse homem? De onde ele veio? O que ele é?
Dionísio, apesar de amá-lo e respeitá-lo, ainda continuava com as mesmas perguntas de
anos atrás. É bem provável que sua vida atualmente se resuma em três assuntos principais:
mulheres, se tornar forte em todos os sentidos, e conhecer a fundo quem é seu pai. Todo o
resto fica em segundo plano.
Conversa no Bar
Um grupo de três mulheres visivelmente bonitas bebia e conversava numa das mesas do
bar. Duas delas lançavam olhares sedutores a Átila e Dionísio que jogavam sinuca, entretidos,
dando sequência à conversa que iniciaram naquela manhã de domingo. A cada tacada, Dionísio
prosseguia o diálogo, rebatendo as bolas e tornando cada vez mais acirrada a disputa.
Dionísio, fazendo a mira com os olhos fixos na ponta do taco, numa só tacada rebate a
bola dez, fazendo-a se chocar com a doze e encaçapando as duas no buraco. O dono do bar,
que presenciou a jogada, faz um sinal com a cabeça, rangendo o queixo, admirado com a
tática do rapaz. Átila bebeu um gole da garrafa de cerveja Heineken e a colocou de volta na
mesa sem se preocupar com as mulheres, o dono do bar e os outros fregueses que havia ao seu
redor. Segura o taco, colocando-o no ombro. Balançando a cabeça, observa o filho errando a
tacada seguinte, que fez a bola oito bater na lateral e se desviar do alvo.
– Aquelas três na mesa... Faz vinte minutos que estão nos olhando. Por que não pega
o telefone delas? – aconselhou Dionísio, para que o pai não perca a oportunidade.
– Não vou pedir nada, não viemos aqui pra isso – reclamou Átila, acertando a bola
cinco na lateral esquerda, fazendo-a rolar direto para dentro do alvo.
Dionísio, vendo que a cerveja da sua garrafa estava chegando ao fim, bebe o resto e
manda um recado, balançando o braço, para que o dono do bar lhe traga outra bebida. Esti-
cando as sobrancelhas, com a mão no rosto e mexendo os lábios de preocupação, presencia
Nélson derrubar mais uma de suas bolas ímpares, a treze, fazendo-a rolar buraco adentro,
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William R. Silva
23
ADMIRAÇÃO
22 de Outubro de 2008.
As Lojas Silverato são um dos investimentos de Nélson Átila no sul de Minas Gerais,
sendo que duas delas são na cidade vizinha, uma onde mora e outras doze espalhadas pela
região. A rede é resultado de sua boa administração financeira que, aliada a alguns outros
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William R. Silva
investimentos, são as suas principais fontes de renda. Mesmo não sendo o mais rico da
região, pode-se considerar um homem de boa situação. No entanto, nem sempre foi assim.
Houve épocas em que viveu períodos de dificuldades. No passado, foi um homem pródigo,
dado ao luxo, exibicionismos, luxúria, boêmio e com pouco controle sobre suas finanças.
Já tivera muitos altos e baixos, foi e voltou da falência na mesma velocidade em que um
passageiro sobe e desce numa montanha-russa.
Dono de um passado sujo, cheio de golpes, batalhas, aprendizados e uma enorme baga-
gem no campo do amadurecimento e entendimento da psicologia humana, sua principal arma,
sendo que muitas de suas habilidades permanecem um mistério para a maioria dos que o conhe-
cem. Diferente do que fora anos atrás, tornou-se um homem astuto e precavido, adquiriu uma
aceitável dose de honra e caráter. Fazendo-se uma análise minuciosa da mente desse incomum
e indecifrável homem, vê-se que muito do que ele fez durante seus quarenta e seis anos de vida
não foi somente por irresponsabilidade, mau-caratismo, falta de empatia, ambição, glória, sta-
tus, mulheres ou qualquer outro lucro proveniente de poderes sociais, mas sim porque durante
a vida toda teve uma mente privilegiada, uma raciocínio rápido, tanto para o bem quanto para o
mal. Todas as suas ações, seja qual for a natureza, foram motivadas por um desejo inconsciente
de testar a sua capacidade como ser humano. Nélson Átila Silverato sempre teve um quociente
de inteligência acima da média, e isso, por muito tempo, considerou-se sua maldição. Agora,
todavia, era sua maior benção.
José Pereira é o gerente responsável pela loja do município no qual moram Dionísio
e Átila. O respeitável homem não concluiu os estudos. Entretanto, foi um dos primeiros
funcionários do patrão e, graças a seus esforços, força de vontade e determinação, aprendeu
tudo sobre os mecanismos do trabalho e por mais de oito anos nunca decepcionou Átila no
desempenho de suas tarefas. Qualidades essas que o fizeram conquistar o cargo de Gerente
Geral. Ele não só é um dos seus melhores empregados, mas também um grande amigo.
Na loja da cidade de Realinópolis também trabalha uma moça, que Dionísio conheceu
anos atrás. Em meio a vendedores à procura de seus clientes a fim de fazerem jus às suas co-
missões de vendas, serviçais limpando o ambiente, uma vez que a limpeza conta pontos contra
a concorrência, freguesas à procura de móveis novos e parcelamentos plausíveis e todo o mo-
vimento comum da loja, a jovem Marisa Helena Fontinelle trabalha aflita no caixa, contando
notas, entregando troco e emitindo certificados de garantias.
Seu mal-estar emocional não é por causa do trabalho. Na verdade, ela se sente grata,
pois com o salário tem condições de ajudar os pais em casa e também pode juntar dinheiro
para realizar um dos seus maiores sonhos, concluir o ensino superior. Não está infeliz por
problemas de saúde ou alguma outra razão familiar ou orgânica. A causa de seus suspiros
de tristeza, seu desânimo, é o filho do patrão, o jovem Dionísio.
Ela o conheceu poucas semanas depois que ele chegou à cidade. O viu pela primeira
vez quando estava ajoelhada rezando na igreja, hábito que ela ainda hoje conserva com seus
pais. Todos os domingos, recebe a benção do padre Jerônimo e o ajuda na confecção do altar.
Em dia de missas, é a primeira a entrar na Igreja e também a última a sair. Desde a época em
que conheceu Dionísio, passou a reparar nele. No início, não passava de curiosidade por se
tratar de um jovem de cidade grande. Porém, conforme o adolescente foi mudando sua forma
física e sua personalidade, o interesse da funcionária por ele foi crescendo, chegando ao ponto
105
O Poder da Honra
Conversa no Caixa
Marisa novamente estava no caixa na exata hora em que Dionísio e Átila entram
na Loja para mais uma de suas visitas. Rosalva, que trabalha num dos caixas à esquerda,
vendo a companheira se distrair com a presença do jovem, cutuca-a no braço puxando
conversa, fazendo-a, a contragosto, tirar os olhos do seu objeto de desejo.
– Por que não arruma uma forma de se aproximar dele? – orientou a colega de traba-
lho, devolvendo o cartão de crédito e a nota ao cliente que acabou de ser atendido.
– E como? Não posso deixar o balcão sem ninguém, ainda mais agora que o patrão
está aqui! – retrucou a menina dos olhos azuis.
– Fiquei sabendo que o Dionísio gosta de lanchar na cozinha sempre que vem, en-
quanto o pai conversa no escritório com seu José. Como está tranquilo o atendimento hoje,
vai lá e aproveita. Se alguém te ver, explica que foi ao banheiro ou beber água. Sei lá,
inventa uma mentira qualquer – disse a mulher registrando a compra no sistema.
– Ele tem namorada, sabia? Isso não vai prestar – disse a moça com uma voz apreen-
siva, desaprovando as palavras da amiga.
– Fala sério, hein, menina! Você só vai conversar, dizer um oi, não estou te incenti-
vando a se jogar em cima dele, se oferecer – disse Rosalva, rindo.
– Pode ir, Isa – incentivou a atendente da direita. – A gente segura as pontas aqui.
No Refeitório
Dionísio se afundava em suas lamúrias interiores, a imagem, o cheiro e gosto quente
dos lábios da amada não saíam do seu íntimo. Pensa em Sílvia o tempo inteiro. Ela, há tempos,
não o procura, não liga e não lhe dá nenhum sinal de vida. Tentando se desligar da namorada
ausente, começa a observar um amontoado de fotografias na parede.
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William R. Silva
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UM HOMEM CHAMADO
SÍLVIO KOREN
23 de Outubro de 2008.
Dionísio segura o par de alianças que refletia o brilho das luzes da sala. Os anéis,
que são de diamantes e ouro 18 quilates, além de caros, deram-lhe bastante trabalho para
encontrar. O amante apaixonado se empenhou de corpo e alma na empreitada de conseguir
compará-los. Cada aliança com dois milímetros de largura, foram compradas na melhor jo-
alheria que encontrou na região. Pediu a seu pai para que lhe desse um dia de folga. Como
Nélson viu que as coisas estavam tranquilas, decidiu liberar o filho. Em virtude disso,
Dionísio saiu pela manhã e chegou em casa já tarde da noite, pois sua dedicação fora tão
intensa, que demorou horas para escolher o presente. Sem contar no tempo que gastou para
se distrair e comprar algumas roupas novas. Agora está ansioso, pensativo, imaginando
qual será a reação de Sílvia ao receber essa, que é uma das maiores provas de amor que um
homem poderia lhe proporcionar. Finalmente terminaria toda essa tortura sentimental e sua
namorada voltaria a ser como era antes, aquela menina apaixonada que fazia questão de
colocar fotos dos dois abraçados na sua página do Orkut, que mandava recados românticos,
que ele adorava levar para tomar açaí e sair nos fins de semana.
O garoto apaixonado não consumia drogas ilícitas. Bebia socialmente, mas não era de
se embriagar. Não se matava em jogatinas, mas de certa forma ele tinha, sim, um vício nocivo.
Assim como drogados são dependentes de suas substâncias químicas, ele era dependente de
Sílvia. A moça na vida dele é como um anestésico, uma fonte de alívio e satisfação momentânea.
Deseja intensamente tê-la ao seu lado. Seus cabelos, o calor do seu corpo encostando no dele,
os seios macios, sua voz de malícia, sua personalidade contraditória, às vezes amorosa demais,
outras totalmente fria como se não tivesse sentimentos, tudo o fascinava. Ao lado de Sílvia, era
capaz de esquecer todos os seus problemas, o que houve no passado e todas os males da vida.
Não tinha mais vontade própria, era um ser totalmente movido pelas emoções e a namorada era
quem determinava suas atitudes.
Faz quase cinco dias que ela não liga, não o chama para conversar no MSN ou nas
redes sociais. Só de pensar que ela possa estar com outro, seu peito se enche de raiva, suas
emoções explodem. Evita ao máximo cogitar essa possibilidade. Irá hoje colocar o anel no
seu dedo, mas tem de aguardar Catarina. A amiga ligou para sua casa há poucos minutos
108
William R. Silva
e pediu para que ele a esperasse por se tratar de um assunto importante. Se não fosse pela
visita, já estaria na casa da amada pedindo sua mão a seus pais. Já se passavam das oito da
noite, tinha pressa, mas decidiu esperar a amiga.
Dionísio já está impaciente, não aguenta mais esperar. Tem vontade de sair, pegar o
carro e se declarar logo para a casa de namorada.
Decidiu esperar só mais dez minutos. Se Catarina não chegasse, iria sair. Não tardou
metade do tempo estipulado para que a campainha tocasse, fazendo um barulho que mais
parecia um estalo elétrico entrando em seus tímpanos. Colocando os anéis no bolso, pega
as chaves do carro e parte para fora da sua residência à procura de Catarina, que, sem dúvi-
da alguma, era quem o chamava. Não errou. Na entrada da casa, lá estava ela parada, mas
sem aquele seu sorriso que o conquistou alguns anos atrás.
Trotando como um cavalo louco, Dionísio surge por entre o vão da porta. O jovem
alegre, tentando transferir para a amiga a felicidade que sentia, fala frases positivas visando
arrancar algo de bom do rosto melancólico da mulher que estava a esperá-lo.
– Fala, amiga do meu coração. Diga o que deseja. Vamos logo que tenho uma coisa
muito importante pra fazer ainda hoje – falou ele, com uma voz calorosa, sonhando com a
hora de ver a namorada.
A garota o mira nos olhos e pressiona os lábios em sinal de aflição.
– Dio, desculpa por eu te ligar numa hora dessas. Pra ser sincera, não queria te dizer
o que vou te dizer agora, mas você sempre foi muito bom pra mim, me ajudou nos momen-
tos que mais precisei. Então, não deixarei mais que você seja enganado – disse Catarina,
suspirando e pondo as mãos caridosamente no rosto de Dionísio.
– Enganado? O que você está querendo dizer com “ser enganado”? – indagou ele,
aflito com as palavras da moça de cabelos curtos.
Com os olhos úmidos clareados pelas luzes da janela, suspirando mais rápido que
no início da conversa, fita o rosto de Dionísio com pena e caridade. Sentindo suas franjas
sendo movimentadas ao ritmo do vento, Catarina faz a bombástica revelação.
– Sílvia está te traindo. Ela está ficando com um dos marginais da turma do Johnny
Caveira, o Murilo. – as frases saltavam de sua boca como uma carga pesada a se desprender
do lombo de um equino. Mesmo temerosa, precisava contar-lhe a verdade, sua paz interior
dependia disso.
Dionísio, que antes se sentia o homem mais feliz de todos, vê seu mundo desabar.
Sente um ódio fluir de dentro do peito e se espalhar por todo o corpo como um vírus na
corrente sanguínea. Tentando manter o controle, mesmo não duvidando totalmente de tudo
o que a amiga disse, mas enganando a si mesmo, ainda questiona Catarina.
– De onde tirou uma maluquice dessas? Como pode ter certeza disso? – desesperou-
se o sujeito apaixonado.
– Eu vi os dois se agarrando no carro. E não foi só uma vez. Se pensa que estou
mentindo, vá até a porta da casa dela agora – relatou ela, constrangida – Murilo de vez
em quando participa daqueles rachas que vocês promovem. Você conhece o carro dele e
saberá que estou falando a verdade
A moça, consternada, vira-se de costas e sai correndo para a rua, atravessando a pra-
ça e indo de volta para casa, abandonando Dionísio parado, em estado de choque.
109
O Poder da Honra
Tremendo e com os nervos à flor da pele, ganha a rua e abre a porta do carro com
agressividade. Tem dificuldade para conectar a chave. Com o raciocínio desorientado, tro-
cando as marchas, manobrando e pisando fundo no acelerador, dispara com destino à casa
da suposta traidora.
– É mentira, é mentira. Eu não acredito, ela me ama, é o amor da minha vida. Ca-
tarina está mentindo, eu tenho certeza – resmungou Dionísio, fazendo o carro rebolar nas
conversões e manobras, acelerando ainda mais o automóvel, não se importando com as
pessoas que andavam pelo município.
Seu carro pegou a via que dá a acesso à residência da namorada. Não necessitou frear o
Pálio para constatar a verdade dos fatos. Lá estava o carro de Murilo próximo a casa da namo-
rada. O delinquente é um jovem que muitos suspeitam ser um dos fornecedores de drogas da
cidade. Um mau elemento, que assim como o parceiro Johnny Caveira, se veste com roupas
estranhas e tem uma enorme tatuagem de um demônio nas costas.
Parando o veículo, Dionísio cerra as pálpebras e, com bastante atenção, tenta enxergar o
casal se beijando. A iluminação do poste clareava distante e a escuridão da noite atrapalhava-
lhe a visão, mas não o suficiente para impedi-lo de constatar a dolorosa verdade. Conseguiu
avistar Sílvia com nitidez, era ela quem estava junto com o marginal dentro do carro. Um
turbilhão de sentimentos invadiu seu ser, sentimentos de raiva e desconsolo se mesclavam
dentro de si. Numa reação imediata, acelera o carro e sai cantando pneus.
– Desgraçada, desgraçada. Eu fiz tudo por ela, eu a amei e ela fez isso. Por quê? Por
quê? – lastimou Dionísio, aos gritos e lágrimas, que não sabia se eram de ódio ou tristeza.
O pálio, com uma velocidade acima do permitido, seguia seu percurso.
Freia tão violentamente que o automóvel chega a se movimentar para frente e para trás
em questão de centésimos de segundos, fazendo seu corpo bater com força no banco do mo-
torista. Pensa em voltar e pegar os dois em flagrante, arrancá-los de dentro do veículo e agre-
di-los até deixá-los caídos ensanguentados no chão, mas desiste. Essa era uma ideia absurda e
criminosa. Num estado de revolta, tira as alianças do bolso e as arremessa para fora do carro,
acelerando outra vez e deixando as joias caídas no asfalto. Mas os dois anéis não permanecem
durante muito tempo não chão. Por sorte, uma moça já conhecida, que passava pelo local no
mesmo instante, pega os anéis lançados e os guarda dentro da bolsa. Essa garota era nada mais
nada menos que Marisa Helena, que, ao reconhecer o carro de Dionísio, aproximou-se para
tentar em vão cumprimentá-lo.
Dionísio, dando socos no volante, nervoso, dirige aos prantos, atravessando todos os
acessos da cidade, desnorteado, sem saber aonde ir. Lembrando-se do único lugar tranquilo da
região onde mora, decide guiar o seu carro até lá, pois temia cometer uma besteira por causa
do seu estado de fúria. Entre curvas mal feitas, cantando pneus e com dificuldades para trocar
as marchas, Dionísio se dirigia para a antiga ferrovia, que há décadas foi desativada pelo go-
verno federal, a mesma que ele frequentava três anos antes para matar aulas, na época em que
era um menino gordo, antissocial e cheio de complexos.
Em outras circunstâncias, não ousaria a passar por ali a essas horas da noite, pois
correm muitos boatos a respeito do lugar. Dizem que é perigoso, habitado por drogados,
marginais e andarilhos. Afirmam ser assombrado por fantasmas, em especial um tal Negro
Timbuca, um mulato que se enforcou naquele lugar no início da década de noventa, o qual
110
William R. Silva
seu Emanuel afirma com toda convicção que já o viu perambulando por lá altas horas da
noite. Mas, Dionísio estava bastante abalado emocionalmente. Não consegue fazer mais
nada, apenas dirigir, chorar, xingar e tremer de ódio. Estava transtornado e nada o faria
recuar.
Invadindo o matagal, faz os pneus do seu Pálio entrarem em atrito com as pedrinhas,
grama, pedaços de madeira e resto de entulhos, correndo o risco de estourar a borracha das
rodas. Passou por cima dos trilhos e perdeu o controle do veículo. Por ter entrado desgo-
vernado na antiga ferrovia, bate de frente numa antiga placa de madeira que orientava os
maquinistas sobre o tráfego e a direção. Dionísio desce do carro cheio de ódio na alma.
Estourando de raiva, dá um berro para extravasar sua frustração.
– Desgraçada, vadia, vagabunda! – gritou ele cheio de ódio, causando eco. Deu chutes
na placa de madeira e em cascalhos – Justo com aquele marginal! Por que, meu Deus, por quê?
– suplicou o jovem aos prantos, dando mais pontapés e murros em uma das portas da antiga
sede da estação, um galpão escuro e sujo, fazendo alguns morcegos fugirem mato adentro,
causando-lhe um imediato susto, mas nada que o fizesse acalmar-se.
Seus nervos o dominavam, queria extravasar sua ira e nada parecia controlá-lo.
– Por que aquela maldita me traiu? Eu fui um bom homem para ela. Um bom na-
morado – vociferou ele em voz alta, agredindo o que via pela frente, ignorando os perigos
noturnos – Vadia ordinária! – gritou colérico.
Na medida em que golpeava as portas do lugar, sua raiva ia aumentando. Então,
triplicava a intensidade das pancadas, enquanto escorriam lágrimas em seu rosto, não se
cansando de amaldiçoar a traidora. No entanto, um evento inesperado acontece. A imagem
da sombra de um homem, munido de uma bengala, projeta-se em meio a escuridão. O
garoto revoltado toma um susto e cai de costas com as mãos apoiadas nos trilhos. Com os
olhos arregalados, fica aterrorizado ao ver o sujeito com seu rosto indistinguível, mover-se,
com o auxílio do bastão de apoio, em sua direção.
– Meu Deus do céu, o Negro Timbuca! Ele existe, puta que pariu! – exclamou Dionísio,
arrastando-se com as próprias mãos, sujando o tênis e a calça nos trilhos.
O homem, continuando a não mostrar o rosto, firmava a bengala numa parte da sede
abandonada, dando passos pausados e se aproximando mais um pouco do rapaz, mas ainda
se mantendo a uma distância razoável. Ele começa a repreender o intruso.
– Deixa eu ver se entendi. Tu deves ser um merdinha que foi criado por uma feminista
que o adulava e esquentava seu toddynho todas as manhãs –insultou o sujeito misterioso,
dando o ar de sua voz. – Por isso tu deve ter se tornado um menino frouxo do caralho, um
bosta, um verme humano, chorando com seus níveis de testosterona abaixo da média. E está
aqui gritando feito uma putinha histérica por que levou chifres da namorada cretina – disse o
homem, com uma voz firme, máscula e, ao mesmo tempo, cômica.
Dionísio, levantando-se, não tem mais vontade de sair correndo, embora ainda es-
teja com medo. Passado o susto, se sente confuso, pois não sabia se sentia pavor, graça ou
curiosidade em relação ao sujeito.
– Você é… é o fantasma do Negro Timbuca? – perguntou Dionísio, de pé, enfrentan-
do o medo e se aproximando do homem misterioso.
– Além de ser paspalho, corno e medroso, também é retardado. Tem que ser muito
111
O Poder da Honra
imbecil para acreditar numa besteira dessas. Sou tão de carne e osso quanto você. Meu nome
é Silvio Stuart Erick Koren, o homem mais másculo de todo o país, ou melhor, da América
Latina. Sou tão másculo, mas tão másculo, que minha libido é maior que o diâmetro da cir-
cunferência do planeta Terra – disse Sílvio Koren, apoiando sua bengala.
– Já sei. Você é um maluco solitário que vive aqui – palpitou Dionísio, mais tranqui-
lo e com suas emoções agora mais estabilizadas.
– Maluco é tu que tarde da noite sai por aí dirigindo sem saber aonde vai – devolveu
Silvio, com um ar de deboche.
– Eu não sou nenhum moleque, não sou frouxo como você pensa. A mulher que eu
mais amava na vida me traiu. A pessoa que eu confiava, aquela para quem dei tudo de mim,
me feriu, por isso quase enlouqueci. Você não sabe quem eu sou, então não me julgue –
refutou Dionísio, pela primeira vez desafiando o homem que ainda permanecia com o rosto
camuflado pelo escuro.
– O negócio é o seguinte, seu estrume humano! Escuta bem o que o mestre tem a te
dizer. Vais voltar para a tua casa. Amanhã vais acordar e fazer suas tarefas normalmente e
vais ignorar a vagabundinha e virar homem de verdade como se nada tivesse acontecido. E
no dia que quiser se tornar tão viril e fodão como eu, tu apareces por aqui e me chama. Se
quiser, te dou umas dicas para te tornar macho de verdade, para te ajudar a se tornar um
ser mais evoluído.
Sílvio Koren apontou a bengala para Dionísio.
– Dá uma olhada nisso aqui, seu bostinha! Sabes por que eu uso essa bengala?
– Acidente? – supôs Dionísio, olhando para o objeto.
– Eu devo ter quase o dobro da tua idade, vivi muito mais que você. Já fui traído e humilha-
do, talvez por ter sido um adolescente baixinho e feio pra diabo. Só que isso não vem ao caso. Há
alguns anos, eu tive um amigo, éramos quase irmãos, nos ajudávamos um ao outro e, juntos com
outros homens viris como eu, construímos algo fantástico que se tu tiveres culhões o suficiente, um
dia poderá ser digno de conhecer – contou ele, direcionando a bengala na testa de Dionísio – Mas
esse homem que eu tanto admirava, na verdade era um louco com ideias sinistras, que abusando da
minha amizade, me apunhalou pelas costas, me agrediu, traiu todos aqueles que um dia lhe deram
a mão. Por causa do que ele me fez, tive uma lesão na perna direita. Sabes o que eu fiz? Pensa que
fiquei me lamentando feito um derrotado de merda como você? Claro que não, seu porcaria. Em
vez disso, aprendi a usar essa adversidade a meu favor. Transformei meu defeito físico numa arma
– relatou ele, se aproximando um pouco mais e tornando assim seu rosto visível.
Golpeando Dionísio com a bengala na perna direita, o fez perder o equilíbrio e, com uma
velocidade digna de um ninja de filmes de ação, rodopia o objeto de apoio, fazendo-o acertar a
perna esquerda e finalizando a queda de Dionísio, deixando o rapaz outra vez no chão.
– Esse é o segredo. Transforme seu sofrimento, seus medos e suas frustrações em
armas de luta. Use-as a seu favor. Escute bem as palavras desse mestre fodão aqui e tu não
irás te arrepender – aconselhou ele, com a ponta da bengala encostada no nariz de Dionísio,
que estava caído sobre a linha férrea.
– E o que aconteceu com esse ex-amigo que te agrediu? – perguntou o rapaz, olhando
para a ponta do objeto em sua cara.
– Está preso, internado num manicômio lá em Barbacena – respondeu o homem,
112
William R. Silva
tirando a bengala do rosto do garoto caído, se afastando e entrando novamente pela porta
de onde saiu.
– E como eu faço se eu quiser te ver de novo? Venho aqui? Faço o quê? Vou pra
onde? Falo o quê? – indagou Dionísio, pela segunda vez se levantando dos trilhos.
– Bem vindo ao deserto do real ! – disse Silvio Koren num grito alto e ensurdecedor.
Em seguida surgiram diversos feixes de luzes de vários pontos, ofuscando a visão de Dionísio
e fazendo com que o mesmo fique, por alguns segundos, sem enxergar um palmo a sua frente.
Sumindo as luzes e retornando à escuridão noturna, Dionísio corre para dentro da
central desativada, mas não vê nada e nem ninguém nos pequenos vultos de claridade,
somente morcegos voando, restos de sujeira, entulhos e insetos no escuro.
Silvio Stuart Erick desapareceu e ele não entendeu como. Será que ficou louco? Talvez
tudo seja alucinação, pensou ele. Percebeu o perigo de estar ali sozinho naquela hora. Entra no
carro, que ainda tinha a porta aberta, liga a chave e sai disparado. No entanto, não sabe quando,
mas tem certeza que voltará a encontrar aquele homem irônico de novo.
25
SACO DE PANCADAS
7 de Novembro de 2008.
A vida é uma sucessão de batalhas, dificuldades e muitos outros desafios. Não há um
só ser humano neste mundo capaz de viver durante seu curto período de existência sem ter,
pelo menos uma vez, momentos de turbulência, daqueles que, para quem os presencia, pa-
rece ser o fim da linha. Nélson Átila conhece bem isso. Na visão dele, a sensação de paz é
um artigo de luxo e quando a sentimos, é algo temporário ou apenas um sinal de que o pior
pode acontecer. Considera a paz em si privilégio dos mortos. Somente eles são vizinhos do
sossego e da tranquilidade, mas, para os vivos é algo complexo. Mesmo que não seja de-
sejo dos seres humanos, constantemente todos são acometidos por momentos de tormenta.
Não que ele seja um homem pessimista e que não tenha fé. Porém, por ter sido
durante toda a sua história um homem bastante observador, leitor assíduo de filosofias e
assuntos humanos e por possuir uma vasta e dolorosa experiência em relação à socieda-
de e na lida com pessoas, familiarizou-se com os mecanismos da realidade criando certa
blindagem contra acontecimentos da vida. Raramente se decepciona quando alguém o
trai, pois na maioria dos casos, já esperava por tal atitude. Não se apega a mulheres com
quem sai, uma vez que sabe que amor verdadeiro atualmente é coisa rara. Muitos con-
fundem com paixão, carência e interesses camuflados. Tem sempre uma desconfiança
em relação a pessoas que tentam o tempo todo fazer o bem e evitam momentos de erros
e fúrias. Não se surpreende ao perceber o modo que cada um usa para alcançar seus
113
O Poder da Honra
objetivos e satisfazer seus prazeres pessoais. Tira de letra qualquer situação de intrigas e
conchavos entre seus funcionários e age com pulso firme quando necessário. Desenvol-
ve bem não só esses, mas também outros assuntos do cotidiano.
O problema é que o homem de barbas suaves e cabelos longos não é feito de aço, não
tem poderes mágicos, força muscular acima da média, armaduras, imortalidade e nem possui
parafernálias para sua proteção como os personagens de desenhos e filmes de super-heróis.
Embora se apresente como um verdadeiro prodígio e, com isso, consiga vantagem intelectual
sobre a maioria, é tão humano como qualquer outro. Apesar de se mostrar decidido e certeiro
em suas decisões, não gosta de errar. Mesmo tendo desafiado a vida, teme perder o controle da
situação e dos eventos que o regem. É considerado um grande mestre por muitos. No entanto,
conhece como ninguém seus medos e fraquezas.
Novamente estava ele em uma de suas noites de insônia, inquieto, bebendo sua cer-
veja companheira das madrugadas e comendo sua pizza. No entanto, por mais incrível que
se pareça, a razão da sua falta de sono não foi causada por preocupações com problemas
financeiros, nem por problemas de saúde e menos ainda por causa de Dionísio. Tirando
suas crises de raiva devido à ex-namorada e por ser cabeça dura às vezes, o filho é um
bom rapaz que o ajuda bastante. A razão da sua insônia, na verdade, não tem motivação
explícita. Tudo o que ele pressente é que está prestes a acontecer algum evento decisivo na
vida de todos ao seu redor e, mais precisamente, na dele. Um acontecimento crítico que irá
definir a vida de muitos e que, com toda certeza, vai mudar o curso da história de alguns
daqueles que ama e admira.
Sua intuição sempre fora aguçada e a probabilidade de tudo não passar de preocupações
sem fundamento é mínima. Seus maus pressentimentos dizem-lhe que, cedo ou tarde, não po-
derá mais viver aquela vida pacata e tranquila como nos últimos cincos anos. Finalmente, terá
que se transpor sua roupagem de homem comum e revelar sua real face frente às batalhas.
Voltará a ser quem, intimamente, nunca deixara de ser, um aventureiro que desafia seus limites,
que enfrenta tormentas e se prepara para a luta em fases de bonança.
Precisando fazer algo para aliviar sua inquietação mental, com sua cerveja em mãos, re-
solve descer até o andar de baixo da casa para se distrair. Conforme foi se aproximando da sala
de treinos e lutas, começa a ouvir um barulho. A princípio, desconfiou de que pudesse ser um
invasor, mas continuou sua caminhada, parando à porta. Ali, ficou observando Dionísio dando
murros agressivos no saco de pancadas pendurado num canto do local.
– Estou cansado de ser fraco, estou cansado de ser fraco. Merda de vida, merda de
vida, por que não consigo esquecer essa vagabunda? – repetia Dionísio, a cada soco que
dava no objeto.
– Eu te disse que a tal de Sílvia não prestava e você não quis ouvir – resmungou Áti-
la, tomando o resto da sua cerveja, com a mão esquerda apoiada num dos pilares da casa
logo atrás de Dionísio.
– Eu sei! – disse ele sem parar os golpes – Sei disso. Não precisa jogar na minha cara.
– Pelo que estou vendo, a falta de vontade de dormir nos pegou de jeito essa noite,
hein? – confessou o homem, jogando a garrafa vazia num cesto de lixo e se aproximando
do filho.
– É, também não estou conseguindo dormir – prosseguiu Dionísio, ainda concentra-
114
William R. Silva
esses sentimentos negativos para me manter forte ou serei espancado pela vida até ficar estira-
do no chão, pisoteado pelas pessoas que são mais fortes que eu. Fortes em todos os sentidos.
– Somos, então, como um saco de pancadas? – interrogou Dionísio, observando a
maneira como o pai acertava o objeto pendurado.
– Sim, mas esse aqui que estou batendo, quanto mais pancadas ele resiste, mais
danificado e fraco ele fica. Nós, seres humanos, não. Quanto mais pancadas levamos sem
nos abater, quanto mais golpes ganhamos e conseguimos nos manter de pé, mais fortes
ficamos, mais nos tornamos resistentes.
– Mas, mesmo assim, quer dizer que as pancadas da vida são inevitáveis? Elas nunca
terão fim? – perguntou o rapaz, fixando seu olhar no rosto do homem com seu enorme cabelo
bagunçado, com os fios emaranhados no rosto, tampando parte da sua visão.
– Não, as porradas da vida terminam. Terminam quando a gente morre, nada nesse
mundo é eterno – disse o homem, retirando as luvas e as jogando para o lado, caminhando
em direção à janela e observando as estrelas no céu.
Dionísio, bem mais calmo, analisa o saco de pancadas oscilar de um lado para outro,
pensando nas palavras de Nélson Átila. Ficou refletindo até o momento em que foi inter-
rompido pelas palavras do pai.
– Dionísio, meu filho e braço direito. Desde que deitei na cama, fui abatido por uma
sensação ruim e estranha, um pressentimento de que as coisas estão prestes a ficar compli-
cadas e preciso que você tenha ciência de uma coisa – continuou ele, agora esquadrinhando
a praça deserta com suas luzes clareando árvores, cestos de lixos e animais vadios transi-
tando ou dormindo no local.
– Pode dizer – devolveu ele, caminhando até Nélson Átila.
– Chegará um momento em que você terá que andar com suas próprias pernas, vai
ter que guiar sua vida sozinho e será dono do seu destino. Entenda que nem sempre estarei
aqui – discursou com uma voz de preocupação.
– Você está com alguma doença terminal, jurado de morte? Me diz o que está aconte-
cendo – assustou-se Dionísio, correndo para perto do pai e o interrogando insistentemente
em tom de melancolia.
– Não, na verdade estou muito bem e isso não quer dizer que eu venha a falecer. Não
por agora, mas sim que algum dia possa ocorrer de eu me ausentar, apenas isso – explicou
ele, batendo nas costas do herdeiro.
– Até a conversa do saco de pancadas, consegui compreender tudo, mas agora con-
fesso que você embaralhou minha mente. Uma coisa eu sei, essas nossas conversas são
muito boas, me fazem bem – confessou o jovem rapaz, que, mais tranquilo, bate nos om-
bros do pai, se despedindo dele e indo tomar banho para ir dormir.
Sozinho na sala e observando a paisagem, Átila permanece ali por mais alguns mi-
nutos, refletindo sobre a possível causa da sua inquietude.
“Espero que esteja errado, mas se isso realmente estiver acontecendo, é melhor Thomas,
Sílvio e Thales começarem a se preparar”, pensou Átila, preocupado, notando um gato preto
em cima de uma árvore ao lado da janela, fitando-o com uma expressão de maldade.
116
William R. Silva
26
A FUGA DE
ERNESTO RODRIGUES
No Manicômio Judiciário
Nélson Átila está longe de ser um vidente ou possuir poderes de premonição. Porém,
não estava errado quanto aos seus maus presságios, pois naquele mesmo momento em que
ele, sofrendo de insônia, conversava com o filho diante do saco de pancadas, numa cidade
distante estava sendo colocado em prática o plano de fuga de Ernesto Rodrigues Tavares,
que cumpre pena judicial por homicídio doloso. O homem, por apresentar delírios psicóti-
cos e transtornos de personalidade, estava sendo custodiado em um hospital psiquiátrico e
judiciário por quase quatro anos.
Tudo ocorreu por volta de três horas antes, com um dos funcionários do estabeleci-
mento, que atende pelo nome de Olegário. Com sua arma na cintura, segurando uma mala
e com roupas pretas que indicavam ser um dos responsáveis pela segurança da instituição,
ele andava de cabeça erguida pelos corredores. Saudava a quem via transitando pelas pas-
sagens, ia avistando cela por cela, com seus presos-pacientes encarcerados como animais
em jaulas de proteção. Analisa as expressões de cada um deles, uns angustiados, outros
cheios de ódio, alguns calmos, muitos aparentemente transtornados. E outros que, quem os
visse, juraria que são pessoas normais aptas ao convívio social. Entre as celas com crimi-
nosos e loucos, Ernesto Rodrigues lia um dos seus inseparáveis livros e aguardava a visita
do funcionário corrupto.
Cessando seus movimentos atrás das grades onde se encontra o detento, olha de um
lado para outro e, constatando não haver nenhum funcionário no local, passa a mala por
entre os ferros das grades e dá sua orientação ao homem que estava de costas.
– Será as quatro da madrugada em ponto. Você vai ter menos de cinco minutos para se
trocar. Nesse momento, eu venho e abro sua cela. Entendeu? – explicou o agente.
– Sim, já entendi. Pode deixar que faço minha parte, vê se faz a sua também. Tem
certeza que as câmeras não filmaram você me entregando isto? – questionou Ernesto Rodri-
gues sem se virar para o interlocutor, segurando a mala e a jogando para debaixo da cama.
– Fica tranquilo, o nosso parceiro desconectou a câmera que dá para a sua cela, ninguém
viu nada. Espero que os outros quatrocentos mil estejam em minhas mãos no máximo até
amanhã ao meio dia – disse ele, batendo numa das grades e se preparando para sair do lugar.
– Como eu disse, faz a sua parte que faço a minha – reinterou Ernesto com o rosto
virado, olhando o segurança se distanciar no corredor.
E assim se sucedeu parte do plano de fuga arquitetado por Ernesto, Olegário e mais
dois funcionários do local de custódia judicial. O silêncio reinou durante todo o tempo
posterior à entrega da mala, até que, faltando cinco minutos para as quatro horas da ma-
117
O Poder da Honra
O Batalhão
No pátio do batalhão do corpo de bombeiros de Barbacena, os soldados descem
do caminhão vermelho e avançam para dentro do quartel. Alguns muito cansados, outros
conversando mais animados sobre o sucesso da operação. Sorrateiramente, o último bom-
beiro, ainda de máscara, sai de seu esconderijo, na parte debaixo do veículo oficial e, atrás
de um muro, se esconde da visão dos demais militares. Repara ao redor e avista o banheiro
masculino, sem que seja notado, entra no cômodo. Rapidamente, se desfaz do uniforme e
da máscara, revelando um traje comum por baixo.
Aproveitando-se da ausência do vigia e da escuridão, costeia o muro até a rua e entra
num carro preto, que há horas o espera estacionado. Em seguida, o carro acelera e o leva
para longe dali.
Ernesto Rodrigues, dentro do automóvel, assiste o movimento das ruas como se fos-
se um filme de grande bilheteria, contemplando carros, ônibus, pessoas, comércios e todo
aquele cenário que, para a maioria, era comum, mas para ele não. Tudo o que via, sentia
e cheirava era liberdade. Finalmente, estava livre. Depois de tanto arquitetar uma rota de
fuga, obteve sucesso.
Tudo ocorreu como o planejado e ele se sente orgulhoso de si mesmo. Por isso,
tem vontade de gritar, rir e gargalhar, pronunciar inúmeras vezes uma frase há tempos
entalada em sua alma: Eu disse que um dia iria fugir, seus otários. Eu disse! Com olhar
diabólico, um sorriso cínico e ar de satisfação, atravessa a divisa da cidade com seu
motorista e some do município.
119
O Poder da Honra
27
O INDOMÁVEL
28 de Novembro de 2008.
Átila, por ter feito todas as suas atividades durante o dia e ter tempo livre durante a tar-
de, resolveu tirar umas horas para relaxar num luxuoso motel do município vizinho, na com-
panhia de Michele, a mulher que ele conheceu há alguns meses. Recostado na cabeceira da
cama, sobre os lençóis e degustando um dos melhores vinhos da casa, Nélson Átila analisava
a perfeição das curvas, rosto e todo o conjunto com que a natureza foi capaz de presentear a
mulher deitada sensualmente à sua frente. Aproveitavam todo o ambiente luxuoso a sua volta.
O sossego, o aroma agradável, bebidas importadas, uma enorme televisão com tela LCD, a
confortável banheira de hidromassagem, paredes quase todas com uma pintura rústica, corti-
nas vermelhas e tantos outros admiráveis utensílios enfeitavam e tornavam o quarto um dos
lugares mais agradáveis para as horas de lazer.
O homem, de maneira calma e pausada, desabotoava cada parte das roupas de
Michele, que o fitava com um sorriso sensual, sentindo as mãos dele deslizarem pelo
seu corpo e retirar, com ajuda dela, suas roupas uma a uma até deixá-la apenas com sua
lingerie vermelha.
Tomando-lhe a taça de vinho das mãos e colocando-a sobre a mesa, deita-se sobre
do corpo de Nélson, que a segura pela cintura e corre as mãos em suas costas até chegar
à nuca. O homem, sem nenhuma afobação, vai lhe acariciando a nuca em movimentos
semicirculares, causando suspiros e deixando-a totalmente excitada.
Encostando os lábios nos de Átila, sem beijá-lo, a sedutora mulher se esfrega va-
garosa no corpo do homem, fazendo os cabelos de Nélson se enrolarem nos seus. Então,
começa a se declarar com uma voz carinhosa e pueril.
– Sabe, Átila, desde o dia que eu vi você com seu filho naquele bar, percebi que você
era diferente dos outros homens que conheci. Você é estranho, meio grosso às vezes e não
diz nada sobre você, mas eu não consigo te tirar da minha cabeça – declarou, olhando nos
olhos do homem e esfregando os lábios em seu queixo.
– Legal – respondeu ele, acariciando os cabelos rebeldes da mulher.
– Eu amo você. Não consigo te tirar dos meus pensamentos. Estou sendo sincera –
afirmou com fervor nas palavras, enquanto Átila nada dizia, apenas a beijava.
Subitamente, ele a joga no colchão, deitando-se em seguida por cima do corpo da
moça, que ainda permanecia olhando em seus olhos.
– Não faz nem dois meses que nos conhecemos. Saímos pouco mais de cinco vezes,
incluindo aquele encontro no bar, e você já vem me falar de amor? – inquiriu ele, sem
demonstrar qualquer reação perante a declaração apaixonada.
– Sim, você mexeu comigo. Esse seu jeito, sua forma de falar e essa sua maneira de
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William R. Silva
dizer o que pensa e mostrar suas emoções, não se importando com a reação de quem ouve,
dá a sensação de que você é incapaz de amar de verdade. Mas, não vou desistir de você.
Não vou, não – disse ela, esfregando seu rosto no dele.
Enquanto ouvia as palavras da linda jovem, Nélson desabotoava parte da lingerie,
deixando seus seios empinados à mostra. Vai correndo as mãos pela coluna e tirando o res-
to de suas roupas íntimas, deixando a moça completamente nua diante dele. Na sequência,
dá leves mordidas em todas as partes do corpo da jovem, que, com vinte e quatro anos,
tinha a pele lisa e bem modelada. O homem sedutor tocava com a ponta dos dentes desde
os pés, subindo pelas coxas, a cintura, o umbigo, bicos dos seios, até chegar a seus lábios e
começar a beijá-la, pegando firme em sua cintura e fazendo com que a mulher respire cada
vez mais frenética e apressada.
28
REALINÓPOLIS
30 de Janeiro de 2009.
A cidade de Realinópolis é um município brasileiro situado no sul do Estado de Minas
Gerais. Sua população estimada em 2008 é de 31.765 habitantes e possui uma área de 712,115
km². Tem uma praça bem reformada de árvores preservadas, coretos e toda a paisagem em volta.
Seus bancos, casas e comércios com paredes limpas e bem pintadas, a tradicional igreja situada
ao centro, escolas, colégios, farmácias, supermercados e todas as outras imagens que fazem parte
do cenário que compõe a pequena cidade, são vistas diariamente pelos habitantes. Tudo isso so-
mando-se aos lagos, rios, pesqueiros artificiais e algumas outras áreas naturais de entretenimento
acessíveis aos mais de trinta mil munícipes.
Há também figuras ilustres e admiráveis. Exemplo disso é o conhecido padre Jerôni-
mo, um senhor de respeito que carrega grande estima da maioria dos moradores, inclusive
de pastores evangélicos e líderes de outras religiões. Além dele, há Nélson Átila, o dono de
uma das melhores lojas de móveis da região e que faz generosas doações para entidades
filantrópicas. E há Seu Emanuel, o contador de histórias, o homem que afirma já ter visto
mulas-sem-cabeça, lobisomens e várias outras bestas perambulando à noite pelas ruas. Foi o
próprio Emanuel quem disse ter sido o primeiro a ver o famoso fantasma do Negro Timbuca
na antiga ferrovia, lugar este que quase não é visitado pelas pessoas que moram no territó-
rio por medo e desconhecimento. Seu Emanuel conta tais histórias com tanta convicção e
detalhes que muitos dos idosos, crianças e pessoas com pouca instrução chegam a acreditar.
Como nada é perfeito e todas as cestas têm suas maçãs podres, o pequeno município
de Realinópolis também tem seus agentes do caos, certo grupo de indivíduos que se dedica
a perturbar a ordem, a paz e o equilíbrio de todos. Um time de jovens delinquentes tatuados,
121
O Poder da Honra
alguns barbudos, e que raramente se apresentam usando roupas de outras cores que não sejam
seus tradicionais trajes pretos com imagens de caveira ou quaisquer outros no estilo heavy
metal, nomeado por eles mesmos como Gangue dos Caveiras.
A turma de meliantes tem como principais integrantes Murilo Dalborg, o mais velho e
mais perigoso que, embora não se intitule o comandante da turma, é considerado por quase
todos como o líder; Felipe Sampaio, conhecido como Lipe, o mais alto, mais tatuado e o mais
forte da turma, um jovem movido pela raiva, rebeldia e agressividade; Raphael Tairone, um
adolescente indisciplinado, o mais jovem, com apenas dezessete anos; e Johnny Caveira, um
rapaz que sempre anda metido nas principais confusões das redondezas e o que mais dedica
suas energias para desafiar Ricardo e Dionísio. Tem como esporte preferido insultar e provo-
car os dois. Assim como seus inimigos, adora uma disputa de racha e já desafiou os dois por
várias vezes. Ele já pertenceu ao grupo Homens de Honra no passado, mas foi expulso por um
de seus líderes por sua má conduta.
Esse pequeno número de jovens é uma das maiores preocupações não só das autoridades
policiais e administrativas como também de muitos dos moradores da região. Seres esses que
atrapalham as noites de sono do mais novo prefeito da cidade. Em virtude disso, Antônio Nunes,
o gestor municipal, aguardava naquele momento a visita de uma dupla de homens. Além de se-
rem velhos amigos, eram também especialistas em estratégia de seguranças. Esses, durante anos,
auxiliaram as autoridades públicas na contenção de marginais como os que estão a atrapalhar o
andamento da até então pacata cidade.
O homem, espiando o movimento na rua pela janela por trás de sua mesa, permanece
pensativo. Ao seu lado há três bandeiras. A maior delas é a do Brasil. A outra é de Minas
Gerais e a terceira, na mesma altura que a segunda, a bandeira de Realinópolis.
Alguém gira a maçaneta e a porta se escancara. Era a secretária que acabara de entrar.
– Suas visitas chegaram, Sr. Prefeito. Posso mandá-los entrar? – perguntou a jovem.
– Pode sim. Chame-os, por favor – ordenou o homem de terno.
A mulher se retira, segundos depois, os visitantes chegam à sala oficial. Thomas Bruso,
franzindo as sobrancelhas, sério e em silêncio, é o primeiro a entrar na sala. Logo atrás, aparece
Thales Delone. Ambos cumprimentam o homem de costas, que, mesmo tendo percebido a pre-
sença dos dois em seu ambiente, continuava a pensar, observando a paisagem.
– Boa Tarde, Sr Prefeito! – disse Thales Delone de maneira incisiva, reparando no
homem imóvel frente à grande janela – Quais são as novidades? Acredito que tenha um
bom motivo para ter nos convocado.
– Como sempre direto. Continua o mesmo, senhor Travis Bickel! – brincou o gestor
ao se virar, se deparando com os visitantes que esperavam sua explicação.
– Acredito que não seja uma boa ideia usar nossos codinomes aqui. Não me parece
uma atitude inteligente, senhor Antônio Nunes. Ou prefere que eu o chame de... John She-
ridan? – advertiu Thomas Bruso, mostrando ironia nas palavras.
Antônio Nunes, um homem negro, de terno cinza, gravata listrada, meio calvo, que
usa óculos de grau, arrumou a gola que o incomodava, apertando-lhe parte do pescoço.
Aperta as mãos dos velhos amigos e explica a causa da sua convocação.
– Indo direto ao ponto, minha preocupação não é nenhuma novidade pra vocês. É a
tal Gangue dos Caveiras. Eu queria que o Silvio Koren e o Átila estivessem aqui conosco.
122
William R. Silva
– E olha que um dia já respeitei esse cara como se fosse um mestre – reclamou ele,
balançando negativamente a cabeça com a xícara na mão.
– Quando entrei no grupo, dias depois vocês descobriram os planos dele e o colo-
caram na cadeia. Depois, ninguém comentou mais nada a respeito do assunto. O que ele
pretendia? – perguntou o prefeito, colocando a xícara vazia sobre a mesa.
Thales, por ter mudado de expressão ao se irritar com as lembranças de Ernesto Rodrigues,
dedica segundos do seu tempo prestando atenção às bandeiras que se movimentavam no mastro,
sendo orientadas pelo vento que invadia através das frestas da janela. E Thomas, ao deixar a
xícara vazia sobre a bandeja de prata, tendo certeza de que o colega não se animara a falar sobre
o homem problemático, prossegue ele mesmo a sua confissão.
– No começo, éramos somente nós. Eu, Thales, Silvio, o Átila e alguns poucos homens
integrávamos o grupo. Não tínhamos uma base e Ernesto, a quem ajudamos em um momento
difícil, se tornou um de nós. Foi um dos melhores que já se viu, diga-se de passagem. Empenhou-
se em nos ajudar. Ele aprendeu muitas coisas boas conosco e nós também aprendemos com ele.
Mas, aos poucos, sua máscara de homem gentil, honesto, íntegro e sincero foi retirada, mostran-
do quem realmente ele era, um merda, um grande doente mental.
– E o que ele era? – interveio Antônio Nunes, de ouvidos concentrados nas palavras
do homem que estava lhe passando as informações.
– Ele é um homem com tendência a defender ideias preconceituosas, racistas, homofó-
bicas e apresenta desvios da personalidade psicopata – disse Thales, dando sequência à fala de
Thomas, irritando-se ainda mais com a conversa. – Se autoproclama o salvador da humanidade
e diz que vai livrar o mundo de pessoas que, na concepção dele, são geneticamente inferiores ou
pecadoras. Tinha um plano macabro de reunir um grupo de vermes como ele e promover um
extermínio em massa de homossexuais, negros, pessoas com deficiência física e mental e todos
os outros que ele afirma serem os agentes de destruição e atraso da humanidade. Era uma espécie
de Adolf Hitler do século vinte e um.
– Ao descobrirmos isso, ficamos de olho nele, até que um dia ficamos sabendo do
projeto asqueroso que ele pretendia por em prática com um conjunto de retardados que
ele conheceu pela internet com ideias parecidas com a dele – continuou Thomas Bruso.
– Certo dia, num surto psicótico, ele atirou em um homossexual que acabava de chegar
em casa. Nós chegamos na mesma hora, mantivemos ele sobre a mira das nossas armas e
o entregamos para as autoridades policiais. A sua vítima faleceu e ele hoje cumpre pena
numa penitência de loucos psicóticos.
– E qual era o nome desse projeto? – indagou o prefeito, ansioso pela explicação.
– Não digo bem que isso seria um projeto, um plano ou qual merda seja, tudo o que sabe-
mos é que os seus seguidores virtuais... – Thales interrompe a fala e olha o movimento de pessoas
na rua, caminhando para mais próximo da janela – Esses seus seguidores se autodenominavam
Sanctus. E acredite, se esse cara me sai da cadeia e se une a esses loucos, a Gangue dos Caveiras,
perto deles, vai ser brincadeirinha de criança – conclui ele.
Em seguida, ficaram todos os três em silêncio, contemplando o mapa da cidade,
pensando sobre o destino dela e sobre os baderneiros que a habitam e os que poderiam
aparecer posteriormente.
124
William R. Silva
29
ACADEMIA, TREINO E
TRANSFORMAÇÃO
Trinta e cinco quilos no supino. Dionísio com o suor escorrendo pela testa e deitado
no banco, geme para manter o braço no ar com a barra em mãos. Com um suspiro e um
rápido movimento dos braços, prendendo e soltando a respiração, quase batendo a barra
no peito, determinado, esforça-se em sua sequência de movimentos: um, dois, três... oito,
nove, dez e coloca os pesos de volta no apoio.
Diogo Santorini, um dos instrutores, homem de quase um metro e noventa, na casa
dos trinta anos e bastante robusto, dono de ombros largos e um tórax estufado, aproxima-se
do jovem estirado sobre o banco. Dionísio se levanta segurando uma toalha e, em seguida,
limpa o suor do rosto. Por estar distraído com Catarina, que correndo na esteira o cumpri-
mentava balançando os braços, não percebe a presença do homem musculoso conferindo
suas anilhas na barra.
– É isso aí, Dionísio. Tem que pegar firme, brother! Vê se esse ano leva o treino a
sério – admirou-se, conferindo o peso das circunferências.
Dionísio, por estar distraído, assusta-se e o encara com satisfação.
– Opa, tudo bem com você, parceiro? Esse ano, sim! Vou me esforçar bastante – con-
firmou ele, sorrindo animado, ao dar um aperto forte na mão direita do instrutor.
– Lembro como se fosse ontem quando chegou aqui pela primeira vez. Era gordo
pra caralho. E agora, vou te confessar, mano. Até eu ri de você quando te vi pela primeira
vez, todo desajeitado, olhando ao redor, constrangido com todos os marombas que estavam
rindo de você. Nesse dia, até voltou pra casa com os olhos cheio de lágrimas, mas agora
você é outro. Deu a volta por cima. – confessou Santorini, batendo no ombro de Dionísio.
– Eu me lembro como foi difícil no início, me deu muita vontade de desistir. Juro que
tive – disse ele, lembrando dos seus primeiros meses na academia.
– Está esperando o que? Vamos embora pegar uns pesos! – incentivou Ricardo, ani-
mado para mais um dia de malhação.
Dionísio seguiu os dois até o interior da academia. Ricardo e Bernardo, apressados
para pegar suas fichas e ir para o alongamento, se esquecem do colega de escola, que
fica para trás, observando tudo e caminhando devagar, feito um zumbi, pelo ambiente de
exercícios físicos. Ventiladores espalhados por todos os pilares da construção, televisão
passando um videoclipe de hip hop americano com batidas agitadas capazes de estimu-
lar ainda mais a adrenalina dos usuários, homens alternando pesos, de pé levantando
cargas aos gritos, encaixando anilhas nas barras, alguns trocando informações, outros
ajudando um ao outro no levante de ferros e muitos se auxiliando não só no esforço
físico, mas também em conselhos úteis. Mulheres com calças leg mostrando suas coxas
grossas, bundas duras e bem desenhadas e blusas coladas tornando seus seios à mostra,
cada uma mais bonita que a anterior, deixando Dionísio de lábios abertos, quase baban-
do com as imagens de mulheres perfeitas que ele encarava transitando à sua volta.
Santorini, no andar de cima, que estava a auxiliar dois jovens sobre a forma correta de
executar um exercício, se irritou um pouco com a atitude nada profissional dos outros instru-
tores que, em sua maioria, se dedicavam a dar atenção somente às moças bonitas do recinto,
negligenciando os demais rapazes que ou estavam desorientados ou faziam tudo errado. Vendo
que Dionísio se mostrava desnorteado, desce as escadas e vai de encontro ao menino obeso.
– Oi, jovem. Vejo que está perdido. Vem comigo pra eu dar sua ficha e ver o que
podemos fazer contigo – ordenou Santorini de maneira amigável.
O assistente esbelto procura a ficha do menino tímido, encontrando-a, lê a instrução inicial.
– Vinte minutos na esteira. Depois é só me chamar – disse Santorini, entregando-lhe
a ficha de exercícios e se afastando do garoto para dar atenção aos demais que treinavam
de forma errada.
No início, Dionísio se mostrou receoso em usar o aparelho. Ficou com os braços
encostados assistindo os frequentadores malhando, alguns dos quais até debochavam dele
de forma sutil ao observar o menino gordo, estático, como se estivesse perdido no meio
de todos aqueles equipamentos. Por não ter a intenção de desagradar ao instrutor, liga
o aparelho, sobe e regula a velocidade. Correndo na base dos arrancos, Dionísio bufa a
cada passo rápido que dá na esteira. Por falta de informação e curiosidade, aumenta mais
a velocidade, fazendo com que suas pisadas se tornem mais aceleradas. Com dificuldade
para se manter no ritmo, suando, cansado e desesperado, seu corpo perde parte da força e
suas vistas começam a escurecer devido ao seu limitado condicionamento físico e a falta
de tempo para respirar. Faltando pouco para cair desmaiado e correr o risco de se machucar
por causa da velocidade do aparelho, aperta o botão vermelho seguidas vezes até retornar
a zero. Aliviado e respirando ofegante, corre para o banco mais próximo, se assenta e fica
lá descansando por alguns minutos.
quatorze quilos mais magro, resultado de meses de esforço e sacrifícios. Está se sentindo
orgulhoso e mais confiante para encarar a vida. Na cozinha, sem fazer muito barulho para
não acordar o pai, abre a geladeira e pega os alimentos necessários à sua dieta pré-treino:
duas bananas, iogurte e pão integral com pasta de amendoim natural. Consome um a um
sentado à mesa. Terminado o primeiro procedimento, com seu short, tênis e camiseta, vai
para a rua. Lá estava Ricardo Marone, seu parceiro de todas as horas, a esperá-lo dentro do
carro para irem juntos à academia.
– Beleza, cara? Então, vamos embora puxar uns ferros pra começar o dia bem – brin-
cou Ricardo, saudando o amigo que acabava de entrar no carro.
– Com certeza. Vamos lá – incentivou Dionísio, reparando no bom desempenho do
amigo na condução do carro.
– Eu já dirigi o carro do meu pai algumas vezes. Que pena que sou de menor, não
vejo a hora de tirar minha habilitação – disse ele, ao ver Ricardo guiar.
– Eu sou de menor, não tenho habilitação e estou dirigindo agora. Não se preocupa
com isso não, velho. Não dá em nada – confessou o motorista ao olhar para Dionísio e dar
um sorriso.
Nessa época, os dois passaram a frequentar a academia pela manhã pois, como am-
bos estavam com menos de um ano na prática de musculação, encontrariam a academia
com menos pessoas do que à noite. Em consequência, teriam mais acesso às informações
dos instrutores e usariam os equipamentos com mais tranquilidade, sem ninguém para
perturbar a concentração e também não precisariam esperar que os aparelhos fossem de-
socupados. Após a sessão de alongamentos, com suas fichas em mãos e auxiliados por um
dos funcionários, Ricardo pega seus pesos e Dionísio parte para mais uma de suas corridas.
Como recomendado, antes de tudo, corre durante vinte e cinco minutos na esteira.
Acabada a corrida diária, em frente ao enorme espelho, Dionísio presta atenção nos seus
músculos que se desenvolvem a cada movimento sequencial de subir e descer a barra de
pesos. Faz rosca direta, rosca alternada, rosca scott e mais outra série necessária para de-
senvolver seus bíceps. Ao perceber seus músculos inchados, outra vez se olha no espelho,
mas logo desanima pois, no dia seguinte, quando acorda, seus músculos num passe de
mágica voltam ao normal. Santorini lhe explicou que aquilo era normal, sinal de que os
músculos aos poucos estão se acostumando. No íntimo, a causa de sua queixa interna era
a necessidade de resultados rápidos. Queria se tornar forte como os caras que ele via na
academia. Porém, embora tivesse emagrecido bastante, ainda mantinha gordura localizada
e para ganhar uma quantidade inicial de massa muscular ainda teria de aguardar alguns
meses e seguir sua dieta de forma correta como havia orientado a nutricionista.
Sem que Dionísio perceba, um sujeito musculoso e bastante desconfiado, aproxima-se.
– Qual é, frango! Fala pro seu parceiro ali que eu tenho Deca e Durateston pra ven-
der. Se ele quiser, é só me chamar – avisou o rapaz se referindo a Ricardo e falando baixo,
próximo ao garoto que malhava concentrado.
– O que é isso? – perguntou Dionísio, sem entender do que se tratava.
– Deixa pra lá. Só avisa ele que eu tenho – reforçou o vendedor.
– Fala você mesmo. Olha ele ali – irritou-se Dionísio, apontando para o amigo que
estava concentrado fazendo abdominal.
127
O Poder da Honra
o culpou por isso. Não havia razão para considerá-lo traidor. Na verdade, eles já estavam
saindo bem antes de ele se declarar. Mesmo assim, aquilo doía e não havia como controlar.
Sua angústia se tornou ainda maior, quando, ao ir pegar sua ficha, de longe avista Catarina e
Ricardo correndo na esteira, ambos hipnotizados um pelo outro, com olhares apaixonados,
deixando o coração do jovem ainda mais ferido.
Sutilmente, compara o corpo de Ricardo com o seu, e percebe que a evolução
física do amigo foi bem superior à dele. É verdade que estava magro, mas para se
modelar como o colega de classe ainda faltava um longo percurso. Até então, nunca
tinha experimentado uma sensação de inveja como aquela que sentia, principalmente
em relação a um cara como Ricardo, que sempre o tratou bem, nunca zombou dele e,
desde o começo, fez de tudo para ajudar na sua evolução. Não queria se sentir daquela
forma, mas para sua infelicidade, estava sim sentindo inveja dele, por vê-lo em boa for-
ma e namorando a menina com quem tanto tempo Dionísio sonhou. Sente uma espécie
de raiva emergir de seu lado mais sombrio, odiando naquele instante o próprio colega,
Catarina e a ele mesmo. Mas, na mesma hora é acometido por um sentimento de culpa
e um golpe na consciência. Então, tenta se desviar desses desejos ruins.
Para fugir dessas sensações negativas que tanto o perturbavam, com dois pesos
de quatro quilos, um em cada mão, eleva ambos para cima e para baixo em posição
lateral. Assim permanece meditando frente ao espelho, se esquecendo do mundo, da
vida e de todos ali. Dessa vez, não começou correndo na esteira como de costume, pois
não queria ficar próximo ao casal. Aquilo para ele era humilhante demais.
Dionísio, na semana seguinte, foi somente três dias. Nas outras, apenas uma ou
duas vezes. Até que, por fim, ficou por quase quatro meses sem frequentar os treinos,
somente voltando tempos depois de ter começado a namorar Sílvia. Dionísio, infeliz-
mente, sofre de um grande mal. Muitos de seus objetivos são diretamente influenciados
por suas relações interpessoais.
De Volta ao Presente
Sentado em seu banco, traz de volta seu espírito e sua mente para o tempo presente.
Pensa em tudo o que passou até este ano de dois mil e nove, nesses quase três anos de
prática nos esforços musculares, suas tristezas, alegrias e dificuldades. Presta atenção nos
frequentadores que levantam seus pesos na base do sacrifício, suados e cansados. Vê San-
torini e os outros profissionais orientando os inexperientes, os aparelhos, barras e tudo que
há no lugar. De pé, apertando mais firme sua luva direita que estava com parte do zíper
se soltando, de cabeça erguida caminha por entre as pessoas, autoconfiante e sem se im-
portar se estava sendo observado. Senta-se no voador, um aparelho cujas mãos agarradas
em duas alavancas laterais o faz puxar várias barras de cinco quilos presas à roldana. O
objetivo desse treino é desenvolver seu peitoral. Fixa onze placas com o gancho, segura as
duas alavancas e começa suas repetições, abrindo e fechando os braços.
E assim segue sua contagem, sentindo seu tórax contrair. Bastante concentrado
não no mundo, nem no ambiente e muito menos nos exercícios que estava a fazer, mas,
sim, concentrado em si mesmo, em seu universo interior.
129
O Poder da Honra
30
O TEMPORAL
12 de Fevereiro de 2009.
Um vento forte, com uma velocidade fora do normal, balança as árvores com inten-
sidade. Ninhos, folhas e galhos se espalham no ar, telhas voam de telhados e se espatifam
no assoalho, pessoas desesperadas correm pelas ruas para dentro de suas casas ou para seus
respectivos carros fugindo do temporal. Automóveis disputavam espaços com seus motoris-
tas à procura de um lugar para se esconder. A água escorre pelas lajes e canos de saída das
residências e comércios e segue para a entrada dos bueiros, que se enchem a cada minuto por
não suportar a quantidade de resíduos que a enxurrada empurra abertura adentro. Barulho de
trovões, moradores fechando suas janelas assustados. Junto a todo esse caos, Dionísio dirige
seu Pálio e Catarina, sentada ao seu lado, está apavorada. Ele a encontrou por acaso voltando
do seu curso e, como estava começando a chover, não imaginando que a tempestade poderia
piorar, ofereceu uma carona à amiga.
Guiando o carro em meio à ventania e toda aquela confusão, Dionísio é interceptado
por uma árvore que, com a pressão do vento, acaba de cair à sua frente, faltando pouco para
acertar o veículo. O jovem, temendo acontecer uma tragédia, dá uma ré, manobra e faz o
retorno enquanto a moça ao seu lado, aflita, morde as unhas presenciando todo o dilúvio
pelo vidro da janela do automóvel.
– Ai, meu Deus do céu, será que é o fim do mundo? Eu acho que nunca vi uma chuva
dessas na minha vida – clamou ela, alarmada com o que via acontecer à sua volta.
– Calma! Calma, Catarina! Vou dar um jeito, mas não fica assim, senão você vai me
apavorar também – suplicou o motorista, com dificuldade de enxergar à frente por causa
da chuva que embaçava o para-brisas.
Driblando o medo, com perícia e astúcia, o condutor consegue se desviar dos obstácu-
los. Mesmo com sua visão limitada, e por já conhecer a maioria das ruas da cidade, se auxilia
através de vultos distorcidos das paredes das construções e outras imagens que ele, há tempos,
gravou na lembrança por frequentemente passar por esses lugares.
Não tendo alternativa, sobe acelerado uma rampa que dá direto em uma das entradas do
cemitério. Dando uma freada brusca, estaciona o Pálio em frente à porta do sepulcrário, que,
embora esteja com o portão fechado, na sua fachada mantém-se um enorme espaço retangular
com teto e muros laterais, deixando os dois jovens e o automóvel protegidos de raios, chuva
e outros perigos. Os dois presenciam sozinhos toda aquela cena, calados e com frio. Como
Catarina sempre fora uma mulher exageradamente falante, daquelas que não suportam ficar
um minuto sequer de boca fechada, a não ser quando está com raiva de algo ou de alguém,
comenta algo com o rapaz para tentar quebrar o silêncio.
– Você não tem medo de ficar perto do cemitério, não? Buuuu! – brincou, cutucando
130
William R. Silva
Na animação, a mulher tenta chamá-lo para que ele se una a ela naquele momento de
descontração. Porém, em vão, pois o rapaz se recusa meneando a cabeça, mas se divertindo
com a visão alegre da jovem mulher.
– Vem dançar comigo, vem – tentou de novo, vendo o amigo ainda na negativa.
A música termina e inicia-se outra. Dessa vez, Catarina não continua sua coreografia.
Totalmente molhada, deixando um rasto de líquido pelo chão de concreto, semelhante a
uma sereia que acabara de sair do mar, a jovem atraente se dirige até o amigo e para diante
dele. Os dois se olham nos olhos, em silêncio por alguns instantes. Até que ele, não enten-
dendo a própria atitude, retorna a uma de suas mágoas do passado.
– Eu gostava de você, queria ser seu namorado e você me dispensou. Gosto do Ri-
cardo, ele é meu melhor amigo e não tenho nada contra ele, mas até hoje eu não entendi.
– disse Dionísio, olhando para a amiga, que, ao ouvir suas palavras, de satisfeita e alegre,
se altera para séria e melancólica.
Catarina, passando as mãos no cabelo com a finalidade de tirar o excesso de água,
reúne palavras para expor sua opinião. Ao som da guitarra de Paradise City, desvia o olhar
de Dionísio como se estivesse querendo se esquivar do questionamento e, também, por se
sentir culpada pelo acontecido.
Respira fundo e o fita com um olhar acanhado.
– Eu fui sua primeira amiga na época em que você era estran... que você era diferente,
quando não conversava com ninguém e não tinha amigos. No começo, me ajudou nas tarefas.
Eu gostava da sua amizade e continuo gostando, muito mesmo. Falo sério. Depois você mudou,
se esforçou, emagreceu e se tornou uma pessoa melhor – revelou ela com um sorriso amare-
lo. – Dio, você na época era o namorado que eu pedi a Deus, o homem que eu sempre sonhei,
romântico, carinhoso, amigo e atencioso. Mas não rolou a química, entende? Não me sentia
atraída por você. Não queria que tudo acontecesse daquela forma, mas eu já estava saindo com
o Ricardo bem antes de você se declarar, não tinha como evitar – prosseguiu ela, enquanto
Dionísio a escutava de rosto baixo.
Se achegando ao rapaz, olhando-o com um brilho diferente, dá um suspiro e diz:
– Mas, agora, eu vou te confessar uma coisa.
– Diga – imperou ele, vendo que a chuva começava, aos poucos, a estiar.
– A primeira vez que te vi com a Sílvia, eu senti um pouco de ciúmes – confessou a
moça, fazendo a respiração do amigo entrecortar.
Dionísio ouve tudo a mirando com espanto, se esforçando para que sua mente assi-
mile o porquê daquilo estar ocorrendo.
– De uns tempos pra cá, você está bem mais bonito do que quando te conheci. Está
um gato! – declarou ela, com um brilho no olhar.
O jovem, sem ter o que dizer, fica a encará-la, atônito com a revelação.
– Imagina se as coisas acontecessem de forma diferente, se naquela época, eu tivesse
feito a escolha certa? Talvez, nenhum de nós dois tivesse se machucado – falou ela, se en-
costando em Dionísio, deixando a parte da frente do corpo dele molhada e, assim os dois,
meio sem jeito, se olham fixos um no olho do outro.
Dionísio, não acreditando no que acontecia, tenta encontrar a lógica daquele momento.
Mas, em verdade, tudo o que acontecia ali de lógico não tinha nada. Catarina estava sendo
132
William R. Silva
guiada pela emoção. Em virtude disso, ele também se esqueceu de Sílvia, Ricardo e de seus
próprios temores. Os dois se beijam, desconectando-se da chuva, do vento, dos mortos, da
música Sweet Child O’Mine e de tudo à sua volta. Até que, por um repentino fluxo de lucidez,
Dionísio interrompe o ato, a empurra e se impulsiona para trás.
– Isso é traição. Não está certo, não está! – repreendeu ele, apesar de ter gostado.
– Ah, Dio, desculpa. Não sei o que aconteceu comigo, não sei mesmo – esclareceu
ela, com as mãos na boca, bastante envergonhada.
– Não esperava isso de você. Isso é atitude de gente traidora – declarou ele, colérico.
– O Ricardo é o meu melhor amigo, ele não merecia isso!
– Mas, por que traição? Eu não estou mais namorando ele e o safado do Ricardo
numa hora dessas já está com outra. E você terminou com a Sílvia. Se estivéssemos com-
prometidos, eu nunca teria feito isso, você sabe que não – volveu apreensiva, assustada
com a reação do amigo.
– Vocês não estão mais juntos? – surpreendeu-se ele, mirando-a nos olhos.
Catarina suspira e diz, com desânimo :
– Sim. Faz mais de uma semana.
– As coisas não são tão simples assim. O problema é que.... – interrompeu ele, meio
tímido – Eu ainda amo a Sílvia, apesar de tudo, não consegui esquecê-la.
– Meu Deus, não acredito que você ainda ama aquela mentirosa. Como pode ser tão
idiota assim? Fala sério, eu vi ela com o Murilo. Eu tenho certeza, não mentiria assim sobre
um caso tão sério, juro que não – clamou furiosa com a revelação.
– Eu sei..., mas é mais forte do que eu. Não consigo me livrar disso– revidou, vendo
a expressão de desapontamento da amiga.
– Dio, eu tentei te alertar, mas você não quer enxergar a verdade. A partir de agora não
te falo mais nada, mesmo se eu voltar a vê-la com outro. A verdade uma hora sempre apa-
rece. E cedo ou tarde vai descobrir quem é Sílvia de verdade – vociferou a garota, reinando
uma sensação estranha entre os dois, uma junção de sentimentos de amizade, amor, raiva,
receios, mágoas passadas, dúvidas e incertezas. – Faça o que você achar melhor, não tenho
nada com sua vida – disse ela nervosa, limpando a água que escorria pela face ao mesmo
tempo em que a chuva cessava e o dia se tornava mais claro.
Ele nada mais ousou dizer. Logo avista um Chevrolet Classic prata estacionar a cerca
de cinco metros dos dois. De lá, sai Marta, mãe de Catarina, uma respeitável senhora de
cabelos longos e um rosto meio pálido, por ter pensado que a filha estivesse acidentada ou
correndo perigo, devido ao temporal de antes. Avistando o casal, a mulher de vestido verde
oliva se aproxima da dupla, bastante descontrolada.
– Catarina, minha filha, você quer me matar de susto? Estou te ligando há meia hora
e você não atende. Você se molhou toda, hein? – esbravejou Marta, quase tropeçando por
causa da pressa.
– Nossa, mãe, desculpa! É que eu deixei meu celular no carro do Dionísio. Ele me
deu uma carona, mas não conseguimos sair daqui por causa do temporal.
– Então, vamos embora – ordenou Marta, fazendo a filha se despedir.
Um tanto emburrada por causa da atitude do amigo, a moça pega seu celular e se
dirige até o veículo.
133
O Poder da Honra
– Oi, Dionísio, muito obrigada por ter ajudado ela, viu? – agradeceu a mãe, enquanto
Catarina caminhava até o Classic.
– Não precisa de agradecer, não. Estou sempre às ordens – respondeu ele, sorrindo.
A mulher sorri em retribuição.
– Quando você ia lá em casa estudar com ela, eu torcia para que vocês dois namorassem.
Nunca disse nada, mas eu torcia sim – disse Marta, de maneira gentil. – O Ricardo é um bom
rapaz, mas vive fazendo ela sofrer. Se fosse você, tenho certeza que seria diferente.
Ouvindo a revelação da mãe da jovem, fica surpreso, olhando-a com admiração.
Indo embora e deixando o jovem ali parado, Marta se despede e dá as costas, ruman-
do em direção ao veículo.
Notando mãe e filha através do vidro do automóvel, vê Catarina o olhar pela última
vez, mostrando-se decepcionada. Escuta-se o ronco do motor, as duas vão embora.
Dionísio resolve não ir logo de início. Fica observando o movimento de pessoas varren-
do folhas e outros pequenos entulhos trazidos pela enxurrada de suas calçadas, ruas e varan-
das, além de postes com fios soltos, luzes queimadas e todo o prejuízo que o aguaceiro trouxe
ao pequeno município. Pensando e sentindo o beijo de Catarina, continua sem conseguir dar
uma explicação lógica para o que tinha se passado entre ele e a moça.
31
CONVERSA
ENTRE HOMENS
14 de Fevereiro de 2009.
É tarde da noite. Brasas na churrasqueira soltando faíscas iluminam parte do quintal
escuro. O som, de tão baixo, tocando melodias da banda Sepultura, quase não era percep-
tível aos ouvidos dos presentes. O aroma de carne se espalha no ar, alcançando o nariz dos
cinco homens sentados bebendo cerveja. A maioria deles ouvia distraída uma das histórias
de Nélson Átila, acomodado em sua poltrona predileta, na qual nem o próprio Dionísio
nunca ousou a sentar, mesmo quando está sozinho em casa.
Dionísio, Ricardo, Tiago e César se concentram em cada palavra que o homem rela-
ta. Imaginando cenas e sentindo todas as emoções do episódio, prestam atenção em todos
os detalhes. De olhos esbugalhados e bocas abertas, chegam ao ponto de esquecer a lingui-
ça, costelas, asinhas e a picanha quase queimando na grade.
– Nessa época, tinha mais ou menos a idade de vocês. Por volta de outubro de mil
novecentos e oitenta e seis, perdido pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro, não me lembro
ao certo onde e nem o que fazia por lá. Lembro que era de madrugada e estava à procura
de um bar para tomar uma cerveja e comer algum petisco – narrou Átila, dando uma rápida
134
William R. Silva
pausa para observar as carnes na churrasqueira e pensando em ir virá-las para que não se
queimem – Prostitutas se ofereciam em troca de dinheiro quando eu passava perto delas.
Não só mulheres, travestis também. E, para minha surpresa, muitos dos motoristas dos
carros que paravam pelo local, aceitavam fazer programas com elas ou eles, sei lá. Tinha
mendigos, pivetes e outros marginalizados da sociedade perambulando pelas redondezas,
mas isso não vem ao caso. O que me surpreendeu mesmo foi a tenebrosidade do lugar.
Confesso que fiquei com um pouco de medo de ser roubado, apanhar ou, pior, morrer pelas
mãos de alguém.
Cessando por um instante sua narrativa para pegar outra cerveja preta e encher seu copo,
reinicia o assunto após abrir a garrafa, pôr o líquido no copo e tomar o primeiro gole.
– Nesses tempos, eu era uma espécie de “porra louca” como dizem vocês. Não me
importava com nada e nem ninguém, só queria satisfazer meus desejos e prazeres e foda-se
o mundo. Mas, como qualquer outro, temia pela minha vida, não estava a fim de morrer.
Foi quando, andando pelas ruas e avenidas, encontrei um bar meio diferente, cheio de luzes
coloridas. Dentro havia algumas pessoas estranhas, mais garotas de programas, usuários de
maconha e bêbados. Mal tinha acabado de entrar, quando uma das mulheres se aproximou
de mim e...
O homem faz outra pausa para virar a carne na grelha e um dos rapazes, aproveitan-
do-se do silêncio, arrisca um palpite.
– Já sei, ela te chamou para um quarto. Aquele bar na verdade era um puteiro e estava
te cobrando um sexo – interveio Tiago rindo das próprias palavras.
– Deixa ele contar a história, caralho! – repreendeu Ricardo, dando-lhe um leve tapa
na nuca.
– Acertou na mosca, menos na parte do sexo – continuou o dono da casa. – Ela
queria me cobrar a entrada, disse que para entrar lá tinha de pagar alguns cruzados. Mas eu
recusei. Disse que não pretendia ficar, apenas entrar, comprar o que desejava e voltar para a
rua. Estava com pouco dinheiro no dia e não quis gastar à toa. Não disse mais nada. Depois,
literalmente desprezei a presença dela, como se ela não existisse, atravessei o cafofo, fui
até o balcão, comprei algo para comer e tudo o que queria e me dirigi para a saída – disse
o narrador, bebendo outra vez sua cerveja escura.
– E os seguranças? Não tinha seguranças lá, não? Eles não te pegaram depois? – in-
dagou César.
– Nenhum deles percebeu que entrei sem pagar. Quando estava quase saindo, a pros-
tituta novamente veio e me parou frente à porta, insistindo para que eu ficasse por lá mais
um pouco. Dessa vez, sim, ela me perguntou se eu não desejava ficar com ela – contou
Átila, balançando o copo transparente, movimentando o líquido escuro dentro.
– E o que você falou pra ela? – perguntou Ricardo, curioso para saber qual foi a
reação do contador da história.
– Você aceitou? O que você fez? – adicionou Dionísio, adiantando a face para mais
perto do pai.
– Olhei nos olhos dela e perguntei: “vai me pagar quanto?” – respondeu Átila.
Uma imediata sequência de gargalhadas é produzida pelo grupo de amigos.
– Qual foi a reação dela? – questionou Ricardo sorridente.
135
O Poder da Honra
– A mulher não disse nada, apenas ficou olhando pra mim e dando risadas. Acabei
ficando com a vagaba a noite toda sem gastar um tostão. Dormi lá e ainda tomei um café da
manhã no dia seguinte. Depois disso, continuei transando gratuitamente com ela por mais
ou menos umas duas semanas, enquanto estive na cidade maravilhosa. Todos os homens
de lá bajulavam aquela mulher, era a mais linda de todas. Ela era tratada como uma rainha
e eu a desprezei. Não tive a intenção, mas fiz. Então, naquele momento, eu percebi algo
que há tempos desconfiava – falou ele, tirando algumas carnes, colocando-as numa tábua
e cortando-as em seguida.
– E o que você percebeu? – indagou Tiago.
– A maioria das mulheres tem dificuldade em lidar com a indiferença masculina.
Elas querem ser sempre o centro das atenções – explicou ele, passando a bandeja de carnes
para Dionísio e fazendo sinal para que o filho sirva aos colegas.
– Saquei. É só eu desprezar e fingir que a beleza delas não me intimida, que vou
pegar geral. É assim? – tentou Tiago, mastigando um pedaço de picanha.
– Não! – respondeu Átila, olhando sério na direção do rapaz e abrindo a garrafa de cer-
veja – Mulheres costumam nos observar o tempo inteiro e testar nossas reações. Para elas,
conquista é como um jogo. Mas não pensem que elas sempre estarão te vigiando. Para elas te
observarem, primeiro você tem que despertar o seu desejo. Do contrário, elas nem repararão
que vocês existem. Mulheres têm mais tendência a reparar em outras mulheres do que em
homens. Para sua indiferença fazer efeito, ela tem que estar interessada em você antes. E outra
coisa, essa indiferença deve ser calculada. Se exagerar demais, terá o efeito contrário. – refutou
Nélson enquanto recebia a bandeja de volta das mãos de Dionísio.
– Mulher gosta é de dinheiro, isso sim – rebateu César, meio sem jeito de encarar Átila.
– Sim. É só você ter bastante dinheiro que está tudo resolvido. O que não falta são
casos de esposas de homens ricos que traíram seus maridos com o jardineiro, motorista,
bombeiro e outros infinitamente mais pobres que eles – volveu o pai de Dionísio, deixando
o rapaz sem graça.
– O que atrai mulheres então? Dinheiro, músculos, fama? O que as atrai? – incitou
César, na esperança de uma resposta plausível.
– Os seres humanos em geral, tanto homens quanto mulheres, buscam satisfazer suas neces-
sidades através do outro. Toda relação humana, por mais sincera que seja, é sempre uma troca de
favores – assegurou Nélson, fazendo uma espécie de sinal de aspas com as mãos.
– Não entendi – interferiu Dionísio rangendo os lábios.
– Vejam só vocês – continuou o homem de cabelos longos – Cada um aqui deve
possuir uma característica pessoal e única que agrega valor ao grupo, que faz com que um
goste da companhia do outro. Um deve ser o mais engraçado, outro mais inteligente. Pode
ter aquele que tem mais facilidade com mulheres e por aí vai. No fundo, não que vocês não
sejam amigos de verdade, mas todos se beneficiam com as qualidades que cada um tem.
Há uma relação de troca, de interesse mútuo – afirmou ele, olhando no rosto de cada um
dos presentes.
– Com todo respeito, o que é que isso tem a ver com pegar mulher? – interrompeu
Tiago, meio acanhado.
– Porra, mano, você é burro pra cacete, hein? – reclamou César olhando para o rapaz.
136
William R. Silva
– O que tem de errado na pergunta dele? Também estou na dúvida – retrucou Dionísio.
Átila segura o garfo com uma carne espetada. Observando o alimento, pausa sua fala
para aguardar o término da pequena discussão entre os jovens. Come a fatia de linguiça
e bebe mais um pouco de sua cerveja escura. Voltaram os três jovens a seguir o exemplo
de Ricardo, o único a se calar e ouvir a conversa sem fazer interrupções. Então, Átila dá
sequência a suas palavras.
– A mulher não se atrai pelo homem pelo que ele é, mas sim pela quantidade de ne-
cessidades suas que ele possa satisfazer. O rico sacia os desejos materiais e financeiros; se é
um bom amante, a satisfaz em seus fetiches emocionais; se é musculoso, chama atenção na
sua capacidade de fazê-la se sentir protegida; se é um homem firme e seguro em suas atitudes
e decisões, traz-lhe segurança; e se é famoso, poderá satisfazer sua ânsia por ser especial, se
sentir no topo, desbancar as rivais e ter certeza que seu poder de sedução é alto. Não são só
essas. Quanto mais vantagens o homem possuir, mais ele será cobiçado. O que vale não é
você e sim as necessidades delas que você possa suprir – explicou ele, ao mesmo tempo em
que os jovens concordavam balançando a cabeça.
– Não importa o quanto você a ame. Se você for um cara carente em excesso, que
não possui a capacidade de se autossustentar, se for um frouxo e não satisfizer nenhuma das
necessidades dela, ela nunca irá se interessar por você, ou melhor, amar você. Mas tudo o
que estou falando, todas elas irão negar. Esse tipo de coisa, você não constata perguntando
e sim analisado as relações sociais. Prestem atenção nos casais, pois, em todos eles, sempre
há uma relação de preenchimento de desejos internos. Por outro lado, não se desespere com
tais verdades, pois todo ser humano tem seus talentos especiais. Não é preciso ter todas essas
características que falei. Um homem magro ou acima do peso, sem fama, sem riqueza e sem
nenhum outro atrativo de poder, pode muito bem encontrar alguém que preste, basta investir
nas outras qualidades. Se sua garota o traiu ou não lhe deu o devido valor, não é por que você
não a satisfez e sim, porque ela não possui caráter. Nada justifica mentiras e traições – com-
pletou com uma voz mais grave.
Dionísio, por escutar aquelas palavras, se torna triste, pois no exato momento se
lembrou de Sílvia e a sua atitude desonrosa.
– Papo da hora esse. Estou curtindo pra caramba – admirou-se Tiago, se ajeitando
em sua cadeira.
Todos os presentes, concordando com o amigo, assentem com a cabeça, incluindo
Dionísio, que se sente cada vez mais atordoado em relação aos seus sentimentos confusos
a cerca da ex-namorada.
– Você não tem vontade de se casar? Quer ser só pelo resto da vida? – inquiriu Ricardo.
Dionísio, saindo do seu estado de distração, surpreso, olha rapidamente para o pai,
porque essa era uma dúvida que há anos ele tinha, mas que nunca teve coragem de pedir
ao genitor que a esclarecesse.
Feita a pergunta, Nélson Átila fica em silêncio por alguns segundos. Embora não
tenha se intimidado com a curiosidade do amigo do filho, foi pego desprevenido e essa era
uma resposta que devia organizar nos pensamentos antes de falar. Desse modo, continua
calado e os quatro rapazes ficaram à espera de sua resposta.
O homem de cabelos longos, com o auxílio do garfo, revira outra vez as carnes na
137
O Poder da Honra
grelha para que não torrem e se transformem em carvão. Voltando para o lado dos rapazes,
sentado em seu trono imperial, com um olhar intimidador para o autor da pergunta, um
sorriso discreto e munido de uma voz confiante, reinicia o diálogo.
– Em um casamento, há uma junção de sacrifícios e responsabilidades. Para ambos
ganharem, ambos devem perder, se é que vocês me compreendem. Enquanto o matrimônio
for concebido visando benefícios pessoais e não mútuos, irão fracassar. O que quero dizer
com isso? A união não deve beneficiar somente o homem ou a mulher, mas sim aos dois,
seus filhos e toda a sociedade. Todos pensam que a união é algo pessoal e estão completa-
mente errados quanto a isso.
Enquanto Nélson falava, os quatro o observam sem piscar os olhos, determinados a
assimilar tudo o que o sábio homem disser.
– E o que está acontecendo hoje em dia? Salvo raras exceções, pois nem todos são
iguais, podem botar fé no que digo, grande parte das mulheres de hoje não está à procura
de responsabilidades, renúncias e dificuldades. Casamento virou negócio e o juramento
sagrado se transformou em frases vazias que muitos dizem por obrigação ou para manter
o protocolo. E o que acontece meses depois? O “até que a morte os separe” dura menos de
três anos, o “na alegria e na tristeza” se transforma em sonhos frustrados e o “na riqueza
e na pobreza” se altera para a riqueza da ex-esposa e para a quase pobreza do ex-marido.
Átila pega uma bebida na caixa de isopor, retira o lacre e segue o discurso.
– Se quer minha sinceridade, eu acredito, sim, que muitos casamentos dão certo. Po-
rém, nem todos. Chutaria uma probabilidade de oitenta por cento para os que não durarão
mais que sete anos. Deixando os rodeios de lado e feitas minhas explicações, dar-lhe-ei
sua resposta. Pode até parecer irônico o que vou dizer, mas direi assim mesmo. Eu não
pretendo me casar porque respeito muito o casamento. Considero-o como uma das coisas
mais importantes na vida de um homem, de uma mulher e de toda a humanidade. Na mi-
nha opinião, o matrimônio deve ser para sempre, o juramento deve ser cumprido e tanto o
marido quanto a esposa devem fazer seus sacrifícios.
Paralisando mais uma vez o relato para tomar um pouco de fôlego, corta mais outra
carne e, como de costume, ordena que Dionísio, o único de pé encostado na parede ao seu
lado, sirva seus visitantes.
– Eu não me casei porque não tenho a menor vocação para tal e não quero correr
riscos, pois as possibilidades de dar errado são bem maiores do que o contrário. Se estivés-
semos nos anos cinquenta, poderia até pensar no caso. Mas, hoje me dia, o buraco é mais
embaixo. A junção de um casal é coisa séria, é sagrado e aquele que não o segue, desres-
peita a Deus, os pais da noiva, os seus e ele mesmo.
– Mas e quando não dá certo? – indagou César, recordando-se dos pais divorciados.
– Depende do que você quer dizer com isto. Quando uma mulher ou um homem sofre
acima do normal em uma união, se a mulher é traída, enganada e desrespeitada pelo marido
ou vice-versa, aí sim eu posso afirmar que esse divórcio foi boa saída. No entanto, se vocês
repararem bem, a maioria dos casamentos não termina por isso. A maioria alega que entrou na
rotina, acabou o amor, a relação esfriou e várias outras desculpas. Mas pensem bem, desde que
o primeiro casamento do planeta foi oficializado, seus integrantes sempre passaram por esses
obstáculos. Se fosse assim, ninguém, durante esses milhares de anos de existência, se mante-
138
William R. Silva
ria unido. E uma coisa eu garanto, tenho certeza que a avó, a bisavó e a tataravó de vocês se
mantiveram unidas aos seus maridos até a morte, e a minha e a de milhões de pessoas também
– concluiu Átila, sentindo suas vistas cansarem e uma fraca sensação de sono. Viu que todos
também estavam passando pela mesma sonolência, apesar de estarem imensamente satisfeitos
com a conversa.
Nélson Átila, por causa do cansaço do dia e devido ao consumo de bebida alcoólica,
não conseguia mais controlar o sono. Despediu-se da turma de jovens e foi para o seu quar-
to, deixando o filho no comando da casa.
Prosseguindo a pequena reunião de amigos, antes das três da madrugada, César e Tiago
se despedem e se vão. Passados mais vinte minutos, Ricardo, o último a ficar, num aperto de
mão toma seu rumo, sobrando apenas Dionísio. Pela primeira vez, sentando-se na poltrona de
Nélson, de pernas abertas, braços estirados e aumentando o volume do rádio, fica só, a pensar
sobre as palavras do pai, o beijo de Catarina e seu apego por Sílvia.
32
CORAGEM ALCOÓLICA
25 de Março de 2009.
A casa de Nélson Átila é uma residência modesta localizada bem a frente de uma das me-
lhores e mais movimentadas praças da cidade. No domicílio, há dois andares. No de cima, uma
grande sala, o primeiro contato que se tem quando alguém chega no lugar, nesta; um acesso que
dá direto para a cozinha. Entre a copa e a sala, um corredor que leva a mais quatro cômodos:
três quartos, o de Dionísio, o de Átila e outro para visitantes, que já foram usados por alguns
conhecidos do empresário, amigos de Dionísio e até sua própria mãe e sua irmãzinha mais nova
quando estiveram de férias em Realinópolis (exceto no dia em Maria Clara se escapuliu para o
quarto de Átila para “matar saudades” num dia em que o filho passou a noite na rua com ami-
gos) e por último, um escritório, um dos ambientes mais disputados, tanto para estudos quanto
para organização de trabalhos.
Na parte debaixo, a qual há uma escada no lado oposto a porta da cozinha, existe um
acesso direto para o quintal. Este espaço é razoavelmente grande, com uma área livre a céu
aberto e outra fechada: o que está abaixo dos alicerces, onde se encontra o ambiente de treinos,
ginásticas e estratégias de lutas. Com o saco de pancadas pendurado, um enorme tapete e outros
utensílios, é o lugar onde o pai, Dionísio e, às vezes, seus amigos costumam se reuniram para
passar o tempo, praticar esportes, ou no caso dos donos da casa, para se distraírem, treinarem
suas técnicas ou extravasarem a raiva. E é justamente neste cômodo, que Dionísio esta nesse
momento, sozinho, encostado na parede, bebendo sua quinta garrafa de cerveja. Refletindo,
triste e desconsolado. Quase uma dúzia de cerveja preenchia parte do compartimento do refri-
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O Poder da Honra
gerador e ele, depressivo, consumia uma a uma. Esta a se alcoolizar, pois por mais que tentou,
não conseguiu se desligar de Sílvia, a atração que sente por ela era forte demais. Sua auto estima
ainda é frágil e a traição da ex foi uma golpe forte demais contra seu ego. O jovem apaixonado,
submerso em seus pensamentos, fora do mundo, fora de si, a beira da loucura, meio embriaga-
do, meditava sobre sua vida, seus relacionamentos e outros assuntos pessoais.
Quebrando o estado de meditação, um sentimento de revolta o acomete com voraci-
dade. Suas sobrancelhas franzem e começa a ranger os dentes.
– Maldita! Por que não consigo te tirar da minha cabeça? – resmungou ele, como se
a estivesse vendo diante de si.
O celular em seu bolso vibra rapidamente e depois se silencia. Sem ânimo algum,
desce a mão no bolso e puxa o aparelho. Era uma mensagem, vendo quem a enviou, fica
surpreso: era Sílvia. Aquilo era coincidência demais, no início não teve reação, permaneceu
indeciso sobre a questão de abrir ou não a caixa de entrada. Apagou quase todos os contatos
que tinha da referida mulher, a deletou de suas redes sociais e deu fim a todos as lembranças
que tinha com a ex namorada. Queimou fotografias e destruiu objetos que a trouxesse de
volta ao seus pensamentos. Porém, o número do telefone continua gravado no seu celular. O
motivo, não compreendia bem o porque, talvez por fraqueza ou esperança de que tudo aquilo
fosse uma mentira, embora tenha certeza que não é.
Pensativo, não sabia se excluía a mensagem ou resolveria lê-la. Quase a excluiu, mas
sua curiosidade era mais forte. Depois de muito hesitar, prontificou-se a ler o recado.
”Dio, meu amor, o q q ta rolando? Pq vc não liga e não vem mais me visitar e me
deletou do seu orkut e msn? Há meses não me procura mais, estou com saudades. Por
favor, vem aqui na minha casa agora pra agnt conversa.
BJS, Sinto Sua falta!
Ass : Silvia, seu amor eterno S2“
Dionísio no início ficou indeciso quanto ao que fazer, não sabia se a ignorava ou se iria
até a casa da moça averiguar o que realmente ela pretendia, será que tudo não se passa de “jogos
de dissimulações” ou esta arrependida por tê-lo traído? Na situação a qual se encontrava, as pa-
lavras que acabara de ler, em outros tempos, poderiam deixá-lo plenamente feliz, mas naquele
instante, intensificou-lhe ainda mais a ira. Não imaginava que o mau-caratismo da ex-namo-
rada pudesse chegar a um nível tão alto, a ponto de se fazer de desentendida mesmo após seu
desmascaramento. Tem vontade de colocá-la em confronto com seus próprios erros, por outro
lado, existe uma parte de si que deseja desesperadamente beijá-la, abraçá-la e torna a tê-la para
si. Suas emoções eram cada vez mais confusas e o consumo exagerado de bebidas, aos poucos,
deixava-o ainda mais descontrolado. Por um estalo de racionalidade, friamente consegue arqui-
tetar um rápido e perigoso plano. Ergue-se do tapete e fica de pé. Com a face tomada pelo ódio,
dirigi-se até a geladeira, pega outra garrafa, retira a tampa e despeja o líquido goela abaixo.
– Ela esta pensando que sou idiota! Engano dela, vou-lhe mostrar quem realmente
sou – falou ele, sozinho, sendo guiado pela sua embriaguez.
Sentiu uma leve náusea, no entanto, foi passageiro. Recuperando a coordenação motora,
prepara-se para por a primeira parte do plano em prática. Saca outra vez o telefone móvel do
140
William R. Silva
bolso, disca o número de Ricardo e fica na espreita do amigo atender sua ligação. Três chamadas
foram o suficiente para que o rapaz o respondesse no outro lado da linha.
– Oi, Dio! O que você deseja, mano? Pode falar! – respondeu o atendente.
– Oi, Rick! Eu preciso que você me ajude numa coisa – disse ele, apoiando-se na
pilastra. – Mas tem que me prometer que vai ajudar, pois o assunto é sério.
– Do que se trata? Se não for algo perigoso demais, pode contar comigo!
Dionísio toma outro longo gole, lança a garrafa na lixeira e diz:
– Esse é o problema... O que pretendo fazer é, sim, algo perigoso.
uma rápida parada para reparar o lado de dentro dos bares, becos e outros lugares estranhos
e prosseguia ganhando caminho. Dionísio, mesmo sendo encarado por homens desconfia-
dos, não dava a mínima para os marginais. Muitos não gostando da atitude do jovem que
mais parecia um policial em dias de investigação, começavam a se mostrar incomodados
com a presença do carro rondando o lugar.
A vistoria é finalizada, Dionísio finalmente consegue encontrar quem queria : Murilo
Dalborg jogava sinuca num boteco de esquina. Parando o seu pálio na calçada da espelun-
ca, sai, abre a porta do passageiro e, com maldade, fita a passageira.
– Desce! – ordenou o motorista, fazendo a moça se assustar.
Sem compreender, a garota mira a fisionomia aterrorizante do rapaz. Sua expressão
a apavorava de uma forma que ela nunca vira antes.
– Meu amor, o que que esta acontecendo? Vamos embora daqui, não gosto desse lugar!
– suplicou ela, temerosa e de olhos abertos, mexendo e remexendo nos fios de cabelos.
Terminando de tomar o resto de sua cerveja e arremessando a garrafa para o lado, diz
outra vez em tom imperativo:
– Vai descer ou quer que eu te tire a força?
Com medo e um olhar de pavor, Sílvia se retira do carro, sem entender o que o ou-
trora namorado pretendia. Dionísio, num acesso de ira, fixa seus olhos revoltados no rosto
da garota e a pega pelo braço apertando-lhe o pulso esquerdo. Desprezando os berros e as
lamúrias da moça, se empenha em atravessar a rua enquanto alguns assistem a cena sem
fazer nada, atônitos com que se passava diante deles. Desviando-se de obstáculos, pessoas,
carros e motos, segurando a garota, ele partia em direção ao boteco.
– Para, Dionísio! Pelo amor de Deus, esta me machucando! – implorou ela, batendo
no pulso ao mesmo tempo em que seu detentor desprezava seu pedido.
Murilo Dalborg, um cara de aproximadamente um metro e oitenta e cinco, pinta de mar-
ginal, atlético e bastante tatuado, ao ver Dionísio entrar arrastando a jovem pelo braço, inter-
rompe seu jogo de sinuca. A princípio, o sujeito perigoso não esboça reação alguma, apenas
fica imóvel presenciando tudo, com um olhar diabólico e intimidador. Sem se importar com
Sílvia que chorava e gritava desesperada, apenas esperava os dois que viam em sua direção.
Todos no recinto, acompanhavam tudo, boquiabertos e sem piscar os olhos.
Dionísio, ao se aproximar do marginal, num super arremesso, lança a namorada trai-
dora na direção do homem tatuado.
Ajoelhada, a garota se encosta em um dos pés da mesa de bilhar e, envergonhada, abaixa
o rosto e começa a chorar. Agora para ela tudo fazia sentido, o ex-namorado tinha ciência de
suas mentiras. Havia armado uma cilada para ela e almejava acertar as costas com seu amante.
– Ai, seu babaca, está ai sua vadia, fica com ela toda pra você!– incitou Dionísio,
com bastante raiva.
A turma no boteco permanecia inalterada, embora temerosos do que poderia acon-
tecer nos eventos seguintes. Murilo era um dos indivíduos mais nefastos do pedaço, no
fundo, sabiam que aquilo não terminaria bem.
Sílvia continua a se lamuriar sem ter coragem de encarar os presentes. O marginal
pouco se importa. Murilo, de cara séria, quase pisando nas pernas da jovem no chão, da três
passos e para ante o rapaz que acabara de ofendê-lo.
142
William R. Silva
Ignorando totalmente o sofrimento da moça, os dois entreolham-se sem dizer nada. Dioní-
sio estava sob a adrenalina da raiva e também, sob efeito de álcool, se não fosse por esses fatores,
ele raramente teria coragem para fazer o que fez e muito menos desafiaria seu algoz.
– Escuta aqui, seu otário, tome cuidado com o que diz. Não sou nenhum mané para
aguentar desaforos de um almofadinha como você – provocou Murilo, no instante em que
dois dos seus comparsas, Raphael Tairone e Lipe, se uniram a ele. – No início eu não sabia
que essa infeliz namorava você. Ela quem sempre veio atrás de mim. Nunca insisti em nada
– relatou o bandido, mirando os olhos de decepção do jovem.
À essas alturas, Dionísio vendo os dois homens junto ao brutamontes, já começava a
medir o perigo da situação e a sentir a dor da verdade.
– Agora, se a sua namoradinha te enganou, te fez de corno perante a cidade inteira, a
culpa não é minha – continuou Murilo, fazendo-o recuar. – O problema é de vocês.
O marginal dá as costas, seus amigos permanecem encarando-o.
– Vou fingir que não escutei nada. Não costumo ser bom com as pessoas que me
ofendem, mas sou homem e posso imaginar como uma traição nos deixa atordoados – disse
ele, virando-se e pegando o taco de sinuca de volta. – Vá embora, pegue sua mina e suma
daqui antes que eu mude de ideia e quebre-lhe os dentes.
Dionísio, mesmo tendo a dupla de meliantes diante de si, grita colérico:
– É melhor ela ficar com você, os dois se merecem, dois lixos humanos. Um nas-
ceu para o outro!
Ao ouvir os insultos de Dionísio, Sílvia aos prantos, pensa em se levantar para defen-
der o namorado com medo de que ele seja surrado. Raphael Tairone e Lipe, imediatamente
rumam para a saída, a fim de impedir a fuga do desafiador.
Murilo, de forma súbita, parte para cima do inimigo e bate com força as mãos em seu
peito. Com o baque, Dionísio é afastado para trás, mas não se desequilibra.
– Te dei sua chance de escapar inteiro daqui e você não a usou. Agora você pediu pra
apanhar, seu babaca! – intimidou o agressor, adiantando-se até o rival.
– Murilo, pelo amor de Deus, não faz nada com ele não! – suplicou Sílvia aos choros.
Todos no bar se levantaram de seus lugares, inclusive um grupo de dois rapazes que
cheiravam cocaína numa das mesas. Alguns tentam fugir para a rua, mas desistem ao ver a
passagem bloqueada. O dono do bar fica sem reação. O brutamontes se virando para o lado
da moça, diz franzindo o cenho.
– Cala sua boca, esse rolo todo é culpa sua, e vê se para de chorar!
– Quero ver cantar de galo agora – incitou Lipe ante a porta.
– Estou me lembrando – comentou Raphael, também em frente ao acesso. – Esse ai
é o tal Dionísio que o Johnny fala, agora que caiu minha ficha.
– Anda, babaca, acaba com essa palhaçada logo! – desafiou Dionísio mirando-o,
sem medo algum.
Perdendo a paciência, Murilo lhe dá uma pancada nas pernas com o auxílio do taco
de sinuca e o golpeia com um chute na barriga, fazendo com que Dionísio tropece derru-
bando mesas e cadeiras e, em seguida, caia no chão.
Sílvia movida pelo medo, desespero e aflição, começa a gritar de forma escandalosa,
enquanto os presentes se mostravam apavorados.
143
O Poder da Honra
– Seu polícia, não estava rolando nada de mais não, parceiro. Era só uma lavação
de roupa suja, coisa de adolescente, saco – disse Murilo, bastante irônico, observando o
militar, junto aos dois comparsas que se divertiam com o mal comportamento do suposto
líder da gangue de delinquentes.
Átila e Ricardo olham Sílvia ajoelhada com desprezo por alguns segundos. Todos do esta-
belecimento, por estarem mais tranquilos, voltam imediatamente para os seus lugares.
– Estamos de olho em vocês – avisou um dos policiais, com o objetivo de intimar
Murilo e sua turma.
– Pode crer! – respondeu ele, rindo na cara dos militares e, depois, prestando
atenção em Dionísio.
Átila acena para que Dionísio o siga. Ricardo e seu filho seguem para fora do estabeleci-
mento. Sílvia se levanta usando a mesa como apoio, com os cabelos bagunçados, olhos fundos e
nariz vermelho. Sem ter coragem de encarar os presentes, passa por Murilo e o olha meio de lado.
– Desaparece, some daqui! – disse o marginal, apontando para a rua – Você já me
trouxe problema demais.
– Achei que você gostava de mim! – lastimou ela, bastante decepcionada.
– Gosto, sim, mas sem roupa – disse ele ao pegar outra vez seu taco de sinuca.
A jovem, atordoada, sai correndo, chorando baixo e com as mãos sobre a boca.
– Achei que vocês não viam mais, já estava ficando com medo – comentou Dionísio,
aliviado. – Obrigado por ter feito tudo como combinado, Ricardo!
Ricardo assente com a cabeça.
– Eu não disse que te ajudaria, não disse? – emendou ele, tocando amigavelmente
os ombros de Dionísio – Avisei seu pai e chamei as autoridades! Mas, pelo amor de Deus,
cara. Não me faça isso de novo!
Átila prende o olhar no semblante do filho e diz, impaciente:
144
William R. Silva
– Essa foi uma atitude extremamente irresponsável. Vamos ter uma conversa séria a
respeito disso. E outra, se sua namorada o enganou, por falta de aviso meu não foi.
Os três entram cada um em seus respectivos automóveis
Dionísio, dentro do carro, rapidamente olha para trás e vê Sílvia entrando na viatura dos
policiais. Como ninguém lhe deu carona, resolveu retornar para casa com os militares. No iní-
cio, sente pena da ex namorada, no entanto, uma frase escapa involuntariamente de seus lábios:
– Ela mereceu!
33
O QUARTETO
17 de Abril de 2009.
Thomas Bruso, cujo capacete preto com detalhes prateados reflete os raios de sol, com sua
jaqueta de couro, e botas, pilota sua moto pelo asfalto da BR. Mostrando-se um verdadeiro perito
nas curvas, desvia-se de carros, caminhões e outros empecilhos. O motoqueiro, como um vulto,
passa pelos condutores tão rápido que a maioria deles nem ao menos é capaz de enxergar a cor
de sua Hornet Cb 600. Atravessando a pista a cem por hora. Deitava a moto com a finalidade de
fazer a curva quase raspando a própria calça no asfalto quente. O homem, disparado, adentra um
dos acessos da cidade de Realinópolis, mas não segue a rua pavimentada como fizeram todos os
outros condutores. Ao invés disso, faz outra manobra e parte acelerado para a direita, entrando
assim, numa estrada de terra e soltando uma nuvem de poeira vermelha atrás de si.
Ao invadir um matagal, com o auxílio da potência de sua máquina, sobe rapidamen-
te um morro até chegar ao topo. Em seguida, desce uma pequena ladeira, tornando sua
roupa ainda mais suja com a poeira que fica no ar. Continuando a pilotar sua Hornet, vira
à esquerda e, depois de se desviar de árvores médias e galhos, cortando matos altos, faz
sua moto saltar e cair na linha férrea da antiga ferrovia, correndo os pneus sobre os trilhos.
Freia de forma violenta e, num giro habilidoso, estaciona a meio metro de Nélson Átila,
que o aguardava no local junto com Thales Delone.
– Como sempre, em cima da hora, hein, Thomas! Quanto tempo, meu caro! – saudou
Átila, contente em rever seu grande aliado.
Thomas Bruso tira o capacete e aperta a mão do velho conhecido.
– Igualmente. Sinto muito prazer em revê-lo.
– Será mesmo que o Sílvio Koren vai aparecer por aqui? – questionou Thales, aper-
tando a mão de Thomas Bruso.
– Vamos esperar. Duvido que ele falhe, o assunto é sério – disse Nélson Átila.
– Tem razão. Olha ele vindo – disse Thomas, apontando para um homem de aproxima-
damente um metro e setenta e cinco, olhos claros, cabelo castanho escuro, o rosto detalhado por
145
O Poder da Honra
– Sabe qual é a maior piada nessa história? É que esse merda quer algo que temos e
não sabemos o que é.
– Se queres pegar um cretino, passe a pensar como ele. Essa é uma das melhores lições
de vida que meu falecido avô me deu, o Senhor Nonô Korem. Que Deus o tenha – falou Sílvio
Koren, olhando para o céu como se estivesse cumprindo um ritual religioso, enquanto todos,
reparando na atitude cômica, dão um sorriso modesto, mantendo a seriedade.
Nélson Átila caminha pelos trilhos, reparando nos detalhes do lugar, todo o equipa-
mento danificado, metais enferrujados e olha, no alto da parede da antiga sede central, um
ninho de marimbondo e teias de aranhas. Após, diz o que deseja.
– Há alguns anos, nessa mesma ferrovia desativada, nós cinco construímos um sonho,
um objetivo em comum e Ernesto se mostrou um homem prestativo, de mil e umas utilidades.
Conquistou nossa confiança primeiro e nos fez seus aliados para depois atacar.
– Sim, isso já sabemos. Aonde você quer chegar com esse raciocínio? – interveio
Thomas, ao mesmo tempo em que os outros dois o olham também querendo respostas.
Átila, refazendo o caminho que percorreu e retornando para próximo do grupo, se
propõe a respondê-los.
– Ele não virá agora e é capaz de não vir tão cedo. Por quê? A explicação é simples,
ele está sozinho, sem aliados, sem planos “B” e sabemos muito bem que ele é bastante
inteligente. Se fosse um idiota qualquer, não estaríamos aqui temendo um ataque contra
nossas vidas, base e nossos familiares. Primeiro, ele irá atrás de aliados, depois de apoio e,
por fim, de uma estratégia. Só assim ele virá até aqui.
– E se descobríssemos onde ele está e o entregássemos para as autoridades de volta?
Duvido que ele esteja fora do estado – volveu Thomas.
– Onde poderíamos começar, por exemplo? – perguntou Thales.
Sílvio Koren, mexendo na vegetação com a bengala e fazendo aparecer uma lanterna
e uma câmera escondida instaladas estrategicamente no lugar, por entre folhas, galhos e
grama, diz sorrateiro, fazendo o som de suas palavras cortarem o ar.
– De todos, o que mais teve contato com ele fui eu. Lembro-me bem desse imbecil
dizendo que tinha parentes na capital. Eram sobrinhos, irmãos ou alguma coisa assim. Será
que não há alguma possibilidade desse paspalho estar por lá?
Escondendo novamente os objetos eletrônicos, olha em direção à central e diz:
– Nosso sistema de proteção. Temos que pedir ao Kageyama para dar uma conferida
nesses equipamentos.
Thomas Bruso rapidamente corre a visão no amontoado de folhas secas que, a pouco,
foi posto por cima do equipamento e diz num tom grave para os três:
– Éramos aventureiros, agora somos empresários, empreendedores, homens de res-
ponsabilidades. Se compararmos com o que éramos anos atrás, temos muito mais a perder.
Por outro lado, cedo ou tarde teremos que voltar à ativa. Mas, nunca devemos esquecer de
uma regra básica, nossa vida não é um filme, vivemos no mundo real e nem sempre ele é
justo, seguro e agradável.
– Jogar a isca e esperar o peixe fisgar. Não devemos ir até ele, faremos ele vir até
nós. Aqui estamos no nosso domínio, conhecemos a cidade de cabo a rabo, todas as saídas,
todos os esconderijos e as autoridades policiais, o prefeito e o próprio juiz estão conosco.
147
O Poder da Honra
Temos que trazê-lo para nosso território, pois aqui temos muito mais força. Se formos para
a capital ou qualquer outro lugar, teremos dificuldade – orientou Nélson Átila, encostando-
se ao muro da antiga sede e colocando as mãos no bolso.
– Bem pensado. Até mesmo porque procurá-lo na cidade grande seria como achar
uma agulha num palheiro – concordou Thomas, assentindo com a cabeça.
– Ótimo. Deve ser muito fácil atrair um psicopata demente, preconceituoso e racista
que se autoproclama o salvador da humanidade, que sonha executar seus planos através de
chacinas e atos imorais. Já sei, vamos montar uma associação de Serial Killers, Matadores
Honrados S.A e fazer propagandas na mídia. Assim ele vira até nós – comentou Sílvio
Stuart, gesticulando com os dedos.
– Estamos andando em círculos. Atraí-lo pra cá é desnecessário. É óbvio que, mesmo
que demore anos, cedo ou tarde ele vira até aqui. Temos que nos preparar para o problema
e não impedir que ele venha – disse Thales Delone ao ajeitar sua gravata.
Nélson Átila, olhando para o céu e percebendo que o tempo já dava os primeiros
sinais do anoitecer, começa a falar de modo um pouco mais apressado.
– Pode até ser, mas já ia me esquecendo de um detalhe. Eu conheço o irmão dele
das antigas, ele é um empresário de respeito lá em Belo Horizonte. O nome dele é Rogério
Tavares. Já fiz muitas transações com ele no passado, quando comecei meus negócios aqui.
Mesmo continuando a concordar que a melhor maneira é fazer Ernesto vir até nós, acredito
que o irmão dele possa me ser útil numa situação de emergência.
– Por hora, é complicado planejarmos uma tática de defesa. Não sabemos onde está e nem
o que ele realmente pretende. Sinto que o plano dele não é montar um grupo de assassinos racistas,
como disse o Sílvio. Deve ser só uma fachada para outro plano que não podemos saber, porque
se soubéssemos, o impediríamos. Queria pensar na possibilidade de que a polícia o trará de volta
para trás das grades, mas sabemos que o Ernesto é como um camaleão. É uma hipótese plausível,
embora difícil de ocorrer – explicou Thomas Bruso em tom de preocupação.
Sílvio Stuart, manejando sua bengala como se fosse uma arma de ataque, caminha
de um lado para outro, sentindo os saltos do sapato baterem nas ferragens ao mesmo tempo
que inicia sua fala de maneira enérgica.
– Iremos nos preparar e chutar o rabo dele. Homens com culhões não reclamam das
batalhas da vida, as aceitam de peito aberto e as enfrentam. No caso, ele e quem quer que
ele traga. Tenham certeza de que ele não voltará sozinho.
Átila, após baixar a cabeça e pensar por alguns segundos, diz com voz mais branda:
– Eu reuni vocês aqui não foi só para discutir sobre o transtornado psicótico do
Ernesto Rodrigues. Existe outro assunto de suma importância pra mim que há tempos me
aflige e que sei que poderei contar com vocês para me ajudar.
– E o que seria? Negócios? Problemas de saúde? – inquiriu Thales, apreensivo.
– Dionísio, seu filho, é ele sua preocupação maior, até mesmo maior do que o louco do
Ernesto – tentou Thomas Bruso, como se estivesse lendo os pensamentos de Átila ao mesmo
em tempo que este levanta a cabeça e o olha com surpresa e consideração.
– Problemas com drogas? – indagou Sílvio.
– Dificuldade em lidar com a autoridade paterna? – palpitou Thales, se virando para ele.
– Nem com drogas, nem desobediência e nenhum outro problema de relacionamen-
148
William R. Silva
to. Pra ser sincero, o problema é comigo – confessou ele ao caminhar pelo local.
Pairando uma dúvida no ar, todos silenciam por uns instantes para observar alguns
micos pularem nos galhos das árvores e, depois, sentindo o vento frio que movimenta os
longos fios capilares escondendo parte do rosto de Nélson Átila, assistem as nuvens com
seu fundo azul começarem a escurecer.
Com as mãos no bolso, o respeitável homem de cabelos longos para no meio dos três
com sua postura firme, olhar intimidador e diz o que deseja.
– Quando eu trouxe meu filho para cá, meu objetivo era, e ainda é, transformá-lo em
um homem de verdade, um legítimo Silverato. Queria fazer com ele o mesmo que fiz com
vocês dois. Treiná-lo para a vida, para a dor e para os desafios da vida e em relação aos
seres humanos e o mundo em geral. – disse ele se referindo a Thomas e Thales, enquanto
todos o escutam sem dizer nada e sem ação.
– Mas, há quase um ano, estou tendo um problema pelo qual nunca passei. Estou fraque-
jando. Não sou mole e nem complacente em relação a ele, mas não estou conseguindo fazer
com ele como fiz com vocês. Não estou conseguindo ser duro como deveria ser – confessou
ele, lembrando-se dos problemas amorosos e dos sinais de fraqueza do filho.
– Você quer que façamos isso por você? Quer um treinamento mais rigoroso para ele? –
disse Sílvio Koren, prestando atenção em Átila que concordava balançando a cabeça.
– Quer que o treinemos para ser um de nós, como você fez conosco? – perguntou Thales.
– Acontece que você o ama. Quando não se tem vínculo emocional, como foi no meu
caso e do Thales, é fácil ser duro, pegar pesado nas lições. – considerou Thomas, em sinal
de compaixão. – Conhecendo você como conheço, nunca imaginei que não seria capaz de
moldar o próprio filho, mas é compreensível.
– Mas, eu quero que o procedimento seja o mesmo que ocorreu com todos os outros.
Não é porque ele é meu filho que será diferente. Não são vocês que irão até ele e sim ele
que deverá vir até vocês, não importa o quanto isso demore – disse Nélson Átila, terminan-
do de vez o último assunto importante do reencontro.
– Pode contar com a gente para o que der e vier – disse Sílvio Koren enquanto Thales e
Thomas balançavam a cabeça, mostrando estarem de acordo com o que ele acabara de dizer.
34
TRAGÉDIA E MORTE
3 de Junho de 2009.
Eram cinco e quarenta e cinco da madrugada. Dionísio perdeu o sono e não conseguiu
mais dormir. Preocupação, não tinha nenhuma. Está se desapegando de Sílvia de forma gradativa
e, apesar de ainda não estar na universidade, mantém-se satisfeito com a vida. Dessa vez teve co-
149
O Poder da Honra
ragem e cortou os últimos contatos que tinha com a ex-namorada. Também não estava passando
mal. Na verdade, sua insônia não tinha causa alguma. Entretanto, durante todo esse tempo em
que esteve acordado, não conseguiu parar de pensar em Catarina.
Dionísio ainda insiste em encontrar o amor perfeito, a mulher de sua vida e vive
em função disso, é seu objetivo de vida número um. Ele é um jovem que se liga fácil a
mulheres com quem teve algum contato emocional. Anos atrás, quando pediu a moça em
namoro, se frustrou, mas agora talvez seja diferente. Ela lhe deu um beijo e o elogiou.
Para ele, isso era um sinal nítido de que suas chances são bem maiores se comparadas
com o passado. Sabia ele que Ricardo estava em outra e o caminho estava livre. Sua única
preocupação era a de que o amigo o considerasse um traidor. Todavia, tudo indicava que
ele aceitaria a união sem problemas, mesmo que o clima ficasse estranho entre os três. Em
nome desse sentimento que havia se manifestado entre ele e Catarina, estava disposto a
pagar o preço para viver sua tão sonhada história de romance.
Tudo o que aconteceu entre ele e Sílvia, na concepção dele, foi uma mentira, um
engano. Seu coração ainda dói quando lembra dela, pois fez de tudo para ser um bom na-
morado e mesmo assim fora enganado.
Ela se envolveu com um dos marginais mais imundos da cidade. É algo que, por mais
que reflita, não consegue explicar, é imperdoável. Deitado em sua cama, olhando para a lâm-
pada que ele mesmo acendeu, pensa na vida. Depois pega um dos seus livros, que está na mesa
ao lado de sua cama, e começa lê-lo, permanecendo nessa atividade durante mais de trinta
minutos, chegando a ver o dia amanhecer pela janela do seu dormitório.
Finalmente, a campainha de sua casa foi consertada, mas, para a sua surpresa, tocou
justamente naquela hora. Embora não esteja com desejo de dormir e nem cansado, estava sem
vontade de saber quem chamava lá fora, pois não eram nem sete horas da manhã.
– Quem será numa hora dessas? Fala sério! – reclamou ele ao pôr o livro de volta em
cima da pequena mesa ao mesmo tempo em que a campainha insistia em soar.
Sentindo o estrondo que ainda teimava em ecoar pelas paredes, coloca o travesseiro
por cima do rosto e continua a reclamar do barulho, desejando que o pai vá atender a porta.
Queria ficar na cama até o despertador ligar.
Concentrou-se um pouco no ambiente e percebeu que a campainha parou de tocar,
mas, ao invés disso, o que ouvia naquele instante era o sino da Igreja da Matriz, fazendo
com que o jovem fique preocupado e temeroso. Assim como todos da cidade, ele compre-
endia muito bem do que se tratava quando o sino da catedral soava as cinco badaladas. Era
uma forma de avisar sobre o falecimento de algum morador, uma espécie de condolência
em consideração ao morto, seus familiares e amigos.
Ainda jogado sobre o colchão, estranhamente começa a escutar pisadas fortes e ace-
leradas vindo em direção ao seu quarto. Sem pedir licença, Átila abre a porta e entra. Tiago
surge bem atrás dele. Os dois, calados, com olhares enigmáticos e aflitos, observam Dionísio
que, após um salto bem calculado, levanta-se da cama sem entender o motivo de seu pai
ter entrado em seu quarto sem bater e o porquê do amigo estar tão cedo em sua residência.
Confuso, sem conseguir assimilar o que significava aquilo, repara nos dois homens que o
olhavam pesarosos e em silêncio. Atordoado, começa a indagá-los.
– O que foi? O que está acontecendo?
150
William R. Silva
Catarina nada diz, apenas tenta afivelar seu cinto de segurança. Ricardo chega mais
perto dela, acaricia-lhe o rosto e lhe dá um beijo carinhoso.
Johnny, com os pés no acelerador e a mão na alavanca das marchas, dá o grito de
largada, quebrando o clima do casal.
– Vamos deixar o namorico pra depois. Entrou na BR, começou a corrida. Entendeu,
mané? Vamos pro pau.
Os dois fazem a manobra para entrarem na pista. Em contrapartida, Catarina
tentava inúmeras vezes conectar o cinto de segurança na trava e não conseguia. Ri-
cardo, sem se dar conta da dificuldade da moça, com os olhos fixos no Golf preto e
se preparando para seguir com o desafio, conforme ia se aproximando da BR, pisava
mais fundo no acelerador. Os dois, centrados na corrida, se esquecem de tudo e de to-
dos e se concentram nos próprios batimentos cardíacos, no zumbido dos motores e na
adrenalina correndo em suas veias. Ao terminar a manobra, os dois partem acelerados
um ao lado do outro. Dominando as marchas, seguiam cada vez mais velozes enquanto
Catarina, numa tentativa de desespero, insistia em conectar a peça na trava.
Raphael, aos gritos, incentiva o amigo a correr cada vez mais rápido. Johnny, deter-
minado, pisa fundo e faz seu Golf disparar cerca de um metro à frente de Ricardo, e este
entra pela contramão e tenta com mais rapidez se parear com o oponente e ultrapassá-lo.
– Caramba, meu Deus, esse cinto não encaixa, não encaixa – reclamou Catarina, afli-
ta, se remexendo no banco por causa do impacto e da velocidade com que o veículo corria.
Ricardo, sentindo seu automóvel voar, chegando a ultrapassar a marca de cem
quilômetros por hora e, planejando sair da contramão o mais rápido possível, consegue
se alinhar com Johnny. O rival, percebendo que seu Golf estava prestes a ser vencido,
na adrenalina do momento e com o objetivo de tornar a disputa mais divertida e acir-
rada, gira o volante para sua esquerda, fazendo com que seu carro atinja a lateral do
Ford. Desestabilizando-o com o baque, faz o motorista perder o controle da direção e,
em consequência disso, chocar-se violentamente com uma placa, amassando parte do
capô. Milésimos de segundos depois, com o efeito da pancada, dá três giros na pista,
deixando marcas de pneu no asfalto até capotar. Nesse exato momento, Catarina, que
estava solta no banco, bate com força a testa no para-brisas, morrendo na hora devido a
uma fratura no crânio, e Ricardo desmaia com a testa apoiada no volante.
Raphael, agoniado, contorce o pescoço, olha para longe e observa a vários metros o
automóvel tombado na pista. Grita afobado:
– Caralho. Porra, mano, o carro capotou. Fudeu, cara, fudeu!
– Merda, merda, não acredito. E agora, porra? E agora? Não sou mais réu primário.
Se me pegam agora, vou direto pra cadeia – berrou Johnny, aterrorizado, reduzindo a velo-
cidade de forma gradual até poder parar.
O delinquente, esfregando o couro cabeludo e vendo a tragédia que acaba de teste-
munhar, abre a porta e berra aflito, chutando a grama na lateral da pista.
– E agora, parceiro? E agora? Estamos ferrados.
– Cara, vamos embora. Logo aparece ajuda – clamou o motorista transtornado.
Entrando os dois no carro, saem tão acelerados que quase batem em um caminhão
que passava na contramão.
152
William R. Silva
O caminhoneiro, por se assustar ao ver o Ford tombado na pista, tenta frear o mais
rápido que pode, até parar a alguns metros dos jovens acidentados. O homem, desespera-
do, desce do grande veículo, quase quebrando a porta por causa da força que empenhou
para fechá-la. Olhando para os dois lados da BR, atravessa apressado e se depara com a
cena deprimente. O carro caído de lado, o motorista desmaiado e a passageira com a testa
ensanguentada. O homem, tremendo, pega seu celular e liga para as autoridades para dar
ciência do acontecido.
Atemorizado com os cacos de vidros espalhados na via, marcas de pneu, sangue
escorrendo pela porta esquerda e toda aquela imagem que se apresentava à sua frente,
chacoalhava as mãos, de nervosismo. Tinha dificuldade para teclar os botões do aparelho.
Lamuriou em voz alta:
– Meu São Cristóvão! Minha Nossa Senhora Aparecida! O negócio foi sério mesmo.
35
O ÚLTIMO ADEUS
O Funeral
(Um Dia Depois)
Dionísio, parado diante do caixão, não consegue se convencer de que aquele corpo
era mesmo de Catarina. Era a moça que vira feliz e sorridente dias antes, cheia de planos,
que amava animais e tinha o sonho de se formar em medicina veterinária. A moça a quem
tanto amou, a mesma com quem teve divertidas conversas, momentos alegres, a primeira a
querer amizade com ele na escola, aquela que vinha a sua procura nos dias de prova e supli-
cava para que ele passasse cola na hora dos exames e depois ambos riam de si mesmos por
perderem pontos errando as mesmas questões. Não fazia sentindo algum ver aquela face
com uma cicatriz na testa sendo envolvida por flores coloridas dentro daquela grande peça
de mogno. Parecia estar dormindo e ele, em pé como uma estátua, esquadrinhava-a com os
olhos, se autoenganando e dizendo que, a qualquer hora, a moça iria despertar do seu sono.
Não, Dionísio não quer acreditar. Pensa que é tudo um pesadelo, que cedo ou tarde
irá acordar, se levantar, trabalhar, cumprir sua tarefa e no fim da tarde irá para o cursinho
preparatório e lá estará Catarina com suas amigas, aos risos, estudando entusiasmada para
conquistar seus sonhos e objetivos.
“É mentira! É mentira!”, diz em seus pensamentos. Tem vontade de gritar, ajoelhar
ali mesmo e chorar gemendo no assoalho, mas nada faz. A anestesia do susto e a incom-
preensão do que se passava diante de si era algo atormentador.
O rapaz, pela primeira vez, presenciava o efeito da morte. Nunca antes tivera um
amigo, um conhecido ou quem quer que seja, tão próximo, que tivesse vindo a falecer.
Tudo era uma experiência nova, traumatizante e insuportável. Durante todo o tempo, pensa
153
O Poder da Honra
nela, em seus momentos felizes e no beijo que ela lhe deu naquele dia chuvoso, na porta
deste mesmo cemitério no qual ela adormecerá para sempre. Ricardo está em coma no hos-
pital, inconsciente, e Catarina estava diante dele, dormindo como um anjo no sono eterno.
Nunca mais voltará a ouvir a sua linda voz, seu cheiro feminino que o enfeitiçou durante
longos meses de ansiedade, paixões e inseguranças.
“Acabou! Catarina se foi para sempre”, pensou repetidas vezes tentando se convencer.
Por mais de cinco minutos, se pôs ali diante do corpo. Algumas vezes pensando sobre
ela, os momentos que passaram juntos, com os amigos, nas festas, nas baladas. Nos últimos
quatro anos, raramente Catarina deixou de participar desses seus momentos de alegria, mes-
mo estando com Ricardo, uma vez que este era figura constante em sua vida.
Não se aguentando mais de tristeza, sai a caminhar pela sala fúnebre. Passa por Mar-
ta, a mãe de Catarina, lhe dá um abraço e ela chora em seu ombro sem dizer nada. Depois
dá um aperto de mão no padrasto e também cumprimenta Pedrinho, o irmão mais novo,
que não parava de chorar. Dionísio, andando com as lágrimas prestes a transbordar e inun-
dar as narinas, vê muitas pessoas de diferentes setores. Eram moças, rapazes, professores,
diretores, vizinhos, amigos e vários outros que ele também conhecia, com expressões me-
lancólicas, comovidos com a tragédia.
Prosseguindo com o trajeto, ouve gemidos, choros, pessoas se locomovendo devagar
e vozes em meio a dezenas de pessoas, que, de tão baixas, não passavam de um murmúrio
incompreensível.
De longe, avista Nélson Átila usando um terno preto. Ele conversava distraído com
um dos tios da falecida, sem perceber que estava sendo observado por Dionísio. Cinco pas-
sos adiante, nota Sílvia aos soluços, chorando, com os olhos vermelhos e inchados, sentada
num banco junto à Cristiane, sua irmã mais nova. A ex-namorada, ao vê-lo, levanta-se e vai
em sua direção. Com os olhos lacrimejantes abre os braços, porém, quando tenta tocá-lo,
Dionísio a segura pelos braços e a impede de abraçá-lo.
– Tira essas mãos imundas de mim! – repreendeu-a, ao tirar as mãos da moça de seus
ombros, afastar-se dela e sair andando.
Sem se virar para trás e de cabeça erguida, deixou a moça envergonhada perante algu-
mas pessoas que interromperam suas conversas, lágrimas e tristezas para assistir a cena.
Novamente fica paralisado, mirando o portão. Chorando em silêncio, seu sofrimento
era muito mais interno do que externo. Suas lágrimas desciam sem gritos, sem falas, sem
lamúrias. Seu sofrimento era totalmente individual.
De uma hora para outra, começa a esboçar um leve sorriso em sua face, pois volta a
se lembrar do dia em que ele e Catarina estavam naquele lugar, na porta do cemitério, um
vento forte, água caindo pelo teto e ela dançando feliz, como um ser angelical. Pensa nela
girando o corpo ao som de November Rain, sua música preferida.
– Foi culpa do Johnny Caveira! – ecoou uma voz conhecida vindo de trás.
Por ter tido suas lembranças interrompidas, se vira e dá de frente com Leandro Ribei-
ro, um dos seus amigos da turma do colégio e companheiro de noitadas, que há tempos não
via. O responsável pelas palavras que acabara de escutar não era o mesmo rapaz de antes.
Havia algo diferente, de melhor. O antigo amigo passava a impressão de quem emitia uma
boa energia interior. Parecia mais confiante no modo de agir e em suas palavras. Em outras
154
William R. Silva
circunstâncias, Dionísio com certeza ficaria feliz em revê-lo. Mas, devido ao seu estado de
frustração, desilusão e amargura diante da não aceitação do falecimento da garota, apenas
sorri amigavelmente e dá um aperto de mão e um abraço no referido jovem. E cumpri-
menta Eduardo Dantes e Toni Stives, os dois já conhecidos homens que o acompanhavam,
membros da Equipe de Segurança Homens de Honra, a qual Leandro passou a fazer parte,
para a surpresa do jovem desconsolado.
Dionísio, após arquear as sobrancelhas, indaga-o com um olhar penetrante:
– Quem te disse?
Leandro examina a sua volta e, constatando que nenhum dos presentes escutaria sua
confissão, chega mais perto e diz em voz baixa:
– Tenho algumas informações de conhecidos meus que têm contato com a Gangue
dos Caveiras. O Johnny desafiou Ricardo para um racha. Não sei bem como, mas me dis-
seram que ele fez o carro do Ricardo capotar de propósito.
– Não entendi bem essa história, mas, se foi mesmo culpa dele, pode ter certeza que
ele irá pagar. Eu te garanto – prometeu Dionísio, secando as lágrimas do rosto.
– Estamos estudando uma forma de parar esses caras. Isso não vai ficar assim – disse
Leandro, tentando consolar o amigo.
Eduardo Dantes e Toni, simultaneamente, assentem com a cabeça em sinal de con-
cordância com a promessa.
Transformando seus olhos, antes melancólicos, em secos e cruéis, franzindo o cenho
e cerrando os punhos, Dionísio torna a fazer outra de suas promessas:
– Eu entendo a função de vocês, mas, independentemente disso, se eu o pegar pri-
meiro, ele vai se ver comigo.
Sepultamento
Como de costume, padre Jerônimo, com dificuldade para andar por causa da idade avan-
çada, cumprimenta todos os presentes, abençoa os familiares e, tendo seu altar já montado, se
ajeita no lugar com auxílio de duas beatas, um rapaz e Marisa, que à distância observa Dionísio
de soslaio, conversando com o amigo. Mas ele nem repara a presença dela.
O Padre, com o terço enrolado nas mãos, perante todos, ajeita a gola da batina, abre
sua bíblia e, com um semblante pacificador, inicia a cerimônia.
– Deus, o criador, fez todas as coisas, a água que corre nos rios, as árvores que enfei-
tam nossa cidade, o azul do céu, a noite e o dia, os animais e tudo o que há a nosso redor.
No entanto, há algo que, mesmo sendo difícil de entender, temos que aceitar, pois o senhor
tudo sabe e ele faz sempre o melhor para nós, sempre age de modo certo. E esse “melhor”,
para nós, nem sempre é o caminho mais agradável, feliz e mais fácil. Mesmo assim, conti-
nua sendo o melhor. Eis uma verdade divina.
Suspendendo a oratória, toma um gole de água no copo transparente posto sobre a
mesa. Recuperando o fôlego, segue a discursar diante da plateia silenciosa.
– Tudo na vida obedece seu ciclo de existência, as águas do rio correm para dar
vazão a outras, as árvores, secam, caem e dão lugar a novas raízes, o azul do céu escurece,
a noite e o dia se alternam e os animais morrem. Todos nós passamos por um ciclo, um
155
O Poder da Honra
tempo determinado e a jovem Catarina acabou de cumprir o seu. Está agora nos braços de
nosso senhor Jesus Cristo, sendo amada, acalentada por um amor imenso, um amor infini-
to, protegida na fortaleza celestial.
Jerônimo, perante choros e um clima de melancolia, pausa para beber outro copo
d’água e, assim, ao seu comando, todos começam a rezar o Pai Nosso.
Terminado a homenagem, os funcionários do sepulcrário carregam o caixão com a
ajuda de alguns rapazes e o padrasto de Catarina. Todos os acompanham numa procissão
de ruídos, desconsolo e lágrimas.
Em meio a dezenas de pessoas, Marisa, desviando-se de um a um, com objetivo de
alcançar Dionísio, vai andando depressa, pisando na grama, lápides e partes do chão do
cemitério. Com muito custo, se aproxima do garoto que reparava o grupo de homens se
preparando para deitarem o caixão na cova.
Marisa, ao parar no lado de Dionísio, percebe que o rapaz a olha e dá um sorriso
triste, como se fosse um sinal de consideração. A garota, totalmente sem graça e com pro-
blemas para formular sua frase por causa das emoções do momento que colidiam em seu
interior, diz, se voltando para o jovem deprimido:
– Dionísio, eu sei que esse não é o momento, mas...
– Pode dizer – falou Dionísio, distraído, olhando para os coveiros que cavavam o
resto de terra do buraco e vendo todas as pessoas passarem por eles e deixando apenas os
dois parados no lugar.
– Estão aqui as alianças que você jogou fora de dentro do carro. Sãos suas e estou
aqui para te entregar – revelou ela, ao colocar as duas alianças nas mãos de Dionísio, em
seguida indo embora apressada para acompanhar o Padre que consolava a mãe e os demais
familiares da vítima do acidente.
Dionísio permanece ali durante todo o enterro. Mesmo depois, ao perceber que seu
pai e todos os demais saírem do local, continuava lá, sozinho, a observar a lápide, após
a derradeira despedida. Parado, triste, chorando, sem perceber que o tempo fechara e se
armava para chuva. Sentindo a dor no peito, diz suas últimas palavras à amiga no seu
descanso eterno.
– Essas alianças poderiam ter sido pra você, poderiam... – murmurou ele, suspirando
e segurando forte os anéis, sentindo as circunferências apertadas na palma da mão e a garoa
atingindo seu rosto, lendo a descrição na lápide da sepultura.
156
William R. Silva
36
RESPOSTAS
14 de Junho de 2009.
– Por quê? Por que as coisas têm que ser assim? Minha namorada me fez de idiota,
meu amigo está em coma e Catarina morreu. Para sempre ela se foi – lamuriou Dionísio,
sentando à mesa e admirando toda a arquitetura da sacristia.
Seus móveis conservados, a luz solar irradiando da fresta da janela de madeira, as
vestes guardadas em um guarda-roupa de mogno, o antigo lustre com cúpulas de vidro
e uns poucos quadros religiosos, ocuparam, por um bom tempo, a atenção do visitante
melancólico.
– Padre, tem como o senhor me responder uma coisa? – perguntou entristecido, mis-
turando seu café na xícara sem a menor vontade de tomá-lo.
Padre Jerônimo, com dificuldade para erguer seus braços por estarem magros e can-
sados, abre toda a brecha da janela, deixando-a totalmente aberta, ficando satisfeito ao ver
os raios de sol entrarem ainda mais no ambiente, amenizando assim parte do mofo, bastan-
te comum em lugares fechados.
Após esse ato, pega a vassoura e varre alguns resquícios de sujeita no azulejo, os
recolhe com uma pá e joga tudo em uma cestinha de lixo. Na verdade, não há necessidade
nenhuma de que ele faça isso, seus auxiliares na maioria das vezes cuidam dessas obriga-
ções. Mas como sempre foi um senhor de bastante iniciativa, com o objetivo de aliviar as
responsabilidades de seus ajudantes, faz esses pequenos trabalhos.
Terminado tudo que estava a fazer, vai até a mesa onde se encontra o visitante, pega
um frasco de adoçante e pinga umas gotas em seu café. Começa a misturar o líquido com
bastante calma, com a visão pregada no rapaz cabisbaixo sentado à sua frente.
– Pergunte. Se eu puder sanar sua dúvida, será um prazer – aceitou Jerônimo, con-
forme misturava seu café.
– Se Deus é tão bom, tão justo e que ama todos com um amor que não cabe no tempo
e nem no espaço, por que então que ele permite que aconteça tanta coisa ruim? – indagou
angustiado, arredando a xícara para longe de si.
– Livre arbítrio, lembra disso? – sorriu, fitando o rapaz à mesa – Eu sempre falo
sobre esse assunto nas missas. Se um bandido pega uma arma, assalta um banco e rouba,
fere e mata pessoas, ele está usando seu livre arbítrio. Se Deus o impedir de roubar, estará
interferindo no livre arbítrio dele e isso o nosso senhor não faz. Se o fizesse, estaria indo
contra a própria palavra dele. E Deus é um ser perfeito, ele não vai contra suas próprias
ordens – argumentou o simpático sacerdote ao tomar um pouco de seu café.
– Não falo dos ladrões, dos assassinos, dos marginais. Não estou falando das pessoas
ruins, estou falando das pessoas boas. Elas não merecem o que acontece com elas, como o
157
O Poder da Honra
ocorrido com o Ricardo e a Catarina. Eu mesmo, desde meus sete anos, acontecem coisas
ruins comigo. Os meninos da escola debochavam da minha cara. Ana Júlia, o primeiro
amor que tive na vida, me enganou. Fui espancado, rejeitado, minha mãe se envergonhava
de mim, tive um monte de desilusões. Desculpa por eu falar tudo isso com o senhor. É que
estou me sentido vazio como se tivesse um buraco dentro do meu coração – descarregou
Dionísio bastante emocionado.
Jerônimo segura a cafeteira, derrama mais do líquido escuro na xícara e diz encaran-
do o rapaz:
– Meu querido amigo, quando acontece algo ruim com uma pessoa que amamos ou até
mesmo conosco, a impressão que se tem é de que o criador não esteve ao seu lado, que ele se
omitiu, mas... vou te contar um segredo – outro sorriso escapa-lhe dos lábios.
– Qual? – interrompeu com os olhos esbugalhados e uma voz fraca e depressiva.
– É justamente nesses momentos que Jesus Cristo, o Espírito Santo e todo o amor
celestial estão conosco. É quando o mundo parece que vai desabar, quando parece que não
há esperanças, que ele estará lá, dentro de você, esperando a hora de ser chamado – volveu
Jerônimo com uma voz entusiasmada. – Catarina se foi, mas ela está num lugar muito,
muito melhor do que esse. Ela morreu por que era hora dela, já estava predeterminado e
sobre isso não temos nenhum controle, temos apenas de aceitar.
– Se estava predeterminado, então não existe livre arbítrio. Há uma contradição, não
acha? – inquiriu o jovem depressivo ao apoiar o cotovelo na mesa e passar a mão sobre a testa.
– Você nasce e morre, isso é predeterminação divina, é algo que não está no nosso
domínio. Você vem ao mundo e se despede dele quando chega a hora que Deus determi-
nou. O livre arbítrio não tem nada a ver com predeterminação, são assuntos opostos. – res-
pondeu o Padre, gesticulando as mãos.
– E os terremotos, maremotos, enchentes, a fome na África, a seca do nordeste e muitas
outras catástrofes naturais? Há muitas tragédias que não foram da maldade do homem. Por
que Deus se omite em relação a isso? – insistiu, ajeitando-se em sua cadeira.
– O mundo, quando foi concebido, foi feito de maneira perfeita, com todos os recur-
sos disponíveis, mas a ação do homem tornou tudo desproporcional e desigual. Você sabia
que o mundo tem recursos financeiros e materiais o suficiente para acabar com as secas, a
fome e as desigualdades? O mesmo mundo que deixa a África, o nordeste e várias outras
regiões com fome é o mesmo que paga um milhão para um único jogador de futebol, o
mesmo que paga prêmios milionários de Mega Sena ou coisas do gênero e faz uma enorme
distribuição desigual de recursos. Não que o jogador de futebol e a minoria milionária do
planeta sejam os culpados pela desgraça alheia. Não estou falando de pessoas, mas de re-
cursos. Deus deixou recursos suficientes para suprir as necessidades de todas as pessoas do
planeta, o problema é que ele está mal dividido – esclareceu o educado velhinho.
Olhando para o rapaz desiludido, continuou.
– Constroem-se muitas casas e comércios e fecham-se, assim, quase todas as saídas
de água de um lugar. Isso, aliado aos entupimentos de bueiros causados pelas sujeiras que
as pessoas jogam nas ruas, os políticos que pouco se importam com a iminência dos peri-
gos e todas as negligências humanas, eu disse humanas e não divinas, resulta em enchentes.
Tudo isso se encaixa no livre arbítrio e, como te disse, as consequências de tudo isso cabem
158
William R. Silva
apenas aos seres humanos – completou ele arrumando as faixas de sua batina.
– Está bem, mas não me respondeu sobre os terremotos, vulcões e catástrofes natu-
rais – retrucou como se estivesse tentando encurralar seu interlocutor.
– A vossa senhoria já parou para pensar que nem tudo esse velho que está diante de
vós é capaz de saber? Parece-me que você está meio descrente em relação à existência do
criador. Ou estou errado? – perguntou ele sorridente e encarando o jovem.
– Perdão, é que ando meio desanimado da vida. Acho que não vale a pena ser bom,
ser honesto e ser justo. Quem quer ir pelo lado do bem, só se ferra – reclamou, com os olhos
úmidos de lágrimas.
– Sabe o que me fez lembrar agora? – falou o padre com um olhar enigmático.
– Não, o quê? – indagou Dionísio com uma voz apática.
– Da primeira vez que vi seu pai – revelou ele, lembrando do episódio.
dela e, se alguém se aproximou, é por que se sentiu envolvido com sua luz. Já parou para
refletir na possibilidade de que você possa ser um indivíduo iluminado com uma missão?
O seu maior erro foi usar sua luz de modo errado. Tente a partir de agora ir pelo reverso,
use sua luz interior para fazer o bem – finalizou o ancião, ao retirar a vela derretida, acender
outra inteira e deixá-la no castiçal, emitindo uma luz bem maior que a anterior.
– Ajudar as pessoas? Poderá isso me livrar desse maldito peso na consciência, essa
angústia sem fim? Tenho muito dinheiro, muitos planos. Será que tenho permissão para re-
começar tudo do zero, ressarcir as pessoas que prejudiquei, ir atrás do filho que abandonei?
Será mesmo que a vida me dará esse direito? – indagou Átila, com lágrimas escorrendo e
se virando para o padre diante da grande vela.
– Deixa eu te fazer outra pergunta. Será que você dá essa chance a si mesmo? A
resposta dessa pergunta não está em mim, mas sim em você – respondeu o idoso, no exato
momento em que as chamas do objeto de cera se tornavam ainda mais cintilantes.
*****
– Eu nem sabia que meu pai era capaz de chorar – surpreendeu-se Dionísio, ao inter-
romper as lembranças de Jerônimo e resgatando-o para o tempo presente.
– Seu pai chorou durante todos esses anos, você que não percebeu. A diferença é que
ele chora de fora para dentro e você chora de dentro para fora – volveu ele, ao caminhar
para fora da sacristia com Dionísio a segui-lo. – Recorda da primeira vez que veio aqui? –
perguntou ele, transitando tranquilo pelo altar, analisando imagens, a bíblia na mesa, jarros
e todos os outros itens.
– Lembro, sim, como se fosse ontem – respondeu Dionísio, com voz mais enérgica.
– Você tinha esperança nos olhos, suas pupilas dilatavam de ansiedade. Mas, essa ansie-
dade não era em relação às minhas palavras e sim em relação ao seu destino. Você tinha sede
de mudanças, sede de sentidos na vida. Carregava tristeza na alma, mas desejava mudar. Vi isso
em você – discorreu o padre, continuando a caminha pelo lugar, conferindo os objetos.
O visitante, cujos olhos estavam pregados na imagem de Jesus Cristo na cruz, no alto
da parede, indaga-o indeciso:
– E agora não tenho mais?
– Digamos que você esteja sobrecarregado. Pela primeira vez está passando por uma
daquelas fases, digamos, de queda de energia vital. Está desiludido, cansado de lutar. Algo
bastante normal. Todos passamos por isso, desde o mais sábio, o mais rico e o mais bem
aventurado dos homens até o mais sofrido e miserável de todos. A vida é como uma monta-
nha-russa. Você precisa cair rapidamente para subir com a mesma velocidade – explicou o
velhinho, prestando atenção no garoto que observava a escultura na parede.
Dionísio desce os degraus do altar, assenta-se num dos primeiros bancos e, fitando
o amigo religioso, diz:
– Aí é que está. Quando será que vou reunir minhas forças? Sinto-me fraco e vazio.
A sensação que tenho é a de que meus sonhos, minha força, minha vontade de viver tam-
bém foram enterrados naquele cemitério.
Jerônimo arqueia as sobrancelhas e o mira nos olhos.
160
William R. Silva
– Um menino de vinte e poucos anos me falando uma coisa dessas? – riu-se o padre
– Você pode ter passado por muitas dificuldades nos últimos tempos, mas te garanto que há
muito o que aprender, muito o que viver ainda. A questão não é a fase ruim em si, é como você
irá administrá-la, o quão útil essa fase será pra você – revidou o ancião.
– Queria perguntar só mais uma coisa. Juro que paro por aqui – disse Dionísio, apre-
sentando um sorriso triste em seu rosto.
– Pergunte o que quiser – diz Jerônimo ao descer as escadas e parar diante do jovem.
– Há algum tempo atrás, Catarina veio até a mim dizendo que sonhou que havia duas
pessoas mortas num acidente de carro. Ela até pensou que seríamos eu e Sílvia, mas, na ver-
dade, as vítimas foram ela e Ricardo. Será que Deus avisa as pessoas sobre os perigos através
dos sonhos? – indagou ao se levantar do banco e fitar os olhos do ouvinte.
– Embora eu acredite que a morte dela tenha sido algo inevitável, afirmo, não com
toda a certeza do mundo, de que pode sim ter sido uma premonição divina, mas não pela
vida dela e sim pelas suas. Isso é um aviso claro para demonstrar o quanto essa suas, di-
gamos, brincadeirinhas de correr com carros pelas ruas e rodovias são perigosas. Indica
que já tenha chegado a hora de parar, antes que outra tragédia aconteça – esclareceu ele,
aconselhando e ao mesmo tempo advertindo o garoto, que o olha admirado, percebendo
que o velho amigo sabia de suas disputas perigosas.
– Como você sabia que praticávamos racha? – perguntou Dionísio, curioso e envergonhado.
– Em uma cidade do tamanho da nossa, com menos de quarenta mil habitantes, não há
nada que o Juiz, o Prefeito, o padre e alguns homens influentes não saibam, incluindo seu pai.
As notícias correm no ritmo do vento – volveu Jerônimo, ao dar sequência à sua repreensão.
– Isso é verdade, uma grande verdade – concordou o jovem que repara, junto ao
Padre, as primeiras pessoas chegarem à missa. São duas de suas ajudantes que vão em
direção ao altar para desempenharem suas funções e preparar local de adoração, e alguns
fieis que se assentam em seus lugares para aguardar as primeiras palavras do líder religio-
so, iniciando-se assim mais uma das missas de domingo e, por outro lado, pondo fim à
conversa dos dois.
37
DESEJO DE VINGANÇA
21 de Julho de 2009.
Ricardo, com a pressão dos pulsos, arrasta a sua cadeira de rodas pela casa. Sua mãe
sempre está próxima, disposta a ajudar, mas ele faz o possível para não incomodar seus
pais. Não quer se sentir um peso na vida deles. Vai ao banheiro, entra na cozinha e abre
a geladeira à procura de algo para comer e beber. Arruma sua cama, deita-se e faz tudo o
161
O Poder da Honra
que pode para manter sua rotina. Atividades que antes eram simples, agora mais parecem
exercícios de autocontrole e superação.
Ele sofre por sentimentos de ansiedade, de alegrias se alternando com tristezas. Ale-
gria porque o médico lhe garantiu que suas chances de voltar a andar são acima de noventa
por cento. Por outro lado, está triste e arrependido. Desde o dia em que soube da morte da
namorada, não teve coragem de se olhar no espelho. Considera-se o principal culpado e
não há nada que tire essa carga de sua alma. Rodopiando as rodas com a força dos braços,
vai perambulando pelos cômodos de seu lar até encontrar a sala. Vai até o sofá, pega o
controle remoto e liga a televisão.
– Catarina! – repetiu ele quase todas as noites antes de dormir, como se estivesse
chamando-a de volta para o mundo dos vivos.
Teve sonhos com a moça. A imagem dela esteve tão frequente em seu subconsciente
nos últimos dias que ele não consegue mais distinguir a diferença entre sonhos, pensamen-
tos, sentimento de culpa e alucinações. A cena do acidente não sai da sua lembrança. Catari-
na estava ao seu lado tentando travar o cinto de segurança. Ele, na adrenalina da disputa, não
prestando atenção na moça aflita. Johnny Caveira pareando o carro ao lado do seu, ambos
acima de cem por hora. A pancada do veículo em sua lateral e seu Ford batendo numa placa
e saindo desgovernado pela pista, capotando e ficando tudo escuro à sua frente. Acordou
dias depois no leito de um hospital, sem se lembrar de nada. Recordando-se, aos poucos, da
tragédia, tudo isso vinha e voltava como flashbacks em sua cabeça, como um CD arranhado,
repetindo sempre as mesmas faixas.
– Johnny Caveira desgraçado, covarde, me assustou de propósito! – murmurou ele
baixinho, sozinho na sala, distraído e refletindo sobre tudo o que aconteceu até ser inter-
rompido pela voz de sua mãe vinda da varanda.
– Rick, olha quem veio te visitar – declarou a mulher ao entrar na sala acompanhada por
Dionísio, que o olha com tristeza e dó, não acreditando que o amigo, um sujeito forte, bem afei-
çoado e cheio de vida, quase um legítimo atleta, estava naquela situação de difícil locomoção.
– Que bom, achei que você tinha se esquecido de mim – brincou Ricardo, aos risos.
– Fiquem à vontade. Vou preparar um lanche pra vocês – avisou a mãe, satisfeita
com a visita do rapaz e indo para a cozinha.
– O médico disse que minhas chances de voltar a andar são boas, basta esperar al-
gumas semanas e verificar as possíveis recuperações. Depois, é só investir na fisioterapia
e pronto. Estarei de volta à ativa – afirmou Ricardo, entusiasmado, batendo as mãos nas
próprias pernas.
– Que bom! – devolveu Dionísio, com um olhar esperançoso.
– Sinto-me como se estivesse nascido de novo. Não imagina o quanto estou grato por
isso – confessou Ricardo, apertando a mão do rapaz.
– Pelo menos, pra você, houve segunda chance – as palavras involuntariamente escapa-
ram do íntimo de Dionísio. Com certa umidade no olhar, repara a expressão de Ricardo.
Embora Dionísio não tenha a intenção de crucificar o amigo, acaba por deixá-lo
atordoado com a frase, que mais pareceu uma pancada contra seu próprio peito. Como se
não possuísse mais a capacidade de falar, perde o sentido das palavras e fica a fitar o jovem
constrangido com certa dose de desespero e tristeza, atitude essa que chega também a con-
162
William R. Silva
– Então, era por isso que você no começo tinha medo de ser meu amigo, me olhava
com desconfiança? – indagou ele, fitando nos olhos do amigo.
– Eu não agia assim só com você, era com todo mundo. Estava traumatizado e não queria
mais ser surrado por ninguém, nunca mais. Prometi a mim mesmo. Mas, já te disse, esquece
esse assunto. Não vim aqui para falarmos disso – pediu Dionísio de cabeça baixa.
– E a Sílvia, tem visto ela? Já a perdoou? – perguntou Ricardo para desviar o assunto.
– Não e nem quero ver. Estou evitando passar perto da casa dela ou em lugares que
eu possa vê-la. Não quero ver essa ordinária nunca mais – disse Dionísio, em tom de revol-
ta, rangendo os dentes de raiva.
– Há bastante tempo ela se envolvia com o Murilo escondida. Ele sempre ficava
com ela e depois a chutava. E quando era chutada, ela sempre vinha para o seu lado. Ela te
usava como se fosse uma espécie de amortecedor, um apoio emocional. Mas, bastava ela
estar recuperada da humilhação, que corria atrás daquele marginal de novo. Quando fiquei
sabendo disso, custei a acreditar. Desculpa eu estar tocando nesse assunto cara, mas parece
que sua ex-namorada gosta de sofrer, de ser usada e chutada. Deve ser algum fetiche – dis-
se Ricardo ao balançar a cabeça negativamente.
– Você deve ter razão. Eu fazia tudo o que ela queria, levava ao shopping, no seu açaí
preferido, assistia filmes no cinema. Fazia todas as vontades dela em troca do seu amor e sua
fidelidade, mas ela jogou tudo no lixo. Você não é capaz de imaginar quantos sacrifícios eu fiz
por ela. Cheguei até a recusar o beijo da... – interrompeu ele, ao se lembrar do beijo de Catarina.
– Rejeitou o beijo de quem? Como assim? – volveu Ricardo, fazendo com que o
amigo fique paralisado à sua frente sem saber o que dizer.
– Deixa pra lá. É que esse assunto me tira do sério – disse Dionísio, saindo pela tangente.
– Uma coisa é certa. Fomos prejudicados por esses caras, esses malditos dessa tal
Gangue dos Caveiras. Temos que varrer esses malditos dessa cidade, temos que acabar
com isso de uma vez por todas – falou Ricardo, mostrando-se revoltoso.
– Mas, se nem o prefeito, o juiz e a polícia conseguem controlar esses caras, como é
que nós, dois caras de vinte e poucos anos de idade, vamos conseguir? As coisas não são
tão simples assim – disse ele, com a visão fixa no rosto do amigo.
– Cara, na moral. Não sei você, mas me conhece bem e sabe que nunca fui de levar
desaforo pra casa. Tenho fama de estourado na região não é à toa. Não estou falando de
vingança, briguinha de gangues, tretas do passado. Estou falando de justiça. A morte da
Catarina não vai ter sido em vão, não vai mesmo – revidou Ricardo, ao movimentar a ca-
deira até a janela e olhar para rua com uma expressão de ódio.
– Mentira! É vingança, sim. Não é questão de justiça, é muito mais que isso. Há anos
que o Johnny nos insulta, propõe esses duelos perigosos, nos fazendo arriscar nossas próprias
vidas. Me diz, cara, quantas vezes você acha que escapamos da morte? Quantas? Não foi uma
nem duas. Esses pegas sempre foram perigosos, você sabe disso. Sei que vai parecer ruim o
que vou te falar, mas espero que entenda. A morte da Catarina, em partes, foi culpa nossa,
minha e sua – discorreu Dionísio com certo desprazer.
– Sabe qual é a merda disso tudo? É que você disse uma verdade que me dói. Não
consigo me livrar dessa dor desgraçada, desse remorso que sinto – lastimou Ricardo, ao dar
socos agressivos na roda da cadeira.
164
William R. Silva
– O que você está sentindo é desejo de vingança. Eu sei como é. É uma espécie de
raiva que vai fluindo de dentro do estômago, uma mistura de ódio e paralisia, uma energia
negativa que envolve todo o corpo, abrangendo todos os músculos como se estivesse sem-
pre em estado de alerta, catalisando toda a energia da mente e respiração, um desejo latente
de atacar e destruir até ver seu oponente no chão – revelou Dionísio, lembrando de suas
aflições passadas. – Mas, escute o que vou dizer. Isso é ruim, faz mal. Meu pai e o padre
Jerônimo disseram que esse tipo de coisa nos deixa fracos fisicamente, mentalmente e es-
piritualmente. É uma verdadeira trava em relação aos nossos sonhos e desejos de superação
– concluiu Dionísio, em sinal de compaixão, apertando o ombro do amigo.
– Falar é fácil. Não é você que está aqui preso a essa cadeira. Estou de saco cheio
de ficar aqui nessa porcaria, cansado disso e de tudo que me atormenta dia e noite. Princi-
palmente essa maldita tragédia, a minha Catarina morreu. Morreu! – devolveu Ricardo, de
forma emocionada.
Com o efeito das lamúrias, Dionísio, em seu íntimo, reflete sobre as palavras ditas pelo
amigo. “Minha Catarina, minha Catarina”, lembrando em seguida que dias antes de sua morte
estava disposto a lutar pelo amor da garota, chegando à conclusão de que tudo indicava que ele
ou entraria em confronto com Ricardo ou teria de desistir dela pela segunda vez, se isso fosse
possível. Mas, na visão dele, se pudesse escolher, preferiria mil vezes que ela estivesse viva
com Ricardo. Nesse caso, ele seria o único dessa história a sofrer.
– Então, vamos fazer um trato. Você vai me prometer que vai esquecer desse assunto
de Johnny Caveira, gangues, acidente e tudo mais que te perturba, e vai se focar somente na
sua recuperação. Vai se reerguer e, quando estiver melhor, não importando quando isso vai
ocorrer, vamos procurar alguma forma de dar um jeito nesses caras. Prometo que te ajudo.
Tudo bem assim? – tentou Dionísio, em tom otimista.
– Tem razão. O passado já se foi e não há nada que eu possa fazer. Aceito o trato –
retribuiu Ricardo, com um brilho no olhar, intimamente agradecendo a Deus por ter um
amigo como Dionísio, embora não tenha coragem de dizer, por ser um rapaz extremamente
duro em relação aos seus sentimentos.
38
OS PRECURSORES
esperando os peixes morderem a isca, homens nos barcos movimentando os remos, patos,
gaviões e até lanchas e jet skis, para a surpresa dos visitantes, eram vistos perambulando
pela superfície aquática. Toda aquela paisagem, diante dos olhos de Ernesto Rodrigues,
mais se assemelhava a quadros pintados pelos mais ilustres artistas. Realidade e arte se
mesclavam diante da visão do fugitivo, que aproveitava sua liberdade naquele pequeno
povoado, lugar pouco provável para ser encontrado por policiais ou outras autoridades
judiciárias.
O homem, desconectado de tudo e de todos, com seus óculos escuros se contrastando
com os raios solares, sério, de cabeça erguida, observava a imensidão das águas, as peque-
nas ondas irem e voltarem a centímetros de seus pés. Munido do seu sorriso satisfeito e pose
de superioridade, acompanhava o movimento das canoas e lanchas que rodeavam o lago
provocando uma sequência de ondas circulares por onde trafegavam. Ernesto, sentindo o
cheiro da terra molhada, aprecia cada detalhe de toda aquela paz, harmonia e esplendor da
natureza, seguro de que nada e nem ninguém poderia levá-lo de volta para a penitenciária.
Ao se aproximar das ondas, que devido ao vento dessa vez estavam mais intensas, sente
a água fria arrepiar seus pés. Com um sutil movimento, retira os chinelos e caminha devagar.
Pega seus óculos escuros e lança próximo ao seu par de calçados. A cada passo, sentia seus
pelos arrepiarem por causa da sensação gelada em seu corpo. Mas não se importava, para ele
todas aquelas sensações de frio, calor, vento e várias outras sensibilidades sinestésicas eram
o êxtase da liberdade, um bem valioso que fará de tudo para não perder. Nem que para isso
precise enfrentar o mundo. Desviando-se de crianças que pulavam e brincavam no lago, afun-
da corpo envolto por uma percepção de arrepios até que sua temperatura se estabilize e entre
em equilíbrio com a água, transformando-se em um relaxante calor. Num impulso repentino,
mergulha no lago e retorna jogando gotas de água pelo ar ao sacudir a cabeça, fazendo surgir
uma grande franja em sua testa.
Parado em meio a todo esse cenário natural e reconfortante, sentindo a brisa, ao dis-
trair-se ainda mais, retoma as lembranças de um passado nostálgico.
Treinamento
(Agosto de 2001)
Thomas Bruso emitia um brilho de admiração no olhar, ao mesmo tempo em que, com
os punhos fechados, orquestrava sua posição de defesa e ataque para o próximo golpe. Do
seu lado esquerdo, Ernesto Rodrigues equilibrava-se na ponta dos dedos, corpo ereto, mãos
fechadas na reta dos olhos, cuja cor azul refletia sua alegria e satisfação por estar presenciando
aquele momento. Também ao lado direito de Thomas, Thales Delone, com uma das pernas
flexionada para frente, a outra diagonalmente para trás e o braço direito erguido com a palma
da mão aberta e a outra na reta da cintura, desenvolvia sua estratégia de luta. Ele sempre man-
tinha a sua característica sisuda, não demonstrando sua felicidade interior. Os três homens,
posicionados, aguardavam ávidos a ordem de seus mestres, Nélson Átila e Silvio Koren, a
uma pequena distância do trio.
– Andem logo, seus paspalhos. Arrebentem com essa porra! – ordenou Sílvio Stuart
Erick, preparando-se para se defender com uma das pernas levantada e punhos fechados e,
166
William R. Silva
ao seu lado, Átila, inerte. Nenhum ponto de partida para sua defesa e ataque, apenas espe-
rando os três pupilos virem em sua direção sem a menor preocupação.
Ao ouvirem a instrução, o trio parte decidido para cima dos dois homens. Enquanto
Thomas e Thales tentam golpear Sílvio. Ernesto, julgando que Átila estava desprevenido,
por percebê-lo em posição normal, prepara uma rasteira estratégica para derrubar o tran-
quilo lutador de cabelos longos. Silvio Koren, desviando-se dos socos, chutes e pancadas
frustradas de seus oponentes, uma vez que nenhuma delas acertava seu corpo, numa ve-
locidade singular escapa dos punhos de Thales e acerta a parte de trás da perna do jovem,
derrubando-o no chão. Ao se virar, dá de frente com Thomas. Segura-lhe o braço esquerdo
e lhe dá uma rasteira, provocando a queda do homem em cima do tapete. No mesmo instan-
te em que os dois comparsas foram nocauteados, Ernesto, ainda insistindo na vitória, im-
pulsiona os braços com o objetivo de acertar um soco no ombro de Nélson Átila, que, com
uma habilidade surpreendente, se põe em posição de combate em questão de milésimos
de segundos, segura os dois braços de Ernesto, neutraliza o corpo do rapaz entrelaçando
sua perna direta na dele, contorcendo os músculos de ambos e fazendo com que o rapaz se
espatife no enorme tapete azul.
– Lição de vida número dois: números não necessariamente significam força e poder.
Inteligência e estratégia, sim. De nada adianta estarem em maior número se, na hora da luta,
apenas dão golpes sem planejar. Atacar simplesmente por atacar não tem efeito prático nenhum
– disse Sílvio Koren, reparando nos três homens caídos, tentando se recuperar das pancadas.
– Lição de vida número três: sempre desconfie do seu inimigo quando ele se mostrar
indefeso diante de um suposto ataque seu, pois, na maioria dos casos, ele estará estudando
suas falhas e fraquezas e depois irá usá-las para te derrubar – completou Átila, com um dos
pés em cima do peito de Ernesto estirado no tapete. – Pelo jeito, se esqueceram da regra nú-
mero um, a de nunca, em hipótese alguma, se manterem caídos diante dos golpes da vida.
Vão levantar logo desse tapete ou querem que eu pise na garganta de vocês? – perguntou,
prestando atenção nos três que, em seguida, se apoiam com os pés para se levantar e dar
sequência ao combate.
– Não treinamos vocês para serem campeões de artes marciais. Não lhes ensinamos as
regras da vida para usarem contra os outros. – adicionou Sílvio Korem – Não vão se transfor-
mar nos melhores e mais sedutores homens do mundo. Nosso objetivo é treiná-los para a vida,
para os desafios, para as dificuldades e as batalhas que todo homem é obrigado a enfrentar
em sua existência, para que não sejam dominados pelas suas fraquezas. Não os ensinamos
essas coisas para que possam derrubar os outros, mas sim para evitar que sejam derrubados
e, se o forem, aprenderem a se reerguer o mais rápido possível – finalizou, ao golpear todos e
jogá-los novamente estirados no chão.
– Evitem ao máximo cair, façam o possível para não serem derrubados. Mas, quando
despencarem diante dos murros da vida, tentem aprender um bom ensinamento com o fra-
casso – advertiu Átila, observando os três outra vez tentando se reerguer.
– Tudo o que vocês disseram faz sentido, porém existe um fator importante que vocês
se esqueceram de considerar – interveio Ernesto, com um brilho diferente no olhar.
– E qual seria? Por um acaso tens uma carta na manga? – indagou Sílvio, contagiado
com a confiança que exalava das palavras do rapaz.
167
O Poder da Honra
******
– Há três minutos estou aqui te observando e você nem sequer reparou minha pre-
sença – falou Olegário, em frente ao lago, com seu rosto corado de sol, barba cobrindo
metade da face, óculos escuros e camisa xadrez, assistindo o homem que nadava desatento,
quebrando seu momento de reflexão e interrompendo suas recordações.
Ernesto o olha subitamente e se aproxima da área térrea.
– Quais são as boas novas? – questionou Ernesto, saindo da água, esfregando o ca-
belo e limpando o rosto.
O homem barbudo verifica desconfiado ao redor para constatar que não havia nin-
guém os ouvindo. Depois, virando a face para o cúmplice, prossegue a conversa.
– Seu sobrinho já sabe que você está livre, mas fiz como me orientou. Não disse a
ele nada sobre seu paradeiro.
– Fez bem, ainda não sabemos se ele é de confiança. E meu irmão Rogério? – inqui-
riu Ernesto Rodrigues ao recolocar os óculos e calçar seu par de chinelos.
– Ele anda preocupado com você. Não gostou nada de saber que você agora é um
foragido da justiça. Mas, assim como o seu sobrinho, também não sabe sobre seu paradei-
ro. – respondeu Olegário, falando com certa discrição.
Ernesto, estudando as pessoas entretidas, diz, penetrando as lentes escuras com a
visão turva:
– Isso é bom, muito bom! Desse problema, eu estou temporariamente livre, porém
tenho outros assuntos para que devo me preparar.
– E o que seriam? – volveu Olegário.
– O mesmo de sempre. Nada me tira da cabeça que os caras que me botaram na cadeia
sairão pelo estado com o objetivo de me encontrar – disse Ernesto, ao ajeitar os óculos no rosto.
168
William R. Silva
– Está aí uma coisa que não consigo entender. Você mesmo disse que gostava desses
caras como se fossem seus irmãos e os admirava. Mesmo assim, você os teme e deseja
tirá-los do seu caminho – questionou Olegário em tom de complexidade.
– É uma longa história. Foi graças a eles que fui parar naquela maldita prisão. Não
entendem que o que estou fazendo é para salvar o mundo desses vermes. Não me importo.
Seja quem for, não admito que atravessem meu caminho. Apenas isso você deve entender,
o resto é irrelevante.
– Você, junto com esse tal de Átila, Thomas e os outros dois que não me recordo,
criou um grande projeto. Você mesmo disse que teve muito orgulho em fazer parte daqui-
lo. Talvez, não seja como você está pensando. Acho que é muito mais provável que eles
estejam esperando você ir até eles, ao invés dos quatro virem até você.
– O que você está dizendo procede, e com certeza eu farei. Não agora, mas no momento
certo. Somos os precursores daquele projeto. Sei de tudo como ninguém, pois ajudei a cons-
truir. Conheço os acessos, saídas, sistemas de defesa e tudo mais daquele lugar. Mas, por hora,
tenho que me contentar em curtir minha liberdade aqui nesse povoado.
– E o Financiador, deu notícias? – perguntou o homem barbudo.
– Não. Esses dias ele anda meio ocupado, mas disse que logo entraria em contato nova-
mente – respondeu ele, indo até seu carro estacionado.
– Tudo bem, não vou me meter muito em seus assuntos pessoais. Vou embora, pois
ainda sou um agente de segurança penitenciária e amanhã tenho que ir trabalhar. Mas, an-
tes, vou precisar do dinheiro do cafezinho, se é que você me entende – disse Olegário, de
maneira irônica, fazendo um gesto com os dedos com o objetivo de lembrar ao comparsa
do pagamento de sua propina.
39
O FUTURO SOLDADO
30 de Agosto de 2009.
Era uma tarde de domingo como qualquer outra. O dia estava nublado e tudo in-
dicava que até o início da noite aquele terreno arenoso iria receber alguns litros de água
caídos do céu. Nélson Átila e Dionísio não se importavam, pois, se a chuva viesse, eles
teriam inúmeros lugares para se esconder. Não só por isso, mas também porque ambos
aproveitavam o dia de descanso na propriedade, que alguns dizem ser um rancho, outros
uma minifazenda, mas, para Átila, era um sítio e nada mais que isso. Era um lugar tranquilo
e sossegado, composto por uma imensa variedade de árvores frutíferas, ipês entre outras
dos mais variados tipos. Havia também cavalos, galinhas, pombos, pássaros, patos, gansos,
além de algumas poucas cabeças de gado. O Senhor Emanuel adora tirar-lhes o leite todos
169
O Poder da Honra
os dias pela manhã. Nessa propriedade também tinha um pequeno campo de futebol para
passarem o tempo de lazer, um minúsculo lago, uma rede na qual Dionísio adora cochilar
todos as vezes em que passa os dias por lá e, em outro ponto do rancho, uma piscina em
frente à casa que os dois usam como dormitório.
Tudo o que Átila deseja é ter uma velhice sossegada num futuro próximo. Pretende
ficar morando no sítio pelo resto de sua valiosa vida. Como qualquer ser humano, ele
compreende, sem temor algum, que cedo ou tarde irá envelhecer, suas vistas ficarão can-
sadas, suas pernas perderão parte da rigidez, seus braços ficarão mais finos e fracos, sua
voz se tornará rouca e sua energia vital terá que ser racionada. Átila nunca foi um homem
dominado pelos seus temores e, como tal, aceita o seu envelhecimento naturalmente, sem
queixar-se dele.
Em verdade, já está começando a se fadigar das batalhas, confusões, dificuldades e pre-
ocupações da vida de um homem do estilo dele. Em virtude disso, almeja deixar o filho no
controle de tudo o que possui e, para isso, durante todos esses anos o treinou para assumir o seu
lugar no comando das lojas, do seu sítio e de todos os seus investimentos e bens.
Conforme o tempo vai passando, pressente que o seu vigor físico, sua energia de
juventude e seu espírito aventureiro estavam dando lugar a um homem pacato e simples,
que nada mais ambicionava a não ser sossego e tranquilidade. No entanto, sabe ele que para
atingir a sua tão sonhada aposentadoria, para curtir o seu descanso, terá que cumprir aquilo
que talvez seja a sua última batalha, sua missão. Ele sabe como ninguém o quanto é dura a
vida de um homem igual a ele, que desafia os obstáculos, que corre atrás de seus objetivos,
que luta pelo que quer. Compreende que a paz eterna é a dádiva dos mortos, mas que a cal-
maria de espírito e estabilidade mental e financeira é possível a qualquer ser deste mundo.
Segurando a cela com uma das mãos e a outra firme no cabresto, guia seu cavalo, vis-
lumbrando a beleza do lugar. Aspira o cheiro de natureza, leite fresco e até o odor de esterco,
sem barulho de carros, sem fumaça de fábricas e sem a bagunça de jovens e adolescentes com
aquelas músicas que ele tanto detesta. Com a força dos braços, ajeita o cabresto nas costas do
animal. Após, num pulo certeiro se põe em cima do equino e sai a cavalgar pelo sítio, contro-
lando com competência e bom grado o admirável ser de pelos brilhantes.
Acumulando cada vez mais velocidade ao atiçar o animal, circula sem rumo pela
propriedade, sem objetivo de onde quer chegar. Apenas corre, desviando a cabeça de ga-
lhos de árvores, cercas altas e aves que sobrevoam. Desligando-se do mundo e entrando
em contato com a natureza, sai disparado, ouvindo os trotes, fazendo com que um vento
bata em seu peito e faça seus cabelos se espalharem pelo rosto devido à rapidez com que
comanda o adorável equino. Porém, reduz a velocidade até tornar o cavalo novamente
manso, pois, de longe, avistou Dionísio chegar também montado em outro dos cavalos que
vivem no rancho. Cessando a cavalgada e parando perto do filho, analisa o rapaz em cima
do animal e sua habilidade em conduzi-lo.
– Anda perdido por essas bandas? – inquiriu Átila, ao virar o cavalo e fazê-lo parar
ao lado do jovem.
– Não, estou aqui pensando sobre a vida, aprendendo a me conformar com certas
coisas complicadas – devolveu Dionísio, ao mexer o rosto e sacudir a mão direita no ar,
visando espantar alguns insetos que o perturbavam.
170
William R. Silva
– O que, por exemplo? – questionou ele, já sabendo qual seria a resposta do filho.
– Deixa pra lá, é assunto meu! – disse Dionísio, ao adiantar alguns passos à frente do
companheiro que estava a interrogá-lo.
– O falecimento da Catarina, Ricardo incapacitado naquela cadeira de rodas, sua
namorada vagabunda, nada disso é novidade pra mim – revelou Átila, sem se importar com
a cara de tristeza do cavaleiro montado.
– Se já sabia, então porque perguntou? – revidou o jovem com certa cautela para não
desrespeitar o homem de cabelos longos.
O cavaleiro se silencia por alguns segundos e, depois, fita-o de modo penetrante.
– Que tal se tornar um pouco egoísta? – sugeriu Átila com uma satisfação no olhar.
– Não entendi. O que você quer dizer com isso? – perguntou Dionísio, ao acariciar
o pelo do animal.
– Em vez de viver à procura do amor de uma mulher, aprenda a amar a si mesmo.
Coloque-se em primeiro lugar, dê um valor tão alto para si que nem mesmo você possa
calcular. Nada de se achar melhor que os outros, se considerar superior aos demais mortais.
Não é nada disso. Quero que aprenda a se dar a merecida importância. Esqueça os outros
por um tempo e concentre-se mais em você – aconselhou Nélson, reparando que o garoto
o escutava com bastante atenção. – Você não sabe, mas o amor próprio é uma das coisas
mais recompensadoras desse mundo. Ele nos mantém de pé, nos fortalece e nos amortece
quando há quedas, sem contar que as pessoas passam a nos amar e a nos admirar mais
quando damos a afeição necessária a nós mesmos – concluiu ele, ao mesmo tempo em que
olhava para o céu observando as nuvens cinzas.
– Eu me apego rápido demais, me apaixono com muita facilidade. Queria me livrar
disso – reclamou Dionísio de cabeça baixa.
Átila salta do lombo do animal, leva-o até uma nascente e, vendo que o cavalo come-
çava a beber a água que jorrava, diz de modo conciso:
– O seu problema nunca foi a Catarina, Sílvia e nem a tal de Ana Júlia. A questão é
você, seu inconsciente. Você as idealiza, cria uma imagem preconcebida de companheira
perfeita e passa a viver acreditando que a garota preenche suas ilusões. As três sempre
foram as mesmas, sempre tiveram seus defeitos e falhas. Esse tempo todo foi você quem
enganou a si mesmo. Em tese, não amou nenhuma delas de verdade e sim venerou a ima-
gem que você mesmo projetou.
– Por que eu sou assim? Queria ser como você e o Ricardo. Vocês dois parecem que
não se iludem com mulher nenhuma, nem quando amam de verdade.
– Nossas mães, minha e de Ricardo, elas sempre estiveram do nosso lado, nos deram
amor, carinho e atenção. Somando-se a isso, tivemos uma figura paterna e bons exemplos
de força masculina. Pelo menos eu, ainda novo, fui obrigado a pegar na enxada e ajudar
meu pai nas plantações e lavouras. O senhor Silverato não aceitava frouxidão de seus fi-
lhos, era páreo duro. Seus problemas são três, carência emocional não saciada na infância,
inexperiência e excesso de idealização.
– Então, me ensina a ser como você, me ensina a ser insensível – implorou ele, ao descer
do seu cavalo e copiando a atitude do pai, deixando o animal beber água na nascente.
– E quem disse que sou insensível? Eu sinto amor como qualquer pessoa normal –
171
O Poder da Honra
173
O Poder da Honra
III
A FORTALEZA
40
O MISTÉRIO DA FERROVIA
15 de Setembro de 2009.
Dionísio por diversas vezes tentou convencer os amigos de que o que aconteceu
com ele na ferrovia, com a visão do homem misterioso que se apresentara pelo nome de
Sílvio Stuart Erick Koren, fosse verdade. Contudo, sempre que tocava no assunto, recebia
gargalhadas, críticas e represálias, visto que, para todos, aquilo não passava de alucinações,
mentiras ou histórias de pescador, tipo as que o Senhor Emanuel adora contar aos mora-
dores da cidade.
Com o propósito de provar a Tiago e César que não estava mentindo e que realmente
o sujeito da ferrovia desativada existia, desafiou os dois a irem com ele até o lugar durante
a noite. Aceito o pedido, lá foram os três rapazes, pouco mais de quinze minutos faltando
para meia-noite, seguindo em destino à estação abandonada.
Dionísio, sozinho em seu Pálio, vai guiando os dois jovens, dentro de um Uno, pelo
174
William R. Silva
caminho escuro por entre matas, estradas de terra, galhos e outros obstáculos, que eram
visíveis graças ao farol dianteiro do automóvel, até chegarem ao local sombrio. Ao olhar
pela janela, se mostra meio temeroso em descer do automóvel, ao mesmo tempo em que
Tiago e César abrem a porta do Uno e começam a transitar pela linha férrea, aos risos e
deboches, com o objetivo de provocar o amigo.
– Ei, ô de casa. Senhor Negro Timbuca, aparece aê, porra! – gritou César dando
gargalhas, com uma garrafa de cerveja e uma lanterna em mãos.
Dionísio salta do Pálio e, clareando tudo à sua volta através do feixe de luz da lanter-
na, diz com uma expressão de pavor:
– Não brinca com essas coisas, mano. Estou falando sério.
– Essa porra desse Dionísio é muito louco. Esse cara viaja demais – zombou Tiago,
aos risos, bebendo um gole de seu ice, jogando a claridade de sua lanterna sobre os trilhos
e dando pontapés em pedregulhos no chão.
Tiago, esquadrinhando tudo à sua volta, sobe nos vagões enferrujados do trem e, es-
pantando ratos, lagartixas e outros animais, com bastante ironia berra, causando eco entre
as árvores.
– Aparece aí, seu fantasma, Negro Timbuca ou sei lá o quê. Qual era o nome do
sujeito mesmo? Sérgio, Sílvio Koroa, fala aí, Dio. Como é? Eu me esqueci?
O rapaz, amedrontado, guia-se até a entrada da antiga central e, lembrando-se de que fora
naquele lugar que vira o homem estranho pela primeira vez, espia pela brecha escura.
– É Sílvio Koren. Se diz Koren.
– Galera, não é por nada não, mas tem uma coisa se mexendo naquele matagal ali. – de-
clarou Tiago, apontando para um movimento estranho no meio da vegetação, deixando Dioní-
sio e César receosos e se preparando para fugir para dentro dos automóveis.
Os três rapazes, a passos lentos, se distanciam do ser escondido por entre os vegetais, te-
mendo ser algum animal perigoso ou até mesmo chegando a acreditar nas palavras de Dionísio.
Os dois começaram a dar crédito à história maluca do amigo sobre a existência de um fantasma
ou homem misterioso na antiga ferrovia. Quanto mais a agitação no matagal aumentava, mais
o trio se amedrontava. Até que os três, quase tropeçando nos trilhos, vão às pressas em direção
aos carros, abrem a porta e entram, para correr do suposto perigo.
De dentro dos veículos, os três ficam curiosos a observar a resolução do mistério.
Então, num salto sorrateiro, surge um gato com um rato cravado em sua boca, deixando
-os com o coração quase saltando pela boca. Segundos depois, caíram todos numa sessão
interminável de gargalhadas e gritos de deboche. Em razão disso, o animal com a presa
abatida em seus dentes, sai correndo entre as árvores por ter se assustado com a presença
dos visitantes.
– Vamos deixar essas baboseiras de lado, cara. É melhor a gente ir embora daqui.
Liga esse carro, Dio, e vamos dar o fora. É melhor encerrar essa brincadeira por aqui e
não se fala mais nisso – aconselhou Tiago, ao conectar a chave e ligar o Uno. Em seguida,
Dionísio fez o mesmo com seu Pálio.
Os dois veículos retornam à área pavimentada da cidade e todos, ao entrarem em
consenso, decidem encerrar a noite e ir cada qual para sua residência.
– Tchau, a gente se vê amanhã – falou Dionísio, fingindo se despedir dos dois comparsas.
175
O Poder da Honra
Desse modo, se desvia para a esquerda, simulando ir para sua casa. No entanto,
constatando que o Uno se distanciava na avenida até sumir de sua visão, dá uma pequena
ré, manobra e se põe outra vez no sentindo contrário. Há tempos planejava se esquivar de
Tiago e César e voltar para o local sozinho, com a finalidade de sanar a dúvida que há mui-
to o atormenta. Desde aquele dia, estava interessado em saber quem era aquele tal Sílvio
Koren, de onde ele veio e como puderam surgir aquelas luzes fortes e indecifráveis fazendo
o homem desaparecer num passe de mágica. Estava decidido de que seria esse o dia, nem
que para isso tivesse que ir novamente sozinho à ferrovia.
Não levou dez minutos para que Dionísio refizesse todo o trajeto até regressar no
sinistro ambiente de trilhos, vagões e ferragens obsoletas. Pega sua lanterna. Saindo de seu
Pálio, sabendo bem da periculosidade do lugar, se agacha enquanto clareia tudo a sua volta,
olhando desconfiado para os lados, apanha um pedaço grande de madeira para se defender
em caso de necessidade.
Percorrendo o lugar a pisadas lentas, cuja mão esquerda controlava a lanterna e a outra,
com o objeto em punho em posição de ataque e o tempo todo alerta com medo que alguma coi-
sa de ruim lhe aconteça, estremecido de pavor, enfrenta sua insegurança e prossegue na investi-
gação. Confrontando os próprios temores, segue em rumo à porta da antiga central e, tomando
uma coragem que nem mesmo pensava que tinha, entra no recinto escuro se orientando com os
feixes de luz de sua lanterna, quase se borrando de medo com o que via pelo caminho. Havia
uma cabine com vidro quebrado, mesas e cadeiras apodrecidas, roupas velhas de andarilhos e
mendigos, restos de comida, baratas, cadáveres de ratos e lixo de todo os tipos. Andando deva-
gar e olhando arisco para todos os ângulos, com as pernas bambas e adrenalina circulando forte
em sua corrente sanguínea e preparando-se para sair correndo dali se a situação exigir, continua
a sua excursão pelo lugar tenebroso.
– Meu Deus do céu, o que é que eu estou fazendo aqui? – clamou o jovem com sua
visão limitada. Apesar do medo, continua firme com o objetivo de se livrar da dúvida de
uma vez por todas, pois se lembrava bem de que o próprio Sílvio disse a ele que poderia
reencontrá-lo naquele mesmo lugar.
– Sílvio! Ô, virilzão, onde está você, homem fodástico? Não acredito que estou di-
zendo isto, que idiota que eu sou – disse ele ao reprimir a si mesmo. – Sílvio, ei, sou eu.
Não se lembra de mim? Vim aqui aprender o que você tem para me ensinar. Aparece aí,
cara! – insistiu aflito, clareando teias de aranhas e se assustando com morcegos perambu-
lando à sua volta.
“Ele disse uma coisa antes de sumir. Eu lembro, tenho certeza. Bem-vindo à vida real?
Será isso? Mas ele gritou, acho que tenho de gritar também. Deve ser isso.”, pensava Dionísio.
– Bem-vindo ao mundo real! – gritou ele na esperança de que as luzes apareçam –
Bem-vindo ao deserto do mundo real! – declarou outra vez, reparando a escuridão ao redor,
com os olhos esbugalhados, com uma mão segurando o graveto e a outra firme agarrada
na lanterna – Merda, nenhuma dá certo. É melhor eu ir embora daqui, devo estar ficando
doido. – disse para si mesmo, virando-se a fim de sair do estranho recinto.
Entretanto não completa seus passos, pois se lembra da frase correta e faz sua
última tentativa.
– Bem-vindo ao deserto da real! – gritou o mais alto que pode.
176
William R. Silva
Como resultado, faz surgir, não se sabe exatamente de onde, uma infinidade de feixes de
luzes pelo teto e pelo lado de fora do local, uma claridade tão forte que o faz ficar desesperado,
tropeçando e caindo no chão, arremessando sua lanterna e seu pedaço de porrete a meio metro.
Deitado e com as mãos sobre a cabeça, de olhos fechados, tremia desorientado, estirado sobre
o piso. Num surto repentino de bravura, retira as mãos da cabeça e se põe de pé. Percebeu que
nada de ruim havia lhe acontecido e todas as luzes haviam se apagado, exceto uma, que vinha
de uma porta aberta localizada bem à sua frente.
Passado o sobressalto e observando o acesso com sua enorme claridade, bastante
hesitante anda em direção à entrada e percebe que, para ingressar no lugar, necessitava
descer uma escada. Ainda abalado com tudo o que se sucedeu naquela pequena fração de
segundo, teme descobrir o que há naquela passagem desconhecida.
– Já que cheguei até aqui, vou até o fim – afirmou para si mesmo, decidido, ao pisar
no primeiro degrau, contrariando seus receios e reunindo coragem.
Andando devagar, degrau por degrau, esbaforido e com os olhos quase saltando do rosto,
dá sequência a seu deslocamento. Faltando pouco para chegar ao fim da descida, por descuido
ou medo, e calculando errado os passos, torce o pé direito em um dos degraus, perde o equilí-
brio e despenca por alguns segundos, até cair deitado num tapete azul, numa queda tão rápida
que nem sequer teve tempo de se assustar ou sentir a dor do impacto.
Admirado com o que via diante de si, não acreditava no que contemplava à sua volta.
Um lugar bem construído, paredes bem pintadas e uma limpeza de dar inveja a qualquer dona
de casa. Porém, naquela enorme sala, não havia móveis, janelas e nenhum outro utensílio do
lar. Estava totalmente vazia. A única coisa que se via eram algumas câmeras e uma infinidade
de portas com indicadores que provavelmente marcavam o setor de cada uma delas: Dicas
de academia e musculação, Salas de Debates, Filosofia, Religião, Relacionamento Humano e
muitas outras as quais ele lia entusiasmado.
Todas as portas estavam completamente fechadas. No entanto, sem que Dionísio saiba
o motivo, uma delas começa lentamente a se abrir ao mesmo tempo em que se ouvem pisadas
fortes e apressadas, vozes de homens conversando aos berros e um vento surgir daquela entrada
intitulada “acesso principal”. Logo em seguida, aparecem cinco homens na sala para recepcio-
nar o novo visitante. Dionísio, de boca aberta, sem graça e confuso, se lembra da fisionomia de
alguns daqueles homens. Ainda atônito com os últimos acontecimentos, fica de frente aos cinco
senhores e estes o observavam ainda em silêncio.
– Ótimo, mais um Juvena. Era tudo o que a gente precisava – reclamou um deles,
com olhar de desprezo.
– Ei, você não é o tal Tomy Calvino da equipe de segurança que rola nas festas da ci-
dade? Falando nisso, o que é Juvena? – perguntou Dionísio hesitante, reparando no quinteto.
– Ele quis dizer que você é um novato. Esse é o significado de Juvena – respondeu
um dos rapazes.
– Tomy Calvino é o cacete! Aqui não temos nome, não temos endereço, nem pas-
sado, nem presente. A única coisa que temos aqui é codinome. E o meu é Cobra. Vê se
aprende, moleque! – disse o outro em tom de superioridade.
– Não liga pra ele, cara, seja bem-vindo. Meu codinome é Ulysses, sou um dos admi-
nistradores daqui. Vem comigo! – ordenou o educado jovem de cabelo enrolado.
177
O Poder da Honra
– Cada um deles tem um codinome. Esse é o Cobra, o outro é o War, o careca ali
atrás é o Kageyama e este é o Predador. Temos mais alguns lá dentro e outros que agora
não estão presentes, mas vou te apresentando à medida que forem aparecendo – revelou
Ulysses, calmamente prosseguindo suas explicações.
– Deixa eu ver se entendi. Vocês são uma espécie de agentes secretos federais, tipo
aqueles americanos, uma entidade de super-heróis ou uma daquelas sociedades secretas
tipo Liga da Justiça, é isso? – tentou Dionísio entusiasmado.
Ao ouvirem a suposição do novo integrante, os cinco permanecem calados por uns
instantes, até que, quase em coro, todos iniciam uma sequência de gargalhadas.
– Que otário! Esse cara é meio bobão! – disse Cobra, dando sequência ao coro de risos.
– Anda vendo muito filme de ação, hein? Estou vendo que o barãozinho aqui vai ter
que te dar umas pancadas na mente pra ver se você fica esperto – disse o homem careca
em tom de sarcasmo.
– Não se preocupe com a trolhagem desses caras. Por enquanto não diga nada, apenas
me siga que te passarei as instruções – avisou Ulysses que, terminando de dizer as seguintes
palavras, entra pela porta de acesso principal e todos os demais fazem o mesmo.
Dionísio, ainda sem compreender o que se passava, se mostra receoso em entrar, mas
não pretendendo voltar atrás e se esquecendo do seu carro do lado de fora, segue-os sem
saber ao certo o que irá encontrar pela frente.
41
O QUARTEL SECRETO
nada de errado ou ilegal? A cada passo, o novato se assustava com as novidades que sur-
giam diante de si. O sentimento de dúvida o faz interromper suas pisadas. Parou no meio
do percurso e ficou imóvel, reparando o grupo avançar no passadiço.
Ulysses, notando que o rapaz não mais o acompanhava, gira no calcanhar e vê o
principiante perdido no tempo, cujos olhos confusos impediam-lhe os movimentos.
– Por que não prossegue? Vai ficar ai parado? – interrogou ele, fazendo os outros
quatros se virarem e manterem os olhos fixos no novato.
– Por que eu deveria segui-los? Não sei o que é isso, do que se trata – contestou
Dionísio, ainda estático. – Como posso confiar em vocês? Mal os conheço e não sei nada
sobre esse lugar – as sobrancelhas do questionar franziram.
Os outros quatro se incomodam com a indecisão do iniciante, mas o administrador
se mostra complacente.
– Meu caro, se quiséssemos fazer algo de ruim com você, já teríamos feito. Não acha
? – Ulysses sorriu, prosseguindo sua fala – Somos vários e você um só, sem contar que o
acesso para o lado de fora não esta mais acessível. Precisamos do seu voto de confiança,
acredite, não lhe queremos mal.
Os demais seguem a caminhar, Ulysses o mira por alguns segundos e faz o mesmo.
Dionísio continuou desconfiado, entretanto, sua caminhada se reiniciou. Temendo per-
der os cinco de vista, a passos acelerados mais uma vez tenta, sem se entreter, observar o que
havia na maioria das salas. Ao se deparar com a janela seguinte, vê, sem entender do que se
tratava, uma quantidade considerável de cadeiras e mesas postas em círculos e um banco no
centro, que tudo indicava ser uma espécie de repartição onde as pessoas são julgadas ou pe-
dem um conselho. Caminhando com mais agitação, não resistindo o poder de sua curiosidade,
cessa seus passos ao ver um palco, alguns aparelhos de som e gravação e mais um monte de
cadeiras que se assemelhavam àquelas usadas em cinemas. Ainda havia muitas frestas trans-
parentes para ele averiguar, porém resiste ao desejo de descobrir as peculiaridades do lugar e
continua a perseguir o jovem administrador.
– É essa aqui. Chegamos – avisou Ulysses, em frente a um dos acessos, permanecen-
do somente ele e Kageyama.
Todo o resto, sem se virar para trás, se dissipa nas entradas subsequentes.
– Sala de monitoração e registros? – interrogou Dionísio ao ler a inscrição na porta.
– É isso aí! – confirmou o jovem de cabelos enrolados ao abrir a porta e entrar.
Dionísio novamente se imobiliza diante da porta escancarada enquanto Kageyama
adentra no setor. O estado de hesitação tenta controlá-lo, mas ele faz o possível para ig-
norar sua ansiedade. O administrador lhe passara confiança e, como já fora longe demais,
decidiu que iria até o fim. Almejava saber o que significava tudo aquilo e a curiosidade, se
sobrepunha aos seus receios.
Na repartição havia cerca de cinquenta televisores, computadores modernos, alguns te-
lefones fixos, dois arquivos, duas mesas com impressoras e aparelhos de fax, alguns papéis,
câmeras filmadoras e fotográficas para possíveis reparos, uma cafeteira automática, cadeiras,
geladeira, numerosos apetrechos eletrônicos e objetos geralmente usados em empresas.
– Eduardo Dantes? Você aqui? – admirou Dionísio, com grande alegria, ao ver o
dono da loja de games e eletrônicos – Me desculpe. Acredito que você tenha um nome
179
O Poder da Honra
particular também. Ou estou errado? – indagou ele outra vez, observando o homem que
dava um sorriso discreto.
– Ele é o Conde. Junto com o Kageyama, ele é um dos responsáveis pelos setores de
vigilância, reparos, monitoração, observação e análise de novos membros – interferiu Ulysses.
– Muito Prazer, senhor Conde! – saudou Dionísio, ao estender a mão em direção ao
homem de cavanhaque.
Conde apertou firme a mão do novato, que observava em volta curioso.
– O Prazer é todo meu, nobre confrade. Seja bem-vindo! – retribuiu o monitorador.
Dionísio, embora ainda esteja retraído, tranquiliza-se por ver mais um conhecido no lu-
gar. Alguns membros da equipe Homens de Honra e Eduardo Dantes, acabou por diminuir
consideravelmente o nível de estranheza que tinha a cerca do lugar. Continuava ávido por ex-
plicações, contudo, parte de seu medo já não o perturbava, sentia apenas um leve pavor do des-
conhecido, algo natural de qualquer ser vivente ante novidades inesperadas. Esquadrinha todos
os cantos do compartimento, revelando-se assim totalmente surpreso ao perceber que aquelas
centenas de televisores passavam imagens de todas as ruas e avenidas da cidade. Percorrendo
a sala de um lado para outro, tenta esclarecer a si mesmo o porquê de nunca ter visto câmera
alguma pelo município, inclusive na sua residência, visto que conseguia ver claramente a praça,
a rua e a fachada de sua morada através daquelas telas.
Vendo seu pai sair de casa e entrar em seu carro através de um dos monitores, ques-
tiona de boca entreaberta:
– Vocês monitoram toda a cidade? Por quê? Supervisionam dentro das casas e co-
mércios também?
– Prestamos serviços a entidades públicas em troca da concessão para funcionarmos,
além de alguns impostos, é claro – esclareceu Kageyama. – Ninguém sabe que nossa sede é
escondida aqui, mesmo assim temos nossas obrigações. Pode ficar tranquilo, não entramos
na residência de ninguém com nossas câmeras. Filmamos apenas o lado de fora. Nenhum
de nós aqui viu você se masturbar no banheiro, se for essa a sua preocupação – brincou, em
tom de ironia e um sorriso sarcástico.
Nesse momento, Ulysses servia café ao novato e este recebia a xícara de bom grado.
– Por que se escondem aqui? Por que não uma coisa mais à vista? – questionou o
visitante ao tomar um gole do café.
– Ei, o intruso aqui é você. Aqui somos nós que te fazemos perguntas. Tenha paci-
ência que aos poucos todas as suas dúvidas serão sanadas. Que tal? – sugeriu Ulysses com
meio sorriso na face.
– Tudo bem, me perdoem por isso – recuou. – Desculpem-me a desconfiança, mas faz
mais de dez minutos que estou me segurando para fazer essa pergunta. Quem puder me respon-
der, ficarei muito grato. O que na realidade são vocês? O que é isso e qual é o objetivo de tudo
isso aqui? – indagou Dionísio, ainda sem compreender o que estava ocorrendo.
– Estaria você preparado para conhecer a verdade dolorosa da vida, se sacrificar em
prol daquilo que você acredita e se tornar forte em todos os sentidos? – discursou Dantes,
reparando no jovem que o encara intrigado.
– Não somos nós que aceitamos você e sim você quem nos aceita – completou Ulys-
ses mirando o rapaz. – Uma vez que concorde em fazer parte do grupo, deverá seguir
180
William R. Silva
nossas regras. E a nossa regra principal é se tornar um homem de verdade, não ser um
acomodado de merda e lutar pela sua evolução, estudar, se esforçar e crescer na vida. Não
aceitamos preguiçosos, acomodados e fracos aqui.
Estudando cada parte da seção, mantendo o discurso e a interpelação de seus interlo-
cutores em mente, e estes à espera de sua resposta, retorna para próximo dos três homens,
que, com bastante discrição, esperavam que concluísse sua observação.
– Está disposto a se tornar um de nós? – insistiu Ulysses junto aos dois homens, que
aguardavam sua resposta.
– Como posso me tornar um de vocês se não sei quem são? – devolveu Dionísio, com
certa aflição no olhar.
De repente, o som de pisadas rumam em direção ao grupo. Todos se silenciam por
não saber quem se aproximava.
– Somos a exceção à regra num mundo ridículo, onde um homem se resume simples-
mente a um provedor ou um covarde que foge de suas responsabilidades, que, em sua maioria,
se torna um fraco e amedrontado perante os desafios de sua existência – falou alguém, fazendo
sua voz aumentar no vão da entrada. – Que, diferente de décadas atrás, perdeu toda a autoridade
no lar, gerando famílias desestruturadas, filhos marginais e filhas afundadas na promiscuidade.
Esse mundo onde qualquer manifestação de orgulho da masculinidade é rotulada de machista,
onde homens frouxos jogam toda a sua honra no lixo em troca de migalhas de sexo, dinheiro,
fama e poder, que preferem gastar toneladas de dinheiro e seu precioso tempo com carros de
sons, vadias e futilidades ao invés de investirem em si mesmos até a chegada da mulher decente
que honrará seu nome. Somos a oposição ao sistema, andamos na contramão, somos realistas,
somos guerreiros, soldados de honra ou qualquer outro rótulo que quiseres nos dar – finalizou
Sílvio Stuart Erick, surgindo por um dos corredores no alto da sala, que se liga a outros setores
da administração.
Movimentando-se apoiado pela bengala com bastante classe, se aproxima enquanto
todos o observavam com consideração, escutando cada palavra que o homem dizia como
se fosse um mantra sagrado.
– Sílvio!? – alegrou-se Dionísio – Finalmente o encontrei.
– Não importa quem somos e sim quem és e quem queres tornar-te – prosseguiu Sílvio – É
isso que definirá não só a sua permanência aqui, mas como viverá nesse mundo complexo de
agora em diante. Uma das principais condições para que um membro se mantenha aqui é a pro-
atividade. Se queres todas as informações a respeito desse lugar e sobre quem realmente somos
nós, tenho uma dica para você, seu paspalho. Temos inúmeros setores e uma enorme biblioteca.
Vá atrás das informações você mesmo e descubra. Mas não se esqueça que, como qualquer outro
lugar, temos nossas regras. Respeite-as! – avisou, ao olhar o rapaz e se agachar diante dele com
um sorriso engraçado, já que Dionísio estava três degraus abaixo dele – Aqui não damos nada de
mão beijada, nem mesmo informações. Tudo o que quiser terá que pagar o preço e se esforçar
para ter. A propósito, da porta de entrada pra dentro, meu nome não é mais Sílvio Stuart Erick
Koren. Aqui dentro sou Búfalo, ou Virilzão para os mais íntimos – seguiu seu discurso à medida
que descia a escada firmando o bastão a cada degrau.
– Assim como todos os membros, você terá seu codinome. Seja qual for, desde nome
de animais até personagens de ficção ou pessoas reais, esse apelido será sua senha de aces-
181
O Poder da Honra
so e sua autorização para participar de nossos projetos, cursos de defesa pessoal, filosofia,
relacionamentos e tudo o mais que temos aqui – intrometeu Conde.
Dionísio se sentiu meio zonzo com toda aquela sequencia de surpresas e explicações,
todavia; logo recuperou o controle de seus sentidos. Pensativo, procura na mente algum
nome plausível para se alistar no grupo misterioso.
– Meu pai me contou várias histórias de guerra, inclusive já me relatou sobre as
proezas do lendário sargento Max Wolf na segunda guerra mundial. Tanto meu pai quanto
esse sargento são grande fonte de inspiração pra mim – confessou Dionísio, com um brilho
inocente no olhar.
– Max Wolf? Legal. É um codinome bastante másculo – aceitou Sílvio, ao observar
o jovem com considerável estima.
– Regis-tro con-cluído, codinome Max Wolf, identificação de voz efetuada com su-
cesso – disse uma voz digitalizada, emitida de um alto-falante conectado a um dos compu-
tadores, fazendo com que Dionísio fique extremamente espantando com o estranho sistema
de registro.
– Ahan, já me registrei. Só isso? – volveu Dionísio, mostrando-se bastante confuso.
– Para te dizer a verdade, seu registro estava sendo efetuado desde a primeira vez
que entrou aqui. Suas digitais, sua íris e várias outras formas de identificações suas foram
coletadas sem que você percebesse – discorreu Ulysses, ao mostrar uma mancha de dedos
na xícara que Dionísio tomou café minutos antes. – Aqui todas as portas dão em lugares
diferentes e ao mesmo tempo em lugar nenhum. Todos os setores são interligados. Acom-
panhe-me! Tem outro lugar que quero que você conheça.
Ulysses rumou para uma das portas no corredor e Dionísio o seguiu segundos depois.
– Então, é esse o filho do lendário N.A? – perguntou Kageyama ao averiguar que os
dois já tinham se retirado.
– Exato, mas não vamos ser bonzinhos. Vamos fazer um treinamento duro com ele,
foi o próprio pai dele quem pediu. – confessou Búfalo, mostrando-se entusiasmado ao
rodopiar a sua bengala.
Conde, embora nada tenha dito, sorria e balançava a cabeça em sinal de concordância.
Na Sala de Conferência
Chegando na sala de conferência, uma das mais visitadas do quartel, Ulysses para
diante da porta e fica a observar toda aquela movimentação de homens perambulando de um
lado para outro, uns com livros em mãos escrevendo pautas importantes, de pé ou sentados,
outros dando socos e chutes em saco de pancadas, alguns sanando dúvidas de outros deso-
rientados, e jovens tímidos aprendendo como se portar, recebendo instruções sobre modo de
falar e desenvolvendo uma postura mais confiante. Dionísio, agora Max Wolf, transitando
pelo local, analisava vários rostos e conhecia cada um deles. Lendo seus codinomes escritos
em pequenos crachás presos em suas respectivas camisas. Lá estava Rubens, o menino que
ele agrediu com um soco anos atrás em seu primeiro dia de aula, a maioria dos membros da
equipe de segurança Homens de Honra, alguns adolescentes que se lembra claramente de já
ter visto na escola e muitos outros rapazes que conhecia de vista.
182
William R. Silva
Não se pode precisar, mas havia por volta de trintas homens transitando pelo lugar,
cada qual fazendo uma espécie de tarefa diferente. Em meio a toda aquela quantidade de
indivíduos, avista, a uma distância não muito longa, seu amigo Leandro separando uma
pilha de livros e colocando-os em uma caixa.
Ao vê-lo, corre animado em sua direção e começa a pronunciar o seu nome.
– Leandro, que bom te ver aqui, cara! – falou ele ao parar diante do amigo, que o
olha sem acreditar.
– Leandro não. Aqui meu nome é Lawlyet. Acredito que já esteja sabendo como
as coisas funcionam, não? – disse Leandro, mostrando-se bastante feliz ao ver Dionísio,
dando-lhe um abraço e desejando-lhe as boas-vindas.
42
FASE DE REVOLTA
15 de março de 2010.
Setor de treinos de luta e defesa pessoal
Seis meses voaram tão rápido quanto uma águia em busca da presa. Dionísio, desde o pri-
meiro dia, não passou uma semana sequer sem, pelo menos duas vezes, visitar o lugar escondido
na ferrovia. Com êxito, superou a fase de iniciante. Para todos os efeitos, era denominado agora
como membro intermediário. Familiarizou-se com muitas das regras e sistemas do ambiente, e
se sentiu bastante realizado com as lições que aprendera. Da mesma forma que qualquer membro
principiante, nas primeiras semanas aceitou muitas das ideologias sem questioná-las. Mas, nos
últimos meses, suas divergências se ampliaram. Sempre pronto para rebater os pontos de vista
diferentes dos seus superiores, dificilmente se convencia. Como em todo lugar com grande circu-
lação há, vez ou outra, pessoas que têm dificuldades de se relacionar e o Quartel não era diferente.
Por essas e outras, a rigidez do local se assemelhava a um reduto militar cuja hierarquia, quando
não respeitada, de pequenas a altas penas eram impostas. Todas elas sendo resumidas em dias,
semanas ou meses de expulsão ou privações de certas vantagens. Em verdade, Dionísio estava
passando por uma inquietação interna. Parecia que certas verdades acerca da vida e os problemas
que o rondaram nos anos que se passaram moldaram sua até então nociva forma de ser. Sem per-
ceber, emulou parte da figura autoritária que se transmitia no ambiente e, tudo isso aliado a seus
problemas internos, fez com que ele se tornasse um homem razoavelmente inflexível.
Na confortável sala, uma fileira de bonecos humanos sem braços se fixavam ao chão
cuja flexibilidade fazia-os oscilar com a pancada dos lutares. Sacos de boxe eram vistos
nas quatro extremidades do cômodo e, junto a todos esses apetrechos, finas barras de ferro
e outros instrumentos enfeitavam a parede azulada. Rapazes rodopiavam o chaco fazendo,
183
O Poder da Honra
com a agitação das pequenas correntes, o objeto rodear em volta de seus ombros; outros
praticavam com bastões de madeira visando aprimorar suas estratégias de ataque e defe-
sa; uns esmurravam o saco de pancas ou corriam de um canto a outro a fim de adquirir
agilidade corporal. Todo o resto golpeava os bonecos. Dionísio era um destes, a cada mo-
vimento de punhos, socava o rosto de plástico como se fosse um inimigo real, seus pés
se moviam sobre um enorme tapete redondo e, ganhando altura, empurravam o tórax da
estátua plástica para trás com a força da sua perna. Venerando a própria imagem no enorme
espelho, despreza a presença dos outros dez jovens que também treinavam no setor. Ele,
em sua visão, era o melhor dos atletas. Alternando os braços em socos certeiros, o lutador
treinava distraído. Gira o calcanhar, leva a perna para o alto simulando um chute que desce
na clavícula do oponente imaginário. Três rapazes, antes fora da arena, invadem o grande
tapete circular e também começam a praticar artes marciais. Dionísio, olhando de soslaio,
irrita-se ao vê-los próximos de si, atrapalhando-o em suas simulações de golpes, como se
a área fosse exclusividade dele. No fundo do salão, um menino franzino com luvas de boxe
observava tudo como se estivesse com medo de se aproximar.
Cobra (Tomy Calvino), um dos responsáveis pelo setor e que também estava no
ambiente, corre na direção do garoto como se planejasse atacá-lo. O sujeito franzino,
ao pensar que o treinador estava no seu encalço, assusta-se e se afasta com medo de ser
agredido. Há meio metro, o membro robusto lança-se no ar, provocando uma ligeira vo-
adora com o movimento da perna direita e cai em pé. De modo algum almejou golpear
o novato acanhado, aquilo era apenas o aprimoramento de uma técnica qualquer. Cobra,
ainda no calor da corrida, vira-se, ergue a outra perna e faz um movimento semelhante
ao golpe de meia lua, seu sapato atinge em cheio a face de um dos bonecos. Seus ataques
forjados são interrompidos, irritado, mira o jovem amedrontado e envergonhado com as
costas sobre a parede.
– Ei, novato? Não vai vir treinar conosco, vai ficar ai feito um merda, sem reagir? –
bradou Cobra – Aqui não é lugar para medrosos, se teme um simples treinamento, não tem
o direito de ser um de nós. Dê o fora daqui!
Todos fitam o superior truculento, mas sem ter coragem de questiona-lo. Dionísio
não queria interferir na conversa, mas se incomodou com a atitude do veterano.
– Acho que deveria falar direito com as pessoas – afrontou Dionísio, fazendo todos
se desviarem para ele. – Ele é apenas um novato, está com receio, apenas isso.
No fundo, Dionísio detestava ver meninos tímidos e desajeitados serem humilhados, pois
eventos como esses o faziam lembrar de si mesmo numa época distante, desamparado à própria
sorte. Situações de constrangimento como aquelas faziam-no sentir as mesmas emoções frus-
trantes que as vítimas. Esse era um dos principais problemas que não admitia.
– Que se dane o tempo que ele tem aqui – devolveu Cobra, enraivecido com a intromissão
e petulância do interventor. – Nós repudiamos a covardia e aqueles que fogem dos desafios são
covardes. Homens covardes são a escória da humanidade. Nosso sistema é rigoroso, frouxos aqui
saem pela mesma porta que entraram. Deveria já ter entendido isso, Max Wolf.
Max Wolf (Dionísio) ruma na direção do veterano e para diante do homem de costas.
Todos atentam-se ao confronto. O menino magricela, ainda sem se mexer, assistia ao embate
incapaz de reagir e Cobra nem nota a presença do interlocutor atrás de si.
184
William R. Silva
185
O Poder da Honra
Sala de Filosofia
–Vivemos em uma sociedade, é óbvio que temos que respeitar as leis de convivência.
É a regra básica da harmonia, do equilíbrio. Cada qual deve agir de acordo com suas obri-
gações e considerações – discursou o professor de pé ante os alunos, no mesmo instante
em que Dionísio invadiu o modesto cômodo. O líder da sala desviou o olhar para o novo
integrante, voltou-se para a turma e prosseguiu. – O problema é que nós nascemos com um
modelo de felicidade pré concebido, como se todos, desmentindo a teoria do livre arbítrio,
fossemos obrigados a seguir um único padrão de existência: Nascer, crescer, cursar o ensi-
no superior, casar, ter filhos, ter netos e morrer...
– Tem algo de errado em almejar isto? – interferiu um dos pupilos.
– De maneira alguma – devolveu o tutor. – E, para ser sincero, é até saudável. O problema
é quando as pessoas, em especial os jovens, vão por esse caminho para agradar aos pais, por
necessidade de aceitação ou por imposição. Isso é um erro! Decisões como essas devem ser
somente nossa e de mais ninguém. Quem vai ter que arcar com suas escolhas serão você. Nin-
guém irá lhe ajudar a sustentar seus filhos e socorrer você nas suas fases de tormentas. Case-se!
Estude! Siga o caminho da vitória e da realização! Mas, tenha total controle sobre suas vontades!
– Tornou a mirar o intruso, mas dessa vez, sorriu para ele em sinal de boas vindas. Dionísio re-
tribuiu com um aceno de mão – Agora, lhes pergunto – continuou ele. – Quem nos garantiu que
casamento, sucesso profissional em uma carreira a qual nunca sonhamos e a escolhemos sim-
plesmente por orientação errada ou por ânsia de dinheiro e status, seria a única e infalível receita
de felicidade? Há seres humanos que vivem bem junto aos seus conjugues e outros, que tem uma
relação conturbada. Existem solteiros felizes e solteiros infelizes. Há quem nunca pisou em uma
universidade e tem uma vida de alegrias e aqueles com doutorado cujo interminável estado de
descontentamento os corrói dia após dia.
Dionísio, prestando atenção ao debate, observa os cerca de vinte alunos postos sobre as
cadeiras. Nas mesas, cadernos e livros. As canetas nas mãos produziam frases nas folhas outrora
brancas. Anotações no quadro e as palavras do mentor tomavam a atenção dos aprendizes. Dio-
nísio viu que vários assentos no fundo do repartimento estavam sem uso. Acomodou-se em um
deles. Perdeu-se em meio às informações ensinadas pelo mestre. Não tinha nada para escrever
nem seguir a leitura da aula, estava sem material de estudos. Quando se preparava para pedi-los
ao chefe da classe, um dos garotos se vira para trás, e, levando a mão para baixo da mesa, dá um
leve soco para cima. A superfície de madeira se desgruda, Dionísio sorri sem graça, ao ver que
aquilo era uma tampa. Erguendo a tábua retangular, lá estavam os objetos didáticos: o livro, dois
cadernos, lápis, borracha e caneta.
– Buenos estudios! – sorriu o menino, surpreendendo-o com seu sotaque espanhol.
Não era ruim se deparar com estrangeiros no lugar, pois todos eles ou falavam fluen-
temente o idioma português, ou eram originários de países latinos cuja língua não diferia
muito da brasileira. Mesmo sendo poucos, gringos em sua maioria, empenhavam-se em
aprender tudo o que lhes era orientado. Na área de tecnologia, por exemplo, os únicos
frequentadores japoneses eram os que mais se destacavam. O hispânico se concertou na
carteira e continuou seu aprendizado.
186
William R. Silva
– Entendi – concordou um dos rapazes, fitando o tutor ante o quadro negro. – Você não
esta criticando a união matrimonial, a profissionalização e nem a busca por conquistas pessoais
pelos vários outros meios e sim, a falta de opinião própria ao optar por essas alternativas. Tanto
alguém solitário que ajuda crianças famintas na África quanto um marido dedicado que é fiel à
sua família podem se sentir contentes com suas respectivas situações e isso independe da for-
mação superior de ambos. O certo é procurar nossos dons e investir neles. Procurar algo que há
dentro de nós e usar esse talento em benefício da humanidade.
– É isso ai, rapaz! Exatamente! – alegrou-se o professor, batendo palmas de satisfação.
Dionísio, mesmo gostando da lições, não tinha a menor vontade de participar da
conversa. Apenas desejava se distrair e arejar a mente. Estava discretamente acomodado
no seu lugar, ouvindo tudo. Não escreveu nada no caderno, se o pegou, fora apenas com a
finalidade de ser aceito no grupo. Seu mau humor insistia em prevalecer, estava ali porque
queria ficar tranquilo e passar o tempo. Sua invisibilidade durou pouco, o educador, outra
vez, lançou-lhe um olhar penetrante, fazendo-o sentir-se incomodado.
– Há pouco, a classe acabou de ganhar mais um aluno. Espero que, a partir de hoje,
você esteja aqui presente em todas as reuniões semanais – falou o homem, dirigindo-se a
ele. – Qual é a sua identificação, meu caro amigo?
Todas as atenções se voltam para o novo membro.
– Max Wolf ! – respondeu, irritado.
– Muito prazer! Eu sou o Senhor X. Muitos acham graça do meu codinome, mas
pode ficar a vontade para me chamar assim – sorriu novamente. – Já que chegou agora,
diga-nos suas opiniões a cerca da nossa vida em sociedade.
– Que tipo de opinião? – respondeu Dionísio, com arrogância.
O conselheiro fez um gesto de mãos mostrando-se confuso.
– Sobre qualquer assunto. Casamento por exemplo. Qual sua opinião?
O cenho de Dionísio franziu.
– É coisa de idiota! – a resposta soou de maneira tão avassaladora que todos os pre-
sentes arregalaram os olhos.
– Meus pais são casados há mais de quinze anos e nem por isso são idiotas. Pelo contrário,
são as pessoas que mais admiro no mundo – revidou um dos pupilos, irado com a atitude.
– Os meus também – somou outro.
– Eu sou noivo. Então, no seu modo de ver, também sou um idiota, não é?– ajudou
um terceiro.
– Por que diz isso, meu caro? – volveu Senhor X, educadamente.
– Por que garotas não merecem o nosso amor e muito menos nossa dedicação. Elas
não valorizam os homens bons, somente os cafajestes que as usam e as desprezam como
objetos. Casamento é uma burrada atualmente. A maioria das mulheres só o faz por inte-
resses egoístas. Querem apenas bens materiais e satisfazer seus caprichos. Somente tolos
sonham com uma babaquice dessas – despejou ele.
– Compreendo sua situação – disse um dos aprendizes, meio debochado – Tenho
quase certeza que você deve ter se ferrado com garotas e agora está pensando que são todas
iguais. É bem provável que se envolveu com uma vadia e ela lhe fez de otário. Desse dia
em diante, passou a considerar todas as mulheres como ela.
187
O Poder da Honra
– Eu sei bem o nome disso – completou um dos que estava sentado na fileira da
frente – Você está na fase de revolta. Logo, logo isso passa, amigo. Verá que ainda existem
muitas meninas honestas. Esqueça o passado, foque em coisas produtivas.
– Eles têm razão e entendo o que você esta passando. Você precisa rever os seus
conceitos, meu jovem! – disse Senhor X, mantendo sua calma e educação.
Dionísio, de forma brusca, levanta-se da mesa fazendo o assento quase tombar para o
lado. Repara na expressão de reprovação dos colegas e na seriedade do preceptor. A raiva
o domina novamente.
– Fase de revolta é o caralho! – esbravejou Dionísio – Querem saber? Não quero mais
discutir droga nenhuma. Cansei dessas infinidades de entradas e saídas. Esse Quartel, que nem
sei quem fundou e qual a sua finalidade, até hoje não descobri, já meu deu nos nervos.
– Para que esse lugar serve? – rebateu o mentor, arqueando a sobrancelha – Lamento
lhe dizer, Max Wolf, mas... se até hoje não descobriu... é porque ainda não aprendeu nada
do que foi ensinado nesses amontoados de entradas e saídas. Como você mesmo disse,
apenas entrou e saiu, nada mais que isso.
Dionísio dá as costas e, dirigindo-se a saída, toma seu rumo.
43
O LADO SOMBRIO
2 de Abril de 2010.
No Escritório
Tímido, humilhado, acima do peso e rejeitado, um legítimo fracassado social. Dioní-
sio faz de tudo para não se lembrar de que num passado não muito distante. Era essa a sua
definição como indivíduo. O jovem, que outrora, era um menino inseguro e pouco notável,
aos poucos se torna um homem de verdade. Sua imagem perante a maioria das pessoas, não
causa mais desprezo e pena como antes. Pelo contrário, sua musculatura toma forma cada
vez mais. Além de sua estrutura facial bem simétrica altamente masculina e sua maneira de
agir e se portar, modo esses que adquiriu mediante anos de convivência com o pai e seu bom
desempenho no misterioso ambiente, intitulado O Quartel. Lugar este, onde homens são
ensinados a lidar com suas frustrações, aprendem regras práticas para vida, como se portar,
artes marciais, cursos de defesa pessoa e, o principal, aprender sobre eles mesmos. Não só
esses como vários outros conhecimentos são adquiridos no lugar. Também conheceu indi-
víduos de notável sabedoria, os quais ele aprendeu a respeitar e assimilou valiosas lições em
seu pouco tempo de permanência no recinto escondido na ferrovia.
Embora tenha se acovardado com a maioria das ideias de lá, irritado-se com a pos-
188
William R. Silva
tura truculenta dos membros e cessado suas frequências, o Quartel foi um dos fatores
decisivos para sua transformação.
No entanto, parece que Dionísio, mesmo que não demonstre, ainda não superou suas
frustrações do passado. Suas mágoas eclodiram e, como resultado, conforme vai melhorando
sua imagem perante a sociedade, principalmente com as mulheres, seu caráter vai se moldando
para o sentido oposto, esquecendo-se de princípios sagrados como o amor, a amizade, a honra
e o respeito, valores que, tempos antes, ele defendia com todas as forças.
Passou a desprezar sentimentos nobres e pensar somente no seu mero prazer pessoal.
Está aos poucos se entregando aos seus instintos irracionais. Em virtude disso, está empe-
nhado em seduzir Marisa Fontinele, a moça que, com o decorrer dos anos, se tornou mais
atraente. Ele tem consciência de que a jovem é e sempre foi apaixonada por ele e pretende
tirar vantagem nisso.
Dionísio, em tese, não é mais o mesmo de antes. Ou pelo menos está fazendo de tudo
para não ser. Tudo indica que ele criou um mecanismo de defesa inconsciente, uma forma de
não mais se magoar, se ferir e ter que sofrer. Deixar de amar e usar as mulheres para sua mera
satisfação sexual, na equivocada concepção dele, era o melhor caminho, não se importando
mais em saber que esse tipo de conduta poderá fazer inocentes sofrerem.
Com os pés sobre a mesa, lendo papéis e conferindo notas fiscais e as planilhas no
computador, sentado na cadeira giratória, Dionísio demonstrava uma arrogância que nun-
ca antes tinha sido característica de sua personalidade. Tornou-se um ser completamente
narcisista chegando a gastar rios de dinheiro em roupas de marcas, acessórios caros e mo-
dernos para equipar seu carro e muitas outras futilidades com o objetivo de atrair atenções
para si. Quando em casa, não se cansa de se idolatrar diante do espelho em razão de sua óti-
ma forma física. Dos verdadeiros amigos, afastou-se por completo, inclusive teve a insen-
satez de ignorar Tiago e Cezar quando os viu durante uma badalada festa no município. Os
dois, frustrados, imediatamente, cortaram relações com ele. O outrora companheiro leal,
parecia não sentir falta daqueles que sempre estiveram ao seu lado, apenas os playboys da
cidade, na concepção dele, eram dignos de pertencerem ao seu ciclo de amizade. Assumiu,
em virtude disso, um vida superficial, a qual tinha cada vez mais dificuldade de arcar. Sua
situação é tão crítica que acumulou uma enorme dívida com o pai, pois lhe solicitou vários
empréstimos a ele e não tinha como pagar, uma vez que seu salário já estava comprometi-
do. Mesmo assim, todos os seus ganhos financeiros eram descontroladamente usados em
suas noites boêmias e com mulheres. Dionísio, aos poucos, cavava um buraco negro, ao
qual si mesmo se perderá.
Desempenhava suas tarefas na administração sendo auxiliado por José Pereira na Loja
de Móveis Silverato, visto que seu pai fizera outra vez uma de suas viagens a negócios. Usan-
do de seu poder dentro do estabelecimento, conseguiu conquistar algumas das garotas da loja,
sempre tomando o devido cuidado para que suas armações não caíssem nos ouvidos do pai
e também se preservando de um futuro herdeiro. Mas, nenhuma delas era como Marisa. A
maioria não se mostrava resistente, bastava uma simples palavra picante no ouvido que, sem
muito esforço, elas caíam em seus braços. Marisa, pelo contrário, é uma moça que teme a
ira dos pais e faz de tudo para se preservar até o dia do seu casamento. Apesar de toda a sua
resistência, Dionísio está empenhado em seduzi-la.
189
O Poder da Honra
Não medindo escrúpulos para atingir seu nefasto objetivo, mandou chamar a funcio-
nária até o escritório com o pretexto de solicitar-lhe algumas informações sobre as vendas
e a qualidade do atendimento, já que, há tempos, Marisa foi promovida por seu José Pereira
a um cargo de confiança.
Assustando-se com o barulho de pisadas em direção ao escritório, Dionísio tira o sapato
rapidamente de cima da superfície de madeira e arruma sua postura, imaginando ser algum com-
prador importante ou Seu José Pereira, que, como é um homem de confiança de Átila, dedica
parte de seu tempo a monitorá-lo e dar ciência de seu comportamento ao seu patrão. Entretanto,
quem acabara de entrar não era ninguém que pudesse tirar-lhe seu estado de êxtase. Marisa sur-
giu por entre o vão da porta, meio reservada, não se agradando nada em ver Dionísio sentado na
mesa de Átila. Visto que era o filho do patrão que ali estava, boa coisa não viria daquela solicita-
ção de sua presença no setor administrativo.
Dionísio, apresentando-se sedutor, mira os olhos de Marisa, que corresponde à in-
vestida, embora estivesse meio acanhada.
– Oi, amorzinho, que bom que veio. Preciso falar com você.
– Se você não quer nada sério comigo, então por que me trata assim? – perguntou
Marisa, ao transparecer seus desejos íntimos através do ritmo de sua respiração.
Dionísio, ao ouvir o questionamento da funcionária, dá um salto da cadeira e para
diante da moça, segura-lhe as mãos e a fita sedutoramente nos olhos. Ficam os dois em
silêncio durante alguns segundos.
– Esse é meu trabalho. Por favor, Dionísio, se não me chamou aqui para falar sobre a
loja, então me deixa sair – suplicou Marisa, ao soltar as mãos e se afastar do jovem.
– Não tem ninguém aqui no escritório do lado, estamos sozinhos. Vem pra cá, deixa te
dar uns beijos. Já fizemos isso algumas vezes e não aconteceu nada demais. Pra que essa resis-
tência toda agora, meu bem? – indagou ele, ao se aproximar da garota e agarrá-la pela cintura.
– Eu já disse que Seu Pereira é amigo do meu pai e também não sou esse tipo de mulher
que você está acostumado a pegar por aí – repreendeu Marisa, nos braços de Dionísio.
– Você sabe que eu te amo. Eu te quero muito bem, estou sendo sincero – disse Dio-
nísio, com certo cinismo nas palavras.
– Mentira! Você deve dizer isso pra todas, eu vejo em seus olhos. Se realmente gostasse
de mim, pararia de sair com essas piranhas e me assumiria como namorada. Mas sempre me
enrola – reclamou Marisa, com um olhar lacrimejante e uma voz melancólica.
– Você gosta de tudo isso, eu sei que gosta – afirmou Dionísio, ao mirar firme nos
olhos azuis da garota, aproximando-se calmamente até encostar o seu rosto no dela.
– Não faz isso, eu preciso desse trabalho. Se seu pai souber, ele me demite. Se meu
pai souber disso, ele te mata. Você não conhece ele – disse ela, ao roçar o nariz no rosto
do rapaz sedutor.
– Não demite, não, eu não deixo. Deixa de besteira, menina, confia em mim – falou Dio-
nísio ao agarrá-la firme e começar a beijá-la, fazendo a moça estremecer e se arrepiar.
– Eu gosto muito de você, pode acreditar. Te prometo que, a partir de agora, não saio
com vadia nenhuma. Na minha vida vai ser só você – disse, ao se aproximar do ouvido da
garota, munido de um sorriso maquiavélico.
– Eu queria muito que isso fosse verdade, do fundo do coração – disse ela receosa.
190
William R. Silva
No Banheiro Feminino
Terminando a tarefa que foi-lhe incumbida, organiza todos os papéis, armazena no arqui-
vo e salva a planilha na pasta indicada. Ao olhar no relógio e constatar de que já passava das duas
da tarde, deixa apressado o departamento e sai a caminhar pelos andares da loja. No segundo pa-
vimento cumprimenta alguns funcionários e, ao averiguar que Senhor José Pereira já havia saído
novamente para resolver outros assuntos, presta atenção em Marisa trabalhando, que ainda man-
tém o mesmo sorriso radiante na face. Desaparece em meio aos móveis e desce uma pequena
rampa que dá acesso a um dos banheiros femininos. Ao chegar ao toalete, pega uma das placas
de sinalização, as mesmas que os faxineiros usam para avisar que o banheiro está com defeito
ou sendo lavado, e coloca-a diante da porta do cômodo, reparando ao redor meio desconfiado.
Averiguando que não havia ninguém por perto, entra no banheiro e fica animado ao ver que lá
estava a moça com quem havia combinado. Elísia, a sua atual “ficante”, o aguardava usando um
vestido curto mostrando parte das nádegas e expondo as coxas. A funcionária recém contratada
estava de costas, idolatrando-se no espelho enquanto aguardava o rapaz trancar a porta.
A garota morde os lábios, faz expressões sensuais na frente do espelho e volta-se
para o sujeito atrevido.
– Por que você demorou tanto, seu cachorro ? – disse ela ao se virar e ver o rapaz se
aproximar e tocar em suas pernas. – Se seu pai pega a gente aqui, estamos ferrados, principal-
mente eu que estou sem uniforme. Coloquei o vestidinho preto que você pediu.
191
O Poder da Honra
– Vamos deixar de conversa e partir para a parte que você gosta. Vamos aproveitar!
– disse ele ao tocar no rosto da moça e erguendo-a para cima da pia do lavatório.
A moça, ao encostar os lábios nos de Dionísio, trança as pernas do rapaz em suas
coxas e diz agitada:
– Nossa! Imagina se o Átila ou alguém nos pega aqui. Somos dois loucos, dois malucos!
– Meu pai está viajando, podemos aproveitar à vontade! Mas, fala baixo e vê se não geme
alto demais. Não vai fazer igual à última vez – ordenou o rapaz ao puxar as alças do seu vestido
preto e descobrir os seios empinados da jovem.
– Você é muito doido, cara, muito mesmo – volveu ela ao beijar o rosto do rapaz. Ele
tirou parte de sua roupa, deixando-a seminua com o coração acelerado, sentindo todas as
emoções e os riscos do momento.
44
11 de Maio de 2010.
No Reduto da Gangue
Na parede do lugar, que tudo indica ser uma garagem em desuso, havia dezenas de pôs-
teres de bandas de Heavy Metal: Iron Maiden, Slipknot, Metallica, Sepultura, Black Sabba-
th e algumas outras com suas imagens medonhas de caveiras, pessoas mutiladas e desenhos
macabros. Onde não se viam gravuras como estas, rabiscos e pichações coloriam o lugar e lhe
davam um tom ainda mais tenebroso. Dentro do ambiente sombrio, uma escada leva ao andar de
cima, em cujo terceiro degrau Raphael Tairone está sentado, segurando com a mão esquerda um
cigarro de maconha fixo entre os lábios e na outra um isqueiro que, com um clique de seu dedo
polegar, produz uma chama diante do fino rolo de papel. Tragando a brasa na ponta do cigarro,
suga toda a fumaça da droga quase perdendo o fôlego, trazendo-lhe, dessa forma, a tão esperada,
porém artificial, sensação de prazer.
Pouca abaixo de Raphael, sentado sobre um banquinho de madeira, Felipe Sampaio,
com o cotovelo apoiado na mesa, ergue, munido de uma alegria que irradia de seu sem-
blante, sua pistola Taurus Semiautomática PT 59-S, Calibre 380, perante seus olhos que
brilham ao verem a luminosidade da arma que refletia a luz do teto.
O homem armado, na empolgação e na sensação de poder produzida pelo objeto peri-
goso e simulando querer dar um disparo, começa a apontar o cano do objeto de metal na dire-
ção de Murilo Dalborg, que, sem perceber a brincadeira de mau gosto do comparsa, esfregava
tranquilamente um pano em sua Honda Twister 250cc. Atrás do sujeito lavando sua moto,
está Sílvia, que se mostrava aparentemente triste, com uma marca roxa no olho esquerdo,
192
William R. Silva
so, ambos parados no lado de fora, prestando atenção nos quatro marginais, sem se preo-
cuparem por estar na área deles.
– É, parece que o Johnny Caveira não foi a única surpresa do dia. Dá só uma olhada
ali – berrou Felipe Sampaio, levantando o dedo indicador na direção da porta.
Os três se viram para os visitantes e os fulminam com olhares de ira.
– Com licença amigos, podemos entrar? – indagou Thomas Bruso, que abotoava o
último botão de sua camisa social que estava frouxo na garganta.
– E quem disse que somos seus amigos? – devolveu Murilo em tom de desaprova-
ção, uma vez que não se sente bem com a visita dos dois em sua fortaleza.
– Entra logo e diga o que querem. Se bem que acho vocês bem corajosos por virem aqui
sozinhos – volveu Felipe ao se por entre Johnny Caveira e Raphael Tairone, ficando os três a
encará-los, como se estivessem alertas, preparando-se para um suposto ataque.
– Viemos aqui em missão de paz. Acalmem-se! – avisou Átila, ao erguer os braços a
fim de revelar que não estava armado.
– Missão de paz? Você está pensando que somos otários? – indagou Murilo, frente a
frente com a dupla de visitantes.
Mesma Localização: Do Lado de Fora
Do alto de um prédio de oito andares, o maior edifício da cidade, Alexander Tomy Calvi-
no, conhecido por todos do Quartel pelo apelido de Cobra, agarrando firme o cano longo de seu
Rifle Stoner SR-25, está escondido mirando uma das janelas do reduto da Gangue dos Caveiras.
Com o olho direito fechado e o outro aberto, imóvel, prestando atenção no círculo da sua mira
de precisão, de longe faz o sinalizador invisível atravessar o vidro da janela e chegar até os mar-
ginais tatuados. Os quatro, sem desconfiar que eram alvos de um Rifle, prosseguiam a conversar
com Nélson Átila e Thomas Bruso.
O homem ao lado do referido atirador, um sujeito de porte médio, braços fortes, meio
calvo, com um trinta e oito em punho e uma pistola na cintura, vigiava ao redor do prédio,
suas saídas e entradas, a fim de dar cobertura a Cobra que estava a proteger os companhei-
ros de um ataque surpresa da gangue.
– Pode ficar tranquilo, a barra está limpa aqui – avisou o auxiliar em voz baixa.
– Tudo bem! Senhor Diomedes, estou confiando em você. Tenho minha mira na cara dos
Caveiras. Se vacilarem, eu mando eles pra vala! – volveu Cobra, inerte, de olho no alvo.
– E aí, Kageyama, falta muito? – perguntou Cobra, falando através do dispositivo de
voz acoplado em seu rosto.
– Espera aí, pô! Estou quase acabando, quase... – respondeu Kageyama pelo micro-
fone perto de seus lábios, do outro lado, escondido atrás do muro do esconderijo da Gangue
de marginais.
Kageyama, com um alicate em mãos, termina um enorme furo na parede e conecta fios
e dispositivos de escuta e monitoração no buraco. Em seguida, emenda um a um os minúsculos
equipamentos, faz as ligações necessárias e inicia alguns testes pelo seu moderno aparelho celu-
lar. Não se preocupava em despencar da altura onde estava por estar preso a uma corda que, além
de estar fixada no alto da parede do beco, era vigiada pelo seu ajudante Breno Castro (Tayler).
194
William R. Silva
Os quatro marginais se assustam ao saberem que o tempo todo estavam sobre vigília
de um assassino distante.
– Sabia que não estavam sozinhos, é bem a cara de vocês – concluiu Raphael Tairo-
ne, procurando a origem do laser.
– Guarda essa arma, porra. Deixa os caras irem embora! – ordenou Murilo, ao perceber
que ele e seus comparsas corriam risco de vida caso atirassem em um dos dois.
Átila, com ar de deboche, ao cruzar a porta volta-se para o quarteto e diz vitorioso:
– Obrigado pela recepção. Tenham uma ótima noite.
Segundos depois, partem os dois, um em seu carro e o outro na moto, sumindo em
segundos do local, sem reparar em Sílvia acertando seus cabelos que balançavam no senti-
do do vento, que de longe avistava o ex-sogro se distanciar na viela.
45
BEM VINDO AO
DESERTO DA REAL
9 de Junho de 2010.
As rodas do Pálio trepidam ao cruzar o chão de pedra. Dentro dele, Dionísio vai
dirigindo meio sonolento pelas ruas da cidade. Sua indisposição para suas obrigações diá-
rias se deve ao fato de ter passado a madrugada na esbórnia, uma festa regrada a bebidas,
mulheres e muita diversão. Ele compreendia que precisava trabalhar no dia seguinte, mas
não deu a mínima para esse fato. Suas badalações de fins de semana agora ocorrem quase
todos os dias, algo que o está prejudicando cada vez mais. Desde o começo do ano, cursava
o curso de administração numa das melhores faculdades da cidade vizinha. No início, era
aplicado nos estudos, mas; agora, o rendimento do jovem diminuíra bastante e já possui
algumas faltas na universidade. Seus cartões de crédito estão os três bloqueados por falta
de limite. Seu carro, duas prestações já se acumularam e não pode recorrer ao pai, pois já
deve bem mais que um mês de salário a ele.
Com a cabeça explodindo de preocupação, guiava seu veículo pela via principal em
direção à loja de móveis, seu local de trabalho. Corre além do permitido, visto que está
atrasado e, sabendo que seu pai não admitia isso, faz de tudo para chegar o mais rápido pos-
sível. Dionísio, mesmo sendo filho do proprietário do estabelecimento, nunca teve regalias
como funcionário. Pelo contrário, as cobranças para ele sempre foram maiores e atrasos,
para seu genitor, eram inadmissíveis. Estacionando o automóvel sem muito alinhamento,
com as rodas a centímetros de distância do meio fio, abre a porta afoito e se põe a invadir
a loja, avistando um a um os funcionários e dando-lhes as saudações matinais. Com seus
olhos fundos, rosto cansado e semblante de desânimo, entra no escritório, porém faz uma
196
William R. Silva
cara de surpresa ao ver senhor José Pereira sentado em sua mesa, desempenhando tarefas
que uma semana antes eram função dele.
– Oi, José, resolveu adiantar o serviço pra mim? – inquiriu Dionísio, em tom anima-
do, tentando disfarçar sua fisionomia de ressaca.
Senhor José, que estava fazendo algumas anotações em umas folhas de caderno, in-
terrompe sua tarefa e se conserva na mesma posição. O homem, por alguns segundos, fica
de cabeça baixa, concentrado, como se tivesse pensando em algo para falar, mas ao mesmo
tempo, não soubesse ao certo como transmitir a informação.
– Então, seu pai não te avisou! – exclamou José, ainda com a visão sobre o caderno.
– Não avisou o quê? – indagou Dionísio, preocupado com a resposta.
Senhor José, de modo firme e se mostrando bastante sério, levanta o rosto e mira o filho
do patrão com expressão de pesar. Suspira fundo, coça a cabeça e diz educadamente:
– Você foi demitido. Seu pai me deu a ordem ontem à noite!
Dionísio, perplexo com o que acabara de ouvir, meneia a cabeça, não conseguindo
acreditar no que o senhor acabara de lhe comunicar. Precisa muito do emprego, posto que
um salário com o que o pai lhe paga, dificilmente conseguirá em outro. Na situação em que
estava, sem ter concluído seu curso superior e pouca experiência no ramo, lotado de dívidas e
plenamente dominado pelo ego, gastando rios de dinheiro para manter seu status de ostenta-
ção, ser demitido era a última coisa que poderia lhe acontecer na vida. Não tendo coragem de
dizer nada ao funcionário que cumpria sua tarefa e era leal ao seu patrão, sai pela loja, bufando
de raiva e se mostrando totalmente desnorteado com a revelação.
Marisa, ao vê-lo se aproximar, com um sorriso agradável, corre em direção ao rapaz para
saudá-lo. Mas, em silêncio e sem olhá-la no rosto, Dionísio passa pela moça, com a visão fixa
na saída da loja, andando a passos violentos e apressados, desviando-se de móveis, funcionários
e clientes. Quase esbarrando em pessoas e utensílios, entra no carro, dá partida e sai cantando
pneus no mesmo instante em que a garota desloca-se impaciente para a rua e observa, com uma
fisionomia triste, o Pálio do seu amado desaparecer na avenida.
Cogita a ideia de ir até a igreja pedir orientação ao padre Jerônimo, seu grande con-
selheiro espiritual. Entretanto, se lembra de que seu velho amigo viajou para participar de
uma conferência.
“Talvez, ir para casa e pensar numa solução”, pensou virando à esquerda, depois à direita.
Conduz o carro pelas passagens do município sem saber para onde ir até se lembrar do amigo Ri-
cardo. Faz mais de um mês que não o visita e prometeu a ele que o ajudaria a superar o momento
difícil que está passando. Assim, parte em direção à residência do seu grande companheiro. Ao se
aproximar da morada do rapaz, a cerca de dez metros, fica alegre ao avistar Ricardo encostado na
parede, com os braços agarrados em duas muletas que eram forçadas no piso de asfalto. Junto a
ele estavam Tiago e César. Os três, sem se darem conta de que o carro de Dionísio chegava, pro-
seavam distraídos e aos risos, falando de assuntos divertidos sem muita importância. No entanto,
ao verem que o Pálio se aproximava, mudam imediatamente de humor e os três, sérios, prestam
atenção a Dionísio, que, saindo para fora, vem até eles.
– E aí, amigos! Como vão vocês? – chamou-os em tom de satisfação.
O trio nada responde, apenas o fita com uma expressão de revolta.
– Amigos? Será mesmo? – questionou Tiago ao olhá-lo com desdém.
197
O Poder da Honra
– Sim, cara, sempre fomos parceiros. Não somos mais? – volveu ele, fingindo de
desentendido, apesar de saber a real causa da revolta dos jovens em relação a ele.
– Cara, você fica durante semanas nos menosprezando e se afastando de nós e agora
vem com esse papo furado de sermos parceiros. Não se toca não, cara? – revidou César,
fitando o rapaz nos olhos.
– Eu sei que eu errei com vocês, mas me dá uma chance. Deixa as coisas voltarem a
ser como antes. Me perdoem, por favor! – implorou Dionísio.
Ricardo Marone, que até então nada falara, com dificuldade para virar o corpo joga todo
o peso sobre as muletas e olha com bastante determinação nos olhos do rapaz, como se quises-
se atingir seu subconsciente, invadir sua alma e perturbar sua consciência. De modo certeiro,
expõe sua opinião, pouco se preocupando com a reação do seu interlocutor.
– Quando conheci você, era só um gordinho fracassado, medroso e que vivia reclamando
da vida e frustrado por que não conseguia pegar mulher. Vou te falar a real, naquele tempo
tinha muito dó de você. Acredito que seja por isso que me tornei seu amigo e fiz o que pude
para te ajudar, principalmente na academia e dali em diante. Fiquei bastante feliz a cada passo
de sua evolução porque, indiretamente, eu te ajudei para isso. Depois eu, você, César, Tiago e
o Leandro nos tornamos grandes amigos. Tivemos alegrias, tristezas, segredos contados, mo-
mentos alegres e complicados, além de muitas discussões. Seja como for, tivemos uma ótima
história de amizade juntos. Catarina, que Deus a tenha em bom lugar, sabia bem o quanto nossa
amizade era valiosa... – interrompeu ele ao olhar para o céu com um sorriso no rosto, como se
estivesse vendo um anjo sobrevoando por entre as nuvens – Mesmo passando por tudo o que
presenciamos juntos, depois de todo esse tempo o que é que você faz? Despreza todos aqueles
que sempre estiveram do seu lado por causa de algumas vagabundas que abrem as pernas para
qualquer babaca que pareça ter dinheiro o suficiente para bancar as cretinices delas. Vira as cos-
tas para os manos só para poder pagar de deslocado perante meia dúzia de playboys otários que
nada fazem da vida a não ser torrar o dinheiro de seus pais feito um bando de imbecis. Juro que
no início não pude acreditar, fiquei muito decepcionado com o que você se tornou, Dionísio.
Parece que não foi só o seu carro que se encheu de superficialidades, mas você também. Desa-
parece daqui, cara. Não somos bons o bastante para sermos seus companheiros. Vá atrás da sua
vida divertida e deixe seus amigos sem graça em paz! – ordenou Ricardo em tom de revolta,
apontando para a rua, enquanto Tiago e César balançavam a cabeça em sinal de concordância.
Dionísio tenta pensar em um argumento que possa livrá-lo do desprezo que está
sendo obrigado a suportar. Pensa em pedir desculpas e implorar para que os amigos o
perdoem, mas nada faz. Está sem forças e triste. Tudo o que desejava era sair correndo
para sua casa e deitar em seu confortável colchão para curar suas duas ressacas, a moral e a
orgânica. Pela primeira vez, se sentia culpado e compreendia que tudo de ruim que estava
lhe acontecendo fora culpa exclusivamente dele. Não havia mais adolescentes agressores,
pessoas para humilhá-lo, garotas para desprezá-los, mortes e eventos tristes para descarre-
gar sua raiva e frustração. Dando as costas para os três rapazes, entra no carro e, outra vez,
segue desolado pelos acessos de Realinópolis rumo à sua casa.
O dia ainda estava na metade e Dionísio já tivera dois contratempos dolorosos que, sem
dúvida alguma, terão consequências decisivas para mudar o rumo errado ao qual estava dire-
cionando sua vida. Mas, a pior delas ainda estava por vir. Com a garganta seca e com fome,
198
William R. Silva
decide não almoçar em sua casa. Após ficar por mais de uma hora sentado em um banco da
praça refletindo sobre as burradas que cometeu na vida, decide comprar algo para beber e
almoça num self servisse. Terminada a refeição, vai até sua casa e encontra seu pai, segurando
duas malas, parado na porta. Dionísio, ao vê-lo, tenta tirar satisfação.
– Por que você me demitiu? – perguntou ele, em tom de raiva, ao abrir e fechar a
porta do automóvel com certa rebeldia.
Átila, de início, ira-se com a petulância do filho, mas mantém-se calmo.
– Você foi negligente na maioria das suas tarefas. Fez-me perder boas vendas para clien-
tes valiosos que há anos compram comigo. Tivemos que negociar e nos desculpar para não
tomarmos prejuízos. Mas, não foi só isso que me decepcionou. Foi o fato de ter jogado minha
moral no lixo ao transar com algumas das minhas funcionárias dentro da minha loja. Fez-me de
idiota ao invés de trabalhar e fazer o que deveria ser feito, me desacatou e isso eu não admito –
respondeu ele de forma enérgica. – Quando te trouxe para viver comigo, disse que não admitiria
erros e desrespeito. Lembra? Também prometi que iria te ajudar a melhorar sua forma física,
investir na sua evolução e te tornar um homem de verdade. Minha palavra eu cumpri, meus
conselhos você não ouve mais. Por essa razão, está se afundando cada vez mais. Por causa de
tudo o que aconteceu e vem acontecendo, decidi que não viverá mais comigo. Aqui estão suas
malas, não tenho mais nenhuma obrigação com você – revelou Átila, prestando atenção no
filho que se mostrava descrente em relação ao que ouvia.
– Mas, pai, você não pode fazer isso comigo. Comecei a faculdade agora, não estou
estabilizado financeiramente. O que vou fazer? Por favor, não faz isso! – implorou Dioní-
sio, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
– Boa sorte! Desapareça daqui! – disse Átila ao empurrar as malas.
– Você está me abandonando de novo, não é? Como fez durante quase quinze anos.
Bem que minha me disse que você não prestava. Você é e sempre foi um egoísta que só
enxerga o próprio nariz, não se importando com os outros – gritou Dionísio, com uma
grande carga de ira em seu vocábulo. Por sorte, ninguém passava pela calçada para ver o
desentendimento entre os dois.
– Então é mesmo verdade. Sempre desconfiei que você nunca me perdoou por eu ter
abandonado você e sua mãe. Apesar de tudo o que passamos juntos, tudo o que lhe dei e
ensinei, ainda tem mágoas guardadas com relação a mim – concluiu Nélson, ao reparar na
rua, se não tinha pessoas nesse exato momento escutando a discussão.
– Tenho sim. Quer saber, não preciso mesmo de você, não preciso de amigos, não
preciso de garotas, não preciso de nada desse mundo maldito. Faça como quiser, Poderoso
Átila, o homem que tudo sabe, o fodão de Realinópolis. Se consegui viver meus primeiros
dezesseis anos de vida sem você, posso me virar a partir de agora – afirmou ele, ao carregar
suas malas e colocá-las no automóvel, entrar e bater com força a porta. Pela terceira vez,
saiu pelas ruas sem saber aonde ir.
O garoto de vinte e dois anos, desolado e procurando um lugar tranquilo para pensar
numa solução para situação crítica a qual se encontra, passa algumas horas em frente ao lago
em que já fora várias vezes pescar com o pai. Depois, ao perceber os primeiros sinais do cair
da noite, permanece no banco da praça por alguns minutos, revoltado, pensando nas coisas
ruins que lhe aconteceram. Não suportando mais seu suor e a dor de cabeça de ressaca que
199
O Poder da Honra
não diminuía, resolve se deitar e dormir. Assim, cochila no grande assento de mármore por
cerca de trinta minutos. Como é algo comum dos moradores da cidade, a maioria dos que o
conhecem, ao vê-lo deitado, não se espantam com a cena, pois é normal pessoas adormecerem
por ali, por ser um lugar arejado e confortável.
Ali fica ele até o anoitecer. Assim que a claridade do céu azul e branco assume sua
tonalidade escura, decide procurar uma pousada para dormir. Depois de quase duas horas de
tentativas, consegue uma com um preço razoável, pois não tem muito dinheiro disponível e
precisava procurar emprego no dia seguinte. Dentro do hotel simples, toma seu banho. Refle-
tindo com a água caindo em sua testa, se enxuga, troca a roupa e liga a televisão.
– Parece que o Dionísio fraco, derrotado, inseguro e gordinho voltou. E eu fiz de
tudo para não ser mais ele, fiz de tudo! – reclamou ele, como se estivesse confrontando a
si mesmo. – Chega de tudo isso. Não quero mais tentar, serei um lixo pelo resto da minha
vida– disse ele de maneira melancólica.
Dionísio, deitado sobre o lençol, fica a admirar a luz da lâmpada durante alguns
minutos. Aos poucos, começa a alterar seu estado de humor. Segurando as lágrimas que
estão prestes a transbordar em seu rosto e quase aos prantos, começa a gargalhar sozinho
no quarto do hotel como se fosse um louco psicótico.
– Estou sem emprego. Meu pai me mandou embora da sua casa, da sua empresa, da
sua vida. Meus amigos me excluíram e com razão. Estou completamente endividado, corro
risco de perder o ano na faculdade, minha vida está uma merda, mas sabe de uma coisa?
– constatou ele ao saltar da cama – Eu não vou me entregar. A vida me bate para me fazer
cair e se eu não levantar rápido, ela irá bater mais forte, e mais forte. O mundo precisa dos
melhores, dos mais resistentes. A natureza depende disso e não vou me abater, não vou –
bradou ele pela janela do quarto.
Pegou o celular e viu que eram nove e meia da noite. Já sabia o que fazer naquele
momento em diante. Deixou a chave do carro sobre a cama, pegou sua lanterna em cima
da mesa, trancou a porta e saiu caminhando pela cidade, entrando e saindo de ruas, subindo
e descendo morros.
Sua determinação para conseguir o que deseja foi tão forte que não se lembrava mais
do quanto seu dia foi ruim. Seu corpo, após o banho, adicionado à energia interior que
adquiriu, se curou do cansaço e da ressaca sem que se desse conta.
Percorrendo toda a área pavimentada, se põe a invadir um matagal, sem medo algum de que
algo perigoso lhe aconteça. Dionísio sempre foi de se encher de coragem em momentos críticos.
Chegando ao local e clareando tudo com o auxílio da sua lanterna, anda por cerca de mais de uma
hora pela vegetação até chegar à antiga ferrovia. Dessa vez sem o menor temor, apenas se des-
viando de morcegos que voavam sobre sua cabeça, clareou a paredes da central e encontrou a já
conhecida porta do quartel. Deixa o rosto próximo ao acesso e diz em voz alta a sua identificação
num aparelho minúsculo, que tudo indica ser um decodificador de voz.
– Sou Max Wolf, Bem-Vindo ao Deserto da Real! – gritou ele ao fechar os olhos e
esperar os feixes de luzes desaparecerem.
Assim, a porta se abre e ele, com um sorriso de satisfação, desce às pressas a escadaria.
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William R. Silva
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TRANSITANDO EM SETORES
13 de Janeiro de 2011.
Diogo Santorini caminhava de um lado para outro na sessão de academia, uma das
salas mais solicitadas do Quartel. Sanando dúvidas, ensinando a correta posição de execu-
ção de cada treino, dando força para quem estava com dificuldades para fazer suas sequ-
ências de supino reto, crossover, remanda, rosca alternada e todos os outros exercícios cor-
porais, ocupava-se assim com seus alunos, que semanalmente vão ao lugar secreto treinar
com amor e determinação. O instrutor auxilia a todos com bastante satisfação e orgulhoso
de si mesmo por estar desempenhando sua tarefa.
Santorini vistoriando os quinze jovens que malhavam com prazer, ao ver Dionísio, que
era um dos que estavam no local, executar suas séries de tríceps com a barra posicionada de
modo irregular, vai até o jovem a fim de mostrar o erro que estava cometendo.
– Fecha mais esse cotovelo! – ordenou Santorini, ao parar em frente a Dionísio, que
praticava a modalidade distraído, deitado sobre o banco.
– Assim está bom? – perguntou ele ao fechar levemente os braços e com dificuldade para
falar, pois estava com a energia escassa por causa do esforço na execução da tarefa.
O instrutor, calando-se para não atrapalhá-lo, apenas balança a cabeça positivamen-
te. Dionísio, finalizando as execuções, solta a barra no chão, levanta-se e diz com o suor
escorrendo pelo rosto.
– Quem diria, Santorini, nunca passou pela minha cabeça de que você conhecia o Quartel
bem antes de mim. É um membro daqui faz um bom tempo, não é? –prosseguiu ele.
– Sim, faz uns três anos que virei membro, mas meu nome aqui é Jay. Vê se não
esquece, hein? – disse Santorini de forma amigável e um sorriso na face.
A turma de homens, cada um com suas anilhas, pesos e barras, se exercitava concen-
trada, vendo seus músculos hipertrofiarem. Porém, o silêncio é quebrado ao surgir apres-
sado, pela entrada do setor, um garoto branquelo, baixo, magro e beirando seus dezenove
anos. Com um semblante bastante eufórico e tomando fôlego para abrir a boca, deu um
importante comunicado.
– Doutrinador, Travis, Cobra e mais uma penca de Old Schools metendo a real em
juvena cabaço lá na sala de conferência. Quem vai perde essa? Eu não vou – gritou ele. Em
seguida, virou de costas e saiu às pressas, quase saltitando da sala.
– O que são os Old School? – perguntou Dionísio, confuso ao mirar Santorini nos
olhos, no momento em que todos os jovens que estavam treinando correram contentes atrás
do rapaz que há pouco dera o aviso.
– Old School quer dizer os mais antigos, os mais experientes, que estão aptos a amparar
os mais novos com conselhos e outras ajudas – esclareceu Santorini, ao efetuar um sinal com o
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O Poder da Honra
braço, a fim de fazer Dionísio segui-lo, para ambos irem até o mencionado setor.
Seguindo Santorini, que por sua vez trilhava o mesmo percurso feito pelos rapazes que se
dirigiam à sala de conferência, Dionísio atravessa às pressas o corredor, olhando interessado, pelas
grandes janelas, para dentro das sessões. Viu indivíduos na biblioteca, homens praticando artes
marciais e o movimento de algumas sessões que ele via pelo caminho, hábito esse que ele adquiriu
desde a primeira vez que conheceu o estabelecimento secreto.
Ao seguir o grupo, entra na sala do recinto, onde novatos recebem conselhos sobre
relacionamentos, postura perante acontecimentos da vida e masculinidade entre outras di-
cas significativas para a sua evolução como homens.
Dionísio, Santorini e os rapazes se sentam nos lugares disponíveis e assistem em
silêncio a consultoria. Observando à sua frente, há um conjunto de cerca de cem cadeiras,
sendo que as dez primeiras estão todas ocupadas por alguns membros veteranos e inter-
mediários do quartel. Logo diante deles, mesa com cadeiras, contendo microfones, sendo
usadas por quatro orientadores: Doutrinador, Travis, Cobra e Conde, aguardando o próxi-
mo rapaz aparecer, sentar num dos três bancos que ficam virados para os quatro mentores
e pedir-lhes conselhos, para que, dessa forma, um dos mestres possa ajudá-los em seus
problemas existenciais.
– Próximo, ande logo! – comandou Travis Bickle (Thales Delone) de forma autoritária.
Ao ouvir a ordem, levanta-se, em meio à multidão, um garoto que segue a caminhar a
passos lentos, cabisbaixo, como se estivesse com medo de encarar os homens que estavam
ali dispostos a ajudá-lo. O jovem, com os ombros retraídos para frente, coluna envergada,
olhando para o chão e com as mãos no bolso, senta diante da dezena de homens, aguardan-
do com medo sua hora de falar e expor seus problemas pessoais.
– Diga logo qual é a sua dúvida! – ordenou Doutrinador (Thomas Bruso).
– Ninguém me respeita, meus colegas de escola riem da minha cara e me agridem, sou
um idiota, nenhuma menina se atrai por mim. Não aguento mais, como faço para melhorar mi-
nha vida? – indagou o garoto ainda com o rosto abaixado perante os presentes que, em virtude
disso, aguardavam ansiosos pelas dicas dos mestres, já que tudo aquilo que eles terão a dizer
provavelmente será útil não só para o garoto, mas para todos da plateia.
Entre os ouvintes, Dionísio que, ao mesmo tempo em que ouvia as lamúrias do garoto,
lembrava da sua triste e depressiva vida na capital. Escuta cada palavra daquele menino como
se fossem as suas. Sentiu certo mal-estar, uma vez que tudo aquilo o fez novamente relembrar
o sofrimento de anos atrás e de suas angústias. Mas, forçando a mente para se esquecer o
ocorrido, tentando não se distrair, presta atenção nas possíveis soluções que serão expostas.
Seus sentimentos vez ou outra vêm à tona quando se lembra de que está há seis meses
sem conversar com o pai. Na verdade quase não o vê, pois ele sempre fora um homem muito
ocupado. Nem mesmo na porta de sua casa e na loja teve coragem de aparecer para visitá-lo.
Atualmente, Dionísio está morando numa quitinete de três cômodos, pegando firme nos
estudos e zelando para que assim possa atingir suas metas de vida.
Está novamente a pé, pois vendeu o carro com todos os seus acessórios para sanar suas
dívidas e ter uma reserva financeira. Até negociou as prestações para que o novo dono as
pague. Em consequência disso, as mulheres e os amigos sumiram, as baladas se acabaram
e os convites para festas chegaram ao fim. Mas, ele não se sentiu frustrado por isso, pois já
202
William R. Silva
esperava que fosse esse o resultado. Embora Átila não percebesse, Dionísio sempre ouviu
e fez bom uso de todos os conselhos que recebeu durante os quase sete anos que viveram
juntos, tanto os dele, quanto os do Padre Jerônimo. Mesmo que nos últimos meses estivesse
passando por uma fase de revolta devido aos dolorosos acontecimentos em sua vida, con-
seguiu sair do fundo do poço ao qual estava chegando. Desligando-se de si e voltando sua
atenção para o sujeito depressivo que pedia dicas, fita os mestres, esperando saber qual será
o parecer de cada um sobre a situação.
– O mundo reage de acordo com as características que você emite. Se transparecer
fraqueza e agir como um idiota, as pessoas irão tratá-lo assim. Não estou afirmando que
estão corretas em te tratar mal. Mas, para que elas mudem com você, precisa mudar a ima-
gem que tem perante si mesmo. Os outros te humilham porque indiretamente transparece
que é digno desse desprezo – concluiu Doutrinador ao pegar o microfone.
– Eu não sei como faço para melhorar. Tenho medo de revidar e eles me baterem –
disse o menino em tom de vítima.
– Você, desde a hora que entrou, não levantou a cabeça, está retraído e com as mãos
no bolso. Sabia que uma das principais formas de comunicação que nós seres humanos
emitimos aos outros é através da postura corporal? Você pode ter um corpo de atleta,
milhões em dinheiro e uma carreira promissora, mas se sua postura exibir essa timidez e
desengonçamento que você está demonstrando, ninguém confiará em você e muito menos
irá te respeitar – adicionou Conde.
– O primeiro passo é melhorar sua postura, depois seu modo de falar e algumas outras
mudanças. Com o tempo, e se você se esforçar e estudar a fundo, tenho certeza de que terá uma
grande evolução. Entre na sessão de postura corporal e tu se tornarás um cara viril e fodão como
eu, um legítimo soldado. Mas, primeiro tire da sua mente essa sua mania fracassada de se fazer
de vítima. Enquanto tiver esse juízo em mente, sua evolução será travada – completou Búfalo
(Sílvio Koren), surgindo dentro do salão munido de sua bengala.
O menino, no calor do entusiasmo, levanta o rosto e se coloca a olhar para o homem,
que, com muito decoro, caminha pelo saguão se sustentando com bastante perícia através
de sua bengala que tocava com firmeza o piso, sendo observado com apreço por todos.
Sílvio, ao saudar os mais de noventa integrantes que se apresentavam assentados em seus
lugares, acelerou os passos quase dobrando a perna danificada, chegou a um dos assentos
principais e se juntou ao grupo de conselheiros.
Naquele mesmo momento, terminado o aperto de mãos entre ele e Travis, este, apro-
veitando a ausência de zumbido por parte daqueles que estavam a apreciá-los, toma a
palavra, mirando com austeridade a face do jovem depressivo.
– Não há nada mais desprezível do que um homem que se faz de vítima perante os
problemas e desafios da vida. Mesmo que os outros não lhe digam, a maioria das pessoas
sentirá nojo de você. E não farão isso por maldade, mas sim porque os seres humanos são
assim, tendem a desprezar os fracos e se associar aos fortes, pois seres humanos resistentes
suprem as necessidades dos outros. Os incapazes, pelo contrário, causam repulsão, isola-
mento e desprezo. Uma coisa é uma pessoa que sofre de doença mental ou física, outra é
uma saudável como você se queixando. No seu caso, não tem outra saída, ou se esforça
para melhorar ou será um lixo pelo resto da vida.
203
O Poder da Honra
Dionísio, quanto mais tempo incorporava a sabedoria daqueles homens, mais se cho-
cava com a semelhança dos ensinamentos do seu pai com os deles. Não imaginava que
poderiam existir mais indivíduos como Átila tão próximos.
Será que seu genitor já fora um usuário do Quartel? Será que ele teve um daqueles
mestres para guiá-lo? Toda aquela doutrina de masculinidade, honra, autovalorização e
desenvolvimento pessoal sempre foi um dos principais propósitos de vida de Nélson e tudo
isso foi passado para ele. Mas, ao refletir, desiste de aceitar essa hipótese como verdadeira
e decide considerar aquilo apenas um delírio da sua mente, posto que, se seu pai conhe-
cesse aquele lugar, já teria indicado o estabelecimento a ele, mas durante esses anos que
viveram sob o mesmo teto, Átila nunca mencionou o misterioso ambiente escondido na
antiga ferrovia, nem mesmo por distração.
– A partir de agora, você entrará no primeiro módulo do nosso Centro de Treinamen-
to. Lá vamos te dar dicas para melhorar sua autoimagem e se tornar respeitável. Mas, saiba
que terá que fazer todas as tarefas, se esforçar bastante e batalhar ao máximo para aprender
o que temos a ensinar. Sem preguiça e com muita proatividade, a mudança sempre deve
partir de dentro, nunca se esqueça disso – aconselhou Ulysses, fazendo com que todos da
pequena arquibancada, extremamente surpresos, girem o pescoço e direcionem suas aten-
ções para o falante, uma vez que ele não estava sentado junto aos mestres e sim numa das
cadeiras localizadas ao centro da plateia, exatamente a cinco fileiras abaixo de Dionísio,
Santorini e os outros da academia.
– Obrigado a todos. Pode contar comigo, Ulysses! – agradeceu o menino tímido,
saindo em seguida da mesa de perguntas.
– Aproveitando o embalo, aqui estão alguns vídeos sobre postura corporal – disse
Doutrinador ao ligar o reto projetor, fazendo aparecer uma imensa imagem, projetada
na parede, de um homem de pé, coluna ereta, peito estufado e com vários outros sinais
que transmitiam autoconfiança.
– Observem cada detalhe e o modo como o sujeito anda – ordenou Sílvio, enquanto as
dezenas de espectadores assistiam o telão atentos, aprendendo as lições daqueles que estavam
a ensiná-los. Menos Dionísio, que se levanta, passa por Santorini, que nem o percebe. Ele
sobe os degraus e sai pelo corredor que dá acesso a outros setores.
Ao ver o corredor vazio, decide ir até a biblioteca, pois lá é, talvez, o único lugar do
quartel onde quase não se ouvem barulhos e ruídos. Cautelosamente, adentra na sala repleta
de livros, analisando uma a uma as estantes. Lia cada um dos autores, o nome do livro e seus
respectivos assuntos: Olavo de Carvalho, Augusto Cury, Robert Greene, San Tzu e alguns ou-
tros na sessão de psicologia e filosofia. Na área de economia, viu alguns de George S. Clason e
mais outros que ele não conhecia. Nos romances, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley,
era o primeiro da lista. Havia ali tantos livros que logo desistiu de averiguar as prateleiras. Na
realidade, ele apenas queria um lugar tranquilo para sentar e pensar, pois aqueles homens, ele
querendo ou não, faziam-no o tempo todo lembrar de seu pai. Mesmo não querendo admitir,
está sentindo saudade dele e quer pedir desculpas pelos seus erros e se reaproximar do homem
de coração duro. Entretanto, não sabia como.
Percorrendo a galeria, nota discretamente os sujeitos que lá estavam a fazer uso do
lugar, lendo, determinados e desligados do mundo à sua volta. Um deles acabara por cha-
204
William R. Silva
mar a atenção de Dionísio. Era um rapaz moreno e de cabelos escuros, que lia um grosso
livro de Direito Penal numa das mesas.
– Você é o Plínio Fermino ou estou errado? Estudamos juntos no terceiro ano. Eu
sentava perto da Catarina, a moça que morreu. Lembra? – interrogou Dionísio em tom de
entusiasmo, mas tomando cuidado para não atrapalhar os outros usuários.
Com os dedos firmes nas páginas abertas, percebendo a voz que soava em sua direção, o
sujeito ergue vagarosamente a cabeça e dá um leve sorriso mirando o rosto de Dionísio.
– Lembro, sim. Você mudou bastante, hein? – volveu ele em tom de consideração
– Mas aqui eu não me chamo mais Plínio. Meu nome é Doutor Beetle. E o seu nome “quar-
teliano”, qual é? – indagou, aos risos e falando baixo.
– Max Wolf – respondeu Dionísio, reparando no livro que o amigo estava lendo. –
Está cursando direito? Muito legal. Parabéns, estou fazendo administração.
– Muito bom, Senhor Max Wolf. Nós, membros do Quartel, somos obrigados a evo-
luirmos e sermos exemplos. Sempre! – disse Dr. Beetle.
– Fico pensando, aqui comigo, quem será que começou tudo isso aqui – disse Dioní-
sio, admirado com a estrutura do lugar.
– Dizem que foi um tal de Nessahen. Foi o primeiro tutor do Travis e do Doutri-
nador. Pelo que pude descobrir, ele é tão bom quanto o Sílvio, até melhor do que ele
em algumas partes. Mas ninguém nunca o viu, só os primeiros mestres sabem como ele
é. Ele desapareceu há alguns anos – respondeu Beetle ao reparar no jovem que puxa a
outra cadeira da mesa e senta próximo dele.
– Seja quem for, esse cara deveria ser muito foda. Quem me dera se eu conhecesse
ele um dia. Quem me dera! – discorreu Dionísio, com um brilho intenso na face, olhando a
imensidão e a variedades de livros e suspirando agradecido por estar ali.
47
RECONCILIAÇÃO
Os quatro lustres eram ligados ao teto por um fino cano de ferro cuja outra extremidade
continha cinco pontas, todas conectadas a um círculo de metal, com seis lâmpadas acesas
em volta. Cada uma delas, iluminando todo o bar, chega a quase refletir o rosto dos clientes
se estes se prestassem a olhar para o chão, tamanha a intensidade da luminosidade do lugar,
auxiliado pela limpeza e o peculiar enceramento do piso de mármore.
Os três barmen disponíveis no balcão, ao som do Jazz que ecoavam das caixas de som,
recebem os feixes de luz em suas faces, causando uma visão ainda mais esplêndida do am-
biente. Com seus uniformes pretos, onde se lia Melvin’s Bar num enorme emblema no peito,
cada qual cumpria sua função. Um atendia alguns fregueses, outro anotava a consumação nas
comandas e o terceiro, vai em direção a um dos refrigeradores, para diante de centenas de vi-
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O Poder da Honra
nhos, whiskies e outras bebidas de luxo descansando em cima de estantes de madeira fixadas
firmemente na parede, todas elas protegidas por imensas placas de vidro.
Ao abrir a porta da enorme caixa refrigerada, o barman pega delicadamente um Cha-
teau Latour 1994, um dos vinhos mais caros da casa. Retira o lacre e, em seguida, abre-o
com o saca-rolhas. Terminada a tarefa, toma para si uma das bandejas redondas que esta-
vam postas ao seu lado, coloca o vinho em cima dela e, ao adicionar duas taças, segura a
bandeja com a mão esquerda, mantendo o outro braço dobrado em posição perpendicular,
munido de um guardanapo branco, e sai a caminhar pelo lugar.
Após passar por mesas de madeira, circular a mesa de sinuca, desviar de dois homens
que já estavam de saída e outros obstáculos, interrompe seus passos diante de uma mesa. Nela,
coloca de forma magistral a bandeja, pega o vinho com delicadeza e deixa escorrer o líquido
vermelho, preenchendo ambas as taças até a metade.
– É por conta da casa. Cortesia para clientes VIPs – avisou o garçom com uma ex-
pressão de respeito ao se virar para Nélson Átila, que segurava o taco de sinuca ainda na
posição de jogada, pois ele havia acabado de mandar a bola branca atingir uma das suas
ímpares, mas sem conseguir mandá-la para o buraco.
– Muito obrigado, amigo – agradeceu ele, respirando com prazer no mesmo ritmo do
instrumental de Jazz que ecoava dos alto-falantes acoplados nas paredes.
– É a sua vez ou a minha? Me distraí – interrogou Michele com uma alegria pueril, e
ao mesmo tempo sedutora, transparecendo em sua face.
– A sua – respondeu ele ao pegar a taça e tomar um pequeno gole, degustando a bebi-
da fermentada com calma, sentindo o aroma e o gosto do líquido. – Maravilha! Maravilha!
– exclamou Átila ao constatar a fineza e a autenticidade da bebida.
Michele, ao se abaixar e mirar o taco no alvo, tem parte dos seus seios revelados pelo
decote, provocando inveja e olhares desdenhosos de algumas mulheres e atiçando ainda mais a
libido não só de Nélson, mas também de alguns outros homens presentes no recinto. Estes, por
perceberem que a jovem sensual estava bem acompanhada, fazem o possível para observá-la
sem que sejam notados. A moça, com a coluna envergada e um movimento brusco dos braços,
faz a bola branca rebater uma das suas bolas pares, mas que devido à falta de técnica, faz com
que a número seis bata na lateral e se desvie da caçapa.
– Será que algum dia você vai dizer que me ama pelo menos uma vez? – indagou a
moça ao mirá-lo sedutoramente, pegar a sua taça e provar o vinho.
– A última vez que disse “eu te amo” para uma mulher, ela morreu semanas depois.
– retrucou Átila ao tomar-lhe o taco e se posicionar à mesa de sinuca.
Sem executar a jogada, o homem de cavanhaque e cabelos longos, levantando a face em
direção à linda mulher que estava a admirá-lo, dá um leve sorriso e faz um rápido comentário.
– Sabia que meu filho é apenas cinco anos mais novo que você? Você poderia ter
sido minha filha também, caso usássemos o critério idade como elemento de análise – co-
mentou ele ao rebater a bola sete e fazê-la descer num dos buracos da mesa.
– É, mas filha seria a última coisa que queria ser sua. Sabemos muito bem que você
já viu minhas intimidades várias vezes e fez bom uso delas – respondeu a moça com certa
malícia no olhar, de modo discreto e observando ao redor para ver se não havia ninguém
ouvindo. – Posso te fazer uma pergunta? – solicitou ela, levando a taça em direção a boca
206
William R. Silva
– Estaria atrapalhando o clima dos dois amantes se pedisse ao senhor Átila um mi-
nuto de conversa? Juro que serei breve – disse Dionísio, que há pouco acabara de entrar no
bar à procura do pai.
O casal, no calor e na excitação do momento, passados alguns segundos da per-
cepção do rapaz falando por detrás deles, se mantém na posição em que estavam, com os
lábios a poucos centímetros distantes um do outro.
Michele, reparando no homem alto, de cabelos bem cortados e um corpo bastante
atlético, retira-se dos braços do homem e, entregando um dos tacos a Dionísio, sugere
que o rapaz termine o jogo com o pai e vai em direção à mesa, para sentar e admirar as
diferentes formas de beleza e robustez esboçadas através de pai e filho. Posto que ela fora
um fracasso em suas jogadas e está perdendo a competição com todas as bolas na mesa
enquanto Átila já mandara quatro nas respectivas caçapas, resolve deixá-los jogando a sós,
pressentindo que a tal conversa seja de cunho íntimo e particular.
– Podemos conversar, pai? Sou digno de uma segunda chance? – suplicou Dionísio
com emoção nas palavras, reparando no homem de costas com o taco de sinuca em mãos.
Nélson Átila, ouvindo novamente o clamor do jovem arrependido, coloca o taco so-
bre a mesa e, sem dar resposta alguma, vai em direção à mesa onde está sentada Michele,
com suas coxas cruzadas, assistindo aos risos um programa que passava na grande tela
da televisão instalada no alto da parede, apesar de não poder escutar claramente o que os
atores diziam. Parando ao lado da jovem, pega uma das taças, quase vazia, e a enche até
pouco acima da metade e volta a passos lentos em direção à mesa.
Voltando os olhos até o jovem já apreensivo, dá mais alguns passos com bastante
cuidado para não derramar o líquido. Munido de um semblante enigmático e ao mesmo
tempo amedrontador.
207
O Poder da Honra
– Mandei quatro bolas para o buraco e todas as pares estão na mesa de sinuca. Se me
vencer, aceitarei seu pedido. Se perder, terá que dar o fora daqui. Combinado? – desafiou
ele ao tomar uma golada de vinho e levar o copo em direção ao filho.
Dionísio, ao ver o copo diante de si, faz sinal com a cabeça e com o dedo indicador,
rejeitando a bebida que o pai lhe oferecia.
– Desafio aceito – concordou Dionísio ao manejar o taco sobre as mãos.
Por ter acabado a exibição na TV que estava a assistir e começado um programa de es-
portes com lances e comentários sobre jogos de futebol, Michele, por não ter interesse algum
no assunto, volta sua atenção aos dois homens que duelavam na mesa de sinuca, mais uma vez
contemplando a boa aparência e a elegância de Átila e seu descendente.
Átila num golpe magistral acerta mais uma de suas bolas no alvo e, na segunda tentativa,
manda outra, deixando Dionísio preocupado, temendo não ser capaz de vencer, pois já entrara
no jogo em desvantagem. Para seu desespero, Nélson bota a número dois na caçapa, sobrando
apenas uma de suas bolas na mesa e todas as sete para Dionísio, que, dizendo a si mesmo que
o jogo ainda não estava perdido, tranquiliza-se observando o pai jogar.
– Errei. Sorte a sua – disse ele, por perceber que sua última tacada havia falhado.
Dionísio, segurando o taco, percorre a mesa pensando numa estratégia que o faça derrubar
o maior número de bolas possível, embora saiba que suas possibilidades de vencer sejam pratica-
mente nulas. Sabia que o pai era bom e, se errar, não terá segunda chance. Ao manejar o corpo
frente a grande mesa de sinuca, desequilibra o taco de suas mãos e se esquece da mira ao observar,
logo à sua frente, Michele sentada na mesa com seu chamativo decote e suas pernas cruzadas,
atiçando, sem querer, os desejos do jovem. Porém, ao se lembrar de que a moça era mulher de seu
pai, sente-se constrangido por causa do ato e se volta ao que estava a fazer.
Talvez por sorte, perícia ou necessidade, bem provável que os três fatores juntos, Dio-
nísio consegue, numa grandiosa sequência de rebates, derrubar todas as bolas no buraco e
vencer a competição, deixando Átila com um agradável sorriso de satisfação na face.
– Parabéns, venceu. Agora desembucha logo o que queria me dizer! – ordenou Átila,
enquanto fixava o taco num dos encaixes na retangular placa pregada na parede.
Retraindo o peito musculoso e mantendo o braço sobre a mesa de sinuca, olha nos
olhos do seu genitor e diz o que deseja, com certo nervosismo e um brilho no olhar.
– Não precisa me aceitar de novo na sua casa se não quiser, nem me contratar para tra-
balhar nas suas empresas, mas queria muito que você me perdoasse. Preciso tirar esse peso da
minha consciência – declarou ele com bastante dificuldade de encarar Átila.
– Você já foi perdoado desde o dia em que te mandei embora. Vou te contar uma
coisa. Eu fiz o que fiz porque desejava te jogar no fundo do poço. Queria muito te ver
quebrando a cara, não porque tinha vontade de te ver ferrado na vida. Pelo contrário, você
estava tomando um rumo perigoso de autodestruição. Fui obrigado a lhe atingir o ego, pois
ele estava te cegando – disse Nélson Átila, chegando mais perto do filho.
– Você fez o certo, como sempre. Se tivesse me mantido em casa e feito vista grossa aos
meus erros, com certeza eu ainda os estaria cometendo ou fazendo coisas bem piores – concluiu
ele, jogando sua mão esquerda sobre o ombro do pai em sinal de companheirismo.
– Você me conhece bem e sabe que sempre gostei de ter controle sobre tudo à minha
volta. E com você não foi diferente. Estive o tempo todo te monitorando e sei que você está
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William R. Silva
se esforçando para melhorar. Vi seus últimos avanços e isso é bom. Continue assim, está
no caminho certo – relatou Átila, deixando Dionísio quase a explodir de tanto orgulho e
satisfação por ter escutado aqueles elogios do pai.
– Você veio de Realinópolis até aqui para conversar comigo?
– Sim.
– Sei que está sem carro, mas não poderei te levar comigo. A mocinha ali já está na
quarta taça de vinho e isso faz o fogo dela aumentar. – explicou ele ao se virar para moça na
mesa. – Tudo indica que terei de apagá-lo nas próximas duas horas, se é que você me entende
– confessou Átila aos risos, falando discretamente no ouvido de Dionísio, fazendo com que o
rapaz sinta o hálito de embriaguez que fugia dos lábios do seu interlocutor.
– Tudo bem, vai lá e honre o nome dos Silverato – disse Dionísio de brincadeira.
Enquanto Dionísio pede uma cerveja e se senta ao lado de Michele, mas dessa vez des-
viando a visão do corpo da moça, fazendo o possível para respeitá-la, e ela agindo da mesma
forma perante ele, Átila agradece os garçons pelo bom tratamento e paga a conta. Concluída a
despedida, segura Michele pelas mãos e faz a moça levantar-se de seu lugar.
– O Seu José está lotado de trabalho e não encontrei ninguém competente o bastante para
ajudá-lo no escritório. Se quiser seu emprego de volta, aparece na loja amanhã às oito em ponto.
E vê se volta pra casa para arrumar aquele seu quarto. Ele está do mesmo jeito que o deixou, uma
bagunça, uma verdadeira zona – disse Átila, segurando a mão de Michele, que já meio zonza e
com os olhos piscando, sorria ao ver a felicidade de Dionísio.
– Tchau, enteado! – falou Michele ao se despedir de Dionísio e ir embora, junto a
Átila, segundos depois.
Dionísio, com um dos braços estirado sobre a mesa e pernas esticadas, feliz por ter feito as
pazes com o pai e ter recuperado a confiança perdida, bebe alegremente cada gole de sua cerveja
assistindo a programação na grande tela da televisão. Em seu íntimo, agradeceu os homens do
Quartel, pois grande parte de suas melhoras foram possíveis graças à ajuda deles.
48
O CONFRONTO MORTAL
2 de Outubro de 2012.
– Corri na direção da bola e chutei, só que pegou de mau jeito – explicou Tiago, fazendo
um gesto com os pés e chutando uma latinha vazia de refrigerante no meio da rua.
César recolhe a lata, lança numa lixeira e diz, voltando-se para o colega:
– Você é ruim de bola e pronto. Pra que justificar? Seu perna-de-pau!
– E você, que moral tem pra me criticar? Errou a maioria dos passes, o pior do time.
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O Poder da Honra
Eu pelo menos fiz um gol e você não fez nenhum. Nosso time perdeu por culpa sua, seu
merda! – refutou Tiago, falando em tom de ironia.
– Conseguiu porque você estava praticamente na cara do gol e mandaram a bola no seu pé.
Se fosse pra tu driblar um por um dos adversários, não daria conta. Tenho certeza que iria errar,
seu mané do caralho! – devolveu César aos risos, dando pequenos pulos na calçada.
Ricardo, devido à sua atual dificuldade para se locomover, ficou esquecido a cerca
de dez metros atrás dos amigos que, vestidos de short, camiseta e chuteira, se prestavam a
discutir sobre a partida de futebol que, meia hora antes, acabavam de participar. Não está
mais usando suas muletas. Sua cadeira de rodas, no mês passado, foi doada para uma ins-
tituição beneficente. Como não faltou a nenhuma de suas fisioterapias e fez tudo o que os
profissionais mandaram, teve bons avanços nos últimos meses. Sua recuperação foi tão boa
que quase não se lembra de que há mais de um ano escapara da morte, a não ser quando é
acometido pelas lembranças de Catarina.
Cansando de tentar emparelhar com os dois jovens, apoia um dos braços numa árvo-
re na esquina e se põe a questionar a atitude dos companheiros.
– Ô, caralho, não vão me esperar não? – gritou ele, vendo de longe os dois se sur-
preenderem.
No mesmo instante a dupla se vira para trás e o vê com um semblante irritado, pernas
semidobradas, com a mão esquerda firme no tronco da paineira e com a outra na cintura.
Mesmo não tendo participado da partida de futebol, Ricardo ficou durante toda a dispu-
ta sentado na arquibancada conversando com algumas garotas e rapazes que curtiam parte do
domingo assistindo ansiosos a partida, para verem o time vencedor. Na medida do possível,
está voltando à sua rotina e, a pedido dele, os três foram para a quadra sem usarem carros.
Rejeitando caronas de outros conhecidos, também resolveram voltar a pé. Ele precisa se mo-
vimentar o mais que pudesse. Essa é uma das principais ordens dos fisioterapeutas e ele faz
questão de seguir à risca. Mas, por outro lado, está tendo dificuldade, porque, na maioria das
vezes, seus parentes e companheiros o deixam para trás por causa da sua lentidão. Contudo,
não agem assim por maldade e sim por distração.
César, paralisando suas pisadas apressadas e se fazendo de desentendido, profere um
comentário a fim de concertar o erro:
– Desculpa aí, menino tartaruga!
– Para de zoar o cara, porra! – repreendeu Tiago, olhando para César com um sem-
blante de desaprovação.
– Esquenta não, Tiago. Não ligo para o que esse babaca fala – disse Ricardo aos
risos, acelerando, com dificuldade, seus passos no asfalto.
De forma lenta, o garoto capenga ia alcançando os rapazes que, parados, o aguar-
davam sentados num banquinho localizado no lado de fora de uma casa azul. Ricardo, ao
chegar próximo dos indivíduos no banco de mármore, interrompe seus passos e se senta
junto aos dois.
– Vamos passar pela rua de baixo. Lá é bastante estreito, mas dá pra cortar caminho. As-
sim, a gente chega em casa mais rápido – sugeriu Tiago, abaixando-se para amarrar os cadarços.
– Boa ideia! – concordou Ricardo.
César assente com a cabeça, dá um salto do banquinho e diz, fazendo um sinal com
210
William R. Silva
as mãos.
– Então vamos logo. Estou começando a ficar com fome. Estou a fim de almoçar.
– O foda é que aquela rua é meio sem movimento, tem muito cara que vai lá fumar
maconha e usar outras drogas – refletiu Ricardo, coçando a cabeça.
– É só passar de boa e fingir que não está vendo nada que eles nem vão nos reparar.
É bem melhor do que subir morro. Se preferir a gente sobe, tá a fim? – perguntou César,
erguendo as sobrancelhas.
– Tá legal, seus malucos. Vamos passar por lá, então. Mas não me deixem para trás –
orientou Ricardo, partindo na frente e batendo os pés com bastante cautela no chão.
Seguindo o itinerário, o trio dobra à esquerda e adentra a monótona Rua dos Caiça-
ras, uma das vias mais pacatas do município. Em contrapartida, a mais perigosa durante
o período das madrugadas, visto que muitos delinquentes usam o local para se drogarem,
organizarem seus trambiques e é o ponto de venda preferido para as mercadorias ilegais da
já conhecida Gangue dos Caveiras. Mas, para a surpresa dos três andantes, naquela tarde
a via pavimentada estava vazia. Havia apenas um Uno preto com os vidros semiabertos
parado debaixo de um enorme pé de manga. Conforme os três iam se aproximando do ve-
ículo, conseguiam ouvir, não com muita clareza, vozes agitadas de pessoas se agredindo,
provavelmente discutindo dentro do automóvel.
– Cale essa boca, sua vagabunda! – esbravejou alguém de dentro do carro.
– Vai pro inferno, seu desgraçado! – revidou outra voz, dessa vez um grito feminino,
fazendo com que os três parem imediatamente em estado de alerta, preocupados com o que
se passará ali.
Na sequência ouve-se um gemido alto de dor e a porta do motorista se abre. Imedia-
tamente sai Murilo Dalborg, que, de tanto ódio, não reparou que estava sendo observado. O
homem, num estado de fúria, dá meia volta e se detém na porta contrária. Em seguida a abre e
tira Sílvia de dentro do automóvel, puxando-a pelos braços. Ela, revoltada, retorce desesperada
os braços com força, até que consegue tirá-los das mãos do indivíduo desequilibrado.
– Vai se ferrar, seu traficante de merda! Seu lixo escroto! – berrou Sílvia em tom
sofrível, aos prantos.
O agressor, franzindo as sobrancelhas, respirando ofegante e olhando nos olhos lacri-
mejantes da moça, num movimento rápido dos braços profere uma bofetada no rosto de Sílvia
que, tamanha a pressão do golpe, contorce seu pescoço, fazendo-a desequilibrar-se e cair com
os cabelos bagunçados e chorando. Ficou de joelhos no chão no mesmo momento em que os
três espectadores testemunham a cena, atemorizados e descrentes.
Murilo, dando continuidade à sua sessão de maldades, segura os cabelos da jovem,
chegando ao ponto de deslocar sua cabeça para o lado.
– Você vai tirar esse filho nem que eu tenha que te matar junto com ele – exigiu,
totalmente descontrolado.
– Não vou, não vou e você não vai me obrigar a isso. Não vai – retrucou Sílvia, com
uma grande carga de ódio.
Ricardo, ao constatar que a garota estava grávida, contra a vontade dos amigos re-
solve comprar a briga.
– Ei, seu babaca! Otário. Por que não bate em homem, seu merda? – desafiou Ricar-
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O Poder da Honra
a seus amigos. Encontra uma garrafa de vidro. Ao batê-la com força no poste com a finali-
dade de quebrá-la, com os cacos caídos diante de sua chuteira, ergue a garrafa rachada ao
meio na direção de Murilo.
– Acha que isso é perigoso? Perigoso é isso aqui, mané. – disse Murilo, ao sacar um
trinta e oito da cintura.
César, em razão da agonia, não consegue reunir forças a tempo para se levantar. Síl-
via, em estado de choque, não é capaz de esboçar nenhuma reação, nem mesmo se mexer
do lugar e Ricardo, com bastante esforço, fixa as mãos sobre o solo, recebendo impulso de
sua própria força. Consegue se por outra vez de pé, apesar das pernas firmarem-se meio
envergadas.
Ricardo, encontrando-se defronte ao marginal robusto e temendo que seus amigos
sejam atingidos pelo revólver, berra a fim de intimidar o indivíduo perigoso:
– Foi eu quem te chamou para a briga. Então deixa eles em paz.
Murilo levanta o cano da arma na direção do crânio de Ricardo e, com o dedo no
gatilho, dá o seu recado:
– Você se meteu num assunto que não era seu, agora vai se ferrar!
– Nãaaoooo! – gritou uma voz vinda de um barranco. Em seguida caiu um pesado
corpo por cima de Murilo, fazendo-o sentir um violento tapa no braço que segurava o trinta
e oito, dando, na reação do susto, um disparo. A bala passa zunido ao lado da testa do até
então anônimo sujeito que se pos à sua frente.
Tiago, extremamente feliz em ver o homem alto, braços fortes, tórax estufado e um
corpo estaticamente malhado, grita animado:
– Dionísio!
Sílvia pousa seus olhos assustados em Dionísio, reparando nos dotes que o jovem
adquiriu e, rapidamente, volta-se para o marginal armado. Não temia pela vida do atirador,
mas sim pelo ex namorado e seus amigos. Seu estado de pavor era tão intenso quanto o
ódio que, naquele momento, sentia pelo seu agressor. Vendo que o disparo quase perfurou
a cabeça de Dionísio, sente seus batimentos se descontrolarem. O estado de angústia da
moça se tornou ainda maior quando o suposto herói lhe devolve uma expressão de despre-
zo ao ver que ela voltou a repará-lo.
César, embora ainda sinta o efeito doloroso da pancada que recebeu, consegue se
reerguer do baque. Repara na aparente mudança do amigo, não só física mas também psi-
cológica. Tiago lança a garrafa com força no muro da fábrica, transformando-a em vários
cacos ao chocar-se com a parede de concreto. Ricardo, agradecido, assistia ao ato heroico
do seu salvador.
– Como sempre covarde, hein? É muito fácil ser homem com arma nas mãos – repre-
endeu Dionísio, mirando a visão do homem raivoso.
– Olha só quem reapareceu, o corninho da cidade, o zé ruela. Só porque injetou umas
graminhas de bombas anabolizantes, já está achando que virou homem – bradou Murilo,
em tom de sarcasmo, visando constrangê-lo. Mas sua tentativa é em vão, pois Dionísio não
demonstra nenhuma reação.
– Na arma, é fácil. Quero ver vir mano a mano. Aí vou te mostrar quem é o zé ruela.
Murilo, munido de um sorriso sarcástico e confiante, movimentando o braço, recoloca
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O Poder da Honra
o trinta e oito na cintura. Chegando mais perto do rapaz, diz batendo no peito do rival:
– Pronto, agora estamos no mesmo nível. Me pega agora, seu otário!
Ricardo, após ser ajudado por Tiago, é arrastado para mais ou menos três metros para
trás de Dionísio e seu opositor. César, por precaução, ainda com as mãos entre as pernas,
vai para perto dos dois amigos.
Tomando uma pequena distância, Dionísio começa a gingar tocando os pés vagaro-
samente sobre o solo, fazendo o marginal rir-se da cena e Ricardo, Sílvia e os presentes
ficarem sem compreender o que o lutador planejava. Desse modo, de forma inesperada e
bem calculada, Murilo vê uma das pernas do adversário bater com potência em seu rosto
que, com o impulso, faz sua face e seu corpo dar meio giro, esvaindo-se em sangue que
escorria de seu nariz.
Passa as mãos sobre o queixo, vê seus dedos tingidos de sangue e berra furioso:
– Filho da puta!
Foi para cima do jovem, proferindo vários socos, mas sem acertar nenhum, pois o
oponente, com maestria, desviava-se de todos os ataques. Dionísio, cessando suas ginga-
das, ao tomar impulso dá uma rápida e impactante voadora no peito do marginal tatuado,
que despenca rapidamente e bate as costas sobre o asfalto, causando espanto em todos que
assistiam a cena.
O marginal derrotado e ainda atordoado com a pancada, levanta-se e sai cambalean-
do. Mesmo com a coordenação motora vacilando, avança para cima do oponente e arrisca
um soco em sua face. Dionísio vira a cara, mas o punho do inimigo o pega de perfil.
Sente uma ligeira dor, mas não o bastante para desestabilizá-lo. Murilo, aproveitando-se
do momento de descuido do rival impulsiona a perna direita em seu tórax. O rapaz recua
para trás com a pressão do chute. Os demais, aflitos, presenciam o combate suando frio. O
lutador, dominado pela fúria, dá alguns passos para trás, ganha espaço e salta para cima do
bandido fazendo seu pé empurrar o algoz com uma pancada no peito. Outra vez, derruba
Murilo no meio da rua.
– Chega, já cansei de te bater! – triunfou Dionísio indo em sua direção, esquecendo-se
de que o criminoso ainda portava um revolver em seu coldre. – Fim da linha para você.
Sílvia roía as unhas enquanto os três rapazes olhavam de um lado a outro em estado
de pânico. Não sabia se procuravam ajuda, se tentavam conter os combatentes ou se tenta-
vam proteger a si mesmos. O estado de inércia e o desejo de acompanhar o duelo por causa
adrenalina do momento dominou-lhes a vontade.
Murilo, não se dando por vencido, firmou as mãos no chão e flexionou as pernas
no exato instante em que seu opositor se posicionou logo atrás dele. Reunindo as poucas
forças que ainda lhe restam, fica de pé, gira no calcanhar e dispara outra pontapé no ab-
dômen do adversário. No sobressalto, Dionísio se assusta e se mostra meio desnorteado
com choque do contra-ataque. Rangendo os dentes de raiva, o lutador avança e, com todo
a raiva acumulada dentro de si, acerta um potente murro no queixo do delinquente tatuado,
dando assim, o golpe de nocaute. Murilo se vê pela terceira vez estirado no solo asfaltado,
descobrindo que não teria mais energia o suficiente para outra ofensiva. No ato de deses-
pero, voltando atrás em sua decisão, puxa o revolver e o deixa em riste, na direção da face
do rival.
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William R. Silva
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A GALERIA
a turma de ouvintes:
– Reúnam-se à minha frente !
Todos, acatando a ordem, dão alguns passos e permanecem próximos à dupla. Um
dos rapazes se adianta, coloca-se perto dos mentores e pergunta:
– O que vamos ter agora?
Thomas leva o braço na direção do sujeito curioso e ergue a mão aberta, em sinal de
calma. Diz paciente :
– Espere e verá!
O garoto recua e se mistura aos demais.
– Alinhem-se em fileiras de cinco! – coordenou Doutrinador (Thomas).
Seis filas de homens se formam diante do treinador de cabeça raspada, agrupando os
trinta membros em divisões iguais.
Thales, junto ao primeiro tutor, joga os braços para o alto, dobra-os para trás da
cabeça, entrelaça os pulsos e os prensam sobre a nuca. Em seguida, faz o grupo de jovens
copiar seus movimentos.
– Fechem os olhos e não digam nada! – brandou Travis Bickle (Thales).
Ninguém mais era visto com os olhos abertos.
– Respirem fundo e pensem em todos os acontecimentos ruins de suas vidas! – disse
Doutrinador.
– Estão sentindo os punhos forçados contra a nuca? Isso é simbólico, sinaliza toda a dor
humana, nossos fracassos, nossas tristezas e nossos receios. Atentem-se sempre para essa par-
te de nossa mente! Pois, frequentemente as pessoas mal intencionadas costumam usar essas
fraquezas contras nós para tentar nos derrubar. – falou Travis Bickel.
Dionísio tenta espiar.
– Não abram os olhos! – berrou Thomas com voz autoritária.
Assustando-se, Dionísio fecha ainda mais suas pálpebras.
– Inspirem levemente o ar apertando os pulsos contra a nuca! – ordenou Travis Bi-
ckle (Thales) com os olhos cerrados.
– Agora, soltem a respiração devagar, desencostando os braços da cabeça! Pensem
em tudo o que os atrapalha e liberem, façam tudo desaparecer de seu subconsciente, dei-
xando a mente totalmente livre! – comandou Doutrinador.
– Refaçam os movimentos, levantem calmamente os braços na sintonia da respiração
mantendo os punhos unidos! Desçam as mãos calmamente até a altura da cintura, atenham-
se a deixar a cabeça erguida! – finalizou Travis.
Os trinta repetem a ação em um movimento ritmado de inspiração e expiração.
– Abram os olhos! – ordenou o homem de cabeça raspada.
Imediatamente, todos os fitam com os olhos atentos. Thomas sorri, balança a cabeça
e diz, pousando os olhos no grupo:
– Sempre façam isso antes das lutas, ajuda a liberar a carga emocional, deixa a mente
limpa e nos ajuda a conciliar os movimentos de ataque com o raciocínio. É claro que não
desejo nunca que usem o que aprenderam para lutas sem sentido. Mas, se um dia precisarem,
bloqueiem a carga negativa da mente, pois o inimigo poderá usá-la contra vocês.
Thales, após fazer um movimento de subir e descer o queixo em sinal de concordân-
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