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6º ENCONTRO DE PSICÓLOGOS

JURÍDICOS DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO

ORGANIZAÇÃO DO VI ENCONTRO:
SERVIÇO DE APOIO AOS PSICÓLOGOS DA
CORREGEDORIA GERAL DO TJRJ

ORGANIZAÇÃO DO LIVRO:
SERVIÇO DE APOIO AOS PSICÓLOGOS DA
CORREGEDORIA GERAL DO TJRJ

APOIO:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO
CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIÇA DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO JUDICIÁRIA


DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
6º ENCONTRO DE PSICÓLOGOS
JURÍDICOS DO TRIBUNAL DE
JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE
JANEIRO

“Os Limites da Clínica: A Prática do


Psicólogo no Sistema Judiciário”

Data: 17 e 18 de novembro da 2005


Programação

Dia 17 de novembro:

9h – Mesa de Abertura:
• Desembargador Manoel Carpena Amorim -
Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça / RJ

•Psicóloga Naura dos Santos Americano –


Coordenadora do Quadro de Psicólogos da
CGJ

9h30 - 1ª Mesa - A prática psi e o


sistema judicial: história
•Coordenação – Maria das Graças Duarte -
Psicóloga do TJRJ

Palestrantes:
• Vera Malaguti Batista – Mestre em História
pela Universidade Federal Fluminense.
Doutora pelo Instituto de Medicina Social /
Uerj. Professora da Universidade Cândido
Mendes e membro do Instituto Carioca de
Criminologia. Autora dos livros ‘Difíceis
Ganhos Fáceis’ e ‘O medo na cidade do Rio
de Janeiro’.
• Mário Bruno – Professor do Instituto de
Letras da Uerj. Mestre e Doutor em Teoria
Literária/UFRJ. Doutor em teoria
psicanalítica/UFRJ. Autor de ‘Lacan e
Deleuze: o trágico em duas faces do além do
princípio do prazer’.

12h - Almoço

13h30 - 2a mesa - O saber psi e o


sistema judicial: relatos
• Coordenação – Ana Alice Trindade -
Psicóloga do TJRJ

Palestrantes:
• Lilian Monteiro Ribeiro - Psicóloga do Projeto
de Medidas Terapêuticas da Vara de
Execuções Penais - Rio de Janeiro ‘Medidas
Terapêuticas para Adultos’
• Daniele Venâncio - Psicóloga do TJMG
‘Projeto de Atendimento Integral ao Paciente
Judiciário/PAI PJ’
• Mônicca Moreira - Psicóloga do TJRJ
‘Adoção’

15h30 - 3ª Mesa – A prática psi e o


sistema judicial: limites
•Coordenação – Eliana Olinda Alves -
Psicólogo do TJRJ

Palestrantes:
• Gisálio Cerqueira Filho - Cientista político,
Doutor em Ciências Humanas e Professor
Titular de Sociologia. Pesquisador do
Laboratório de Psicanálise, Psicossomática e
Psicopatologia Fundamental da UFF.

18/11 – Restrito aos Psicólogos do Quadro da


CGJ

A VIDA IMPOLÍTICA CONVERTIDA EM


FUNDAMENTO

Dr. Mário Bruno (UERJ-UFF)

Uma
vez que
a
impolíti
ca vida
natural,
converti
da em
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ento da
soberan
ia,
ultrapas
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cidade,
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mesmo
tempo
em uma
linha
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movime
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deve ser
incessa
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e
redesen
hada
(AGA
MBEN,
2002,
p.138)

Giorgi
o
Agamb
en
Introdução

Este texto trata de políticas que pretenderam


vigiar, punir e se apoderar da vida, a partir do
século XVII. Neste percurso nos auxiliarão dois
filósofos contemporâneos: Michel Foucault e
Giorgio Agamben.

1. A idade de ouro da ortopedia social

Num conjunto de conferências que foram


publicadas com o nome A verdade e as formas
jurídicas, Foucault procurou situar nos fins do
século XVIII e início do século XIX um tipo de
formação social que ele designou de sociedade
disciplinar. Diz-nos que a reorganização do sistema
judiciário e penal nos diferentes países da Europa e
do mundo foi importante para a emergência da
sociedade disciplinar. Sabemos, segundo o autor,
que essa transformação teve amplitude e cronologia
diferentes nos diversos países em que ocorreu. A
Inglaterra e a França, por exemplo, sofreram
modificações distintas. O direito penal inglês
apresentava trezentos e quinze casos que ele punia
com a morte. Um dos sistemas penais mais
selvagem e sangrento que a história das
civilizações conheceu. Não obstante, essa situação
se modificou no início do século XIX, sem que as
instituições judiciárias inglesas se modificassem
profundamente.
Na França, algo inverso aconteceu.
Profundas modificações ocorreram. Beccaria,
Bentham e Brissot redefiniram o princípio
fundamental do sistema teórico da lei penal: a
infração deixou de ter relação com a falta moral ou
religiosa. O crime passou a ser considerado ruptura
com a lei civil estabelecida no interior de uma
sociedade pelo lado legislativo do poder político.
Antes de a lei existir não pode haver infração.
Criminoso é aquele que danifica a sociedade. Ele é
um inimigo interno que rompeu com um pacto
social. O problema da lei penal não era mais a
vingança ou a redenção de um pecado, mas a
reparação da perturbação causada à sociedade. A
lei penal deveria reparar o mal ou impedir que
males semelhantes pudessem ocorrer. Nesse
sentido, basicamente quatro penas foram previstas:
deportação, trabalho forçado, vergonha (escândalo
público) e pena de Talião. Contudo, o
funcionamento da penalidade adotado pelas
sociedades industriais em vias de formação foi
inteiramente diferente. Projetos bem precisos foram
substituídos por uma pena que Beccaria havia
falado ligeiramente e Brissot apenas fez alusão: o
aprisionamento. A prisão não surgiu da reforma da
penalidade no século XVIII, ela emergiu como um
fato, no início do século XIX, sem justificativa
teórica.

A polícia das virtualidades


Desde o início do século XIX o princípio de
uma lei universal foi substituído pelo o que
podemos denominar de circunstâncias atenuantes.
Assim como a penalidade se propôs cada vez
menos a definir de modo abstrato o que é nocivo à
sociedade. O problema passou a ser outro. As
punições não visavam mais ao que já foi realizado.
O problema estava ao nível do que os indivíduos
podem fazer. A grande noção da criminologia
passou a ser a periculosidade. Não se tratava mais
de uma reação penal ao que foi feito, mas controle
do comportamento no instante em que ele se
esboça. Com isso, o poder judiciário deixou de ser
uma instituição penal autônoma. A separação
atribuída a Montesquieu, que pressupõe os três
poderes (judiciário, legislativo, executivo) cede
lugar, nesse momento, a um controle penal
punitivo ao nível das virtualidades e que não pode
ser efetuado pela própria justiça. Surgem poderes
paralelos ao judiciário: a polícia (para a vigilância),
instituições psicológicas, psiquiátricas,
criminológicas e pedagógicas (para correção).
Todas essas instituições eram para corrigir
virtualidades. Foucault denominou essa época de
idade de ouro da ortopedia social. Nessa era, o
grande nome não foi nem Kant nem Hegel o mais
importante foi Bentham. Ele previu um esquema
para a sociedade de vigilância: o famoso Panóptico.

O poder do espírito sobre o espírito


O Panóptico era uma arquitetura que
permitia o poder do espírito sobre o espírito, a
instituição que deveria valer para hospitais, prisões,
casas de correção, escolas, hospícios, fábricas, etc.
Ele era a utopia de uma sociedade e de um poder
que pretendia manter todos os indivíduos sob
vigilância permanente.
No século XVIII, os mecanismos sociais de
controle não pararam de proliferar. Na Inglaterra
surgiram comunidades religiosas que tinham dupla
tarefa: vigilância e assistência. Assim foram as
sociedades de controle aos vícios, os Metodistas, os
Quakers, etc. Por outro lado, a França, possuidora
de um forte aparelho do Estado Monárquico, criou,
ao lado dos instrumentos judiciários clássicos (os
parlamentares, as cortes, etc), um instrumento para-
judiciário: a polícia. É interessante notar que nessa
época a prisão ainda não era uma pena do Direito.

A lettre-de-cachet
Foucault relaciona o surgimento da prisão a
uma prática para-judiciária denominada lettre-de-
cachet. Tratava-se de uma utilização do poder real
feita espontaneamente por grupos. Quando uma
lettre-de-cachet era enviada contra alguém, esse
não era enforcado, nem multado, nem marcado,
mas preso numa cela por um tempo não
estabelecido previamente até nova ordem do rei. A
idéia era aprisionar para corrigir.
A prática da lettre-de-cachet não tem
origem no universo do Direito e não nasceu da
teoria jurídica do crime. A idéia de uma penalidade
que procura corrigir aprisionando nasceu num jogo
de trocas entre demandas sociais (de grupos
determinados) e o exercício do poder, mas,
sobretudo, era uma idéia policial, nasceu paralela à
justiça. O que ocorreu na França no século XVII é
que os instrumentos estatais, estabelecidos pelo
poder real, passaram a ser usados por grupos
sociais. O que estava na origem do aparecimento
desses grupos de controle era a emergência de um
novo tipo de riqueza (materialidades não-
monetárias): máquinas, estoques, mercadorias, etc.
Era o nascimento do capitalismo. As riquezas
estavam expostas à depredação. O problema do fim
do século XVIII era proteger essa nova forma
material da fortuna. Não é estranho que o criador
da polícia na Inglaterra, Colquhon, era alguém que
foi inicialmente comerciante. A polícia inglesa
nasceu para vigiar as mercadorias armazenadas nas
docas de Londres. Outra forte razão para a
pilhagem, tanto na Inglaterra quanto na França, foi
o desaparecimento dos grandes espaços não-
cultivados e das terras comuns. Com isso,
multiplicaram-se os trabalhadores agrícolas
desempregados, vivendo como conseguiam
(pilhando frutas, legumes, etc). Fica claro que a
nova distribuição espacial e social da riqueza
industrial e agrícola tornou necessária novas
formas de controle. Para Foucault, esta foi a origem
da sociedade disciplinar.
O lirismo e a obsessão
No Panóptico de Bentham, no centro da
prisão há uma torre que é projetada de tal forma
que pode vigiar sem que o vigilante seja visto. O
vigilante pode até ser virtual, mas o indivíduo que
está na cela tem a impressão de ser vigiado e de
poder ser punido. Foucault denuncia que o modelo
da vigilância e da punição foi um coeficiente de
efetuação que atravessou todos os dispositivos
institucionais. Em outras palavras, a família passou
a ser uma espécie de prisão, assim como a fábrica,
etc. Claro isso que isso se dava em graus diferentes.
Numa entrevista, Foucault (FOUCAULT,
1984, p.215) diz que Bentham é o complemento de
Rousseau. O sonho rousseauniano, presente em
muitos revolucionários, era de uma sociedade
transparente, visível e legível em cada uma de suas
partes, nas quais cada lugar que ocupemos nos
permita ver o conjunto da sociedade; que os
corações se comuniquem uns com os outros, que os
olhares e opiniões se encontrem. Bentham é isso
mesmo pelo avesso. Ele pensa uma visibilidade
organizada inteiramente em torno de um olhar
dominador e vigilante; um poder rigoroso e
meticuloso. Nesse sentido, o lirismo da Revolução
articula-se à monstruosa idéia técnica do exercício
de um poder omnividente. A obsessão de Bentham
complementa o lirismo de Rousseau.

2. A condição pós-moderna: o abandono

Muito oportunamente Agamben, numa obra


denominada Homo sacer: o poder soberano e a
vida nua I, traça um quadro que retoma e desdobra
questões foucaultianas. Como vimos, Foucault nos
disse algo assustador: o modelo do presídio,
projetado por Bentham, foi o diagrama da
sociedade disciplinar. Todavia, Agamben nos
afirma algo mais tenebroso: o campo de
concentração é uma espécie de diagrama da
sociedade contemporânea. Nas palavras de
Agamben: “Isto nos levará a olhar o campo não
como um fato histórico e uma anomalia pertencente
ao passado (mesmo que, eventualmente, ainda
verificável), mas de algum modo como a matriz
oculta, o nómos do espaço político em que ainda
vivemos” (AGAMBEN, 2002, p.173).
É preciso aqui acompanhar um pouco a
lógica do argumento de Agamben, para que
possamos encontrar o sentido desse privilégio do
campo em relação ao Panóptico. Parece que
Agamben ensaia uma crítica da razão política
contemporânea que rompe com a de Foucault e
paradoxalmente a suplementa.

A banda de moebius da soberania


Agamben (AGAMBEN, 2002, p.23) inicia
por perceber um paradoxo que se dá nos dias de
hoje quanto ao conceito de soberania. Nas
sociedades tradicionais, o soberano estava “ao
mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento
jurídico” (AGAMBEN, 2002, p.23). O soberano
tendo “o poder legal de suspender a validade da lei,
coloca-se legalmente fora da lei” (AGAMBEN,
2002, p.23). Diremos, era uma espécie de banda de
moebius da soberania: a vigência da lei garantida
por um fora-interior. O soberano, em estado de
exceção, situa-se dentro e fora do ordenamento
jurídico. Entretanto, a exceção aí não se subtraia a
regra; o vigor da lei pressupõe essa exceção: “Não
é a exceção que se subtrai à regra, mas a regra que,
suspendendo-se, dá lugar à exceção e somente
deste modo se constitui como regra, mantendo-se
em relação com aquela” (AGAMBEN, 2002, p.26).
O modelo das sociedades de soberania é a exclusão
inclusiva. Não é à toa que a palavra “bando”, no
direito germânico, servia para designar a exclusão
da comunidade e a insígnia do soberano. A relação
de exceção é uma relação de bando. O banido não
está simplesmente fora da lei, “mas é abandonado
por ela, ou seja, exposto e colocado em risco no
limiar em que a vida e direito, externo e interno se
confundem” (AGAMBEN, 2002, p.36). Agamben
relaciona essa situação do abandono também a uma
figura histórica que emergiu no direito romano: O
homo sacer. A sacralidade desse homem sacro é “a
vida insacrificável e, todavia matável”
(AGAMBEN, 2002, p.90). É a vida nua na sua
relação de abandono: qualquer um pode matar um
homo sacer. Claro que ao revisitar a figura jurídica
do homo sacer (um morto-vivente) Agamben
pretende fazer uma história do presente: pensar as
relações de bando nos dias atuais. É preciso
problematizar a figura do abandono no nosso
cotidiano que torna as vidas matáveis nas favelas,
nos guetos, nos hospitais, no interior das famílias
pobres e das abastadas, etc.

A forma vazia da lei


É explícita a retomada que Agamben faz
das Teses sobre o conceito de história, de Walter
Benjamin, em especial da oitava tese, que por sua
vez traz um comentário sobre a problemática
formulada por Carl Schmitt. O que está em questão
nessas análises é a concepção da história como
estado de exceção. Tudo nesses textos anuncia o
fim da Modernidade. Parece que a obra de
Agamben dá um passo a mais, ao retomar as
relações entre a moral kantiana e o problema da lei.
Essa construção teórica não é fácil. O filósofo
italiano mostra que a figura moderna da lei
kantiana, como pura forma reduzida ao ponto zero
de seu significado, ganhou sua vigência no mundo
atual. Kant descreveu, com quase dois séculos de
antecedência, na forma de um sublime sentimento
moral, uma condição que se tornaria familiar nas
sociedades de massa e nos Estados totalitários de
nosso tempo. A vida, sob uma lei que vigora sem
significar, assemelha-se à vida no estado de
exceção e a lei, por ser carente de conteúdo, torna-
se mais facilmente disseminada. Com isso, saímos
do paradoxo da soberania para nos tornarmos
homens sacros, abandonados num estado de
exceção. Diz Agamben: “Uma pura forma da lei é
apenas a forma vazia da relação; mas a forma vazia
da relação não é mais uma lei, e sim uma zona de
indiscernibilidade entre lei e vida, ou seja, um
estado de exceção” (AGAMBEN, 2002, p.66).

A tanatocracia do biopoder
Numa conferência, denominada “O
nascimento da medicina social”, Foucault
apresentou o conceito de biopolítica. Para ele
(FOUCAULT, 1984, p. 80), com o capitalismo, em
fins do século XVII e início do século XIX, o corpo
enquanto força de produção, força de trabalho, foi
socializado. O controle da sociedade sobre os
indivíduos não se operou simplesmente pela
consciência ou pela ideologia. O grande
investimento capitalista foi na biologia, no
somático, no corporal: o corpo tornou-se uma
realidade biopolítica.
Agamben elogia Foucault pelo mérito de
trazer à tona o horizonte biopolítico para pensar a
Modernidade. No entanto, fica perplexo diante de
alguns recortes na pesquisa de Foucault. Afinal,
para Agamben o biopoder não surgiu com a
Modernidade, havia uma continuidade de fundo
entre o poder soberano e o biopoder. A implicação
da vida na esfera política constitui o núcleo
originário do poder soberano. O fato fundamental
na Modernidade é que a política moderna, em
íntima simbiose com a vida, perdeu a
inteligibilidade que parecia caracterizar o edifício
jurídico-político da vida clássica. Aqui, a
interpretação do conceito de biopoder traz uma
sutil diferença em relação às teses de Foucault
sobre a Modernidade. Segundo Agamben, “a vida
nua natural que no antigo regime era politicamente
indiferente e pertencia, como fruto da criação, a
Deus, e num mundo clássico era (ao menos em
aparência) como zoé da vida política, entra agora
em primeiro plano na estrutura do Estado”
(AGAMBEN, 2002, p.134). A vida nua tornou-se o
fundamento e a legitimidade da soberania.

Os novos morto-viventes
A Declaração dos direitos do homem e a
Declaração dos direitos do cidadão são duas
realidades diferentes? São proclamações gratuitas
de valores eternos metajurídicos, sem muito
sucesso? Essas perguntas não são novas, apenas
retomadas por Agamben que na esteira de Hanna
Arendt, procura encontrar nessas declarações, uma
espécie de significação latente. De acordo com
Agamben (AGAMBEN, 2002, p.135), na passagem
da soberania régia de origem divina à soberania
nacional, a vida nua natural tornou-se portadora
imediata de soberania. As conseqüências
biopolíticas disso só começamos a medir nos dias
atuais. No antigo regime, o princípio de natividade
e o princípio de soberania estavam separados. O
nascimento dava lugar ao sujet, ao súdito. Com a
Revolução Francesa sugiu o sujeito soberano para
constituir o fundamento do Estado-nação. Com a
Revolução, a vida passou a ser a origem e o
fundamento da soberania. Era ao mesmo tempo um
novo princípio igualitário e uma nova determinação
biopolítica da soberania. Essa mesma política
chega a sua exasperação no século XXI. Ela
redefine continuamente a vida no limiar que
articula e separa aquilo que está dentro do que está
fora. Trata-se agora de uma vida natural
integralmente incluída na pólis. Sem dúvida é essa
política que nos coloca todos em estado de
abandono. Somos os novos morto-viventes.
Agamben esforça-se por enumerar as situações de
abandono nos séculos XX e XXI: os hebreus
desnacionalizados para serem enviados aos campos
de extermínio; a seguida falência dos esforços de
organismos internacionais, inclusive da ONU; toda
a biopolítica do terceiro Reich; a politização da
morte nos casos de coma dépassé, etc. Não é difícil
aumentar essa lista de exemplificações fornecida
por Agamben. A política em que a exceção torna-se
regra parece dominar o mundo contemporâneo. O
abandono está longe de ser uma deficiência do
Estado-nação.
Que caminhos nos aponta Agamben quanto
a essa situação política? Diante de questões tão
delicadas, o filósofo italiano mostra-se prudente em
suas conclusões. Não tem propriamente um projeto
político. Contudo, parece simpatizar com uma certa
tendência heideggeriana.
Heidegger e a vida factícia
Para Agamben (AGAMBEN, 2002, p.160),
a questão do abandono não pode ser pensada sem
levarmos em consideração o que Heidegger
denominou de Dasein. A estrutura do Dasein, na
sua facticidade, pressupõe uma distinção
impossível entre a vida e sua situação efetiva, entre
o ser e seus modos de ser. Com isso, desaparecem
as distinções da antropologia tradicional (corpo e
espírito; sensação e consciência; eu e mundo;
sujeito e propriedade). Aliás, é na compreensão da
facticidade da vida que Heidegger discordará
gravemente do Nacional-Socialismo. O que
Heidegger desprezou, sobretudo em Rosemberg,
foi ter transformado a experiência da vida factícia
em valor biológico. A facticidade como “fato”,
aprisionava a vida factícia numa determinação
racial objetiva. Para concluirmos, diremos que
Agamben se aproxima de Heidegger para pensar o
abandono à luz do que o filósofo alemão
denominou de “sem-abrigo”. O habitar nunca
abolirá essa ausência de abrigo. Talvez seja esse o
nosso desafio no século XX. Para além das
tradicionais formas de soberania, teremos que
caminhar como Édipo em Colono (sem Estado e
sem Deus?), num mundo em que não há mais como
esconder um abandono ao fora de si. Precisamos
reinventar uma ética e uma política da finitude.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder


soberano e a vida nua I. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2002.

FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Rio


de janeiro, Graal, 1984.

------ A verdade e as formas jurídicas. Rio de


Janeiro, NAU e PUC, 1996.

------ Vigiar e Punir. História da violência nas


prisões. Petrópolis, Vozes, 1999.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte I.


Petrópolis, Vozes, 1989.

Mário Bruno
mariobrunouerj@yahoo.com.br

As classificações e os desclassificados

Vera Malaguti Batista

Tenho refletido sobre o impacto

profundo do positivismo da nossa maneira de

pensar. Euclides da Cunha livrou-se dele ao

defrontar-se com os miseráveis de Canudos:

“O cisco positivista sai dos


olhos, iluminando-se nas
fogueiras ‘destruidoras de
uma crença forte’, como
das mulheres preferindo
se lançar nela com os
filhos a se render à
República. ‘Os Sertões’ é
um livro escrito por uma
compulsão religiosa. Mais
do que um testemunho do
holocausto de quem não
suportou assistir a seus
últimos dias, é um ser vivo
soprado por essa crença
imbatível do ser em
insurreição sertaneja”1.

Até o final do século XIX o discurso

jurídico-policial e o discurso médico se

entrelaçaram para criar a criminologia, nova

“ciência” cujo risco sempre foi ser “saber e

arte de despejar perigos discursivos”2. Aliás,

para Zaffaroni a criminologia nasce em 1484

com o Martelo das Feiticeiras, “como

exposição da etiologia do mal, dentro de um

sistema integrado: criminologia penal,

processo penal e criminalística como é o

Malleus, elaborado com terrível finura, com

uma enorme finura discursiva, com uma

1 MARTINEZ CORREA, José Celso, in Caderno Mais,


Folha de São Paulo, 28 de janeiro de 2001.
2 ZAFFARONI, Eugenio R. Curso de Criminologia.
Rio de Janeiro: UCAM, mimeo, 2000.
artificiosidade discursiva que realmente é

muito superior ao positivismo de 400 anos

depois, que chega às mesmas conclusões,

com outra linguagem”3. A partir dos Manuais

dos Inquisidores da inquisição medieval

começam a estabelecer-se a disposição e os

dispositivos de cura contra os hereges. Ainda

que a cura fosse a morte4.

A criminologia, que aparece como tal

no fim do século XIX acumula discursos

durante 500 anos; discursos que têm como

eixo impulsivo sempre o medo, como nos diz

Zaffaroni. E, para ele, esse eixo é construído

na luta pelas corporações por este

3 ZAFFARONI, Eugenio R. Conferencia. In: Capítulo


Criminologico: revista de las disciplinas del control
social, v. 27, nº 3. Zulia: Instituto de Criminologia –
Univesidad del Zulia, 1999. p. 157.
4 Cf. BATISTA, Nilo. Matrizes Ibéricas do Sistema
Penal Brasileiro - I. Op. cit.
saber/poder do medo5. O discurso médico e a

sua corporação é um desses eixos. Não

esqueçamos da importância do médico-

cirurgião para a localização no corpo; é no

corpo físico que esse poder é exercido. Na

Inquisição, os juízes eclesiásticos precisam de

um cirurgião para a descoberta do punctum

diabolicum. A bruxaria aparece como

realidade corporal, a ser torturada para

confirmar pela boca o que havia sido provado

no corpo. Colaborando com o trabalho dos

juízes, os médicos se transformam na

autoridade que estará à frente de uma nova

repressão inaugurada no século XVI pelo

médico Jean Wier, que identificaria a feitiçaria

5 BATISTA, Vera Malaguti. O medo na cidade do Rio


de Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de
Janeiro: Revan, 2003.
com as doenças mentais. O trabalho do jurista

Bodin (Démonomie des Sorciers) indica, com

seu vocabulário, a vitória médica. Um século

depois a démonomanie é uma das rubricas

clássicas da nosologia psiquiátrica, aportando

uma nova legalidade científica, que se dirige à

amputação desse “ser coletivo”6. Para Baud,

na inquisição medieval e depois no nazismo,

sempre que se criar um mecanismo

institucional para esta “amputação terapêutica

do ser coletivo” estão sendo criadas as

condições para o genocídio: um sistema de

legalidade científica dominado por uma

teologia e que essa política do mundo seja

apresentada para defender o “ser coletivo”.

6 Cf. BAUD, Jean-Pierre. Genése institutionalle du


génocide. In: OLFF-NATHAN, Josiane (Org.). La
science sous la troisième Reich. Paris: Seuil, 1993
Comecemos por entender aquilo que

provocou uma tempestade no século XVIII: a

estratégia epistemológica da Encyclopédie:

uma necessidade de dividir e classificar os

fenômenos que iam “muito além dos arquivos

de polícia”7. A pergunta que se fazia quando

foi lançada era: “Era ela (...) trabalho de

referência ou machine de guerre?”8. Começa

aí um processo em que a classificação torna-

se uma exercício de poder: afinal, “um inimigo

definido como menos do que humano pode

ser aniquilado”9. Darnton nos fala da ação

social que flui através de fronteiras

determinadas por esquemas de classificação.

Assim, as representações das áreas


7 Cf. DARNTON, Robert. O grande massacre de
gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 247.
8 DARNTON, Robert. Op. cit. p. 248.
9 DARNTON, Robert. Op. cit. p. 249.
fronteiriças do corpo (das quais o organismo

se derrama para o mundo material: cabelos,

unhas cortadas e fezes, presentes nas poções

mágicas) alertam para o perigo dessas

fronteiras que, desprotegidas, impõem a

entrada do caos. “Estabelecer categorias e

policiá-las é, portanto, assunto sério”10.

Darnton afirma que foi no século XVI

que o debate sobre o método e a disposição

correta na organização do conhecimento

começa a acontecer, impondo uma tendência

a mapear, delinear e espacializar segmentos

do conhecimento. Diderot e D’Alembert, a

partir da árvore do conhecimento de Bacon e

Chambers, aprimoram a versão iluminista da

enciclopédia ou “relato sistemático da ordem e

10 Op. cit. p. 251.


concatenação do conhecimento humano”.

D’Alembert descreveria a enciclopédia como

uma espécie de mapa do mundo.

Para Darnton, é no século XIX que esta

estratégia triunfa, com o surgimento das

modernas disciplinas escolares e a

secularização da educação. Mas para o autor,

o grande embate deu-se na década de 1750,

“quando os enciclopedistas reconheceram que

conhecimento era poder e, mapeando o

universo do saber, partiram para sua

conquista”11.

A psicologia, como a sociologia e a

criminologia, é uma disciplina fundada no

positivismo. Se pensarmos o positivismo como

uma atualização do saber/poder inquisitorial,

11 Op. cit. p. 270.


vamos localizar o papel do psicólogo e dos

saberes psi nos tribunais como algo que pode

se assemelhar em muito aquele cirurgião que

colaborava com o juiz nos tribunais da

Inquisição:

Eu abaixo assinado
Mestre cirurgião... certifico
que... examinei Lazare
Lamy de Safre acusado de
sortilégio em todas as
partes de seu corpo onde
minha vista e meu tato
puderam chegar e não
encontrei nele quaisquer
marcas nem cicatrizes,
senão duas a saber uma
sobre a nuca do pescoço
muito pequena e muita
sensível e a outra, acima
do ânus juntado-se ao
cóccix, um pouco puxado
ao lado da nádega
esquerda, e tendo-me dito
o dito Lamy que o Diabo o
havia marcado naquela
parte, eu o apalpei em seis
ou sete lugares tanto
sobre a dita cicatriz
quando nas proximidades
dela, sem que o dito Lamy
se queixa-se de que se lhe
fazia mal, embora as ditas
picadas fossem bastante
profundas; entretanto
todas elas verteram
sangue. A dita cicatriz
sendo da largura de cerca
de um duplo tornês de cor
semelhante às outras
cicatrizes que podem
ocorrer seja por
queimadura de carvão,
chagas e outras coisas
semelhantes que impedem
de reconhecer a causa
primitiva e eficiente12.

George Rosen situa no período entre

1750 e 1830 as fundações do movimento

sanitário do século XIX, “era de iluminismo e

revolução”13. Ele cita a importância da

Encyclopédie na medicina, seus vários artigos

12 MANDROU, Robert. Magistrados e feiticeiros na


França do século XVII. São Paulo: Perspectiva, 1979.
p. 84.
13 ROSEN, George. Uma história da saúde pública.
São Paulo: Unesp/Hucitec, 1994.
sobre duração da vida, hospital, mortalidade

infantil, crescimento ou declínio da população

etc. Desse contexto emerge uma “teoria de

ação social para a saúde”, concebida como

polícia médica para um controle racional e

sistemático.

É neste momento que surgem também

as reformas quanto ao tratamento dado à

loucura. A loucura, antes atribuída ao pecado

e às atividades do diabo, era trancafiada em

prisões, casas de correção, asilo e hospícios.

As contribuições teóricas do século XVIII, que

para Pessotti constituíam uma incipiente

psicopatologia clínica, resultavam de

observações do comportamento dos internos

nas instituições asilares através das doutrinas


médicas hegemônicas (introquímica,

pneumática e intromecânica) do século XVII.

O século XVIII não apresenta uma

sistematização do pensamento médico sobre

a loucura, que concilia critérios

neurofisiológicos com registros de aspectos

comportamentais. A formação médica não

dispunha de regulamentação rigorosa.

Os ventos da classificação

enciclopédica influenciam de Sauvages que,

em 1767, elabora uma classificação da

loucura, “conforme o método dos naturalistas”.

Erhard, em 1794, e Valenji, em 1796,

trabalham também com o sistema de

classificações de uma forma abrangente. É

Cullen quem, em 1782, exclui da loucura o


que não implique na noção de lesão. Para ele,

o delírio é erro de julgamento, remetendo,

segundo Pessotti, ao encontro do malleus

maleficarum da inquisição moderna, admitindo

ainda a influência de bruxos e demônios. A

loucura, então, deixa de ser desarranjo

mecânico, humoral ou pneumático para ser

delírio, erro de juízo, problemas na

imaginação ou na memória.

Também em 1872, influenciado por

Locke, surge a classificação de Arnold, que

funda uma “genuína patologia mental, com

critérios de diagnóstico e de classificação

independentes dos que regem a patologia

geral”14. Outro seguidor de Locke, Le Camus,

publica em 1769 o Médecin de L´Esprit,

14 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 93.


sublinhando as causas relacionadas à moral e

à hereditariedade. Para Pessotti é esta

medicina francesa “do espírito” que prepara o

nascimento da psiquiatria do século XIX, o

século dos manicômios.

É o trabalho de Pinel que na virada do

século XVIII sustenta a origem passional ou

moral da loucura. O seu Traité Médico-

Philosophique sur l’Aliénation Mentale de

1809 apresenta novidades: “a classificação

nosográfica da alienação e a revalorização

das paixões como fatores da loucura”15. Para

ele, a loucura se manifesta através dos

sintomas no comportamento, a serem

observados cuidadosamente. A loucura

(“como comprometimento ou lesão

15 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 69.


fundamental do intelecto e da vontade”)

poderia ser tratada com um método para botar

ordem no caos dos sintomas. A observação

dos pacientes é que permitirá a confecção de

diagnósticos e classificações: a loucura deixa

de ser uma condição estática, irreversível,

anatômica para ser “um desequilíbrio, uma

distorção na natureza do homem a ser

corrigida”16. Caos, desordem, desequilíbrio, é

assim que a doença é vista, devendo ser

agora vigiada, classificada, ordenada e

equilibrada.

Pessotti associa a obra de Pinel à

Revolução Francesa, “uma afirmação de valor

superior, absoluto da figura humana, na linha

do humanismo iluminista”. Ele atribui à visão

16 PESSOTTI, Isaias. Op. cit. p. 72.


de Pinel de loucura “o fim da exclusão do

insensato”. Não iríamos tão longe, e

preferiríamos trabalhar com a idéia de que

surge uma intervenção terapêutica que

espreita seu paciente, classifica-o numa

categoria teórica e atua pra fazê-lo voltar à

ordem. As descrições e classificações

nosográficas devem ser feitas como as do

mundo natural, na observação dos sintomas,

da loquacidade, do apetite, dos vícios, da vida

sexual, do comportamento em geral. Para a

correção dos hábitos e vícios morais o

terapeuta precisa de tempo, de apropriação

de anos de vida para o esquadrinhamento dos

mínimos detalhes. É surpreendente constatar

as permanências desse olhar nos laudos com


que trabalhei em minha pesquisa sobre

drogas no século XX. Pessotti reproduz um

trecho do tratado de Pinel (180, II, 83): “o

olhar é feroz, a postura é sombria e

silenciosa... tem pressentimentos sinistros

sobre o futuro”. Vejamos o laudo médico

psiquiátrico que aparece no Rio de Janeiro, ao

final do século XX. O relato dos especialistas

era de 1988! É uma observação como a do

começo do século XIX: “possui porte altivo”, a

revolta aparece “como projeção de suas

dificuldades e deficiências; são olhos que

brilham, cabeças erguidas, andar tranqüilo,

expressão corporal“. Os sintomas no corpo

devem ser observados por longo tempo para

serem descritos detalhadamente para uma


intervenção moral e curativa.

Nos séculos XVII e XVIII aparecem as

técnicas e dispositivos de poder centrados no

corpo, na tecnologia disciplinar que instituía a

“distribuição espacial dos corpos individuais”

(postos sob vigilância asilar, penitenciária,

médica etc.) para enquadrá-los e hierarquizá-

los: aparece, análoga à visão médica, uma

visão jurídica, a do contrato social constituído

em poder soberano, forçado pelo “perigo ou

pela necessidade” para proteger a vida.

Foucault afirma que na segunda metade do

século XVIII surge uma outra tecnologia de

poder que não destitui a anterior mas que a

incorpora e amplia. Ela se dirige ao homem-

espécie, não mais apenas ao homem-corpo


mas à multiplicidade dos corpos individuais

que devem ser “vigiados, treinados, utilizados,

eventualmente punidos”17.

Este processo produz as preocupações com a

higiene pública, com a centralização das

informações, sua normalização e

coordenação, com as pedagogias da higiene e

com a medicalização. Produz também a

preocupação com os incapazes, com o

“indivíduo que cai para fora do campo de

atividade: os incapazes, portadores de

anomalias vão criar a necessidade de

instituições de assistência e de “mecanismos

muito mais sutis, economicamente muito mais

racionais do que a grande assistência, a um

só tempo massiva e lacunar, que era

17 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 283.


essencialmente vinculada à Igreja”18.

São as influências científicas nos

processos biológicos e orgânicos que tornarão

a medicina uma “técnica política de

intervenção, com efeitos de poder próprios”,

que incidirão sobre o corpo e a população,

sobre os organismos e os processos

biológicos. E, como a sexualidade, o conceito

de degenerescência aparecerá também na

articulação do disciplinar e do regulamentador,

na encruzilhada do corpo e da população.

É na compreensão do excesso do

biopoder sobre o direito soberano, nessa

tecnologia de poder que tem como objeto e

18 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 291 – Cabe ressaltar


aqui uma figura emblemática daquela conjuntura,
Jeremy Bentham: um misto de economista utilitarista,
jurista, estatístico, inventor do Panóptico, administrador.
Enfim um intelectual orgânico do biopoder. Cc. George
Rosen. op. cit.
como objetivo a vida, que o poder da morte

será exercido através da noção da raça e do

racismo. Para Foucault, foi a emergência do

biopoder que inseriu o racismo nos

mecanismos do Estado; o racismo como um

corte entre o que deve viver e o que deve

morrer.

O importante para nós agora é

compreender estes processos no quadro da

atualização da incorporação periférica no

processo civilizatório19. Para Foucault, a

colonização foi o primeiro desenvolvimento do

racismo, o genocídio colonizador. Raúl

Zaffaroni reativou o conceito de instituição de

seqüestro à América Latina como um todo,

19 RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório –


Estudos de antropologia da civilização. Petrópolis:
Vozes, 1987.
uma espécie de grande laboratório para a

observação das patologias das raças

inferiores. O que a medicina brasileira do

século XIX enfrentava era então a

ameaçadora configuração de uma população

negra, índia, majoritariamente mestiça, e

portanto inferiorizada, degenerada,

patologizada e perigosa. Como regenerá-la?

Trabalhando a medicina no Brasil do

século XVIII, Ribeiro lança um olhar inspirado

em Ginzburg para tratar dos “aspectos

excluídos pelas vertentes assentadas

exclusivamente sob o domínio do irracional”20.

Ela analisa o imaginário, as resistências e as

trocas culturais entre a medicina e o mundo

20 RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a


arte médica no Brasil do século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997.
da magia, o erudito e o saber popular.

Aparece aqui o dilema entre a repressão das

autoridades médico-sanitárias contra a

“concepção de um mundo regido por forças

mágicas” no contexto das luzes em Portugal.

A demanda por modernização enfrentava as

resistências do sistema colonial, que não

permitia a formação médica no Brasil, para

não afrouxar os nós da dependência

acadêmica com relação à metrópole, num

projeto mais amplo de dominação econômica

e cultural.

Como no controle social jurídico-penal,

é na década de 1830 que se inicia, com o

discurso da modernização, uma mudança nas

relações entre a medicina popular e a


acadêmica, no contexto do processo de

“medicalização da sociedade”. Até então,a

historiadora afirma serem as terapias

populares as mais difundidas na sociedade,

exercidas por escravos, forros e livres pobres.

As trocas ocorriam de forma intensa, com os

médicos acadêmicos utilizando medicamentos

preconizados pela medicina popular e vice-

versa. As elites locais também se valiam das

mezinhas e terapias populares. Gostaria de

chamar a atenção para esta contigüidade,

esta convivência intensa entre o mundo

europeu e o mundo popular no Brasil, que

aparece de forma tão clara na medicina do

começo do século XIX.

É importante notar que a força de


repressão pela construção de um processo de

medicalização, que irá se instalar a partir da

década de 30, vai no sentido proporcional à

força desta medicina popular e ao seu

profundo enraizamento no cotidiano da vida

brasileira. Este temor e esta atração vão se

corporificar na figura de Nina Rodrigues, que

no final do século na Bahia se debatia entre

seu projeto de patologização dos africanos e o

seu fascínio pelos ritos do candomblé21.

Pode-se afirmar que o processo de

medicalização da sociedade, quando “a

medicina investe sobre a cidade disputando

um lugar entre as instâncias de controle

21 Raúl Zaffaroni sempre se refere ao espanto causado


por uma criminologia lombrosianamente racista
inventada na Bahia negra. Esta conjugação entre uma
grande proximidade e um afastamento produzido
político e ideologicamente é caracteristico da formação
social brasileira.
social”22, aconteceu na mesma conjuntura em

que se erigia a ordem jurídico-penal. São

processos concomitantes e análogos, que se

intensificam no pós-Independência para dar

conta do controle desta nova e pujante

categoria: o povo brasileiro.

Na análise da história da medicina

social e da constituição da psiquiatria no

Brasil, Machado analisa as transformações do

conceito de saúde no Brasil do século XIX e a

ruptura com o sentido que portava no período

colonial. Isto implicaria num saber médico que

se institucionaliza e que “intervém na vida

social, decidindo, planejando e executando

medidas ao mesmo tempo médicas e

22 MACHADO, Roberto et alii. Danação da norma: a


medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 18.
políticas”23. Surge então uma medicina que

investe na idéia da higiene pública e que tem

como alvo principalmente a população das

cidades, como suporte normalizador

fundamental do governo moderno24.

Nos meados de 30 do século XIX, o

discurso médico se destacará no combate à

desordem urbana, quando as questões da

contaminação transbordarão do ar aos

humanos, principalmente os humanos

africanos. É neste momento que, segundo

Machado, impõe-se a idéia de uma medicina

social que “se caracteriza por uma ação

positiva, transformadora, recuperadora que

instituindo, normas, impõe exigências a uma

23 Op. cit. p. 18.


24 Cf MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 38.
realidade vista como hostil e diferente. Tem,

em suma, um objetivo de normalização”25. As

Posturas Policiais do Regulamento de 1828

abrangiam, no confronto com a desordem, a

gestão do urbano, do econômico e do

populacional.

Trabalhando o grande projeto de

normalização em curso no século XIX,

Machado revela as novas correlações entre

medicina e crime, educação, moral, família na

conjuntura da década de 30. “A série de

epidemias a partir de 1832 deve também ter

influído. Além disso, a medicina caracteriza-se

pelo seu discurso de ordem: discurso propício

no momento, pois 1835 é ano de grande

violência da Cabanagem, do início da guerra

25 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 180.


dos Farrapos, da eleição para regente uno.

Caracteriza-se não só por ser discurso da

ordem, mas por ser uma prática de

ordenação, de documentação, de registro”26.

O discurso médico enfronha-se na construção

do Estado Imperial articulando o homem com

o clima, com a moral, com a higiene pública

através dos saberes da medicina social que

enfrentarão as metáforas do pântano: as

cidades e suas populações devem ser

saneadas.

Nesta perspectiva, a concentração de

população africana na cidade absorverá os

contornos da metáfora do pântano, produzirá

o medo da contaminação. O escravo, nesta

conjuntura, se transforma em obstáculo à

26 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit. p. 216.


higiene e à “criação de uma família brasileira

sadia”27, seja pelas “patologias introduzidas”,

pela amamentação, pela degradação dos

costumes, pela prostituição ou pela moral.

Deste momento em diante vai ser delineado o

discurso científico que tentará cravar mais

internamente a ideologia senhorial na

formação social brasileira28.

Livrarmos dessa herança é o nosso

problema. Como elaborar resistências “às

veleidades invasivas da razão instrumental e

do objetivismo materialista, fazendo triunfar a

visão imaginativa e trans-histórica sobre a

27 MACHADO, Roberto et alii. Op. cit., p. 354.


28 Cf. MICELI, Sérgio em O enigma da mestiçagem.
Folha de São Paulo. Jornal de Resenhas, 8 de maio de
1999 e CHALHOUB, Sidney, What are noses for?
Paternalism, social darwinism and race science in
Machado de Assis. Journal fo Latin American Cultural
Studies, vol. 10, nº 2, 2001. Carfax Publishing.
metafísica racionalista positivista”29? O

paradigma etiológico é o demônio dos saberes

nascidos no positivismo.

Quais seriam, então, as grandes

questões acerca do saber psicológico no

interior do sistema judicial a partir da ruptura

com essas permanências? A primeira, seria

entender o momento de expansão do poder

penal em que vivemos. Nesta fase do

capitalismo pós-industrial, os refugos de mão-

de-obra, a força de trabalho flexibilizada e

mcdonaldizada precisa ser criminalizada para

estar sob controle. Por isso, o capital vídeo-

financeiro transfere recursos do Estado

Previdenciário para o Estado Penal. Como

29 ELHAJJI, Mohammed. Narrativas Comunitárias – o


caso Malê. Rio de Janeiro: MIMEO, 2003.
diria Loïc Wacquant, é a partir dos Estados

Unidos que se estabelece uma nova gestão

da miséria pela criminalização. É óbvio que

esse encarceramento em massa vai precisar

atualizar as categorias para dar conta dos

novos estranhos: jovens árabes e africanos

em Paris e jovens pobres nas favelas do Rio

irão receber novas classificações; mas o que

permanecerá será a estratégia de

demarcação e o olhar

inquisitorial/lombrosiano. O traficante será

investido daqueles mesmos poderes

demoníacos e explicado pela etiologia

renovada do social-darwinismo. O problema

agora é a magnitude, a proporção do grande

internamento. O Brasil tinha, na entrada do


neoliberalismo, em 1994, cerca de 120 mil

presos. Estamos hoje com uma população

carcerária de 380.000 e com uma expectativa

de 500.000 em 2007. A polícia, o sistema

judicial e penitenciário terão de dar conta

dessa onda humana que se multiplica a cada

ano, embalada pela mídia, pela policização

dos conflitos sociais e pela tradição

exterminadora das nossas instituições de

segurança pública. É por isso que nunca se

matou nem se torturou tanto como na era dos

direitos humanos: de Guantánamo à Polinter

as prisões são instituições fora-da-lei e as

regiões de periferia se transformam em áreas

de suspensão de direitos, espaços de

barbarização consentida.
Esta expansão da jurisdição penal sem

limites, em escala nunca vista na história da

humanidade, vai demandar novos serviços,

novas práticas, novos discursos. Esta é a

segunda questão. Um dos sinais inquietantes

disso se revela no próprio mercado de

trabalho da psicologia que cresce na direção

do sistema judicial. É por isso que a

medicalização proposta pela medicina

prometeica contemporânea vem somar-se ao

conjunto de dispositivos de controle social.

Paradoxalmente o capital trata de criminalizar

seletivamente as drogas cuja gestão

econômica está fora de suas mãos.

Joel Birman crítica a utilização da droga

como ferramenta terapêutica de uma


psiquiatria agora geneticista, na qual as

heranças biológicas lombrosianas se

revestem de novas cores e tintas

“cientìficas”30. A história e a memória do mal

estar e do desamparo deve ser silenciada.

Para Birman medicalizar o mal-estar é

empreender ativamente o trabalho do

esquecimento. Os novos naturalistas das

neurociências descartam os argumentos

subjetivos para produzir respostas eficazes e

imediatas, regular síndromes e sintomas.

Lucília Elias crítica os tratamentos disponíveis

para os drogaditos, manuais de auto-

classificação, em que a história do sujeito não

interessa para a construção da identidade do


30 Cf. Joel Birman. Psicanálise, negatividade e
heterogêneo: como a psicanálise pode ser obstáculo
para a barbárie? Cadernos de Psicanálise, SPCRJ, Rio
de Janeiro, v. 15, n. 18, 1999.
“drogado”31.

Os Tribunais de Drogas, propostos “sob

o patrocínio do Consulado Americano” como

consta do ofício de 11 de junho de 2001 da

Associação Nacional de Justiça Terapêutica,

fazem parte do arsenal de “novidades” desse

poder punitivo em expansão. Ao invés da

descriminalização prometida, o que se vê é

uma criminalização do atendimento. Sei que

os psicólogos têm enfrentado dilemas éticos

diante de um poder jurídico que pretende

curar, corrigir, como o positivismo de

Lombroso e Garófalo contra os pobres e

indesejáveis do seu tempo: punir e curar como

nos velhos tempos. Os saberes psi estão


31 ELIAS, Lucília. Psicanálise e toxicomania. In:
Discursos Sediciosos: Crime, Direito e Sociedade, ano
4, n. 9/10. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de
Criminologia/Freitas Bastos, 2000.
sendo instados a delatarem recaídas e maus-

passos, voltarem a ser polícia médica, aonde

o laço clínico não é com o paciente, mas com

o poder penal e recomposição da ordem

social32. Aliás, qual será a formação do juiz

terapeuta?

Os que não se conformam com esse

papel vão ter que decidir: trabalham para o

seu povo ou trabalham para esse capital

soberano. Os jovens da periferia brasileira

matam e morrem pelos símbolos do capital

neoliberal: um boné de marca, um tênis

importado. Já os jovens da periferia francesa

estão queimando os ícones desse capital.

Alvo de amor e ódio, os fetiches do

32 Cf. BATISTA, Vera Malaguti. O tribunal de drogas


e o tigre de papel. In: Revista Democracia Viva, n.
12. Rio de Janeiro: IBASE, 2002.
capitalismo vídeo-financeiro estão no centro

da questão. Cabe a nós construir a trincheira

de resistência a essa armadilha. Temos que

dar voz aos humanos que transitam nos

corredores da nossa justiça carregando as

suas misérias, seus desejos sobrantes como

diria Joel Rufino dos Santos33.... Temos que

produzir outros sentidos ao tempo confiscado

pela prisão de uma parcela tão significativa da

juventude brasileira. Quando vamos nos livrar

das categorias de famílias desestruturadas, de

falta de figura paterna, lei, pena, limites? Até

quando vamos prosseguir com as ilusões RE

(ressocializar, reeducar, recuperar)

desmentidas por toda a história do sistemas

33 SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do Social: como


podem os intelectuais trabalhar para os pobres. São
Paulo: Global, 2004.
penais e reinventadas a cada dia pelo Estado

Penal?

Joel Birman levantou a questão: como

a psicanálise pode se contrapor à barbárie?

Joel Rufino dos Santos perguntou: como os

intelectuais podem trabalhar para os pobres?

Nesse fio da história, concordamos com os

dois no sentido de que a memória e o desejo

é que podem produzir a utopia, o desejo de

um outro futuro. Temos que escrever a nossa

história, na interseção da memória singular e

coletiva. Mas, antes de tudo é necessário

romper com a articulação perversa entre a

desqualificação científica do positivismo e as

permanências da demonização do discurso

inquisitorial: atrás das grandes classificações


estão os desqualificados de sempre, aqueles

que Euclides encontrou nos Sertões de

Canudos para conhecer então, no sentido

bíblico amoroso, o Brasil profundo. Eu

acredito que nós podemos nos contrapor a

barbárie. Mas não será reeditando com a

justiça terapêutica os sonhos do sistema

médico-policial advindo da elaboração teórica

racista da Liga Brasileira de Higiene Mental

que no começo do século XX lutava contra o

alcoolismo34. Jurandir Freire Costa assinala

nos arquivos da Liga que “a intolerância ao

alcoolismo não impedia os psiquiatras de

fazer uma distinção entre o alcoolismo

34 Cf. BATISTA, Nilo. Política criminal com


derramamento de sangue. In: Discursos Sediciosos:
Crime, Direito e Sociedade, ano 3, n. 5/6. Rio de
Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Freitas
Bastos, 1998.
aceitável, que era o das pessoas respeitáveis,

e o alcoolismo inaceitável, aquele dos

pobres”35. Nós temos que produzir uma teoria

e uma prática que sirvam ao povo brasileiro.

Uso de Drogas, Justiça e Psicanálise

O homem é visto, pela psicanálise, como um


ser social, construtor de si mesmo e do próprio
mundo. Esta forma de construção subjetiva e
o reconhecimento deste ser social, pelo
sujeito, é algo que necessariamente se impõe,
mesmo que sua aceitação seja conflituosa.
Seria, então, a superação do narcisismo nos
indivíduos, uma necessidade imperiosa para a
subsistência do social e do próprio sujeito,
pois este deve reconhecer que precisa do
outro para viver. Assim, a experiência de
castração tem uma função humanizadora,
levando o sujeito a abandonar o investimento
libidinal em si próprio, aceitando com isto a
alteridade e os limites que esta castração
representa.

35 COSTA. Jurandir. História da psiquiatria no Brasil:


um corte ideológico. Rio de Janeiro: X Enon ed., 1983.
Freud, no Mal-estar na civilização, afirma que
o uso de drogas é mais uma tentativa, dentre
outras, de suportar este mal-estar, de burlar a
insatisfação fundamental à qual todo o ser
falante está submetido, de impedir a
experiência da castração. Para Lacan, “estes
consumos estancam a potência metafórica do
Nome-do-Pai, substituindo-o como metáforas
cristalizadas, como versões do pai, resultando
na troca da infinitude do desejo pelo imediato
da concretude do gozo” (Otávio de Souza,
2002).

A sociedade atual é regida, segundo Jurandir


Freire Costa, pela moral do espetáculo, onde
a Autoridade foi substituída pela Celebridade,
denunciando um narcisismo fortemente
expresso no investimento excessivo no corpo,
talvez como mais uma tentativa infrutífera de
negar a insustentável finitude do ser. Assim,
objetos de consumo e drogas, com sua
capacidade de felicidade instantânea,
estariam substituindo os meios dialéticos,
próprios do sujeito, de tentativa de superação
dos impasses insolúveis entre desejo e
satisfação.

E o que fazer diante desta experiência?

Otavio Souza* afirma que “não cabe ao


analista a interpretação que se dirige às
formações do inconsciente para ali destacar o
gozo no qual o desejo se cristaliza,
propiciando sua queda em um ato de renúncia
(prática diante da neurose). O tipo de
interpretação requerido, ao contrário, visa à
complementação, a qual apenas se torna
possível através do contato empático com a
experiência que o sujeito apresenta
silenciosamente. O contato empático não tem
a função de esclarecer, mas sim a de trazer a
presença de um outro para a proximidade de
uma experiência que se esboça na solidão”.

Caberia ao analista inicialmente, dedicar


atenção ao que ali se expressa como
esperança e não exigir do toxicômano uma
responsabilidade pelo seu desejo,
renunciando, para isto, ao gozo que a droga
lhe proporciona, para a qual o mesmo não
está preparado. O uso de drogas pode,
assim, “representar uma fonte de qualidades
experienciais que o sujeito necessita para
manter a esperança de constituir para si uma
base existencial, a partir da qual possa,
posteriormente, vir a desejar. Antes que possa
assumir a responsabilidade por seu desejo,
muitas coisas pelas quais ele não pode se
responsabilizar têm de ocorrer, tanto em sua
vida quanto em sua análise. O que não se
deve fazer, portanto, é convidar o sujeito para
sair de sua toca quando, na realidade, ainda
está ocupado na tarefa de procurá-la ou
escavá-la”.

E o que acontece com o adulto que é atuado


portando drogas para uso próprio no Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro?

Antes da aplicação das Medidas de


Tratamento, estas pessoas tinham, na maioria
dos casos, as seguintes determinações penais
a cumprir: Pena Alternativa, que consistem
basicamente em Prestação de Serviço à
Comunidade, Limitação de Final de Semana e
Pena Pecuniária (cesta básica), ou
Tratamento Compulsório, que consiste no
encaminhamento do sujeito, pelo juiz,
diretamente a uma instituição de tratamento.

Analisemos ambas as possibilidades:

Pena Alternativa
O ato de cumprir uma pena alternativa não
conduz o sujeito à reflexão sobre o seu uso de
drogas, servindo, no máximo, para reforçar o
fenômeno que está em jogo nos toxicômanos
e também no delinqüente. Charles Melman
afirma que, “há uma erotização do jogo do
toxicômano com os poderes públicos de todas
as ordens, sejam eles médicos, judiciários ou
policiais, que parece ser do mesmo tipo de
erotização que aquela exercida pelo
delinqüente. O toxicômano ama se envolver
com os poderes públicos. E caímos no
ridículo, se interferirmos como parte em
causa, para fazer girar sua economia libidinal.”

Tratamento compulsório
Sabemos que, na maioria das vezes, o
toxicômano chega ao consultório médico ou à
clínica especializada, trazido por um outro,
sendo raro que a iniciativa parta dele mesmo.
Nestes casos, profissionais da saúde
submetem-no a uma avaliação sobre os
procedimentos adequados para aquela
situação.

Quanto ao tratamento determinado em


audiência pelo juiz, fica a pergunta: Disporá
um juiz de embasamentos teóricos e práticos
que possam avaliar que tipo de tratamento
pode aquele sujeito se beneficiar ou, até
mesmo, se aquele sujeito precisa de algum
tipo de intervenção, seja esta de ordem clínica
ou grupos de mútua-ajuda, ou se é o
momento de tal procedimento iniciar, sem que
antes haja qualquer trabalho de motivação?

De acordo com a nossa experiência, quando


este tipo de encaminhamento acontece, o
tratamento efetivamente não existe, pois as
instituições públicas de saúde têm uma
resistência natural em receber tais sujeitos,
alegando que os mesmos ficam apenas
ocupando a vaga de alguém que, de fato, quer
se tratar. Assim, o sujeito não quer se tratar e,
por sua vez, a instituição não quer tratá-lo.
Desta forma, ambos cumprem, formalmente o
que a Justiça determina: o condenado
comparece à instituição de tratamento e a
instituição informa ao juízo o seu
comparecimento, sem que efetivamente
nenhum trabalho terapêutico seja realizado.

Diante desta abordagem e compreensão do


uso de drogas, o que pode e o que deve um
profissional atravessado pela teoria e pela
prática psicanalítica fazer numa instituição
jurídica, frente a um usuário e,
consequentemente um delinqüente, onde a
punição é, tradicionalmente, seu destino?

Antes de falar do Programa de Justiça


Terapêutica propriamente dito, faço um breve
relato de um trabalho que precedeu a este e
que é parte integrante da nossa história:

Com a inauguração da Central de Penas e


Medidas Alternativas, em 2001, cujo objetivo
era priorizar a execução dessas
penas/medidas, houve uma ampliação do
quadro técnico que permitiu a contratação de
mais profissionais qualificados (psicólogos e
assistentes sociais). A função desta equipe
consiste em fazer uma avaliação psicossocial
criteriosa daqueles beneficiários, afim de que
sejam encaminhados às instituições
conveniadas com o Tribunal de Justiça, para
os receberem como prestadores de serviço.

Já naquela época, a equipe técnica, ao avaliar


o beneficiário, começou a ter um olhar
também dirigido ao uso problemático de álcool
ou outras drogas, buscando identificar se
havia uso abusivo, prejuízos e, também, se
havia alguma preocupação daquele sujeito
com o seu padrão de uso. Este procedimento
era independente do delito cometido, não se
restringindo aos que eram autuados portando
drogas. Quando necessário, a equipe
realizava um trabalho de orientação,
motivação e, no caso de uma aceitação, era
encaminhado, pela equipe, para o tratamento
apropriado. Este procedimento ainda é
seguido por toda a equipe de técnicos da
DPMA.

Numa primeira avaliação, dos 1000 primeiros


atendidos, identificamos que 32% faziam uso
problemático de drogas lícitas e/ou ilícitas. No
entanto, deste total de 322, apenas 21%
tinham alguma indicação jurídica para
tratamento por terem sido detidos com drogas.
Isto significa que 254 pessoas puderam ser
identificadas com o uso problemático de álcool
ou outras drogas através de um trabalho da
equipe baseado no acolhimento, na escuta
empática e na confiança estabelecida, a qual
é construída tendo como um dos seus
maiores alicerces o nosso sigilo profissional.
Dos 322 identificados com problemas com
álcool e outras drogas, encaminhamos para
tratamento 200 pessoas sendo que deste
total, 69% afirmaram terem interrompido o
uso. Faz-se importante ressaltar que não
havia, na maioria dos casos (79%), qualquer
obrigatoriedade jurídica de tratamento.

Em setembro de 2002, foi promulgado o Ato


Executivo Conjunto 041/2002, pelo Tribunal
de Justiça que instituiu o Programa de Justiça
Terapêutica para adultos. Este programa tem
o mesmo nome do programa existente na
Vara da Infância e Juventude do Rio de
Janeiro, o qual foi, por sua vez, baseado nos
princípios do Drug Court. No entanto, nossa
metodologia é diferente daqueles que deram
origem ao nome, uma vez que não seguimos
a política de tolerância zero, nem trabalhamos
com sanções ou incentivos, elementos chaves
que norteiam o modelo americano. De fato,
adaptamos a metodologia anteriormente
utilizada pela equipe para atender às
determinações do Programa e foi constituída
uma equipe de profissionais, da qual eu faço
parte como coordenadora, para trabalhar
exclusivamente com a Justiça Terapêutica e
Medidas Terapêuticas para usuários de
drogas.

A finalidade do programa de Justiça


Terapêutica é oferecer e possibilitar o
tratamento àqueles que são indiciados e
acusados de posse ilegal de substância
entorpecente para uso próprio, conforme
consta no Ato Executivo.

Nosso trabalho, no entanto, não se restringe


àqueles que vêm pela Justiça Terapêutica, ou
seja, aqueles incursos nas penas do artigo 16,
porte de drogas para consumo próprio.
Também atendemos pessoas que cometeram
outros delitos, como por exemplo, violência
doméstica ou pequenos furtos, onde foi
observado pelo juiz um “possível” vínculo
entre o delito cometido e o uso abusivo de
álcool ou outras drogas. Por esta razão,
falaremos de Medidas Terapêuticas por ser
um termo mais abrangente e não de Justiça
Terapêutica.

Como é a dinâmica do Programa?

Em audiência, o Ministério Público oferece ao


acusado de posse ilegal de substância
entorpecente para uso próprio, a possibilidade
de inserção no Programa de JT. Aceitando, o
juiz criminal homologa a decisão e encaminha
o acusado para a nossa equipe a fim de dar
início ao seu processo de avaliação. Caso
contrário, é oferecido ao mesmo uma outra
medida alternativa dentre às anteriormente
mencionadas. Portanto, ele tem o direito a
escolher se deseja ou não se submeter ao
programa.

É importante esclarecer que a oferta pelo


programa depende exclusivamente do
Ministério Público e do juiz das Varas
Criminais ou dos Juizados Especiais
Criminais, ou seja, os juizes têm autonomia
para encaminhar os acusados para tratamento
sem passar pelo programa de Justiça
Terapêutica, se assim o quiserem.

O primeiro contato do beneficiário com a


equipe técnica, após aceitar a transação penal
é o Grupo de Acolhimento, cujas finalidades
principais são as de fornecer informações
sobre a proposta do Programa, dirimindo
dúvidas e acolhendo as queixas muitas vezes
presentes, alem de procurar identificar as
demandas e as urgências de cada caso, as
quais irão determinar o agendamento do início
do processo de avaliação.

Ao final do Grupo de Acolhimento, os


beneficiários são agendados para darem início
às Entrevistas Técnicas de Avaliação.

Nestas entrevistas de Avaliação, realizadas


por um psicólogo e um assistente social,
buscamos compreender as motivações
individuais que levaram aquele sujeito à
problemática em questão, procurando
identificar o grau de comprometimento com o
uso de drogas, suas perdas pessoais e
familiares, sua motivação, bem como
possíveis comorbidades presentes. Além
disto, o contexto sócio-econômico do sujeito,
suas relações familiares, carências e
demandas nas áreas de educação, saúde em
geral, trabalho e previdência são também
pontos amplamente abordados, uma vez que
o nosso foco é no sujeito e não a droga,
propriamente dita.
Nosso objetivo inicial é avaliar a conveniência
de inseri-lo no Programa. Isto significa que a
equipe técnica pode considerar um
beneficiário não elegível para o programa,
avaliação esta que deverá ser imediatamente
informada ao juiz de origem.
Sendo inserido, nosso próximo passo é
avaliarmos a melhor indicação para o
beneficiário, que irá depender dos fatores
anteriormente mencionados, e que pode
resultar nos seguintes encaminhamentos:

Tratando-se de um usuário sem indicação de


tratamento no momento da avaliação, ou por
terem interrompido o uso ou por fazerem uso
esporádico, não apresentando ainda maiores
prejuízos à sua vida, este poderá ser inserido
no Grupo de Reflexão. Nestes grupos
abordamos temas relativos às drogas:
prejuízos, tratamento, prevenção, estratégias
de prevenção de recaída, fatores
biopsicossociais envolvidos, violência, auto-
estima, assim como trabalhamos outros
temas, tais como: família, saúde, sexualidade,
cidadania, sociedade etc. além de estimular a
organização e participação social em grupo.

O Grupo de Reflexão tem apresentado


resultados de valor inestimável, em função,
principalmente da diversidade de situações
(classes sociais, idades e experiências com o
uso de drogas), levando os sujeitos à se
aproximarem de realidades distantes,
desconstruindo estigmas e repensando
antigos valores . Um dos desdobramentos do
trabalho realizado nestes grupos foi que
alguns dos seus membros organizaram
trabalhos de prevenção dentro das suas
comunidades.

Em se tratando de alguém que tem um


comprometimento maior com o uso de álcool
ou outras drogas e que a equipe considera
necessária uma intervenção institucional
especializada nesta problemática, passamos a
ter como meta de trabalho a identificação do
momento mais apropriado para realizarmos o
devido encaminhamento:

Quando os prejuízos não são reconhecidos


pelo beneficiário, buscamos sensibilizá-lo e
motivá-lo antes de realizarmos qualquer
encaminhamento, a fim de provocar no
mesmo uma demanda própria, possibilitando
uma maior aderência ao tratamento proposto,
evitando, com isto, resistências por parte das
instituições de saúde.

Ao realizarmos o encaminhamento para


instituição de tratamento, procuramos melhor
adequar a necessidade de cada caso ao perfil
da instituição que irá recebê-lo.

A fase da avaliação é considerada a mais


importante de todo o processo, uma vez que,
bem realizada, possibilita à instituição de
tratamento receber um sujeito que, apesar de
ter sido encaminhado pela Justiça, está
consciente de sua problemática, disponível e
motivado para ser ajudado.

A complexidade do processo de avaliação


exige que os profissionais em questão
realizem um número de entrevistas que pode
variar, chegando a alguns casos a superar 3
meses.

Aos familiares dos beneficiários do programa


é oferecido o Grupo de Orientação de
Familiares. A proposta do grupo é poder
oferecer um espaço para esclarecimentos,
informação, troca de experiências, com vistas
a promover a implicação das famílias no
referido processo. O beneficiário é consultado
a fim de que este indique quem gostaria de
ser convidado para participar do Grupo,
podendo ser mais de uma pessoa, não
precisando, obrigatoriamente, ser um familiar,
mas sim um significante outro.

Durante todo o tempo de cumprimento da


transação penal, a equipe realiza um
acompanhamento do beneficiário,
independente do encaminhamento realizado.
Este acompanhamento visa identificar os
resultados do tratamento, estimular a
consciência crítica do beneficiário, avaliando
as mudanças suscitadas ou não em sua vida
e a aplicação das estratégias de intervenção,
podendo ser reorientadas de acordo com a
necessidade, inclusive com novos
encaminhamentos.

Após este período, a equipe que o


acompanha emite relatório e submete o
mesmo à avaliação do juiz de origem que irá
determinar o fim do cumprimento.

Resultados:

Nosso último levantamento, em junho 2005,


traz os seguintes resultados:

Quanto ao tipo de encaminhamento realizado


pela equipe, temos os seguintes números:
- 37% foram encaminhados para
instituição de tratamento. Isto
representa o número de pessoas
atendidas que necessitavam de uma
intervenção mais intensiva, que pode ir
desde o ambulatório até a internação.
- 14,7% foram encaminhados para o
Grupo de Reflexão.
- 25,8 % estavam apenas em
acompanhamento individual.
- 15,9% ainda estavam em avaliação.
- 6,5% interromperam o cumprimento da
medida/pena antes mesmo de
terminarem a avaliação.

Daqueles que já terminaram o cumprimento:

52% afirmam ter interrompido o uso.


40%, apesar de continuarem usando,
reduziram o uso e, principalmente,
conseguiram dar andamento a projetos
pessoais que consideravam importantes, os
quais estavam paralisados em função do
padrão de uso de álcool/drogas, tais como, o
retorno ao mercado de trabalho, volta aos
estudos, resgate de laços familiares rompidos
ou inserção em atividades sociais.

Concluindo, quero dizer que, através da nossa


experiência, acreditamos que a implicação do
sujeito com a Justiça pode se tornar uma
oportunidade de reflexão, e, para tal,
buscamos muni-lo de ferramentas que
possam ajudá-lo a, quem sabe, questionar-se
sobre suas escolhas. Para isto, no entanto, é
necessário que os operadores da lei e a
equipe de profissionais entendam a
intervenção jurídica como instrumento e não
como um fim.

Por último, voltando à minha própria


indagação sobre o que nos compete fazer
dentro do Judiciário, não trago respostas, mas
sim alguns pontos para reflexão:

Vejo a nossa prática como uma experiência


desafiante e enriquecedora onde buscamos
encontrar recursos de superação de impasses
entre as bases teóricas que nos orientam e as
exigências do poder judiciário. Assim,
respeitando a subjetividade do cliente,
tentamos responder àquele Poder, cujos
operadores têm, como um dos pilares de
sustentação da sua prática, o saber absoluto
sobre os códigos sociais que norteiam o
comportamento daqueles que são seu objeto
de intervenção.

Num exercício permanente de


questionamento da nossa prática, precisamos
estar atentos à vestimenta imaginária da lei,
da qual, por distração, comodismo ou
contingência, podemos nos utilizar,
alimentando, com isto, o gozo do sujeito e, por
que não, o nosso próprio gozo. Entendo este
como um dos nossos maiores desafios ao
qual devemos estar sempre atentos, pois,
fazendo um paralelo à afirmação de Lacan de
que a resistência é sempre do analista, o
fantasma da representação do Poder é
sempre uma construção nossa, portanto,
livrando-nos dele, a fantasia do outro não
encontra suporte.

É através de uma aposta, de uma oferta, de


um ato, analítico ou não, que acreditamos ser
possível provocarmos, naquele que nos fala,
uma demanda. O instrumento do qual não
podemos prescindir é o da escuta, que irá nos
permitir compreendermos se esta demanda é
a de ajudá-lo a sair da toca, a procurá-la ou
até mesmo, a escavá-la. É a partir desta
compreensão que nossa conduta deverá ser
construída.

Dentre tantos outros desafios, o trabalho em


equipe multidisciplinar composta por
profissionais que seguem abordagens teóricas
diferentes é o que nos traz maior recompensa,
pois permite que nos confrontemos com as
nossas próprias limitações, levando-nos a
refletir e buscar alternativas que tenham como
objetivo tirar o melhor proveito desta situação
a qual ambos - o cliente e o profissional –
estão submetidos.

Por uma clínica psicanalítica do louco infrator


Daniela Venâncio Ferreira (1)

Primeiramente, gostaria de agradecer à comissão


organizadora do evento pelo convite. Escutar os
colegas e conhecer os trabalhos desenvolvidos
aqui como compartilhar e discutir com vocês o
trabalho realizado pelo PAI-PJ - Programa de
Atenção Integral ao Paciente Judiciário do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais causa-me
grande satisfação.

Origem do PAI-PJ

Em 19 de abril de 1999, Fernanda Otoni de


Barros, psicóloga judicial do TJMG juntamente
com seus alunos do curso de Psicologia Jurídica
do Unicentro Newton Paiva empreende uma
visita ao Manicômio Judiciário Jorge Vaz na
cidade de Barbacena, interior do Estado de
Minas Gerais. Tal visita produz uma impressão
inesquecível. Através das palavras da própria
Fernanda pode-se retratar a imagem desse lugar.
“O caminho por estes corredores escurecidos é
avassalador aos sentidos. Gritos, gemidos,
sorrisos imotivados... ambiente onde se
misturam o odor das fezes, urina, suor humano e
água sanitária... ao olhar são oferecidas cenas do
absurdo: homens com olhares mórbidos,
lascivos, furiosos, amortecidos... a impotência
diante das cenas que atravessam esse circuito
inserem nele o sentido amargo do medo”.

Psicanalista, psicóloga da Casa PAI-


(1)

PJ/TJMG, mestre em Psicologia, área de


concentração Estudos Psicanalíticos, pela
UFMG e professora de Psicologia Aplicada ao
Direito da FAPAM - Faculdade de Pará de
Minas/MG.

Como sabemos, quando um crime é cometido


por um portador de sofrimento mental dá-se
início a um mecanismo de controle social que se
difere daquele posto em prática quando o crime
é cometido por um cidadão comum, ou seja,
quando o homem que o realiza não traz em si a
marca indelével da loucura. Para o ordenamento
jurídico e para a psiquiatria clássica, o agente do
ato infrator, se portador de sofrimento mental,
não pode ser penalmente responsabilizado, pois
no tempo da ação não possuía capacidade para
discernir entre o certo e o errado, não podia, em
virtude da sua doença, distinguir o caráter ilícito
do seu ato. Considerado inimputável em virtude
de sua alienação mental, o louco infrator é
encaminhado para os manicômios judiciários de
nosso país e estigmatizado pela periculosidade,
suposta, para muitos, como inerente à loucura. O
louco infrator, cuja sentença é a Medida de
Segurança é “despachado” para fora do espaço
comum das cidades e segregado por tempo
indeterminado nesses “depósitos de gente”.
Esses lugares, ou seja, os manicômios
judiciários foram caracterizados pela campanha
da Comissão Nacional de Direitos Humanos do
Conselho Federal de Psicologia em 1999 como:
“Manicômio Judiciário... o pior”. Trata-se do
pior do hospital psiquiátrico e o pior da prisão
reunidos em um só lugar!
Torna-se importante salientar que a segregação e
exclusão das quais o louco infrator é objeto na
nossa sociedade impede que esses sujeitos
tenham acesso aos mínimos direitos garantidos
pela Constituição. No Art 196, a Constituição
Brasileira declara que a saúde é reconhecida
como um direito de todos e um dever do Estado
que deve ser garantido mediante políticas sociais
e econômicas que visem, por um lado, a redução
do risco de adoecer e por outro, (friso) o acesso
universal e igualitário às ações e serviços para a
promoção, proteção e recuperação da saúde.
Torna-se óbvio que os internos de um
manicômio judiciário e seus familiares ficam
impedidos, inclusive, de lutarem por tais
direitos. O precário “tratamento” nos
manicômios judiciários se reduz à terapêutica
medicamentosa. Entretanto, a falta de recursos
financeiros constantes justifica a ausência de
medicação em muitos momentos (CENSO,
1998, p. 260). Resta a cela solitária, o abandono
à pulsão de morte e à agressividade
recorrentemente dirigida contra si mesmo.
Diante dessa situação de segregação, injustiça e
discriminação e, capturados, mas não
paralisados, pela imagem atroz do Manicômio
Judiciário, fez-se um ato na cidade de Belo
Horizonte, a saber, a criação e implantação do
PAI-PJ, coordenado pela psicóloga judicial e
psicanalista Fernanda Otoni de Barros. Trata-se
de um projeto pautado pela política da reforma
psiquiátrica brasileira, da qual Minas Gerais
tornou-se um Estado de vanguarda nas últimas
décadas e orientado pela teoria e clínica
psicanalítica. Tendo sido implantado como
projeto-piloto em março de 2000, tal projeto
obteve sua transformação em programa já em
dezembro de 2001, através da portaria de
número 25/2001. Em julho do ano seguinte foi
inaugurada a Casa PAI-PJ. Trabalhamos com
sujeitos psicóticos que em um determinado
momento de suas vidas foram confrontados com
situações, tanto estruturais quanto contingentes
em relação às quais só encontraram a via da
passagem ao ato como saída.
Se, por um lado, condenamos o Manicômio
Judiciário e desejamos seu fim, por outro,
colocamo-nos como co-responsáveis na
produção de um novo modo de tratamento
destinado ao psicótico infrator. Nesse sentido,
avivar discussões constantes com os atores do
ordenamento jurídico tanto quanto com os
profissionais de saúde mental da rede pública é
uma ferramenta indispensável para a prática de
todos nós.
O PAI-PJ, programa pioneiro no Brasil,
inaugura a possibilidade de acesso do psicótico
infrator ao tratamento na rede de saúde mental e
oferece a este o direito de responder pelo seu
ato, resposta subjetiva, devo ressaltar, na medida
em que o sujeito é convidado a falar a partir de
sua posição diante do Outro. Tem sido possível,
na grande maioria dos casos, encontrar outra
saída para o sofrimento que lhe perturba, distinta
daquela da passagem ao ato criminosa. Somos
testemunhas das mais surpreendes invenções. A
singularidade das soluções tem demonstrado a
viabilidade do laço social. Aprendemos com
esses sujeitos que um laço com o Outro pode ser
construído a cada dia. Entretanto, tal laço só se
inventa e serve ao sujeito quando traz algo de
seu, algo de singular, de sua excentricidade.
Torna-se condição da clínica que nós possamos
suportar tais invenções.
No PAI-PJ contamos com profissionais da
Psicologia, do Direito e do Serviço Social. Para
cada caso acompanhado, forma-se uma equipe
interdisciplinar que deve promover, entre outras
coisas, o levantamento de informações sobre o
sujeito em conflito com a lei. Essas informações
referem-se ao histórico jurídico do sujeito em
questão, histórico de saúde (se houve
internações psiquiátricas e/ou tratamento nos
centros de atenção à saúde mental) e histórico
sócio-familiar.

Como já foi dito, além de nós, numa rede ampla


de serviços estão os profissionais da rede
pública de saúde mental, parceiros
comprometidos e indispensáveis na realização
desse trabalho. Nesse sentido, a novidade que se
apresenta na cidade de Belo Horizonte em
relação ao acompanhamento do louco infrator,
ou seja, esse novo modelo de tratamento se
sustenta, sobretudo, no acolhimento do portador
de sofrimento mental infrator pela rede pública
de saúde mental da nossa cidade. Juntos, somos
responsáveis pelo acompanhamento e tratamento
do louco infrator. A partir das informações
colhidas e compartilhadas, confecciona-se um
projeto terapêutico particularizado, vivo, na
medida em que se transforma com o andamento
e evolução do caso em questão. Ao invés da
“universalidade” da imposição da medida de
segurança em regime de internação36 nos
manicômios judiciários temos, a partir de uma
política pautada pela clínica, a inserção do
sujeito em conflito com a lei no(s)
equipamento(s) de saúde mental disponíveis em
36 Código Penal, Art 97. Se o agente for inimputável, o juiz
determina sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato previsto
como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-
lo a tratamento ambulatorial.
Belo Horizonte que seja adequado ao projeto
terapêutico construído. São muitos os
equipamentos: CERSAM`s, Hospitais
Psiquiátricos (nos momentos de crises graves),
Postos de Saúde, Centros de Convivência,
Residências Terapêuticas, etc. Muitas vezes, o
sujeito escolhe o PAI-PJ como lugar onde vai
confiar, entregar sua história, seus delírios,
alucinações, seu gozo. Nesses casos, não
recuamos da transferência dirigida a nós.
Emprestamos nosso corpo e disponibilizamos
nossa escuta e o que se refere ao
acompanhamento psiquiátrico fica por conta da
rede de saúde.
Apesar de não recuarmos da clínica com esses
sujeitos, a função principal do PAI-PJ é produzir
a mediação entre a clínica e o ato jurídico.
Através de nossa equipe interdisciplinar,
construímos um espaço que viabilize a discussão
entre esses campos distintos, ou seja, a saúde e a
Justiça. Documentamos, através de pareceres e
laudos o projeto terapêutico, o andamento e
evolução clínica do caso, a situação social e
jurídica do sujeito acompanhado. Esses
pareceres e laudos, dependendo do momento em
que são formulados servem para requerer
autorização judicial para um dado projeto
terapêutico proposto como para informar o Juiz
o andamento de tratamentos já autorizados.
Torna-se claro que a parceria com a rede pública
de saúde mental é condição fundamental para a
realização desse novo modelo de atenção ao
louco infrator. Em razão dessa parceria, o louco
infrator não é mais encaminhado para o
manicômio judiciário. Ao ser acolhido pela rede,
o louco infrator, pela primeira vez, tem acesso
aos princípios fundamentais da Constituição
Federal e tem chance de ser tratado por
profissionais comprometidos com a clínica e
com a luta antimanicomial. Se a prática
verdadeiramente clínica com o louco infrator é
uma experiência relativamente nova em Belo
Horizonte e praticamente inexistente em outros
lugares, teoricamente não é assim.
Não é recente o interesse da psicanálise pela
interface com o campo jurídico. Penso que a
importância desse encontro, pelo menos para a
psicanálise se deve ao fato desta se interessar
pelas relações entre o sujeito e o crime. É
possível observar as manifestações desse
interesse desde um período precoce da doutrina.
Há quase um século atrás, Sandor Ferenczi
proferiu o que deve ter sido a primeira
conferência de um psicanalista nos meios
jurídicos. Tal conferencia, intitulada, Psicanálise
e Criminologia realizou-se na Associação
Nacional de Juizes e Advogados de Budapeste
no ano de 1913. O propósito dessa palestra foi,
sobretudo, apresentar seu interesse, ou seja, do
próprio Ferenczi em tratar psicanaliticamente o
criminoso, pois para ele somente a nova
doutrina, pelas descobertas da vida psíquica
inconsciente seria capaz de servir tanto aos
homens da Justiça quanto ao condenados por
ela.
Como sabemos, poucos anos depois, o próprio
Freud, mediante um polêmico ensaio, a saber,
Criminosos em conseqüência de um sentimento
de culpa (1916), apresenta ao público a tese
original de que o sentimento de culpa não só
antecede como pode impelir o sujeito ao crime.
Às voltas com as manifestações do sentimento
de culpa em sua clínica das neuroses, ele conclui
que o crime serviria aos sujeitos assombrados
por tal sentimento como uma espécie de
expiação. Através do ato ilícito o sujeito
alcançaria o “propósito de fixar o sentimento de
culpa em alguma coisa” e tal mecanismo
serviria, pelo menos temporariamente, como um
alívio para os sofredores” (FREUD, 1916).
Nesse sentido, pode-se dizer, que o ato
criminoso visa o peso da lei sobre o sujeito. Por
outro lado, ao retomarmos a obra de Freud para
pensarmos as questões trazidas pela clínica com
psicóticos infratores não encontramos nenhuma
teorização. Contudo, pode-se afirmar que as
descobertas do inconsciente e das pulsões e,
sobretudo, as transformações propostas por ele
na sua segunda tópica do psíquico influenciaram
definitivamente todos os analistas que, em anos
posteriores, se debruçaram sobre as relações
entre a loucura e o crime.
Para além de seus discípulos analistas, Freud
influenciou também Paul Guiraud, psiquiatra
organicista que se valeu da psicanálise quando
escreveu dois importantes artigos sobre as
relações entre a esquizofrenia e o crime. Trata-se
de O assassinato imotivado: reação liberadora da
doença nos hebefrênicos (1928) e Os
assassinatos imotivados (1931). No primeiro
artigo, ele compreende a passagem ao ato
criminosa “como resultado de uma transferência
do desejo de curar a doença sobre aquele de
suprimir o mal social” (GUIRAUD, 1928). Já no
segundo artigo, este claramente calcado na
psicanálise freudiana, Guiraud desenvolve a tese
que não deixa de ser radical de que o crime
psicose (ele está considerando o assassinato) tem
como objetivo e também como função a “cura”
da doença que atormenta o sujeito. Nesse artigo,
ele recupera a noção de Kakon, encontrada em
Von Monakow e Morgue para defini-la como
sendo um mal-estar intenso e inexprimível que o
psicótico sente no próprio corpo. Esse mal-estar
se faz presente, sobretudo, na fase de
desencadeamento da doença, o que leva Guiraud
a propor uma fase criminosa na esquizofrenia. A
passagem ao ato seria movida pela projeção do
Kakon, ou seja, pela projeção desse mal que
pode ser, então, atacado no exterior como uma
tentativa extrema do sujeito em livrar-se dele. É
importante salientar que Guiraud faz da projeção
do kakon o mecanismo central e determinante da
passagem ao ato criminosa, no caso dos
esquizofrênicos. Nesse ponto ele está
inteiramente de acordo com Freud,
especialmente, em relação ao que este formulou
no estudo sobre o caso Schreber. Ele nos diz que
o fim do mundo para o presidente Schreber
corresponde à projeção de sua catástrofe interna
(FREUD, 1912). Nos trabalhos posteriores, tal
como em Além do princípio do prazer (1920),
Freud continua a afirmar o papel importante da
projeção na causação dos processos patológicos
mais graves.
Nas décadas de 1920 e 1930 há entre os
psicanalistas, uma intensa discussão e produção
teórica acerca das relações entre o sujeito e o
crime e isso inclui textos, decerto não a maioria,
que se debruçam especificamente sobre o tema
do crime e a loucura. Para citar alguns, temos,
entre os alemães, Franz Alexander que junto
Alexander Staub escreve um longo livro
intitulado, Os criminosos e seus juizes. Entre os
ingleses, destaca-se Melanie Klein e, na França
é Marie Bonaparte quem primeiro se interessa
pela interface entre psicanálise e criminologia e
escreve em 1926 a célebre analise do caso de
Mme. Lefrebvre. Marie Bonaparte é seguida por
Jacques Lacan que em 1932 com sua tese de
doutorado intitulada “Da psicose paranóica em
suas relações com a personalidade” entra na
psicanálise elegendo como tema de estudo a
relação entre o supereu e o crime na psicose. A
paranóia de punição é o nome dado por Lacan
para essa forma de psicose em que o delírio é
dominado pela necessidade de punição imposta
pelo supereu (FERREIRA e GOMES, 2004).
Não é possível apresentar pormenorizadamente,
neste artigo, os aspectos desenvolvidos por
Lacan e pelos outros analistas citados acerca das
relações entre a psicose e o crime. Sendo assim,
me deterei, apenas por um instante, em uma
idéia comum aos analistas, contemporâneos ou
não. A psicanálise não compartilha da lógica
psiquiátrica e jurídica de que no cerne da psicose
encontra-se um défict ou uma incapacidade. A
experiência clínica e política que se realiza no
PAI-PJ tem sido convocar o sujeito psicótico a
responder pelo seu ato. Nosso trabalho não é
sem conseqüências. Fazer nossa parte para que o
psicótico tome a palavra de forma delirante ou
não tem permitido a produção de efeitos
terapêuticos sobre o sofrimento que uma psicose
impõe.
É verdade que a parceria entre a Psiquiatria e o
Direito permitiu e ainda permite a segregação
desumana do louco infrator. Por outro lado,
desde longa data a psicanálise ensaia uma
parceria com o Direito. No PAI-PJ realizamos,
não sem problemas, esse intuito psicanalítico.
Tal parceria tem funcionado, pelo menos em
BHte, como um ato de acolhimento à loucura. A
experiência da loucura muito tem ensinado ao
ordenamento jurídico. O louco infrator, na
maioria dos casos, quer responder pelo seu ato e
“deseja” responsabilizar-se pelo que fez.
Observamos que o sujeito psicótico pode se
servir do Direito como um Outro capaz de
produzir uma certa ordem, um certo tratamento
do real. O acompanhamento desses casos na
instituição jurídica, orientado pela psicanálise,
mostra-nos a possibilidade de se fundar uma
relação entre o sujeito psicótico e a “lei que
confere sentido e orientação aos mais diversos
processos da vida civilizada” (SANTIAGO,
2005).
A psicanálise nos ensina que não se trata ao
segregar. Ao contrário é indispensável a
presença do Outro, em relação à qual podemos
endereçar nossa fala e através desta produzir
algum sentido que nos proteja, pouco que seja,
do domínio puro da pulsão de morte.

Referências Bibliográficas:

BARROS, Fernanda Otoni. Democracia,


liberdade e responsabilidade: o que a loucura
ensina sobre as ficções jurídicas. Set/2004
(texto mimeografado)
FERENCZI, Sandor. Importância da
psicanálise na justiça e na sociedade. (1913).
São Paulo:Martins Fontes, 1993. Obras
Cojmpletas de Sandor Ferenczi. Vol.2.
FREUD, S. Além do Princípio do Prazer (1920).
Rio de Janeiro: Imago, 1996. (E.S.B., 18).
FREUD, S. Alguns tipos de caráter encontrados
no trabalho psicanalítico (1916). Rio de
Janeiro:Imago,1996 (e.S.B., 14).
GUIRAUD, Paul. LE meurtre immotivé, réacion
libératrice de la maledie, chez lês
hébephéniques. Annales médico-psycologiques.
[s.1.: s.n]. Tomes I e II, 12. Série, 1928.
LACAN, A agressividade em Psicanálise
(1948). In:Escritos.Trad.Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FERREIRA, Daniela Venâncio. Psicanálise e
Criminologia: reflexões sobre a agressividade
na psicose (2005). Dissertação de Mestrado –
UFMG.

As Interações entre o saber psi e o dispositivo

judicial

Por Gisálio Cerqueira Filho37

O que no psicopatológico é jurídico? Esta é


37¹ Doutor em Ciência Política e Professor Titular de
Sociologia. Membro da Associação Universitária de Pesquisa
em Psicopatologia Fundamental. Atua como pesquisador e
docente no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF)
da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de
“Autoritarismo Afetivo – a Prússia como Sentimento”,
Editora ESCUTA, São Paulo, 2005 e “Édipo e Excesso:
Reflexões sobre a lei e política”, Sergio Fabris Editor, 2002,
entre outras obras
a pergunta fundamental que formulamos.

Mas a organização do congresso propõe


também uma outra questão: o saber psi como
mecanismo de controle ou como possível ponto de
fuga para o funcionamento da máquina disciplinar?

Começo então propondo uma breve


interpretação sobre a possibilidade do saber “psi”
ser um “ponto de fuga” para o funcionamento da
máquina disciplinar.

O que, a bem dizer, é um “ponto de fuga?"


Trata-se de um ponto para o qual, na
profundidade do quadro, parecem convergir os
raios e as linhas que se originam no primeiro plano
de uma de uma obra com perspectiva. Trata-se,
portanto, de um efeito de ilusão (da ordem do
“parecer convergir”).

Agora voltemos ao psicopatológico. Antes


de mais nada, entretanto, é necessário ressaltar
que estamos tomando um tal termo do sentido que
é empregado por Pierre Fedida, que atuou na
Universidade de Paris 7 – Denis Diderot, enquanto
constitutivo da subjetividade humana. Estamos
contra qualquer apropriação, seja pelos estudos
acerca da normalização psíquica, desde a
psicologia comportamentalista, psicologia do ego e
dispositivos de controle mental, seja pelos estudos
e práticas acerca do controle jurídico, desde a
sociologia funcionalista, o direito e seus
dispositivos de controle social.

Pierre Fédida usava o termo


“Psicopatologia Fundamental” e declarava ter
inventado essa expressão para distinguir o novo
campo de estudos e pesquisas da Psicopatologia
Geral, cunhada por Karl Jaspers, no início do
século XX.

Esta, sendo disciplina eminentemente


fenomenológica, dedica-se às manifestações
existenciais e sua significação, sendo, por isso
mesmo, atividades eminentemente conscientes.

A Psicopatologia Fundamental, por sua


vez, apresente um duplo eixo38: por um lado,
pretende ser um campo de investigação do pathos
psíquico sobre o qual os estudiosos se inclinam
(daí a clínica) de diferentes posições teórico-
metodológicas. Essa diversidade de posições
acaba por constituir diferentes maneiras de
descrever, conceber e tratar o pathos psíquico
que, graças à sua irredutível complexidade, não se
esgota nem por uma única dessas posições
epistemológicas nem pelo conjunto de tais
posições. Em vista disto, aqueles que se dispõem
a participar da Psicopatologia Fundamental
precisam fazer uma sistemática opção valorativa
pala qual reconhecem que sua posição detém
apenas uma parcela de verdade e não toda a
verdade sobre o pathos psíquico. Optam, assim,
por abrir mão de um valor reducionista segundo o
qual a posição do outro só interessa se superar
relações de equivalência entre as diferenças.
Assim, por exemplo, como acentua Manoel
Berlinck, estabelecer relação de equivalência entre

38Manoel Tosta Berlinck, “Psicopatologia Fundamental”,


Editora Escuta, São Paulo, 2000.
o pathos e o Real lacaniano, ou o biológico
genômico, ou o neurocientífico, ou ainda equivaler
o pathos ao subjetivo ou ao objetivo é realizar
operação epistemológica reducionista baseada em
valores outros dos que regem a Psicopatologia
Fundamental. Assim, reduzi-lo à psicanálise, à
genômica, à neurociência, ao comportamento ou a
sistemas classificatórios de qualquer tipo é recusar
a realidade da complexidade do pathos. Outra
tentação reducionista é a expressa pela idéia
segundo a qual a melhor conduta clínica seria
fornecida por equipe. Essa idéia tem sido um
importante avanço na reforma psiquiátrica
brasileira quando comparada com o tratamento
baseado em internação e medicação de pacientes
em hospitais psiquiátricos. Entretanto, a noção
mesma de equipe supõe a redução de posições
diferentes em prol de uma cooperação
complementar entre especialistas. Ora, é uma
ingenuidade científica supor que a complexidade
de pathos possa ser alcançada pela justaposição
de especialidades numa unidade clínica
cooperativa. O conhecimento só pode avançar
onde fracassa39. Aqui é que queremos ressaltar a
necessidade de “negação da negação”.

Já a expressão “fundamental” aponta para


a complexidade do “pathos” e adquire um estatuto
significante que ultrapassa os limites estabelecidos
por seu fundador. Ultrapassa também o interesse
da nossa fala neste momento.

Por isso retomamos a questão que nos

39 Manoel Tosta Berlinck, “op. cit.”, especialmente os


capítulos sobre metapsicologia.
interessa: a “negação da negação”. Neste
aspecto, a afronta à ideologia corrente, ou que
outro nome venhamos a designar – “ética”,
hipocrisia, cinismo, traição, imoralidade, quiçá
conservadorismo – mesmo os embates e
combates com o jurídico – podem e devem ser
enfocadas nos termos do conceito hegeliano de
“negação da negação”, utilizado por Hegel, mas
também por Lênin, Marx, Slavoj Zizek, etc.40

“Não (se trata) da


negação vazia, inútil, cética, a
vacilação, a dúvida, que é
característica e essencial na dialética –
que, sem dúvida, contém o elemento
de negação e, na verdade, o contém
como seu elemento mais importante –,
mas
sim a negação como um momento de
ligação, como um momento de
desenvolvimento que conserva o
positivo”.

Assim, a negação presente na “negação da


negação” é eivada de positividade presente sim na
superação, mas inseparável da “conservação” e
“transformação” dialeticamente presentes. Por
isso, o sentido fundamental da negação é definido
pelo caráter do momento dialético imanente do
desenvolvimento dito “objetivo” nos termos do “via-
a-ser”, da “mediação” e da “transição”.

Entrelaçam-se o passado, o presente e o

40 Ver “Dicionário do Pensamento Marxista”, editado por T.


Bottomore, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
futuro; vários futuros, nos termos propostos por
Norbert Lechner41: o futuro presente no dia de hoje
que vamos chamar de futuro presente, que projeta
o presente futuro do dia de amanhã e ambos
interagindo como futuro passado, aquilo que, no
passado, se vislumbrava como futuro. Há uma
“memória do futuro” (o que poderia ter sido), que
condiciona a memória do futuro presente.

Há um outro aspecto interessante que pode


ser nomeado como a relação entre a
universalidade e a particularidade da
subjetividade. Talvez a música possa ser tomada
como exemplo. No “concerto para violino”, este
parece lutar contra a universalidade do concerto
orquestral. Isto acontece tanto no “concerto
clássico para violino” quanto nos grandes
concertos românticos desde Mendelssohn,
passando por Sibelius, Tchaikovsky, etc. Theodor
Adorno acentua que, na música clássica, o violino
expressa o máximo de subjetividade “contra” a
totalidade da orquestra.

Já em Mozart, o que seria um concerto


para o violino se transforma numa “sinfonia
concertante”; onde a subjetividade do instrumento
violino é encapsulada pela universalidade da
orquestra. Todavia em Beethoven já vislumbramos
a hipótese da afirmação da subjetividade em
relação à substância propriamente dita. Aqui há
um excesso instrumental do violino, sobretudo no
“concerto nº 1”, contra a orquestra. No sentido

41 Norberto Lechner, “lãs sombras Del mañana: dimensión


subjetiva de la politica”, LOM Ediciones, Santiago de Chile,
2002.
oposto Brahms lança o que se designa “concerto
contra o violino”, em que o acento se dá na
orquestra. E finalmente o “concerto para
orquestra” de Bartok desliza par a loucura
psicótica do “concerto sem orquestra” de
Schuman. Todos os exemplos dados acabam por
caracterizar momentos particulares do “concerto
universal para violino”. Assim, o conceito de
universal é perturbado de um modo específico de
repúdio, inversão, expulsão, etc.42

Tanto a “negação da negação” quanto à


relação entre o particular e o universal se
apresentam no momento que o psicólogo se
relaciona com o sistema judicial como um todo.

O operador do campo “psi” chega ao


“jurídico” quase que possuído por um furor
histérico de desconstrução do aparelho, práticas e
efeitos judiciais. Freqüentemente supõe
ingenuamente negar o jurídico e, muito mais cedo
do que se pensa, descobre-se na armadilha do
que se pode chamar “da(nação)” da norma,
conforme ressaltou em livro memorável o filósofo
Roberto Machado.

Hegel anunciou por primeiro que a negação


é integrante da afirmação da positividade dando
validade, pois, à afirmação de Spinoza (ominis
determintio est negatio); assim, toda “superação”
é inseparável da "preservação”. Nas palavras de
Hegel:

42 Ver Slavoj Zizek. “El espinoso sujeto: el centro ausente


de la ontologia política”, paidós, Buenos Ayres, 2001, pp.
115 e seguintes.
“Desse lado negativo, o imediato
submergiu-se no outro, mas o
Outro não é, essencialmente, a
negativa vazia ou Nada que é
considerado habitualmente o
resultado da dialética. É o Outro do
primeiro, a negativa do imediato; é
assim determinado como mediato e
contém a determinação do primeiro.
O primeiro é, dessa forma,
essencialmente contido e
preservado no Outro”.43

Nessa mesma perspectiva, Marx se refere


à apropriação capitalista, resultado do modo de
produção capitalista, que de certo modo nega a
propriedade individual baseada no trabalho do
proprietário. Aqui a negação da negação consiste
no fato de que se a produção capitalista não
restaura a propriedade privada para o produtor,
permite-lhe, todavia, a propriedade individual
baseada nas aquisições da era capitalista não
restaura a propriedade privada para o produtor,
permite-lhe, todavia, a propriedade individual
baseada nas aquisições da era capitalista, isto é,
na cooperação e na posse em comum da terra e
dos meios de produção.44

Já a lógica da “negação da negação” pode


ser observada, no seu funcionamento, nas
relações nos termos da relação entre dor de

43 “Dicionário do Pensamento Marxista”, op. cit.


44 Ver K. Marx, “O Capital”, vol. 1, cap. XXIV, 7.
cabeça & enxaqueca e sexo.45 Bem antes do
movimento feminista, muitas mulheres justificavam
não fazer sexo com seus maridos dizendo: “estou
com dor de cabeça...” Em função das lutas das
mulheres e da crescente busca pelos seus
direitos, inclusive sexuais, revelou-se então um
comportamento sexual mais ativo, ao invés de
meramente passivo. Então, assustados com a
postura reivindicativa das mulheres, muitos
homens acabam lançando mão do recurso
anterior, e para não fazer sexo diziam: “Hoje não,
pois estou com dor de cabeça...” Finalmente, a
“negação da negação” se apresentava com sua
contundência quando diante do novo quadro as
mulheres passavam a reivindicar “fazer sexo
agora, pois estou com dor de cabeça; pode ser
que uma boa trepada me traga algum conforto...”

Assim, o que falta neste momento histórico


singular é buscar a “negação da negação” que nos
fará avançar politicamente.

O coreógrafo francês Jerôme Bel dirige a


bailarina brasileira Heloisa Torres, do corpo de
baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na
peça que leva o nome do artista. Como sabemos,
todo corpo de baile é hostil ao estrelato na dança,
pois o diretor alça a bailarina anônima ao primeiro
plano da subjetividade fazendo-a mais do que
dançar. Ela dança, mas sobretudo, na segunda
parte do espetáculo, Heloisa subjetiva a sua
participação a partir da sua história de vida e dos
bastidores do balé, a realidade vivida e sonhada
pelas bailarinas, aquilo por que elas passam

45 Ver Slavoj Zizek. “El espinoso sujeto”, op. cit.


enquanto grupo, cujas subjetividades, estão
dissolvidas. O interessante é que sua história
pessoal se inscreva no corpo, não exatamente de
baile...

Gostaria de observar, a partir de um caso


relatado por Manoel Berlink46, como no Brasil se
realiza o que denominamos de mestiçagem, ou
melhor, miscigenação. O caso em questão refere-
se à clínica psicanalítica propiciada a partir da
busca de um jovem poliglota e que trabalhava
como vendedor na cidade de São Paulo, (agitado,
inquieto, angustiado e insone), que costumava
intercalar suas falas com expressões e palavras
de idiomas diferentes: inglês, francês, espanhol,
grego, holandês, russo, alemão, ídiche, japonês,
latim, tupi-guarani, yourubá e evidentemente
português. Compunha, na prática, uma outra
língua. A partir de uma certa escuta, Manoel
Tosca Berlink refere-se à diversidade de etnias,
culturas, comidas, pontos de vista, paradigmas
com relação ao conhecimento, etc. A
miscigenação não é exatamente o equivalente a
casamento interétnico, embora este esteja contido
naquela. Na verdade, falar em miscigenação é
falar na relação “de ou entre” diferenças. É
também falar num suposto padrão de “natureza
pura” (pureza) que está presente, sobretudo
quando se fala em miscigenação por mistura.

46 Curso intitulado “Psicopatologia da miscigenação”,


supervisão de Manoel Tosta Berlinck, durante o I Congresso
Internacional de Psicopatologia Fundamental e VI Congresso
Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, realizado na PUC-
RIO entre 4 e 9 de setembro de 2004. Veja-se ainda o seu
texto Esquizofrenia y Mestizaje, mimeo, 2004.E
Nesta perspectiva podemos falar de dois tipos de
miscigenação: por mistura ou por justaposição.

Na miscigenação por mistura há um


pressuposto de maior ou menor pureza. Já na
miscigenação por justaposição temos uma
unidade fraturada, pois justaposta, mas que
preserva as partes e exige a imaginação político-
sociológica na composição do quebra-cabeças. O
importante é que se preservem as partes, a
relação entre elas, inclusive o conflito
eventualmente existente e que ele possa ser lido,
reinterpretado e posto em perspectiva.

Vamos ilustrar com exemplos alimentares:


nosso café com leite e o feijão com arroz dos
cubanos denominamos “moros y cristianos”.

Não é isso que muitas vezes falta no


encontro do psicólogo com o jurídico? Uma
mistura por justaposição?

Muito obrigado.

gisálio@superig.com.br

Do fracasso da reprodução assistida à


adoção: possibilidades de intervenção
durante a habilitação para adoção
Mônicca de Carvalho Moreira47

47 Psicóloga lotada na Vara da Infância, da Juventude e do


Idoso de Teresópolis
As reflexões a serem apresentadas dizem
respeito à experiência como psicóloga na 1º
Vara da Infância e da Juventude da Comarca da
Capital de 1999 a 2004 nos processos de
Habilitação para Adoção. Ou seja, nos feitos em
que os requerentes pleiteiam o direito de virem a
adotar uma criança. Nesse período, 68% dos
pretendentes à adoção vinham de uma
experiência com a reprodução assistida que
havia resultado em fracasso.
Para a Organização Mundial de Saúde
a infertilidade é a incapacidade de um casal
conceber um filho após um ano de
relacionamento sexual sem medidas
contraceptivas.
A reprodução humana48 tem sido há
séculos o centro de atenções do poder. Em
todas as sociedades são elaboradas
estratégias para controlar a potencialidade
reprodutiva de seus membros. Para a
antropologia, a maneira como uma sociedade
48 JEREZ, Monserrat Juan. Entre o mito e a reprodução
assistida.IN: El Niño. Revista do Instituto do Campo
Freudiano. Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a
Infância(CIEN). nº 6. Primavera-verão 1999. Barcelona:
Paidós, 1999, p. 44-51.
define e regula a concepção resulta na forma
como ela se estrutura em sistemas de
parentesco, valores, crenças e relações de
poder. Historicamente, o advento das técnicas
de reprodução assistida implicou em uma
cadeia de rupturas, das quais se destaca a
quebra da imutabilidade entre sexualidade e
fecundidade. Este momento marca a
decadência do poder eclesiástico na definição
do início da vida humana; a ciência passa a
assumir o lugar até então ocupado pela igreja.
Ainda que tenham promovido rupturas,
as técnicas de reprodução assistida defendem
ideais já valorizados pela igreja: a reprodução
desvinculada da sexualidade, fomentar o
desejo de filhos no casamento, enaltecer a
mulher como mãe e, sobretudo, reforçar a
importância do vínculo biológico na filiação.
Assim, observa-se uma relação de
continuidade entre o paradigma cristão e o
científico.
Um dos efeitos do discurso científico
sobre a reprodução49 humana é desprezar o
papel da transmissão cultural. O ser vivo é
reconhecido como humano na medida em que
é adotado como descendente, que é incluído
na ordem de filiação. O corpo se humaniza
quando palavra e linguagem se separam do
biológico. Lacan50 em Complexos Familiares
aponta que a família é o lugar da transmissão
da cultura.
Cabe ressaltar que o momento da
concepção51 e a acolhida do embrião no útero
implicam uma rede complexa de fantasias
inconscientes. Há uma aceitação envolvida
em cada um destes momentos. Do contrário,
não se engravida ou a gravidez não chega a
termo. De fato, no humano há um abismo

49 PETIT, Carmem Gallano. Nascer de um mal-entendido.


IN: El Niño. Revista do Instituto do Campo Freudiano.
Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Infância(CIEN). nº
1. Barcelona: Paidós, 1995, p. 26-33.
50 LACAN, Jacques. Os complexos familiares na formação
do indivíduo. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
51 DUQUE ESTRADA, Dulce. Procriação: o desejo, quando
nasce? IN: Trata-se uma criança, tomo 1. Congresso
Internacional de Psicanálise e suas conexões. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1999. Pág. 137-141.
entre a vontade consciente e o desejo
inconsciente. A falta de acesso às fantasias
inconscientes que são da ordem do desejo,
aliadas ao “não querer saber nada disso” que
é da ordem da neurose, resultam nos tropeços
observados nas tentativas por uma gravidez.
É próprio ao ser humano negar a instância do
impossível e atribuir as falhas a uma
impotência que pode ser vencida com a
insistência. Tragicamente, este é o modo de
funcionamento da ciência, que se encaixa
como uma luva aos anseios de muitos
daqueles que encontram dificuldades na
procriação.
Quando a medicina toma a demanda
por um filho52 como um simples pedido de um
objeto a ser possuído ou de uma mercadoria
possível de ser conseguida em função do
investimento financeiro a que se está
52 MEGALE, Fernando Carlos Santaella. “Reprodução
assistida” e função paterna: implicações. IN: Trata-se uma
criança, tomo 2. Congresso Internacional de Psicanálise e
suas conexões. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
Pág. 247-253.
disposto, o desejo envolvido no processo é
ignorado. De fato, a ciência acolhe a demanda
por um filho segundo a lógica da sociedade de
consumo.
Segundo Chatel,53 os médicos nesse
campo assumem uma posição de “perversão
altruística”, pois sabem da real eficácia das
técnicas, entretanto, na certeza de “fazer o
bem”, renegam a realidade que é falha.
Destaca que 75% dos casos em que é
diagnosticada a infertilidade, na realidade, há
uma hipofertilidade de causas enigmáticas,
possivelmente de natureza psicogênica. Ainda
assim, a resposta médica é tratar este quadro
somaticamente, mesmo que não exista
sintoma somático.
Nessa vertente, as informações
veiculadas pela mídia são sempre ligadas ao
sucesso dos métodos de reprodução
assistida, reforçando o caráter mercadológico
53 CHATEL, Marie-Magdeleine. Mal-estar na procriação: as
mulheres e a medicina da reprodução. Rio de janeiro: Campo
Matêmico, 1995.
das técnicas. A revista Veja de 9 de maio de
2001 traz o seguinte texto: “Há uma excelente
notícia para os casais que não conseguem ter
filhos por métodos naturais: a ciência já é
capaz de vencer a batalha em nove de cada
dez casos de infertilidade......Não existe
casamento mais feliz: a ousadia dos cientistas
só é superada pela dos pais, dispostos a tudo
por um filho”. A reportagem faz referência à
comercialização nas clínicas especializadas
do “pacote econômico” de três inseminações
artificiais.
Mais do que prometer um filho, a
medicina oferece um alto “controle de
qualidade” em relação à saúde e
características físicas inerentes ao embrião,
apregoando a obtenção de crianças
superiores àquelas obtidas pelo “método
natural”. Assim, a ciência inevitavelmente
fracassa, na medida em que promete como
possível o filho idealizado. Tal posição reforça
a dificuldade dos pais em aceitar seus filhos
possíveis, reais, inevitavelmente falhos.
Nessa vertente, Bernard Fonty54,
obstetra francês, assinala que tem observado
o crescimento do “mito da criança perfeita”
entre os casais. Eles se mostram incapazes
de aceitar a mínima falha no feto, ainda que
sem importância e facilmente corrigível. Como
exemplo, coloca que nove entre dez mulheres
optam pelo aborto ao descobrirem ao terceiro
mês de gestação o lábio leporino no filho.
Voltando à reprodução assistida,
contrariando o difundido, a maioria das que
tentam engravidar por este método,
fracassam. Diante do fracasso, alguns
médicos sugerem a adoção como forma de
“desbloquear” os impedimentos psíquicos
para a uma gestação. Curiosamente, tal
indicação não é apenas de caráter informal,
no livro organizado por uma clínica

54 Entrevista de Bernard Fonty. IN: El Niño Revista do


Instituto do Campo Freudiano. Centro Interdisciplinar de
Estudos sobre a Infância(CIEN). nº 1. Barcelona: Paidós,
1995.
especializada nessa área, “O bê a bá da
infertilidade”, na página 42, listada no quesito
“tratamentos para a infertilidade”, encontra-se
a “adoção” como o item “i”. Assim, por
recomendação médica ou por opção, parte
dos que fracassam buscam a Vara da
Infância, a fim de adotar uma criança.
A escuta desses requerentes nos
processos de Habilitação para Adoção tornou-
se um testemunho de suas experiências em
relação à reprodução assistida. Observei que
a forma como tinham se posicionado frente ao
tratamento oferecido era similar a como se
colocavam quanto à escolha da adoção como
forma de filiação. Um casal de médicos
desistiu após a fase diagnóstica, pois não
conseguiram confiar nas equipes que
consultaram, colocando a ética dos
profissionais em questão. Após algum tempo
da desistência, período necessário para se
separarem55 do filho biológico que não lhes foi

55 Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros em Adoção e


possível, escolheram a adoção. Outro casal,
desistiu quando lhe foi oferecida a opção de
implantar o embrião no útero da irmã da
requerente, para que pudessem ter seu
“próprio filho”. Durante o grupo de habilitação,
colocaram que, embora “o desejo por um filho
fosse enorme, não dava para fazer qualquer
coisa para conseguir um bebê”. Assim como o
casal anterior, eles chegaram à Vara da
Infância quando já havia um lugar para o
acolhimento daquele filho a ser adotado.
Outros casais relatavam longos anos
de inúmeras tentativas fracassadas, muitas
vezes financiadas a custa de parte
considerável do patrimônio. Alguns só tinham
abandonado o tratamento porque não havia
mais dinheiro disponível. Perguntados,
colocavam que o discurso dos médicos era no
sentido de que era preciso tentar mais e mais,

transmissão, trabalho apresentado no 2° Encontro de


Psicólogos Jurídicos do TJERJ, aponta a necessidade de se
separar do filho biológico que não foi possível, a fim de
escolher a adoção.
pois em algum momento teriam sucesso. Em
raras situações havia um impedimento
orgânico bem definido, normalmente a
dificuldade física não poderia por si só
responder pela ausência de uma gravidez.
Ainda assim, essa dimensão que escapava ao
controle exercido pelo tratamento, era
ignorada por médicos e continuava a ser
escamoteada pelos então requerentes nos
processos de Habilitação.
Freqüentemente, a demanda por um
filho era justificada com generalizações do
tipo: “todo casal precisa de filhos para se
tornar uma família” ou “toda mulher precisa
ser mãe para se completar”. Paralelamente,
era perceptível um tom de obrigatoriedade,
essas pessoas acreditavam que “tinham que
ter um filho” e, portanto, se encaixavam no
perfil descrito pela revista Veja, “estavam
dispostas a tudo por um filho”. Ou seja,
desrespeitar seus limites, tudo gastar, tudo
fazer e, especialmente, tudo sofrer,
subjugadas pelo imperativo por uma criança.
Sobre o imperativo em jogo, nos fala
Laurent56:
“O desejo de ter uma criança nunca
foi tão insistente, tão sintomático.
Há uma espécie de direito a ter
criança que se instalou nos
casais.....Ter uma criança é como
um imperativo moderno da ordem
do “ter”: uma vez que é possível,
então é obrigatório”.

O autor ressalta que a intervenção desejável


frente a esse tipo discurso seria no sentido de
desfazer o caráter superegóico em jogo. Tal
intervenção tornaria possível para os
requerentes, a construção de um lugar desejante
para essa criança que está por vir, escapando da
lógica de consumo em que ela é colocada como
objeto de mercado.
Nessa vertente, é comum escutar dos colegas
que atuam na Habilitação para Adoção, que
percebem em muitos requerentes a atitude de
quem está em um supermercado. Descrições
minuciosas e inflexíveis sobre as características
físicas das crianças, assim como o interesse no

56 LAURENT, Eric. Entrevista. IN: A criança no adulto.


Revista Carrossel. Ano III, nºs 3 e 4. Centro de Estudos e
Pesquisa de Psicanálise e Criança. Escola Brasileira de
Psicanálise-BA. Novembro de 1999. Pág. 11-5.
direito de “escolher”, devolver ou trocar o bebê
que se mostre insatisfatório, no melhor estilo
PROCON.
O incômodo com a forma como esses
requerentes chegam à Habilitação, tratando as
questões relativas à filiação segundo a mesma
lógica do paradigma científico, não é sentido
apenas pela equipe técnica do Juízo (psicólogos
e assistentes sociais). Certa feita, uma carta
precatória do sul do país veio com o pedido de
um parecer psicológico de um casal residente no
Rio de Janeiro. Tal solicitação datada de 1999, o
primeiro ano em que estava atuando nas
Habilitações para Adoção originou-se na
seguinte promoção do promotor de justiça:

“O casal requerente demonstrou possuir


bom ambiente familiar e as razões para
eventual adoção são nobres, e não
obstante esse fato, estão a fazer as
diversas preferências que possuem em
relação à criança a ser adotada, o que já
demonstra falta de consciência quanto
ao ato de adotar.
De se notar que preconceitos quanto à
idade, sexo, saúde e raça da criança são
indícios de que o casal pode,
futuramente, ter problemas com a
adoção pretendida por não estar
suficientemente preparado para o
surgimento de situações desfavoráveis
em relação ao adotado.
A lei brasileira não vedou essa
“escolha” de criança – infelizmente –, e
diante de situações como esta, restará
ao Juízo confiar na reflexão que o casal
deverá fazer acerca dessa situação e do
ato de adotar.
Faz-se necessário, pois, que antes de
deferido o cadastro, seja feita nova
avaliação psicológica pelo Juízo no
qual residem, de forma a que, primeiro,
faça-se a devida avaliação para fins de
adoção, e segundo, alertem o casal da
relevância destas questões,
especialmente porque o espírito da
legislação atual é sempre a busca de um
bem-estar para a criança, e também da
existência de várias outras crianças
dispostas a serem adotadas, mas que
não correspondem às “características
exigidas”.
Aliás, não é demais lembrar que por
detrás de características físicas estão
ocultos o caráter, personalidade,
genialidade, bondade, amor, afeto, e
quanto a essas qualidades não há
opções de escolha, para o bem ou para
o mal”.

Partia do promotor um estranhamento


frente ao lugar destinado pelo casal à criança.
Especialmente relevante foi sua demanda
para que fosse colocado aos requerentes que
o controle em relação às características físicas
da criança não se constituía como uma
garantia de satisfação, ao contrário, havia algo
que inevitavelmente escaparia. Algo que dizia
respeito a um ponto de impossibilidade. Ao
solicitar uma reavaliação psicológica, o
promotor estava tentando efetuar um corte
que, a rigor, poderia ter sido empreendido
durante a primeira intervenção psi.
Como fazer incidir um corte? Corte que
visaria desfazer a tônica mercadológica em
cena na demanda por um filho. Como
recolocar a questão do “desejo de filho” para
os requerentes? Como transformar o fracasso
por uma gravidez em questão? Como intervir
de forma a escapar do caráter superegóico
em jogo, abrindo espaço para uma possível
escolha por um filho através de uma adoção?
Diante dessa questão, a pergunta que
se colocou inicialmente foi se existiria uma
melhor forma de intervir. Possivelmente não
se trata de uma forma, mesmo porque não há
uma solução modelar para todos os
requerentes com questões similares.
O que parece determinante é responder
aos requerentes de um outro lugar ao
esperado, de um lugar que não corresponda à
lógica a que eles estão inseridos. O Estado57 e
o Judiciário, em particular, não são capazes
de atender todas as demandas, de corrigir
todas as injustiças da natureza – de que os
requerentes se acham vítimas. Se
respondemos desse lugar – um lugar
equivalente ao da divindade –, um parecer
desfavorável tem o peso de um castigo, pois
vem daquele que poderia satisfazer,
entretanto, não o faz por capricho ou por falta
de merecimento do demandante. Se nos
equivocamos, acreditando que há e temos

57 HAMAD, Nazir. A criança adotiva e suas famílias. Rio de


Janeiro: Companhia de Freud, 2002.
condições de oferecer aquilo que produziria a
satisfação e o bem-estar no outro, torna-se
quase impossível dizer um “não” ou um “ainda
não”, que abriria um espaço para o
surgimento do “desejo de filho”.
É preciso ouvir, ouvir e suportar a
insatisfação do outro que tenta lhe atribuir a
culpa por essa insatisfação. Somos nós,
responsáveis por esse parecer desfavorável
que temos a responsabilidade de suportar
essa insatisfação e suas manifestações: raiva,
representações no CRP, na Corregedoria, ou
ainda, continuar escutando quando alguma
questão se coloca para os requerentes. Em
minha experiência nunca percebi algum
resultado quando o requerente é
encaminhado para atendimento terapêutico ou
coisa que o valha em outra instituição,
concomitantemente, ao parecer desfavorável
na Habilitação para Adoção. Esse
encaminhamento só pode ser efetivo se há
um trabalho de escuta. Algumas vezes essa
escuta já é o suficiente para algo se mover e
torna-se desnecessário o encaminhamento.
Encerro com Lacan:
“A idéia da relação com o outro é sempre
solicitada por um deslizamento que
tende a reduzir o desejo à demanda. Se
o desejo é de fato o que articulei aqui,
ou seja, aquilo que se produz na hiância
aberta pela fala na demanda, e se
portanto, como tal, ele está além de
qualquer demanda concreta, fica claro
que qualquer tentativa de reduzir o
desejo a uma coisa para a qual se
demande satisfação esbarra numa
contradição interna....Dei-lhes um
exemplo disso numa passagem do autor
que pus em questão, referente à
profunda satisfação trazida pela
satisfação dada à demanda do outro, o
que comumente se chama de altruísmo.
Isso eqüivale, justamente, a deixar
escapar o que de fato há por resolver no
problema do desejo”58

58 LACAN, Jacques. O seminário, livro 5: as formações do


inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 428.

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