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Introdução

John Holt

Este livro trata das formas pelas quais nós podemos ensinar crianças, ou melhor,
permitir que elas aprendam fora das escolas: em casa, ou em quaisquer outros lugares e
situações (e quanto mais melhor) que possamos colocar à disposição delas. É em parte
um argumento a favor da prática desse método de ensino, em parte um relatório de quem
está trabalhando com ele e em parte um manual de ação para quem quiser adotá-lo.
Muitos acontecimentos (fatos públicos, incidentes pessoais, experiências
intelectuais) me levaram a escrever este livro. Tudo começou na década de 1950. Na Commented [JC1]: Literalmente: “muitos acontecimentos,
época, eu ensinava crianças de dez anos em uma prestigiada escola e também convivia alguns públicos, alguns pessoais, alguns em minha própria
mente, levaram-me a escrever este livro”.
com os bebês e as crianças pequenas (de idades entre um e dois anos) de minhas irmãs e
de amigos. A diferença entre umas e outras me impressionou. Com poucas exceções, as
crianças na classe (das quais eu gostei muito), apesar de seus ricos históricos escolares e
altos quocientes de inteligência, eram assustadas, tímidas, evasivas e introvertidas. Por Commented [JC2]: Literalmente: “auto-protetoras”.
outro lado, as crianças em casa eram corajosas aventureiras.
Logo se tornou claro para mim que as crianças são, por natureza e desde o
nascimento, muito curiosas sobre o mundo ao seu redor e cheias de energia, recursos e
competência para explorá-lo, conhecê-lo e dominá-lo. Em síntese, as crianças são muito
mais ávidas para aprender, e muito melhores no aprendizado, do que muitos de nós,
adultos. Bebês não são bolhas, são verdadeiros cientistas. Se é assim, então por que não
transformamos as escolas em lugares onde as crianças possam ser autorizadas,
encorajadas e (se e quando elas pedirem) ajudadas a explorar e a tomar consciência do
mundo ao seu redor (no tempo e no espaço), da maneira que lhes parecer melhor?
Eu disse isso em meus dois primeiros livros, How Children Fail (1964) e How
Children Learn (1966), os quais, em pouco tempo, foram amplamente lidos e traduzidos
em muitos outros países. Ao lado de outros educadores, muitos dizendo a mesma coisa,
eu me encontrei ocupado como palestrante, convidado de programas de televisão etc.
Muitas pessoas, entre educadores, parentes e o público em geral, aparentaram estar muito
interessadas na ideia, mesmo entusiasmadas com ela, de fazer das escolas lugares onde
as crianças seriam alunos independentes e autônomos. Convidaram-me, inclusive, a
oferecer um curso sobre Aprendizado Direcionado ao Aluno na Faculdade de Educação
de Harvard. Por um momento, pareceu a mim e aos meus aliados que, em poucos anos,
tais mudanças poderiam ser implementadas em muitas escolas, e mesmo em uma maioria
delas, após certo tempo.
Quando pais e mães me disseram, como muitos fizeram, que não estavam
satisfeitos com as escolas de seus filhos, eu os motivei a formar comitês, a promover
encontros e a conseguir adesão pública à reforma escolar, pressionando as diretorias
escolares e, se necessário, elegendo outras. Em alguns lugares, isso efetivamente foi feito.
De início, eu não questionava a natureza compulsória da escolarização. Mas, por
volta de 1968, eu senti fortemente que as mudanças que gostaria de ver nas escolas,
sobretudo na maneira como os professores se relacionavam com os alunos, não poderiam
acontecer enquanto as escolas fossem compulsórias. Eu escrevi sobre isso em um artigo,
Not So Golden Rule Days, que foi publicado primeiramente na Center Magazine do
Centro para o Estudo das Instituições Democráticas, e depois em meu terceiro livro, The
Underachieving School. A partir do momento em que as normas compulsórias de
comparecimento escolar obrigam os professores a fazer trabalho de polícia e os impedem,
por consequência, de ensinar verdadeiramente, seria no melhor interesse dos professores,
bem como dos pais e das crianças, repelir essas normas ou, pelo menos, modificá-las
substancialmente. No artigo, eu sugeri alguns passos ou estágios políticos pelos quais isso
poderia ser feito.
Nesses termos, muitos de nós trabalhamos, com grande energia, entusiasmo e
confiança, em prol desse tipo de reforma escolar. Como acontece com quem está lutando
por uma causa, nós víamos cada sinal de transformação, ainda que pequeno, como mais Commented [JC3]: Literalmente: “Como fazem as pessoas
uma prova de que a esperada mudança estava vindo. Ainda não havíamos compreendido que estão trabalhando por mudança”. A tradução procura
evitar repetição de palavras.
que, no atual mundo da mídia de massa, as ideias entram e saem de moda tão rapidamente
quanto as roupas. Por um momento, a reforma escolar estava na moda. Não havia como
pudéssemos saber que era apenas uma moda. Só muito tarde se descobre o que é apenas
moda e o que tem efeito duradouro.
Mesmo assim, houve sinais. Eu fui um dos palestrantes convidados para ir a
Minneapolis, uma cidade liberal em um estado liberal, falar perante uma grande
conferência de professores de Minnesota. Na minha sessão houve talvez setecentos
ouvintes. Após minha fala, durante as perguntas, que até então pareceram amigáveis, uma
mulher robusta disse, com uma voz dura e os lábios apertados em uma expressão mal-
humorada: “O que você faz com as crianças que são simplesmente preguiçosas?” A Commented [JC4]: Literalmente: “Uma robusta mulher,
audiência inteira irrompeu em um sonoro aplauso. Eu fiquei assustado e chocado. Quando lábios finos cerrados curvados para baixo nos cantos, disse
numa voz dura e brava”.
o aplauso terminou, eu repliquei o melhor que podia, e a sessão retomou o seu curso com
a polidez habitual. Depois, eu removi a lembrança constrangedora desse pequeno
incidente. Eu não queria ouvir o que ele estava dizendo abertamente. Que, por um
segundo, o silêncio majoritário falou, e disse: “As crianças são más”. Commented [JC5]: Literalmente: “Crianças não são
nenhum bem”.
Nas minhas viagens eu frequentemente fui convidado para visitar escolas e salas
por pessoas que diziam: “Nós lemos seus livros, pensamos que eles são maravilhosos e
estamos fazendo tudo o que você disse”. Bem, eles geralmente estavam fazendo mesmo,
mas não da forma como pensavam – eles estavam fazendo todas as coisas erradas e
prejudiciais que eu descrevi nos livros e que eu mesmo já fizera outrora. Algumas pessoas
também falaram para mim com grande entusiasmo sobre programas de inovação. Só que
esses programas sempre foram custeados com dinheiro federal. E sempre aconteceu de,
com o passar do tempo, interrompido o financiamento federal, interrompia-se o programa.
As pessoas podem se sentir mal diante da possibilidade de perder esses maravilhosos
programas. Mas pagar por eles com dinheiro local, com seu próprio dinheiro? Isso nunca
foi considerado.
Quando viajei a diferentes lugares para palestrar, fui sempre recebido no aeroporto
por duas ou três pessoas. Normalmente, éramos amigos desde o começo. Eles haviam lido
meus livros, eram tão experientes quanto eu. Sempre passávamos um bom tempo juntos, Commented [JC6]: Literalmente: “viram tantas coisas
falando sobre os assuntos com os quais concordávamos, compartilhando relatos de quanto eu vi”.

sucesso, de horror, de infortúnio. Eu me sentia tão confortável no meio desses meus


amigos que, na ocasião da palestra, presumia que toda a audiência, com algumas poucas
exceções, devia ser como eles. Apenas lentamente eu percebi que as pessoas que me
levaram para palestrar eram quase sempre uma minúscula minoria em suas próprias
escolas ou comunidades, e que minha tarefa era exclamar publicamente em alta voz o que
elas já vinham dizendo insistentemente, ou, ao contrário, o que elas nunca disseram, por Commented [JC7]: Literalmente: “O que as pessoas
medo. Essas pessoas acreditavam que, se eu falasse – autor famoso, convidado do estavam cansadas de ouvir elas falarem”.

programa Today etc. –, o público prestaria atenção.


A partir de muitas experiências como essas, nos primeiros anos da década de 1970,
eu comecei a ver, lenta e relutantemente, mas cada vez com mais certeza, que o
movimento pela reforma escolar era, em sua maior parte, apenas moda e ilusão.
Pouquíssimas pessoas, dentro ou fora das escolas, estavam dispostas a apoiar ou mesmo
a tolerar que fossem dadas mais liberdade, escolha e autonomia às crianças. Dentre esses
poucos dispostos, muitos o estavam não porque acreditavam que as crianças realmente
quisessem e pudessem descobrir o mundo, mas porque pensavam que dar às crianças
alguma aparência de liberdade (permitindo-lhes usar roupas velhas, correr, gritar,
escrever na parede etc.) era uma forma astuta de convencê-las a fazer o que a escola
sempre quis que elas fizessem: aprender as disciplinas escolares, entrar em um bom
colégio etc. Liberdade não era uma maneira séria de viver e trabalhar, mas apenas um
truque, um “dispositivo motivacional”. Quando ele não produziu rapidamente os
resultados esperados, os educadores o descartaram sem pensar duas vezes e sem
ressentimento.
Ao mesmo tempo, eu observava mais e mais evidências de que muitos adultos
ativamente desconfiam e desgostam de muitas crianças, inclusive de seus próprios filhos,
e com muita frequência especialmente destes. Expus as causas disso em meus livros
Escape From Childhood e Instead of Education. Em resumo, pessoas cujas vidas são
difíceis, chatas, dolorosas, sem significado – pessoas que sofrem – tendem a se ressentir
daquelas que parecem sofrer menos do que elas, e as farão sofrer, se puderem. Pessoas
que se sentem a si mesmas em cadeias, sem nenhuma esperança de alguma vez poder
retirá-las, querem colocar cadeias em todas as outras.
Em suma, tornou-se claro para mim que a grande maioria das escolas chatas,
estritamente organizadas e controladas, estava fazendo exatamente o que elas sempre Commented [JC8]: Literalmente: “arregimentadas”.
fizeram e o que a maioria das pessoas sempre quis: ensinar as crianças sobre a Realidade.
Ensiná-las que A Vida Não É Um Pique-Nique. Ensiná-las a Cale-Se e Faça O Que Lhe
Disseram. Por favor, não me compreendam mal. As pessoas não pensam dessa forma sem
um motivo. Um homem, escrevendo simpaticamente para um jornal radical sobre a vida
em pequenas cidades de Iowa – onde, a fim de pagar seus débitos, muitos fazendeiros que
trabalham em tempo integral têm de trabalhar além do estabelecido em abatedouros
(“cavando pulmões”, como ele diz) –, afirma: “O trabalho ético tem sido tão
completamente infundido nessas pessoas a ponto de fazê-las pensar que qualquer um que
não aguente, continuamente, em tempo integral, um trabalho penoso é um vadio”. As
pessoas não querem que seus filhos sejam vadios. Para a maioria delas, Retornar Aos
Princípios Básicos é um código para Chega de Diversão E De Jogos Na Escola. A maior
parte delas particularmente não se importa com a leitura propriamente dita. Elas mesmas
leem pouco – assistem televisão, como a maioria dos americanos. O que querem que suas
crianças aprendam é como trabalhar. Por “trabalhar” essas pessoas não entendem exercer
uma atividade boa e habilidosa da qual possam se orgulhar. Elas mesmas não têm esse
tipo de trabalho, e nunca esperam ter. Nem mesmo chamam isso de “trabalho”. Eles
querem que seus filhos, tão logo tenham oportunidade, sejam capazes e queiram aguentar,
por si mesmos, trabalhos penosos em tempo integral. E a melhor maneira de prepará-los
para isso é tornando a escola o mais semelhante possível a um trabalho penoso em tempo
integral.
É claro, essas pessoas ficariam satisfeitas ao ver seus filhos em um “bom” colégio,
tornando-se advogados, médicos, executivos, parte desse mundo de riqueza e poder que
elas veem todos os dias na televisão. Mas isso é como ganhar na loteria. Você pode
esperar – com a única esperança que tem – que isso aconteça, mas não acredita que
acontecerá de fato. De qualquer forma, quando seus filhos completam o segundo ou
terceiro grau, as pessoas, em sua maioria, sabem que não ganharão o grande prêmio. O
que resta é aquele trabalho penoso em tempo integral. É para preparar as crianças para
isso que a maior parte das escolas serve, sempre serviu.
Recentemente, defrontei-me mais uma vez com essa verdade. Tendo tomado um
táxi até o aeroporto, passei a conversar com o motorista, um homem alegre e amigável.
Ele me perguntou aonde eu ia e o que fazia. Eu disse que escrevo livros sobre crianças,
escolas e educação, e também que publiquei uma pequena revista sobre pessoas que
ensinam seus filhos em casa. Ele disse que não considerava isso uma ideia muito boa, e
prosseguiu falando sobre escolas e o que estava errado com elas. Assim que cheguei ao
aeroporto, tomei nota de tudo o que pude lembrar do que ele disse. Os fragmentos que
cito aqui dão uma ideia fiel do todo.
Logo no começo da nossa conversa, ele disse:
Acho que os alunos, hoje em dia, estão mandando nos professores, ao invés do
contrário... Quando eu era criança, se apenas confrontasse um professor,
levaria uma surra. (Ele riu.) E depois teria que rezar para que ele não contasse
para o meu pai.

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